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Brennan Manning - Convite à Loucura

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BRENNAN MANNING

Convite àLoucuraTraduzido porSueli Saraiva

Preparado por Amigo Anônimo

www.semeadores.net

Nossos e-books são disponibilizados gratuitamente, com a única finalidade de oferecer leitura edificante a todos aqueles que não

tem condições econômicas para comprar.

Se você é financeiramente privilegiado, então utilize nosso acervo apenas para avaliação, e, se gostar, abençoe autores, editoras e

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Semeadores da Palavra e-books evangélicos

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CONVITE À LOUCURACategoria: Espiritualidade

Copyright © 2005, por Brennan ManningPublicado originalmente por Harper San Francisco,uma divisão da Harper Collins Publishers, Nova York, EUA

Título original: The importance of being foolishEditora responsável: Silvia JustinoEditor-assistente: Omar de SouzaPreparação de texto: José Carlos SiqueiraRevisão de provas: Aldo MenezesSupervisão de produção: Lilian MeloColaboração: Miriam de AssisCapa: Douglas LucasImagem: Stockphotos

Os textos das referências bíblicas foram extraídos da Nova Versão Internacional (Sociedade Bíblica Internacional), salvo indicação específica.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Manning, Brennan

Convite à loucura / Brennan Manning; traduzido por Sueli Saraiva —São Paulo: Mundo Cristão, 2007.

Título original: The importance of being foolishISBN 85-7325-464-5ISBN 978-85-7325-464-8

1. Conduta de vida 2. Espiritualidade 3. Jesus Cristo – Ensinamentos4. Santa Cruz 5. Vida cristã I. Título.

07-1439 CDD–248.4

Índice para catálogo sistemático:1. Vida cristã: Espiritualidade: Cristianismo 248.4

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19/02/1998.É expressamente proibida a reprodução total ou parcial deste livro, por quaisquer meios(eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação e outros), sem prévia autorização, por escrito,da editora.

Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos reservados pela:Associação Religiosa Editora Mundo CristãoRua Antônio Carlos Tacconi, 79, São Paulo, SP, Brasil, CEP 04810-020Telefone: (11) 2127-4147 — Home page: www.mundocristao.com.br

Editora associada a:• Associação de Editores Cristãos• Câmara Brasileira do Livro• Evangelical Christian Publishers Association

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Conteúdo

Agradecimentos.........................................................................................................................5

Introdução.................................................................................................................................5

PARTE UM – O MODO COMO VIVEMOS ..............................................................................................7

Capítulo um – Verdade ............................................................................................................7

Capítulo dois – Transparência ..............................................................................................19

Capítulo três – Distrações .....................................................................................................27

PARTE DOIS – A MENTE DE CRISTO ................................................................................................36

Capítulo quatro – A descoberta do pai .................................................................................36

Capítulo cinco – Um coração misericordioso ......................................................................41

Capítulo seis – A obra do Reino.............................................................................................48

PARTE TRÊS – O PODER DA CRUZ ...................................................................................................60

Capítulo sete – A sabedoria da ressurreição .......................................................................60

EPÍLOGO – A REVOLUÇÃO.................................................................................................................68

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AG R A D E C I M E N T O S

É difícil se separar dos filhos. Em 1976, a Dimension Books publicou Gentle Revolutionaries: Breaking Through to Christian Maturity [Revolucionários moderados: Abrindo caminho para a maturidade cristã]. Cheio de paixão e convicção, eu queria mostrar como a igreja estava deixando escapar os pontos centrais sobre as boas-novas de Jesus para nós. Recentemente, quando me deparei com esse filho abandonado (já que o livro estava esgotado), descobri que ainda era importante que a igreja ouvisse essa mensagem.

Ao mesmo tempo, acredito que aprendi a expor as coisas com um pouco mais de graça e humildade do que fiz em meu tempo de juventude. Assim, com ajuda de Carla Barnhill e de meus amigos da Harper San Francisco, em especial Cindy DiTiberio, revisei, atualizei e fiz ajustes no antigo trabalho, de forma que agora ele está pronto, assim espero, para uma nova geração de leitores. Portanto, para aqueles que têm olhos para ver e ouvidos para ouvir, por favor, prossigam a leitura.

IN T R O D U Ç Ã O

É extraordinário o que um simples convite da Casa Branca pode fazer para entorpecer as faculdades críticas", advertia o falecido Reinhold Niebuhr. Uma advertência grave! O privilégio de pregar para o presidente é tão prestigioso que a maioria dos clérigos usa a oportunidade para retribuir a gentileza. Em uma atmosfera de admiração mútua, a religião se dissolve num Sonrisal verbal, e a pregação profética se torna praticamente impossível.

O pedido de outros cristãos para escrever um livro sobre a mente de Jesus traz armadilhas semelhantes, embora muito menos sofisticadas. Ao querer agradar a todos, fico muito tentado a escrever algo insípido, uma exposição crivada de clichês, metáforas torturantes e histórias sem sentido. Então todos ficarão felizes e gloriosamente satisfeitos.

No entanto, este livro foi escrito a partir da crença de que Jesus Cristo viveu, morreu e ressuscitou para formar o povo santo de Deus, uma comunidade de cristãos que viveriam sob o domínio do Espírito; homens e mulheres que seriam tochas humanas acesas com o fogo do amor por Cristo, profetas e amantes inflamados com o Espírito ardente do Deus vivo. Oferecer uma obra inócua seria uma prostituição do evangelho, um insulto a Deus e um grave desserviço ao leitor.

Durante dois anos, tive o privilégio de viver com uma comunidade cristã conhecida como Irmãozinhos de Jesus e ver o tema deste livro se desenvolver nas tarefas mais simples do mundo comum. A vida de um irmãozinho tem como modelo a vida oculta de Jesus de Nazaré, os muitos anos que ele passou na obscuridade dedicada ao trabalho manual e à oração antes de embarcar no ministério público de pregar, ensinar e curar.

Passei os primeiros seis meses na pequena aldeia de Saint-Rémy, na França, a uns 150 quilômetros a sudeste de Paris. No inverno, recolhia esterco nas fazendas vizinhas e lavava pratos num restaurante local. As noites eram envoltas em silêncio, na adoração em ação de graças e na meditação das Escrituras. Os dias passavam num ritmo contínuo de envolvimento com o mundo e afastamento dele. Foi uma iniciação gradual rumo a uma vida contemplativa sem clausura e entre os pobres.

Nosso grupo de sete (dois franceses, um alemão, um espanhol, um eslavo, um coreano e eu) mudou-se para Farlete, outra pequena aldeia no deserto de Zaragoza, na Espanha. Nos 12 meses em que vivemos ali, passamos a amar o calor, a simplicidade e a profunda amizade de um remoto povoado espanhol com uma população de seiscentos habitantes. No verão,

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trabalhávamos de 10 a 12 horas por dia na colheita de trigo ou em trabalhos de construção, revezando turnos como cozinheiro na fraternidade e economizando dinheiro suficiente para comprar bebidas para a festa que marcava O fim da colheita.

Nossa harmonia com os aldeões era profunda porque não somente compartilhávamos a pobreza, a labuta, o pão amargo e a ansiedade sobre a colheita, mas também a alegria do nascimento de um bebê, pelas núpcias dos recém-casados e uma multidão de experiências menores tecidas na base da vida rural.

Durante o ano, muitas vezes ficávamos temporariamente sozinhos, retirados em uma montanha alta e rochosa que, além de muito distante da vida urbana, também é um dos mais remotos eremitérios da Europa. Em muitas e longas horas de oração nas cavernas, eu percebia de uma nova maneira que o conhecimento redentor de Jesus Cristo substitui todo o resto, permitindo-nos experimentar uma liberdade que não é restringida pelos limites de um mundo que se encontra aprisionado.

Ao mesmo tempo, reconheci que muitas das importantes questões teológicas na igreja de hoje não são importantes, nem teológicas, e que, num tempo caracterizado (em algumas partes) pela confusão, encenações baratas e infidelidade, o que Jesus exige não é mais retórica, mas renovação pessoal, fidelidade ao evangelho e comportamento produtivo. Conforme disse o cardeal Paul-Emile Léger em seu adeus a Montreal: "O tempo de falar acabou".1

Essa é a premissa fundamental em torno da qual os 230 discípulos que compõem os Irmãozinhos de Jesus organizam sua vida. Os irmãozinhos aprendem a separar o essencial do secundário e a perceber que esse modo particular de vida é simplesmente uma conseqüência exterior de um imenso, apaixonado e determinado amor à pessoa de Jesus.

Viver entre as mais pobres e desamparadas das pessoas como um trabalhador braçal, sem trajes clericais, passar dias e semanas no deserto em espontâneo louvor a Deus, comunicar-se através de valores de amizade que não podem ser comunicados pela pregação, tudo isso satisfaz não um desejo de novidade, mas uma compulsão de amor. Alguns poderiam chamar a isso loucura. Eu chamo de verdadeira sabedoria do Deus de amor.

1 O cardeal Léger foi arcebispo de Montreal, Canadá, até 1967, quando renunciou a sua posição como príncipe da Igreja Católica e partiu para a Africa a fim de trabalhar com leprosos e crianças deficientes. Ele morreu em 1991. (N. da T.)

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PARTE UM

O MODO COMO VIVEMOS

CAPÍTULO UM

VE R D A D E

A narrativa evangélica sobre a purificação do templo é uma cena desconcertante (Jo 2:13-22). Ela nos apresenta o retrato de um Salvador enfurecido. O Cordeiro submisso de Deus que disse "Tomem sobre vocês o meu jugo e aprendam de mim, pois sou manso e humilde de coração" (Mt 11:29) improvisou um chicote e circulou furiosamente pelo templo, destruindo bancas e mostruários, espancando os mercadores e dizendo: "Saiam daqui! Aqui não é o Wal-Mart. Vocês não transformarão um espaço sagrado num passeio de consumo! Mentirosos! Visitar o templo é um sinal de reverência a meu Pai. Fora daqui!".

Ainda mais desconcertante é o amor intenso de Jesus pela verdade. Onde o dinheiro, o poder e o prazer mandam, o corpo da verdade sangra de mil feridas. Muitos de nós temos mentido a nós mesmos por tanto tempo que nossas reconfortantes ilusões e justificativas assumiram uma aura de verdade; nós as apertamos em nosso peito como uma criança aperta um ursinho favorito.

Não está convencido? Considere então um homem que cita o apóstolo Paulo sobre um pouco de vinho ser bom para o estômago ao falar de seu terceiro martíni no almoço. Ou a defesa veemente de um "cristão liberal" sobre a nudez em O último tango em Paris, a violência em Pulp fiction — Tempo de violência ou a cena de sexo oral em Garotos de programa porque eles "se integram perfeitamente ao enredo e são realizações estéticas".

Ou então o honesto diácono da igreja que aceita trapacear e sonegar em seus negócios porque "é o único modo de ser competitivo". Ou todas as igrejas nas quais o delírio sobre a falta de culpa é uma realidade, a maestria na exegese bíblica é uma santidade, o tamanho da congregação é a prova de sua autenticidade e por aí afora. Não existe limite para as defesas que inventamos contra a transgressão da verdade em nossa vida.

A questão dolorosa que enfrentamos na igreja de hoje é se o amor de Deus pode ser comprado tão barato. O primeiro passo na busca da verdade não é a resolução moral de evitar o hábito da mentirinha — por mais desagradável que uma deformação de caráter possa ser. Não se trata de uma decisão sobre deixar de enganar os outros, e sim da decisão de parar de nos enganar.

A menos que tenhamos a mesma paixão inexorável pela verdade que Jesus demonstrou no templo, estamos destruindo nossa fé, traindo o Senhor e nos enganando. O auto-engano é inimigo da integridade, pois ficamos impedidos de nos ver como realmente somos. Ele encobre nossa falta de crescimento no Espírito da verdade, impedindo-nos de compreender nossa real personalidade.

Muitos anos atrás, testemunhei o poder do auto-engano reeditado de forma dramática no centro de reabilitação de alcoólicos de uma pequena cidade americana. O trecho é extraído de

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meu livro O evangelho maltrapilho. O cenário: uma sala de recreação ampla e de dois andares na orla de uma colina com vista para um lago artificial. Estavam lá reunidos 25 dependentes químicos. Nosso líder era um experiente conselheiro, hábil terapeuta e membro veterano da equipe. Seu nome: Sean Murphy-O' Connor,2 mas ele normalmente anunciava sua chegada dizendo:

— É ele mesmo. Vamos trabalhar.

Sean mandou que um paciente chamado Max assumisse a "cadeira de interrogatório" no centro do grupo disposto em "U". Max, um homem franzino e de baixa estatura, era um cristão nominal, casado e com cinco filhos, proprietário e presidente de sua empresa, rico, afável e dotado de uma pose notável.

Desde quando você tem bebido como um porco, Max? — Murphy-O'Connor havia começado o interrogatório.

Isso é injusto — Max recolheu-se.

Veremos. Quero saber da sua história com a bebida. Quanta cachaça por dia?

Max reacendeu seu cachimbo.

Tomo duas Marias com os rapazes antes do almoço e dois Martins depois que o escritório fecha, às cinco. Depois...

O que são Marias e Martins? — interrompeu Murphy-O'Connor.

Bloody Marys: vodca, suco de tomate, uma pitada de limão e de Worcestershire, um toque de extrato de pimenta vermelha; e martinis: gim, extra-seco, gelado com uma azeitona e uma espremida de limão.

Obrigado, Maria Martins. Prossiga.

Minha esposa gosta de um drinque antes do jantar. Viciei-a em Martini há muitos anos. Claro que ela os chama de "aperitivos" — sorriu Max. — Vocês naturalmente entendem o eufemismo, não é verdade, senhores?

Ninguém respondeu.

Como eu ia dizendo, tomamos dois martínis antes do jantar e mais dois antes de dormir.

Um total de oito drinques por dia, Max? — quis saber Murphy- O'Connor.

Exatamente. Nem uma gota a mais nem a menos.

Você é mentiroso.

Sem se abalar, Max explicou:

Vou fingir que não ouvi isso. Estou na ocupação há vinte e tantos anos e construí minha reputação em cima da honestidade, não da falsidade. As pessoas sabem que minha palavra é de confiança.

Já chegou a esconder uma garrafa em casa? — perguntou Benjamim, um índio navajo do Novo México.

Não seja ridículo. Tenho um bar na minha sala de estar maior que um traseiro de elefante. Nada pessoal, sr. Murphy-O'Connor.

Max sentia que havia recuperado o controle. Estava sorrindo.

Você guarda bebida na garagem, Max?

Naturalmente. Tenho de repor o estoque. Um homem na minha posição recebe muita gente em casa — o executivo arrogante havia reassumido.

Quantas garrafas na garagem?

Não sei dizer a quantidade com precisão. Assim, de improviso, eu diria dois engradados de Smirnoff, um engradado de gim Beefeater, algumas garrafas de bourbon e de uísque e um punhado de licores.

2 No original, "Croesus O'Connor". (N. do R.)

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O interrogatório prosseguiu por mais vinte minutos. Max eximia-se e esquivava-se, minimizava, racionalizava e justificava seu hábito de beber. Finalmente, apanhado por um implacável interrogatório cruzado, ele admitiu que guardava uma garrafa de vodca no criado-mudo, uma garrafa de gim na mala para fins de viagem, outra no banheiro para fins medicinais e três mais no escritório para ter o que oferecer aos clientes. Ele trejeitava ocasionalmente, mas nunca perdia sua postura confiante.

— Senhores — sorriu Max, — acho que todos nós já nos demos o direito de dourar a pílula uma vez ou outra nessa vida — foi como ele colocou, dando a entender que apenas homens de envergadura podiam dar-se ao luxo de rir de si mesmos.

Você é mentiroso — ecoou outra voz.

Não é preciso ficar vingativo, Charlie — retrucou Max. — Lembre-se da passagem do evangelho de João sobre o cisco no olho do seu irmão e a viga no seu. E aquela outra em Mateus sobre o roto falando do rasgado.

(Senti-me compelido a informar Max que a comparação entre o cisco e a tábua não se encontrava no evangelho de João, mas no de Mateus, e que a história do roto e do rasgado era um provérbio secular que não constava nos evangelhos. Senti, porém, que um espírito de presunção e um ar de superioridade espiritual haviam me envolvido de repente, como um nevoeiro. Decidi abrir mão da correção fraternal. Afinal, eu não estava em Hazelden fazendo uma pesquisa para um livro. Eu era apenas um bêbado incorrigível como Max.)

— Tragam-me um telefone — disse Murphy-O'Connor.

Um telefone foi trazido num carrinho para a sala. Murphy-O'Connor consultou um bloco de notas e discou um número interurbano para a cidade de Max. O receptor era amplificado eletronicamente, de modo que a pessoa do outro lado da linha podia ser ouvida claramente por todos no salão do lago.

Hank Shea?

Ele mesmo. Quem está falando?

Meu nome é Sean Murphy-O'Connor. Sou conselheiro de um centro de reabilitação de drogas e álcool no Meio-Oeste. Você se recorda de um cliente chamado Max? (Pausa) Ótimo. Com a permissão da família dele, estou pesquisando a história de Max com a bebida. Como você trabalha como barman nesse lugar todas as tardes, fiquei pensando se você saberia me dizer aproximadamente quantos drinques o Max consome por dia?

Conheço o Max muito bem, mas você tem certeza de que tem permissão para me interrogar?

Tenho uma declaração assinada. Pode falar.

— Max é um cara fantástico. Gosto demais dele. Ele despeja trinta contos no balcão toda tarde. O Max tomas os seus seis martinis básicos, compra mais uns drinques e sempre me deixa uma gorjeta de cinco dólares. Grande sujeito.

Max pôs-se de pé num salto. Erguendo a mão direita desafiadoramente, ele despejou um caudal de palavrões digno de um estivador. Ele atacou os ancestrais de Murphy-O'Connor, colocou em dúvida a legitimidade de Charlie e a integridade de toda a unidade de tratamento. Ele agarrou-se ao sofá e cuspiu no tapete.

Então, num feito notável, recuperou imediatamente a compostura. Max sentou-se e observou, sem nenhuma afetação, que até mesmo Jesus havia perdido a paciência no templo ao ver os saduceus comercializarem pombas e bolos. Depois de uma prédica improvisada sobre a ira justificada, ele reabasteceu o cachimbo, imaginando que o interrogatório havia terminado.

Você já tratou mal algum dos seus filhos? — Fred perguntou.

Fico feliz que você tenha levantado esse assunto, Fred. Tenho uma profunda ligação com meus quatro garotos. No último dia de Ação de Graças levei-os para uma expedição de pescaria nas Rochosas. Quatro dias de vida dura no mato. Foi memorável. Dois de meus filhos formaram-se em Harvard, você sabe, e Max Jr. está no terceiro ano da...

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Não foi o que eu perguntei. Pelo menos uma vez na vida todo pai trata mal um de seus filhos. Tenho 62 anos e posso assegurar que é assim. Agora dê-nos um exemplo específico.

Seguiu-se uma longa pausa. Finalmente:

Bem, fui um tanto duro com minha filha de nove anos na última véspera de Natal.

O que aconteceu?

Não lembro. Apenas fico com uma sensação de pesar quando penso nisso.

Onde aconteceu? Quais eram as circunstâncias?

— Espere aí um minuto — a voz de Max ergueu-se com fúria. — Já disse que não lembro. Só não consigo me livrar dessa sensação ruim.

Sem alarde, Murphy-O'Connor discou mais uma vez para a cidade de Max e falou com a esposa dele.

— Sean Murphy-O'Connor falando, minha senhora. Estamos no meio de uma terapia de grupo e seu marido acaba de contar que tratou mal sua filha na véspera do Natal passado. A senhora poderia fornecer os detalhes, por favor?

Uma voz suave encheu a sala.

— Sim, posso contar-lhe a coisa toda. Parece que foi ontem. Nossa filha Debbie queria um par de sapatos de presente de Natal. Na tarde de 24 de dezembro meu marido levou-a de carro até a cidade, deu-lhe sessenta dólares e disse que ela comprasse o melhor par de sapatos que houvesse na loja. Foi exatamente o que ela fez. Quando entrou novamente na caminhonete que meu marido estava dirigindo, ela beijou-o no rosto e disse que ele era o melhor pai do mundo. Max estava orgulhoso como um pavão e decidiu celebrar no caminho de volta para casa. Ele parou no Cork'n'Bottle, um bar que fica a alguns quilômetros da nossa casa, e disse a Debbie que voltava já. Era um dia limpo e extremamente frio, cerca de vinte graus abaixo de zero, por isso Max deixou o motor funcionando e fechou as portas do lado de fora de modo que ninguém pudesse entrar. Isso era um pouco depois das três da tarde, e...

Silêncio.

— Sim?

O som de uma respiração pesada encheu a sala de recreação. A voz esmoreceu. Ela estava chorando.

— Meu marido encontrou no bar alguns velhos colegas do exército. Envolvido na euforia da reunião, perdeu a noção de tempo, de propósito e de tudo o mais. Ele saiu do Cork'n'Bottle à meia-noite. Bêbado. O motor havia parado de funcionar e as janelas do carro estavam bloqueadas com o gelo. A pequena Debbie tinha graves ulcerações de frio nas orelhas e nos dedos da mão. Quando a levamos ao hospital, os médicos tiveram de operar. Amputaram o polegar e o indicador da mão direita. Ela vai ficar surda pelo resto da vida.

Max parecia estar tendo um ataque do coração. Ele lutava para manter-se de pé, fazendo movimentos desajeitados e descoordenados. Os óculos voaram para a direita e o cachimbo, para a esquerda. Ele caiu de quatro, soluçando histericamente.

Murphy-O'Connor levantou-se e disse suavemente:

— Vamos circulando.

Vinte e quatro alcoólicos e viciados subiram a escadaria de oito degraus. Viramos à esquerda, reunimo-nos ao longo da amurada do mezanino e olhamos para baixo. Ninguém consegue esquecer o que viu naquele dia, 24 de abril, exatamente ao meio-dia. Max ainda estava de quatro. Seus soluços haviam crescido a berros. Murphy-O'Connor aproximou-se dele, pressionou seu pé contra o tórax de Max e empurrou. Max rolou de costas no chão.

— Seu canalha miserável — urrou Murphy-O'Connor. — Tem uma porta à sua direita e uma janela à sua esquerda. Tome o que for mais rápido. Saia daqui antes que eu vomite. Não dirijo um centro de reabilitação para mentirosos.

Se isso soa como uma resposta cruel, devemos lembrar da filosofia desse centro de reabilitação baseado no amor disciplinar. Ela está alicerçada na convicção, nascida de longa

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experiência, de que nenhuma recuperação efetiva pode ser iniciada até que a pessoa admita que é impotente a respeito do álcool e que a sua vida se tornou ingovernável.

A alternativa ao evitar a verdade de sua situação é sempre alguma forma de autodestruição. Para Max havia três opções: loucura, morte prematura ou abstinência. Contudo, nenhuma opção era possível até que o inimigo fosse identificado mediante uma interação dolorosa, impiedosa, com seus semelhantes. O auto-engano precisava ser desmascarado em todo o seu absurdo.

A continuação da história é interessante. Max suplicou e obteve permissão para ficar. Então começou a passar pela mais notável transformação de personalidade que o grupo já havia testemunhado. O homem se tornou honesto e mais sincero, mais aberto, mais afetuoso e mais sensível do que era antes. O amor disciplinar o tornou real e a verdade o libertou.

O desfecho de sua história é ainda mais interessante. Uma noite antes de Max terminar o tratamento, outro homem, Fred, passou pelo seu quarto. A porta estava entreaberta. Max estava sentando à sua escrivaninha lendo o romance Watership Down [Rio abaixo]. Fred bateu e o cumprimentou. Durante alguns minutos, Max permaneceu fixo no livro. Quando ele levantou os olhos, suas bochechas estavam riscadas de lágrimas.

— Fred — disse, a voz embargada, — acabo de orar pela primeira vez em minha vida.

Em autobiografia, Agostinho mostrou a estreita relação entre a busca pela verdade e a conversão do coração. Max não pôde encontrar a verdade do Deus vivo até enfrentar a realidade de seu alcoolismo. Com base na perspectiva bíblica, Max era um mentiroso. Na filosofia, o oposto da verdade é um erro; na Bíblia, o contrario da verdade é uma mentira. A mentira de Max consistia em dar a aparência de existência ao que de fato não existia: um inofensivo ato de beber socialmente. A verdade, para ele, era equivalente a livrar-se das aparências para reconhecer a realidade de seu alcoolismo.

No evangelho de João, o mentiroso obstinadamente recusa-se a ver a luz e a verdade, e mergulha nas trevas. O Diabo é o pai das mentiras: "Ele foi homicida desde o princípio e não se apegou à verdade, pois não há verdade nele. Quando mente, fala a sua própria língua, pois é mentiroso e pai da mentira" (Jo 8:44).

O Diabo é o grande ilusionista. Ele enverniza a verdade: "Se afirmarmos que estamos sem pecado, enganamos a nós mesmos, e a verdade não está em nós" (1 Jo 1:8). Incita-nos a dar importância ao que não tem importância, veste com falso resplendor o que é menos importante e nos desvia do que é insuperavelmente verdadeiro. O Diabo nos faz viver num mundo de ilusão, devaneios e sombras.

O conflito entre o pai das mentiras e a verdade, que é Jesus Cristo, permeia todo o evangelho de João. O Senhor não somente derrotou o mentiroso, mas nos deu parte de sua vitória através do Espírito Santo: a exaltação de Jesus Cristo na cruz liberta o Espírito. O triunfo pascal não somente expiou nossos pecados e nos justificou diante de Deus, mas trouxe o derramamento do Espírito Santo que nos foi dado (Rm 5:5). O Espírito nos capacita a derrotar a mentira, o auto-engano e a desonestidade; nos torna agradáveis para a verdade de Deus e nos leva a experimentar as realidades eternas.

O falecido Jean Daniélou escreveu: "A verdade consiste numa mente que dá às coisas a importância que elas têm na realidade". O que é verdadeiramente real para o crente é Deus. Quando Max foi levado a confrontar a verdade de seu alcoolismo e aceitá-la, atravessou uma porta em direção ao reconhecimento da realidade soberana de Deus e declarou: "Acabo de orar pela primeira vez em minha vida".

As conseqüências disso para o cristão sincero que busca ter a mente de Cristo Jesus (Fp 2:5) e a plenitude da vida no Espírito Santo são amplas. Para a maioria de nós, o mais real é o mundo da existência material, sendo o mundo de Deus o mais irreal. Trata-se de um fato tão colossal, uma subversão tão radical, que o mentiroso (no sentido bíblico) é geralmente considerado normal em nossa sociedade. Pois a dimensão religiosa da vida é um tipo de acessório opcional, pura questão de gosto. E a fé é uma aceitação indiferente a uma empoeirada casa de penhores de declarações dogmáticas.

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O que é importa neste mundo são as pessoas influentes, as pessoas que agem e jogam com o que há de melhor nelas, pessoas que assumem a responsabilidade de seus atos e dirigem o próprio destino. O poderoso é o que faz as coisas, não os que estão alquebrados e carentes.

Tais motivos, você poderia dizer, são os dos ateus: somos diferentes. Acreditamos na religião, na fé. Talvez. No entanto, existe uma classe de mentirosos que estão abertos ao Espírito de Jesus, mas de modo superficial. Eles recebem tudo, mas nada permanece enraizado. Defendem a renovação eclesiástica e a mudança pela mudança. Reparam o cisco no olho das lideranças, mas não a viga no próprio olho. Eles são a favor da vida no que diz respeito ao feto por nascer, mas contra a vida em relação ao muçulmano, ao pecador e ao culpado.

São como borboletas que sorvem de mil cálices de flores diferentes. Pessoas confiantes no momento: hoje andando sobre as nuvens, amanhã morrendo de depressão. Elas se guiam pelo que é novo e nadam a favor da correnteza. Seu imperativo moral mais elevado é manter uma boa dianteira. Nunca lhes sugira que o custo do discipulado é alto, que não existe Pentecostes barato. Cristãos cata-ventos, nos quais não se pode confiar, formam uma legião.

Mas nosso interesse nestas páginas é o cristão sincero, cuja fé é sólida e arraigada. Jesus Cristo é (ou está a ponto de se tomar) a pessoa mais importante de sua vida. Sua oração não é pretensão nem fachada. É uma pessoa inteligente no sentido bíblico, que conhece a realidade como ela é. Nas Escrituras, a inteligência não consiste em desempenho mais brilhante da mente, mas em reconhecer a realidade onipresente de Deus. "Diz o tolo em seu coração: 'Deus não existe'" (Sl 14:1).

Da perspectiva bíblica, um grande teólogo pode ser considerado um estúpido, enquanto uma lavadeira analfabeta que louva a Deus pelo pôr do sol é vista como infinitamente mais inteligente. O cristão referido nestas páginas, qualquer que seja sua situação ou condição de vida, será considerado inteligente e interessado na busca da verdade.

O FIM DO DESLUMBRAMENTO

Em uma noite fria, iluminada pelo brilho das estrelas, eu estava ansioso na escuridão à espera do nascer do sol. As areias do deserto brilhavam como açúcar prateado. O vento me sussurrava o nome dele repetidas vezes: "Aba, Aba". A vigília terminava e minha vida nunca mais seria a mesma. Numa caverna solitária no deserto de Zaragoza, conheci Deus como meu Pai. Eu era novamente uma criança perdida em deslumbramento, amor e louvor.

Tornar-se uma criancinha novamente (conforme Jesus ordenou que deveria acontecer) é recuperar um sentimento de surpresa, deslumbramento e vasto deleite com toda a realidade. Olhe para o rosto de uma criança na manhã de Natal quando ela entra na sala transformada pela passagem do Papai Noel à meia-noite. Ou quando ela descobre a moeda debaixo do travesseiro, vê o primeiro arco-íris ou cheira a primeira rosa. Poucos de nós prendem a respiração em momentos como esses, como um dia fizemos. A passagem pelo corredor do tempo nos fez maiores e todo o resto menor, menos impressionante.

Conhecemos nossa força de vontade e nossa disposição. Adquirimos certo domínio sobre a natureza, sobre as doenças. Pelo milagre da tecnologia moderna, somos capazes de experimentar visões, sons e acontecimentos outrora disponíveis somente para Colombo, Vasco da Gama e outros aventureiros. Havia um tempo, em passado não muito distante, quando um temporal fazia homens crescidos estremecer e sentir-se pequenos.

Mas Deus está sendo empurrado para fora do seu mundo pela ciência. Quanto mais o homem sabe sobre meteorologia, menos inclinado fica a orar num temporal. Aviões voam agora em cima, embaixo e ao redor de todo tipo de tempestade. Os satélites reduzem as tormentas, uma vez aterrorizantes, a eventos fotográficos. Que infâmia (se um temporal pudesse ser infamado) ser reduzido de teofania a um incômodo!

