Brasília: nota sobre paisagem e política

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Discussão sobre aspectos políticos relacioados com a criação de Brasília.

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    BRASLIA: NOTAS SOBRE PAISAGEM E POLTICA

    Antonio Carlos Carpintero

    Em Braslia o cu entra por todas as frestas, pelos interstcios, ocupa toda a cidade,

    como em Salvador, o mar como que sobe as ladeiras, visto de toda parte. Em Braslia, em maio

    o cu sempre azul, o ms mais bonito da cidade. Em setembro cinza, um cinza eltrico,

    irritante, prenncio de chuva que nunca chega, e quando chega um alvio, a eletricidade se

    desvanece.

    Braslia a ilha da fantasia, dizem. Que ilha? Braslia escorre pela encosta suave,

    quase plana, com o horizonte sempre a vista. Horizonte, cu e terra, alvorada. O que

    monumental em Braslia? O que sua paisagem? Qual o papel de Lcio Costa na cidade que

    temos hoje? O que a paisagem da Capital?

    O que se pensa, em geral, que paisagem so plantas, rvores, flores, adicionadas a

    construo. No. Paisagem construo das visuais e, principalmente, dos percursos. a

    construo das referncias para orientao dos movimentos, (a parada, o descanso, uma forma

    de movimento). A paisagem se faz com plantas, mas tambm, com construes. No

    acessrio, enfeite. As vezes os referenciais so da prpria natureza, uma montanha, uma

    cachoeira, um vale, um rio. As vezes o que se constri so os percursos para v-los.

    O monumento um referencial como os outros. Apenas incorpora valores humanos,

    histricos ou sociais. Referncia de percursos imateriais. Para Braslia, Lucio Costa definiu:

    Ela deve ser concebida no como simples organismo capaz de preencher satisfatoriamente e sem

    esforo as funes vitais prprias de uma cidade moderna qualquer, no apenas como URBS, mas como

    CIVITAS, possuidora dos atributos inerentes a uma capital. E, para tanto, a condio primeira achar-se o

    urbanista imbudo de certa dignidade e nobreza de inteno, porquanto dessa atitude fundamental decorrem a

    ordenao e o senso de convenincia e medida capazes de conferir ao conjunto projetado o desejvel carter

    monumental. Monumental no no sentido de ostentao, mas no sentido da expresso palpvel, por

    assim dizer, consciente, daquilo que vale e significa. Cidade planejada para o trabalho ordenado e eficiente,

    mas ao mesmo tempo cidade viva e aprazvel, prpria ao devaneio e especulao intelectual, capaz de

    tornar-se, com o tempo, alm de centro de governo e administrao, num foco de cultura dos mais lcidos e

    sensveis do pas. (COSTA, Prembulo).1

    A primeira escala da monumentalidade, o primeiro monumento, no projeto de Lcio

    Costa, o prprio stio natural cuja marca o horizonte. A segunda a cidade, na encosta do

    domo, marcada por uma torre, no alto, e a praa, no baixo, com as torres gmeas do Congresso

    desafiando o horizonte. A terceira o percurso da praa municipal - do Buriti - at os Trs

    1 COSTA, Lcio. 1957. Memria justificativa do Plano Piloto de Braslia.

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    Poderes descendo em degraus, em direo ao horizonte, a leste. A quarta o cotidiano: o eixo

    Rodovirio, as quadras, os bairros, o setor de diverses em vielas e largos, a plataforma

    rodoviria, as massas edificadas do centro urbano onde o horizonte aparece e desaparece a todo

    o momento.

    O horizonte, marca de Braslia, linha reta, ligeiramente acima da cidade com as

    chapadas que a contornam definindo toda a paisagem. O horizonte o monumento. O anel de

    chapadas com o domo central, o stio, que grandioso. A serenidade de um horizonte plano,

    onde o contraste de alguma verticalidade estabelece referncias. A cidade apenas pontua a

    monumentalidade do lugar, de que Glaziou2 escreveu, no final do sculo XIX,

    Enfim, de jornada em jornada, estudando tudo: qualidade do solo, vantagem de guas, clima, carter

    do conjunto da paisagem, etc., cheguei a um vastssimo vale banhado pelos rios Torto, Gama, Vicente Pires,

    riacho Fundo, Bananal e outros; impressionou-me profundamente a calma severa e majestosa desse vale. ...

