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Revista Espacialidades [online]. 2017, v. 12, n. 2. ISSN 1984-817X BIOGRAFIAS E HISTORIOGRAFIA: UMA CONVERSA COM A PROFESSORA MÁRCIA DE ALMEIDA GONÇALVES Apresentação: A professora Márcia de Almeida Gonçalves, vinculada ao Departamento de História da Universidade do Estado do Rio Janeiro, esteve em Natal nos dias vinte e cinco e vinte e seis de setembro de 2017, a convite do Grupo de Pesquisa “Os Espaços na Modernidade”. Durante a visita, a referida professora participou de três atividades coordenadas por esse Grupo de Pesquisa. As atividades foram registradas como projeto de extensão da UFRN, que previa a livre participação dos professores e alunos da graduação e da pós-graduação em História. As atividades desenvolvidas pela professora foram as seguintes: participação em banca de defesa de dissertação de mestrado; entrevista concedida aos membros do Grupo de Pesquisa “Os Espaços na Modernidade” e uma palestra sobre os estudos biográficos. O texto que se seguirá a esta apresentação se refere à transcrição da entrevista realizada, cuja publicação foi devidamente autorizada pela professora Márcia Gonçalves. No dia vinte e cinco de setembro de 2017, às dezesseis horas, no Auditório 1 (um), do Departamento de Políticas Públicas, no campus de Natal, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, iniciamos as atividades com a defesa da dissertação de mestrado em História da aluna Arilene Medeiros de Lucena, que construiu uma biografia do artista natalense Dorian Gray Caldas. Participaram como examinadores a professora Márcia Gonçalves (examinadora externa), o professor Helder Viana (examinador interno) e eu (Raimundo Nonato Araújo da Rocha, na

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Revista Espacialidades [online]. 2017, v. 12, n. 2. ISSN 1984-817X

BIOGRAFIAS E HISTORIOGRAFIA:

UMA CONVERSA COM A PROFESSORA MÁRCIA DE

ALMEIDA GONÇALVES

Apresentação:

A professora Márcia de Almeida Gonçalves, vinculada ao Departamento

de História da Universidade do Estado do Rio Janeiro, esteve em Natal nos dias

vinte e cinco e vinte e seis de setembro de 2017, a convite do Grupo de Pesquisa

“Os Espaços na Modernidade”. Durante a visita, a referida professora participou de

três atividades coordenadas por esse Grupo de Pesquisa. As atividades foram

registradas como projeto de extensão da UFRN, que previa a livre participação dos

professores e alunos da graduação e da pós-graduação em História. As atividades

desenvolvidas pela professora foram as seguintes: participação em banca de defesa

de dissertação de mestrado; entrevista concedida aos membros do Grupo de

Pesquisa “Os Espaços na Modernidade” e uma palestra sobre os estudos

biográficos. O texto que se seguirá a esta apresentação se refere à transcrição da

entrevista realizada, cuja publicação foi devidamente autorizada pela professora

Márcia Gonçalves.

No dia vinte e cinco de setembro de 2017, às dezesseis horas, no

Auditório 1 (um), do Departamento de Políticas Públicas, no campus de Natal, na

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, iniciamos as atividades com a defesa

da dissertação de mestrado em História da aluna Arilene Medeiros de Lucena, que

construiu uma biografia do artista natalense Dorian Gray Caldas. Participaram como

examinadores a professora Márcia Gonçalves (examinadora externa), o professor

Helder Viana (examinador interno) e eu (Raimundo Nonato Araújo da Rocha, na

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Revista Espacialidades [online]. 2017, v. 12, n. 2. ISSN 1984-817X

condição de orientador). A intervenção da professora Márcia Gonçalves trouxe

inúmeras reflexões sobre os estudos biográficos.

Após a conclusão dos trabalhos da banca de mestrado, a professora

Márcia Gonçalves, cumprindo nossos acordos prévios, concedeu uma entrevista a

mim e a um grupo formado por meus orientandos da graduação e dos mestrados

acadêmico e profissional em História, todos ligados aos estudos biográficos. Apesar

de coordenada por mim e pelos meus orientados, a entrevista foi aberta ao público e

contou com a participação de outros professores e alunos de História da UFRN.

A vinda da professora à UFRN faz parte de um esforço do Grupo de

Pesquisa “Os Espaços na Modernidade” para viabilizar o contato do grupo com

estudiosos que se dedicam a entender a relação entre a história e a biografia. Além

da professora Márcia Gonçalves, já havíamos mantido contatos com outros

professores e professoras, que também transitam no campo da biografia histórica, a

saber: Adriana Barreto de Souza, Ângela de Castro Gomes, Giovanni Levi e Maria

Teresa Malatian. As duas primeiras professoras estiveram em Natal a convite do

Grupo de Pesquisa. O contato com o professor Giovanni Levi ocorreu em um

curso ministrado na UNISINOS. O encontro com a professora Malatian aconteceu

em Brasília, durante o Simpósio Nacional de História, promovido pela Associação

Nacional de História (ANPUH), quando a maioria dos meus orientandos

apresentou trabalho no Simpósio Temático por ela coordenado.

A entrevista que agora será apresentada se constitui em um documento

importante para todos os que caminham nos estudos biográficos.

Raimundo Nonato Araújo da Rocha

Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

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TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA

Raimundo Nonato Araújo da Rocha:

Professora, inicialmente, nós gostaríamos de saber como aconteceu sua

aproximação com os estudos biográficos. Por que a senhora resolveu trabalhar com

biografias?

Márcia de Almeida Gonçalves:

Eu diria que a minha aproximação com os estudos biográficos não se fez

a partir de uma deliberação prévia. Fui me aproximando do tema aos poucos e só

me envolvi completamente nesse campo quando elaborei o meu projeto de

doutorado, em 1998.

Quando estava elaborando minha dissertação de mestrado na

Universidade Federal Fluminense (UFF), entre os anos de 1990 e 1994, mantive

contato com as biografias escritas por Octávio Tarquínio de Sousa. Naquela época,

eu pesquisava sobre os medos presentes em discursos do conservadorismo político

e o meu trabalho usava, fundamentalmente, fontes impressas, no caso periódicos e

relatórios ministeriais.

Naquele momento eu precisei ler biografias para entender certos

personagens do conservadorismo político brasileiro. Li, especialmente, a biografia

de Bernardo Pereira de Vasconcelos, assinada por Octávio Tarquínio de Sousa. Essa

leitura muito me auxiliou tanto na indicação de referências e fontes (destacadamente

os periódicos), quanto na localização de discursos, de pronunciamentos e de textos

proferidos e/ou escritos pelo próprio Bernardo Pereira de Vasconcelos. A leitura

dessa obra de Tarquínio de Sousa foi tão interessante, que eu li a biografia inteira em

apenas duas madrugadas. Vale observar que, durante meu mestrado, minha filha era

muito pequena. Durante um período, eu só conseguia ler e estudar depois das 22

horas, horário em que ela dormia. Com a maternidade, entre tantos aprendizados,

foi necessário aliar disciplina com o uso eficiente da minha disponibilidade de

tempo.

A biografia de Bernardo Pereira de Vasconcelos foi marcante e a tenho

como referência de leitura. Percebi uma legibilidade diferenciada naqueles textos.