Até mesmo o espaço sideral tem gradualmente deixado de nos impressionar. Falamos sobre sondas em Marte com a mesma empolgação como se estivéssemos enviando máquinas fotográficas para o East Village, em Nova York. Estamos saturados, incapazes de nos maravilhar e de sentir medo. Essa diminuição da capacidade de se impressionar pode ser um sinal de

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maturidade, uma conseqüência necessária e saudável do progresso. Mas me sinto propenso a pensar que isso revela perda de equilíbrio.

Uma pessoa verdadeiramente equilibrada mantém a capacidade de se deslumbrar e a vontade de expressar essa admiração na própria confissão de sua condição de criatura, o reconhecimento espontâneo de que ela é um ser humano, e não um deus; um ser com limitações que, longe de ter abarcado o infinito, é feliz e desesperadamente subjugado por ele.

Nossa insípida reação à realidade é ainda menos entusiasmada quando nos deparamos com Jesus Cristo e analisamos o modo de vida cristão. Embora sejamos confrontados com uma moral tão sublime e exigente que parece totalmente impossível, não ficamos impressionados pelo estilo de vida que Cristo nos apresentou. Ele nos orienta que o padrão do modo de vida cristão é o ágape. "Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida pelos seus amigos" (Jo 15:13).

Na fala paulina, o amor de Jesus é kenosis, total auto-esvaziamento. E Cristo diz categoricamente: "Amem-se uns aos outros. Como eu os amei" (Jo 13:34). Ainda que ele proponha uma intensidade de bondade e de santidade diante da qual podemos apenas murmurar "Quem então pode ser salvo?", persiste, de nossa parte, uma impressionante ausência de assombro. Somos semelhantes ao atleta desafiado a correr cem metros em cinco segundos. Depois de várias tentativas fracassadas, ele põe a culpa nas condições da pista e se queixa do tênis apertado. O fato de que o projeto é humanamente impossível parece nunca o afetar.

Precisamos de certo tempo para assimilar tudo o que é exigido de nós. Analisemos rapidamente algumas das demandas radicais registradas nos evangelhos sinóticos:

Se alguém o ferir na face direita, ofereça-lhe também a outra. E se alguém quiser processá-lo e tirar-lhe a túnica, deixe que leve também a capa. [... ] Dê a quem lhe pede, e não volte as costas àquele que deseja pedir-lhe algo emprestado.

Mateus 5:39-40,42

Em tais passagens, Jesus descreve a resposta que o cristão deve dar quando provocado por alguém não crente. Mas seus ensinamentos não são meramente passivos: "Amem os seus inimigos [mesmo um Saddam Hussein] e orem por aqueles que os perseguem" (Mt5:44).

Jesus apresenta o divino Pai como nosso modelo. Assim como Deus derrama paz e bondade do mesmo modo sobre o justo e injusto, assim também nós devemos fazer. Qualquer um pode amar seus amigos, aqueles com quem tem afinidade e reciprocidade. A verdadeira piedade exige muito, muito mais. O Sermão do Monte continua:

Se o seu olho direito o fizer pecar, arranque-o e lance-o fora. [...] Se a sua mão direita o fizer pecar, corte-a e lance-a fora.

Mateus 5:29-30

Quando vier o chamado de Cristo, nossa resposta deve ser sincera: "Senhor, deixa-me ir primeiro sepultar meu pai", pediu o discípulo. "Mas Jesus lhe disse: 'Siga-me, e deixe que os mortos sepultem os seus próprios mortos'" (Mt 8:21-22).

Na renúncia — renúncia absoluta —, a família está incluída: "Se alguém vem a mim e ama o seu pai. sua mãe, sua mulher, seus filhos, seus irmãos e irmãs, e até sua própria vida mais do que a mim, não pode ser meu discípulo" (Lc 14:26). Jesus disse:

Bem-aventurados serão vocês quando, por minha causa, os insultarem, os perseguirem e levantarem todo tipo de calúnia contra vocês. Alegrem-se e regozijem-se, porque grande é a sua recompensa nos céus.

Mateus 5:11-12

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Não pensem que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada.

Mateus 10:34

Se o mundo os odeia, tenham em mente que antes me odiou.

João 15:18

Mais e mais, os preceitos se sucedem. Declarações extravagantes, exageradas. O Cristo de Deus não veio trazer a paz, mas a espada. Ele nos teria vestido não com túnicas, mas com a armadura de Deus. Ele contradiz nossas conclusões que afirmam que prosa é poesia, fala é canção, miopia é visão clara e as coisas tangíveis, visíveis e perecíveis podem ser a realização apropriada para um ser que inalou o impulso criativo de Deus.

A única reação sadia ao padrão evangélico de santidade é o temor e a perplexidade que beiram a aflição. Deveríamos nos sentir envergonhados pela Palavra, porque ela nos diz muito do que não queremos ouvir. Mas por que a maioria de nós não fica envergonhada? Por que a Palavra não nos exalta, amedronta e choca? Não é porque a desconhecemos — nós a ouvimos semana após semana. Por que ela não nos força a reavaliar a vida? Estamos de volta às nossas ilusões. Michel Quoist diz:

Estamos satisfeitos com nossa vidinha decente. Estamos contentes com nossos bons hábitos: nós os tomamos por virtudes. Estamos contentes com nossos pequenos esforços: nós os tomamos por progresso. Estamos orgulhosos de nossas atividades: elas nos fazem pensar que estamos nos doando. Estamos impressionados por nossa influência: imaginamos que ela transformará vidas. Estamos orgulhosos do que damos, entretanto ocultamos o que retemos. Podemos até mesmo estar confundindo um conjunto de egoísmos coincidentes com verdadeira amizade.

Voltem e anunciem a João o que vocês viram e ouviram: os cegos vêem, os aleijados andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados e as boas novas são pregadas aos pobres.

Lucas 7:22

Todas as estruturas da igreja devem revelar a marca do amor de Cristo dedicado aos pobres. Ao ignorar essa árdua sentença, a própria igreja se torna empobrecida, assim como bem pouco confiável e bem pouco convincente para pregar o evangelho com clareza e visão, e também infantilmente presa às quinquilharias da reputação, às conversas vazias da diplomacia, aos favores degradantes dos ricos, à idolatria das estruturas e à posição de proeminência.

Uma segunda teoria afirma que Jesus propõe princípios, em vez de regras. Ele não fala sobre aplicações práticas. Ele simplesmente propõe uma meta, um quadro ideal em direção ao qual devemos nos esforçar. Isso reduz Cristo ao nível de um romântico visionário: o ensino dele é bonito na teoria, mas nada prático na realidade. Com certeza, se o evangelho de Jesus fosse vivido, não haveria mais guerras internacionais, nem distúrbios nacionais ou disputas domésticas. No entanto, Cristo foi apenas um admirável reformador com muitas idéias grandiosas.

Em seguida, temos a solução da cidadania de segunda classe. Essa visão defende que a doutrina ética de Jesus foi proposta somente para uma classe particular. Há duas classes de cidadania no Reino de Deus: o perfeito e o comum. O último não é chamado para a perfeição. No entanto, o Sermão do Monte enfaticamente proclama a vocação universal de todos os cristãos à santidade. Não existe distinção entre o santo e o comum.

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Em verdade, essas razões para rejeitar o caminho de Jesus são mais palatáveis do que aquela usada por muitos cristãos: a ética evangélica é perturbadora demais, problemática demais para sobreviver. Vamos empurrá-la para debaixo do tapete e esquecê-la. Se você falar dela como é, as pessoas se afastarão.

Somos relutantes em estruturar nossa doutrina moral em torno do evangelho. Por exemplo, em três lugares diferentes, o Novo Testamento nos diz muito claramente que nossos pecados são perdoados na mesma proporção em que perdoamos aos outros. Essa verdade é descrita vividamente na parábola do servo impiedoso. Ele deve mais de 10 milhões de dólares ao seu mestre, enquanto outro servo, colega seu, deve-lhe a soma comparativamente insignificante de 25 dólares. Há uma desproporção enorme entre as dívidas. No entanto, apesar de seu mestre graciosamente perdoar-lhe a dívida, o primeiro servo não perdoa a de seu devedor. A moral é clara: se não perdoarmos nossos inimigos, nós mesmos não seremos perdoados (cf. Lc 6:37).

Por muito tempo, a teologia da confissão dos pecados não foi apresentada nessa perspectiva. No entanto, temos nos preocupado com o número de vezes e os tipos precisos de pecado que têm o perdão garantido. Consideramos os limites ultrapassados e a divisão equitativa da culpa. Quando perdoamos de fato, muito freqüentemente o fazemos também com um espírito de superioridade, usando o perdão como algo a se manter suspenso sobre a cabeça daqueles a quem permitimos por condescendência sair de uma situação difícil.

O Novo Testamento só é relevante se captarmos o significado fundamental das exigências radicais do evangelho, apesar de, ao mesmo tempo, compreender que nunca poderemos cumpri-las completamente. Nenhum de nós pode dizer "cumpri todos os mandamentos". Até certo ponto, nós sempre falhamos.

Pense mais uma vez no perdão. Em nosso coração, nenhum de nós perdoa completamente nosso inimigo do modo que deveríamos. Após a ressurreição, no encontro entre Jesus e os apóstolos nas praias do mar de Tiberíades, quando se poderia esperar, como diz Raymond Brown, "o impacto da glória insuportável", Jesus serve peixes e pães. Não há nenhuma menção, aparentemente nem mesmo nenhuma lembrança, da traição deles. Jamais uma repreensão ou mesmo uma referência indireta à covardia dos discípulos no tempo de teste. Nenhuma saudação sarcástica como: "Bem, meus amigos dos momentos bons apenas...". Nenhuma disposição para vingança, despeito ou repreensão humilhante. Apenas palavras de calor e ternura.

O mesmo aconteceu no cenáculo, onde Jesus disse: "Paz seja com vocês". Isso é mais que perdão. O silêncio de Jesus é primoroso. Para aprender o significado da amizade sincera, da delicadeza no diálogo, da sensibilidade em relação aos sentimentos dos outros e do amor que "não guarda rancor" (ICo 13:5) é preciso ouvir o perdão no coração de Jesus quando ele diz a Maria Madalena e à outra Maria na manhã da Páscoa: "Vão dizer a meus irmãos..." (Mt 28:10).

As demandas do evangelho nos levam à vívida consciência de nossa fraqueza e imperfeição. Elas nos aturdem, reduzem a auto-supervalorização e nos fazem perceber quão limitados somos. Essa percepção — quando permitimos que se infiltre no coração — nos afasta da presunção, da complacência e de uma auto-suficiência que nos envenenam espiritualmente.

A Palavra de Deus nos desperta para as nossas carências. Enquanto não submetermos nossa vida ao julgamento do evangelho e aos padrões de bondade e de virtude estabelecidas por Jesus, não poderá haver uma consciência profunda de que somos pecadores carentes de misericórdia. Quantos de nós de fato experimentaram a verdade de estar salvos — de que nós não nos salvamos, e na verdade somos pobres e fracos pecadores com falhas hereditárias e virtudes limitadas; não somos filhos de Deus por nosso mérito, mas pela misericórdia do Criador.

Se as demandas radicais da vida cristã nunca forem propostas e, em vez disso, nos conformarmos com o cumprimento morno de um conjunto frouxo de preceitos, quão facilmente nos tornaremos farisaicos e hipócritas. Tentamos nos salvar por nossas obras. Nunca experimentamos o mistério da redenção ou dependência amorosa de Deus.

Segundo nossos padrões invulneráveis de justiça e honra, estamos desempenhando muito bem no jogo cristão. Com que freqüência um cristão piedoso ora: "Perdoa-me, Senhor,

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porque pequei. Faz um ano desde minha última confissão. Fui à igreja todos os domingos e não fiz nada proibido. Não posso me lembrar de nada mais"? Esse tipo de confissão é uma terrível deturpação da doutrina cristã.

Se fechamos os olhos para as demandas radicais do Novo Testamento em nossa doutrina e ignoramos as implicações embaraçosas do preceito do amor universal, tornamos o cristianismo muito fácil e retiramos seu significado. Passamos a ser tão culpados quanto os fariseus, ignorando as questões importantes das difíceis leis da caridade, da misericórdia e da fé, enquanto cumprimos as leis positivas da igreja, que significam apenas os limites do compromisso cristão.

As demandas radicais de Jesus nos fazem lembrar diariamente nossas faltas e perceber que a salvação é dom gracioso de Deus. Neste ponto, chegamos ao núcleo da revelação. Se o evangelho nos diz qualquer coisa, se a igreja proclama somente uma coisa ano após ano, é que a salvação é um dom gracioso de Deus. O evangelho é a alegre notícia da redenção graciosa.

Vocês, porém, são geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo exclusivo de Deus, para anunciar as grandezas daquele que os chamou das trevas para a sua maravilhosa luz. Antes vocês nem sequer eram povo, mas agora são povo de Deus; não haviam recebido misericórdia, mas agora a receberam.

1 Pedro 2:9-10

Não fomos transportados para o reino do Filho amado de Deus por nosso mérito, mas por sua misericórdia:

Pois vocês são salvos pela graça, por meio da fé — e isto não vem de vocês, é dom de Deus — não por obras, para que ninguém se glorie. Porque somos criação de Deus realizada em Cristo Jesus para fazermos boas obras, as quais Deus preparou antes para nós as praticarmos.

Efésios 2:8-10

O evangelho nos agradeceria de uma vez por todas se entendêssemos que o slogan do Exército da Salvação, "Jesus salva", está muito mais próximo da mente e do coração de Cristo do que da legalidade e da moralidade.

A BÊNÇÃO

O mesmo tema está contido na primeira bem-aventurança: "Bem-aventurados os pobres em espírito, pois deles é o Reino dos céus" (Mt 5:3). Em seu sentido primitivo, a primeira bem-aventurança jamais pretendeu moralizar ou ameaçar ("afaste-se do dinheiro, da materialidade e de todas as necessidades pessoais ou outras").

Tampouco a primeira bem-aventurança aspirava ser uma simples promessa de compensação como qualquer pastor itinerante poderia propor ("viva como um pobre e alcançarás o céu"). Ao contrário, a bem-aventurança era uma alegre notícia, a grande boa nova de que a era messiânica se instaurara na história, a proclamação de que o dia da salvação há muito esperado finalmente chegara.

A questão crucial para determinar o sentido original dessa bem-aventurança é entender quem são os pobres que Jesus declarou bem-aventurados? Devemos entender "pobres" num sentido social, como os que são literalmente destituídos, empobrecidos, indigentes? Ou Jesus usa "pobres" num sentido religioso, para se referir àqueles que dependem inteiramente de Deus para tudo o que possuem e que percebem o próprio demérito e, desse modo, aceitam a salvação como o dom de Deus em Cristo Jesus?

Para compreender seu real significado, a passagem não pode ser tomada isoladamente. Antes, deve estar situado dentro do contexto de todo o evangelho, Jesus anuncia que os pobres

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têm um lugar privilegiado no reino. Vamos comparar o pobre da primeira bem-aventurança com as duas outras classes privilegiadas no evangelho.

O evangelho de Mateus nos fala que as crianças têm um direito especial no amor de Deus;

Naquele momento os discípulos chegaram a Jesus e perguntaram: "Quem é o maior no Reino dos céus?" Chamando uma criança, colocou-a no meio dele, disse: "Eu lhes asseguro que, a não ser que vocês se convertam e se tornem como crianças, jamais entrarão no Reino dos céus. Portanto, quem se faz humilde como esta criança, este é o maior no Reino dos céus.

Mateus 18:1-4

Não há dúvida de que é necessário aprender a ser como uma criança para entrar no reino. Mas para se captar todo o vigor da expressão "como crianças", nós precisamos perceber que a atitude judaica para com as crianças no tempo de Cristo era drasticamente diferente daquela que existe hoje. Temos a tendência a idealizar a infância, vê-la como a idade feliz da inocência, despreocupação e fé simples. Na comunidade judaica dos tempos do Novo Testamento, a criança era considerada sem nenhuma importância, não merecendo nenhuma atenção ou favor A criança era considerada com desprezo.

Para o discípulo de Jesus, ser como uma criança significa aceitar a si mesmo como pouco apreciado, sem importância. Esta compreensão de nós mesmos muda não somente o modo como vemos nosso valor, mas também o modo como vemos a graça salvadora de Deus. Se a criança judia recebesse dez centavos de mesada do pai no fim da semana, ela não os consideraria pagamento por varrer a casa, lavar a louça e assar o pão. Era um presente completamente imerecido, um gesto de absoluta generosidade de seu pai.

Jesus deu a esses pequenos desprezados o privilégio de seu reino e os apresentou como modelos para os discípulos. Eles deviam aceitar o dom do reino da mesma maneira que uma criança aceita a mesada. Se as crianças eram privilegiadas, não era porque tinham merecido tal privilégio, mas simplesmente porque Deus se agradava delas. A misericórdia do Senhor fluiu para elas total e completamente em razão da graça imerecida e da preferência divina.

Outro texto importante destaca o privilégio das crianças. O hino de louvor diz: "Eu te louvo, Pai, Senhor dos céus e da terra, porque escondeste estas coisas dos sábios e cultos e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, pois assim foi do teu agrado" (Lc 10:21).

A bênção de Deus recai sobre as crianças porque são criaturas desprezadas, não por causa de suas boas qualidades. Elas podem estar cientes de sua pouca importância, mas este não é o motivo pelo qual as revelações lhes são dadas. Jesus expressamente atribui a bênção que elas recebem à boa vontade do Pai, à eudokia divina. Os dons não são dados pela mais leve qualidade ou virtude pessoal. Eles são pura generosidade.

A bem-aventurança dos pequeninos, portanto, oferece uma clara compreensão do significado da bem-aventurança dos pobres. Na mentalidade da época do Novo Testamento, pobreza e infância eram consideradas com igual desprezo. No entanto, Jesus diz que Deus prefere os desfavorecidos- Deus se agrada em dar um lugar privilegiado no reino àqueles que o mundo considera os mais desgraçados.

Uma luz adicional é lançada sobre a primeira bem-aventurança, de modo surpreendente, pelo privilégio dos pecadores. Jesus está sentado à mesa na casa de Levi. Os escribas e fariseus interrogam porque Jesus come com os cobradores de impostos e pecadores. "Jesus lhes disse: 'Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes. Eu não vim para chamar justos, mas pecadores'" (Mc 2:17).

Os pecadores a quem Jesus dirigia a sua missão messiânica eram verdadeiros pecadores. Eles não tinham feito coisa alguma para merecer a salvação. Ainda assim, eles se abriram para o dom que lhes foi oferecido. Os presunçosos, em contrapartida, depositam sua confiança naquilo que fazem por merecer a partir dos próprios esforços, fechando o coração para a mensagem de salvação.

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Mas a salvação que Jesus prometeu não pode ser conquistada. Não pode haver barganha com Deus, como numa atmosfera trivial de mesa de pôquer: "Eu fiz isto, então você me deve aquilo". Jesus destrói totalmente a noção jurídica de que nossas obras exigem um pagamento em troca. Esse ensinamento está claramente estabelecido na parábola dos trabalhadores na vinha. Quando eles ficam sabendo que os homens que trabalharam apenas uma hora receberão o mesmo salário daqueles que labutaram o dia todo, os trabalhadores reclamam ao proprietário:

"Estes homens contratados por último trabalharam apenas uma hora, e o senhor os igualou a nós, que suportamos o peso do trabalho e o calor do dia". Mas ele respondeu a um deles: "Amigo, não estou sendo injusto com você. Você não concordou em trabalhar por um denário? Receba o que é seu e vá. Eu quero dar ao que foi contratado por último o mesmo que lhe dei. Não tenho o direito de fazer o que quero com o meu dinheiro? Ou você está com inveja porque sou generoso?".

Mateus 20:12-15

Nossas obras insignificantes não nos dão o direito de negociar com Deus. Tudo depende da boa vontade do Senhor. A salvação oferecida por Jesus é puramente gratuita, dirigida especialmente para os que não têm nenhum direito a ela, aqueles que são tão conscientes de seu demérito que devem confiar na misericórdia de Deus. Os presunçosos acreditam que conquistam a salvação pelo cumprimento da lei. Recusando-se a deixar tal loucura, eles rejeitam o amor misericordioso do Deus redentor.

E na miséria do pecador que Jesus vê a possibilidade de salvação. "Deles é o reino de Deus". Se na Rússia antiga o pecador era enviado para a Sibéria, na igreja ele é chamado para o reino. É um puro dom para quem não têm direito a ele. Esse é o próprio coração do evangelho e tema fundamental das bem-aventuranças: a falta de valor dos beneficiários do reino. Dizer que somos cifras não significa rebaixar nossa dignidade, mas destacar a gratuidade absoluta da promessa de Deus.

Desse modo, a condição privilegiada das crianças e dos pecadores derrama considerável luz sobre o significado primitivo da primeira bem-aventurança. Abençoados são os pobres. Abençoados são vocês, conscientes de sua falta de mérito e prontamente abertos à misericórdia divina.

A primeira bem-aventurança, portanto, não é uma promessa ou uma ameaça. Jesus alegremente proclama o amanhecer de uma nova era, a era messiânica que veio afinal. "Vocês, pobres; vocês, nadas; vocês, de pouca importância pelos padrões do mundo — vocês são abençoados. E a boa vontade de meu Pai de lhes conceder um lugar privilegiado no reino, não porque trabalharam tão arduamente, ou porque dizem, fazem ou tornam todas as coisas certas, mas porque meu Pai quer vocês".

A pobreza de espírito nos é apresentada como a predisposição indispensável para o discípulo de Jesus. No momento em que ficamos diante de Deus, gaguejando como o profeta Jeremias, com os pés no chão, conscientes de nossa pequenez e fraqueza, reconhecendo que Jesus salva, então a alta santidade recomendada por Jesus — "Sejam perfeitos como perfeito é o Pai celestial de vocês" (Mt 5:48) — começa a florescer dentro de nós. A principal postura do cristão é uma disposição infantil para com Deus, e nossa principal atitude, a de ação de graças.

Esse tipo de posição contrasta de forma nítida com o pensamento de muitos cristãos que desenvolveram um falso sentimento de segurança por cumprirem as leis da igreja. Conforme afirmou John McKenzie:

A moralidade destrói a religião deles. Eles sofrem de um problema legalista. Acreditam que o cumprimento das prescrições externas da lei garante automaticamente o cumprimento do propósito da lei. Mas, caso a minha adesão às leis (da qual posso verdadeiramente precisar) não me ajudar a atingir o

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objetivo final de minha vida, que é conhecer Cristo Jesus e viver o evangelho, então uma mera conformidade externa faz muito pouco, se é que faz alguma coisa.

Minha experiência do Pai, durante meu tempo com os Irmãozinhos de Jesus, não resultou em nenhum progresso súbito ou dramático em termos de virtude ou perfeição moral em minha vida. Após aquela experiência, posso não ter ficado nem um pouco melhor do que antes, mas, de algum modo, a vida tinha mudado. Tudo simplesmente foi transformado porque aceitei o fato de que sou aceito. Paul Tillich chama a isso graça.

Que diferença significativa quando trazemos essa compreensão à adoração! Somos os adoradores do amor redentor e da misericórdia do Deus que nos aceita. Somos imersos em gratidão e dependência. Nosso próprio ser é uma celebração, uma ação de graças permanente e perpétua a Deus. Os salmos nos lembram que, toda vez que o povo de Deus se reunir, uma atitude de alegre ação de graças deve ser a oferta de gratidão da assembléia (Sl 95:2; 100:4; 147:7). Se a comunhão significa ação de graças, o cristianismo significa pessoas alegremente agradecidas.

O cristão jubiloso é aquele que mantém um sentimento de temor e deslumbramento diante de Deus, que experimentou o sentimento de pertencer a uma comunidade redimida. Ele tem uma vívida gratidão de fé nesse grande dom. Esse crente se abriu para a verdade de que tudo o que possui vem de Deus, de que é completamente dependente de Cristo, de que "Jesus salva".

Naturalmente, em um certo dia, pode acontecer de ele adorar mais com desânimo do que com qualquer outra coisa. Neste vale de lágrimas, nenhuma vida cristã é uma espiral contínua e ascendente rumo ao topo da montanha. Porém, a orientação básica do cristão é a da alegria e da gratidão. Esse é o legado do mistério pascal, da morte e ressurreição de Jesus. Não somos os filhos de Deus por nosso mérito, mas pela misericórdia de Deus.

Essa é a marca que colocamos em cada celebração de adoração. Quando o dom da redenção graciosa se mostra sob o véu do símbolo, o clamor paulino emerge espontaneamente do coração: "Como Deus é rico em misericórdia! Com que excesso de amor ele nos amou" (cf. Ef 2:4).

Quando a luz dessa verdade impressionante se acende em nossa consciência, muitos de nós ficam profundamente comovidos durante alguns momentos ou horas; no entanto, retomam às ocupações normais de sua existência corriqueira sem atingir o esclarecimento. Não é o caso de Charles de Foucauld, o padre cuja vida e ministério inspiraram a formação dos Irmãozinhos de Jesus. A experiência abriu sua mente. E sinalizou o amanhecer de uma vida nova. Uma imensa alegria encheu seu coração, maior do que qualquer felicidade que ele alguma vez conhecera.

O que torna sua vida diferente da nossa é que seu sentimento de deslumbramento nunca desapareceu: "Tão logo acreditei que havia um Deus, compreendi que nada mais poderia fazer, a não ser viver exclusivamente para ele: minha vocação religiosa data do mesmo momento de minha fé".

CAPÍTULO DOIS

TR A N S P A R Ê N C I A

Compreender a verdade do evangelho é lançar sobre nossa face tanto a tristeza quanto a gratidão. Viver como Jesus viveu é partir do chão em direção ao mundo. "A imitação de Jesus

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Cristo", escreve George Montague, "exige a verdadeira assimilação de suas atitudes interiores e seu modo de pensar".

Romano Guardini declarou certa vez que Francisco de Assis "permitiu que, na sua personalidade, Jesus Cristo se tornasse transparente". Se for esse o significado de viver como cristão, por que as personalidades de tantos cristãos piedosos, decentes e corretos são tão opacas? Por que a paz de Cristo Jesus não reina em nosso coração, uma vez que fomos "chamados para viver em paz, como membros de um só corpo" (Cl 3:15)?

Por que a bondade, a compaixão e a confiança que Grande-Medrosa viu brilhando nos olhos do Pastor3 não brilham em nossos olhos? Por que nossa alegria, entusiasmo e gratidão contagiantes não afetam os outros com o amor por Cristo Jesus? Por que o encanto esplendoroso do Senhor não flui de nossa personalidade? Por que não somos janelas para a obra de Deus? Por que não somos transparentes?

Ter a mente de Cristo Jesus, pensar seus pensamentos, compartilhar seus ideais, sonhar seus sonhos, pulsar com seus desejos, substituir nossas reações naturais em relação às outras pessoas e situações pelo interesse de Jesus; e, ainda, assumir o sistema mental de Cristo tão completamente que "A vida que agora [Filho] vivo no corpo, vivo-a pela fé no [Filho] de Deus, que me amou e se entregou por mim" (Gl 2:20). Tudo isso não é o segredo ou o caminho para a transparência. E a própria transparência.

Muitas vezes nossa preocupação com os três desejos humanos mais básicos — segurança, prazer e poder — é o manto que encobre a transparência. A infinita luta para ter dinheiro suficiente, bons sentimentos e prestígio rende uma colheita rica de aflição, frustração, desconfiança, raiva, ciúme, ansiedade, medo e ressentimento. Esses poderosos desejos amparados pela emoção causam 99% do sofrimento auto-infligido e desnecessário em nossa vida. Eles focalizam continuamente nossa atenção no "eu" e nos impedem de ser transparentes, ofuscando a luz e obscurecendo "a glória de Deus na face de Cristo" (2Co 4:6).

João, o evangelista, fala do pecador como alguém em estado de trevas. "[Ele] anda nas trevas; não sabe para onde vai, porque as trevas o cegaram" (lJo 2:11). E o "eu" autogovernado que nos mantém presos numa série de movimentos e contramovimentos competitivos que nos induzem a manipular as pessoas e controlar as situações, o que, para a maioria de nós, destrói a paz e a serenidade interna de nossa vida.

Preso na busca por segurança, prazer e poder, nosso pensamento a cada momento está concentrado na sombria perseguição a uma felicidade ilusória, e ficamos, assim, desatentos ao Senhor da Luz. Nossos olhos não estão fixos em Cristo Jesus, mas em nosso "eu". Nós nos conformamos com um passeio de montanha-russa, com divertidos picos e vales vertiginosos, entremeados com longos períodos de quedas, empurrões e sofrimentos de diferentes graus.

Desde o início de seu ministério público, Jesus elevou a mente de seus ouvintes para além do nível do desejo básico e os advertiu para não se distraírem pelo excessivo interesse das coisas materiais:

Portanto, não se preocupem, dizendo: "Que vamos comer?" ou "Que vamos beber?" ou "Que vamos vestir?" Pois os pagãos é que correm atrás dessas coisas; mas o Pai celestial sabe que vocês precisam delas. Busquem, pois, em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas lhes serão acrescentadas. Portanto, não se preocupem com o amanhã, pois o amanhã trará as suas próprias preocupações. Basta a cada dia o seu próprio mal.

Mateus 6:31-34

No simbolismo bíblico, o coração é o olho do corpo. Os olhos ansiosos, agitados, embaçados de muitos cristãos representam as manifestações de um coração anuviado pelas

3 Grande-Medrosa (Much Afraid) e Pastor (Shepherd) são personagens do romanee Hinds'Feet on High Places (traduzido em português como Pés como os da corça nos lugares altos [São Paulo: Vida, 1989]), de Hannah Hurnard, uma alegoria sobre o esforço de elevação dos cristãos. (N. da T.)

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preocupações deste mundo. Os olhos límpidos de outros irradiam a simplicidade e a alegria de um coração fixo em Jesus Cristo, a Luz do mundo.

Quando o autor de Hebreus ordena ao leitor "[Tenhamos] os olhos fitos em Jesus, autor e consumador da nossa fé" (Hb 12:2), ele não somente dá uma prescrição simples para a transparência cristã, mas insiste numa reavaliação de todo o sistema de valores da pessoa, compreendendo que "onde estiver o seu tesouro, ali também estará o seu coração" (Lc 12:34).

O apóstolo Paulo teve a audácia de se vangloriar: "Nós, porém, temos a mente de Cristo" (ICo 2:16). A sua vanglória era validada por sua vida. A partir da conversão de Paulo, Jesus Cristo ocupou sua mente e seu coração. Cristo era a força cuja influência estava incessantemente em ação perante os olhos de Paulo (Fp 3:21). Ele era uma pessoa cuja voz Paulo podia reconhecer (2Co 13:3), que o fortalecia nos momentos de fraqueza (2Co 12:9), o iluminava, mostrava o significado das coisas e o consolava (ICo 1:4-5). Levado ao desespero pelos ataques difamadores dos falsos apóstolos, Paulo aceitava as visões e revelações do Senhor Jesus (2Co 12:1). Para Paulo, a pessoa de Jesus desvendava os mistérios da vida e da morte (Cl 3:3).