    (CRULS:330)3

    e props o lago,

    ... Entre os dois chapades, conhecidos na localidade pelos nomes de Gama e Paranau (sic), existe

    imensa plancie, em parte sujeita a ser coberta pelas guas da estao chuvosa; outrora era um lago devido

    juno de diferentes cursos de gua formando o rio Paranau; o excedente desse lago, atravessando uma

    depresso do chapado, acabou com o carrear dos saibros e mesmo das pedras grossas, por abrir nesse ponto

    uma brecha funda, de paredes quase verticais, pela qual se precipitam hoje todas as guas dessas alturas.

    fcil compreender que, fechando essa brecha com uma obra de arte (dique ou tapagem provida de chapeletas

    e cujo comprimento no exceda de 500 a 600 metros, nem a elevao de 20 a 25 metros) forosamente a gua

    tornar ao seu lugar primitivo e formar um lago navegvel em todos os sentidos, num comprimento de 20 a

    25 quilmetros sobre uma largura de 16 a 18. (idem).

    Na encosta de um domo, no interior do anel de chapadas, Lcio Costa lanou a cidade

    com o eixo Monumental sobre o divisor de guas, a praa Municipal no alto, o eixo Rodovirio

    na meia encosta, sobre as curvas de nvel, a praa dos Trs Poderes abaixo, depois o cerrado, o

    lago e o horizonte.

    A torre metlica, com mais de 200m de altura, no cume do domo central, a

    referncia mais distante da cidade, visvel de toda a bacia do Parano. o primeiro contraste no

    horizonte, nico no plano de Costa. Como em Paris a torre contrasta com o horizonte quase

    plano da cidade, como marca do humano industrial.

    Os dois eixos, um faz contraponto, o outro acompanha o horizonte. O Monumental

    desce a encosta, em patamares, como degraus, por sobre o divisor de guas, o Rodovirio

    acompanha as curvas de nvel. Tm 300m de largura, o Monumental, em duas pistas laterais a

    um canteiro central gramado, o Rodovirio em cinco vias, uma central, larga, de mo dupla,

    para maiores velocidades, as outras laterais, menores, de acesso local as quadras.

    O primeiro patamar no alto do domo, a volta do seu ponto mais elevado, onde est

    hoje o Cruzeiro, prximo ao memorial de JK. Ali Lcio Costa disps a praa Municipal, um

    2 Auguste Glaziou. Botnico francs; foi diretor do Jardim Botnico do Rio de Janeiro e participou da comisso

    Cruls. Parte de seu relatrio, inclusive esta, foi transcrita no documento final da comisso Cruls, 1896.

    3 CRULS, Luiz. 1896. Planalto Central do Brasil (ou Relatrio Cruls).3 Ed. Rio de Janeiro-RJ, Jos Olympio,

    1957.

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    quadrado de 300m, com os edifcios do governo e equipamentos urbanos de carter local.

    Esse degrau mais alto se alongava, para oeste, at a estao ferroviria e, para leste,

    at a torre. Digo alongava, pois se refere ao estudo original de Costa, superado pela construo

    da praa 800m a leste. Essa relocao, em si mesma, no afetou significativamente a paisagem

    j que a diferena de nveis irrelevante para esses pontos. Mesmo o alongamento para oeste do

    eixo Monumental teve pouco efeito na paisagem urbana, uma vez que o conjunto urbano, as

    principais reas residenciais e o conjunto governamental estavam, e esto, a leste. , entretanto,

    a oeste que se localiza, hoje, a maior parte da populao. As consideraes que fao a seguir

    dizem respeito unicamente as partes a leste da encosta do domo.

