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Doutorado que versa sobre o processo de libertação e descolonização do continente latino-americano.
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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO PUC-SP
BRUNO SIMES GONALVES
NOS CAMINHOS DA DUPLA CONSCINCIA: SOCIALISMO INDO-AMERICANO,
LIBERTAO E DESCOLONIZAO NA AMRICA LATINA
DOUTORADO EM SERVIO SOCIAL
SO PAULO 2014
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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO PUC-SP
BRUNO SIMES GONALVES
NOS CAMINHOS DA DUPLA CONSCINCIA: SOCIALISMO INDO-AMERICANO,
LIBERTAO E DESCOLONIZAO NA AMRICA LATINA
DOUTORADO EM SERVIO SOCIAL
Tese apresentada Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo como exigncia parcial para a obteno do ttulo de Doutor em Servio Social, sob a orientao da Profa. Dra. Maria Lcia Martinelli.
SO PAULO 2014
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BANCA EXAMINADORA
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A Benedito perer, totalmente sarar, meu sobrinho perereco, minininho saci de tudo, seus olhos pretos. s crianas.
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AGRADECIMENTOS
professora Dra. Maria Lcia Martinelli, pela orientao, pelo afeto, pela
beleza.
Aos amigos Flvio Capi, Marlia Capponi, Adriana Eiko, Rud Andrade, Lia
Vainer, Sabrina Pedrosa, Paulo ndio, Gabriela Mariano, Adriana Bosco, Luis
Augusto Vieira, Cristiano Viana, Luciana Galante, Yollo Mancilla, Dan Manzione,
Valria Albuquerque e Aurea Fuziwara pelas leituras, pensamentos e aes
compartilhados.
Aos professores Luis Tapia, Margot Soria e Allisson Speedding (Bolvia),
Sigfredo Chiroque, Cesar German e Anibal Quijano (Peru), Edgar Barrero
(Colmbia) e Eduardo Viera (Uruguai), pela disponibilidade de compartilhar comigo
suas experincias e saberes.
Juliana Izar, pela reviso em cima da hora e to cheia de sacizices.
Ao meu irmo Ricardo, seu corao no cabe nestas palavrinhas: Tamo junto!
Ao Nuno, pai da Alice, poeta agreste, latino-americano, universal: Tamo junto!
Ao So, Maria e s meninas. Ao Nado, ngela e Bira. Aos pataxs de Barra
Velha. Com gratido.
Maria Izabel, minha me: teu mar me protege.
Ao meu pai, Edson.
Carolina, claro enigma, com amor.
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O outro no existe: esta a f racional, a crena
incurvel da razo humana. Identidade = realidade,
como se, afinal de contas, tudo tivesse de ser,
absoluto e necessariamente, um e o mesmo.
Mas o outro no se deixa eliminar, subsiste;
o osso duro de roer onde a razo perde os
dentes. Abel Martins, com f potica,
no menos humana que a f racional,
acreditava no outro, na essencial heterogeneidade
do ser, como se vivssemos na incurvel
outredade que o um padece.
(Antonio Machado)
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RESUMO
Nos caminhos da dupla conscincia: socialismo indo-americano, libertao e descolonizao na Amrica Latina
O presente trabalho um estudo sobre a formao histrico-filosfica da dupla conscincia latino-americana. Desde o incio da Amrica, a identidade latino-americana se forjou a partir de uma ciso e de uma tenso entre a lgica da colonialidade do poder (um como princpio) e a lgica da mestiagem crtica (dois como totalidade). Na primeira, a diferena radicalmente negada; na segunda, legitimada enquanto fundamento da realidade. Disso se origina uma dialtica dos extremos prpria formao latino-americana, em que diferentes memrias e tempos se combinam em uma totalidade heterognea e contraditria. No incio do sc. XX, a obra do pensador Jos Carlos Maritegui a expresso dessa tenso. Primeiro grande pensador marxista do Peru, Maritegui defendia a ideia de que havia uma luta agnica entre duas almas na conscincia latino-americana. De um lado, o decadente edifcio positivista erigido a partir do capitalismo. Do outro, o novo nimo, a vontade apaixonada em busca do socialismo indo-americano, capaz de reunir mundo indgena, revoluo, espiritualidade e imaginao potica em um mesmo movimento e de subverter a dupla conscincia histrica latino-americana. A tradio de um pensamento crtico que seja expresso do modo de vida das diferentes populaes da Amrica Latina tem continuidade no decorrer do sc. XX, quando a ideia de uma mestiagem crtica se desenvolve na literatura, na filosofia e no pensamento social de todo o continente. nesse contexto que a categoria da libertao se constitui como uma expresso prpria do pensamento crtico latino-americano e se desdobra, no incio do sc. XXI, na busca por uma prxis intercultural e descolonizada. Ao analisar esse arco histrico de larga durao, a tese traz subsdios para uma leitura do atual contexto de crise estrutural do capitalismo, a partir da dimenso intersubjetiva enquanto conscincia histrica dividida e aponta caminhos para a construo de um novo sentido histrico para as lutas sociais do tempo presente. Palavras-Chave: Dupla conscincia histrica; Mestiagem crtica; Socialismo
Indo-americano; Maritegui; Libertao; Descolonizao.