No romance de Harper Lee, To Kill a Mockingbird,4 Atticus Finch diz: "Você nunca entenderá um homem até que esteja no seu lugar e olhe o mundo pelos olhos dele". Paulo olhou pelos olhos de Jesus Cristo com tal sensibilidade que Cristo se tornou o "eu" do apóstolo (Gl 2:20).

Por que não poderia ser assim com todo cristão que anda no Espírito? Paulo insiste em que essa é a operação normal do Espírito em nossa vida. A transparência é a epifania de Cristo Jesus em nossa vida: eis o sentido da bela imagem registrada em 2Coríntios. Amédée Brunot escreve em Saint Paul and His Message:5

Em uma das passagens mais bem acabadas de sua correspondência, cujas leveza e lucidez sugerem o cálido raio de sol da Grécia sobre os mármores do Partenon, Paulo compara a mediação de Cristo a uma luz cujos raios brilham através de seus servos humanos e os transfigura (2Co 3:4ss.). O resplendor de Moisés quando ele desceu do Sinai não é nada comparado à transfiguração do cristão. Essa transfiguração torna-se uma transparência na qual as faces se misturam e os afetos se fundem. Trata-se de um abraço apaixonado (Fp 3:12-13). De agora em diante, o coração do cristão bate afinado com o coração de Cristo.

Paulo foi um testemunho vivo de um fenômeno não extraordinário na existência humana: nós nos tornamos semelhantes àqueles a quem amamos.

A VIDA DE CRISTO

"No último e mais importante dia da festa, Jesus levantou-se e disse em alta voz: 'Se alguém tem sede, venha a mim e beba. Quem crer em mim, como diz a Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva'" (Jo 7:37-38). Uma vez que Jesus ainda estava preso pelas limitações humanas da carne mortal, ele não pôde se tornar, nas corajosas palavras de Paulo, "o Filho de Deus com poder" (Rm 1:4). Ele não pôde ser glorificado até que fosse crucificado. Todo o propósito de seu sofrimento, de sua morte e ressurreição redentoras era o de compartilhar conosco os frutos de seu triunfo pascal.

Na glorificação de Jesus há o que Edward Schillebeeckx chamou de "transferência de poder": o Pai concede seu poder real a Cristo, a quem torna o Kyrios. O Senhor Jesus, então, derrama o Espírito Santo para formar o povo santo de Deus, uma comunidade de profetas e amantes que se renderá ao mistério do fogo do Espírito que queima por dentro, que viverá em fidelidade cada vez maior à Palavra irresistível, onipresente. Um povo que entrará no centro de tudo aquilo que é, no próprio coração e mistério de Deus, no centro daquela chama que consome e purifica e deixa tudo incandescente com paz, alegria, coragem e amor excessivo.

4 Traduzido em português como O sol é para todos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. (N. da T.)5 Traduzido em português como São Paulo e sua mensagem. São Paulo: Flamboyant. (N. da T)

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"Não apaguem o Espírito", exorta Paulo (lTs 5:19). Resistir ao Espírito Santo é anular o poder do mistério pascal e zombar do maior ato de amor que o mundo já conheceu. No evangelho de João, o único pecado mencionado é blasfêmia — a rejeição consciente, deliberada, do Espírito de Deus.

Ainda conforme o franciscano Robert Powell e outros observaram, a igreja vem sendo atualizada, mas não renovada. A igreja, como um todo, ainda vasculha o horizonte esperando o brilho ígneo do novo Pentecostes. O comunista que aceita Karl Marx, mas não sua doutrina, pouco difere do cristão que aceita Jesus Cristo, mas se recusa a moldar sua vida de acordo com o ensinamento de Cristo.

Paulo escreveu aos filipenses: "Pois, como já lhes disse repetidas vezes, e agora repito com lágrimas, há muitos que vivem como inimigos da cruz de Cristo. O destino deles é a perdição, o seu deus é o estômago e eles têm orgulho do que é vergonhoso; só pensam nas coisas terrenas" (Fp 3:18-19). Paulo ainda chora por causa da debilidade, da extrema falta de sinceridade, do adultério espiritual, da indiferença à oração, da ignorância sobre a Palavra de Deus, da religiosidade acomodada e da indolência apostólica que mancham a vida cristã no mundo de hoje.

Quando Jesus Cristo se revela através do evangelho, o qual é ativo e fecundo, ele pede uma resposta espontânea. Sua mensagem não é uma renovação de garantia para continuarmos fazendo exatamente o que temos feito, mas, escreve Edward O'Connor, "uma convocação para o trabalho de eliminar de nossa vida, com fidelidade e perseverança, tudo em nós que é contrário à obra e vontade do seu Espírito Santo para nós". Fé significa que estamos prontos para agir na Palavra. Jesus é cristalino:

Nem todo aquele que me diz: "Senhor, Senhor", entrará no Reino dos céus, mas apenas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus. Muitos me dirão naquele dia: "Senhor, Senhor, não profetizamos em teu nome? Em teu nome não expulsamos demônios e não realizamos muitos milagres?" Então eu lhes direi claramente: Nunca os conheci. Afastem-se de mim vocês, que praticam o mal!

Portanto, quem ouve estas minhas palavras e as pratica é como um homem prudente que construiu a sua casa sobre a rocha. Caiu a chuva, transbordáramos rios, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, e ela não caiu, porque tinha seus alicerces na rocha. Mas quem ouve estas minhas palavras e não as pratica é como um insensato que construiu a sua casa sobre a areia. Caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, e ela caiu. E foi grande a sua queda.

Mateus 7:21-27

A fé autêntica, evangélica, não pode ser separada de uma disposição de agir na Palavra de Deus conforme as oportunidades se apresentarem. Sempre que a fé é aceita apenas como um sistema fechado de doutrinas bem definidas, nós perdemos contato com o Deus vivo. A fé que salva é uma rendição a Deus. "Dizer 'sim' na fé implica um constante pôr-se a caminho", escreve Bernard Haring, "uma disposição sempre renovada para receber a Palavra de Jesus e agir nela".

S0ren Kierkegaard, o pai do existencialismo cristão, descreve dois tipos de cristãos: os que imitam Jesus Cristo e um segundo tipo de pouco valor, aquele que fica contente em admirar o primeiro.

A distinção de Raymond Nogar entre as "pessoas de pinturas" e as "pessoas de dramas" coincide com Kierkegaard. As pessoas de pinturas vêem o evangelho em segurança, a uma certa distância, como alguém aprecia a Ultima ceia de Salvador Dali na Galeria Nacional de Arte, em Washington. As pessoas de dramas não são meras espectadoras, mas, como o público atento que assiste à tragédia grega Antígona, elas são atingidas pessoalmente no drama da morte e ressurreição de Jesus.

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Muitas vezes, a retórica que usamos para descrever nossa vida em Cristo exibe apenas uma leve semelhança com o que realmente somos. Orgulhamo-nos do que estamos oferecendo, pois isso esconde o que estamos sonegando. Permitimo-nos acreditar que, só porque somos capazes de um sentimento piedoso, somos capazes de amar. Thomas Merton escreve:

Uma dimensão dessa conveniente espiritualidade é nossa total insistência em ideais e intenções, em completo divórcio com a realidade, com as ações e o compromisso social. Tudo o que interiormente desejamos, tudo com o que sonhamos, tudo o que imaginamos: isso é o belo, o divino e o verdadeiro. Pensamentos bonitos são suficientes. Eles substituem tudo o mais, incluindo a caridade, até mesmo a vida em si.

O que assistimos é a avareza, a ganância desmedida e a exploração do pobre no seio da comunidade. Freqüentemente, nossa reação é denunciar os outros e nos afastar deles; no entanto, todos estamos envolvidos.

O evangelho exige de nós honestidade dolorosa. Nada mais do que isto: devemos ser sinceros. Vá à luta pelo dinheiro e torne-se um hedonista ("Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos") ou arrependa-se e retorne ao espírito do evangelho. Somos chamados para viver como profetas e amantes no Espírito de Jesus Cristo. Não podemos viver uma mentira, pois estaremos enganando a igreja universal e a congregação local sobre aquilo que esperam de nós. Thomas Merton observa:

O que o evangelho de Jesus Cristo nos oferece não é uma falsa paz que nos permita evitar a luz implacável do julgamento, mas a graça para corajosamente aceitar a verdade amarga que nos é revelada. Abandonar nossa inércia, nosso egoísmo e submeter-nos completamente às demandas do Espírito, rogando sinceramente por ajuda e dedicando-nos generosamente a cada esforço que Deus exigir de nós.

Paulo escreve aos tessalonicenses: "Como homens aprovados por Deus para nos confiar o evangelho, não falamos para agradar pessoas, mas a Deus, que prova o nosso coração" (ITs 2:4). Eis a essência da perfeita sinceridade: não se preocupar com nada, exceto com o julgamento de Deus sobre nossas ações; não mudar nossa atitude para satisfazer a pessoa que está conosco; não defender uma opinião quando se está só e adotar outra em público, mas falar e agir como na presença de Deus, que pode provar nosso coração. Sinceridade significa procurar tornar o homem externo cada vez mais de acordo com o homem interno; ser simplesmente verdadeiro consigo mesmo, de forma que nenhum aspecto humano possa nos tornar falsos.

No início da história cristã, Agostinho acusou: "Muitos que chegam perto do caminho da fé afastam-se amedrontados pela vida perversa dos maus e falsos cristãos. Quantos, meus irmãos, vocês acham que são os que querem se tornar cristãos, mas são repelidos pelos maus modos dos cristãos?".

Se aquele que está atrás da verdade descobre que os cristãos estão do mesmo modo ensimesmados, repletos de culpa, desesperados, inseguros de seus fundamentos e assombrados pelos mesmos medos — semelhantes a muitos que, no mar, se sentem num ambiente hostil e, assim, vêem-se desorientados —, não é de admirar que tal indivíduo não sinta atração pela igreja. Uma mulher de 23 anos, fazendo um trabalho acadêmico na Universidade de Paris, escreveu o seguinte:

Para mim, um cristão é ou um homem que vive em Cristo ou um impostor. Vocês, cristãos, não percebem que é com relação a isto — ao testemunho quase superficial que vocês dão de Deus — que nós os julgamos. Vocês deveriam irradiar Cristo. Sua fé deveria fluir para nós como um rio de vida. Deveriam nos

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contaminar com seu amor por ele. E assim, então, que Deus, que era impossível, se tornaria possível para o ateu e para aqueles de nós cuja fé oscila. Não podemos evitar o choque, o transtorno e a confusão que sentimos ao ver um cristão que seja, de fato, como Cristo. E não o perdoamos quando ele não o é.

A mulher, sem o saber, reiterou o que o cardeal Emmanuel Suhard escreveu numa pastoral em 1947: "A grande marca de um cristão é aquela que nenhuma outra característica pode substituir, isto é, o exemplo de uma vida que só pode ser explicada em termos divinos".

É sintomático que, apesar de a igreja existir há 2 mil anos, a maioria das pessoas ainda ignore o cristianismo. Por quê? Porque a presença visível de Jesus Cristo raramente está presente nos cristãos como um todo. Nunca iremos levar as pessoas para Jesus Cristo e para o evangelho simplesmente fazendo discursos sobre ambos. Edward Schillebeeckx é categórico: "... as pessoas, falando sem rodeios, estão fartas de nossa pregação. Elas querem uma fonte de força para sua vida. Somente poderemos oferecer essa força tornando-a ativamente presente em nossa própria vida".

O contato com os cristãos deve ser uma experiência capaz de provar às pessoas que o evangelho é um poder que transforma toda a vida. Em vez disso, nossa presença no mundo é freqüentemente marcada por total falta de sinceridade, diluição da graça e fracasso para agir na Palavra.

A Palavra de Deus não faz rodeios: "Contra você, porém, tenho isto: você abandonou o seu primeiro amor. Lembre-se de onde caiu! Arrependa-se e pratique as obras que praticava no princípio" (Ap 2:4-5). Paulo expressa desgosto e apreensão semelhantes sobre a fé dos coríntios: "O que receio, e quero evitar, é que assim como a serpente enganou Eva com astúcia, a mente de vocês seja corrompida e se desvie da sua sincera e pura devoção a Cristo" (2Co 11:3).

Aqui se vê um homem que verdadeiramente agia na Palavra de Deus. Paulo se importava apenas com o julgamento de Jesus Cristo e não com o julgamento dos homens. E preocupava-se mais com a satisfação ou insatisfação do Deus vivo do que com a aprovação de seus semelhantes.

Paulo é testemunha corajosa da realidade do Deus invisível e poderoso exemplo para muitos de nós que se influenciam demais pela opinião dos outros e se preocupam tanto em manter certa imagem aos olhos da comunidade, desejosos apenas de ser apreciados e aceitos por qualquer grupo ao qual se associem, e não especialmente preocupados sobre sua imagem aos olhos de Deus.

De outro modo, não negligenciaríamos com tanta freqüência as coisas que somente Deus vê, como a oração privada e atos reservados de bondade. Merton escreve:

A falta de uma intenção pura sutilmente deteriora tudo o que fazemos, de forma que metade da nossa vida se torna uma mentira. Nunca podemos ficar à vontade. Mas fazer coisas que ninguém jamais tomará conhecimento com sinceridade absoluta, da mesma forma como fazemos as que as pessoas podem ver, indica alto grau de santidade.

As Escrituras não existem para transmitir idéias inertes. É um chamado para amar, e o amor que não leva à ação não é amor. Todos os dias de nossa vida, a Palavra deve ser um imperativo para redescobrir a verdade que, nas palavras de Hans Küng, "todo o segredo e o centro da existência humana encontram-se na pessoa de Jesus Cristo".

Na minha opinião, a maior necessidade da igreja hoje é conhecer Jesus Cristo como Senhor e Salvador. Esse é o tema central de toda a doutrina do evangelho de João: "Para que vocês creiam que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus e, crendo, tenham vida em seu nome" (Jo 20:31).

Mas tal conhecimento é mais do que um reconhecimento casual de que Jesus viveu e morreu e ressuscitou. É o tipo de conhecimento que nos permite mudar. É um encontro com alguém que altera o próprio curso de nossa vida. Conforme observa Ralph Martin:

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... não é incomum a muitos cristãos ter uma idéia bastante incompleta do que a Escritura diz sobre Jesus Cristo. Muitos têm uma vaga idéia de Jesus como "um sujeito bom" que ajudou os pobres e disse para as pessoas se amarem umas às outras. Eles operam com uma noção indistinta, quase simbólica, de Jesus como o símbolo de uma idéia de bondade de um liberal.

Aqueles que dizem: "Jesus nunca feriria outra pessoa" muitas vezes pretendem, com isso, descartar a possibilidade de que o Mestre também pediria a qualquer um para que se arrependesse ou passasse pela dor de se reconhecer carente. Crer que tudo o que Jesus nos pediu é que sejamos gentis uns com os outros é substituir o Cristo de Paulo pelo Cristo do humanismo cristão.

Em Hebreus, lemos: "Livremo-nos de tudo o que nos atrapalha e do pecado que nos envolve, e corramos com perseverança a corrida que nos é proposta" (Hb 12:1). Na mesma carta se diz: "Adoremos a Deus de modo aceitável, com reverência e temor, pois o nosso 'Deus é fogo consumidor!'" (Hb 12:28-29). Esse Deus não é Cristo, o humanitário, Cristo, o mestre das relações interpessoais, ou Cristo, o camarada. E o Cristo, Senhor e Salvador, que nos chama ao arrependimento, muda nossa vida e nos coloca em uma nova direção. F. X. Durrwell escreve: "O conhecimento de Jesus Cristo como Senhor redentor é o único que tem algum valor para nós".

CONVERSÃO CONTÍNUA

A causa da maioria dos fracassos em agir na Palavra pode ser creditada à ignorância, à desatenção ou à insuficiente estima pela pessoa de Cristo. Um pouco de boa vontade para com o mundo substitui tanto a conversão radical quanto a expressa morte do "eu" que o evangelho exige. Não queremos um Deus que nos mude ou nos desafie. O cristianismo autêntico ecoa na primeira carta aos coríntios:

Os judeus pedem sinais miraculosos, e os gregos procuram sabedoria; nós, porém, pregamos a Cristo crucificado, o qual, de fato, é escândalo para os judeus e loucura para os gentios, mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é o poder de Deus e a sabedoria de Deus.

ICoríntios 1:22-24

Se o povo de Deus não está ouvindo o chamado ao arrependimento ou suplicando seu poder para cumpri-lo, será que é porque os ministros da Palavra estão pregando outro Jesus Cristo do púlpito?

Não há ninguém na comunidade cristã que não seja chamado para a conversão contínua. Não há ninguém que ainda não tenha se deparado com o trabalho de construir a imagem de Jesus Cristo em sua vida pela prática regular, diária, das virtudes cristãs. E conforme observa Edward O'Connor, "você não pode se esquivar desse assunto". Paulo escreve: "Mas esmurro o meu corpo e faço dele meu escravo, para que, depois de ter pregado aos outros, eu mesmo não venha a ser reprovado" (ICo 9:27). "Não se deixem enganar: de Deus não se zomba. Pois o que o homem semear, isso também colherá" (Gl 6:7).

O tom do Cristo de Deus nem sempre é doce e consolador. O evangelho proclama as boas-novas da salvação graciosa, mas não promete um piquenique num gramado verde. No homem Jesus, nas suas palavras, o Deus invisível torna-se audível. E Deus convulsionou todo o ser de Jesus no clamor: "O Reino de Deus está próximo. Arrependam-se e creiam nas [boas-novas]!" (Mc 1:15).

O cristianismo, portanto, envolve bem mais do que o engajamento em lutas pelos direitos humanos, causas ambientais ou programas de paz. A plenitude da vida no Espírito é mais do que encontrar Cristo nos outros e servi-lo ali. E uma convocação à santidade pessoal, à conversão

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contínua e à nova criação pela união com Cristo Jesus. "Portanto, se alguém está em Cristo, é nova criação. As coisas antigas já passaram; eis que surgiram coisas novas!" (2Co5:17).

Por essa razão, o evangelho de João é especialmente importante para os cristãos contemporâneos. Por quê? Porque, em contraste com os sinóticos e conforme argumenta John McKenzie, "o evangelho de João não é o evangelho do Reino, mas o evangelho do próprio Jesus". E impossível exagerar a centralidade de Jesus no quarto evangelho — central não somente porque ele é o protagonista e mestre, mas porque ilumina cada página do livro.

Na provocativa obra The Art and Thought of John [A arte e o pensamento de João), Edgar Bruns escreve: "O leitor é [...] cegado pelo brilho da sua imagem, passando a ser como um homem que olha muito tempo para o sol: incapaz de ver qualquer outra coisa a não ser a luz do astro". O único pecado para João é resistir ao Espírito Santo, rejeitar Jesus e não agir conforme sua Palavra.

O tema dominante da segunda parte do evangelho de João é a união com o Senhor. Por meio da bela imagem da videira e seus ramos, Jesus chama todas as pessoas para si. "Permaneçam em mim, habitem em mim, recorram a mim, venham a mim", ele chama (cf. Jo 15:4ss.). De modo significativo, Jesus não diz: "Venham para um dia de renovação, um retiro, um grupo de oração, uma liturgia", mas "venham a mim".

Seria essa a superioridade presunçosa de um religioso fanático? Sim, não fosse ele o Salvador do mundo. Trata-se de um egoísta ou o Senhor Ressuscitado que deve ser proclamado como a única esperança do mundo. Ninguém mais ousaria dizer:

Eu sou o caminho, a verdade e a vida.

João 14:6

Eu sou a luz do mundo.

João 8:12

Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Se alguém comer deste pão, viverá para sempre.

João 6:51

Quem crê no Filho tem a vida eterna; já quem rejeita o Filho não verá a vida.

João 3:36

Na prisão, Paulo não conseguiu pensar em nada maior do que desejar aos efésios que:

... com as suas gloriosas riquezas, ele [Deus] os fortaleça no íntimo do seu ser com poder, por meio do seu Espírito, para que Cristo habite no coração de vocês mediante a fé; e oro para que, estando arraigados e alicerçados em amor, vocês possam, juntamente com todos os santos, compreender a largura, o comprimento, a altura e a profundidade, e conhecer o amor de Cristo que excede todo conhecimento — para que vocês sejam cheios de toda a plenitude de Deus.

Efésios 3:16-19

Paulo percebeu que, no Dia do Julgamento, nossa vida será avaliada e estimada em termos de nossa relação pessoal com o Jesus de Nazaré exaltado. Por isso, pôde escrever realisticamente aos filipenses: "Considero tudo como perda, comparado com a suprema grandeza do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor, por quem perdi todas as coisas. Eu as considero como esterco para poder ganhar Cristo" (Fp 3:8).

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O apóstolo era como um homem obcecado: a mente estava inflamada com um só pensamento e o coração queimava em um só desejo: conhecer Cristo Jesus, o Senhor redentor. (Não é de admirar que, para o exegeta François Amity, o conceito fundamental de Paulo é a salvação.) Depois de refletir, Paulo virou-se e disse aos colossenses para esperarem um pouco:

Portanto, já que vocês ressuscitaram com Cristo, procurem as coisas que são do alto, onde Cristo está assentado à direita de Deus. Mantenham o pensamento nas coisas do alto, e não nas coisas terrenas. Pois vocês morreram, e agora a sua vida está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo, que é a sua vida, for manifestado, então vocês também serão manifestados com ele em glória.

Colossenses 3:1-4

O Cristo de Paulo era não somente um grande mestre, exemplo de um grande homem ou um símbolo das aspirações humanas mais nobres: ele era Senhor e Salvador. Reinterpretar Jesus de qualquer outro modo é esvaziar o cristianismo de sua essência.

CAPÍTULO TRÊS

D I S T R A Ç Õ E S

Há certas questões urgentes que todo cristão deve responder com total sinceridade. Você tem fome de Jesus Cristo? Você anseia passar um tempo sozinho com ele em oração? Ele é a pessoa mais importante em sua vida? Ele preenche sua alma como uma canção alegre? Ele está em seus lábios como um grito de louvor? Ou ele está sufocado por distrações, anulado pelo orgulho? Você consulta com ansiedade suas memórias, seu Testamento, para aprender mais sobre ele? Você tem sede da água viva do seu Espírito Santo? Você está se esforçando para morrer diariamente para qualquer coisa que iniba, diminua ou ameace sua amizade com ele?

Para verificar onde você realmente está com o Senhor, recorde o que o entristeceu no último mês. Foi a consciência de que você não ama Jesus o suficiente? De que você não buscou a sua face em oração com a freqüência necessária? De que você não se importou com sua pessoa o bastante? Ou você ficou abatido por causa de uma falta de respeito, de uma crítica de uma figura de autoridade ou em razão de suas finanças, da falta de amigos, de medos sobre o futuro ou pelo aumento de peso?

De modo inverso, o que o alegrou no último mês? Uma reflexão sobre a sua eleição para a comunidade cristã? A alegria de dizer suavemente: "Aba, Pai"? A tarde em que você se retirou durante duas horas, levando só o evangelho como seu companheiro? Uma pequena vitória sobre o egoísmo? Ou as fontes de sua alegria foram um carro novo, uma roupa de grife, um grande evento, o sexo, um aumento salarial ou a perda de meio quilo em seu peso.7

Quando todos os cristãos se rendem ao mistério do fogo do Espírito que queima por dentro; quando nos submetemos à verdade salvadora de que alcançamos a vida somente através da morte, assim como nos voltamos para a luz somente através das trevas; quando reconhecemos que o grão de trigo deve se enterrar no chão e morrer, assim como Jonas deve ser sepultado na barriga da baleia e o jarro de alabastro do "eu" deve ser quebrado para que os outros percebam a doce fragrância de Cristo; quando respondemos ao chamado de Jesus "venha a mim", então o poder ilimitado do Espírito Santo será liberado com surpreendente força na igreja e no mundo.

Mas isso só acontecerá se nos apartarmos da vida que estamos acostumados a viver, uma vida regida por nossos desejos de segurança, prazer e poder. São esses desejos que nos impedem de reconhecer a verdade de nossa necessidade da misericórdia de Deus. São esses desejos que

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nos impedem de tirar os resíduos embaçadores de nossa vida sem Deus e nos obstruem a transparência.

Segurança

Em um sentido muito óbvio, o culto à segurança inclui os crentes que com freqüência adoram mais no altar do sucesso do que no altar do Deus vivo, que se curvam mais regularmente às vacas sagradas da segurança e do conforto do que ao domínio soberano de Jesus Cristo. A síndrome da segurança é facilmente reconhecível quando o assunto é dinheiro. Uma pessoa pode se sentir segura com apenas dez dólares aqui e agora. Outra pessoa pode se sentir insegura com 100 mil dólares no banco.

A quantia não importa. O tipo de segurança que buscamos (financeira, de relacionamento, profissional) não tem importância. O que importa é a quantidade de tempo, energia, pensamento e atenção que investimos na desgastante luta para alcançar as condições que acreditamos ser indispensáveis para nos sentirmos seguros. Os detalhes de nossas listas de compra são bastante arbitrários, mas o desejo de segurança é muito exigente e afasta nossa mente do chamado superior para que nossos pensamentos e nosso coração sejam habitados por Cristo Jesus.

Num sentido menos óbvio, o desejo de segurança é, na maioria das vezes, uma questão da nossa programação emocional. Meus sentimentos de insegurança não são uma conseqüência inevitável de circunstâncias externas (como, por exemplo, a falência nos negócios) ou de ações de outras pessoas. A vontade de alcançar tranqüilidade e estabilidade aloja-se em mim. Não está à mercê de caprichos, fantasias e forças externas imprevisíveis. O que me traz a sensação de insegurança se liga às minhas necessidades emocionais viciosas, que devem sempre ser satisfeitas. Quando a realidade não atende minhas expectativas, fico frustrado, bravo, amargo, ansioso e ressentido.

Por exemplo, digamos que você me fale que achou este livro um desperdício completo de tempo e dinheiro. Sua crítica desperta a minha programação interna e me afundo num pântano de tristeza, pena de mim mesmo e depressão. A realidade não atendeu minhas expectativas. Eu esperava, no mínimo, uma crítica construtiva, possivelmente positiva, e talvez até mesmo um elogio.

No entanto, não foi você quem destruiu meu equilíbrio interno. Eu fiz isso. Excessivamente preso ao meu preconcebimento de que necessito me sentir seguro (neste caso, com sua aprovação) e teimosamente convencido do como o mundo deveria funcionar, eu me privo de forma prejudicial dos frutos do Espírito Santo e da vida plena que Jesus prometeu.

O Senhor passou pelo mundo como uma figura de luz e verdade, às vezes temo, às vezes bravo, sempre justo, amoroso e eficaz, mas nunca inseguro. Uma palavra, um gesto, umas poucas sílabas traçadas na areia, uma ordem como "venham, sigam-me!", e destinos foram mudados, espíritos renascidos. Ele conversou com samaritanos, prostitutas e crianças e lhes falou da verdade, da misericórdia e do perdão, nunca com sequer um traço de insegurança obscurecendo seu semblante. Passando seu tempo com aqueles que eram desaprovados por todos, ele nunca vacilou em seu desejo de lhes oferecer seu reino.

Quando nos apegamos a um miserável sentimento de segurança, a possibilidade de transparência torna-se totalmente nula. Da mesma maneira que o amanhecer da fé exige o pôr do sol de nossa anterior incredulidade, de nossas falsas idéias e convicções equivocadas e circunscritas, assim também o amanhecer da crença exige o abandono de nossa ânsia pelas garantias materiais e espirituais. A segurança no Senhor Jesus implica o fim de nossos cálculos e estimativas de custos.

O tipo de confiança que depende da resposta a ser recebida é falso, baseado apenas na ansiedade. Na insegurança assustadiça, o crente suplica e até mesmo exige do Senhor garantias tangíveis de que seu afeto será retribuído. Se não as receber, fica desanimado, frustrado, talvez mesmo convencido de que tudo está acabado ou de que nunca realmente existiu. Se as receber, se tranqüiliza, mas só por algum tempo. Ele precisa de provas adicionais — cada uma menos convincente que a anterior. No fim, essa falsa confiança morre de pura frustração.

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O que o cristão inseguro não aprendeu é que as garantias tangíveis, por mais valiosas que possam ser, não podem gerar confiança, sustentá-la ou fornecer qualquer certeza de sua presença. Jesus Cristo nos chama para que entreguemos nosso "eu" independente à completa confiança. A transparência, a certeza e a paz só podem ser alcançadas quando essa decisão é ratificada e a ansiedade pela confiança, extinta.

O mistério da ascensão do Senhor contém uma importante lição para o obcecado por segurança. Jesus disse a seus discípulos: "Eu lhes afirmo que é para o bem de vocês que eu vou" (Jo 16:7). Por quê? Como a partida de Jesus poderia beneficiar os apóstolos? Em primeiro lugar, conforme ele disse: "Se eu não for o Conselheiro não virá para vocês; mas se eu for, eu o enviarei" (Jo 16:7). Em segundo lugar, porque enquanto Jesus ainda fosse visível na terra, sempre haveria o perigo de que os apóstolos se tornassem tão apegados à visão da sua carne humana que poderiam abandonar a certeza da fé e se inclinar à evidência tangível dos sentidos. Ver Jesus em pessoa era bom, mas "felizes os que não viram e creram" (Jo 20:29).

No inverno de 1952, durante um dos combates mais pesados da Guerra da Coréia, dois cabos da marinha estavam agachados na trincheira de um posto de observação avançado, quase cem metros dentro das linhas inimigas. Jack Robison e Tim Casey eram amigos havia mais ou menos um ano. Eles se conheceram na escola de armamentos de Quântico, Virgínia, saíram juntos em licença e depois viajaram para Camp Pendleton, Califórnia, para o treinamento de infantaria avançada. Seu regimento chegara em Pusan no outono de 1951.

Passava um pouco da meia-noite e uma neve clara caía. Acotovelando-se na trincheira, os dois passavam um cigarro de um lado para o outro quando uma granada, arremessada por um norte-coreano escondido a cerca de 25 metros de onde eles estavam, caiu bem no meio deles. Casey percebeu o explosivo primeiro, displicentemente jogou fora o toco de cigarro e deitou-se sobre a granada, que detonou imediatamente; o abdome de Casey absorveu a explosão. Ele piscou para Robison e rolou morto.