    Para leste o patamar quase plano, sobranceiro a cidade, quase no nvel do horizonte

    das chapadas4, se estende at a torre metlica, alargando-se e depois se estreitando, as pistas

    laterais, convergindo, no estudo inicial, para o Congresso Nacional. No canteiro central, haveria

    o cerrado nativo. Desse modo, o horizonte estaria sempre a vista, por sobre a cidade. As laterais

    desse patamar superior seriam ocupadas pelos parques, zoolgico e botnico, assim como pelo

    setor esportivo.

    Com o deslocamento da cidade para leste, a torre foi construda em pequeno aterro

    ligeiramente sobrelevada ao terreno circunjacente, reduzindo as visuais. Mais tarde se construiu,

    na parte mais larga do eixo Monumental, um centro de convenes, recentemente reformado,

    tampando o horizonte. Com isso o patamar superior ficou seccionado em partes contidas

    primeiro pelo centro de convenes depois pelo aterro da torre. Do mesmo modo, a oeste da

    praa do Buriti, o memorial JK impede a vista distante, o horizonte a oeste, e delimita espaos.

    Apesar disso, as dimenses desses espaos, a relao entre as alturas desses bloqueios e as

    extenses dos vazios, diluem essa percepo, exceto no caso do Centro de Convenes. O cu

    permanece visvel. Seu contacto com a terra que deixa de ser a linha horizontal das chapadas e

    torna-se mais prxima, pelo topo dos edifcios.

    O segundo patamar, leva a plataforma superior da rodoviria. Desde a torre, para leste,

    as vias de veculos do eixo Monumental, mergulhavam por baixo da grande plataforma de

    cruzamento dos eixos, enquanto o canteiro central nivelava-se ao piso superior, passando pela

    praa coberta prevista no corpo central do setor de diverses, chegando at a beira da rea livre

    debruada sobre o gramado da Esplanada, com o Congresso e o horizonte. As vias, no final da

    descida, se rebaixavam do terreno, passavam pelo trecho sombrio do nvel inferior, ainda

    convergentes como num gargalo, e se alinhavam paralelas e niveladas abrindo ento para a

    esplanada. As laterais eram fechadas pelos edifcios dos hotis e, por trs deles, os setores

    comerciais. Neste percurso, a perda temporria do horizonte e do cu, criava o contraste com a

    4 Esse patamar est, no terreno, a uma altura mdia de 1.155m sobre o nvel do mar e tem uma declividade que no

    ultrapassa 1%. O ponto mais alto do domo est a 1.172m.

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    amplido do gramado, o Congresso e o horizonte ao fundo.

    A plataforma, em seu nvel superior, era o centro por excelncia da cidade: praa

    central, lugar das festas, comcios, recepes, espetculos. No cotidiano seria um

    estacionamento, com duas praas laterais de pedestres. No que importa aqui, a plataforma seria

    um belvedere, o grande mirante para apreciar a vista da esplanada com o ritmo dos ministrios,

    o Congresso no foco e o horizonte ao fundo.

    Em si mesma a plataforma, como projetada, seria um retngulo muito alongado,

    fechado em toda sua fachada oeste, pelos edifcios baixos do setor de diverses, cujas fachadas

    iluminadas pelos painis comerciais, criariam uma linha colorida conformando uma base visual

    para a torre atrs, uma sombra para o fim de tarde e, mais que tudo, um referencial para criao

    do que se conhece usualmente como praa. Os lados menores do retngulo seriam abertos, mas

    a curvatura do eixo Rodovirio proveria um fechamento visual distante. E as duas praas de

    pedestres previstas por Costa, entaladas entre os setores de diverses e o Teatro ou a casa de

    ch, o Touring Club, teriam enquadramento suficiente. A do lado norte teria ainda o fechamento

    do saguo da rodoviria construdo como um corpo baixo, suficiente para definir os espaos.