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ABSTRACT
On the paths of double consciousness: Indo-American socialism, liberation and decolonization In Latin America
The present work is a study of the historical and philosophical background of Latin American double consciousness. Since the beginning of America, Latin American identity has been forged through a breakup and a tension between the logic of coloniality of power (one as a principle) and the logic of critical mestizaje (two as a totality). In the first one, difference is radically denied; in the second one, it is legitimized as a foundation of reality. This originates a dialectic of extremes proper to Latin Americas formation, in which different memories and times are mixed in a heterogeneous and contradictory totality. In the beginning of the XX century, the work of the thinker Jos Carlos Maritegui was the expression of such tension. Being the first great Marxist thinker of Peru, Maritegui defended the idea that there is an agonizing struggle between two souls in Latin American consciousness: on the one hand, the positivist decaying edifice built from capitalism; on the other hand, the new impetus, the passionate desire in search of Indo-American socialism, capable of bringing together indigenous world, revolution, spirituality and poetic imagination in the same movement of the subversion of Latin Americas historical double consciousness. The tradition of a critical thinking that can express the way of life of different populations of Latin America continued throughout the XX century, when the idea of a critical mestizaje develops in the literature, the philosophy and the social thinking of the whole continent. It is in this context that the category of liberation is constituted as an expression proper of the Latin American critical thinking and, in the beginning of the XXI century, unfolds in the search for an intercultural and decolonized praxis. Considering this long-lasting historical arc, the thesis brings subsidies to a reading of the current context of capitalisms structural crisis, from the standpoint of the intersubjective dimension as divided historical consciousness. And it puts forward approaches to the construction of a new historical sense for the contemporary social struggles. Keywords: Historical double consciousness, Critical mestizaje, Indo-American
socialism, Maritegui, Liberation, Decolonization
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SUMRIO
INTRODUO .................................................................................................................... 11
I. DO UM COMO PRINCPIO AO DOIS COMO TOTALIDADE: O CAMINHO DE OUTRA MODERNIDADE .................................................................................................................. 19
1. DUPLA RACIONALIDADE E FILOSOFIA OCIDENTAL .............................................. 21 Entre deuses e ontologias: o pensamento filosfico ............................................... 21 Parmnides e Herclito: a dupla racionalidade grega ............................................. 25 Pstis e Peith: a dupla lgica argumentativa .......................................................... 29
Pstis: o discurso como no contradio. .................................................................. 29 Peith: o discurso como persuaso ........................................................................... 32
2. O EMPREENDIMENTO COLONIZADOR: CONQUISTA, CAOS E MESTIAGEM ...... 37 O Novo Mundo ............................................................................................................ 37 Princpio da cruz e espada x filosofia das gentes .................................................... 41 A mestiagem ............................................................................................................. 47
3. DOMINAO COLONIAL E MESTIAGEM CRTICA: AS DUAS FACES DA MODERNIDADE .......................................................................................................... 51
A sedimentao do empreendimento colonial ......................................................... 51 colonialidade do poder ............................................................................................... 53
Tupis e Tapuias: colonialidade do poder e identidade indgena no Brasil .................. 58 Dialtica dos extremos e mestiagem crtica: a modernidade alternativa ............. 63
O barroco .................................................................................................................. 63 O ethos barroco latino-americano ............................................................................. 69
A mestiagem cultural ............................................................................................... 73 Rebelies e movimentos de contestao: mestiagem crtica, luta e organizao dos povos ........................................................................................................................ 77
II. EM BUSCA DE UM SOCIALISMO INDO-AMERICANO: O PENSAMENTO DE JOS CARLOS MARITEGUI ...................................................................................................... 81
1. A VIDA DE MARITEGUI: A BUSCA DE UMA SNTESE ............................................ 82 Infncia e Idade de Pedra ....................................................................................... 82 O perodo europeu ...................................................................................................... 86 O retorno ao Peru ....................................................................................................... 89 As polmicas com Haya de La Torre e com a Internacional Comunista ................ 93 O mariateguismo ...................................................................................................... 101
2. A PROBLEMTICA FILOSFICA EM MARITEGUI: POR UMA TOTALIDADE HISTRICO-SOCIAL HETEROGNEA ..................................................................... 107
Dialtica dos extremos e afinidades eletivas: a totalidade aberta ........................ 107 3. RELIGIO, MITO E VONTADE: A DIMENSO MSTICO-REVOLUCIONRIA EM MARITEGUI...................................................................................................... 115
A religio como combate revolucionrio ................................................................ 115 O lugar do mito ......................................................................................................... 121 Imaginao, subjetividade e eu profundo: o lugar da vontade .......................... 127
4. TRADIO E MODERNIDADE EM MARITEGUI ..................................................... 133 A vanguarda enraizada ............................................................................................. 133 A descoberta do universo indgena ........................................................................ 140 Tradio heterodoxa................................................................................................. 148 Maritegui e a dupla conscincia histrica latino-americana................................ 156
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III. A DUPLA CONSCINCIA HISTRICA LATINO-AMERICANA: LITERATURA, LIBERTAO E DESCOLONIZAO ............................................................................. 160
1. A LITERATURA ......................................................................................................... 163 O indigenismo ........................................................................................................... 163 A antropofagia .......................................................................................................... 172
Oswald de Andrade ................................................................................................. 174 Macunama de Mrio de Andrade ........................................................................... 181
O realismo maravilhoso ........................................................................................... 187 O reino deste mundo ............................................................................................... 193
2. POR UMA FILOSOFIA LATINO-AMERICANA .......................................................... 197 O latino-americanismo ............................................................................................. 197 Transculturao e elogio mestiagem ................................................................. 203 A categoria filosfica da libertao ......................................................................... 212
A Filosofia da Libertao ......................................................................................... 212 A Teologia da Libertao ........................................................................................ 219
Descolonizao e filosofia intercultural crtica ...................................................... 227
CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................... 236
BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................. 242
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INTRODUO
Pedrinha miudinha, pedrinha de Aruanda, . Lajedo, to grande, to grande de Aruanda, . Trs pedras, trs pedras, trs pedras aqui nessa aldeia. Uma e maior, outra menor, a menorzinha que nos alumeia. (Ponto de umbanda e de candombl cantado para os boiadeiros)
Entre o ano de 2002 e 2004, funcionou na comunidade do Jardim Colombo,
zona sudoeste de So Paulo, a cooperativa de alimentao Jurema, voltada para a
produo de pratos tpicos derivados do milho: curau, pamonha, cuscuz, milho
cozido. Formado por oito mulheres moradoras dessa comunidade, a cooperativa
soube aproveitar as festividades de junho, realizadas em vrias localidades
prximas. Como o caixa da cooperativa contava com um capital relativamente alto,
houve uma discusso acalorada sobre o que devia ser feito com a sobra
conseguida pelo trabalho coletivo.
Entre as cooperadas estava Nilza, uma baiana de idade entre cinquenta e
sessenta anos, que havia chegado a So Paulo havia cerca de cinco anos. Ela me
contou que aos sete anos teve um episdio de transe o santo me pegou que a
fez andar por horas sem conscincia, at desmaiar na beira de um riacho. Dali em
diante, levada pelos pais, viveu em uma casa de candombl, como filha de santo.
Na noite da reunio entre as cooperadas da Jurema, quando o debate estava
polarizado entre dividir toda a sobra entre as trabalhadoras ou investir o dinheiro na
compra de ferramentas e outros acessrios para dar maior agilidade ao trabalho,
Nilza calou a todos com a seguinte proposta: se o objetivo era ganhar mais dinheiro
para poder comprar as ferramentas e ter algum dinheiro pra levar pra casa, a melhor
soluo era pegar toda a sobra e oferecer sua casa de candombl na Bahia. Ela
mesma conversaria seriamente sobre isso com seu pai de santo, o que garantiria
que a oferta retornasse em dobro para a cooperativa.
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Como era de esperar, a ideia foi prontamente rechaada e no se falou mais
no assunto. Porm, a certeza e a naturalidade com que Nilza props sua sada
para o destino do dinheiro me chamou muito a ateno. Do espanto com a resposta
de Nilza surgiu a questo sobre quais as racionalidades que se combinam e se
misturam em nosso universo cotidiano, quais as diferentes sabedorias que, apesar
de entranhadas, se mantm invisveis no universo de nossas relaes sociais.