Quatro anos mais tarde, Robison entrou para a vida religiosa. Quando pronunciou os votos solenes, em 1960, ele adotou um novo nome para simbolizar sua nova vida em Cristo Jesus. Mudou seu primeiro nome de Jack para Casey, na esperança de que o espírito de auto-sacrifício que animara a vida de Tim Casey caracterizasse também o seu. Ele também ajudou a mãe de Casey, que era viúva, e passou a dividir suas férias de Natal entre a própria família, em Rhode Island, e a sra. Casey, em Chicago.

Certo verão, o padre Casey Robison fez uma visita surpresa à sra. Casey. Ele estava se sentindo cansado e deprimido. Os dois seguiram o procedimento habitual de assistir às novelas da tarde na televisão, segurando as mãos um do outro o tempo todo. Depois do jantar, sentaram-se na sala de estar, tomando uma bebida e lembrando os dias em que Tim era vivo. A depressão do padre se prolongava. Inesperadamente, ele perguntou:

Mãe, você acha que Casey realmente me amava? Ela sorriu.

Oh, Jack, você me vem com cada uma! — disse num lânguido sotaque irlandês. — Você nunca fala sério!

Estou falando sério — Robison respondeu. Havia um medo nos olhos da mulher.

Agora pare de zombar de mim, Jack.

Eu não estou zombando, mãe.

Ela o encarou com descrença. Então o medo se transformou em fúria. A sra. Casey nunca havia blasfemado ou tomado o nome do Senhor em vão. Mas, naquela noite, ela se levantou e gritou:

— Jesus Cristo, homem, que mais ele poderia fazer por você? Então ela se dobrou na cadeira, enterrou a cabeça em seu peito

e começou a chorar. A mesma frase foi repetida várias vezes, até se tomar insuportável:

— Que mais ele poderia fazer por você?

Depois do que pareceu um longo tempo, ela deu um pálido e pequeno sorriso, e disse com suavidade:

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— Ah, Jack, acho que todos nós precisamos reconfirmar essas certezas de vez em quando.

Foi nessa noite que o padre Casey Robison abandonou a insegurança e encontrou a paz que vem com a genuína confiança.

"O Diabo nunca se alegra mais", disse Francisco de Assis, "do que quando rouba a paz do coração de um servo de Deus". Paz e alegria não terão lugar quando o coração de um cristão almejar um sinal depois do outro do misericordioso amor de Deus. Nada é dado como certo, nem recebido com gratidão. Os olhos preocupados e a testa franzida do crente ansioso são os sintomas de um coração em que a confiança não encontrou morada.

O próprio Senhor precisa atravessar conosco todas as sombras do espectro emocional, da raiva às lágrimas, e então ao regozijo. Mas a verdade pungente permanece: não confiamos nele. Não temos a mente de Cristo Jesus. "Não tenham medo, pequeno rebanho, pois foi do agrado do Pai dar-lhes o Reino" (Lc 12:32). As palavras de sra, Casey deveriam bastar também para nós: "Jesus Cristo, que mais ele poderia fazer por você?".

A insegurança não somente paralisa nossa relação com o Deus vivo, mas também provoca um efeito devastador nas relações interpessoais. É o ponto de partida de toda desavença social. Ela acaba com a sinceridade, que é a ponte para o mundo existencial do outro. Ela corrói a verdadeira comunicação e causa um tipo de ruptura no desenvolvimento da personalidade autêntica. Ken Keyes Jr. escreve:

O centro da segurança é uma espécie de nível de consciência solitário. Quando a sua consciência está preocupada em esforçar-se no sentido daquilo que você julga como suas necessidades de segurança, você se torna mais isolado das pessoas do que em qualquer outro nível. E sua energia se situa no nível mais baixo. Quando está preocupado com a segurança, você é apanhado em condições conflitantes nas relações com os outros. Você imagina os "outros" como objetos capazes de ajudá-lo a ficar mais seguro — ou como objetos a combater, porque ameaçam sua segurança. No nível da segurança, você não pode amar os outros, uma vez que esse nível cria grandes distâncias entre você e as outras pessoas.

O cristão inseguro encontra excessiva dificuldade para ouvir a opinião dos outros. Ele possui tantas dúvidas sobre a própria identidade que precisa se afirmar o tempo todo, dominado como está pelo medo de que, ao ouvir os outros ou ceder a uma opinião, ele possa, assim, perder uma parte da sua frágil identidade. Ou então, a incerteza sobre sua identidade dificilmente permitirá que se afirme, uma vez que, ao expressar seus verdadeiros sentimentos aos outros, ele poderia expor-se às críticas. Ele raramente sorri, pois um riso com o coração aberto (a válvula de segurança embutida que o faz se lembrar de sua condição de criatura) é um luxo que não pode se dar: isso poderia reduzir a auto-estima e fazer que ele deixasse de se levar tão a sério.

Esse homem não chora, o que seria uma fenda na sua armadura invulnerável. Mas, ao contrário, pode chorar freqüentemente, só que sozinho — ele não pode deixar os outros saberem que é menos do que perfeito. Ele não admite prontamente seus erros devido ao desejo insaciável de aprovação. Asneiras prejudicam sua credibilidade. "Vivemos numa época", diz J. B. Priestley, "em que nenhum homem importante jamais admite que está errado".

Por que tantos cristãos se mumificam na idade madura? Por que paramos de crescer na dimensão espiritual de nossa vida? Por que nossas liturgias se tornam tão estagnadas e nossos encontros de oração, tão estilizados? Por que a criatividade e a flexibilidade cedem espaço para a repetição e a rigidez? Onde a vida é vivida como nova criação?

Vamos dar, mais uma vez, a dica do que funcionou no passado. O sopro de Deus está engarrafado, e o Espírito itinerante, bloqueado. O novo, o criativo, o jovem é visto com suspeita, não com fascinação. "Viver é mudar", escreveu John Henry Newman, "e ter vivido bem é ter mudado freqüentemente". Mas o medo do fracasso evita qualquer surpresa do Espírito.

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O físico Max Planck, ganhador do Prêmio Nobel, disse que o longo caminho labiríntico que o levou à descoberta da teoria quântica nunca teria sido atravessado se o seu grupo de pesquisa tivesse medo de cometer erros. Na vida de muitos cristãos, a apreensão sobre cometer erros impede o crescimento, abafa o Espírito e garante o progressivo estreitamento de suas personalidades.

A igreja de Jesus Cristo é um lugar de promessa e possibilidades, de aventura e descoberta, uma comunidade de amor em ação, estrangeiros e exilados numa terra estranha se dirigindo para a Jerusalém divina. Mas aqueles que buscam segurança são os inimigos da abertura. A insistência deles em preservar o status quo impede a inovação e a espontaneidade e desencoraja a exploração de novas estradas na mente de Cristo Jesus. Querer manter as coisas como estão traz automaticamente uma nova insegurança, com mais precauções, ameaças e tensão nervosa.

João chama tal apego à segurança de "trevas", pois coloca-se em oposição à Luz. Ele roga: "Para que todos sejam um, Pai, como tu estás em mim e eu em ti. Que eles também estejam em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste" (Jo 17:21). Viver na dependência da "segurança" derrota a alegre confiança na sabedoria e no amor de Deus, prejudica as relações interpessoais, impede a contínua renovação da comunidade e a união cristã e põe em desvantagem o cristão sério que busca atingir a mente de Cristo Jesus.

PRAZER

Uma vez fechadas as janelas, trancadas as portas e apertadas as porcas e parafusos em nossa maquinaria mental, começamos a nos sentir seguros. Mas o tédio e o desespero silencioso de nossa existência hermeticamente fechada nos levam a buscar compensações e satisfações através de todos os tipos de experiências agradáveis.

Quando as formas de prazer, lazer e recreação reanimam a mente e o corpo e revitalizam o espírito, elas proporcionam uma sensação de equilíbrio, tranqüilidade e completude. Mas, buscadas em si mesmas, elas nos enviam a um passeio na montanha-russa, durante o qual cada sensação deve ser maior que a anterior para que a emoção continue.

O sexo pode ser a forma de prazer mais procurada, seguido pelo efeito embriagador do álcool ou pela energia impulsionadora das drogas. Para alguns, o prazer é encontrado no conforto da comida. Para outros, é a vida por meio da música ou do cinema que dá acesso à vida emocional, profundamente enterrada. Quão facilmente a busca de prazer se transforma em obsessão, e a obsessão em um tipo de morte da alma:

Quem vive segundo a carne tem a mente voltada para o que a carne deseja; mas quem vive de acordo com o Espírito, tem a mente voltada para o que o Espírito deseja. A mentalidade da carne é morte, mas a mentalidade do Espírito é vida e paz; a mentalidade da carne é inimiga de Deus porque não se submete à Lei de Deus, nem pode fazê-lo. Quem é dominado pela carne não pode agradar a Deus.

Romanos 8:5-8

O homem carnal está ostensivamente ligado à carne, segundo a qual vive e anda. No entanto, muitos cristãos praticam uma "prudência da carne" ambivalente, a qual aspira a um tipo de mediocridade dourada: o "eu" é cuidadosamente distribuído entre carne e espírito, mantendo-se um olho atento em ambos.

Paulo chama a isso "visão espiritual imperfeita". E a visão dos que receberam o Espírito, mas permanecem espiritualmente imaturos porque não se sujeitam por completo ao domínio do Espírito. Eles se rendem às suas paixões, permitindo, assim, que seus impulsos os limitem a uma espiritualidade infantil. Paulo os compara a bebês incapazes de receber alimento sólido (ICo 3:2). "O cristão perfeito", escreve Jean Mouroux, "é aquele que normalmente não se rende às exigências da carne, e que normalmente é submisso aos impulsos do Espírito".

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Uma das formas mais intrigantes de auto-indulgência é a obsessão narcisista com o próprio corpo. Partindo do interesse válido e útil de manter a saúde, gastamos uma quantidade inacreditável de tempo e energia para conquistar ou manter uma boa aparência. O planejamento estratégico de Napoleão para a invasão da Rússia foi um esforço militar amador, se comparado à engenhosidade, habilidade e precisão logística do cuidado corporal.

Não há lanches rápidos casuais, nem exercícios não planejados, nem carboidrato ou caloria que não seja contabilizado. Procura-se orientação profissional, consultam-se livros e periódicos, procuram-se spas, avaliam-se cirurgias plásticas e debatem-se os méritos da dieta da moda na televisão. O que é uma rica vida espiritual comparada à primorosa sensação de se parecer com uma celebridade? Parafraseando o Cardeal Wolsey: "Que bom se eu servisse a Deus do mesmo modo como controlo o meu peso".

Logicamente, a preocupação com a aparência física não mantém nenhuma relação com a mente de Jesus Cristo. O Senhor sente apenas tristeza e compaixão pela nossa patética perseguição da sensação física. E os esforços para se encontrar excitação e deflagrar uma paixão não terminam com o físico. Os cristãos são tão propensos a dependência química, romances, amizades interesseiras e comportamentos de risco quanto aqueles que não possuem Cristo no coração. Querem e buscam meios de preencher as lacunas abertas na vida. No entanto, saem dessas experiências com pouco mais do que uma sensação temporária de plenitude.

A falta de experiência com o amor divino fica dolorosamente evidente. Quer busquemos preencher o vazio com atividades ostensivamente carnais, como sexo ilícito, álcool ou drogas; quer nos enganemos acreditando que nossa necessidade de prazer é baseada em uma preferência espiritual, o nome do jogo é o mesmo.

Pense como as igrejas têm explorado e se aproveitado da carência para substituir o entorpecimento em nossa vida por uma paixão por algo mais, qualquer coisa. Criamos a adoração na qual a música serve para mexer com as emoções, mas a alma permanece impassível, em que as palavras ditas são pouco mais do que manipulações do coração. Criamos experiências catárticas cheias de choro e dança no Espírito, que nos deixam com a sensação de ter tocado Deus, mas que não conseguem nos dar a sensação de que Deus nos tocou.

Corremos para as igrejas onde a mensagem parece boa e nos sentimos energizados e enaltecidos — mas nunca desafiados ou condenados. Henri Nouwen diz: "Não é de se surpreender que as experiências espirituais estejam crescendo rapidamente por todos os lados e se tornando artigos comerciais altamente procurados. Multidões correm para lugares e pessoas que prometem intensas experiências de comunhão, emoções catárticas de alegria e doçura e sensações libertadoras de arrebatamento e êxtase. Em nossa desesperada necessidade de plenitude e incessante busca pela experiência da intimidade divina, somos todos propensos a construir nossos próprios eventos espirituais".

PODER

O último desejo que nos impede de vestir a mente de Jesus Cristo é a cobiça pelo poder. Em seu ministério, Jesus rejeitou qualquer exibição de poder, exceto o do Espírito Santo. Ao contrário dos "reis das nações [que] dominam sobre elas" (Lc 22:25), os discípulos não deviam exercer autoridade. O próprio Senhor executou o trabalho servil de escravo ao lavar os pés sujos de seus discípulos, exigindo, então, que eles fizessem o mesmo. "Se eu, sendo Senhor e Mestre de vocês, lavei-lhes os pés, vocês também devem lavar os pés uns dos outros. Eu lhes dei o exemplo, para que vocês façam como lhes fiz" (Jo 13:14-15).

Quando Jesus se apropriou do título "Ebed Yahweh"6 de Isaías (cf. Lc 22:24-30), ele reforçou sua identificação servil quando segurou uma criancinha no meio do grupo e disse aos discípulos que eles deveriam aprender a ser igual a ela. John McKenzie afirma:

A agudeza dessa resposta sempre foi reconhecida. Efetivamente Jesus afirma que não existe "primeiro" no Reino de Deus. Se você quiser ser primeiro, tome-se

6 Em hebraico: "Servo do Senhor", conforme Isaías 20:3. (N. da T.)

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servo de cada homem; retorne à sua infância, e então você estará preparado para o primeiro lugar. Jesus deixa pouco espaço para a ambição, e deixa menos espaço para o exercício do poder. Servos e crianças não são portadores de poder.

Os jogos de poder que jogamos, aberta ou sutilmente, têm o objetivo de dominar pessoas e situações, aumentando, assim, nosso prestígio, nossa influência e reputação. Os variados métodos de manipulação, controle e agressão passiva de que nos valemos geram uma vida que é pouco mais que uma série de ataques e contra-ataques competitivos.

Convencemo-nos de que precisamos de poder para ser felizes. Desenvolvemos um sistema de radar preciso, sintonizado nas ações e vibrações de qualquer pessoa ou situação que, mesmo remotamente, ameacem nossa posição de autoridade. A incapacidade de desenvolver com profundidade relações afetuosas (com os outros e também com Deus) está arraigada em nosso hábito de poder. Percebemos as pessoas como objetos que aumentam ou ameaçam nosso prestígio, como peões a serem avançados ou eliminados, conforme possam proteger o líder e apressar ou retardar a jogada vitoriosa no tabuleiro da vida.

O que um amigo meu chama "síndrome do reizinho" — a programação emocional que busca compensar a carência de poder que experimentamos quando criança — conduz à preocupação com símbolos de status, como carros de luxo, os mais modernos aparelhos tecnológicos e casas de alto padrão. Isso nos motiva a acumular dinheiro como método de exercer poder.

Contudo, a busca pelo poder não se limita a ganhos materiais ou a uma carreira com o propósito de estabelecer um império pessoal. A atração do poder é a força por trás do desejo de adquirir conhecimento como meio de ser reconhecido como pessoa "interessante". O conhecimento pode ser poder, mesmo na vida espiritual. O perito sabe que deve ser consultado antes de qualquer julgamento definitivo.

O jogo de parecer melhor que o outro impede a troca de idéias e produz espírito de rivalidade e competição demasiadamente humano. Mas os jogos de poder ocorrem às custas da relação profunda com nossos irmãos e nossas irmãs. Não podemos seguir a jornada com aqueles que desdenhamos sem que ninguém saia humilhado.

Um recente perfil psicológico de prósperos empresários americanos revelou quatro características comuns: 1) são, em grande parte, expatriados (imigrantes ou exilados de seus países nativos); 2) possuem um locus de controle interno que os impele a desempenhar um papel ativo na construção de seu destino; 3) são encorajados pelo exemplo de empresários até menos talentosos que abriram novas possibilidades de negócios; e 4) têm os recursos apropriados.

As mesmas qualidades eminentemente humanas podem caracterizar os cristãos que buscam exercer autoridade e poder dentro da comunidade espiritual. Como exilados numa terra estrangeira, eles não podem se apropriar da nossa cultura secular, então são movidos pela necessidade de dominar os outros para serem felizes, incomodados pelo sucesso de Cinderela dos irmãos e das irmãs menos dotados que assumiram papéis de liderança. Tais crentes são diligentes na intriga política e clerical, fingindo se submeter à vontade de Deus.

Os estratagemas de poder são previsíveis. Orgulhamo-nos de nossas supostas realizações, embora negando qualquer crédito pessoal. Vangloriamo-nos de nossos dons de discernimento e fazemos orações por um contínuo esclarecimento. Manifestamos uma extraordinária pseudo-serenidade em face da adversidade e humildemente reclamamos os fardos da liderança.

O desejo de poder é sutil, podendo não ser reconhecido e detectado, e, portanto, não ser combatido. Mas os cristãos bem-sucedidos na busca de poder, reunindo discípulos, adquirindo conhecimento, alcançando status e prestígio e controlando o mundo estão distantes da mente de Jesus. Ficam receosos quando um discípulo rouba seu bastão, cínicos quando a avaliação é negativa, paranóicos quando ameaçados, indecisos quando desafiados e loucos quando derrotados.

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Embora vivam completamente na carne, desconsideram a crítica por ela não estar "no Espírito". Os cristãos que têm êxito no jogo do poder vivem uma vida vazia: por fora, há considerável evidência de sucesso, mas, por dentro, estão desolados, sem amor e carregados de ansiedade. O reizinho procura dominar Deus, em vez de ser dominado. A tragédia é percebida na flagrante tentativa de contradizer o Senhor.

Wilfred Owen, oficial britânico de 25 anos que morreu em batalha pouco antes do armistício de 1918 (Primeira Guerra Mundial), descreveu magistralmente em The Parable of the Old Man and the Young [A parábola do velho e do jovem] o desejo de poder ao reconstruir a narrativa do Gênesis do sacrifício de Isaque:

Então Abrão levantou-se, cortou a lenha e partiu,

E levou com ele o fogo e uma faca.

E enquanto caminhavam os dois juntos,

Isaque, seu primogênito, olhou-o e disse:

Meu pai, veja os preparativos, fogo e ferro,

Mas onde está o cordeiro para o holocausto?

Então Abrão amarrou o jovem com tiras e correias,

E ali construiu fortes e trincheiras,

E estendeu a faca para matar o próprio filho.

Quando... olhe! Um anjo o chamou do céu,

Dizendo: não toque no rapaz,

Não lhe faça nada, Veja,

Um carneiro preso pelos chifres num arbusto;

Ofereça o Carneiro do Orgulho em seu lugar.

Mas o velho não fez assim, e matou o próprio filho,

E metade das sementes da Europa, uma por uma.

"Mas o velho não fez assim!", protestamos. E, entretanto, persistimos em nossos esforços para contrariar Deus, loucamente escolhendo a morte em vez da vida, a inércia em vez do dinamismo, a dominação em vez da submissão, o poder em vez da rendição. Mas Deus se recusa a nos deixar com a última palavra em qualquer coisa. E essa é uma prerrogativa dele.

Acreditamos que podemos dar a última palavra, então Deus refuta qualquer "palavra absoluta" que proferimos, qualquer "coisa definitiva" que fazemos. As narrativas bíblicas mostram isso claramente: Deus se opõe a nossa pulsão de morte, segura nosso braço, abre uma nova porta, mostra-nos um novo caminho. É por isso que aquele que busca o poder é sentenciado à frustração. Ralph Martin escreve:

Aqueles que estão buscando responder ao chamado de Espírito para a renovação e a restauração devem ser de tal modo cuidadosos que o egoísmo, o ressentimento, a frustração e o desejo de poder não os levem além daquilo que é verdadeiramente do Espírito de Deus. O exemplo trágico dos movimentos de renovação ao longo de história da igreja, que desenvolveram um espírito de orgulho e rebelião e, assim, trouxeram tanto a maldição quanto a bênção aos cristãos, deve estar sempre diante de nós.

A vida conduzida por nosso desejo de segurança, prazer e poder obscurece a Luz dentro de nós e traz desnecessários sofrimentos mentais e emocionais, os quais são muitas vezes mal interpretados como aflições espirituais ou as inevitáveis dores do crescimento da vida no

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Espírito. Essa é uma percepção errônea. Elas nascem da nossa vontade, não da vontade de Deus. A luta ansiosa por segurança, a perseguição frenética ao prazer físico e espiritual e a concorrência desesperada pelo poder expulsam a paz e a alegria, a serenidade e a autoconfiança, a bondade, a paciência e os outros frutos do Espírito Santo.

O evangelho de Jesus Cristo não promete alívio, libertação ou realização para esses males auto-infligidos, senão pela total submissão à mente de Cristo. Tais males devem ser cirurgicamente extirpados de seu núcleo, e a capacidade de realizar a operação é nossa. Não é um conjunto de circunstâncias que rouba o fogo de Prometeu, e sim nossos hábitos, nossas necessidades e nossos desejos incessantes. Em seu livro Inner Healing,7 Michael Scanlan diz:

Não raro, as pessoas fazem outras orações para elas, pedindo por tranqüilidade, sossego, estabilidade, entendimento, tolerância, alegria, libertação da ansiedade, de ressentimentos ou culpas, mas nada parece acontecer. Elas naturalmente se inclinam a correr atrás de bens desejáveis do modo como fariam por diplomas, sucesso profissional ou desempenho físico, com a diferença de o fazer através de Deus, em vez de outros. Esse não é o modo de cura interior por meio do Senhor. O Senhor tem o dom para nós, e devemos nos ajustar, aceitar o dom. Não determinamos o que queremos, nem como o atingir. Decidimos aceitar o dom do Senhor e fazer tudo que é necessário para recebê-lo e mantê-lo.

A jornada rumo à transparência exige o humilde reconhecimento diante de Deus de que somos exageradamente preocupados com segurança, prazer e poder. Exige compaixão genuína para com os outros, ao vê-los manifestando vícios e necessidades baseadas na emoção. E nossa íntima solidariedade nos momentos difíceis que reduz a presunção e a impaciência, e torna a compaixão possível. A jornada rumo à transparência começa com uma confrontação honesta com a verdade, que não é algo que alcançamos, mas Alguém.

7 Traduzido em português como A cura interior. São Paulo: Paulinas, 1989. (N. da T.) queremos, nem como o atingir. Decidimos aceitar o dom do Senhor e fazer tudo que é necessário para recebê-lo e mantê-lo.

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PARTE DOIS

A MENTE DE CRISTO

CAPÍTULO QUATRO

A D E S C O B E R T A D O P A I

Aprender a pensar como Jesus não é, naturalmente, pouca coisa. Entretanto, muitas vezes vivemos como se tivéssemos firme domínio de algo tão completamente fora de nosso próprio modo de compreender e agir. Como se tal coisa fosse possível! Portanto, devemos seguir em frente na busca pela mente de Cristo, sabendo que compreensão plena é meta impossível.

Contudo, há muito a descobrir ao afastar o coração dos desejos que não têm lugar no evangelho de Cristo — segurança, prazer e poder — e encarar, em seu lugar, as paixões que ocuparam a alma e a mente de Cristo. Jesus não esconde aquilo em que sua mente está focada:

Certa ocasião, um perito na lei levantou-se para pôr Jesus à prova e lhe perguntou: "Mestre, o que preciso fazer para herdar a vida eterna?" "O que está escrito na Lei?", respondeu Jesus. "Como você a lê?" Ele respondeu: "Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma, de todas as suas forças e de todo o seu entendimento" e "Ame o seu próximo como a si mesmo". Disse Jesus: "Você respondeu corretamente. Faça isso, e viverá". Mas ele, querendo justificar-se, perguntou a Jesus: "E quem é o meu próximo?"

Lucas 10:25-29

Jesus respondeu com a parábola do bom samaritano para explicar a segunda parte do grande mandamento. Mas ninguém lhe pediu que explicasse a primeira parte do grande mandamento. Até hoje passamos uma grande parte do tempo em nossas igrejas falando sobre amar o próximo (embora passemos pouco tempo agindo assim de fato) e, no entanto, raramente consideramos o que significa amar a Deus de todo o coração, toda a alma, toda a força e toda a mente. Talvez a parábola seguinte possa nos ajudar a ter uma compreensão mais profunda do que seria esse tipo de amor.

A PARÁBOLA DO HOMEM QUE CURA

Muitos anos atrás, um bebê nasceu na pequena cidade mexicana de Hopi. O povo da cidade tinha esperado aquele nascimento com muito interesse, uma vez que o bisavô era irlandês, e a bisavó, negra; o avô era mexicano, e a avó, crioula; o pai era meio-índio, e a mãe, espanhola. O pequeno bebê tinha uma ascendência bastante mestiça e, por conseguinte, uma cor engraçada: uma mistura de branco e ouro, caramelo e café. Não sabendo como chamá-lo, seus pais, por fim, lhe deram o nome de Willie. Logo após o nascimento, ele sofreu de pólio e ficou parcialmente paralisado do lado esquerdo.

Willie aprendeu cedo que as crianças podem ser muito cruéis com o que não compreendem. Na escola, riam de sua cor maluca, puxavam seu cabelo de cor ocre e, às vezes,

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chutavam sua perna coxa. Quando as crianças brincavam de cabo-de-guerra na festa da igreja, os colegas de sua equipe soltavam repentinamente a corda de forma que só Willie era arrastado para a poça de lama. Mais tarde, na corrida de carrinho de mão, seu parceiro jogou Willie numa espinheira de pontas muito afiadas.

Naquela noite, a mãe de Willie deu-lhe um banho depois de ter retirado todos os espinhos e esfregou o corpo dolorido com o calmante óleo de babosa. Conforme ele adormecia, a mãe o acariciava com ternura e lhe falava mais uma vez, como fizera tantas vezes antes, sobre o grande El Shaddai e seu amor pelas criancinhas, como elas corriam para ele e nunca o queriam deixar.

Como o grande dia da festa religiosa se aproximava, Willie trabalhou duro em sua tarefa de alimentar Macho, o jumento do vilarejo, para juntar dinheiro. Na noite da festa, ele coxeou ansiosamente para a praça da vila onde todos estavam reunidos para a celebração. Os olhos dançavam enquanto via as barracas de algodão-doce, as belas senhoras em saias rodadas arqueadas, os cavalos do carrossel num sobe-e-desce, os sombreiros enfeitados dos homens, usados somente uma vez por ano, o palhaço colorido no terno listrado fazendo graça.

Willie estava perambulando, decidindo como gastar suas magras economias (se numa tortilla ou num tamale), quando seus olhos se depararam com uma velha carroça de madeira. Em um letreiro pendurado se lia: "O grande show dos remédios". Quando Willie cautelosamente se aproximou, de repente o coração subiu pela garganta. Um homem alto, magro, ossudo, apeou da carroça, estendeu seus braços e preparou-se para falar.

Foi quando ele olhou diretamente para Willie. Sua face era castigada pelo sol, mas que olhos! Eles eram tristes, porém tão penetrantes, suaves e amáveis. O coração de Willie lhe disse imediatamente quem era esse homem. "É El Shaddai", gritou Willie. O homem que cura sorriu. Sua face resplandeceu como um raio de sol e seus olhos dançaram alegremente.

— Aqui, irmãozinho — disse o homem.

Ele deu a Willie uma garrafa cheia de um líquido laranja brilhante.

— Esfregue três gotas sobre o coração toda noite, e coisas maravilhosas acontecerão a você.

Willie mexeu em seu bolso, pronto para oferecer tudo o que tinha por aquela garrafa, mas o homem disse:

— O que recebi gratuitamente, devo dar gratuitamente.

O homem sentou-se na carroça. Willie aproximou-se e timidamente perguntou:

— O conteúdo da garrafa vai endireitar a minha perna torta, senhor, e fazer minhas manchas desaparecerem?

O homem que cura o pegou e sentou sobre os joelhos. Willie agora estava assustado. Ele tinha medo de que o homem, quando visse sua pele de perto, risse como faziam todos os aldeões que o haviam apelidado "Truta Malhada".

Willie não estava preparado para o que aconteceria a seguir. O homem abraçou a cabeça do menino ao encontro do próprio coração. Ali estava tão quente e calmo que Willie pensou na lareira da sala da pequena casa onde vivia. Então sentiu gotas de chuva em sua cabeça e levantou os olhos para ver as lágrimas de compaixão caindo dos olhos do homem. Willie pensou imediatamente em sua mãe. Mas, até mesmo por ela, o menino nunca havia sido amado assim antes.

— Irmãozinho, qual é o seu nome?

— Willie.

A cabeça do menino de forma alguma se desgrudava do peito do homem, e ele ainda apertava a garrafa na mão.

— Meu remédio é tão poderoso, Willie, que não somente vai endireitar sua perna, mas endireitará todos os caminhos sinuosos e todos os corações tortuosos. Cada vale de dor será aterrado e cada montanha de orgulho, aplainada, e toda a humanidade verá a salvação de Deus.

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Ele tocou o cabelo cor de ocre de Willie e o beijou levemente na testa.

— Você gostaria de compartilhar meu jantar comigo, Willie? Em toda a sua vida, ninguém jamais havia convidado Willie para jantar. Na verdade, ninguém, a não ser sua mãe e seu pai, o chamara alguma vez para compartilhar coisa alguma. Sentimentos que Willie jamais soubera que existiam brotaram do seu coração.

Todos o haviam empurrado para seu isolamento mais e mais profundo. Mas o homem quis compartilhar sua refeição com ele. E Willie partilhava de sua companhia com alegria. Pegou todo o dinheiro do bolso.

— Eu comprarei a sobremesa — anunciou Willie com satisfação. — Sorvete de limão, algodão-doce e biscoitos dente-de-leão!

Os dois comeram com prazer. Willie falou sem parar e o homem o ouviu em silêncio. Willie contou sobre o pai e a mãe, como a escola era dura, como ele desejava ter um amigo. Ele, então, encarou-o firme com seus olhos tristes e suaves, e teve coragem suficiente para perguntar:

— Você seria meu amigo, senhor?

— Eu sou seu amigo — respondeu o homem que cura.

Inesperadamente, uma sensação de frio tomou conta do coração de Willie. Ele nunca tivera um amigo. E se ele não soubesse como ser um amigo? O homem era tão generoso e bom, tão gentil e amoroso. "Com certeza, vou fracassar e aí perderei o único amigo que já tive", pensou Willie.

— Oh, senhor — o menino pediu em seu medo —, por favor, me diga o que significa ser um amigo! Eu quero tanto aprender.