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Tarquínio de Sousa construiu um determinado tipo de escrita biográfica, sem

“perder a mão” do rigor da pesquisa, da análise e da crítica documental. Por tudo

isso, Octávio Tarquínio de Souza foi uma referência bibliográfica essencial para meu

mestrado.

A minha aproximação com os estudos biográficos só se tornou mais

efetiva no ano de 1998, durante a elaboração do meu projeto de doutorado.

Inicialmente, eu havia decidido que queria estudar a obra historiográfica do Octávio

Tarquínio, intuía que ali havia um determinado uso e uma determinada

materialização para a biografia histórica. Porém, isso não configurava, pelo menos

no início do projeto, nenhuma grande hipótese de trabalho.

O projeto foi se estruturando gradativamente e contou com as

valiosíssimas indicações bibliográficas e interlocuções junto ao meu orientador,

professor Elias Thomé Saliba. Com o passar do tempo, fui construindo a questão

central da tese, sem deixar de lado uma reflexão propriamente da história da

historiografia. Foi assim que consegui formular o meu problema de pesquisa: como

os historiadores mobilizam, no seu fazer profissional, a biografia?

A partir dessa questão mais ampla, delimitei como meu objeto de

investigação Octávio Tarquínio de Souza. Ao realizar essa delimitação, estava

apostando na mobilização clara e explícita da biografia como um gênero de escrita

da história. Foi a partir dessa aposta que a minha tese se estruturou e eu pude

discutir, por um lado, o intenso debate sobre a escrita biográfica, ocorrido em

diferentes períodos (1920, 1930, 1940 e 1950); e, por outro, pude investigar como

essa escrita se relacionou com a produção letrada de determinados intelectuais, no

Brasil e em outros lugares, em especial o Reino Unido.

Paulo Rikardo Pereira Fonseca da Cunha:

Professora, quais as referências teóricas sobre biografias que a senhora

teve acesso no momento em que começou a estudar o tema? Essas suas referências

permanecem atuais para os que desejam estudar biografias? No campo da biografia

histórica, há mudanças teóricas significativas entre o período em que a senhora fez o

doutorado e os dias de hoje?

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Márcia de Almeida Gonçalves:

Pergunta ampla e difícil. Acho que não vou respondê-la por completo.

Para ser mais precisa, posso afirmar que farei apenas algumas circunscrições sobre a

sua indagação. Para responder didaticamente a sua questão, vou estabelecer um

recorte temporal e espacial. A minha resposta ficará restrita às mudanças que

percebi entre 1998 (ano da elaboração do meu projeto) e 2003 (ano da minha defesa

de tese), nos espaços acadêmicos no Brasil. Obviamente, um marco fundamental

nesse recorte é meu ingresso como doutoranda na Universidade de São Paulo

(USP), em 1999.

Quando elaborei o meu projeto, já havia um debate sobre a biografia

como campo de estudos. Esse debate era travado com mais força no âmbito das

Ciências Sociais e das Letras. Nas Ciências Sociais, a Associação Nacional de Pós-

Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), por exemplo, já possuía um grupo de

trabalho que se dedicava aos estudos biográficos. O professor e historiador Benito

Schmidt já fazia parte desse grupo. Na área de Letras se discutia intensamente o

redimensionamento dos conceitos de autor e obra, e suas relações. Para discutir essa

relação (autor e obra), os pesquisadores da área de Letras, refletiam sobre a biografia

e também sobre autobiografia.

Entre os historiadores, certamente, o debate acontecia, mas envolvia

muitas polêmicas. Eu vou arriscar a dizer (e isso é um risco que corro), que a

abordagem biográfica, entre os historiadores, no final da década de 1990, era alvo de

muitas controvérsias sobre a possibilidade ou não de se realizar pesquisas históricas

a partir de biografias. Uma parte dos historiadores estava mais interessada em

mostrar a inviabilidade ou as limitações das pesquisas com biografias históricas, do

que em tentar entender como um historiador poderia fazer uma pesquisa biográfica.

No momento da elaboração do meu projeto e do meu ingresso no

programa de doutorado, usei como referência os trabalhos de Norbert Elias. O livro

“O Processo Civilizatório” já havia sido importante na minha dissertação de

mestrado. Norbert Elias foi uma chave importante para a construção do meu

projeto de doutorado. A leitura do livro “Sociedade dos Indivíduos” foi essencial

para dar rumos aos meus estudos sobre Tarquínio de Sousa. Os textos de Benito

Schmidt sobre biografia também foram muito úteis para o meu trabalho.

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Entre o projeto e o final da tese, pude mergulhar um pouco mais no

debate intelectual sobre biografia nos anos 1920 e 1930. Pude estudar sobre os

debates em torno da biografia moderna, da renovação biográfica, dos potenciais que

essa renovação proporcionava, em geral, para o campo das humanidades e, em

particular, para a história e para a literatura. Neste percurso apareceram os trabalhos

da escritora inglesa Virgínia Woolf e de outros autores, também ingleses, que lhes

foram contemporâneos, como é o caso de Lytton Strachey e Harold Nicholson.

Posso afirmar que o meu contato com o mundo inglês me ensinou que os debates

sobre os valores e as potencialidades do biográfico foram muito frequentes, pelo

menos na Inglaterra, no curso do século XIX, no alvorecer do século XX e, em

certa medida, até hoje.

No final da elaboração da tese, tive contato com alguns autores

franceses. Um autor muito importante para o meu trabalho foi Daniel Madelénat. O

livro dele “La Biographie”, publicado em 1984, tornou-se uma referência

importantíssima para mim. Estudei também autores vinculados à história política.

Percebi que a renovação do biográfico, nos moldes que eu estudava, se fortalecia

com reflexões da nova história política. Assim, encontrei nesse campo

pesquisadores que se interessavam pela história de políticos e de intelectuais, como é

o caso do francês Jean-François Sirinelli.

Hoje em dia, uma referência importante para mim, no campo das

biografias, é a argentina Leonor Arfuch. Eu não conheci a obra de Arfuch na

elaboração da minha tese. Só tive acesso à produção dessa autora quando estava

adaptando minha tese com vistas à publicação do livro (“Em Terreno Movediço:

biografia e história na obra de Octávio Tarquínio de Souza”), que foi lançado pela

Editora da UERJ, EdUERJ. Assim que li Arfuch, incorporei de imediato as suas

ideias ao meu trabalho. Publiquei o livro com algumas mudanças na tese original e

entre essas mudanças estava a incorporação do pensamento de Arfuch. A adaptação

da tese para o livro aconteceu entre 2008 e 2009.

Diria que entre final da década de 1990 e o início do século XXI, os

acessos, as disponibilizações e a discussões sobre o biográfico se expandiram

significativamente.

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Além de tudo isso que já falei, sua questão me suscitou uma pergunta que não foi

feita: caso eu fosse fazer agora, em 2017, uma nova edição da tese, teria alguma

temática nova a ser inserida? Se você me permitisse, eu gostaria de responder essa

questão. Na tese e no livro eu não fiz uma discussão sobre a memória, mas hoje eu

acho que esse tema teria enriquecido o trabalho. A obra de Aleida Assmann –

Espaços da recordação - por exemplo, teria sido perfeita para me ajudar na reflexão

sobre a memória, no sentido de compreender as relações entre história, biografia e

certo uso do testemunho.