    O que temos efetivamente construdo, da torre a plataforma, perde pouco para o

    projeto inicial, em paisagem. A supresso do corpo central do setor de diverses, se por um lado

    reduziu a dramaticidade da perda e recuperao das visuais no percurso, por outro desimpediu a

    vista da esplanada e o horizonte desde o alto. Tambm a plataforma foi construda modificada.

    Perdeu seu carter de plataforma, tornando-se um par de viadutos paralelos. O prejuzo foi grave

    funcionalmente, mas os amplos passeios ainda permitem a apreciao das vistas.

    A relocao da Rodoviria, contudo, somada a supresso do corpo central do setor de

    diverses retiraram da cidade a principal referncia de seu centro urbano: a praa urbana central,

    o centro da cidade. Ausncia que empobrece. As razes tcnicas eventualmente apresentadas

    para isso, no convencem. A hiptese mais plausvel a de que os rgos de segurana da poca

    pretendessem desestimular concentraes e aglomeraes, por razes puramente polticas.

    O patamar da esplanada a marca de Braslia no mundo. O terrapleno gramado, com o

    edifcio do Congresso, as cpulas e as duas torres, tendo como fundo o horizonte das chapadas,

    uma paisagem, construda e natural dificilmente superada em fora expressiva. A sequncia

    ritmada dos Ministrios quebrada por elementos isolados, a Catedral, o Teatro, agora o museu e

    biblioteca, compem um conjunto de excepcional qualidade urbanstica, plstica e paisagstica.

    No projeto original era mais curta e pouco mais estreita. Foram acrescidos aos setores

    culturais cerca de 400m resultante do acrscimo de mais uma faixa de quadras. Os ministrios

    eram mais baixos e tinham as empenas mais prximas da via. O conjunto do Congresso, nos

    desenhos de Costa, tinha uma nica cpula sobre um bloco baixo e um nico edifcio alto com

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    os escritrios de deputados e senadores.5 Em comum tambm que o foco de convergncia das

    vias oblquas do eixo monumental era sobre este conjunto arquitetnico, assim como o vrtice

    do tringulo equiltero da praa dos Trs Poderes. Em alguns desses desenhos estes pontos

    coincidiam, alguns mesmo sobre o centro da cpula.

    O conjunto arquitetnico do Congresso Nacional, o Senado Federal, a Cmara dos

    Deputados e as torres gmeas de escritrios dos parlamentares, projetado por Oscar Niemeyer

    em 1957, e construdo em seguida, interpretou, valorizando, os esboos de Lcio Costa.

    Como a esplanada se alongara pela insero de mais uma faixa de quadras, o ponto de

    convergncia das vias oblquas do eixo deslocou-se, livrando assim, o edifcio, de maiores

    compromissos com a geometria urbana. Isso permitiu deslocar o marco vertical, do centro

    geomtrico do gramado para um ponto de perfeito equilbrio esttico. Por outro lado, o conjunto

    edificado do Congresso Nacional, na esplanada, expressa precisamente a organizao do Poder

    Legislativo brasileiro: as duas casas, Senado e Cmara so absolutamente independentes, com

    vnculos muito tnues entre si. A figura unitria do Congresso Nacional quase no existe em si

    mesma. As duas cpulas e as duas torres gmeas, unidas pela plataforma e por uma sutil ligao

    a meia altura das lminas, refletem precisamente a organizao institucional. Uma unidade que

    se compe de duas partes distintas sutilmente interligadas.

    Oscar Niemeyer criou uma plataforma, transversal e em toda a largura da esplanada,

    ao rez do cho, e sobre ela colocou duas cpulas, uma menor, o plenrio do Senado, outra

    maior, invertida, o da Cmara. Por trs da plataforma e perpendiculares a ela, defronte a praa,

    duas torres laminares de 28 pavimentos, lado a lado. As torres pela posio mostram as empenas

    cegas para a esplanada resultando em dois traos brancos apenas marcando a paisagem com o

    horizonte das chapadas ao fundo. Entre as lminas, nos pavimentos intermedirios, h uma

    ligao, que vista a distncia est na altura do horizonte. Assim, o Congresso Nacional o

    elemento que articula todos os nveis da paisagem urbana, desde o stio natural at o cotidiano

    construdo.