— Não aflija seu coração, irmãozinho. Eu lhe direi o tipo de amigo que sou e, então, você poderá decidir por si mesmo que tipo gostaria de ser. Willie, se eu lhe disser palavras bonitas, capazes de fazer você se sentir importante, mas não amá-lo, não serei seu amigo. Se eu compartilhar meu conhecimento com você, de forma que compreenda todos os mistérios do universo, mas não amá-lo, não serei de forma alguma seu amigo. Se eu der toda a minha comida para alimentar sua família e cuidar de todas as suas necessidades, mas não amá-lo, não serei seu amigo.

O homem continuou:

— Irmãozinho, serei sempre paciente com você. Serei sempre gentil com você. Nunca sentirei ciúmes de seus outros amigos.

Embora eu seja o único filho de meu pai, nunca tentarei ser superior. Nunca serei esnobe, nem rude. Não vou tirar vantagem de você para conseguir o que puder. Não me irritarei à toa. Não ficarei chocado quando você me desapontar. Não me alegrarei com seus erros, mas ficarei feliz quando você for sincero consigo. Não existe limite para meu perdão, para minha confiança e esperança em você, para minha capacidade de suportar todas as provas de amizade em relação a você.

E o homem disse mais:

— Willie, ouça com atenção agora. Nunca trairei sua confiança. As profecias desaparecerão, as línguas cessarão, o conhecimento passará, mas eu não o esquecerei. Jamais deixarei de ser seu amigo. Irmãozinho, talvez sua memória não seja tão boa. Se você esquecer tudo, não esqueça de que há três coisas duradouras na amizade: fé, esperança e amor. E a maior delas é o amor.

Willie ouviu atentamente.

— É tão bonito, senhor — disse, balançando a cabeça. — Mas tenho medo de nunca poder ser um amigo assim. Sou muito fraco, muito feio, muito mal-humorado, muito bobo.

Por isso lhe dei meu elixir especial, irmãozinho. Esfregue três gotas em seu coração toda noite. A primeira gota chama-se "perdão", a segunda, "aceitação", e a terceira, "alegria". Faça isso e saiba que será abençoado.

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Então o homem abriu seu sorriso mais amoroso e partiu. Willie correu, saltou, pulou e dançou durante todo o caminho de casa. Quando chegou, foi para seu quarto, fechou a porta e se ajoelhou ao lado da cama. Abriu a garrafa e começou a esfregar a primeira gota, o perdão para os outros, em seu coração. Era muito doloroso, pois as outras crianças o haviam magoado profundamente.

Mas logo uma coisa maravilhosa aconteceu: Willie tomara-se tão aberto pela amizade do homem que as gotas de líquido laranja não repousaram sobre o peito — na verdade, entraram em seu coração. O que normalmente levaria anos para o Espírito do homem que cura operar num coração comum aconteceu num instante no coração aberto, inocente e transparente de Willie. Toda angústia a respeito de sua perna, das grandes manchas, tudo desapareceu. E Willie começou a orar alto:

— Oh, El Shaddai, meu amigo, não me deixe. Você pode pedir qualquer coisa de mim. Tudo o que desejo é você. Apenas ande a meu lado, segurando a minha mão, em razão de nossa amizade e da alegria de estarmos juntos. Mesmo que você me faça passar por uma provação a respeito da cura de minha perna e das grandes manchas, não me importarei. Ficarei contente em ser uma truta malhada, se apenas você estiver comigo. Lembro-me do que você disse ser o mais importante. Eu o amo, meu amigo, Faça aquilo que você quiser. Somente não me abandone. E nunca permita que eu o abandone.

Veja, depois que o Espírito do homem que cura entrou no coração de Willie e percorreu o seu ser, os olhos foram abertos para perceber quanto a vida seria vazia sem seu amigo. Esse pensamento de tal modo abalou sua mente e intimidou seu coração que Willie nunca mais foi o mesmo. Mas também lhe abriu os olhos para ver que, no fundo de seu coração, ele tinha de fato somente um desejo ardente, não pelas coisas que o novo amigo havia prometido, mas pelo próprio homem que cura.

AMAR A DEUS DE TODO O CORAÇÃO

Não é difícil perceber para onde a parábola nos leva. No evangelho de Mateus (22:34-40), quando pediram a Jesus para indicar o maior mandamento, ele começou com Shema Israel, as palavras de Deuteronômio 6:5, e acrescentou Levítico 19:18, o preceito do amor ao próximo. Embora Jesus distinguisse os dois mandamentos, o Senhor o fez obviamente apenas com a finalidade de mostrar como eles se fundem em um e são inseparáveis.

Se essas palavras forem interpretadas como a declaração da atitude pessoal de Jesus em relação a seu Pai e às pessoas que ele veio salvar, então Jesus encarna o grande mandamento. "Tudo o que eu desejo é você, senhor" ecoa o amor ilimitado de Jesus e a obstinada obediência a Deus. Sua declaração: "É preciso que o mundo saiba que eu amo o Pai e que faço o que meu Pai me ordenou" (Jo 14:31) oferece clara compreensão sobre os pensamentos que habitaram a mente de Cristo Jesus: Deus é, e isso é suficiente.

Habitar nesse lugar de descanso supremo não é abstração sonhadora, nem desculpa para afastar nosso "eu" das necessidades urgentes deste mundo. O apóstolo Paulo é completamente realista. Ele não está aconselhando seus ouvintes a assumir uma fé simplista e etérea quando escreve: "Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus" (Fp 2:5). Ao contrário, esse é um lugar central. Numa interpretação simples, nós, cristãos, começamos onde estamos, descobrimos o que temos e, então, percebemos que já chegamos. Não é preciso buscar a Deus, implorar a Deus que se revele a nós, Paulo escreve: "Vocês não sabem que são santuário de Deus e que o Espírito de Deus habita em vocês?" (ICo 3:16).

Viver aqui é perceber que temos o que buscamos. Não há necessidade de correr atrás de segurança, prazer e poder, como fazem os incrédulos. O reino de Deus está dentro de nós. Tudo o que precisamos é desacelerar o tempo humano e tirar um tempo para ouvir. Deus está lá todo o tempo.

E assim clamamos com Willie: "Tudo o que eu desejo é você, Senhor"; e com Paulo: "Quero conhecer Cristo" (Fp 3:10). Oramos com o salmista: "Uma coisa pedi ao SENHOR; é o que procuro: que eu possa viver na casa do SENHOR todos os dias da minha vida, para contemplar a bondade do SENHOR e buscar sua orientação no seu templo (Sl 27:4).

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Os cristãos que se transferem para esse lugar encontrarão paz e prazer na suficiência divina. Nesse momento, deixamos de nos preocupar sobre o que não temos porque estamos usando o tempo para apreciar e desfrutar o que temos. A maior porcentagem do sofrimento desnecessário, auto-induzido em nossa vida é eliminada porque as compulsões que uma vez nos impulsionavam a conquistar segurança, experimentar prazer e desenvolver poder já não se afirmam mais com suas demandas absurdas de satisfação imediata. Preocupação e ansiedade já não nos afligem, porque percebemos que elas não vêm do evangelho e não têm nenhum significado remidor. Apenas prolongam os tempos de trevas em nossa vida, sendo que nós podemos eliminá-las através da submissão de nossos pensamentos ao senhorio de Jesus Cristo.

Naturalmente, em nossa condição humana, nem sempre somos capazes de colocar a mente e o coração no caminho de Cristo. Mas sabemos que as agitações na superfície de nossa alma não se tomarão ondas ao sabor da maré se descermos ao santuário interior de nosso "eu" agraciado e ficarmos em oração, ouvindo nosso Deus, que nos lembra: "Acalma o teu coração e sossega. Estou com você. Não tenha medo. Eu gravei você nas palmas das minhas mãos. Tudo está bem".

O efeito dessa escuta não é somente interno e pessoal. Quando as condições externas da vida já não trazem segurança ou insegurança, quando os problemas triviais e inevitáveis do dia-a-dia perdem seu poder de quebrar nossa concentração e fragmentar nossa existência, concebemos o mundo como um lugar mais amigável.

Experimentamos todo o mundo e tudo ao nosso redor de modo diferente — não mais em termos de como eles poderiam satisfazer nossas necessidades viciosas, mas como manifestações singulares de verdade, bondade e beleza no mundo. Vivemos em sintonia com a mente de Cristo Jesus e passamos ao fluxo e à harmonia com o projeto criativo de Deus. George Maloney observa: "Existe uma grande experiência de unidade ao encontrar Deus em todas as coisas. A dicotomia entre ação e contemplação deixa de existir".

A percepção de que Deus é o suficiente revela a marca da vida transparente. Vão-se as tensões, confusões e lutas que sinalizavam o engodo provocado por nossos desejos mais básicos. O agitado esquadrinhar do horizonte em busca de novas experiências cessa, o agitar constante da mente para fugas e distrações desaparecem.

Até mesmo os lapsos ocasionais de pensamentos egoístas são vistos como oportunidades de crescimento numa relação mais profunda com Deus. Seja agindo assim ou sofrendo a ação, respondemos com a mente de Jesus Cristo. Nisso reside a transparência.

Ao amar Deus de todo o coração, toda a alma, toda a mente e toda a força, Jesus foi transparente e, desse modo, revelou Deus. Em Jesus não havia nenhum "eu" a ser visto; apenas o amor supremo e incondicional de Deus. Paul Tillich fez disso o critério da declaração cristã de que Jesus é a revelação final de Deus: "Ele se tornou completamente transparente ao mistério que ele revela".

Nossa habilidade em vestir a mente de Cristo Jesus ocorre em virtude de nossa união sagrada com ele. Esse é o dom do Espírito Santo: "Deus derramou seu amor em nossos corações, por meio do Espírito Santo que ele nos concedeu" (Rm 5:5). O poder de amar a Deus de todo o coração é direito inato daquele renascido no Espírito de Jesus Cristo. É o que nos permite passar pelo mundo como portadores cristalinos da imagem de Deus.

CAPÍTULO CINCO

UM C O R A Ç Ã O M I S E R I C O R D I O S O

Uma das mais vívidas recordações de meu tempo entre os Irmãozinhos de Jesus é a do ano-novo de 1969. Encerramos o trabalho cedo, mas retardamos a ida para a cama até a meia-noite para uma hora de adoração noturna. O tempo passou depressa em cânticos de ação de graças pelo dom imerecido de Jesus Cristo e do Espírito Santo como forma de compensação pela

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intemperança e pelo deboche que tradicionalmente caracterizam a véspera de ano-novo, e em sincera intercessão por alguns amigos que viviam sem esperança.

Em seguida, nos reunimos na cozinha. A mesa estava posta com pão de frutas, conservas de morango, pêssegos em calda e garrafas de vinho branco. Os Irmãozinhos de Jesus vivem o que pregam, e era uma hora alegre de festejos, humor brincalhão e camaradagem.

Fui para a cama por volta das duas da manhã e adormeci pensando em algo que Paul Gallico disse: que havia aceitado o pacto franciscano prontamente e seguido a lei primitiva em todo o rigor, com exceção da cláusula impossível. Depois de tudo, Francisco de Assis não lhe negaria a única satisfação que realmente queria: um altivo desdém e um vigoroso desprezo pelo cristão medíocre.

A manhã de ano-novo trouxe a primeira neve pesada. A paisagem de Saint-Rémy mostrava-se gélida e estéril. Do modo como Ernest Hemingway apresentou o tema da morte em Farewell to Arms,8 na frase inicial — "As folhas caíram cedo naquele ano" —, assim a natureza expirava, e 1969 parecia um bom ano para a morte de todos os valores, atitudes e modos de comportamento que não eram de Cristo Jesus.

Havia sete à mesa. A conversa centrava-se principalmente em nosso trabalho na cidade de Montbard. Alguns trabalhavam em vinhedos locais, outros com carpintaria e alvenaria, enquanto os menos dotados tinham empregos mais simples. Eu lavava pratos no Hotel de la Gare e recolhia esterco numa fazenda vizinha.

A conversa da mesa seguia animada quando o irmão alemão observou que nossos salários eram inferiores, e o espanhol explicou que os dias eram difíceis. Notei que nossos patrões nunca eram vistos na igreja da paróquia, e um irmão francês sugeriu que talvez fossem hipócritas. As críticas se fizeram mais pesadas e o tom, mais cáustico. Concluímos que nossos auto-suficientes patrões dormiam todo o dia de domingo, gastavam seu dinheiro sem reflexão e nunca elevavam a mente e o coração em oração para agradecer a Deus os dons da vida, da fé, da família, da colheita e assim por diante.

O irmão Dominique Voillaume estava sentado no fim da mesa, e não havia aberto sua boca. Percebi lágrimas rolando de suas faces.

O que houve, Dominique? — Perguntamos. Sua voz era pouco audível.

Ils ne comprennent pas — foi tudo o que ele disse.

Eles não entendem. Quantas vezes, nos últimos anos, aquela frase transformou meu ressentimento em compaixão. Como passei então a apreciar a visão de Paul Gallico e a me encantar com sua honestidade. Venho com freqüência relendo a narrativa da crucificação de Cristo pelos olhos de Dominique Voillaume, adquirindo uma nova compreensão da mente de Cristo Jesus. No ápice de sua agonia de morte, surrado e tiranizado, açoitado e espancado, cercado por uma multidão de brutos, Jesus diz "Pai, perdoa-lhes. Ils ne comprennent pas".

O Mestre, cuja atitude para com o pecado fora tão inexorável, o moralista rígido que cercou o casamento com o alto muro da indissolubilidade, o juiz austero que condenou a simples intenção de se fazer o mal, o homem sagrado, no qual nem um único sopro de suspeita jamais tocou, esse Jesus foi não apenas chamado "amigo dos publícanos e pecadores", mas, de fato, o foi.

Judas Iscariotes adentra o jardim, ao lado da multidão, e saúda o Filho do Homem com um beijo. Jesus apela ao seu coração e à sua consciência: "Judas, com um beijo você está traindo o Filho do homem?" (Lc 22:48). Ele não censurará Judas diante dos outros. Não haverá nenhuma humilhação pública pela traição. "Amigo, o que o traz?" é tudo o que ele diz.

A compaixão pelos outros e a alegria por seu arrependimento reinam na mente de Cristo. Jesus terminou a parábola do bom samaritano com uma pergunta: "'Qual destes três você acha que foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?' O perito na lei respondeu: Aquele que teve misericórdia dele'. Jesus lhe disse: 'Vá e faça o mesmo'" (Lc 10:36-37).

Nas parábolas da misericórdia divina (Lc 15), Jesus fala do pastor levando alegremente a ovelha perdida nos ombros e chamando todos os seus amigos para se alegrarem. A mulher clama: "Alegrem-se comigo, pois encontrei minha moeda perdida". No retorno do filho pródigo,

8 Traduzido em português como Adeus às armas. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil: 2002. (N. da T.)

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o pai explica ao indignado filho mais velho: "Mas nós tínhamos que celebrar e alegrar-nos!". O tema subjacente de todas as três parábolas apresenta uma compreensão notável na mente de Jesus: "Eu lhes digo que, da mesma forma, há alegria na presença dos anjos de Deus por um pecador que se arrepende" (Lc 15:10).

A bondade que Jesus dedicava aos pecadores fluía de sua capacidade de ler o coração deles e descobrir ali a sinceridade e a bondade essenciais. Por trás das pessoas de atitudes mais irritadas ou de mecanismos de defesa mais enigmáticos, de seus ares de dignidade, grosseria ou zombarias, de seus silêncios ou de suas desgraças, Jesus via uma criancinha que não tinha sido amada o bastante e que deixara de crescer porque os que estavam a seu redor deixaram de acreditar nela. Adrian van Kaam escreve:

Nesse sentido, Cristo, e depois os apóstolos, fala freqüentemente sobre os crentes como de crianças, não importando quão respeitáveis, ricos, inteligentes e prósperos eles possam ser. Pois, por trás da força de cada um, esconde-se uma pessoa pecadora, carente de redenção, uma pessoa preciosa aos olhos de Deus por causa do tesouro sem igual em que se torne no tempo e na eternidade.

Vejo com freqüência Jesus Cristo se alegrando pelos pecadores arrependidos que foram resgatados através da solidariedade dos Alcoólicos Anônimos. Os aniversários de primeiro, terceiro, oitavo ou vigésimo ano de sobriedade de um alcoólatra repercutem a alegria festiva do retorno do pródigo.

Phil, homem velho e alquebrado com três dentes na boca, vivera vinte anos nas ruas como bêbado. Agora ele se dirige ao púlpito de uma sala lotada e silenciosa. É o primeiro aniversário dele. Ninguém acreditava que conseguiria. Ele começa a falar que estava perdido e agora fora encontrado. De repente, emudece e vira-se de costas para a audiência. Os presentes aplaudem-no de pé. Homens e mulheres acorrem ao púlpito e beijam efusivamente Phil.

No encantador livrinho Off the Sauce [Sem tempero], Lewis Meyer escreve:

Se alguém quisesse usar somente uma palavra para descrever o sentimento de uma reunião do AA, essa palavra seria amor. Amor é a única palavra que conheço que encerra amizade, compreensão, compaixão, emparia, bondade, honestidade, dignidade e humildade. O tipo de amor ao qual me refiro é aquele que Jesus tinha em mente quando disse: "Amem-se uns aos outros". Podem atirar pedras, podem virar a cara, mas há uma ligação entre os AAs, uma ligação que raramente se vê em outro lugar. É o único lugar que conheço onde o status não significa nada. Ninguém zomba de ninguém. Todos estão aqui porque fizeram de sua vida uma completa desordem e tentam colar os cacos. As coisas básicas são básicas aqui. (...) Assisti a milhares de cultos de igreja, reuniões maçônicas, encontros de irmandades — contudo, nunca encontrei o tipo de amor que percebo no AA. Em pouco tempo, o importante e poderoso se rebaixa e o humilde se eleva. O nivelamento atingido é aquilo que as pessoas querem dizer quando falam de fraternidade.

A compaixão de Cristo mostra-se com extraordinária clareza no jantar oferecido na casa de Simão, o leproso (Mc 14:3-9). Alguns dos convidados ficam furiosos quando uma mulher quebra um frasco de alabastro de precioso perfume e começa a vertê-lo sobre a cabeça de Jesus. "Deixem-na em paz", Jesus ordena. "Por que a estão perturbando?". O Mestre ficou tão profundamente comovido com a bondade da mulher que decidiu que o acontecimento deveria ser contado e recontado por todo o mundo. "Anotem isto!", Jesus ordenou aos discípulos: "Quero que OS homens saibam até o fim dos tempos quão profundamente o amor desta mulher me afetou".

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Essa declaração é a explosão por longo tempo contida de um amor que afinal pode se expressar, o segredo de um coração que se derrama. Jesus não apenas defende a ação da mulher, mas afirma seu valor e reconhece que ele ficou profundamente comovido por sua bondade. Quando vemos o Mestre perdoar a prostituta e absolver todos os pecados em virtude de seu grande amor (Lc 7:47), percebemos a alegria de Deus nos encontrando novamente. Descobrimos que essa alegria é capaz de soterrar todo o mal que cometemos. Podemos finalmente parar de nos preocupar com o passado, com a extensão de nossa culpa, e com os limites do amor e da misericórdia de Deus.

AMAR O PRÓXIMO COMO A NÓS MESMOS

Dois fenômenos curiosos mancham a vida cristã no mundo de hoje. O primeiro é nossa tendência a criticar mais do que elogiar. Ouça as conversas nos cafés, nas salas de estar e nas igrejas. Preste atenção às autoridades e aos jornalistas. Não somente passamos a invejar o valor dos outros, mas a ficar completamente tristes quando uma pessoa é elogiada.

Muitos cristãos hipercríticos apressam-se em negar a presença de qualquer valor em qualquer lugar e superenfatizar os aspectos obscuros e feios de uma pessoa, situação ou instituição, a despeito de suas facetas nobres e valiosas. Eles se regozijam em expor as falhas e imperfeições dos outros e vangloriam-se da ausência de bondade.

Certa vez, o senador William Fulbright, do Arkansas, fez um comentário sobre essa insidiosa tendência na mídia: "Aquele farisaísmo puritano que jamais ultrapassa a superfície da vida norteamericana tem rompido as frágeis barreiras da civilidade e do comedimento, e a imprensa tem estado na vanguarda da nova agressividade".

O alvo pode ser o governo nacional, a força pública local ou o garçom da lanchonete. Pouco importa. O foco está nos limites da realidade, naquilo que uma pessoa ou instituição não é. As faltas e os defeitos de caráter são motivo de celebração porque nos fazem sentir superiores e até mesmo nobres. No dia de minha ordenação, meu pai me disse: "Lembre-se de que é impossível superestimar o valor de alguém". Suas palavras contrariam nossa tendência de subestimar o valor de todos.

O segundo fenômeno não deixa de ter conexão com o primeiro. É o que se poderia chamar a preponderância da auto-estima negativa. A auto-estima consiste em como nos vemos refletidos nos olhos dos outros. Isso, por sua vez, condiciona a percepção do mundo e a interação com a comunidade. Na condição de cristãos, a auto-estima negativa se expressa basicamente como uma imagem de pessoas não amadas. Negamos nosso próprio valor, somos assombrados por sentimentos de insuficiência e inferioridade, e nos fechamos para o valor dos outros porque ameaça nossa existência.

A exaltação do outro é vivenciada como um ataque pessoal. Quando um colega é apreciado, ficamos transtornados e irritados, depreciamos seus motivos como presunção e censuramos a perniciosidade dos cultos de personalidade. Dizemos a nós mesmos: "Sou uma pessoa estúpida, injustiçada. Tenho potencial, mas ninguém se importa". Nas reuniões de grupo, nos sentimos como intrusos. Suspiramos: "Ninguém me ama".

A auto-estima negativa não seria tão prejudicial, não fosse o fato de que interagimos com os outros nos termos de nossa auto-ima-gem. Selecionamos da realidade apenas os aspectos que confirmam a própria visão obscura que temos a nosso respeito. Escolhemos a dimensão de uma situação que aponta para a rejeição.

Numa simples conversa com alguém de nossa intimidade, a falta de entusiasmo confirma o que suspeitávamos: "Sou um chato". Se encontramos na rua uma pessoa que valorizamos e ela nos ignora, à noite, ao deitar, esqueceremos as experiências agradáveis, até mesmo belas do dia e, em vez disso, dormiremos enfatizando o único incidente que aumentou nosso auto-retrato negativo. Por conseguinte, todo e qualquer encontro se torna uma aprovação ou desaprovação de todo o nosso ser. Cada incidente se torna uma condenação geral do "eu" e uma reafirmação de inutilidade.

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Para amar o próximo como a nós mesmos, precisamos reconhecer nosso valor e nossa dignidade intrínsecos e nos amar de forma saudável e consciente, conforme Jesus nos ordenou ao dizer: "Ame o seu próximo como a si mesmo". A tendência de sempre e sempre nos repreendermos com rigor pelos fracassos reais ou imaginários, depreciar e subestimar nosso valor e enfatizar exclusivamente nossa desonestidade, nosso egocentrismo e nossa falta de disciplina pessoal é conseqüência de nossa auto-estima negativa. Reforçados pela avaliação crítica de nossos semelhantes, por reprovações e humilhações de nossa comunidade, acabamos radicalmente incapazes de aceitar, perdoar ou amar.

No discurso de abertura em uma conferência carismática regional em Atlantic City, Nova Jersey, o padre Francis McNutt tocou em um nervo exposto quando disse: "Se Jesus Cristo o perdoou de todos os pecados, lavando-o no seu sangue, que direito tem você de não perdoar a si mesmo?".

A capacidade de amar a si mesmo é a raiz e o pilar básico de nossa capacidade de amar aos outros e a Deus. Só posso tolerar nos outros aquilo que posso aceitar em mim. Van Kaam escreve:

A bondade para com o meu precioso e frágil "eu", quando inspirado exclusivamente por Deus, constitui o núcleo de bondade para com os outros e com as múltiplas formas criadas do Divino ao meu redor. É também uma condição necessária para minha apresentação a Deus.

Ironicamente, nossa auto-repugnância nos leva de modo bem freqüente a prejudicar a auto-estima de outros. Andrew Greeley escreve:

A missão de Deus no mundo e sua missão na relação com o crente enquanto indivíduo é essencialmente uma missão de superação da auto-aversão. Pois a auto-aversão é uma barreira ao amor. Não odiamos outras pessoas porque nos amamos demais, mas porque não conseguimos nos amar o bastante. Nós as tememos e desconfiamos delas porque nos sentimos inadequados em nossa relação com elas. Nós nos escondemos por trás de nossa raiva e ódio porque em algum recesso profundo de nossa personalidade não acreditamos que somos bons o suficiente para elas.

Certa noite, em Nova York, do lado de fora do Schubert Theater, durante o intervalo de uma peça, eu, alguns cavalheiros de smoking e umas senhoras em seus vestidos longos estávamos numa intensa discussão a respeito da influência de Schopenhauer sobre o Teatro do Absurdo de Samuel Beckett. Eu estava prestes a fazer uma intempestiva observação que evitaria mais discussões sobre o assunto por, pelo menos, uns cem anos, quando uma senhora idosa vendendo o jornal Variety se aproximou. Ela calçava tênis e usava um boné de taxista. Joguei uma moeda em sua mão e peguei o jornal.

— Posso falar com o senhor um minuto? — ela implorou. Naquele tempo, eu sempre usava o colarinho clerical. Sabia que não poderia me distinguir por minhas virtudes, mas poderia fazê-lo por minha roupa. Usava o colarinho romano quando tomava banho e o colocava sob o pijama ao dormir.

— Sim — respondi de forma ríspida. — Espere um minuto. Ao me voltar para o grupo de amigos, que estavam ansiosos, esperando meu contragolpe final, ouvi a senhora dizer:

— Jesus não teria falado assim com Maria Madalena.

Ela desapareceu rua abaixo. A magnitude do que havia ocorrido começou a me corroer durante a continuação do teatro. Estivera tão preocupado com o meu status que tratei a mulher como uma máquina de vender jornal: depositei uma moeda em sua mão e saquei o jornal. Não demonstrei nenhum consideração pelo serviço que ela me prestava, nenhum interesse por sua vida e tive uma espantosa falta de apreço por sua dignidade pessoal.

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A preocupação com minha soberba, somada à falha em tratá-la com um amor afetuoso, imbuído de respeito pela santidade de sua

personalidade única, exacerbou seu sentimento de inutilidade e, além disso, prejudicou sua auto-estima. Seu autoconceito se formou pelo modo como ela viu a si mesma refletida nos olhos de outras pessoas. Se viesse à igreja no domingo e eu estivesse no púlpito, exortando-a a amar a Deus acima de todas as coisas... quanta hipocrisia do homem que ajudou a minar sua capacidade de amar alguém. Uma humanidade retraída tem uma capacidade diminuída de receber os raios do amor de Deus.

A COMPAIXÃO DE JESUS

Pensar como Cristo é ter a atitude relacional que Jesus teve com os seus discípulos. Sua atitude foi lindamente expressa para mim numa excursão no último outono pela Sleepy Hollow Village, às margens do rio Hudson. A única orientação do nosso guia era: "Por favor, sejam gentis com os cordeiros. Eles não se aproximarão se vocês os amedrontarem".

Quando os olhos de Jesus observavam as ruas e ladeiras, ele sentia compaixão porque as pessoas estavam desorientadas. Ele lamentou por Jerusalém. Suas palavras não vinham carregadas de repreensão e humilhação, castigo e moralismo, acusação e condenação, ridicularização e depreciação, ameaça e chantagem, avaliação e rotulagem. Sua mente era constantemente habitada pelo perdão de Deus. Ele tomou a iniciativa de procurar os pecadores e justificou sua incrível facilidade e familiaridade com eles por meio de parábolas de misericórdia divina.

A mulher flagrada em adultério, nem mesmo perguntou se estava arrependida. Nem exigiu uma firme decisão de se corrigir. Não lhe fez uma preleção sobre as severas conseqüências de uma futura infidelidade. Ele viu sua dignidade como ser humano prestes a ser destruída pelos presunçosos fariseus. Depois de lembrá-los de sua participação na culpa da mulher, ele olhou para a mulher, a amou, perdoou e advertiu para que não pecasse mais.

O psicólogo francês Mare Oraison afirma: "Ser amado é ser olhado de tal maneira que a verdade do reconhecimento é revelada". Um cristão que não apenas vê, mas olha o outro, comunica àquela pessoa que ela está sendo reconhecida como ser humano em meio a um mundo de objetos impessoais — como alguém, não algo. Se essa simples verdade psicológica, difícil e exigente como ela é, fosse praticada nas relações humanas, talvez pudéssemos eliminar 98% dos obstáculos para se viver igual a Jesus. Pois este é o próprio fundamento da justiça: a capacidade de reconhecer o outro como ser humano no qual brilha o sinal do Cordeiro em sua testa.

A simples compra de um selo postal ou de alguns mantimentos no supermercado pode ocasionar uma troca de olhares entre balconista e cliente capaz de transformar um gesto rotineiro num verdadeiro encontro humano mutuamente enobrecedor. As palavras são desnecessárias nessa interação, pois o cristão conhece o segredo fundamental de Jesus em relação aos discípulos: seu respeito soberano pela dignidade deles. Eles são pessoas, não brinquedos, nem cargos ou possibilidades de compensação pessoal.

Na narrativa de Lucas sobre o sofrimento de Jesus, o autor destaca que, depois da terceira vez que Pedro negou conhecê-lo, "o Senhor voltou-se e olhou diretamente para Pedro" (Lc 22:61). Naquele olhar foi revelada a verdade do reconhecimento. Pedro sabia que ninguém jamais o amara como Jesus. O homem a quem ele confessara como o Cristo, o Filho do Deus vivo, olhou em seus olhos, viu neles o terror transparente, percebeu nele o terrível drama do vício da segurança e o amou.

O amor de Jesus por Pedro repousava na completa e incondicional aceitação do discípulo. Nós, que tão automaticamente impomos condições para nosso amor ("se realmente me amasse, você faria..."), não vemos que isso é troca, não amor incondicional. (Pois colocamos um de nossos desejos para completar a frase.)

Na atitude de Jesus para com Pedro, conseguimos entender que nenhum homem jamais foi tão libertador de pressões, convenções ou vícios. Jesus era de tal modo liberto do fogo de desejos, demandas, expectativas, necessidades e da programação emocional inflexível que podia

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aceitar o inaceitável. Não precisava recorrer a gritos, ataques de ódio ou ameaças indevidas. Ele transmitiu seus sentimentos mais profundos a Pedro através de um olhar. E aquele olhar transformou e recriou Pedro: "Saindo dali, chorou amargamente" (Lc 22:62).

Compaixão significa que você sente empatia pela aflição de outra pessoa e envia o sinal: "Sim, eu sei. Estive lá também". Você vivência a situação a partir da posição daquela pessoa. Ser compassivo é compreender os conflitos que outras pessoas criaram para si próprias sem ser arrastado por seu drama pungente. E você sabe que a compaixão será mais efetiva se estiver centrada na aceitação amorosa.