Penso que é importante destacar dois aspectos importantes para os

estudos biográficos na atualidade. O primeiro aspecto diz respeito a um pensamento

que tem guiado as minhas pesquisas e as minhas orientações: para se elaborar um

trabalho de pesquisa valendo-se se de uma abordagem biográfica é fundamental a

existência de um problema, uma boa e instigante questão. O segundo aspecto se

refere aos cuidados na delimitação de referenciais teóricos tendo em vista a

ampliação do número de autores que se dedicam à temática biográfica.

Sobre esse segundo aspecto, especificamente, tenho feito mapeamentos

acerca dos dossiês publicados no Brasil sobre biografias e tenho constado a

ampliação significativa dos trabalhos nesse campo. Por isso, eu diria que as

universidades brasileiras vivem, no século XXI, a sua epidemia biográfica, o que

considero ser um dado positivo e significativo.

Quem quiser escrever hoje uma dissertação ou uma tese usando a

abordagem biográfica, pode acreditar que as potencialidades são muitas. Quem

estiver nessa situação, construa um bom problema, construa uma boa questão, pois

no tocante aos referenciais teóricos, existe hoje uma gama de autores disponíveis

para frutíferos diálogos.

Para encerrar essa resposta, preciso lhe dizer que sua pergunta é difícil de

ser respondida. Quando vou responder uma pergunta sobre referenciais teóricos,

fico sempre preocupada em esquecer alguém que me foi essencial. Quando esqueço,

sinto que caí em uma armadilha teórica. Espero que hoje eu tenha escapado um

pouquinho dessa armadilha.

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Renno Alesi Veras Oliveira:

Professora, gostaria que a senhora discutisse sobre as diferenças

significativas entre as biografias modernas e as biografias contemporâneas. O que é

uma biografia moderna? O que é uma biografia contemporânea?

Márcia de Almeida Gonçalves:

Tentarei ser didática na resposta. Inicialmente é importante deixar claro

que são biografias modernas a maioria das biografias que estão sendo fortemente

consumidas no mercado de livros, nos dias de hoje. Atualmente, ainda existem

biografias que constroem personagens usando uma chave ufanista ou enaltecedora,

porém, contemporaneamente, e no meu entendimento, esse tipo de escrita

biográfica existe em um grau muito menor. Os públicos leitores mudaram.

A princípio, os que apostaram numa nova biografia, daí biografia

moderna, objetivavam, entre outros aspectos, apresentar o biografado na sua

humanidade contraditória. Nesse sentido, os elogios não poderiam ser a única

abordagem sobre o biografado. Além dos elogios, o biógrafo teria que dar conta do

biografado na sua condição humana, na sua precariedade, nas suas incertezas, nas

suas dúvidas, nas suas inconclusões.

Diria que, nos dias atuais, os autores que partilham a identidade de

biógrafos (como é o caso de Ruy Castro, por exemplo), escrevem biografias para

serem lidas “numa pegada” inerente à biografia moderna, que se caracteriza pela

mobilização de fontes (entrevistas e documentos dos mais variados) para a

construção do biografado. Estes autores, que retomam a biografia moderna,

também se preocupam em construir textos que tenham agilidade e fluidez na

narrativa ofertada ao leitor.

Lembro que um dos críticos das biografias históricas afirmava, na década

de 1950, que esses textos biográficos eram repletos de “quinas” que levavam o leitor

a tropeçar continuamente. Nesse caso, as quinas eram as muitas notas de pé de

página existentes na obra, o que dificultava a leitura.

As biografias modernas passaram a construir seus personagens

baseando-se na premissa de que as referências documentais tinham que ser

mencionadas no corpo do texto, evitando assim muitas notas, e, ao mesmo tempo,

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esse texto deveria dar conta das emoções e das percepções do biografado. Por isso,

a biografia moderna era (ou ainda é) uma biografia que, na sua elaboração narrativa

se lastreava (ou ainda se lastreia) no romance moderno. Em termos comerciais, eu

acho que hoje ainda predomina a biografia moderna, ou suas heranças, nesses

procedimentos de elaboração do texto biográfico.

Foram biografias modernas textos produzidos por Virgínia Woolf (1882-

1941), mas também são biografias modernas os escritos biográficos de Ruy Castro.

É difícil definir um recorte temporal para especificar o período de vigência das

biografias modernas. Considero que as biografias modernas emergiram no século

XIX, apareceram em distintos momentos do século XX e ainda vigoram no século

XXI.

Contemporaneamente existem formas do fazer biográfico que não se

encaixam perfeitamente no rótulo de biografia moderna. Percebo um conjunto de

produções, no âmbito da pesquisa biográfica (estou falando de pesquisas realizadas

no campo das Ciências Sociais e no campo da Literatura e da Teoria literária), que

“põe em xeque” a biografia moderna, pelo menos no que se refere à elaboração

narrativa e a mobilização direta de recursos literários. Há alguns autores hoje que

consideram importante não se limitar aos pressupostos da biografia moderna e

valorizar, no texto biográfico, o próprio biógrafo. Nessa perspectiva, a biografia

histórica, deve conter a forte presença do “biógrafo”, que traz as suas apreciações e

abordagens sobre o biografado para o texto, explicitando-as de diversas formas para

os leitores. A ideia é que o biógrafo, na condição de sujeito-pesquisador, se faça

presente na narrativa.

A história oral e, ao lado dela a força que ganhou a mobilização de

testemunhos individuais, viabilizou uma maneira de apresentar a crítica do

testemunho, cobrando do autor, como sujeito autoral mais acadêmico, que ele

também “ponha em xeque” a sua subjetividade na conversa com a subjetividade do

outro.

Isso é muito interessante, porque permite que o pesquisador, por um

lado, não abandone suas preocupações inerentes às especificidades da sua

investigação e, por outro, apresente uma narrativa acadêmica que explicita o seu

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papel de construtor de um sujeito cuja vida é tomada como campo a ser estudado e

problematizado.

Os biógrafos modernos fizeram isso? Considero que não. Mesmo os

mais ousados, que não faziam biografias históricas, que escreviam as biografias tout

court romanceadas, “lançavam mão” das conjecturas e das invenções, muito

sensibilizadoras, por sinal, mas não “apareciam” nas narrativas. Para alguns,

inclusive, havia (ou há) um problema para o biógrafo que se mostra no corpo do

texto: ele fere certo protocolo de verdade que está presente na biografia, pois o

biógrafo não pode efetivamente emitir opinião sobre a vida de alguém, na medida

em que não viveu aquilo.

Contemporaneamente encontramos biografias que elaboram vidas

imaginárias; que redimensionam personagens históricos; que imputam ações,

pensamentos e sensações ao biografado, sem possuir prova factível de que ele

tivesse pensado ou agido de forma semelhante ao narrado. Essa lógica rompe ou

redimensiona com determinados protocolos de escrita e de leitura da biografia

moderna.

Eu diria que certas experimentações presentes na escrita da biografia

hoje estão muito ligadas ao momento atual, um momento de produção de novas

biografias. De alguma maneira, esse novo modo de fazer biografias impactou as

biografias “comerciais”, “mercadológicas”. Entretanto, acho que essas novas formas

também têm impactado as pesquisas acadêmicas no campo da escrita da história.