    A plataforma e as cpulas so totalmente fechadas, os acessos e reas funcionais,

    ficam abaixo da linha do cho, do gramado da esplanada. Disso resulta que as cpulas so vistas

    como que assentadas no cho, ao alcance da mo. O Senado e a Cmara, representativos do

    poder popular so acessveis ao povo. So clssicas as fotos de pessoas escalando o Senado na

    campanha das Diretas J. No incio dos anos noventa, contraditoriamente, estabeleceu-se a

    proibio a circulao de pessoas por sobre a plataforma. O poder est ao alcance das mos, mas

    as mos no podem chegar l.

    5 H diversos desenhos de Lcio Costa para esse edifcio, no mapa em escala 1:25.000 e nos desenhos do relatrio,

    mas todos tm o mesmo partido, um bloco baixo com a cpula e um alto com os escritrios. Ver, a propsito: LAUANDE Junior, Francisco de Assis. A praa dos Trs Poderes. Dissertao de Mestrado.

    Braslia, UnB-FAU, 2008.

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    A plataforma com as cpulas define o degrau sobre o ltimo patamar paisagstico da

    cidade, a praa dos Trs Poderes. Os edifcios do Congresso Nacional articulam a esplanada a

    praa.

    A praa se assenta sobre um tringulo equiltero de 683m de lado, com a base voltada

    para leste, para o cerrado nativo, e o horizonte. Em cada vrtice um dos poderes da Repblica.

    O vrtice oposto a base, oeste, desaparece no gramado da rampa do Congresso. O tringulo s

    perceptvel na base. Ele s atua como organizador do espao. Nisso, projeto e execuo se

    confundem.

    A praa era, no projeto original, um octgono alongado. Duas outras praas,

    quadradas, como que autnomas, mas articuladas aos lados opostos e menores do octgono,

    ficavam diante de cada um dos palcios, como um ptio, uma corte cerimonial, separada da

    praa central pelas pistas de circulao. O Congresso ocupava o lado maior, o vrtice oposto. As

    duas pistas da esplanada cruzavam pelo lado menor pela frente dos palcios. A pista sul, cruzava

    a praa e descia em rampa junto ao arrimo do terrapleno at atingir a pista que prosseguia em

    direo a residncia presidencial. Assim a amurada junto ao arrimo seria, mais uma vez, um

    mirante com vista sobre o cerrado nativo, o lago e o horizonte.

    Do lado oposto, a plataforma do congresso cujas cpulas coroariam a praa em nvel

    inferior. Com isso a praa fica isolada visualmente do conjunto urbano exceto pelo topodos

    palcios. A praa dos Trs Poderes comparece, na paisagem da cidade, representada pelas torres

    gmeas dos anexos administrativos do Congresso Nacional. Ela mesma, em nvel inferior,

    desaparece da vista, mesmo da esplanada. S visvel quando se chega a ela. Ela da nao,

    no da cidade.

    A construo da praa, inaugurada em 1960, mudou pouco os esboos originais. O

    octgono alongado tornou-se um retngulo, desapareceram os ptios quadrados diante dos

    palcios e a pista cortando a praa pelo lado sul e descendo pelo arrimo, desapareceu para dar

    lugar a uma, ao norte, prolongando-se para leste. O edifcio do palcio de despachos foi

    aumentado, mudando a proporo de suas fachadas o que resultou no fechamento quase todo o

    lado norte. Preservou-se, contudo, a vista do cerrado, do horizonte, mantendo-se assim o carter

    de uma praa aberta.

    A partir dos anos 70, contudo, novas alteraes foram introduzidas comprometendo o

    carter e o sentido paisagstico, monumental e simblico da praa, tornando-a aberta.