Ao ver Pedro exercendo seu vício e sofrendo por isso, Jesus permaneceu profundamente sintonizado com a humanidade e dignidade do homem. Seu olhar transparente, imbuído de perdão divino, não somente fez Pedro chorar, mas lhe permitiu continuar em frente sua jornada, em direção ao alto, numa vida mais rica com Cristo. Alguns dias depois, o Jesus ressuscitado diria ao mesmo homem:

"Digo-lhe a verdade: Quando você era mais jovem, vestia-se e ia para onde queria; mas quando for velho, estenderá as mãos e outra pessoa o vestirá e o levará para onde você não deseja ir". Jesus disse isso para indicar o tipo de morte com a qual Pedro iria glorificar a Deus. E então lhe disse: "Siga-me!".

João 21:18-19

Dessa vez não houve negação ou reclamação. Pedro aceitou o que antes havia sido inaceitável. Anos mais tarde, o mesmo homem escreveria: "Amem-se sinceramente uns aos outros, porque o amor perdoa muitíssimos pecados" (1 Pe 4:8). À luz do próprio crescimento doloroso, Pedro fala aos cristãos gentios: "Como crianças recém-nascidas, desejem de coração o leite espiritual puro, para que por meio dele cresçam para a salvação" (IPe 2:2).

A traição de Pedro ao Mestre, como tantas de nossas próprias recaídas morais e rejeições ao caminho do Senhor, não foi um fracasso terminal, mas uma oportunidade para um doloroso crescimento individual em direção à pessoa que Deus desejava que ele fosse. Seria irrealista supor que, anos mais tarde, Pedro louvaria a Deus por aquela criada que o tornou num covarde choroso no pátio de Caifás?

Jesus não tinha interesse em reforçar autoconceitos negativos. "Não quebrará o caniço rachado, não apagará o pavio fumegante" (Mt 12:20). Ele era impiedoso somente com aqueles que mostravam desprezo pela dignidade humana, e não tinha compaixão dos que punham intoleráveis fardos nas costas de outros, eles próprios se recusando a carregá-los. Jesus desmascarou as ilusões e boas intenções superficiais dos fariseus pelo que eles eram, chamando-os hipócritas: "Raça de víboras" (Mt 12:34). Ele não compactuava com os que não mostravam misericórdia ou compaixão.

Viver e pensar como Jesus é descobrir a sinceridade, a bondade e a verdade muitas vezes ocultas por trás do grosso e áspero exterior de nossos semelhantes. É ver nos outros o bem que eles próprios não vêem e afirmá-lo em face de poderosas evidências em contrário. Não se trata de um otimismo cego que ignora a realidade do mal, mas de uma perspectiva que reconhece o bem de maneira tão repetida e insistente que mesmo o obstinado acaba reagindo de forma positiva. No homem Jesus, a mente de Deus era transparente. Não havia nada do "eu" para ser visto, apenas o amor incondicional de Deus. Ao ver Pedro no pátio, Jesus revelou o fundamento do ser do homem.

O eixo da revolução moral cristã é o amor (Jesus o classificou como o sinal pelo qual o discípulo seria reconhecido). O perigo espreita em nossas tentativas sutis de minimizar, racionalizar e justificar nossa moderação a esse respeito. Oferecer a outra face, caminhar a milha extra, não devolver os insultos, reconciliar-se um com o outro e perdoar setenta vezes sete vezes não são caprichos arbitrários do Salvador. Ele não prefaciou o Sermão do Monte com "seria bom se...". O novo mandamento estrutura a nova aliança no seu sangue. Tão central é o preceito do amor que Paulo o chamou cumprimento da Lei.

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Segundo John McKenzie, "a razão demanda moderação no amor, como em todas as coisas; a fé, aqui, destrói a moderação. A fé não tolera um amor moderado por um companheiro humano mais do que tolera um amor moderado entre Deus e o homem". O mandamento do amor é o completo código moral do cristão. Thomas Merton declarou que um "bom" cristão que abriga ódio no coração por qualquer pessoa ou grupo étnico é objetivamente um apóstata da fé.

APRENDENDO A PENSAR COMO CRISTO: UMA HISTÓRIA

Nas fases iniciais dos Alcoólicos Anônimos, houve uma considerável discussão sobre as qualificações necessárias para ser membro. Quais seriam as regras para admissão? Certos indivíduos poderiam ser excluídos, como num clube social? Quem entraria e quem seria deixado de fora? Quem determinaria se um alcoólatra era digno ou indigno? Alguns pediam para limitar a condição de membro às pessoas de "responsabilidade moral"; outros insistiam que a única exigência a ser cumprida seria a confissão pessoal: "Eu acredito que sou um alcoólatra. Eu quero deixar de beber".

O debate foi resolvido de modo bastante incomum. A história está relatada no livro Os doze passos e as doze tradições, cujos autores naturalmente permanecem anônimos. Nele encontramos uma notável compreensão da compaixão conforme a praticada por Cristo, que resume de forma admirável o que tento dizer neste capítulo. No calendário dos AA, era o ano dois. A organização consistia de dois grupos diligentes e obscuros de alcoólicos esforçando-se por crescer.

Uma pessoa recém-chegada a uma reunião de um dos grupos pediu para entrar. O homem falou francamente com o membro mais velho do grupo e provou de imediato que seu caso era desesperador e, acima de tudo, ele queria melhorar.

— Mas — ele perguntou — vocês vão me deixar participar de seu grupo, mesmo sendo eu vítima de outra droga, até mesmo mais estigmatizada que o álcool? Vocês não vão me querer em seu grupo. Ou vão?

O membro mais velho chamou dois outros participantes e confidencialmente jogou a bomba em suas mãos. Ele disse:

— Bem, e então? Se mandarmos este homem embora, ele logo morrerá. Se o deixamos ficar, só Deus sabe que tipo de problema causará. Qual deve ser a resposta, "sim" ou "não"?

A princípio, os conselheiros só conseguiam ver objeções.

— Nós só lidamos com alcoólicos. Não deveríamos sacrificar este aqui pelos muitos outros?

Assim ia a discussão, enquanto o destino do recém-chegado pendia na balança. Então, um dos três falou em tom muito diferente:

— Do que realmente temos medo — ele disse — é de nossa reputação. Estamos muito mais preocupados com o que as pessoas poderiam dizer do que com o problema que esse alcoólico desconhecido nos traz. Conforme falávamos, cinco palavras curtas vieram à minha mente. Alguma coisa continua repetindo dentro de mim: o que o Mestre faria?

Nenhuma outra palavra foi dita.

CAPÍTULO SEIS

A O B R A D O RE I N O

Jesus Cristo não é apenas o centro do evangelho, mas é todo o evangelho. Os quatro evangelistas nunca se concentram em outra personalidade. Personagens marginais permanecem

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na periferia, e não se permite a mais ninguém tomar o centro do palco. Vários indivíduos são apresentados somente para interrogar, responder ou reagir a Jesus. Nicodemos, a mulher samaritana, Pedro, Tomé, Caifás, Pilatos e muitos outros são secundários em relação à pessoa de Jesus.

E é assim que deve ser, pois o Novo Testamento é uma visão da salvação. Quando baixar a última cortina, Jesus eclipsará todas as pessoas famosas, formosas e poderosas que já viveram. Cada homem e cada mulher serão considerados conforme sua resposta a Jesus. Segundo escreveu T. S. Eliot: "O minha alma, [...] prepara-te para quem sabe como questionar".9

No homem Jesus há uma absoluta compatibilidade de propósitos em relação a Deus. No entanto, aqui está em questão mais do que conhecimento e ligação afetiva: Jesus vive para esclarecer o reino de Deus e a vida no reino de Deus.

A minha comida é fazer a vontade daquele que me enviou e concluir a sua obra.

João 4:34

As palavras que eu lhes digo não são apenas minhas. Ao contrário, o Pai, que vive em mim, está realizando a sua obra.

João 14:10

Pai, se queres, afasta de mim este cálice; contudo, não seja feita a minha vontade, mas a tua.

Lucas 22:42

E no templo, Jesus responde de forma lacônica À sua mãe: "Por que vocês estavam me procurando? Não sabiam que eu devia estar na casa de meu Pai?" (Lc 2:49). Outra passagem é ainda mais básica. Jesus estava ensinando, cercado por um grupo de ouvintes. Alguém o tocou: "Tua mãe e teus irmãos estão lá fora e te procuram". E ele, que sabia muito bem quem era a sua mãe, retrucou com a mesma profundidade que marcou sua vida na terra: "Quem é minha mãe, e quem são meus irmãos?". Jesus fez uma pausa, olhou os que estavam sentados ao seu redor e continuou: "Aqui estão minha mãe e meus irmãos! Quem faz a vontade de Deus, este é meu irmão, minha irmã e minha mãe" (Mc 3:31-35).

Não devemos permitir que essas palavras sejam interpretadas como alegoria. A vontade de Deus é uma realidade. E como um rio de vida partindo de Deus em direção a Jesus — uma circulação sangüínea da qual ele recebe vida de maneira mais profunda e poderosa do que a recebida de sua mãe. E quem estiver pronto para fazer a vontade de Deus se torna parte dessa circulação sangüínea.

O crente, o homem que faz a vontade divina, está unido à vida de Cristo Jesus de forma ainda mais verdadeira, mais profunda e mais forte do que Jesus esteve unido à sua mãe. Percebemos aqui uma falta absoluta de sentimentalismo humano em Jesus. Os dois focos de seu ministério são Deus e ele próprio. Insistamos mais uma vez: é assim que deve ser.

A mente de Jesus estava fixada no cumprimento da vontade divina por meio da proclamação do reino de Deus. A intimidade de Jesus com Deus e a consciência da santidade de Deus o encheram de profunda sede das coisas divinas. Sua vida interior de confiança e rendição amorosa não é simplesmente questão de oração pessoal, experiência religiosa privada e júbilo na presença íntima de Deus. Essa relação limitada com Deus ignoraria o mundo real e sua luta por redenção, justiça e paz. Não, a vida interior de Jesus Cristo ganha expressão numa qualidade vital, especial, de presença no mundo e em situações mais ativas.

9 Coros de "A rocha", em Poesia. Trad. Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 183. (N. da T.)

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Havia um intenso desejo dentro de Jesus de apresentar seu Pai por meio do serviço ao pobre, ao cativo, ao cego e a todos os necessitados. Jesus era completamente consumido por essa missão. Foi a experiência de Jesus da santidade de Deus que criou o imperativo de pregar o reino da justiça, da paz e do amor clemente de Deus.

Jesus Cristo planejou sua vida em torno de tal missão, renunciando aos confortos da estabilidade e da permanência: "As raposas têm suas tocas e as aves do céu têm seus ninhos, mas o Filho do homem não tem onde repousar a cabeça" (Lc 9:58). Ele nunca se demorou muito num único lugar. Quando os discípulos o procuravam, ele respondia: "É necessário que eu pregue as boas-novas do Reino de Deus noutras cidades também, porque para isso fui enviado" (Lc 4:43). Outros teriam ficado para trás, preocupados com segurança, prazer e poder, mas Jesus seguiu em frente, sem parar, sempre dirigido pela visão do reino.

"A relação do Mestre com seus discípulos só pode ser compreendida no contexto da missão de Jesus", escreve José Comblin. Jesus não estava preocupado com as famílias de seus discípulos ou com as famílias de amigos e colegas. Quando um discípulo pediu um tempo para enterrar um familiar, Jesus respondeu: "Deixe que os mortos sepultem os seus próprios mortos; você, porém, vá e proclame o Reino de Deus" (Lc 9:60).

Quando Jesus recebeu o batismo de João no rio Jordão, passou por uma fundamental experiência de identidade. Os céus se abriram, o Espírito desceu na forma de uma pomba e Jesus ouviu a voz de seu Pai: "Tu és o meu Filho amado; em ti me agrado" (Lc 3:22). Os evangelhos sinóticos relacionam a identificação de Jesus como "servo de Javé" diretamente a Deus. Independentemente das evidências externas, Jesus experimentou no Jordão uma confirmação interior, decisiva, de que era o Filho, o Servo e o Amado do Pai. George Aschenbrenner diz: "Essa clara e essencial experiência de identidade origina-se da profunda intimidade com o seu Pai, é por ela produzida e a celebra".

As tentações no deserto desafiaram a autenticidade da experiência do Jordão. Todos os três estratagemas de Satanás ("se és o Filho de Deus...") tiveram a intenção de enfatizar a mesma questão: Jesus era realmente o Filho-Servo amado? Ou a experiência no Jordão foi somente uma ilusão? Alguém mais ouviu a voz que Jesus ouviu?

Satanás atacou frontalmente a identidade religiosa de Jesus. 0 periscópio do evangelho não descreve a luta interna e o conflito feroz no coração humano de Jesus, mas essa era uma questão tumultuosa. Aschenbrenner observa: "Aqui lhe era exigido, assumindo riscos e com confiança, que ratificasse, e assim assumisse como missão e atividade, a sua relação com o Pai". Na aridez, na simplicidade, na vastidão e no despojamento do deserto, Jesus interpretou, em novo e decisivo nível, sua existência e sua missão no mundo, emergindo do deserto com o sopro de Deus em sua face.

Não se deve supor, no entanto, que o tempo de provação havia acabado. Lucas diz: "Tendo terminado todas essas tentações, o Diabo o deixou até ocasião oportuna" (4:13). A confiança de Jesus no Pai não se amparava em uma única decisão que o deixava certo da sua missão e imune ao Tentador. A luta com o Diabo no deserto foi o primeiro de uma série de desafios à sua autoconsciência e identidade interna como Filho-Servo-Amado do Pai.

A constante tentação de seu ministério seria a de cumprir sua missão de modo contrário ao propósito de Deus. Ele poderia começar com uma demonstração flamejante de poder, transformando pedras em pão, e terminar com uma exibição sensacional de poder, descendo da cruz para vingar-se dos inimigos de Deus. O fascínio pelo aumento de segurança, prazer e poder é o caminho mundano de Satanás. Jesus rejeitou isso totalmente.

Na loucura final do amor, Jesus aceita livremente a morte na cruz. É o último ato de confiança, o ápice de uma vida vivida em Deus. Jesus sabe quem ele é. Ele reafirma sua posição como Filho-Servo-Amado do Pai e, no nível mais profundo de sua existência, cumpre sua missão. A morte de Jesus na cruz dá a forma final, definitiva e eterna de sua identidade espiritual e confiança íntima, amorosa em Deus. John Shea comenta: "Deus não ressuscitou Jesus dos mortos porque este nunca hesitou, replicou ou questionou, mas, havendo hesitado, replicado e questionado, ele permaneceu fiel".

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A autoconsciência de Jesus e o zelo incansável demonstrado em seu ministério devem ser compreendidos como relacionados direta e incessantemente à sua vida interior de crescente intimidade com o Pai. Não devemos perder de vista esta ligação lógica: a primazia da missão e seu profundo zelo em proclamar o reino de Deus não derivam de reflexão teológica, do desejo de edificar os outros, da espiritualidade da moda ou de um sentimento indefinido de boa vontade para com o mundo. Sua fonte é a santidade de Deus e a autoconsciência que Jesus possui de sua relação com Deus.

É altamente significativo que o evangelho seja pontuado por inúmeras interrupções das atividades principais de Jesus com o propósito de se retirar para orar. A Bíblia indica que Jesus precisavadesse tipo especial de contato íntimo com o Pai. Seu próprio crescimento interior e o senso de missão e direção dependiam muito dos momentos de oração. Shea diz: "Apesar de serem especulações (mas não especulações gratuitas), podemos imaginar que Jesus ia às montanhas para orar não porque estava marchando em direção ao reino, mas porque precisava renovar sua liberdade na garantia que Deus lhe dera".

O coração de Deus é o esconderijo de Jesus, um forte e protetor espaço onde Deus está próximo, onde a relação é renovada, onde a confiança, o amor e a autoconsciência nunca morrem, mas são continuamente reacesos. Em tempos de oposição, rejeição, ódio e perigo, Jesus retira-se para aquele esconderijo onde é amado. Em tempos de fraqueza e temor, nasce ali um vigor suave e uma perseverança poderosa. Em face ao aumento da incompreensão e da ' desconfiança, somente o Pai o compreende. "Ninguém sabe quem é o Filho, a não ser o Pai..." (Lc 10:22).

Os fariseus conspiram em segredo para destruí-lo, os amigos dos bons tempos faltam com a lealdade, um discípulo o nega e outro o trai, mas nada pode demover Jesus do amor do Pai. Na reclusão, nos lugares isolados, ele se encontra com El Shaddai, e o que esses momentos significam para o Mestre dificilmente poderia ser compreendido.

Mas uma coisa pode ser dita: a identidade primeira, crescente, definitiva de Jesus como o Filho, Servo e Amado de seu Pai é ali profundamente reforçada. Nada deve interferir na proclamação das boas-novas da vida eterna e na ajuda às pessoas para que tenham um estilo de vida que lhes permita crescer para a eternidade — um modo de paz e justiça, com lugar para a dignidade humana ser reconhecida e para o amor florescer.

Igualmente essencial em relação a isso é o fato de Jesus encorajar os discípulos a adotarem a mesma prática da pausa e do descanso. No retorno exultante dos discípulos após um ministério produtivo, Jesus os aconselha a preservar a humanidade e se centrar na autoconsciência: "Venham comigo para um lugar deserto e descansem um pouco. Então eles se afastaram num barco para um lugar deserto" (Mc 6:31-32).

É importante manter esses momentos de retiro no contexto e dentro do ritmo da vida muito ativa e atarefada de Jesus. Tais momentos de oração são sempre orientados para sua presença no mundo. As principais decisões de sua vida (por exemplo, a seleção dos doze que formariam um círculo íntimo de amizade e compartilhariam sua missão) são sempre precedidas de uma noite sozinho no topo da montanha. Sem esquecer, é claro, a noite de suplício no jardim do Getsêmani, passada em súplicas por forças para fazer a vontade do Pai.

É difícil, então, deixar de pensar na quantidade de casamentos errados, empregos errados, relações pessoais erradas e todo o sofrimento concomitante que seriam evitados se os cristãos submetessem o processo de tomada de decisão ao domínio de Jesus Cristo e compartilhassem a sua confiança na direção de Deus. Muitas vezes nos esquecemos de que temos o mesmo acesso a Deus desfrutado por Jesus. Mas jamais deveríamos nos esquecer de que o nosso Criador cuida de nós. Deus conhece cada um de nós pelo nome e está profundamente envolvido nos dramas de nossa existência pessoal. "Até os cabelos da cabeça de vocês estão todos contados" (Lc 12:7).

Dentro desse clima de confiança, podemos tranqüilamente procurar discernir a vontade de Deus. É em tal atmosfera que todas as decisões se tornam claras e todas as ações florescem. O resultado é menos vago, ambíguo e incerto do que poderíamos supor. Os sons da paz interior

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ressoam no coração afinado com Deus, enquanto o coração desafinado, iludido em cantar sua própria canção, pulsa com agitação, conflito, dissonância e contratempos.

Ao considerar o que significa para nós vestir a mente de Cristo, podemos facilmente nos afastar das preocupações de Jesus com a sua missão — ele era, afinal, o Messias, o Enviado. O Mestre era sem pecado e não teve nenhuma das distrações de família, trabalho e vida moderna se interpondo no caminho de seu chamado. Mas, em vez de sucumbir a essas distrações, podemos encontrar esperança seguindo o exemplo de Cristo em sua devoção sincera às coisas de Deus.

O "EU" DIVIDIDO

Jesus sempre pareceu saber quem era. Ao longo de sua vida, houve um desenvolvimento da consciência de sua pessoa e missão, mas ele sempre teve um sentido coerente do "eu". Sua autoconsciência habitual e sua fidelidade resoluta à missão contrastam com o modo como vivemos na sociedade contemporânea. Um estilo de vida centrado em segurança, prazer e poder impede a possibilidade de estabelecer qualquer sentido coerente do "eu" pela simples razão de que tais desejos excluem Deus de forma peremptória.

Da mesma maneira que a mente de Cristo Jesus criou o mundo, assim também nossa mente cria o nosso. Um "eu" ávido por segurança, prazer e poder barganha livremente a autoconsciência por alguma coisa que aumentará a ilusão de completude que esses desejos trazem. Nossos padrões viciosos (expectativas, desejos, afeições, demandas e modelos mentais) dominam a percepção do "eu", dos outros e do mundo. Esse centro ávido, manipulador, mantém-nos naquele passeio de montanha-russa de prazer e desapontamento que transforma a continuidade de caráter e a fidelidade à visão numa impossibilidade.

Paulo chama a vida conduzida pelo desejo sarx — a vida na carne. Nela, nossa programação mental e emocional nos coloca sob o controle da necessidade de obter o bastante do mundo para nos sentir seguros, impele-nos a encontrar a felicidade através de mais e melhores experiências prazerosas e dirige nossa vontade para o domínio de pessoas e situações, aumentando, assim, nosso prestígio e poder.

A crise de espiritualidade moderna, grosso modo, é Espírito versus carne. O fracasso ou a recusa em residir na mente de Cristo cria dualidade e separação dentro de nós. Não escolhemos com determinação entre Deus e Mamom, e nosso adiamento já constitui, em si, uma decisão. Nós nos dividimos cuidadosamente entre carne e Espírito com os olhos atentos em ambos. A relutância em admitir com toda a consciência que somos filhos de Deus causa esquizofrenia espiritual do tipo mais aterrador.

Não que eu tenha medo de lhe dizer quem sou; na verdade, posso lhe dizer porque eu mesmo não sei quem sou. Não dei a anuência interna e profunda à minha identidade cristã. Tenho medo de perder minha vida ao encontrar meu verdadeiro "eu". Deus me chama pelo meu nome, e não respondo porque não sei meu nome.

O estilo de vida dos cristãos esquizóides é errático porque, em diferentes momentos, nos separamos deliberadamente de nosso verdadeiro "eu". Agarramo-nos a certos eventos, experiências e relações por conta própria e excluímos a presença do Espírito que habita em nós. Pode ser um filme, uma conversa, um caso de amor ilícito ou uma transação empresarial. Depois, reentramos no "eu" que se considera cristão e tomamos parte em eventos onde Deus é celebrado em discursos e cânticos. Depois, confidenciamos a amigos que "o culto foi um pouco chato esta noite".

Alimentados pelo que alguém chamou "o agnosticismo da negligência" (falta de disciplina pessoal para superar o bombardeio da mídia, conversas fúteis e relações utilitárias), nossa autoconsciência torna-se embaçada, a presença de um Deus amoroso se perde na distância e a possibilidade de confiança e intimidade parece menos plausível. A desatenção com o sagrado destrói a abertura para o Espírito.

Da mesma maneira que a falta de atenção, na esfera das relações humanas, destrói o amor entre duas pessoas, assim a desatenção com o verdadeiro "eu" destrói a amorosa

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consciência da relação divina. Um coração imaturo se transforma em vinhedo devastado. É impossível contemplar Deus com o coração e a cabeça cheios de assuntos terrenos.

Quando periodicamente nos fechamos para Deus, nosso coração é tocado pelo frio dedo do agnosticismo. O agnosticismo cristão não consiste tanto na negação de um Deus pessoal quanto na incredulidade da desatenção ao sagrado. O modo como vivemos dá testemunho irrefutável de nossa consciência amorosa ou de sua falta.

Viver no Espírito implica o conhecimento existencial de ser amado por Deus e compartilhar a própria experiência por Jesus desse amor. Mas muitas coisas que fazemos em nossos momentos de solidão nada têm a ver com o Espírito ou com a vontade viva de Deus. Incomodados com tal dicotomia, mergulhamos em atividades espirituais e somos envolvidos por organizações e eventos relacionados à igreja num esforço de preencher o vazio que sabemos carecer de conteúdo.

Pouco propensos a renunciar ao controle administrativo de nossa vida e sem vontade de correr o risco de viver em união com Javé, procuramos segurança pessoal e certezas em rituais, devoções, liturgias e encontros de oração. Essas estruturas proporcionam uma quantidade módica de paz e prometem que a piedade confortável e as posses materiais que constituem o sentido do "eu" não serão perturbadas.

Há uma necessidade de discernimento cuidadoso aqui. As evidências de seriedade, sinceridade e esforço são importantes. Mas alguma coisa está faltando. Essa alguma coisa é a transparência. A glória que resplandece na face de Cristo Jesus não resplandece em muitos de nós. Diferentes de Jesus, não demos nossa anuência profunda e interna ao que pretendemos ser.

Não nos rendemos ao mistério do fogo do Espírito que queima por dentro. Até nos aproximamos o suficiente do fogo para sentir o calor, mas jamais mergulhamos nele, não saímos queimados e transformados de forma incandescente. Podemos ser mais agradáveis do que a maioria das pessoas, ou ter melhor moral, mas não vivemos como novas criaturas. Em vez disso, nossa personalidade opaca revela nosso coração dividido.

VIVENDO NO REINO

O único modo possível de escapar de nossa autoconsciência obsessiva e entrar na vida de Cristo é a rendição a Deus, permitindo que Deus seja Deus. Uma tal rendição envolve escavar o campo de nosso coração e procurar a pérola da verdade de Deus escondida no fundo de nós: pertencemos a Deus. Essa preciosa descoberta toma a segurança, o prazer e o poder em cacos pintados, sem valor. "Eu as considero [todas as coisas] como esterco para poder ganhar Cristo" (Fp 3:8).

Ao declarar a realidade de nossa condição divina como filhos e filhas do Criador do universo, adquirimos sentido coerente do "eu". Devemos nos perder para nos encontrar. A perda pavimenta o caminho para o Espírito Santo transformar nossa vida. Já apartados da carne, começamos a compreender o que Paulo quis dizer com: "Foi para a liberdade que Cristo nos libertou" (Gl 5:1).

A consciência amorosa de filho do Pai nos afasta de uma vida perdida na procura de nossos desejos básicos e nos liberta da busca pelo reino de Deus. Agora não precisamos viver vidas bifurcadas por nossas necessidades. Tudo o que temos e somos forma somente um "eu", um coração que bate com a essência de Jesus. Não pode haver firmeza de caráter ou consistência de conduta sem esse ato corajoso de auto-afirmação. Paulo disse: "Já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim" (Gl 2:20). Nisso se encontra a transparência.

Com o véu erguido, muito do sofrimento emocional causado por nossos desejos viciosos são curados. Podemos começar a derrubar todos os nossos jogos de manipulação: o jogo do dinheiro, o jogo da segurança, o jogo homem-mulher, o jogo do poder, o jogo do conhecimento, o jogo de ser especialista e assim por diante. Podemos nos apresentar simplesmente aos outros assim: "Aqui estou. É tudo o que tenho". Na autoconsciência humilde e em liberdade soberana, podemos verdadeiramente ser para os outros sem medo de rejeição, nem em razão do benefício que possam nos proporcionar.

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Certa noite, em Coney Island, eu e alguns amigos estávamos na entrada de um restaurante comendo cachorros-quentes. Perto dali, a alguns metros, no meio da calçada, um homem negro derramava uma lata de cerveja sobre a cabeça e a blusa de uma jovem branca grávida. Ela não devia ter mais que 15 anos de idade.

O homem relatava com detalhes sórdidos como havia abusado sexualmente da moça no passado e o que tinha em mente para mais tarde. Ela começou a chorar. Alguém de nosso grupo viu a cena com desgosto e disse:

— Vamos dar o fora daqui.

Começamos a andar para o carro quando, como um sino que soa profundamente dentro de minha alma, ouvi: "Quem é você?". Parei como se meus sapatos estivessem colados no chão.

Eu sou o filho de meu Pai — respondi.

Essa é minha filha — foi a réplica.

Voltei, afastei a garota dali e conversei com ela durante vários minutos. Alguns espectadores começaram a gritar comigo, chamando-me por nomes vulgares. Naquela noite, lamentei, não pela multidão ou mesmo pela garota, mas por mim. Lamentei pelas inúmeras vezes em que havia agido como a sentinela silenciosa, com medo de reconhecer quem sou, incapaz de reconhecer ao menos minhas irmãs. Vi a dignidade da jovem sendo degradada e fiquei contente por me afastar. Eu havia violado minha própria identidade: "Quem sabe que deve fazer o bem e não o faz, comete pecado" (Tg4:17).

Não raro somos automovidos e automotivados, em vez de ser movidos e motivados pelo Espírito. Quando o sentido do "eu" deriva de desejos básicos próprios, agimos de modo a obter a aprovação, evitar a crítica ou escapar da rejeição. Dietrich Bonhoeffer escreveu:

Satanás deseja que eu me volte para dentro de mim mesmo até que seja escravizado e me torne uma força destrutiva na comunidade. O impulso de Jesus Cristo é para aumentar a minha liberdade de forma que possa me tornar uma força de amor criativa. É o espírito do egocentrismo e do egoísmo contra o espírito da franqueza e da abnegação pelo benefício dos outros.

A cura para o nosso egoísmo é desenvolver um coração perspicaz. Quando vestimos a mente de Cristo e focalizamos o pensamento e o comportamento no reino de Deus, podemos começar a avaliar nossas escolhas, decisões e motivações sob nova luz. Saímos de uma condição em que éramos sonâmbulos e dirigidos por nossos instintos mais mundanos e passamos para um lugar de vida em total consciência de nossa posição como herdeiros do Deus supremo. George Maloney escreve:

Costumávamos taxar as pessoas de que não gostávamos conservadoras, se fôssemos liberais, e liberais, caso nos considerássemos conservadores. Outros grupos pessoais de conveniência eram as gerações mais jovens e as mais velhas. Hoje sinto que a verdadeira diferença que separa os humanos é a diferença entre pessoas (jovens e velhas) que vivem predominantemente num nível sensorial e as que vivem num nível mais elevado de consciência. O primeiro grupo é o sujeito ao qual se destina a publicidade típica da televisão de hoje. Acima de tudo, valorização do conforto corporal, da ausência de dor, de comer e dormir bem, beleza corporal e saúde tísica. O segundo grupo engloba um segmento menor da humanidade, o que está sempre atingindo uma maior síntese do conhecimento, uma maior experiência do sentido unificado da vida, com o homem dirigindo todas as suas energias para aquele fim.

De algum modo, o processo de focar nossa vida na mente e na obra de Jesus implica distanciar nosso "eu" do mundo ao redor, num esforço para escapar de nossas disfunções e nossos vícios. Para o mundo, parecemos loucos e desorientados. Portanto, esse tipo de foco não

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se impõe sem uma decisão diária (até mesmo de hora em hora) de se render ao domínio do Espírito. Ralph Martin diz:

Prontamente, para uma sincera vida de fé, devemos renunciar à escravidão às trevas; nos libertar da ligação com as coisas que nos afastam de uma pura rendição à ação de Deus em nós. Precisamos eliminar totalmente aquilo a que renunciamos ao fazer nosso batismo e que ratificamos a cada Páscoa. E é aqui que encontramos grande dificuldade e nos deparamos com os obstáculos do egoísmo, da sensualidade, da ambição, do ressentimento, do orgulho, do medo etc.