A presente tese um dos desdobramentos desse questionamento primeiro,
estrela-guia ainda hoje viva e presente no horizonte de minhas reflexes, tanto no
campo acadmico, como na vida de todo os dias, suas veredas.
O trabalho de pesquisa sobre os diversos modos de pensamento presentes
em nossa sociedade se inicia a partir da dissertao de mestrado Na travessia da
modernidade, imaginao potica e resistncia na memria de caipiras em So Luis
do Paraitinga. Nessa primeira pesquisa, investiguei como se realizava o modo de
vida caipira em nossa contemporaneidade, a partir da memria de quatro moradores
de So Lus do Paraitinga, cidade conhecida como reduto caipira no estado de So
Paulo. O trabalho teve como matriz de anlise a noo de dupla conscincia social
do pesquisador Jos de Souza Martins e suas reflexes sobre a presena da dade
tradio-modernidade na sociabilidade do homem e da mulher do campo. A partir da
ideia de uma ciso na conscincia brasileira moderna, comeava a se descortinar a
presena de diferentes modos de pensamento em nossa vida social.
Aps viver na cidade de So Luis por aproximadamente um ano, defendi
minha dissertao em agosto de 2007. Das quatro entrevistas que apresentei como
expresses dessa dupla conscincia, uma em especial me apontou os caminhos
para a continuidade de minha investigao. Foi a entrevista com o sitiante e produtor
de mel Dito Virglio, conhecido por ser exmio contador de causos, defensor do
homem pobre do campo e por pregar uma vida socialista misturada com caipira. Ao
p do fogo de lenha de sua cozinha, ele descreveu calmamente a convergncia
entre a vida tradicional do caipira e o mundo emancipado ps-revoluo. Na sua
viso, valores pregados pela esquerda socialista estavam presentes na vida simples
do caipira sitiante, em seus costumes cotidianos e em sua religiosidade espontnea
e guiada por uma tica de convvio fraternal entre os seres humanos e os outros
viventes. A convergncia entre mundo socialista e vida caipira na dupla conscincia
de um sitiante apontava o trilho a ser seguido na continuidade de minhas pesquisas:
a relao entre tradio e modernidade no interior de um projeto societrio
13
anticapitalista, ou seja, a possibilidade de um pensamento crtico em que houvesse
lugar para a experincia social dos povos, seu legado, sua tradio.
A essa inquietao se somou o conhecimento, depois da defesa do mestrado,
da coletnea de artigos escolhidos de Jos Carlos Maritegui, Por um socialismo
indo-americano. Na introduo, Michael Lwy apresenta o marxismo hertico de
Maritegui, que unia a tradio indgena, a mstica religiosa e o horizonte
revolucionrio em um mesmo e nico sentido: a construo do socialismo indo-
americano. inquietao inicial sobre diferentes modos de pensamento em nossa
vida social se somava agora a necessidade de compreender esse movimento no
interior dos processos de luta social como surgem e se desenvolvem essas
diferentes racionalidades no decorrer do desenvolvimento histrico das sociedades e
em suas tradies institudas.
Foi com essas indagaes que fiz uma viagem de seis meses pela Amaznia
brasileira, onde conheci comunidades quilombolas e extrativistas, assentamentos
rurais, comunidades indgenas, povoados ribeirinhos e cidades de diferentes portes.
Em cada um desses lugares, testemunhei a diversidade de tradies e de variveis
ideolgicas presentes na chamada cultura brasileira. A partir dessa experincia,
retornei a So Paulo e ingressei no doutorado em busca da compreenso das
possveis relaes entre o chamado mundo da tradio e a construo de um
projeto societrio anticapitalista, tendo como principal guia terico o pensamento de
Jos Carlos Maritegui.
Pesquisando autores que estudassem o pensamento de Maritegui, entrei em
contato com a obra do socilogo peruano Anibal Quijano, um dos mais reconhecidos
estudiosos da obra do Amauta. A partir dele, me aproximei de uma vasta produo
sobre as tradies e sua expresso na identidade e no pensamento crtico latino-
americano relacionado aos fenmenos da mestiagem cultural prprios do
continente.
Essa necessidade de conhecer melhor a realidade dos outros pases da
Amrica Latina me levou a realizar uma srie de viagens com objetivo tanto de
consulta bibliogrfica como de conhecer de perto um pouco da histria da
mestiagem crtica do continente. No Chile, conheci a USACH (Universidad de
Santiago de Chile) e pude conversar com jovens Mapuche, povo originrio
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conhecido por sua resistncia milenar desde a poca do Tahuantinsuyo1. Ocorre
hoje uma redescoberta da tradio desse povo por jovens da cidade grande que
antes no se reconheciam como descendentes dos Mapuche.
Estive na Bolvia, onde, alm de entrar em contato com a universidade e de
conversar com vrios intelectuais, passei alguns dias no Valle do Chulumani, em
uma comunidade produtora de coca. Ali presenciei dinmicas tpicas da luta sindical
se combinarem com tradies aimaras e seus variados ritos e costumes. Em La Paz,
uma obra no museu da Igreja de San Francisco me causou grande impacto: uma
cruz crist pintada com uma imponente aurola solar. Obra genial, a cruz e sua
aurola parecem trocar constantemente de lugar como imagem central do quadro,
tornando impossvel distinguir se a pintura era uma obra crist, uma homenagem ao
Deus Sol, deus maior no panteo aymara-quchua, ou as duas coisas.
No Peru, alm da pesquisa nas universidades principais de Lima e na Casa
Maritegui, pude conhecer de perto as histrias de terror do Sendero Luminoso,
grupo guerrilheiro que utilizava antigos mitos quchuas mesclados a um discurso
revolucionrio para justificar suas aes de extrema violncia contra a populao.
Tambm conheci a Villa El Salvador, regio de Lima muito conhecida pelas
experincias de poder popular de base quchua e socialista. Pude ainda conversar
com importantes intelectuais, entre eles Anibal Quijano, que me concedeu uma
entrevista sobre Maritegui e o novo sentido histrico para o socialismo do sculo
XXI.
Na Colmbia estive entre os indgenas muscas urbanizados, que vivem nos
arredores e no centro de Bogot, e tambm entre os Kamsa, que vivem ao sul do
pas. Estes so conhecidos por suas experincias de prefeituras indgenas os
cabildos e pela longa tradio no uso da medicina do yage, infuso de fortes
propriedades alucingenas utilizada h milhares de anos pelos povos indgenas da
Amaznia e dos Andes. Foi tambm na Colmbia que passei dias em um centro de
formao camponesa com vtimas da violncia de guerra. L participei de um curso
sobre direitos humanos com Helena, jovem camponesa que teve o marido e o pai
1 Referido comumente como Imprio Inca, era a vasta rea sob domnio dos incas (povo de lngua quchua), com sede em Cuzco, no atual Peru. Iniciado aproximadamente no sculo XIII, com a expanso dos incas a partir de Cuzco, estendeu do noroeste da Argentina e norte do Chile at a Colmbia. Findou com a chegada dos espanhis no sculo XVI.