Essa afirmação precisa ser investigada com mais cuidado.

No meu caso, que estudei Octávio Tarquínio de Sousa, posso afirmar

que ele tinha uma preocupação em dizer que as suas biografias eram biografias

históricas. É por isso que ele tinha um enorme cuidado com a pesquisa documental.

Entretanto, é bom lembrar também que Tarquínio de Sousa dizia também que

escrevia preocupado em atingir o leitor médio, sensibilizando-o. Nesse sentido, ele

escrevia biografias desejando que os seus leitores também pudessem se ver naquilo

que o personagem biografado protagonizava. Almejando atingir o leitor, Tarquínio

de Sousa fazia conjecturas muito significativas. Provavelmente ele tenha ensaiado no

seu tempo uma forma biográfica que ultrapassava os moldes fechados de uma

biografia histórica, inspirando-se, de forma comedida, nas biografias romanceadas..

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Hoje acho que Natalie Zemon Davis e Carlo Ginzburg são referências

importantes entre os autores que mesclaram biografia e história e enriqueceram o

debate sobre suas relações. Além é claro dos trabalhos de Sabina Loriga, Govanni

Levi e François Dosse, para citar os que vieram a ter maior circulação nos espaços

acadêmicos.

Jean-Pierre Macedo Dantes de Morais:

Professora, atualmente, existe um campo de estudos que abarca a

temática história e biografia? Em caso afirmativo, que grupos existem hoje

dedicados a esse tema?

Márcia de Almeida Gonçalves:

Acho arriscado dizermos que existe um campo que abarca os estudos

relacionados à história e biografia. Considero mais apropriado nos referirmos a uma

aposta biográfica, a estudos que usam as abordagens biográficas, a trabalhos que

tratam a biografia como um problema epistemológico e teórico. Penso que os

trabalhos biográficos estão hoje muito bem situados na produção stricto sensu dos

historiadores. Há inclusive outras reflexões associadas às biografias, como é o caso

da autobiografia, da memória e do biógrafo que dá voz ao sujeito e sua

subjetividade.

Às vezes eu gosto de provocar mestres e doutores que apostaram no

biográfico, que mobilizaram a escrita biográfica, mas afirmam categoricamente que

não fizeram uma biografia. Há diversos motivos para que um pesquisador tenha

dificuldade em assumir publicamente a produção de uma biografia.

Ao mesmo tempo, sou suspeita para falar. Isso porque eu vejo –

parodiando Bakhtin – valor biográfico em tudo. A meu ver, em toda ação que

acontece no mundo há um sujeito envolvido. As ações são executadas, percebidas,

sentidas, faladas, relembradas e temporalizada por sujeitos. Em apropriação muito

livre do conceito, vejo valor biográfico em tudo.

Quem escuta essa ideia talvez possa, apressadamente, afirmar que eu me

enquadro entre os autores que consideram que a biografia está em todos os lugares.

Entretanto, eu também acho que essa lógica de perceber biografia em tudo pode ser

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perigosa e nos conduzir a uma armadilha. É bom lembrar de Paul Veyne: “se tudo é

história, então a história não existe”. Inspirada nessa ideia eu posso afirmar: “se tudo

é biográfico, então a biografia não existe”.

Estou aqui brincando com os paradoxos propositalmente. O que eu

quero afirmar é a dificuldade de emoldurar autores em um campo biográfico, pois

alguns fazem biografias, mas têm receio de afirmar que fazem biografias; outros têm

dificuldade de diferenciar biografias de outros tipos de estudos. Portanto, considero

que não dá para afirmar que existe um campo biográfico, pelo menos usando a

acepção de campo formulada por Bourdieu. O que posso afirmar, sem dúvida

alguma, é que o sujeito é uma questão que está posta para ser trabalhada nas

diversas áreas das humanidades, e que as diversas abordagens biográficas

possibilitam pesquisas enriquecedoras e inovadoras.

Vou aproveitar essa questão para discutir um tema relacionado a essas

reflexões e que também considero importante. Tenho visto algumas ideias que

conduzem ao pensamento de que a biografia é a saída metodológica mais simples

para resolver determinados impasses. Eu discordo dessa sentença. Acho exatamente

o contrário. Na minha percepção, se o sujeito é uma questão, ele é uma espécie de

universo. Isso significa que o pesquisador, ao trabalhar com o sujeito como objeto

de investigação, precisará saber como recortar, abordar, selecionar. O pesquisador

investigará alguns aspectos da vida desse sujeito, mas deixará de lado outros tantos

aspectos também importantes. O que quero é deixar evidente que,

metodologicamente, o trabalho com biografias nada tem de simples, nada tem de

fácil.

Gostaria ainda de aproveitar essa questão para abordar outro tema. Os

estudos biográficos ou as abordagens biográficas, nas suas diversas variações,

mantém um diálogo permanente com as análises historiográficas que valorizam

determinados sujeitos nas suas singularidades, nas suas particularidades.

Nesses termos, a biografia tem uma relação intrínseca com a Micro

história. Entretanto, é importante perceber que não é apenas a Micro história que

mantém essa relação. Discordo da ideia de que a ampliação do uso e da mobilização

das abordagens biográficas, no campo das humanidades, esteja associada

exclusivamente ao sucesso da Micro história. Claro que a Micro história é

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importante para os estudos biográficos, porém existem pessoas (dentro e fora das

universidades) na Itália, na França, no Brasil e em outras partes do mundo, que

trabalham com biografias sem usar referenciais da Micro história.

Digo aos meus orientandos que é um pouco exagerado usar a Micro

história como a única “bandeira de salvação” da biografia. A meu ver, fazer

biografia é uma forma de conhecer o sujeito. Obviamente, quando fazemos

biografias precisamos selecionar “balizas" metodológicas e teóricas, mas isso não

significa que todos tenham que fazer a mesma opção. Precisamos ter o cuidado de

não perder a noção de que o espaço acadêmico exige respeito às diferenças de

pensamento.

Para retomar a questão sobre a possibilidade de existir um campo

biográfico e finalizar meu pensamento sobre esse tema no âmbito da questão

formulada, quero dizer que permaneço com a opinião de que não há um campo que

abarque os estudos biográficos. Exatamente por não haver um campo, eu acho

importante que as dissertações e teses com conteúdos biográficos alternem a

atenção pelas fontes com a capacidade de desenvolver um pensamento crítico. A

biografia exige um “tempero” na escrita. O biógrafo alia o sentimental com o

erudito, o autobiográfico com a demonstração da crítica. Particularmente, espero

que esse tipo de escrita esteja cada vez mais presente na produção acadêmica, para

que possamos ler textos acadêmicos no meio da madrugada, no melhor sentido,

perdendo o sono.

De toda forma, penso que isso já seja outro ponto de conversa. Não é mais

elemento da resposta eu discutir como as abordagens biográficas podem

proporcionar mais empatia do leitor com aquilo que ele está lendo. Quando estou

preocupada com o nível de apreensão e de aprendizagem que o leitor pode ter com

o texto, já formulo um pensamento de outra natureza. Já estou tratando de outra

dimensão das apostas biográficas, aquelas que, simplificando, nos remetem às

reflexões sobre a elaboração narrativa, sobre potenciais pedagógicos de escrita dessa

natureza.