Os cristãos falam muitas vezes da necessidade de submissão a Deus. Mas há uma diferença essencial entre submissão e rendição. A primeira é a aceitação consciente da realidade. Há uma rendição superficial, mas a tensão continua. Digo que aceito quem sou, mas não aceito tão completamente que esteja disposto a realmente demonstrar como sou. Trata-se de uma aceitação indolente, que pode ser descrita por palavras como resignação, complacência, reconhecimento, concessão. Repousa ali um sentimento de reserva, um esforço na direção da não aceitação.

Em contrapartida, a rendição é o momento quando minhas forças de resistência param de agir, quando não posso fazer mais nada, exceto responder ao chamado do Espírito. "O estado emocional da rendição", escreve o dr. Harry S. Tiebout, "é um estado no qual existe uma persistente capacidade para aceitar a realidade. É um estado realmente positivo e criativo".

A capacidade de se entregar é um dom de Deus. Por mais que ansiosamente possamos desejar isso, por mais que diligentemente possamos nos esforçar para obter isso, a rendição não pode ser alcançada por empenho pessoal. "Com relação ao ato de rendição, deixe-me enfatizar este ponto", adverte Tiebout. "Trata-se de um evento inconsciente, não determinado pela vontade do paciente, ainda que ele assim o deseje".

Entretanto, a intensidade de nosso desejo importa. Nossa dedicação para o crescimento é o determinante isolado mais importante do desenvolvimento espiritual. Sem intenso compromisso interior somos pouco mais do que diletantes praticando jogos espirituais. A pérola de grande valor — a mente de Cristo — deve ser o mais valioso tesouro em nossa vida, e devemos procurá-la na oração perseverante, na cura sacramental e na força da comunidade cristã.

Somente então se revelará em nossa vida o milagre da transparência, do amor e da unidade. "Se vocês, apesar de serem maus, sabem dar boas coisas aos seus filhos, quanto mais o Pai que está nos céus dará o Espírito Santo a quem o pedir!" (Lc 11:13). É vontade de Deus que cresçamos em santidade (lTs 4:7), conheçamos a verdade que nos liberta (Jo 8:32) e nos alegremos com uma alegria que ninguém pode tirar de nós (Jo 16:22).

O REINO E O MUNDO

A consciência viva da bondade e do amor de seu Pai criou o imperativo missionário no coração de Jesus e o consumiu com o zelo pela casa do Pai (Jo 2:17). Pensar como Jesus é experimentar ser amado tão completamente por Deus que nos tornamos, em termos existenciais, incapazes de ser outra coisa senão os filhos do Pai em Cristo Jesus. Trata-se de uma novidade esmagadoramente jubilosa, que nos torna um povo esmagadoramente jubiloso. Não podemos reprimi-lo porque o amor, por sua natureza, significa compartilhar.

Percebemos, portanto, que todos os homens e mulheres são amados da mesma maneira, mas reconhecemos que muitos não sabem disso. Eles estão fechados na solidão, no medo, na alienação, na apatia e na ignorância. Ninguém lhes contou todas as coisas que aconteceram em Jerusalém; são como ovelhas sem um pastor.

A assombrosa performance de Robert DeNiro no filme Taxi driver captura com vigor essa condição. Ele interpreta Travis Bickle, um taxista que não sabe quem é, onde vai ou por que está

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vivendo. Ele procura um veterano taxista para conselho. "Não se leve tão a sério", ele lhe diz, "embebede-se e durma. É tudo o que há. Você é apenas um taxista". Quantos de nossos irmãos e irmãs vagam pelos dias com o mesmo sentimento de falta de propósito, de ser órfão no mundo. Que dádiva podemos ser para o mundo quando nos tornamos respostas transparentes às suas perguntas mais sinceras!

Em face à solidão e à dor que vemos no próximo, não podemos simplesmente fechar as portas e dizer: "Ficarei em meu próprio mundinho, seguro e sereno, na presença amorosa de Deus". Nossa consciência de Deus se torna o local de nascimento de um zelo consumidor e de um desejo muito grande de proclamá-lo do alto da montanha. Somos levados pelo Espírito a proclamar, pela palavra e pelo exemplo, a paz, a justiça e o amor clemente de Deus.

Talvez por nada mais (ou nada menos) do que nossa amizade oferecida a outro, uma amizade verdadeira, desinteressada, sem condescendência e cheia de profundo respeito, podemos levar o outro a descobrir: "Também sou amado por meu Pai em Jesus". É a consciência amorosa da santidade de Deus revelada em Jesus Cristo, junto com uma profunda compaixão pela humanidade redimida, que cria o imperativo da missão cristã.

Um amigo meu escreveu certa vez:

Ser um filho do Pai, como Jesus, é realmente se alegrar com essa relação e abraçar totalmente essa identidade. É desfrutar completamente e sentir grande orgulho por estar tão bem situado. É sentir o extraordinário privilégio que é meu, embora sem nenhum mérito próprio. É apreciar, num sentido muito humano, a dignidade do título a mim concedido e andar com minha cabeça erguida. E ter a conduta aristocrática de alguém nascido para a realeza. E não invejar nenhum homem por coisa alguma, pois minha posição privilegiada transcende todas as comparações, eclipsa todas as honrarias e títulos mundanos, e enche meu cálice com uma alegria para além de qualquer descrição.

Com o que meu Pai se parece? Um dia, ele ficou tão apreensivo de que eu não pudesse compreender quão amoroso e sábio, gentil e poderoso ele é que me enviou uma expressão completa e perfeita de si mesmo em seu Filho Jesus. Tudo o que meu Pai tem, ele confiou a Jesus, de forma que, ao contemplar Jesus, posso ver e conhecer meu Pai. Permita-me contar a coisa mais linda e emocionante que ele já me disse. Ao acordar a cada manhã e ao me deitar tranqüilo, enlevado e feliz, sempre ouço isto como pela primeira vez: "Como o Pai me amou, assim eu o amo".

A relação de Cristo com o Pai, além de seu contínuo foco nas coisas de Deus, leva-o a um lugar onde o desejo mais profundo é de que tudo e todos se encontrem unidos sob Deus. O desejo é refletido na "oração sacerdotal" de Jesus no cenáculo:

Para que todos sejam um, Pai, como tu estás em mim e eu em ti. Que eles também estejam em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste. Dei-lhes a glória que me deste, para que eles sejam um, assim como nós somos um: eu neles e tu em mim. Que eles sejam levados à plena unidade, para que o mundo saiba que tu me enviaste, e os amaste como igualmente me amaste.

João 17:21-23

Há na oração um chamado maravilhoso para a unidade entre a ordem criada e seu Criador. Se quisermos pensar como Jesus, devemos também abrir caminho por entre as ilusões de querer nos separar dos outros. Embora façamos um esforço consciente para viver distante das preocupações do mundo, também precisamos reconhecer que Deus criou um mundo repleto de beleza, brilho, vivacidade e intensidade. Tal reconhecimento é elemento essencial para habitar o reino de Deus. George Maloney escreve:

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Seja o que for que a pessoa estiver fazendo, abrindo ou fechando os olhos, ela encontra a Presença Divina em todos lugares, na unidade de todas as coisas. O que a impele para fora de si, num espírito de adoração e serviço [...] É uma experiência de Deus no âmago de toda a matéria. O homem ama este ser, esta pessoa, esta árvore, esta pedra e, ao mesmo tempo, ama a Deus. Não há um movimento deste para aquele, mas, em sua visão, ele vê a um só tempo o ser criado e o amor infinito de Deus, que criou este ser e o oferece ao homem como uma dádiva. Este encontra a dádiva e o Doador no mesmo olhar.

A cultura em que vivemos produz, em grande parte, o conceito de limites, de separação entre nós e os outros em prol da saúde mental. Em teoria, esse conceito nos permite viver de forma a impedir que as disfunções dos outros alterarem o modo que desejamos viver a própria vida.

Boa parte de nossa discussão até aqui poderia se enquadrar na definição de limites, ou seja, de como viver sem se preocupar com as expectativas dos outros. No entanto, devido a nossos desejos egocêntricos, torcemos a noção de limites para servir como desculpa para ignorar as necessidades dos outros. Permitimos a colocação de limites a fim de nos tornarmos não uma ferramenta para o crescimento, mas uma barreira entre os relacionamentos.

O chamado de Cristo à unidade nos ordena a agir para além do sentido isolador dos limites pessoais e das barreiras normalmente associadas ao comportamento automotivado. Já não posso mais olhar os outros como pessoas com quem não tenho ligação. Em vez disso, a unidade em Deus me chama a considerar todas as pessoas e coisas como extensão da família de Deus, na qual estou incluído. Não há limites entre a parte de Deus que vive no "eu" e a parte que vive em toda a criação. Sobre essa condição, Ken Keyes Jr. escreve:

Você pode agir com grande eficácia, pois perdeu as redes viciosas que limitavam sua receptividade. Você está agora em harmonia com as mais delicadas vibrações de todas as pessoas e do mundo ao seu redor. Abre-se um amplo espectro das melhores sugestões que o mundo ao seu redor lhe envia o tempo todo, mas que anteriormente não era possível captar, pois sua consciência estava ocupada.

A vida de Francisco de Assis oferece uma excelente idéia do que significa viver em unidade com a criação de Deus. Suas palavras e seus gestos são a manifestação de um coração completamente entregue a Deus. Francisco compreendeu que a beleza das coisas sensíveis é a voz com a qual anunciam Deus. "É você que me faz bonito, não eu, mas você". Naquele momento, Francisco descobriu aquilo que as coisas criadas ocultavam, mas agora a criação proclamava em alto som. Foi sua reflexão sobre elas e a atenção que ele lhes dedicou que soltou as vozes das coisas numa exclamação: "Como é bonito aquele que nos fez!".

Ao conversar amavelmente com os pássaros, ao repreender o lobo de Gubbio por perturbar a vizinhança, ao proteger um cordeiro em Porziuncola para lembrar os irmãos sobre o Cordeiro de Deus e escrever um cântico lírico ao Irmão Sol, Francisco comungou com Deus na natureza e revelou uma consciência cósmica de insuperável sensibilidade.

Acima de tudo, foi por seus gestos que Francisco refletiu a beleza transparente de seu espírito. Numa manhã chuvosa, ele se aproximou da praça onde ficava a igreja da aldeia. Uma multidão o seguia, cantando: "Santo, santo, o santo de Deus".

Os aldeões sabiam que o padre local não levava uma vida de retidão moral. Quando Francisco chegou à praça, aconteceu de o padre sair da igreja. A multidão observava num silêncio tenso. O que faria Francisco? Denunciaria o padre pelo escândalo que provocava? Pregaria aos aldeões sobre a natureza da fragilidade humana e a necessidade de compaixão? Simplesmente ignoraria o padre e continuaria seu caminho?

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Francisco deu um passo adiante, ajoelhou na lama, tomou a mão do padre e beijou-a. Isso foi tudo. "O esplendor de uma alma justa", escreveu Tomás de Aquino, "é tão atraente que ultrapassa a beleza de todas as coisas sensíveis".

Algo notável acontece quando admitimos nossa unidade com toda a criação de Deus: tudo aquilo que abandonamos, recebemos de volta. Nossas preocupações com relação a segurança, prazer e poder se desvanecem no reconhecimento de que tudo está bem no reino de Deus. O ensino de Jesus: "Não se preocupem com o amanhã, pois o amanhã trará as suas próprias preocupações" (Mt 6:34) não é mais uma máxima moral, mas uma realidade pessoal, no nível da experiência diária. Nesse contexto, o escritor Murray Bodo afirma sobre Francisco:

E ele não estava preocupado ou ansioso com o ontem, o hoje ou o amanhã, pois Cristo é, todas as coisas estão nele e ele está no Pai. Francisco não mais se preocupou, não porque fosse um otimista ingênuo, mas porque havia se tomado, em oração e penitência, um realista que via a insignificância de tudo, exceto de Deus, e em Deus, e com ele, e por ele, a importância de tudo. Deus estava em todos lugares e sua presença enchia a criação com um poder e uma glória que faziam tudo reluzir com bondade e beleza aos olhos de Francisco. O toque de Deus em tudo inspirava tudo o que existia.

Tudo o que fora abandonado é trazido de volta e experimentado de um novo modo pelo poder transformador do Espírito que nos habita. Segurança, prazer e poder estarão à disposição do amor e serão integrados na personalidade cristã total. Cessa a esquizofrenia espiritual que absorveu tanto tempo e drenou tanta força. Uma imensa quantidade de energia está agora disponível para a edificação do reino.

A paz e a alegria ininterruptas que fluem da união com Deus e com o mundo de Deus são os frutos triunfantes do Espírito Santo e o objetivo da peregrinação cristã. As duas estão disponíveis para nós nas mesmas condições que Francisco as obteve: completo desprendimento. Observa Bodo:

Tudo o que Francisco via ou ouvia ou cheirava ou inspirava era seu, porque nada lhe pertencia. Ele veementemente arrancou de seu coração todo desejo de posse e toda ganância, e conforme Jesus prometera, todas as coisas lhe foram dadas, carregadas e transbordantes de amor.

JUSTIÇA

Em 1975, o teólogo George Lindbeck afirmou:

Estamos agora, conforme se diz geralmente, em meio às mudanças mais importantes dos dois milênios de história cristã. Uma vitoriosa revolução contra os termos tradicionais de pensamento e de vida é um mal necessário hoje como em qualquer época no passado. Somos confrontados com inúmeras propostas, muitas vezes contraditórias, sobre o caminho que a mudança deveria tomar. Na opinião de alguns, para mencionar apenas dois exemplos, o caminho é o do movimento carismático e, para outros, o das teologias de libertação.

Mais de trinta anos depois, a concepção de mundo escolhida pelos que vêem através dos olhos e da mente de Cristo continua sendo um agradável casamento entre a espiritualidade pessoal e a teologia da libertação. Com Jesus, esperamos a unidade da comunidade global, o amanhecer do dia em que o leão deitará com o cordeiro, o Oriente e o Ocidente se compreenderão um ao outro, negros e brancos realmente se comunicarão, cidades apáticas e

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desesperadas experimentarão o brilho do sol de uma vida melhor e todos se alegrarão no Espírito que nos torna um só.

O sentimento de unidade com o mundo criado, nossa liberdade no Espírito e a consciência de que a libertação e a liberdade são o núcleo da mensagem de Jesus dirigem nossa atenção para a emancipação do mundo. Não podemos afirmar ter a mente de Cristo e ficar insensíveis à opressão de nossos irmãos. Não podemos fechar os olhos para a luta do mundo por redenção, liberdade e paz. Sabemos que o bem que se faz ao pobre — o menor de nossos irmãos (Mt 25:40) — se faz ao próprio Jesus. Sabemos que precisamos nos entregar a ação concreta em nome da libertação. Há coisas a se fazer. O teólogo Enrique Dussel diz:

A pessoa que enxerga um Outro livre na figura do pobre e liberta o escravo do Egito é quem verdadeiramente ama Deus, pois o escravo no Egito é a real epifania do próprio Deus. Se alguém libertar o escravo no Egito, libertará Deus. Mas, se renegar o escravo no Egito, renegará Deus. Quem não se dedica à libertação dos escravos no Egito é um ateu. E Caim matando Abel. Uma vez Abel morto, Caim ficou só. Ele acreditava ser agora o único, o Eterno. Ele se apresentou como um deus panteísta. Foi essa a tentação de Adão no Eden: "Vocês serão como deuses". Ser como Deus é pretender ser o único e supremo ser, é recusar-se a libertar o Outro, aquele que foi assassinado.

Deus, porém, continua se revelando a nós como o Outro que nos chama. Ele é o primeiro Outro. Se eu não ouvir meu semelhante escravizado, também não estarei ouvindo Deus. Se não me dedicar à libertação de meu semelhante, então sou um ateu.

Eu não somente não amo Deus, mas estou, de fato, lutando contra Deus, pois estou afirmando minha própria divindade.

O que leva os cristãos a colaborar na libertação do oprimido é a certeza de que a mensagem do evangelho é radicalmente incompatível com uma sociedade injusta, alienada. Muitos cristãos têm conhecido a Jesus Cristo de modo pessoal. Ele é o Salvador que, ao nos libertar do pecado, nos liberta da própria raiz da injustiça social. Sua obra redentora abrange toda a dimensão da existência humana. "A vida contínua da igreja como um processo de libertação é um princípio essencial na doutrina cristã", observa Dussel. "Ela está incorporada na noção do Pessach,10 e a vida da igreja é pascal".

O fogo da liberdade pentecostal deve ser lançado sobre as trevas das estruturas, instituições e situações opressoras e desumanizadoras. A obra redentora de Jesus Cristo continuará inacabada até que esse fogo seja aceso. A luz não comunga com a treva (lJo 1:5). Na condição de cristãos com a mente de Cristo, devemos questionar o mundo: "Quem são os opressores e quem são os oprimidos?".

O Espírito de Deus pode nos conduzir através do deserto para desejar, clamar e pregar a liberdade para toda a humanidade: na arena da política nacional ou local para legislá-la, na praça para preservá-la, no seio de nossa família para revitalizá-la ou no núcleo de nossa igreja moribunda para recriá-la.

A unidade tão fervorosamente desejada por Jesus Cristo e expressa em sua oração sacerdotal pressupõe a liberdade em todas as suas formas. A igreja, como corpo visível do Senhor, deve se empenhar para alcançar a liberdade global, participar na construção de uma ordem social justa, a fim de estimular e radicalizar a dedicação dos cristãos. A sagrada aliança entre a contemplação e a ação pode revitalizar a presença da igreja no mundo e tornar o comprometimento com o domínio de Jesus mais profundo e radical.

Quando passamos a ter a mente de Cristo, enxergamos nossa vida e o crescimento no Espirito de modo bastantes simples. Sabemos, parafraseando Pascal, que todas as teologias revolucionarias e libertárias, todas as espiritualidades carismáticas, asiáticas e apofáticas, todos

10 "Páscoa", em hebraico. E forma utilizada pelos judeus para designar a festa que comemora a libertação do Egito. (N. da T.)

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os monturos de retóricas e débeis boas intenções, todos os resmungos e hesitações dos cristãos cerebrais, ocupados em cultivar suas idolatrias, não valem mais que um ato de amor que, num determinado momento, emancipa um escravo do exílio no Egito.

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PARTE TRÊS

O PODER DA CRUZ

CAPÍTULO SETE

A S A B E D O R I A D A R E S S U R R E I Ç Ã O

Esta investigação sobre a mente de Cristo é reconhecidamente um construto simplificado, projetado para localizar, identificar e explorar a complexa rede de vontades, atitudes, motivações, padrões de pensamento e jogos de palavra que motivam o comportamento humano na carne e no Espírito. Nossa análise tem como meta a transparência infalivelmente associada à Verdade, que é Jesus Cristo.

No percurso, o Espírito Santo põe para fora o lixo que há no ferro-velho da mente, limpa o sótão da programação emocional viciada, livra o cristão da condenável prisão da carne e elimina considerável e desnecessário sofrimento existencial que não nasce da vontade de Deus. Agora resta uma questão crucial: onde se encontra o poder transformador? Uma exposição sobre a vida cristã pode ser informativa, até mesmo útil, mas "o Reino de Deus não consiste de palavras, mas de poder" (ICo 4:20).

Nenhum crente que esteja aberto a tudo o que é verdadeiro, correto, amável, nobre e puro (Fp 4:8) despreza a contribuição da ciência. O estudo da psicologia aumentou significativamente nossa compreensão do comportamento humano e forneceu uma chave para as câmaras internas da mente. Muitos na igreja passaram a apreciar os benefícios emocionais e espirituais do aconselhamento, das práticas de meditação, da ioga, da oração contemplativa e assim por diante.

Contudo, também precisamos reconhecer que tais práticas humanas são limitadas em sua capacidade de nos proporcionar completo discernimento e direção espiritual. Para isso, devemos nos voltar unicamente à Palavra inspirada de Deus. E o evangelho aponta para apenas uma fonte de redenção: a cruz de Jesus Cristo.

Jesus Cristo crucificado é o poder de Deus e a sabedoria de Deus (ICo 1:24). O poder do Pentecostes emana da cruz. O Pentecostes não é simplesmente a festa do Espírito Santo, mas a festa do poder da ressurreição e glória de Jesus Cristo comunicada a outros. Jesus não pôde ser glorificado até que fosse crucificado. Jesus não foi constituído o Filho messiânico de Deus em poder antes de morrer na carne. Assim acontece conosco. O poder do Senhor ressuscitado transmitido à igreja pelo Espírito Santo não pode ser recebido, a não ser pela participação na morte de Jesus.

Para nós, o processo de morte e ressurreição foi iniciado na conversão, mas para continuar a beber da água viva do Espírito, devemos nos aproximar do corpo do Deus crucificado, de quem emana as águas redentoras (Jo 19:34). Devemos continuamente ter "participação em seus sofrimentos" (Fp 3:10). Se existem poucos crentes cheios do Espírito, carregados de poder, transparentes, é porque poucos mergulharam na verdadeira vida de Jesus e morreram para o pecado, o egoísmo, a desonestidade e o amor degradado.

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Onde quer que o Espírito de Deus sopre como um furacão na história cristã, ele o faz por meio dos profetas e amantes de Cristo, que têm incondicionalmente se rendido à loucura da cruz. "Os mistérios do sofrimento e da morte de Cristo", escreve Bernard Tyrell, "são inexauríveis na riqueza do seu propósito, do seu valor e do seu poder de cura".

A investigação da mente de Cristo é uma viagem a lugar nenhum se o peregrino ainda estiver preso à carne. A transparência será obstruída se ele cobrir com um pano de seda a áspera madeira da cruz. O poder do Espírito somente opera com dinamismo naqueles cristãos que participam do sofrimento de Jesus, da vergonha, da humilhação e da dor de sua cruz. Lucien Cerfaux afirma: "Se a palavra da cruz é o poder de Deus, é precisamente porque ela carrega consigo o poder da ressurreição".

O poder da ressurreição é nulo a menos que crucifiquemos "a carne, com as suas paixões e os seus desejos" (Gl 5:24). O impacto de todo esforço sincero para melhoria, restauração e renovação espiritual desaparecerá como num sonho da noite passada se não for sustentado pelo poder do mistério pascal. O poder indizível do Espírito é libertado com força extraordinária pela loucura da cruz, que é

... escândalo para os judeus e loucura para os gentios, mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é o poder de Deus e a sabedoria de Deus. Porque a loucura de Deus é mais sábia que a sabedoria humana, e a fraqueza de Deus é mais forte que a força do homem.

ICoríntios 1:23-25

Segundo Paulo, o sinal perfeito da maturidade humana é a cruz. É a principal manifestação do amor sincero com o qual Jesus obedeceu a vontade de Deus, entre as duras realidades de sua curta permanência na terra. Com a mesma chama de amor filial que o elevou ao Pai na manhã da Páscoa, Jesus se capacitara para suportar a dor do sofrimento e da morte. O amor era o significado da cruz, ainda que seu fogo estivesse oculto nas sombras, e foi esse mesmo amor que irrompeu das trevas para a glória no completo esplendor da ressurreição. Barnabas Ahern escreve:

Considerando-se que é o mesmo amor que encheu o coração do Crucificado e que vive no Senhor da glória ressuscitado, pode-se perguntar por que Paulo não usou a expressão "sabedoria da ressurreição". A resposta é simples. Paulo escreveu as epístolas para pessoas que viviam neste mundo, e não no mundo do porvir. Recomendar "a sabedoria da ressurreição" careceria do realismo de que os convertidos precisavam para enfrentar a verdade da vida terrena. Como os coríntios eram tolos o bastante para acreditar que já haviam alcançado a plenitude da vida ressurreta (ICo 4:8), era esse o tipo de fantasia que Paulo precisava corrigir. O homem que vive neste mundo deve enfrentar a dura realidade: a vida terrena, endurecida pelo pecado pessoal e global, nunca pode ser uma utopia.

Pouco antes de Paulo chegar em Corinto, ele havia passado por Atenas. Ele está, então, desanimado por ter fracassado em conquistar a comunidade grega pelo uso da teologia natural. Falando agora aos coríntios incultos, muitos dos quais levavam vidas depravadas, Paulo abandona completamente a abordagem da sabedoria prolixa e prega a loucura da cruz. "Pois a mensagem da cruz é loucura para os que estão perecendo, mas para nós, que estamos sendo salvos, é o poder de Deus" (ICo 1:18).

George Montague observa: "Quando Paulo usa aqui a palavra loucura ou absurdo, a palavra grega (movia) sugere algo que é simplório, estúpido, banal, ou seja, loucura não no sentido de ser socialmente perigoso, mas antes menosprezado, ignorado porque é ridículo". E é isso precisamente o que Paulo proclama. Suas palavras contrariam o gosto natural dos judeu e gregos, pois ele prega o Cristo crucificado. Os judeus estão, de fato, procurando um Messias, mas

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a morte vergonhosa de Jesus na cruz prova que ele não era o glorioso libertador que esperavam. A cruz permanece sendo um impedimento para eles, um obstáculo para a fé.

Os gregos entendem a figura do Messias como um filósofo maior que Platão. Ele levará os homens a contemplar a ordem e a harmonia do universo. Mas que Messias é esse que mexerá com tal devoção confortável e culta, invertendo seus valores e indo para a morte numa cruz, vítima dos detritos irracionais da humanidade? Tal Messias é realmente uma estupidez aos gregos.

No entanto, Paulo prega a loucura da cruz — o Cristo crucificado que é o poder e a sabedoria de Deus — e consegue um incrível sucesso. A pregação da cruz chama o Espírito para a vida. Judeus e gregos, postos no mesmo patamar, deixam de lado seus preconceitos para serem tocados pelo poder e pela sabedoria da cruz. Anos mais tarde, o pai da igreja João Crisóstomo escreveu:

Quando os que buscam sinais e sabedoria não apenas deixam de encontrar tais coisas, mas até mesmo ouvem o contrário do que desejam e, então, por meio desse contrário são persuadidos — isso não mostra o poder indizível daquele que está sendo anunciado? Algo semelhante a um navegante pego na tempestade e desejoso de um porto, a quem você, em vez de indicar um porto, levasse a outra parte mais violenta do mar, e mesmo assim esse alguém o seguisse com gratidão. Ou igual a um médico que atraísse um homem ferido e, na falta de medicamento, prometesse curá-lo não com drogas, mas queimando-o novamente! Isso é, de fato, resultado de grande poder. Assim também os apóstolos foram vitoriosos não apenas sem mostrar um sinal, mas realmente com algo que parecia contrário a todos os sinais conhecidos.

Todo o cânone paulino sugere, sem nenhuma sombra de dúvida, que Paulo aqui não somente está falando da cruz, mas também da ressurreição, a qual prova que aquela é o poder e a sabedoria de Deus. O mapa rodoviário para a mente de Cristo possui como emblema o sinal da cruz.

Os quatro evangelhos são os constituintes da igreja primitiva. Eles estabelecem o caráter fundamental e as características essenciais da comunidade apostólica. A igreja moderna se esforça para se conformar a eles. Tudo o que é enfatizado no Novo Testamento deveria ser enfatizado na igreja de hoje. Tudo o que era periférico não deveria se tornar central hoje.

Jesus Cristo, no mistério de sua morte e ressurreição, está no centro do Novo Testamento desde a genealogia de Mateus até o "maranata" do Apocalipse. Em 1959, num discurso feito em Veneza, Itália, Giovanni Montini expôs tal idéia deste modo: "Compreender o mistério pascal é compreender o cristianismo, ignorar o mistério pascal é ignorar o cristianismo". A mesma lógica rigorosa deve ser aplicada à vida espiritual do cristão. A espiritualidade da igreja é uma espiritualidade pascal, e não outra qualquer.

Voltemos, por um momento, nossa atenção mais uma vez a Francisco de Assis, o homem chamado por seus contemporâneos "a mais perfeita imagem de Cristo que já existiu". Ele subiu ao monte santo, e seu espírito serve como uma tocha sobre o caminho estreito. Seu biógrafo, Tomás de Celano, escreveu: "As palavras só ganham sentido quando se tenta expressar o amor de Francisco pelo seu Senhor crucificado". Mais de 130 anos depois da morte de Francisco, o teólogo Bonaventure afirmou: "O amor de Jesus Cristo crucificado absorveu de tal modo a mente de Francisco que esse amor se revelou na sua carne. Durante dois anos antes de sua morte, ele carregou no corpo as marcas da crucificação".

Há dois modos certeiros para o cristão se privar do poder e da sabedoria da cruz e, deste modo, perder sua força transformadora. O primeiro é intelectualizar a crucificação, falar em tons pedantes sobre o valor soteriológico da morte redentora de Jesus. Essa abordagem a reduz e a envolve numa capa protetora que a designa apenas para a mente. Não transmite inspiração para o restante de nosso ser; nenhuma vontade visceral de mudar.

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A cruz é um fato degradante de nossa história e, portanto, precisamos resistir à tentação de amenizar seu significado. Carlo Carretto diz: "Sendo cristãos, é melhor que nós não nos vangloriemos do triunfo da ressurreição sem antes aceitar a tremenda realidade da crucificação e morte [de Cristo] em nós". Temos suavizado a cruz ao trivializá-la (chegando mesmo a removê-la de algumas de nossas igrejas), ao ajustá-la com precisão ao nosso teologismo esquemático e ao ignorá-la em favor da ressurreição.

O sofrimento e a morte de Jesus Cristo não aconteceram num plano frio, intelectual, estrelado. Esvaziamos seu pleno significado ao nos referir a ela nos tons neutros de especulação teológica, o que leva até mesmo a sermões abstratos e pregações vazias. Intelectualizar é um modo sutil, mas eficiente, de roubar-lhe seu poder. Jürgen Moltmann, citando H. J. Iwand, diz: "Fizemos a amargura da cruz, a revelação de Deus na cruz de Jesus Cristo, tolerável a nós mesmos, aprendendo a entendê-la como uma necessidade no processo de salvação. [...] Em conseqüência, a cruz perde seu caráter arbitrário e incompreensível".

O segundo modo é mineralizar a crucificação. Você conhece aquele homem seminu, tranqüilo e familiar, pendurado num crucifixo. Ao transformá-lo num objeto de ouro, prata, bronze ou mármore, livramo-nos de sua agonia e morte como homem. "Não é simplesmente magnífico o Cristo de S. João da Cruz de Salvador Dali?", dizemos enfatuados. Francisco teria lamentado. Quanto mais o reproduzimos, mais nos esquecemos dele e de sua hora terceira.

