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Hilda Hilst e o filme documentário CONTATO HILDA HILST PEDE CONTATO

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Inteligente, segura, determina-da, independente, transgressora. Namoradeira, mas discreta. Jamais vulgar. Dona de uma hipnótica bele-za, poucas mulheres tiveram, como ela, os homens que desejaram em

seus braços. Hilda Hilst, a escritora bra-sileira que ficou também conhecida por seus livros eróticos, morreu há dez anos, em 4 de fevereiro de 2004, aos 74 anos.

Ela, que foi representante da alta socie-dade, esforçou-se para ser respeitada como poetisa, recebeu prêmios importantes, como Anchieta (pela peça Verdugo, uma das oito que escreveu entre 1967-68), e Jabuti (pelo volume de poemas Cantares de Perda e Predileção) – ao todo, foram sete. No entanto, seus livros nunca foram sucesso de público. Nem quando partiu pelo caminho do erotismo, que resultou

em obras-primas (O Caderno Rosa de Lori Lamby e A Obscena Senhora D., entre outras), provocaram polêmica, porém não movimentaram grandes tiragens. Dizia--se que suas sacanagens eram de tão alto nível literário que os consumidores do assunto não se interessaram muito.

Seja como for, Hilda tinha uma manei-ra peculiar de enxergar o mundo. “Sexo e beleza eram rigorosamente a mesma coisa para ela, a única pessoa de nossa geração que não teve sentimento de culpa em rela-ção a esses temas”, afirma Jorge da Cunha Lima, 82 anos, administrador, jornalista e advogado, um dos amigos mais próximos da escritora durante toda a vida, que confessa ter sido apaixonado por ela. “No começo dos anos 1950, eu era um jovem estudan-te, e ela, já escritora, dona de uma liber-dade que deixava todo mundo perplexo.”

texto GONÇALO JUNIOR foto FERNANDO LEMOS

NUNCA HOUVE UMA MULHER COMO

HildaEla foi linda e teve todos os homens

que desejou – exceto Marlon Brando. Escritora e poetisa paulista, rotulada

de pornógrafa e consagrada pela crítica, volta agora, dez anos depois

de sua morte, em documentário, lançamentos, relançamentos e minissérie.

Por aqui, amigos íntimos contam quem foi, de fato, Hilda Hilst

beleza rara Retrato inédito de Hilda Hilst, feito por Fernando Lemos, em 1954, que ficou 60 anos guardada

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40 brasileiros.com.br janeiro 2014

Verdade. Além de linda, Hilda foi uma mulher de espírito livre. Tinha fas-cínio pelo sexo oposto, mas não cedia a abordagens passivas. Nunca. Seguia um estilo próprio em que ela domina-va a cena. Foi assim quando abordou aquele que se tornaria seu único mari-do. Nos anos 1960, Hilda ia para casa, pela Avenida Dr. Arnaldo, em São Pau-lo, quando viu um homem no último ponto em frente ao Cemitério do Araçá. Pediu ao motorista que parasse diante do local e disparou: “Por que você vai para casa de ônibus, se pode fazer isso de Mercedes?”. O homem era o jovem escultor Dante Casarini, que sorriu e aceitou a carona. Primeiro, eles foram amantes. Depois, mulher e marido – nessa ordem. Certo dia, ela teria dito a Cunha Lima: “Estou felicíssima vendo aquele homem maravilhoso, com dorso nu, que volta com uma penca de lenha nas costas”.

Paixões e decepçõesApesar do forte sentimento de Cunha

Lima, Hilda jamais deu a entender que percebia seu interesse. No entanto, ela contava suas aventuras amorosas ao amigo, como a que a levou a sedu-zir o ator americano Dean Martin e seu lamento por não ter conquistado Marlon Brando, ícone americano de beleza e masculinidade.

No livro Fico Besta Quando me Entendem (Editora Globo), que reú-ne 20 conversas mantidas com Hil-da entre 1952 e 2003, ela voltou ao assunto com o jornalista Fernando José Karl: “Eu queria muito conhecer Marlon Brando, achava-o lindo. Então, tornei-me namoradinha do Dean Mar-tin, só para ficar perto do Marlon. Mas não conseguia essa aproximação de jei-to nenhum. Vi-me obrigada a aguentar Dean bêbado vários dias e, como ele não me apresentava Marlon, resolvi ir ao hotel onde ele estava, dei uma linda gorjeta ao porteiro e perguntei o número do quarto dele. Cheguei lá, bati na porta, esperei uns dez minu-tos. Marlon Brando apareceu com um

extraordinário robe de seda, acompa-nhado do ator francês Christian Mar-quand, que, anos depois, revelou ser seu amante. Eu estava acompanhada de uma amiga, Marina de Vincenzi, e meio de pileque. Disse-lhe que que-ria fazer uma entrevista. Mas eu só olhava para os pés dele e não sabia o que dizer. Aí ele falou: ‘Só porque você é bonita, acha que pode acordar um homem a essa hora da noite?’. Ele achou graça, foi educadíssimo, mas eu não consegui entrar no quarto e dormir com ele. Fiquei decepcionadíssima. Naquela noite, novamente, ele tinha escolhido Marquand”.