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Revista Espacialidades [online]. 2017, v. 12, n. 2. ISSN 1984-817X

Cecil Vinicius Olivar Oliveira Guerra:

Professora, como os estudos biográficos se inserem na historiografia

brasileira?

Márcia de Almeida Gonçalves:

Vou tentar responder essa pergunta a partir do exemplo de algumas teses

já publicadas (e outras ainda não publicadas) que trabalham, fundamentalmente,

com personagens, com sujeitos. Na contemporaneidade, a maioria dos trabalhos de

referência é produzida nos cursos de doutorado. Não estou com essa ideia

menosprezando a etapa do mestrado, mas quero deixar evidente que, na dinâmica

atual, os trabalhos de maior fôlego e/ou de maior densidade são elaborados no

doutorado e, na maioria das vezes, coroam a trajetória de formação acadêmica do

autor.

Pois bem, ao fazer levantamentos, no banco de teses da CAPES, sobre

os trabalhos biográficos, percebemos que alguns desses estudos se assumem

biografias e outros tentam fugir dessa terminologia. Eis uma questão interessante:

por que alguém produz uma biografia e não explicita esse tipo de qualificação?

Fico tentando entender: a academia ainda tem preconceito com certo

tipo de abordagem biográfica? Como esses preconceitos se perpetuam, se cada vez

mais as pesquisas demostram que existe sustentação teórica, metodológica e

conceitual validadora dos estudos biográficos? Não sei se é possível identificar como

uma corrente histográfica essa forma de enxergar a biografia, mas existe esse tipo de

posicionamento.

Por outro lado, vejo outro movimento (que também não sei se é

propriamente da historiografia) formado por autores (alguns, inclusive, são

historiadores) que produzem trabalhos biográficos que têm como foco principal o

mercado editorial e, consequentemente, a recepção do leitor.

Além dos que possuem senões a entender seus trabalhos de pesquisa

histórica como sendo de natureza biográfica e os querem produzir biografias que

vendam no mercado de livros, percebo que os estudos biográficos de cunho

acadêmico têm se fortalecido na historiografia brasileira. Entre trabalhos desse tipo,

posso citar o caso da coleção de biografias produzidas pela Fundação Getúlio

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Vargas (FGV) do Rio de Janeiro. Na coleção da FGV, historiadores escreviam nos

estilos mais variados e estavam preocupados em fazer com que aqueles textos

circulassem para além dos muros da academia.

A Companhia das Letras, em São Paulo, também publicou volumes de

coleção de biografias. No caso dessa coleção, os autores não eram apenas

historiadores ou profissionais do mundo acadêmico. Alguns eram referências no

âmbito da variada produção jornalística.

Quando me refiro a essas apostas biográficas que mantem diálogos com

a historiografia brasileira, não quero dizer que os estudos biográficos estejam

restritos a nossa historiografia. Há apostas biográficas em vários países do mundo.

Em suma, o que é possível afirmar é que, em diferentes países, os

historiadores estão escrevendo obras com o título de “biografias” e estão

mobilizando seus conhecimentos e sua formação propriamente historiográfica, para

dar sentido a histórias de muitos sujeitos.

Isa Cristina Barbosa Antunes:

Professora, eu ensino História na escola básica e tenho estudado neste

grupo de pesquisa os estudos biográficos. Eu tenho tentado levar para a minha ação

docente as biografias, por isso eu pergunto: como os estudos biográficos podem ser

utilizados, nas salas de aula da disciplina História, no Ensino Básico?

Márcia de Almeida Gonçalves:

Biografia na escola básica é uma festa. Talvez, comparativamente, uma

festa ainda pouco explorada, mas com imenso potencial para se fortalecer.

Tenho sugerido para professores da escola básica que trabalhem em suas

aulas a partir das biografias modernas. Esse tipo de biografia histórica tem estilo

romanceado, o que pode ser um rico material para o professor sensibilizar os alunos

e, com isso, estimular a busca pelo conhecimento da trajetória de vida de pessoas

que viveram em tempos e em espaços concretos. Ao ler uma biografia, o aluno vai

conhecendo outro tempo e vai percebendo as vivências de um sujeito nesse tempo.

Gradativamente professores e alunos vão se apropriando das ideias do biógrafo e do

biografado e vão fazendo leituras críticas das histórias apresentadas. Com esse

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trabalho alguns conteúdos ganham significados e outros são ressignificados pelos

estudantes.

Eu não defendo que o professor vire os personagens de cabeça para

baixo, no sentido de desmontar os valores de maior ou menor heroicização.

Definitivamente, não é essa a minha proposta. Uma história de vida (seja na forma

de biografia, de autobiografia ou até mesmo na forma de muitos registros da

vivência humana) é muito rica para derivar reflexões as mais variadas, pondo em

xeque juízos de valor, seus significados e historicidades.

O trabalho com biografias na escola básica é muito importante para

sensibilizar o aluno e dar significado ao que está sendo aprendido, principalmente

em termos do conhecimento histórico. Nos dias de hoje em que a escola, por um

lado, possui currículos muito extensos e, por outro, trabalha os conteúdos com certa

formalidade da erudição, os alunos normalmente se desencantam com a história.

Diante desse cenário, a biografia pode ser uma chave importante para retomada do

encantamento.

Eu vou dar um exemplo, que certamente não é o único exemplo, mas

ajudará a explicar minha ideia de como se trabalhar com biografias na escola básica.

Pois bem, a novela Novo Mundo, exibida recentemente pela Rede Globo, em um de

seus episódios, abordou a “Independência do Brasil” a partir do quadro

“Independência ou Morte”, de Pedro Américo. Temos nesse caso três fontes de

estudos, possíveis de serem analisadas: a cena da novela, o quadro de Pedro

Américo e a figura de Dom Pedro (retratado na cena e no quadro, mas também em

outros materiais, como revistas e livros). Ao trabalhar com as três fontes, os alunos

poderão identificar tanto algumas marcas características de Dom Pedro, quanto

outras marcas que foram mais ou menos inventadas e que se fixaram entre os

brasileiros a partir de textos e imagens amplamente divulgados. Com esse tipo de

análise D. Pedro passa a ter rosto, assinatura e opinião, além de ser ponto de partida

para um bom debate, com direito a controvérsias. Nesse caso, o objetivo é fazer

com que o sujeito Dom Pedro chegue ao universo dos alunos e os faça pensar,

indagar, desejar saber mais sobre Pedro, e algumas de suas ações, em especial a

independência do Brasil.

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O uso da novela no meu exemplo é meramente ilustrativo. O professor

não precisa obrigatoriamente de uma novela para trabalhar com biografias. Porém,

acho que o professor pode usar biografias que estão disponíveis em diferentes

espaços e meios e levar para a sala de aula. As histórias de vida dos próprios alunos

e de seus familiares também podem se constituir em um material muito rico. Nesses

casos, a história oral pode ser muito útil. Os alunos se envolvem com a escuta e a

leitura de narrativas. Eles na maioria das vezes gostam de ouvir sobre a vida de

pessoas. A partir das narrativas vivenciais muitas ideias poderão ser formuladas.