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assassinados em uma chacina que atingiu duas dezenas de homens de sua
comunidade.
No Equador, pude conhecer a Universidad Andina Simn Bolvar, espao
onde tm sido realizadas importantes experincias interculturais de nvel acadmico.
Tambm em Quito, pude conhecer um pouco da histria do Pachakuti, partido
indgena equatoriano, uma das foras polticas centrais do pas.
Na Argentina, conheci as universidades de Crdoba onde, em 1918, foi
lanado o Manifesto de Crdoba, que propunha um modelo de universidade popular
para a Amrica Latina. nos arredores de Crdoba que esto tambm as mais
antigas misses jesuticas guaranis, colossal realizao que buscou realizar uma
utopia evanglica guarani, mesclando os valores cristos com o mundo indgena. E
caminhando pelas ruas do centro velho de Montevidu entendi a lrica platina da
poesia de Mario Quintana, dos escritos de Borges e das telas de Gurvich.
Esse conjunto de viagens me mostrou, para alm da bibliografia sobre o
tema, diferentes dimenses da realidade latino-americana e de seu labirinto formado
por jogos de espelhos, mesclas interculturais e caminhos interrompidos. Territrio
marcado pela violncia da dominao colonial e imperialista, a Amrica Latina ao
mesmo tempo, espao de utopia e da possibilidade de realizao da plenitude
humana. Pude compreender, nas catedrais de Potosi, a sobreposio de camadas
histricas e a presena complexa de um mundo pujante que s deixou runas e
silncio como memria, invisibilidade visvel.
Nessas viagens, pude entender melhor as mltiplas formas de mestiagem
realizadas no mundo cultural, social e poltico de diversos pases, onde um universo
de riqueza histrica e ancestral extraordinria se combina com migraes massivas,
profunda injustia e uma lancinante violncia como forma de controle social. E, em
todas essas experincias, a constante pergunta sobre as semelhanas e diferenas
com o Brasil, tambm um pas da Amrica Latina, tambm um pas colonizado e
racializado, tambm um identidade forjada em um labirinto de relaes desiguais.
Cindida entre memrias histricas distintas, a Amrica Latina um territrio
formado a partir de diferentes registros e espaos que se interpenetram e forjam
novas formas sociais e novas memrias que se reinventam constantemente. No
interior da totalidade heterognea viceja uma ciso fundamental, uma contradio
fundada na violncia colonial e na luta social entre dois mundos. Diviso complexa,
realizada em diferentes dimenses e matizes, impedindo qualquer leitura mecnica
16
e simplista, mas diviso existente, surgida em um processo histrico de larga
durao fundamentado em uma cisma que desde o incio seguiu a lgica da
explorao e da invisibilizao da existncia social da imensa maioria. Diviso que
constitui uma cisma na conscincia histrica dos latino-americanos e bifurca sua
percepo e sua construo do mundo.
Como ensina Maritegui, na realidade social latino-americana coexistem duas
almas em uma luta agnica: de um lado, a racionalidade colonizadora e seu mundo
hierarquizado; do outro, o pensamento mestio, racionalidade subversiva que
desafia as concepes daquilo que Anibal Quijano cunhou como a colonialidade do
poder. Assim, a presente tese uma investigao sobre a formao histrico-
filosfica dessa tenso constituinte da dupla conscincia latino-americana; e, no
interior desse processo, da constituio de um pensamento crtico que seja
expresso da mestiagem prpria da Amrica Latina. Nesse sentido, a obra de Jos
Carlos Maritegui adquire importncia central, j que suas reflexes inauguram a
perspectiva marxista no continente a partir da recuperao da memria histrica das
diferentes populaes latino-americanas em sua tradio heterodoxa. Durante todo
sculo XX, veremos o retorno dessa perspectiva em diversos campos, como a
literatura, a poltica e a religio.
O trabalho est dividido em trs captulos. No primeiro, a partir da ideia de
dupla racionalidade grega defendida pelo pesquisador Jean-Pierre Vernant, so
apresentadas as noes filosficas do um como princpio e do dois como totalidade,
duplicidade filosfica que remonta sntese civilizatria entre semitas, egpcios e
indo-europeus e que ir dar contorno a toda a filosofia ocidental desde os pr-
socrticos. Dividindo a ontologia da realidade na dupla via da mesmidade, onde o
no ser desconsiderado como existente, e da outredade, onde o no ser adquire
estatuto de existncia, essa duplicidade ontolgica entra na Idade Mdia e avana
pela modernidade, dividindo a Igreja e a nascente filosofia no teolgica da
modernidade. esse duplo fundamento que continua se desenvolvendo aps o
incio da modernidade e o confronto entre o mundo europeu e o americano,
demarcando as duas foras histricas que iro formar o mundo latino-americano. De
um lado, a colonialidade do poder e sua hierarquizao racial sendo utilizada para
domnio e explorao de toda populao do continente. Do outro, a mestiagem
crtica, lgica da construo heterognea com base na unio de elementos dspares
em uma totalidade aberta.
17
O segundo captulo uma apresentao da obra de Jos Carlos Maritegui a
partir da sua relao direta com a identidade latino-americana. A partir do
fundamento filosfico da obra de Maritegui, em que no h uma ciso entre logos e
mithos e sim uma relao de copertencimento entre essas dimenses ontolgicas,
realizada uma interpretao do pensamento do pensador peruano a partir de duas
entradas. Primeiramente se explicita a natureza mstico-revolucionria de Maritegui,
com base nos textos em que ele compara a luta revolucionria com a emoo
religiosa e estabelece a relao entre a vontade subjetiva e intersubjetiva e o
mito revolucionrio. A outra entrada a relao entre tradio e modernidade em
sua obra. Maritegui posiciona-se frontalmente contra o pensamento evolucionista
que prega a lgica linear e eurocntrica para interpretao da histria. Ele defende a
coexistncia de diferentes tempos histricos em uma tradio heterodoxa, na qual
as diferentes memrias histricas convivem de maneira descontnua, formando uma
realidade social heterognea. No caso do Peru, a forte presena indgena seria o
trao especfico dessa constituio. Dessa forma, Maritegui prope a construo de
um socialismo indo-americano onde diferentes tradies possam se somar na
efetivao de um mundo emancipado.