    A primeira foi a construo de um mastro metlico de 100m de altura para a Bandeira

    Nacional, localizado 30m adiante do arrimo. Na paisagem urbana era redundncia. Na local, da

    praa, alm disso, era dissonante e excessiva. Em nenhum dos dois casos, entretanto,

    comprometia nem a monumentalidade da cidade, nem o sentido referencial da paisagem, uma

    vez que no impedia a vista do horizonte. Caberia uma discusso sobre seus significados,

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    naquele momento. Se, por um lado, configurava a implantao legtima de um smbolo nacional

    na capital da Repblica, por outro, pode ser compreendido como mera ostentao de poder dos

    militares, governantes da poca. Nada mais pode ser dito que era excessivo e redundante.

    Outra, foi a construo de um monumento nacional na junto ao arrimo na base do

    tringulo. Considerando apenas a paisagem, o monumento impede a viso do cerrado e das

    chapadas tornando a praa fechada. O patamar paisagstico, central na composio urbanstica

    de Braslia, perdeu seu principal atributo, o horizonte. Aqui sim, pode-se dizer que

    comprometeu a monumentalidade e o sentido da praa.

    Resta a comentar alguns setores onde o cu e o horizonte das chapadas apenas aparece

    pelas frestas, interstcios. So as quadras residenciais, os setores de comercio, de diverses, cuja

    paisagem predominantemente confinada. Horizontes mais distantes e o cu surgem apenas

    como um quadro, um painel, entre edifcios. Ou nas quadras residenciais que configuram

    paisagens locais confinadas, onde o horizonte das chapadas aparece apenas as vezes, mas o cu

    quase sempre visvel.

    Os setores comerciais e bancrios eram, no projeto inicial, paisagens relativamente

    autnomas que compareceriam no conjunto urbano, como massa edificada nica, em conjunto.

    Assim os edifcios mais altos dos setores comerciais, sul e norte, seriam os elementos de

    transio entre uma paisagem interna do setor e a plataforma Rodoviria, ali j se diluindo no

    eixo Rodovirio. Nos setores Bancrio e de Escritrios6 esse elemento de transio se faria pela

    praa diante de cada um dos edifcios principais do respectivo setor.

    O setor Comercial sul, projetado imediatamente a construo, se organizava por uma

    via de pedestres que deveria cortar inteiramente o setor, cruzando por sob os edifcios. Ao seu

    redor abrem-se praas ou juntam-se edifcios baixos produzindo um percurso varivel. Ocorre

    que essa estrutura no contempla as relaes com os setores contguos. Mesmo internamente, a

    via de pedestres ficou inconclusa em um nico ponto, prejudicando todo o conjunto, impedindo

    Uma leitura clara do percurso. O setor Comercial norte foi projetado posteriormente sem

    preocupao de conjunto. Foi dividido em diversas reas construdas em edifcios isolados uns

    dos outros. No h percursos claros de pedestres. Os que havia inicialmente, entre os edifcios

    altos na fachada da plataforma foram bloqueados, impedindo completamente o acesso pblico

    ao setor. Assim, no h o que comentar de sua paisagem, uma vez que no se estabelecem

    referenciais para os movimentos humanos. Cada edifcio se referencia a si prprio, como nico

    centro. So edifcios que excluem a cidade, e a populao, a seu redor, como um arquiplago.

    O setor de diverses expe os conflitos da poca da construo e mudana da Capital.

    Projetado como um corpo nico com, no mximo, trs pavimentos, foi construdo em duas

    6 Lcio Costa distingue os setores, bancrio sul, centrado no edifcio sede do Banco do Brasil, e de escritrios

    norte, ao redor dos Correios e Telgrafos, conhecido como setor bancrio norte. Itens 4, 5 e, principalmente, 11

    do Relatrio do plano piloto de Braslia.

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    partes isoladas, laterais ao eixo Monumental. A norte tornou-se de fato um elemento nico

    quando em meados da dcada dos 60 foi construda como um centro de compras e tratada como

    um edifcio. Apesar do nome ainda reconhecido, no se preservou nenhuma caracterstica de

    setor de diverses. No h paisagem a ser comentada.