Essa reflexão que faço sobre o trabalho com a biografia na escola básica

pode suscitar a seguinte questão: esse trabalho que você está propondo não gerará

problema com os currículos formais? Eu mesma respondo: sem dúvida um trabalho

desse tipo pode gerar problemas, mas penso que é inerente à função de professor a

proposição de alternativas eficazes, mesmo que essas alternativas não estejam

explicitadas na maneira como a escola está estruturada. Eu penso que o professor

precisa exercitar, continuamente, a dimensão autoral do seu trabalho. Ensinar e

aprender exigem ações fomentadoras de reflexões e de críticas aos formalismos

curriculares estéreis.

Quem escuta essas ideias sobre o uso de biografias na escola básica pode

afirmar que eu sou suspeita para falar desse tema, pois eu trabalho com

investigações biográficas. Porém, eu acho que o uso da biografia em sala de aula não

é algo restrito a especialistas. Penso que histórias de vida bem contadas, mesmo que

contenham certa fabulação, podem se constituir em um ótimo elemento para

sensibilização e fomento de grandes debates. Claro que estou me referindo a

possíveis trabalhos em sala de aula que usam biografias no sentido amplo.

Considero que não faz mais sentido nos referirmos à aqueles dados biográficos

secos que mostram informações extremante limitadas do sujeito, tais como: “fulano

de tal, nasceu dia tal, filho de beltrano, trabalhou em lugar x e morreu”.

Acho mesmo que a fabulação, no melhor sentido do termo, é muito mais

eficiente do que os dados biográficos secos. A fabulação ajuda o professor e o aluno

a pensar sobre personagens e acontecimentos no tempo. Afinal, um bom caminho

para se aprender a disciplina História é aprender a contar, a ouvir e a recontar

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histórias que envolvem personagens concretos, agindo no mundo, das maneiras

mais diferenciadas.

Raimundo Nonato Araújo da Rocha:

Professora Márcia, a senhora tem tido uma forte inserção no Mestrado

Profissional em Ensino de História (ProfHistória). Gostaria de ouvir sua experiência

nesse programa, abordando especificamente como as biografias têm se apresentado

como tema de trabalho para alunos.

Márcia de Almeida Gonçalves:

No ProfHistória eu já ministrei duas disciplinas, orientei duas

dissertações e respondo por mais duas orientações nesse momento.

Gostei, e gosto muito da experiência de ministrar aulas e orientar no

ProfHistória, pois tenho a oportunidade de trabalhar com uma turma em que todos

são professores da educação básica. As aulas são ótimas na medida em que abrem

espaço para que os alunos/professores narrem suas vivências e apresentem suas

inquietações. Cada vez que eu escuto tais narrativas ou digressões, reflito sobre a

minha condição de formadora de professores. Considero que o ProfHistória está

viabilizando novos caminhos para a formação acadêmica do professor de História e

novos caminhos para o ensino de História na escola básica.

No Rio de Janeiro estamos atualmente com a segunda turma do

ProfHistória. Na primeira turma, orientei o trabalho final da professora Fernanda

Crespo, que elaborou um “baú biográfico” a partir de Laudelina Campos de Melo.

Laudelina era preta, empregada doméstica e militante do Sindicato das

Empregadas Domésticas de Campinas (São Paulo). Fernanda Crespo teve acesso a

documentos do Sindicato das Empregadas Domésticas de Campinas que estão

arquivados na Universidade de Campinas (Unicamp). Apenas uma parte da

documentação desse sindicato está sob a guarda da Unicamp, mas o que lá existe é

de uma riqueza imensa. Há nesse acervo fontes das mais diversas, inclusive

documentos pessoais da própria Laudelina.

Pois bem, Fernanda selecionou documentos referentes à história de vida

de Dona Laudelina e produziu um baú de histórias associadas a sugestões de

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atividades para serem feitas pelos alunos da escola básica. Por meio desse baú,

Fernanda Crespo indicou possibilidades de se estudar a história do Brasil, no

período entre a década de 1910 (nascimento de Laudelina) e a década de 1980

(morte de Laudelina). Sua proposta é estudar questões da história do Brasil no

recorte do arco temporal da vida de Laudelina. O trabalho transformou fontes de

arquivo em material pedagógico.

O trabalho como um todo foi muito interessante. Inicialmente Fernanda

preparou o material, depois ela aplicou o material em sala de aula e agora está tendo

um retorno gratificante. Fernanda está ensinando “questões da história do Brasil

Republicano”, por meio das histórias de Laudelina. Fernanda levou para a sala de

aula tanto os dilemas e os sofrimentos de Laudelina, como as suas alegrias e

realizações. Ao mostrar Laudelina, Fernanda mostrou também formas de viver que

eram próprias do tempo dela. Nesse sentido, esse trabalho do ProfHistória

construiu uma narrativa e a transformou em material didático-pedagógico. Posso

dizer que Fernanda trouxe Laudelina de volta a vida (não no centro espírita [risos],

obviamente). Em curso, respondo por mais um trabalho que se vale da abordagem

biográfica, de autoria de Edson Azeredo, sobre a escritora Carolina Maria de Jesus.

Coincidência ou não, mais uma mulher preta de origem humilde a me ensinar a

história do Brasil, coisas da biografia!

Paulo Vitor Sauerbronn Airaghi:

Professora, ao longo dessa entrevista a senhora tem falado sobre

indivíduos e sociedades. Aproveitando esse mote, indago: como a senhora enxerga a

relação entre indivíduo e sociedade?

Márcia de Almeida Gonçalves:

Vou responder essa questão a partir das ideias de Norbert Elias, que,

sem dúvida, é um autor marcante para qualquer leitor. Elias “faz, realmente, a

cabeça do leitor”, no melhor sentido de “fazer a cabeça”. Para mim, Elias é um

autor chave para o redimensionamento das relações entre indivíduo e sociedade. Por

meio da sua obra “A sociedade de indivíduos”, ele historiciza essas relações e traz

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para o leitor uma reflexão sobre esse tema. É bom lembrar que Elias também

realizou essa reflexão na obra “O processo civilizatório”.

Elias é um autor que nos ajuda a compreender, por um lado, os

controles sobre o indivíduo e, por outro, as margens de liberdade desse indivíduo.

Ele não se limita a pensar, como fazem tantos outros autores, a relação entre a

norma estabelecida e a sua aplicação. Elias vai além, ele nos ajuda a entender que a

lei que nos regula, para o bem ou para o mal, também nos civiliza. Entretanto, ao

mesmo tempo, Elias também mostra que a mesma lei que nos civiliza, cria

possibilidades para que o indivíduo exercite a sua liberdade. Elias nos mostra ainda

outro aspecto importante: a imprevisibilidade das ações do individuo, o que torna o

processo civilizatório algo não-linear.

Outra autora que eu também considero importante para pensar a relação

indivíduo e sociedade é Leonor Arfuch. No seu livro “O espaço biográfico”, Arfuch

reflete sobre os dilemas da sociedade contemporânea, trabalhando um quadro

conceitual que envolve indivíduo e sociedade; público e privado; pessoal e coletivo.