Seu comportamento ativo, entre-tanto, não incomodou mais do que seu talento para a escrita. Só que Hilda nunca se deixou intimidar por qual-quer espécie de crítica. “Ela era de uma ousadia inacreditável”, afirma Cunha Lima. O fotógrafo português Fernando Lemos, de quem também foi amiga, reafirma: “Hilda recebia críti-cas menos por seu lado liberal, inde-pendente, e mais como poetisa porque causou inveja aos montes – nos outros poetas, principalmente.”

Lemos, hoje com 85 anos, produ-ziu, em 1954, uma série de retratos da escritora, que ficaram inéditos por

quase 60 anos. Ela apenas viu as fotos, que nunca foram publicadas, mas fica-ram guardadas. Esta reportagem traz algumas delas, mas outras, da mesma série, podem ser vistas na versão digi-tal da revista da Biblioteca Mário de Andrade – a edição impressa, número 69, não por acaso com o título Obsce-na, sairá em fevereiro.

Quando fez as fotos, Lemos morava havia um ano no Brasil. Chegara de Lisboa com a reputação de talentoso retratista de importantes nomes portu-gueses – políticos e artistas, principal-mente. “Quando desembarquei em São Paulo, procurei conhecer gente liga-da às artes e passei a ir locais em que todos se encontravam regularmente. Foi assim que fui apresentado a Hilda.”

Os pontos de encontro eram no centro de São Paulo, como o Juão Sebastião Bar, berço da bossa nova e onde Chico Buarque fez suas primei-ras apresentações, e a Livraria Jara-guá, de Alfredo Mesquita, o mesmo que dirigiu por anos a Escola de Arte Dramática de São Paulo e incentivou Hilda a invadir a praia da literatu-ra teatral. Havia também o Clubinho dos Artistas – brincadeira com o pro-grama de TV Clube dos Artistas, da Tupi –, que ficava no porão do prédio do Instituto dos Arquitetos do Brasil, na Vila Buarque, e reunia o pessoal das artes. “Ali, todo mundo dançava, brincava, namorava”, diz Lemos. Ele se lembra ainda do Bar do Museu de Arte Moderna, que ficava no prédio Assis Chateaubriand, na rua Sete de Abril, onde eram realizados festivais de cinema e exposições de pintura. “Todo mundo tinha sua garrafa de uísque guardada e podia pendurar a conta.” Cunha Lima não se esquece da Livraria e Editora SAL, sigla da Socie-dade Amigos do Livro, que importava obras da Europa e, nos finais de tardes, realizava saraus regados a poemas em francês e doses de conhaque. Impos-sível não mencionar o bar Vienense. “Nesses locais, todo mundo se tocava de leve”, revela Cunha Lima. Gabriela Greeb, diretora de cinemaFO

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“Eu tinha um encantamento total, como muitos outros

rapazes, porque simplesmente era

IMPOSSÍVEL NÃO SE APAIXONAR

POR UMA MULHER DE BELEZA

TÃO EXÓTICA” Jorge da Cunha Lima,

administrador, jornalista e advogado

“A busca pelos mortos fazia parte do desejo de Hilda se comunicar com as pessoas

de outras maneiras, além da escrita. E ELA PASSOU A ESTUDAR FÍSICA QUÂNTICA”

anos 1950 A escritora posa para as lentes de Fernando Lemos, em estúdio que ficava na rua Canuto do Val, em Santa Cecília

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42 brasileiros.com.br janeiro 2014 43brasileiros.com.br

teve acesso a arquivos e documentos, além de ter conversado com amigos e parentes, como Edson Costa Duarte, que morou com Hilda durante muito tempo. Também teve acesso aos diários do artista plástico Jurandy Valença, amigo de Hilda, em que conta o dia a dia da casa durante o período em que viveu na Casa do Sol, que hoje abriga cartas e documentos, além de três mil livros, boa parte deles com anotações.