    Na parte sul, precariamente conservada como de diverses, as vielas e largos internos

    se perderam por uma arquitetura ou burocrtica ou pretensiosa. , contudo, o nico que

    conserva algum resqucio do que se poderia chamar de espao gregrio, no centro urbano.

    No setor de autarquias, acrescido ao centro projetado, construiu-se, na segunda metade

    dos anos 70, dois edifcios altos, um deles abrindo-se inutilmente para o eixo rodovirio, o outro

    mais abaixo com uma forma cilndrica composta de paletas voltadas em todas direes,

    bloqueiam a circulao de pedestres em todos os sentidos. As quadras onde se encontram podem

    apenas ser contornadas, perdendo-se assim o sentido de setor urbano. Pela localizao em

    terreno mais elevado e, tambm por sua altura sobressaem excessivamente na paisagem da

    cidade competem com os referenciais urbanos principais, o Congresso Nacional e a torre

    metlica. Ambos pertencem a instituies nacionais das mais respeitveis que, naquele

    momento se impunham por sobre a cidade e a nao, construindo monumentos ostensivos e

    grosseiros, pura demonstrao de fora e poder. Era o governo Geisel, instalao do

    neoliberalismo no pas. Na mesma poca, a Frana construa seu Ministrio da Economia

    ocupando extensa rea de Paris com edifcios baixos, sem nenhuma ostentao de poder. Ou

    mesmo em Braslia, se construa o Estado Maior do Exrcito, com monumentalidade e

    qualidade plstica raramente superadas, sem, entretanto, ostentao de fora ou poder.

    Nas quadras residenciais, as paisagens podem ser agrupadas em trs. As da cada

    quadra em si, as de transio e, dentre estas, as que configuram bairros articulando

    paisagisticamente unidades vizinhas. Nisso h pouca diferena entre o projeto de Costa e a

    execuo, mesmo no caso de arquiteturas menos convincentes.

    No conjunto urbano, especialmente vistas da pista central do eixo Rodovirio, a

    velocidade de 80 quilmetros por hora, cada superquadra comparece como uma grande unidade

    construda, que se mostra atravs da vegetao. Paisagisticamente um grande bloco submerso

    na arborizao. Pelas pistas laterais, de acesso local, do mesmo eixo, elas como que mudam de

    escala e, deixam-se entrever um pouco mais de seus espaos interiores. A j se torna impossvel

    perceber imediatamente, no plano dos olhos, a altura dos blocos residenciais mais prximos,

    que so vistos pelas bases.

    Cada quadra se configura como um claustro, um ptio que se define mais claramente

    em algumas, menos em outras. As vezes subdividindo-se em espaos menores onde o

    tratamento de pisos, vegetao ou equipamentos permite serem percebidos como autnomos.

    esse o caso de quadras com paisagismo executado por paisagistas conhecidos como Roberto

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    Burle Marx, que faz uso de recursos como a reduo de dois pavimentos em um ou outro bloco,

    de modo constituindo espaos confinados, restritos, de alta qualidade paisagstica, com

    dimenses apropriadas ao convvio comunitrio em escala domstica. As propores das

    superquadras remetem as da Place des Vosges em Paris.

    Em quadras construdas mais recentemente, inclusive pertencentes a Universidade de

    Braslia, blocos residenciais fazem tratamentos especficos, as vezes com cercas vivas ou

    mesmo de arames, privatizando os arredores dos edifcios, e reduzindo ou at eliminando os

    espaos comunitrios das quadras inclusive escolas. Com isso se constitui uma paisagem

    fragmentada, novamente o arquiplago.

    Os espaos de transio nas reas residenciais so de diversas qualidades, que

    configuram diversas possibilidades de relacionamento entre quadras contguas. Vejamos apenas

    as chamadas entrequadras, comerciais, institucionais ou esportivas, alm do que denominamos a

    praa do bairro.