O terceiro captulo aponta como essa mestiagem crtica se fez presente
durante todo o sculo XX e incio do XXI na literatura, na filosofia, na teologia e no
pensamento poltico do continente. No campo da literatura apresentado o
indigenismo de Jos Mara Arguedas, o realismo maravilhoso de Alejo Carpentier e
a antropofagia de Oswald e Mario de Andrade. Em todos esses autores, a
construo literria uma viagem ao espelho entre mundos, em que o universo
eurocntrico e a prtica social da mistura e da descoberta da especificidade esto
em constante tenso, forjando a luta entre duas almas prprias da dupla conscincia
histrica do continente. Essa mesma dinmica est presente na filosofia do
continente, tanto na proposio do logos potico de Lezama Lima como na categoria
filosfica da libertao, sntese entre pensamentos e prxis que tiveram papel
determinante na vida social do continente aps a Revoluo Cubana. A partir dos
anos 90, a memria histrica das populaes aparece ainda com mais intensidade,
levando ao debate sobre descolonizao e sobre a necessidade de construir uma
filosofia intercultural crtica.
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O trabalho se encerra com as consideraes finais. Ao analisar um arco
histrico de larga durao, a tese traz subsdios para uma leitura do atual contexto
de crise estrutural do capitalismo e aponta a necessidade da subverso da dupla
conscincia a partir da criao de um novo sentido histrico para as lutas sociais do
presente.
19
I. DO UM COMO PRINCPIO AO DOIS COMO TOTALIDADE:
O CAMINHO DE OUTRA MODERNIDADE
O rio que fazia uma volta atrs de nossa casa era a imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrs de casa. Passou um homem depois e disse: Essa volta que o rio faz por trs de sua casa se chama enseada. No era mais a imagem de uma cobra de vidro que fazia uma volta atrs de casa. Era uma enseada. Acho que o nome empobreceu a imagem.
(Manoel de Barros)
A tentativa de apreender toda a histria das culturas humanas em uma
grande totalidade um esforo terico que deu origem a obras de grande
importncia nas Cincias Humanas.
J no sc. XVIII, pensadores iluministas como Voltaire e Montesquieu se
preocupavam em traar aspectos gerais do desenvolvimento histrico das
sociedades. No sc. XIX, coube a Hegel2 o esforo filosfico de indicar o caminho de
uma possvel dialtica das civilizaes. A partir do sc. XX, autores da chamada
antropologia clssica3 e da histria das civilizaes4 escreveram tratados e obras
sobre disputas e analogias entre grandes foras civilizatrias, suas tcnicas de
guerra e de reproduo social, sua religio e pensamento filosfico.
Assim, o brasileiro Darcy Ribeiro escreve, na dcada de 60 do sc. XX, sua
importante obra O Processo Civilizatrio, na qual repensa as etapas da humanidade
a partir de uma perspectiva que d nfase s civilizaes amerndias, ressaltando
aspectos ignorados por estudos anteriores voltados centralidade do mundo
europeu. Essa descentralizao gradativa rumo a uma perspectiva universal no
2 Hegel publica em 1830, Filosofia da Histria, no qual tenta demonstrar a ao da racionalidade do
Esprito Absoluto na realizao histrica da humanidade ao longo dos perodos e civilizaes. 3 Os principais autores da antropologia clssica so: Lewis Henri Morgan (1818-1881), autor de A
Sociedade Antiga (1877); Edward Burnett Tylor (1832-1917), autor de Primitive Culture (1871); James Frazer (1854-1941), autor da obra em doze volumes O ramo de Ouro (1890). Para saber mais sobre a antropologia clssica ver CASTRO (2005). 4 Os dois principais autores da histria das civilizaes do incio do sc. XX so Oswald Spengler
(1880-1936), autor de Declnio do Ocidente (1918) e Arnold Joseph Toynbee (1889-1975), autor de Estudo da Histria, dividido em doze volumes escritos entre 1934 e 1961.
20
eurocntrica o princpio que tem guiado nas ltimas dcadas diversos autores5 a
estabelecer novas formas de interpretao do percurso histrico das civilizaes.
Nesse conjunto recente de estudos, destaca-se a obra do filsofo Enrique
Dussel que vem reconstituindo, h aproximadamente duas dcadas, o que ele
chama de Nova Histria Mundial (1997, 2000). Dussel6 prope a existncia de trs
grandes perodos que dividem a histria humana. O primeiro o Paleoltico (2,5
milhes A.C. 10000 A.C.) quando a humanidade aprendeu a domesticar plantas e
animais. O segundo perodo o Neoltico, caracterizado pelo surgimento das
primeiras seis grandes civilizaes7 a partir das revolues urbanas. O terceiro
grande perodo ainda est em vigncia e se inicia com a submerso dessas culturas
sob o domnio de outras, totalmente distintas entre si.
do entroncamento entre culturas desse terceiro perodo egpcia, semita e
indo-europeia , que nasce a Grcia onde se desenvolvem os fundamentos de tudo
aquilo que hoje conhecemos como pensamento ocidental. Desse passado distante
se originam tanto a ideia do dualismo que opera dividindo a realidade em dimenses
inconciliveis como a ideia de totalidade onde as diferentes dimenses da realidade
esto em constante relao de copertencimento (DUSSEL, 1997, p.79).
Relao primordial que deu origem filosofia ocidental, esse duplo caminho
margeia e entrelaa toda histria do territrio que hoje chamamos europeu, assim
como se estabelece enquanto uma relao de tenso e dominao entre
concepes de mundo.
Ao chegar ao chamado Novo Mundo e se deparar com antigas civilizaes,
essa dupla racionalidade se transmutou e se desdobrou, acompanhando as
mudanas estruturais que nesse momento se realizaram. Um novo mundo, dono de
um novo imaginrio suas utopias e de relaes de poder e de controle de
trabalho at ento inditas.
5 Ver LANDER (org., 2000) e SANTOS (org., 2005).
6 Para Dussel, ao realojarmos esses grandes perodos, nos colocamos a necessidade de repensar
todo o caminho filosfico do ocidente, sendo necessria uma nova leitura da histria da filosofia mundial. Embora a hiptese de Dussel nos parea bastante frtil, principalmente levando em questo o tema do presente estudo, preferimos no nos deter na investigao mais pormenorizada da crtica dusseliana ao mito do nascimento da filosofia na Grcia, pelo trabalho de investigao demasiado que essa escolha exigiria. O tema to amplo e pouco conhecido pelo circuito acadmico de maneira geral, que descortinar o nascimento da filosofia a partir da desconstruo do mito inicitico grego por si s, j esgotaria todo tempo disponvel para a presente investigao. 7 Civilizaes Egpcia, Mesopotmica, a do rio Indo, a do rio Amarelo, a Asteca, a Maia e a Inca
(DUSSEL, 1994, p. 80).
21
Nesse processo, ambas as matrizes filosficas se transformaram e, ao
mesmo tempo, se mantiveram. Entrelaadas e em constante oposio, uma
dominando a outra, formaram o eixo que estrutura a modernidade e suas relaes
sociais constituintes, se fazendo presentes na esttica, nas formas religiosas, na
organizao poltica e nas formas de insurgncia desde a Conquista at o momento
atual. Nesse sentido, possvel falar de uma dupla racionalidade que constitui o
pensamento ocidental e vem se desdobrando em toda sua histria, do um como
princpio ao dois como totalidade8.