No dia em que o homem mineralizado foi crucificado, não havia nada nele, a não ser medo e carne. Anos atrás, um amigo me deu um crucifixo muito caro. Um renomado artista contemporâneo havia esculpido as mãos de Jesus delicadamente na madeira. Na hora terceira, no entanto, os artistas romanos esculpiram o homem crucificado sem nenhuma arte. Não foi aplicada nenhuma delicadeza ao se martelar os cravos, nenhum pigmento vermelho foi necessário para representar uma gota realística do fluxo de sangue de suas mãos e seus pés. Sua boca foi extraordinariamente contorcida apenas com seu levantamento na cruz e sua permanência ali, tremendo de dor.

Temos de tal modo intelectualizado e mineralizado o sofrimento e a morte desse Homem santo que já não enxergamos o lento desfibrar de seu tecido, a expansão da gangrena, sua sede intensa. Em vez disso, a imagem que temos dele no crucifixo parece tão tranqüila, especialmente a que o mostra usando vestes sacerdotais. Supomos, por sua postura calma, que toda a sua vida foi assim.

Jesus entrou em nosso mundo como um músico, mas o mundo foi perturbado por seu cântico. Na sexta-feira da crucificação, o mundo retornou à paz da qual necessitava. Jesus quis transformar o mundo num grande órgão de catedral, e extraiu música do pão seco, de manadas de porcos, de prostitutas e defuntos. Naim, Jericó, Cafarnaum e Betânia puseram dois pregos em suas mãos para calar sua música. Chicago, St. Louis, Nova York e Los Angeles fazem a mesma coisa com suas mentes e seus minerais.

Eu gostaria de ser Francisco, nem que fosse apenas por uma hora. Não porque o escritor Renan o chamou "único verdadeiro cristão depois de Cristo"; nem porque Daniel Lord o descreveu como "o mais semelhante a Cristo entre todos os santos"; nem ainda porque o teólogo Romano Guardini disse que "o Galileu voltou à terra em Assis".

O segredo da transparência de Francisco se enraíza na madeira da cruz. Ele muitas vezes entrou em êxtase diante de uma imagem do Senhor crucificado. Num momento como esse, os pensamentos de Francisco poriam abaixo todos os meus elevados conceitos teológicos e me faria esquecer meus queridos minerais. Segurança, prazer e poder cessariam sua sirene, porque eu compreenderia o mistério da hora terceira e conheceria o amor incomparável no coração de Jesus Cristo, que agradou o divino Pai.

Nos primeiros tempos da Ordem Franciscana, quando os frades ainda não estavam familiarizados com os salmos, eles perguntaram com muita simplicidade a Francisco como deveriam orar. Ele respondeu: "Orem deste modo: nós o adoramos, Senhor Jesus Cristo, e o louvamos porque, através de sua santa cruz, redimiu o mundo". Desde sua conversão até sua morte, Francisco se preocupou, tanto na mente quanto no coração, com Jesus Cristo crucificado e com

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O poder e a sabedoria de Deus. A cruz era o motivo de sua pobreza, a fonte de sua perfeita alegria, a alma de sua transparência. Ele era como um homem obcecado, sua mente fervilhava com um só pensamento e seu coração chamejava com um só desejo: conhecer o Cristo crucificado.

Francisco separou o essencial do secundário e considerou seu modo de vida simplesmente conseqüência exterior de um imenso, apaixonado e determinado amor à pessoa de Jesus. Assinar todas suas cartas com o tau,11 fazer dele a sua bandeira exclusiva na parede da cela, romper com a tradição monástica beneditina e fundar uma ordem mendicante, passar semanas e meses nos carceri (grutas) em livre louvor a Deus, viver em pobreza e simplicidade absolutas, tudo isso não se tratava de desejo por novidade, mas de compulsão do amor.

O que é central no Novo Testamento deve ser centrai na vida da igreja hoje. O que era central na vida de Francisco deveria ser central na vida do peregrino que busca uma compreensão cristã mais elevada e uma união transparente com Deus.

Estou escrevendo estas palavras às duas horas da madrugada da Sexta-Feira da Paixão. O campus da universidade está dormindo, meu espírito está sensível a Deus. Em algum lugar distante, um rádio está tocando. É um antigo spiritual: "Eu creio numa colina chamada monte Calvário". As palavras: "Eu creio que Cristo, que foi morto na cruz, tem o poder de mudar vidas hoje". Eu ouço Jesus proferindo a palavra profética na quietude da noite:

Irmãozinho, talvez a coisa mais difícil para você aceitar neste momento seja o fracasso em fazer de sua vida o que deseja. Esta é a cruz que você menos quis, a cruz que nunca esperou, a cruz que acha mais difícil de carregar. De algum lugar você tirou a idéia de que eu esperava que sua vida fosse uma história imaculada de sucesso, uma espiral ascendente indestrutível para a santidade. Não percebe que sou realista demais para isso?

Testemunhei um Pedro afirmando três vezes não me conhecer, um Tiago que quis poder em troca do serviço ao reino, um Filipe que, depois de três anos comigo, não sabia que devia ver o Pai em mim e um grupo de discípulos que estavam certos do meu fim no Calvário. O Novo Testamento está repleto de homens que começaram bem e vacilaram. Entretanto, apareci a Pedro. Tiago não é lembrado por sua ambição, mas pelo auto-sacrifício ao reino. Filipe viu o Pai em Cristo quando lhe mostrei o caminho. E os discípulos, antes desesperados, tiveram coragem suficiente para me reconhecer no estranho que repartia com eles o pão na escuridão da estrada para Emaús. A questão é esta: espero mais fracassos seus do que você espera de si mesmo.

O mais urgente agora, irmãozinho, é desejar o Espírito Santo. Clame, deseje fervorosamente e ore pelo Espírito noite e dia em incansável intercessão. Somente o Espírito pode levá-lo adiante e para cima. Somente o Espírito pode torná-lo bom e manter seus olhos fixos em mim.

Felizmente, sua vida, assim como a minha, percebe a ressurreição depois do Calvário. E minha natureza humana, em sua presente ressurreição, obtida completamente do esplendor da divindade, que mostra, como claro espelho, tudo para o que você foi chamado. Se sofre comigo, você será glorificado comigo. O destino de Cristo, seu irmão, é seu destino. Com o apóstolo Tomé, vá a Jerusalém e morra comigo. Quando for, lembre-se de que, quando ascendi aos lugares divinos, não saí da terra. Permaneci em muitos lugares e, singularmente, em seu coração. É de sua interioridade profunda que obterá força para continuar a viagem, nada louvando, nada valorizando, de nada se vangloriando, além da cruz que carreguei sozinho na longa estrada do Calvário.

11 Nome da 19ª letra do alfabeto grego (z) e da última do alfabeto hebraico (x). É a mais antiga grafia sob a forma de cruz. Esse sinal foi adotado por algumas ordens religiosas como símbolo da cruz de Cristo, e Francisco de Assis o utilizava como assinatura. A escolha do tau está associada ao texto de Ezequiel 9:1-7, que fala de pessoas sendo marcadas com um "sinal" (tau) em razão de gemerem e chorarem pelas abominações cometidas em Jerusalém. (N. da T.)

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O poder e a sabedoria de Deus manifestam-se singularmente na morte e na ressurreição de Jesus Cristo. E, de fato, surpreendente que do maior ato de amor de Jesus flua seu maior poder? A vida do cristão não é a imitação de um herói morto. O cristão vive em Cristo, e Cristo vive no cristão por meio do Espírito Santo. Somos capacitados para viver nova vida, na qual o pecado não tem lugar. Se não o fazemos, frustramos o poder do mistério pascal por recusar a fé no poder. "Quantas vezes os cristãos não parecem dispostos a acreditar que foram transformados e que o impossível se tornou possível?", pergunta John McKenzie.

VIDA NO ESPÍRITO

Sem o Espírito Santo mediado pela cruz de Jesus, somos destinados a uma vida de medo, vício e dor. Mas quando compreendemos a realidade da cruz e sublimamos tudo na vontade do Espírito Santo, tocamos no rico veio do tesouro disponível pelo Espírito de Deus. Imagine a vida com os seguintes dons:

O dom da Páscoa: libertação do medo da morte

A morte de Jesus possibilita a resposta à freqüente e apavorante questão da alienação e do absurdo. Tememos o fim da vida porque significa o fim de nossa influência, nosso afeto, do tempo com nossos amados. O teólogo Wolfhart Pannenberg escreve:

A morte de Jesus privou a morte de seu poder de nos separar de Deus. Sua morte não o separou de Deus. Uma vez que o Pai mantém sua comunhão com Jesus em sua morte na cruz, a morte perdeu seu poder de separar de Deus. Portanto, a comunhão com Deus está aberta a todos cuja vida terminaria em morte. O amor de Deus pelo mundo toma-se tangível em Jesus.

A promessa do mistério pascal é que haverá tempo de sobra (interminável) para conhecer, amar e se alegrar uns com os outros no reino de Deus.

O dom de Dietrich Bonhoeffer: o amor que perdoa

"Quando ainda éramos fracos, Cristo morreu pelos ímpios", conforme Romanos 5:6. O sinal indiscutível dos cristãos que foram perdoados é a habilidade de amar seus inimigos. É um dom extraordinário e a marca infalível da atividade do Espírito Santo. "Amem, porém, os seus inimigos, façam-lhes o bem [...] Então, a recompensa que terão será grande e vocês serão filhos do Altíssimo, porque ele é bondoso para com os ingratos e maus" (Lc 6:35).

Não possuímos a mente de Cristo até nos reconhecermos como inimigos perdoados de Deus e, de certa forma, estender o perdão e a reconciliação aos nossos inimigos. Jesus Cristo crucificado não é somente um exemplo heróico para a igreja; é o poder de Deus, força viva que transforma nossa vida por sua Palavra: "Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que estão fazendo" (Lc 23:34). Em cada ato de perdão pessoal, o cristão encontra o Deus que Moisés conheceu: "E passou diante de Moisés, proclamando: "SENHOR, SENHOR, Deus compassivo e misericordioso, paciente, cheio de amor e de fidelidade, que mantém o seu amor a milhares e perdoa a maldade, a rebelião e o pecado (Ex 34:6-7).

O dom do cobrador de impostos: pobreza de espírito

"Ele nem ousava olhar para o céu, mas batendo no peito, dizia: 'Deus, tem misericórdia de mim, que sou pecador'" (Lc 18:13). O poeta francês Paul Claudel disse que o maior pecado é perder o sentido do pecado. O homem sem um sentido vivo do horror do pecado não conhece Jesus Cristo crucificado.

O conhecimento de que o pecado existe e de que somos pecadores só vem da cruz. Podemos nos iludir, acreditando que o pecado é simplesmente uma aberração ou falta de

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maturidade; que a preocupação com segurança, prazer e poder é causada por estruturas sociais opressivas e idiossincrasias de personalidade; que somos pecaminosos, mas não pecadores, já que somos meras vítimas de circunstâncias, compulsões, meio ambiente, hábitos, educação e assim por diante.

O sofrimento de Cristo expõe essas mentiras e racionalizações na cruz da verdade. Mesmo a última perversão da verdade a que nos apegamos — a gabarolice de que somos, ao contrário, bastante humildes ao negar qualquer semelhança com Cristo — desaparece quando ficamos frente a frente com o crucificado Filho do homem.

O dom de madre Teresa: serviço abnegado

Esse dom incorpora a mente de Cristo. É o modo mais eficaz de transcender os desejos que continuamente focalizam a atenção no "eu". Madre Teresa se dedicou aos que a maioria de nós atravessaria a rua para evitar: o sujo, o doente, o infetado, o desesperado. Sua motivação não era conseguir reconhecimento ou mesmo o agradável sentimento de ajudar outros. Para ela, servir significava dar amor, doar-se. Ela falou uma vez de seu trabalho: "Não é quanto fazemos, mas quanto amor colocamos no que fazemos. Não é quanto nos doamos, mas quanto amor colocamos em tal doação".

Ao sofre na cruz, Jesus abandona completamente seu "eu". Ele é o homem para os outros. Ele esquece de si. Preocupa-se com os apóstolos (Jo 18:8). Tenta sensibilizar Pilatos. Conforta as mulheres a caminho da cruz. Perdoa o ladrão. Oferece conforto a Maria e João quando se encontram ao pé da cruz. O dom mediador aqui é o poder de sair de si mesmo através do serviço abnegado.

O dom de Francisco de Assis: um coração alegre

"Sejam agradecidos" (Cl 3:15). A ação de graças é o cântico do pecador salvo. Já vimos que, imerso na consciência do Calvário, do amor misericordioso do Deus redentor, o teor da vida de Francisco se tornou em humilde e alegre ação de graças. Por nenhum mérito nosso, mas pela misericórdia divina, fomos chamados das trevas para a magnífica luz. "Pois vocês são salvos pela graça, por meio da fé — e isto não vem de vocês — é dom de Deus" (Ef 2:8).

O desnecessário sofrimento emocional associado com o viver por nosso desejo de segurança, prazer e poder (depressão, ansiedade, culpa, medo e tristeza) é subjugado pelo poder transformador do amor de Jesus Cristo. A cruz é uma confrontação com a irresistível bondade de Deus e o mistério de seu amor. Deus se agrada quando trabalhamos e se deleita quando cantamos. E o pecador salvo canta: "É justo lhe dar graças e louvor". John J. English escreve:

Eu me lembro da mudança de uma pessoa em particular. Um grupo de pessoas que conhecia o homem há anos se afastou dele, pois não podiam suportar o modo como mudou. Até mesmo sua expressão facial foi transformada. De repente, ele se libertara. A experiência básica era a profunda percepção de que Deus o amava. Ele havia alcançado muito pela oração ao nosso Senhor suspenso na cruz. E foi profundamente tocado pelas palavras de Paulo: "Mas Deus demonstra seu amor por nós: Cristo morreu em nosso favor quando ainda éramos pecadores". A experiência que possuía do amor humano não tinha o poder de libertá-lo como fez aquela simples oração diante do Senhor crucificado.

O dom do Cristo crucificado: fidelidade ao compromisso com a vida de alguém

No Calvário, Jesus sela sua eleição como Messias. Suporta tudo com firmeza, apesar da solidão e da desolação que provocam enorme pressão sobre sua autoconsciência de Filho-Servo-Amado. Participamos do pessach (em hebraico, "passagem") de Jesus ao compartilhar o sofrimento e a morte advindos da firme manutenção de nosso compromisso.

O poder das trevas (segurança, prazer e poder) tenta nos seduzir a retornar, a renegar nosso compromisso, a renunciar à obediência a Cristo por uma espécie de auto-aniquilação física

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ou moral. A cruz nos confronta com o custo do discipulado, nos lembra que não há Pentecostes fácil e leva dentro de si o poder vivo que nos capacita a suportar inevitáveis humilhações, rejeições, sacrificios e solidão impostos pela viagem a uma consciência cristã elevada.

O dom de Maria Madalena: o amor desinteressado

No reino do discipulado cristão, é possível que a igreja nunca tenha congregado alguém que amasse mais Jesus Cristo que Maria Madalena. O foco de sua atenção ao longo da crucificação não foi o sofrimento, mas o Cristo sofredor, que a amou e se entregou por ela. Não devemos aceitar que essas palavras sejam interpretadas como alegoria. O amor de Jesus Cristo na cruz era uma realidade ardente por Madalena, e a vida dessa mulher é totalmente incompreensível sem isso. Se for para falar da vida cristã, da espiritualidade autêntica ou dons do Espírito Santo, deve-se falar de Jesus Cristo pregado na cruz, ou não se falar nada.

Em um comentário sobre o jantar na casa de Simão, o fariseu (Lc 7:36-50), Père de la Colombière disse: "É certo que, de todos ali presentes, quem mais honra o Senhor é a pecadora, que está tão convencida da infinita misericórdia de Deus que todos os seus pecados lhe parecem apenas um átomo na presença dessa misericórdia".

Jesus disse: "E conhecerão a verdade, e a verdade os libertará" (Jo 8:32). Qual é a verdade básica que liberta Maria Madalena? É que Deus a ama com um amor extraordinário. Esse dom — não a cognição intelectual, mas a consciência de sua experiência — é mediado pelo Espírito do Cristo crucificado. A experiência pessoal viva do amor de Jesus Cristo é o poder e a sabedoria que ilumina, transforma e transfigura Maria Madalena e todos os amantes extravagantes em história cristã. A palavra profética do Senhor a Margery Kempe, de Lynn, permanece sempre antiga, sempre atual: "Mais agradável a mim do que todas as suas orações, penitências e boas obras é que você acredite que eu a amo".

CRISTIANISMO AUTÊNTICO

No inverno de 1968, morei numa caverna no deserto de Zaragoza, na Espanha. Encravada em uma montanha de granito, ela se encontra a cerca de 1.800 metros acima do nível do mar. Ali não via outra face nem ouvia o som de uma voz humana, exceto nas manhãs de domingo, quando um irmão da aldeia de Farlete trazia comida, água e querosene para o lampião que usava para ler à noite.

A caverna fora compartimentada: à direita havia uma capela com um notável altar de pedra, um tabernáculo feito de ferro forjado e entrelaçado com veludo vermelho, que o assemelhava a uma arca do tesouro, e um grande crucifixo na parede de fundo. O lado esquerdo era equipado com uma laje de pedra que servia de cama, uma escrivaninha de pedra, uma cadeira de madeira, um fogareiro e um lampião de querosene. Eu me levantava toda manhã às duas horas para o que a igreja antiga chamava "adoração noturna".

Na noite de 13 de dezembro de 1968, durante o que começou como uma longa e solitária hora de oração, ouvi Jesus dizer: "Por amor a você, deixei a companhia de meu Pai. Vim até você, que correu de mim, fugiu, não quis ouvir meu nome. Por amor a você, fui coberto de cuspe, perfurado e espancado e preso à madeira da cruz".

Justamente nessa manhã, num período de tranqüilidade, percebi que aquelas palavras ainda estão acesas em minha vida. Mesmo que esteja em estado de pecado ou de graça, fidelidade ou infidelidade, as palavras permanecem. Naquela noite de 1968, olhei muito tempo para o crucifixo e, simbolicamente, vi o sangue fluindo de cada ferida e poro do corpo de Cristo. Ouvi o clamor de seu sangue: "Isto não é brincadeira. Não é um jogo ou uma piada o fato de que o amei".

Quanto mais olhava, mais compreendia que nenhum homem havia me amado e que nenhuma mulher jamais poderia me amar como ele. Aprendi naquela noite o que um sábio franciscano me disse no dia em que entrei para a ordem: "Quando você conhecer o amor de Jesus Cristo, nada mais no mundo parecerá belo ou desejável".

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Há quanto tempo você é cristão? Há quanto tempo tem vivido no Espírito? Sabe o que é amar Jesus Cristo? O que é ter seu amor insatisfeito, suportado na solidão e pronto para abrir seu coração inquieto, voraz? Você sabe o que é ter a dor aplacada, o vazio preenchido, alcançar e abraçar este Homem santo e dizer sinceramente: "Não posso deixá-lo ir. Nos bons e nos maus tempos, na vitória e na derrota, minha vida não tem sentido sem você"? Se essa experiência não iluminou sua vida com seu resplendor, então, independentemente de idade, disposição ou condição de vida, você não compreende o que significa ser cristão.

Isso, e somente isso, é o cristianismo autêntico. Não um código do que se pode ou não se pode fazer; não uma moralização tediosa; não uma lista de ordens proibitivas e, certamente, não o mínimo necessário exigido para se evitar as dores do inferno. A vida no Espírito é a emoção e o incitamento de ser amado por Jesus Cristo e por ele estar apaixonado. Se o Espírito não queimar, ele não existe. A oração que brota de meu coração é essa. Se você ainda não a possui, pode vir a conhecê-la com uma insuperável e apaixonada alegria como a que conheci no amor do Jesus Cristo crucificado, no poder de Deus e em sua sabedoria.

EPÍLOGO

A REVOLUÇÃO

O Senhor me disse que desejava que eu fosse um louco, de um tipo jamais visto antes", disse Francisco de Assis. Uma suave revolução acontecerá pela humilde organização dos cristãos loucos que estão dispostos a subverter a ordem estabelecida ao reorganizar sua vida em torno da mente de Cristo. Sua questão é a transparência por meio da veracidade, e seu estilo de vida será moldado pelo evangelho de Jesus Cristo.

Se "a verdade consiste em que a mente dê às coisas a importância que elas têm na realidade", nas palavras de Jean Danielou, então o desejo de segurança, prazer e poder será avaliado de forma realista como sendo palha, e o domínio de Jesus Cristo pragmaticamente afirmado como a ordem da verdadeira realidade.

Os loucos por Cristo são violentos, como o evangelho ordena que sejam (Mt 11:12), mas a violência se aplica a eles próprios (Gl 5:24). Sua bondade é o belo fruto da reverência a Deus, da compaixão pelo mundo e do respeito a si mesmos. Suas prioridades são pessoais, determinadas não pela religião popular do momento, por políticas de poder ou pela cultura do consumo, mas pelo Sermão do Monte e pelo mistério pascal.

Para o louco, Jesus Cristo não é um sábio ou um admirável reformador: é o segundo Adão, autor de uma nova criação. "Estou fazendo novas todas as coisas!" (Ap 21:5). Jesus redirecionou a realidade e deu-lhe uma orientação revolucionária. Jesus não arrumou o mundo. Ele o levou a uma freada barulhenta. O que ele refez a partir dos materiais humanos da velha ordem não foram pessoas mais agradáveis, com moralidades melhores, mas coisas novas (2Co 5:17).

As categorias de tais revolucionários transcendem todas as distinções classistas. Homem versus mulher, clérigo versus leigo, progressista versus conservador, carismático versus tradicional, moderno versus pós-moderno — todos estão dissolvidos no amor unificador do Espírito (Gl 3:28). As únicas exigências para ser membro é a consciência empírica de Jesus como Senhor redentor e de Deus como Aba, a rendição incondicional ao domínio do Espírito Santo e o comprometimento constante com a missão de construir o novo céu e a nova terra.

O sentido de missão entre os loucos causará destruição na vizinhança. Medos serão despertados e rumores circularão de que tais pessoas estão ficando "estranhas". Os amigos os

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aconselharão a se restabelecer e a fazer algo construtivo com suas vidas (como procurar segurança, prazer ou poder). Os vizinhos cochicharão que são fanáticos religiosos. Os familiares darão demonstrações ostensivas de suas realizações duvidosas. Estratagemas serão planejados para levá-los a ver e sentir como são de fato: loucos. Catherine de Hueck Doherty diz: "É como se o mundo precisasse de loucos — loucos por Cristo! Loucos pelo amor de Deus! Pois são tais loucos que mudam a face da terra".

Conforme seria de esperar (Jo 15:18), esses loucos serão ofendidos. O cristianismo hoje é basicamente inofensivo, um tipo de religião que jamais transformará coisa alguma. Jesus Cristo, o mestre revolucionário, transgrediu a ordem religiosa e política da Palestina. Os cristãos também são compelidos a transgredir e, se não o fizerem, isso é mau sinal: não estarão sendo revolucionários de fato.

Talvez a motivação da revolução ou sua inspiração orientadora possa ser mais bem descrita por um sonho que tive durante um retiro de silêncio na selva. Meu conselheiro espiritual o considerou reflexo fiel da mensagem do evangelho e recomendou que fosse compartilhado com o povo de Deus.

Em meu sonho, vejo um homem andando no corredor da morte e uma mulher sendo preparada para receber a injeção letal num presídio do Texas. Vejo os fornos de Auschwitz e Dachau e caminhões carregados de corpos de judeus mortos circulando na noite. Vejo Hiroshima e 95 mil corpos queimados, carbonizados, irreconhecíveis, espalhados por ruas e ladeiras. Vejo o corpo amarrotado de John F. Kennedy tombado na morte. Vejo a princesa Diana depositada num caixão fechado na catedral de Londres.

Agora vejo fileiras de cruzes fora do muro da antiga cidade de Jerusalém com centenas de corpos pregados a elas: ladrões, rebeldes, assassinos. Em uma colina, vejo mais três cruzes com os corpos de outros três homens mortos, e todos parecem ser o mesmo indivíduo; entretanto, o homem do meio parece ter sido atacado e brutalizado um pouco mais do que os outros.

Em seguida, passados dois dias, encontro-me na praça de uma grande cidade. Um grupo de homens correm ao redor como se estivessem loucos. Estão dizendo a coisa mais absurda: a crucificação do homem do meio, nas três cruzes, não fora apenas outra execução política. Estão dizendo que é o evento mais importante na história do mundo. Estão dizendo que o homem agora é o centro da fé e o objeto de adoração de homens de todas as idades e em todo o tempo por vir. Estão fora de si de tanta alegria.

Fico desnorteado. A proclamação alucinada não tem nenhum precedente em meu estudo das religiões mundiais. Não se ajusta a nenhuma das minhas categorias teológicas. Nos termos da minha compreensão religiosa, é um escândalo, uma afronta. Além do mais, esses homens parecem um pouco fantasmagóricos, e alguém está dizendo que a mulher em sua companhia fora uma prostituta. De qualquer maneira, o homem estava morto. Eu o vira, e ele estava tão morto quanto Kennedy deitado no caixão.

Mas, só para ter certeza, volto à colina. Enquanto estou ali, olhando para o que era agora uma cruz vazia, um homem surge na linha do horizonte. De algum lugar, um poderoso coro está cantando: "Rei dos reis e Senhor dos senhores".

Dou uma olhada. Já não estou só. Até onde a vista alcança, a paisagem e pontilhada por pessoas. Todas estão cantando "Rei dos reis e Senhor dos senhores". O homem se dirige a passos largos para o centro. Ele está banhado de luz. Como se duas cortinas fossem levantadas, os céus se abrem e estão repletos dos seres mais belos que eu já vira.

O homem pára e levanta a mão. A terra fica em silêncio. Olho para o ele. Sua face é incandescente como o brilho do sol ao amanhecer, seus olhos fulguram como estrelas vésper. "A paz esteja com você", ele diz. Suas palavras são mais uma ordem do que uma saudação. O universo se aprofunda numa ainda maior quietude.

"Venha a mim", ele diz, "quando chamá-lo por seu nome. Sim, eu sei seu nome. Eu o conheci acordado e dormindo. Antes que uma palavra estivesse na ponta de sua língua, eu sabia todas elas. Examinei cada movimento seu. Estou familiarizado com todos os seus passos. Mais do que um pastor conhece suas ovelhas, eu o conheço pelo nome. Venha a mim".

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Tem início uma lista de chamada. Vejo Bob Dylan e Bono. Francisco de Assis aparece, seguido por Martinho Lutero. Vejo Howard Hughes e Dorothy Day, Adolph Hitler e Mohandas Gandhi, Nelson Rockefeller e Charles de Foucauld. Os seguintes são Agostinho e Ray Charles, o profeta Amós e Hugh Hefher, Jeremias e David Letterman, Maria e José, Paris Hilton e Brad Pitt, Pedro, Tiago e João. Kim Jong-Il e George W. Bush. Há ainda meu irmão, meu vizinho, o sujeito que tentou lavar meu pára-brisa nas ruas de Nova York. Eles vêm sem parar. Todas as pessoas formosas, famosas e poderosas e os bilhões de anônimos, não famosos, nem celebridades.

Ouço chamar meu nome: "Brennan". Quando dou um passo à frente, o homem olha para mim e, em seguida, através de mim. Ele olha através de todo o meu blefe e minha retórica, olha através de meus livros e retiros, para além de toda a minha racionalização, minimização e justificação. Pela primeira vez, sou visto e conhecido como realmente sou. Tremendo, pergunto:

Qual é a minha sentença, Senhor? Ele responde firme, mas suavemente:

Não sou seu juiz — e me entrega o Livro. — A palavra que proferi já julgou você.

Uma longa pausa. Então ele sorri. Caminho até ele e lhe toco a face. Ele toma minha mão e vamos para casa.

O conteúdo desse sonho é mais real do que o livro que você tem em mãos. Num dia e hora exatos, conhecidos somente pelo Pai (Mt 24:36), Jesus Cristo, o Rei da glória, ofuscará o brilho de todas as pessoas formosas, famosas e poderosas que já viveram. Cada homem, cada mulher que alguma vez respirou será avaliado e medido somente em termos de sua relação com o carpinteiro de Nazaré. Esse é o reino da verdadeira realidade. O domínio de Jesus Cristo e sua primazia na ordem criada (Ef 1:10) estão no centro da proclamação do evangelho. Essa é a realidade.

Quando os loucos que buscam viver com a mente de Cristo perguntam a si mesmos "Por que existo?", eles respondem: "Por causa de Jesus Cristo". Se os anjos se perguntarem, a resposta será a mesma: "Por causa de Jesus Cristo". Se o universo inteiro de repente pudesse falar, de norte a sul e de leste a oeste, ele clamaria em coro: "Nós existimos por causa de Cristo".

O nome de Jesus ecoaria nos mares, nas montanhas e nos vales. Seria audível no tamborilar da chuva. Seria escrito no céu com raios. As tempestades rugiriam o nome "Senhor Jesus Cristo Deus-Herói", e as montanhas o ecoariam de volta. O sol, em sua marcha pelos céus rumo ao oeste, cantaria um hino ensurdecedor: "Todo o universo está repleto de Cristo".

Se houver qualquer prioridade em nossa vida pessoal ou profissional mais importante do que o domínio de Jesus Cristo, desqualificamos a nós mesmos como testemunhas do evangelho e como membros da suave revolução. Desde o dia em que Jesus rompeu os laços da morte e a era messiânica irrompeu na história, há uma nova agenda, um conjunto sem igual de prioridades e uma hierarquia revolucionária de valores para o crente.

O carpinteiro não somente refinou as éticas platônicas ou aristotélicas, reordenou a espiritualidade do Antigo Testamento ou renovou a velha criação. Ele trouxe uma revolução. Precisamos renunciar a tudo o que possuímos, não apenas a maior parte. Precisamos abandonar nosso velho modo de vida, e não corrigir apenas algumas de suas poucas aberrações. Devemos ser uma criação completamente nova, não simplesmente uma versão renovada. Seremos transformados de uma glória a outra, até mesmo na própria imagem do Senhor — transparente. A mente será renovada por uma revolução espiritual.

O pecado capital, naturalmente, é continuar a agir como se nunca houvesse acontecido. Quando temos fome de Deus, nos movemos e agimos, ficamos alertas e reativos. Quando não a temos, somos diletantes jogando jogos espirituais. "Deus não tem importância nenhuma, a não ser que ele tenha absoluta importância", disse Abraham Heschel.

O intenso desejo de aprender a pensar como Jesus já é um sinal da presença de Deus. O resto é operação e atividade do Espírito Santo. Suponho que a maioria de nós esteja na mesma posição dos gregos que se aproximaram de Filipe e disseram: "Queremos ver Jesus" (Jo 12:21). A única questão é: "Com que intensidade?".

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