    As reas de comrcio local resultam tanto na asa sul como na norte em uma rua-

    corredor, uma via de veculos com um passeio lateral e as edificaes se sucedendo lado a lado

    formando uma sequncia visualmente contnua.

    Na asa sul, a tipologia arquitetnica favorece esse aspecto de rua corredor. Entretanto,

    a concorrncia natural do comrcio, o estabelecimento de um fluxo adicional de veculos por

    mudanas na estrutura urbana, alm de uma inrcia cultural relacionada a cidade tradicional,

    produziram modificaes. Primeiramente, a criao, nos blocos comerciais, de uma fachada

    frontal, voltada para a rua, e de uma fachada de fundos, para o interior da quadra. Assim,

    aquilo que era previsto para ser um espao de transio tornou-se conflitante ou ao menos

    independente do conjunto.

    Na asa norte, criou-se uma nova tipologia, de blocos quadrados que permitiu, em

    muitos casos, nfase excessiva no edifcio isolado, na arquitetura, gerando tambm uma

    fragmentao do espao e das paisagens, desconectando a rea comercial da quadra residencial.

    H ainda como paisagens de transio as praas dos bairros conectando quatro

    quadras a volta da igreja. Trata-se de um resgate de imagem tradicional de pequenas cidades no

    interior do Brasil, a praa da igreja. Em Braslia, as ruas comerciais nas quadras 100 terminando

    em anis de distribuio de transito de acesso as quatro quadras, com a igreja ao fundo, recriam

    aquelas praas com novas linguagens, principalmente quando usam de vantagens

    proporcionadas pela topografia. Tais pracinhas tm muitas vezes a vista do horizonte das

    chapadas enquadrada pela rua-corredor formada pelo comrcio local.

    H muito ainda a anotar sobre as paisagens da cidade, naturais ou construdas,

    principalmente aquelas que as relacionam. As paisagens mostram tanto o modo do humano se

    relacionar com a natureza, transform-la, como o de se relacionar com os outros humanos, a

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    poltica.

    Cruls e Glaziou identificaram um stio de excepcionais condies paisagsticas e

    construtivas para a construo da cidade: um domo cercado de um anel de chapadas que

    resultam em um horizonte regular, sereno, tranquilo. Tudo isso no planalto, nas terras altas com

    as nascentes de trs das maiores bacias. Polli Coelho confirma a localizao em 1948. Vargas

    contrata Belcher para definir o stio, das opes apresentadas o governo reafirma Glaziou.

    Lcio Costa props uma cidade perfeitamente integrada em seu stio natural. Como

    paisagem, o trao principal era o horizonte das chapadas. Na cidade construda, dois elementos

    verticais referenciavam todo o conjunto: a torre metlica e as torres gmeas dos anexos do

    Congresso, pontuando o horizonte. A praa dos Trs Poderes, abrindo-se sobre o cerrado e o

    horizonte abria-se para o Brasil. Era a praa nacional.

    Os patamares do eixo monumental tinham, de formas diversas, o horizonte das

    chapadas como referncia. A praa Central, a plataforma superior da rodoviria, esta sim a praa

    da cidadania, da populao da cidade. Sua supresso mutilou a cidade em seu cerne, em seu

    centro, na cidadania, sempre enaltecida, mas jamais efetivada.

    Nas pequenas paisagens, nos bairros, no se constituiu a comunidade, a relao dos

    vizinhos. A praa do bairro tornou-se apenas um local de circulao de veculos, perdeu-se o

    convvio. Apesar de tudo isso, Braslia ainda um lugar aprazvel, ainda possvel ser feliz em

    Braslia, mais que em qualquer outra cidade brasileira.

    H ainda todo o lado da cidade a oeste do cume do domo, as cidades satlites, a

    comentar. O governo, pela Novacap no pensou nisso. Dispor da calma severa e majestosa

    desse vale algo que as estruturas sociais ainda no permitem a todos.

    Braslia, outubro de 2009

    Publicado em: Humanidades (revista). (56):40-51, dez 2009. Braslia-DF, EdUnB.