1. DUPLA RACIONALIDADE E FILOSOFIA OCIDENTAL
Entre deuses e ontologias: o pensamento filosfico
O surgimento da filosofia enquanto um modo especfico de conhecimento
uma investigao ainda em curso, frequentemente revisitada por historiadores e
estudiosos das cincias de maneira geral. Centradas, sobretudo, nas indagaes
que procuram compreender o fenmeno da razo e seus desdobramentos, essas
indagaes so fontes perenes de interrogao e reflexo crtica sobre ns mesmos
que assim nos repensamos , e sobre o percurso histrico suas determinaes
que assentou o cho e os caminhos que nos trouxeram at o presente.
Nesse sentido, perguntar sobre o surgimento da razo e seus
desdobramentos j partir de uma certa concepo de razo; uma razo
problemtica que tomou determinados caminhos e no outros e, portanto, matria
inacabada e em perene movimento. Razo que se abre, a todo tempo, como matria
de investigao e de reflexo de si prpria. uma razo crtica que procura
desmistificar a concepo de razo como um milagre descido dos cus para
dominar a matria, uma Deusa-razo que supostamente rege a orquestra do real
como um demiurgo rege o mundo que criou. Como aponta Vernant:
8 A Ideia do um como princpio ao dois como totalidade surge a partir da leitura da dissertao Do um
como princpio ao dois como un-idade (MICHELAZZO, 1997). Nesse trabalho, o autor traa uma linha argumentativa em torno do pensamento de Heidegger e sua crtica metafsica. Para o autor, a metafsica obedeceria ao um como princpio, enquanto a hermenutica originria heideggueriana trabalharia a partir do Dois como Unidade. Como ficar claro ao longo de toda a dissertao, a ideia de uma tenso entre noes filosficas primordiais ser o eixo guia das reflexes. Optou-se, porm e isso faz toda diferena , pela ideia do dois como totalidade.
22
Estamos perguntando Razo em si que nos explique o que ela . Para entender a natureza e a funo do pensamento racional, apontamos suas prprias armas contra eles. [...] Podemos dizer que, de imediato, por seu prprio projeto, ela acaba com uma certa concepo de Razo eterna, absoluta, que ainda reina, creio, em muitos crculos racionalistas. Trata-se da ideia, cara aos homens da Revoluo Francesa, de uma Deusa Razo que ilumina o caminho da humanidade, dissipando as trevas da ignorncia, os fantasmas da superstio religiosa ou iluses do sentimento (VERNANT, 2002, p. 191).
partindo desse pressuposto que podemos entender o nascimento da
filosofia como um processo histrico de larga durao que vai se constituindo no
seio do mundo e delineia uma forma de organizao do real que no est vinculada
somente expresso mitopotica da experincia humana. Assim, a razo se
constitui enquanto modo de pensamento localizado historicamente e que usa de
seus prprios instrumentos a reflexo para criar alternativas ao mundo regido
exclusivamente pela vontade dos deuses mitolgicos. Partindo dessa concepo, o
surgimento da razo filosfica nos remete ao mundo grego, por volta do sc. VI a.C.,
como explica Pessanha:
A maioria dos historiadores tende hoje a admitir que somente com os gregos comeam a audcia e a aventura expressas numa teoria. [...] Essa mentalidade, porm, resulta de um longo processo de racionalizao da cultura, acelerado a partir da demolio da antiga civilizao micnica. A partir da, a convergncia de vrios fatores econmicos, sociais, polticos e geogrficos permite a ecloso do milagre grego, que teve na cincia terica e na filosofia sua mais grandiosa e impressionante manifestao (PESSANHA, 1999, p. 6).
Conhecidas como as expresses propriamente gregas da viso mitopotica
grega, a Ilada e a Odissia de Homero epopeias heroicas , assim como a
Teogonia e o Trabalho e os Dias genealogia dos deuses de Hesodo so o
conjunto de histrias e mitos que prenunciaram a formao da filosofia grega.
Sntese de lendas elias e jnias que relatam o encontro entre o mundo helnico em
formao e as culturas orientais, esse conjunto de histrias e contos de carter
mtico se caracterizam pela presena constante dos deuses em suas caractersticas
demirgicas e, ao mesmo tempo, antropomrficas, ou seja, os homens tm poderes
de deuses e os deuses carregam caractersticas prprias dos homens mortais.
No caso das obras de Homero, esses poderes passam a ser divididos em
malficos e benficos, segundo uma diviso que torna humana a ideia de theos
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antropomorfizado como Zeus excluindo assim, as representaes no humanas e
portanto, misteriosas e desconhecidas, do plano da divindade. Segundo Pessanha:
Mesmo quando representam foras da natureza, os deuses homricos revestem-se de forma humana [...]. Homero exclui do Olimpo formas monstruosas, da mesma maneira que exclui dos cultos as prticas mgicas. Esses aspectos primitivos, quando excepcionalmente despontam, servem justamente para comprovar o trabalho realizado pelas epopeias homricas no sentido de soterrar concepes sombrias e aterrorizadoras (PESSANHA, 1999, p. 8).
Assim, excludo aquilo que passa a ser considerado mentalidade arcaica
monstros mitolgicos e seres mgicos , os heris homricos passam a representar
esse caminho divino de um ser nico superando os seres miraculosos e disformes, a
forma apolnea do homem se sobrepondo desproporo, dominando-a. Essa
identificao entre o divino e o heri passa a ser mais completa com a gradativa
unificao e neutralizao das discordncias entre a vontade dos deuses. Zeus, pai
poderoso de todos os deuses, representa assim essa fora patriarcal e unificadora,
onde os valores so hierarquicamente condicionados ao seu poder sobre todas as
coisas. Criadas para relatar a Guerra de Troia (sc. XIII a.C.) e de Tebas, as
epopeias de Homero so o elogio dessa vida combativa e heroica, atributo
necessrio para o final esperado a conquista do inimigo de uma guerra.
No caso da Teogonia de Hesodo, os relatos tendem a representar um
momento onde no a batalha que est no centro da vida e sim a coeso
comunitria em regies onde no h mais guerra, quando a organizao em torno
de comunidades pastoris se apresenta como principal desafio aos grupos que ali
viviam. Conjunto de relatos que conta a genealogia e o desenvolvimento da vida dos
deuses imortais, a Teogonia tende a exaltar valores necessrios vida poltica
nascida nesse momento e desenvolvida posteriormente em comunidades pastoris e
tambm na polis, onde um conjunto de leis passa a reger o espao poltico
comunitrio. Explicitando esse momento do nascimento da lei e da ideia de
democracia, escreve Pessanha:
Nas assembleias de guerreiros, nas discusses onde se tinha que se decidir o que fazer do butim, daquilo que foi apresado em uma guerra, a se precisava chegar a algum tipo de acordo. E o Smbolo que vai criar urbanisticamente a metfora da gora democrtica exatamente a criao de um centro, mezon, onde todos vo depor e cada um vai expor seu ponto de vista. [...] A lei alguma coisa que se partilha, que se compartilha e se divide como uma espcie de presa
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ou de butim. A democracia pretende que os agentes do poder e da constituio da lei, na verdade, estejam dentro de uma certa circularidade, e que haja um meio comum e equidistante de todos, meio que vai ser ocupado pela norma (PESSANHA, 1991, p. 86).