Arfuch dialoga, entre outros, com Norbert Elias, Jürgen Habermas e

Hannah Arendt. Esse diálogo pode ser associado com as discussões do que tem sido

denominado por alguns autores de paradigma narrativista. Eu, particularmente,

implico um pouco com essa categorização, porque penso que isso classifica demais

discussões complexas; ao mesmo tempo, não posso deixar de reconhecer que a ideia

de agregar esses autores pode estimular a construção de boas ilações. Considero

muito saudável a ampliação do par conceitual indivíduo e sociedade, para outros

conceitos, como o de narrativas vivenciais (Arfuch), que se referem a narrativas que

contam histórias de vida.

Arfuch mobiliza também Paul Ricouer, sobretudo suas formulações

sobre identidade e narrativa. A autora promove ilações entre as abordagens sobre

narrativa de Ricouer e a obra de Bakhtin, redimensionando a discussão acerca do

valor biográfico. Nesse sentido, posso afirmar que Arfuch faz uma “salada” teórica

muito bem-feita. Essa “salada” acabou me estimulando a ler vários outros autores,

entre eles Benveniste. Estimulou, por outros motivos reler com outros olhos

autores brasileiros, como Durval Muniz, que está acompanhando esta entrevista.

Um presente, sem sombra de dúvida!

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Penso que Foucault, do jeito dele, também traz boas reflexões,

principalmente quando põe o sujeito em xeque. Foucault foi autor cujos textos

chegaram na minha vida em tempos de graduação na UERJ, na década de 1980. Na

estante em minha casa, Norbert Elias e Foucault estão lado a lado. De alguma

maneira, eles me formaram e ainda me formam.

Raimundo Nonato Araújo da Rocha:

Professora, sua entrevista está nos instigando a pensar uma série de

questões. Nesse sentido, como sabemos do seu envolvimento com o ensino de

história local e, considerando, que o nosso mestrado acadêmico tem como área de

concentração História e espaços, perguntamos: como os estudos biográficos podem

se articular com estudos sobre os espaços?

Márcia de Almeida Gonçalves:

Meus estudos sobre a história local fazem parte de uma longa história,

que está ligada, fundamentalmente, à relações que mantive com ensino antes de ter

cursado o doutorado e antes de ter sido seduzida pelo biográfico.

Meu envolvimento com a história local começou com o projeto de um

grupo de professores, vinculados à Universidade Estadual do Rio de Janeiro

(UERJ), campus São Gonçalo, que pretendia produzir material didático sobre a

história do município de São Gonçalo.

Naquela época, década de 1990, resolvemos montar uma equipe,

composta por professores e alunos, para elaborar materiais didáticos que sugerissem

como professores da escola básica poderiam trabalhar com a história de São

Gonçalo. Diferentemente de outros lugares do Brasil, a história do Rio de Janeiro (a

história fluminense) não é um conteúdo obrigatório nos currículos da educação

básica. Porém, nesses mesmos currículos, aparece a obrigatoriedade do ensino de

conteúdos das histórias dos municípios. Foi nessa conjuntura que começamos a

pensar em criar materiais didáticos para as escolas municipais de São Gonçalo.

Construímos, incialmente, uma caixa de histórias de São Gonçalo. Depois vieram

outras caixas, de outros municípios.

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Nossa primeira concepção de local estava limitada ao desenho da

municipalidade. A história local seria, portanto, a história dos lugares que existiam

no mapa de São Gonçalo. Posteriormente, nossa visão foi ampliada para perspectiva

de entender o local como um espaço de relações sociais contíguas, próximas. Nessa

abordagem a fronteira de uma municipalidade passou a ser relativizada.

Nosso trabalho foi descobrindo que São Gonçalo, por ter um milhão de

habitantes, não era um município que pudesse ser entendido como uma unidade.

Percebemos que existiam muitas “São Gonçalos”. Percebemos que várias cidades

brasileiras contêm, dentro de si, outras “cidades”, como é o caso do próprio Rio de

Janeiro.

Nesse sentido, fomos aos poucos deslocando a nossa percepção sobre o

local e fomos pensando em articular histórias que envolvessem sujeitos, grupos,

instituições (entre elas as escolas) e patrimônios materiais e imateriais. Dessa forma,

pelo local, fizemos um caminho, que é muito caro para mim. Apesar de hoje eu não

trabalhar tão ativamente com o local, posso afirmar que foi esse trabalho que fez

entender que o local é o “tudo junto e misturado”, uma complexidade sedutora,

espaço de relações sociais singulares.

Parodiando Octávio Tarquínio de Sousa, que dizia que um bom biógrafo

é capaz de derivar várias ideias a partir de um detalhe da vida do biografado, afirmo

que a partir de um detalhe aparentemente pouco significativo de um lugar é possível

derivar questões profundas e interessantes.

É importante dizer que São Gonçalo é um município populoso, situado

na região metropolitana do Rio de Janeiro. A ponte Rio-Niterói muito aproximou

São Gonçalo do Rio de Janeiro. São Gonçalo é um município com baixo Índice de

Desenvolvimento Humano (IDH) e uma área com vários problemas sociais e

ambientais. Nesse sentido, se um professor de História quiser falar em sua sala de

aula sobre a história de São Gonçalo, terá que mostrar esses dados para os alunos do

ensino fundamental da rede municipal de São Gonçalo. Nosso projeto mostrou que

São Gonçalo não é só isso e que também tem belas histórias a serem contadas.

Nosso projeto de história local trabalhou uma relação de pertencimento

dos alunos com os seus lugares de vivência. Apostávamos na ideia de que ao dar

uma significação à cidade, o morador poderia mudar a sua relação com ela. O aluno

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poderia, por exemplo, afirmar: “eu venho de um lugar que tem uma história

relevante e digna”.

Olhem, por exemplo, o caso da Rocinha, que está bem famosa nos

últimos dias. A Rocinha possui setenta mil habitantes. É um lugar maior do que

Copacabana, que possui cerca de sessenta mil habitantes. A Rocinha é uma cidade

dentro da cidade. Ela é muito conflagrada em razão dos pontos de venda de drogas

lá existentes. Entretanto, na Rocinha existem projetos sociais que são pioneiros na

perspectiva de dar dignidade e valoração as pessoas que lá residem.

Uso esse exemplo da Rocinha para mostrar as muitas cidades que

existem no Rio de Janeiro. A cidade do Rio de Janeiro não se limita a ser um lugar

com uma natureza exuberante. Eu costumo implicar e dizer que Ipanema, Leblon e

Copacabana apresentam uma parcela muito pequena do que é o Rio de Janeiro. O

Rio de Janeiro é muito mais. Tem muitos problemas, mas também tem muitas

coisas boas, inclusive, em lugares que a grande mídia não divulga. São Gonçalo

também é assim: tem problemas, mas tem muita coisa boa e que precisa ser

trabalhada pela escola.

Durval Muniz de Albuquerque Júnior:

Estou gostando muito da entrevista. Eu não pertenço a este grupo de

pesquisa, mas reconheço o trabalho que eles vêm produzindo.

Como a palavra me foi facultada, queria voltar à discussão do sujeito,

abordada ao longo da entrevista. Discutir o sujeito é uma questão bastante difícil.

Pensar no biográfico já é pensar a relação entre escrita e vida, entre escrita e sujeito.