O foco do filme, explica Gabriela, é reproduzir a atmosfera da Casa do Sol. Será um documentário de criação, não típico, a partir de acervos impor-tantes, como as mais de cem fitas gra-vadas com a voz de Hilda, ao tentar se comunicar com os mortos. São grava-ções feitas entre 1976-78, em que ela dizia: “Hilda Hilst querendo saber dos amigos em outra dimensão” ou “Hilda Hilst pede contato com o absurdo”. Fez essas experiências influenciada pelo sueco Friedrich Jur-genson, cientista, cineasta e crítico de arte, que afir-mava que os mortos pre-cisavam se manifestar por meio de frequência de rádio ou TV fora do ar, ou ainda pelo ronronar dos gatos. “A busca pelos mortos fazia parte do desejo de Hilda se comuni-car de outros modos, além da escrita. Ela estudou física quântica para não chegar burra à outra dimensão”, diz Gabriela. “Hilda era extremamente lúcida e mantinha todo esforço para não enlouquecer.” Especula-se que a mãe da escritora também sofreria de esquizofrenia.

Vale lembrar que Hilda passou a ter sérios problemas financeiros. Até mesmo para alimentar seus cães – ela chegou a abrigar 150 deles. A situação só não foi pior porque a escritora con-seguiu aposentadoria da Unicamp – a partir de 1986, ela fez parte do Progra-ma Artista Residente da Unicamp, no qual conversava com os interessados

Além de Hilda, Lygia Fagundes Telles (amiga inseparável), Cunha Lima e Fernando Lemos eram assíduos frequentadores dessas rodas artistas como Paulo Vanzolini, Arnaldo Velo-so Horta, Aldemir Martins, Massao Ohno, Rebolo Gonçalves. Uma época efervescente, sem dúvida.

Logo, Lemos e Hilda tornaram-se muito amigos. “Eu a convenci a fazer um ensaio no pequeno estúdio, que acabara de montar no bairro de Santa Cecília, região central de São Paulo. Quando se vê o resultado, a impres-são é que não havia muita originali-dade da minha parte. Mas fiz dessa forma, propositadamente, para com-por um retrato com a imagem que eu tinha imaginado de uma mulher que não tinha sex appeal aparente, apesar da elegância, mas era dona de uma beleza protegida, porém interessante.” Ele se nega a dizer se teve ou não um romance com Hilda, mas não desmen-te nada. “Ela fez alguns sonetos para mim, eram versos mais humorísticos do que literários. Uma brincadeira nossa.” Com orgulho e saudade, mos-tra dois dos muitos livros autografados pela ami-ga. “Para Fernando, todo amor de antes, da Hilda”, escreveu ela em um exem-plar de Jubilo, Memória, Noviciado da Paixão, de 1954. Na mensagem de Fluxo-Floema, 1970, ela anotou: “Ao querido Fernando, a maior amizade e ternura dos velhos anos”.

É fato. Hilda teve contatos inten-sos, imediatos e breves que, ao final, levavam-na a um processo doloroso: arrancar da dor ou do tormento de uma relação encerrada versos que descreviam as suas emoções. Depois, os publicava em livros, sempre dedi-cados ao amor que se foi. Para o poe-ta e jornalista João Ricardo Barros,

por exemplo, ela dedicou Trovas de Muito Amor para um Amado Senhor, de 1959. Em seus versos e prosa, não fazia a menor concessão à palavra. “Ela transformava o sentimento ou o amor perdido em poesia arrancada do fundo da alma”, afirma Cunha Lima.

o extraordinárioHilda nasceu em Jaú, interior pau-

lista, em 21 de abril de 1930, filha de Apolônio de Almeida Prado Hilst, fazendeiro e poeta, e Bedecilda Vaz Cardoso, dona de casa. A união não deu certo e, ainda menina, foi com a mãe para Santos. Aos 7 anos, recebeu a notícia, pela mãe, de que o pai sofria de esquizofrenia e foi estudar como

aluna interna do Colégio Santa Mar-celina, em São Paulo. Esse ambiente escolar evocaria nas peças A Posses-sa e Rato no Muro e em um poema: “Os amantes no quarto/Os ratos no muro/A menina/Nos longos corredo-res do colégio”. Mais tarde, estudou na Escola Mackenzie e Direito na USP. Mas nunca exerceu a profissão.

Aos 20 anos, publicou seu primeiro livro, Presságio, e nunca mais parou de escrever. No entanto, a doença do pai sempre foi um forte fantasma em sua vida. Ela acreditava que, ao ter

sido poupada do distúrbio psiquiá-trico, poderia ter filhos doentes. Por isso, rejeitou a maternidade – teria feito mais de 15 abortos.