Aos poucos, o mundo das comunidades pastoris da Grcia vai se formando e
essa demanda por justia e igualdade se intensifica. J no apenas a batalha e,
portanto, o heri solitrio no topo do mundo, a figura valorizada. Virtudes como
justia e trabalho passam a ser valores exaltados e a Teogonia de Hesodo
expresso direta dessa realidade. O poema de Hesodo demonstra que, alm dos
valores de uma aristocracia guerreira e nobre, tambm participaram da formao
grega valores do mundo rural e do trabalhador do campo, onde a vida comum e o
interesse em encontrar entendimentos equilibrados guiavam as relaes sociais. A
esse respeito afirma Jaeger:
No apenas a luta do heri guerreiro contra o inimigo no campo de batalha, mas tambm a silenciosa e renhida luta do homem trabalhador com a terra dura e as adversidades do tempo tem seu herosmo e gera habilidades que so de valor perene para o ser humano (JAEGER, 1986, p. 89).
Essa ideia de igualdade necessria conseguida a partir do trabalho junto
terra e sua participao na vida de uma comunidade ir fundar toda uma nova
concepo de justia que se organizar cada vez mais e far da busca pela unidade
em meio multiplicidade uma medida fundamental para a compreenso do mundo.
Essa concepo ganhar importantes elementos a partir da Escola de Mileto (sc.
VII a.C.), na qual seus pensadores, buscando refletir sobre a unidade e
multiplicidade de seu prprio universo, criaram conceitos filosficos que tentavam
dar uma finalidade racional totalidade do real. Com a ideia do pra (limite) e
apiron (o ilimitado), essa concepo de dualidade se desdobrar nos princpios
matemticos pitagricos do par e mpar e dar origem s mais diferentes
polaridades filosficas, entre elas a ideia de identidade/alteridade e mesmo/outro.
Como explica Pessanha:
Assim o nmero par pode ser visto como a expresso aritmo-geomtrica da alteridade, enquanto o mpar seria a prpria manifestao bsica na matemtica da identidade. A partir desses fundamentos matemticos os pitagricos podero conceber todo o universo, como um campo em que se contrapem o Mesmo e o Outro. E podem estabelecer, para os diferentes nveis da realidade, a
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tbua de opostos que manifestam aquela oposio fundamental (PESSANHA, 1999, p. 28).
Dessa forma, aberta a possibilidade da diversidade expressa via oposio, a
nascente filosofia grega vai depurando seu prprio sistema de elucidao do real e a
abstrao acerca das dualidades. Desenvolvida com maior vigor a partir do
eleatismo, essa ideia da realidade enquanto relao entre opostos passa da esfera
cosmolgica para a esfera ontolgica, abrindo caminho para a dualidade primordial
de toda filosofia: Ser ou No ser. E com Parmnides e Herclito que essa pergunta
originria ganhar desdobramentos que acompanharo toda histria da filosofia dali
por diante. Como explica Borhein:
Todo pensamento ocidental prende-se a dois tipos de exerccio da razo e ambos foram inaugurados pelos gregos: um por Parmnides e o outro por Herclito. Parmnides enfatizava o que considerava o nico caminho realmente vlido para pensar o caminho do ser, do ser bem redondo, uno, eterno, imutvel, perfeito o ser simplesmente aquilo que . [...] O Outro caminho foi elaborado por Herclito. Chegou-nos dele um belssimo fragmento: No houvesse a injustia, ignorariam o prprio nome da justia. Aqui no se trata somente dos contrrios e sim de uma clara contradio: o desvelamento do que seja a justia passa pela no justia. Isto : o nome, o conceito depende da frequentao da negatividade (BORNHEIN,1999, p. 99).
Parmnides e Herclito: a dupla racionalidade grega
Marco decisivo na filosofia grega, o projeto filosfico de Parmnides
representou a agudizao do esprito crtico s cosmogonias mticas e sua
heterogeneidade na interpretao daquilo que caracteriza o real. Levando s ltimas
consequncias a concepo monista da natureza, Parmnides nega
categoricamente a possibilidade de movimento e mudana enquanto transformao
de algo em outra coisa. Para ele s existe uma nica e mesma realidade ser
sendo impossvel essa se transformar em algo diferente de si no ser , sendo
sempre imvel e, portanto, invariavelmente a mesma. Dessa forma, separando em
espaos ontolgicos distintos o ser e o no ser, o filsofo inaugura definitivamente a
especulao metafsica que ganhar sistematizao com Plato e Aristteles. Ao
afirmar que a verdade s alcanvel pela apreenso, via razo do ser imutvel ,
o pensador abre caminho para o desenvolvimento da abstrao que nos eleva para
26
alm dos dados da aparncia e das injunes fsico-sensveis. Explicando o
pensamento parmenidiano, escreve Santos:
A nica verdade, s alcanvel pela razo, o Ser; ao contrrio, o vir a ser, a mudana e o movimento, atestados pela experincia sensorial, so apenas aparncias e meras iluses [...]. Portanto, s podemos pensar e dizer de algo que isso se o mesmo for imutvel e permanecer idntico a si mesmo. fruto desse raciocnio o famoso princpio de identidade ou no contradio assim formulado. Uma mesma coisa no pode ser e deixar de ser ao mesmo tempo, sob o mesmo aspecto (SANTOS, 2001, p. 66).
Essa identidade afirmada por Parmnides deve ser buscada e encontrada no
universo das aparncias por meio do uso da razo, faculdade transcendente que
permite aos homens perceber a segurana da identidade imvel em meio
turbulncia das aparncias. Dividido entre a eternidade daquilo que (to on) e das
coisas que so (ta onta), a realidade , em sua essncia, no contraditria,
imutvel e pelo uso da razo que podemos apreender essa mesmidade presente
em tudo. Para exprimir essa dualidade cindida e separada da realidade, o filsofo
constri uma das imagens mais conhecidas da filosofia grega. Levado ao reino da
Verdade pelas filhas de Hlio (o Sol), o homem mortal ouve da deusa Razo:
Pois no foi mau destino que te mandou preslustrar esta via (pois ela est fora da senda dos homens), Mas lei divina e justia; preciso que de tudo te instruas, do mago inabalvel da verdade bem redonda, E de opinies de mortais, em que no h f verdadeira. No entanto tambm isto aprenders, como as aparncias deviam validamente ser tudo por tudo atravessado (PARMNIDES, 1999, p. 122).