Ao se pensar nessa relação, parte-se do pressuposto de que o sujeito é um sujeito

narrativo. Entretanto, existe toda uma mitologia realista que quebra os protocolos

de verdade e de realidade da biografia, que supõe um sujeito que preexiste ao

discurso e que preexiste a narrativa. Gostaria que você apresentasse sua percepção

sobre esse tema.

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Márcia de Almeida Gonçalves:

Sua questão é bastante instigante.

Vou iniciar minha resposta retomando Arfuch, pois considero que ela

nos dá chaves analíticas para discutirmos esse tema. Arfuch afirma que “contar a

história de uma vida é dar vida a uma história”. Essa afirmação está fortemente

arraigada numa premissa que critica certo uso feito por alguns autores do conceito

de representação. Além disso, Arfuch concentra fortemente sua atenção na

linguagem, no discurso e na narrativa, pois ela considera que esses elementos são

essenciais para que nós possamos ter a consciência do que nos faz humanos. Nesse

sentido, considero que não é possível imaginar um sujeito humano sem imaginar ele

como ser de linguagem. Eu trabalho com essa premissa.

Eu me lembro do impacto causado pela leitura do livro “A história da

loucura”, escrito por Michel Foucault, no início da minha graduação. Era um

choque sair do ensino médio e encontrar alguém que estudava a loucura como

objeto da história. Aquilo era uma novidade. O fato de eu ter ficado impactada com

a obra de Foucault não quer dizer que na UERJ não nos eram indicadas obras

impactantes. Muito pelo contrário, a minha graduação na UERJ, onde sou

professora, me proporcionou leituras excelentes. Refiro-me, especificamente, a

“História da Loucura”, em razão dessa obra trabalhar com um tema muito inovador

para quem estava começando a estudar história na universidade. Li a obra com mais

três amigas. Hoje, na retrospectiva, indago se de fato entendi alguma coisa [risos].

Depois da leitura, fiquei me perguntando sobre o que era realmente a história. O

livro “História da loucura” me abriu novas perspectivas sobre o que seria estudar

história.

Foucault foi importante para mim, porque provocou uma inflexão sobre

a escrita da história e sobre a construção dos discursos narrativos. Meu trabalho de

mestrado, por exemplo, foi feito a partir de releituras de matérias publicadas na

imprensa. Eram matérias numerosas e extensas, trabalhadas por mim a partir da

análise do discurso.

No meu doutorado, essa dimensão da análise do discurso esteve presente

de alguma forma. Posso afirmar que, nesse período, pelo menos, duas obras de

Foucault foram importantes: “A ordem do discurso” e “Arqueologia do saber”.

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Essas obras deram forma ao meu texto e possibilitaram densidade maior para

minhas análises.

A influência de Foucault fez com que, hoje em dia, eu implique quando

vejo trabalhos que apresentam a verdade de maneira cristalizada, trabalhos que não

deixam muita margem para dúvidas, trabalhos que não deixam espaço para o

conjectural, trabalhos que não deixam margem para análises fora desse universo de

uma representação muito dura entre o efetivamente vivido e o narrado.

Continuo com a ideia de que “somos o que somos porque contamos

histórias”. Esse pensamento está presente na minha atuação como professora e foi

um divisor de água em minha vida acadêmica. Como professora eu afirmo para os

meus alunos, sem nenhuma cerimônia, que eu invento história. Depois dessa

afirmação, eu lanço para eles a seguinte questão: “Vocês também inventam

histórias? Vocês acham que os acontecimentos que estão narrados nos livros

ocorreram exatamente como a narrativa descreve? Já imaginaram a possibilidade de

determinados fatos consagrados pela história não terem acontecido de fato?”

Essa questão dessa relação entre o acontecido e o narrado é realmente

um bom mote para grandes debates.

Raimundo Nonato Araújo da Rocha:

Professora, a senhora tem discutido que os trabalhos acadêmicos têm

enfatizado mais as memórias sociais e culturais do que as memórias subterrâneas. O

que significa esse privilégio das memórias sociais e culturais? Por que um certo

desprestígio acadêmico para as memórias subterrâneas?

Márcia de Almeida Gonçalves:

O livro “Espaços de Recordação”, escrito por Aleida Assmann, nos

ajuda a responder essa questão.

Assmann problematiza uma memória, que ela enxerga como cultural,

construída a partir da literatura, dos museus, dos espaços arquitetônicos e das caixas

mnemônicas. Para ela, essa memória cultural emoldura práticas e valores que não

são somente comportamentais, mas também institucionais. Essa chave interpretativa

apresentada por Assmann é ampla e tem me permitido alargar horizontes de

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reflexão. Assmann é essencial para discutirmos alguns tipos de vivências, de

lembranças e de narrativas sobre essas vivências, que estão fadadas a serem

apagadas, destruídas, apropriadas e redimensionadas.

Eu gosto muito das considerações de Michael Pollak na abordagem

sobre “memórias subterrâneas”, mas penso que as reflexões dele se aplicam mais em

situações de uma batalha política entre o que deve ser lembrado e o que deve ser

esquecido.

Nos regimes totalitários a violência se intensifica e se rotiniza, apesar

desses regimes não conseguirem apagar por completo determinadas memórias ou

exterminar todos seus opositores. Memórias subterrâneas estão mais associadas aos

momentos da ação política repressora, na medida em que elas demonstram

interesses de, literalmente, soterrar. Mesmo assim, ossos podem vir a ser

descobertos, e nesse caso valem por analogia as lições da arqueologia.

Casos interessantes são os das cidades em que o conquistador chega,

desconsidera tudo o que existe de significativo, e constrói coisas completamente

diferentes do que existia. Foi o caso, por exemplo, da cidade do México, que foi

construída “enterrando” Tenochtitlán. Nesse caso da Cidade do México, eu

pergunto: onde está a cidade inteira? Ninguém vai falar sobre o que ficou

escondido? Tem um subterrâneo que pressupõe essa ação ostensiva de opressão, de

conquista e de enterramento.

A chave da memória cultural é mais plástica, como acontece também

com a chave da memória social. A chave da memória social é mobilizada nas

formulações de Joel Candau e mantém um forte diálogo com a memória coletiva do

Halbwachs. Aliás, é importante destacar que eu não tenho nada contra a memória

coletiva, nem contra a memória subterrânea. São apenas reflexões de como esses

conceitos podem ser mobilizados em cada caso específico.

Raimundo Nonato Araújo da Rocha:

Professora Márcia Gonçalves, nós agradecemos pela sua atenção e

disponibilidade. A entrevista que a senhora acabou de nos conceder será

extremamente útil para a discussão de rumos das nossas investigações. Todos nós

aprendemos muito com as suas reflexões.

Page 27: BIOGRAFIAS E HISTORIOGRAFIA: UMA CONVERSA COM A … · BIOGRAFIAS E HISTORIOGRAFIA: UMA CONVERSA COM A PROFESSORA MÁRCIA DE ALMEIDA GONÇALVES Apresentação: A professora Márcia

Revista Espacialidades [online]. 2017, v. 12, n. 2. ISSN 1984-817X

Marcia de Almeida Gonçalves:

Gostaria de agradecer pelo convite, pela acolhida, pela oportunidade,

pelas trocas afetivas e intelectuais!