Apesar de seu espírito livre, Hilda era uma mulher resguardada, que não gostava de compartilhar seus tormen-tos. “Ela vivia com certa angústia da contrapartida de seus relacionamen-tos, no sentido de tudo aquilo que quis fazer e não teve tempo ou não foi corres-pondida. Não do fracasso, mas sim da completude da relação, do que faltou fazer”, diz Lemos. Parte do seu drama estava na tragédia que condenou seu pai, enlouquecido, a viver sem qualquer noção da realidade. Para Lemos, Hilda sofria com a situação dele, “que vivia

quase como um cachor-ro louco, enjaulado em uma fazendinha perto de Campinas”.

Em 1966, depois da morte do pai, que a deixou em boa condição financei-ra, Hilda se mudou para um sítio a 11 km de Cam-pinas. Batizou o lugar de Casa do Sol, construído perto de uma figueira cen-tenária. Acompanhada do marido Dante Casarini, estava decidida a se con-centrar em seus escritos. Mas longe do glamour da juventude, afastada dos amigos e da vida boêmia de São Paulo, Hilda come-

çou sua travessia ao inferno. Mudava de humor constantemente, brigava com as visitas e os amigos. Passou também a ter o hábito de tentar falar com os mortos por frequência de rádio.

Quem conta essa história é a cineas-ta paulistana Gabriela Greeb, que pes-quisa há mais de cinco anos a vida e a obra da escritora para o documentário Contato, Hilda Hilst Pede Contato, com previsão de lançamento para setembro deste ano. As filmagens foram inicia-das em dezembro último. Gabriela, que morou uma temporada na Casa do Sol,

sobre temas ligados à criatividade e imaginação, personalidades históri-cas e marcantes.

outras históriasHilda morreu de isquemia, mas foi

até o fim fazendo o que mais gostava: escrever com imaginação. E, como dizia, partiu em busca do silêncio absoluto. Antes, porém, deixou em testamento os direitos de sua obra para Daniel Fuentes, filho de José Moura Fuentes, grande amigo da escritora, que mor-reu cinco anos depois dela, em 2009.

É Daniel quem lança, neste mês, a loja virtual Obscena Lucidez (obscenalucidez.com.br), que vai ven-der livros, traduções e CDs. “A obra dela estará concentrada em um único lugar para os fãs de todo o País”, diz o herdeiro, que pretende criar outros produtos, como pôsteres e capas para celulares. A ideia de abrir o portal de negócios surgiu de uma experiência pela página que Daniel montou no Facebook sobre a escritora, que tem mais de 15 mil seguidores – curiosa-mente, metade com idades entre 15 e 24 anos. “Colocamos na rede 1,5 mil livros à venda e esgotamos o estoque em duas semanas, sem divulgação.”

Daniel parece querer valer o lega-do que recebeu. Em abril do ano passado, inaugurou na Casa do Sol um teatro de 125 lugares com peças de Hilda – a morada da escritora agora se chama Instituto Casa do Sol, um espaço de nove mil metros quadrados, tombado pelo Patrimônio Histórico. Ele também organiza o progra-ma de residência na casa, que já está com as vagas preenchidas até fevereiro. Podem participar da ini-ciativa autores de projetos

que envolvem a escrita.A história não para. A Globo Livros

coordena uma biografia, com lança-mento previsto para 2015 – o nome do autor é mantido em segredo. No entanto, para este ano, a editora relan-ça 40 obras da escritora, reunidas em 23 volumes, além de coletâneas de poesia e cartas, e edições de luxo. O diretor Walter Carvalho já deu início a um longa-metragem de ficção sobre a vida de Hilda, mas não adianta deta-lhes, já que planeja finalizá-lo em 2016. A produção será de Tainá Müller (que fará Hilda jovem) e Bianca Villar, responsáveis ainda por dois projetos de telefilmes e uma telessérie com os textos teatrais. I

Fernando Lemos, fotógrafo

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camPinas A escritora Hilda Hilst em junho de 1999, já afastada

da boemia paulistana

“HILDA RECEBIA CRÍTICAS

MENOS POR SEU LADO LIBERAL, INDEPENDENTE,

e mais como poetisa porque causou inveja

aos montes – nos outros poetas,

principalmente”

comPanHia Nos 28 anos em que viveu na Casa do Sol, em Campinas, Hilda (a única mulher em pé) recebia amigos que ali ficavam por longas temporadas,

como Caio Fernando Abreu e a inseparável Lygia Fagundes Telles

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