Para o filsofo pr-socrtico, a realidade est claramente dividida entre o
mundo verdadeiro e imutvel, perfeito no sentido de no ter nada exterior a ele
mago inabalvel da verdade bem redonda e o mundo da imperfeio e da
doxa , opinio distante da f verdadeira. Deusa que existe para alm da senda
dos homens, a razo deve guiar os homens em sua jornada. ela quem deve
presidir e inspirar o mundo da multiplicidade da natureza, assim como dos pontos de
vista que compe a poltica. Penetrada em tudo, a razo dever saber guiar o homem
que est perdido em meio s aparncias de movimento. Tudo aquilo que no se
revelar segundo o princpio da imobilidade deve ser descartado.
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Assim, para Parmnides, o real deve ser apreendido enquanto uma Unidade
na qual a multiplicidade regida segundo a ideia do um como princpio, ou seja, que
tudo aquilo que encontra sua correspondncia, sua identidade em uma mesma e
nica substncia que a tudo rege e ordena, deixando de lado o que no . Princpio
nico que se expande igualmente para todos os lados da a sua redondeza , a
realidade se expressa pela organizao da multiplicidade segundo esse princpio
idntico que homogeneza todas as coisas. A razo essa faculdade que permite
decifrar a harmonia no contraditria entre todas as coisas, a faculdade que
permite apreender o real enquanto um todo proporcional onde todas as dualidades
so absorvidas, fundidas em uma totalidade unvoca. A lei universal que rege o
mundo e, portanto, a razo, um princpio que engloba toda e qualquer
particularidade no interior dessa superfcie una e contnua em todas as direes,
mago inabalvel da verdade bem redonda.
A descoberta de uma norma universal que consiga explicar a lei que est por
detrs das aparncias do mundo fenomnico tambm inspira a filosofia de Herclito
de feso. Porm, diferente de Parmnides, Herclito no separa ser e no ser. Para
o filsofo, o princpio totalizante do mundo, lugar de onde brota o real, o
imbricamento entre ser e no ser atravs da tenso e copertencimento entre os
pares de opostos. Para Herclito essa tenso polemos est presente em todos
os aspectos da realidade: a guerra originria, o conflito, que expressa a relao
entre as coisas no universo que , essencialmente, contrastante:
O frio torna-se quente, o quente frio, o mido seco e o seco mido. A guerra o pai de todas as coisas e de todos os reis; fez de uns deuses, de outros homens; de uns escravos, de outros homens livres. Tudo se faz por contraste; da luta dos contrrios nasce a mais bela harmonia (SANTOS, 2001, p. 92).
Assumindo a contradio como o motor da relao tanto da natureza humana
(guerra/paz), como da natureza cosmolgica (quente/frio), Herclito prope uma
racionalidade que desvenda a totalidade do real a partir dessa tenso/relao
existente entre opostos, devir essencial do mundo. O conhecido logos heraclitiano
o princpio universal do pensamento, a faculdade racional que desvenda essa
permanente oposio de onde provm a realidade.
Porm, essa dualidade essencial do mundo no se manifesta de maneira
esttica. Segundo Herclito, a tenso e o copertencimento entre opostos fazem do
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real um jogo dinmico onde h um vir a ser em constante movimento no interior da
realidade (physis). Expresso no famoso fragmento guas sempre diversas correm
para os que se banham no mesmo rio (CASERTANO, 2011, p. 103), o princpio
heraclitiano do movimento rege o real em sua dimenso mais profunda, ontolgica.
O rio, formado por guas diversas , ao mesmo tempo, sempre o mesmo rio. Ou
seja, o rio sempre o mesmo e, concomitantemente, outro rio. Ou seja, para
Herclito, a luta dos contrrios aquilo que subjaz no fundo da realidade. O
aparente linear e causal, a transformao da realidade em sua superfcie, habitado
por essa contradio profunda que se manifesta enquanto alternncia perene de um
estado a outro em uma relao dialtica primordial. Se para Parmnides no havia
relao possvel entre ser e no ser, em Herclito nessa relao, no
copertencimento entre opostos, que se revela o impulso da realidade. O real a
manifestao de uma relao onde o ente est saturado de seu negativo, h sempre
uma realizao em curso, uma transformao que modifica e mantm o real como
sendo uno e mltiplo.
Dessa forma, a filosofia de Herclito busca, ao contrrio de Parmnides,
compreender essa relao entre ser e no ser ontologicamente inseparveis. Para o
filsofo, a totalidade do real ontologicamente guiada por uma razo que apreende
o real em seu movimento contraditrio, se expressando assim, a partir da noo do
dois como totalidade.
Essa distino fundante da racionalidade grega acompanha toda a trajetria
da filosofia ocidental. Regida pela relao entre a dualidade ontolgica ser e no ser,
a dupla orientao do pensamento presente nos alvores da filosofia na Grcia
encontrar mltiplos desdobramentos ao longo de toda a histria. Porm, essa
distino fundamental, essa dupla acepo de como se realiza o pensamento
racional seguir presente.
De um lado, o um como princpio, ideia de um princpio incriado que a tudo
engloba em sua extenso e homogeneidade e que mantm cindido o ser (aquilo que
existe) do no ser (aquilo que no existe). Ou seja, a veracidade da realidade
admitida a partir da afirmao da unidade do ser, que existe por si prprio verdade
bem redonda , sempre idntico a si mesmo. Do outro lado, o dois como totalidade,
a ideia desse princpio incriado como relao entre opostos em tenso e
copertencimento. Aqui ser e no ser esto mutuamente implicados um no outro, eles
se interpenetram e se afastam ao mesmo tempo, formando unidade e multiplicidade,
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habitando um no outro. O que se mantm, garantindo assim a veracidade real
essa necessria articulao entre o ser e sua negatividade. A identidade s existe
porque est em relao contraditria com o seu oposto, a sua alteridade.
Com o advento da filosofia pr-socrtica e sua dupla orientao, o
pensamento ocidental passa ento a conceber a vida e o mundo de formas distintas
da poca do pensamento exclusivamente mitopotico. Diferente do mundo arcaico,
onde deuses eram a causa primordial e exclusiva das relaes humanas e
csmicas, a partir dos pr-socrticos surge a indagao acerca de princpios
abstratos que originam o cosmos, dando forma ao caos do incriado. pela palavra
racional e pelo manuseio da linguagem humana, segundo critrios nascidos da
indagao, que a verdade tambm pode ser alcanada. Surgem o discurso e a
argumentao filosficos. A dupla racionalidade grega , portanto, uma dupla
construo discursiva na tentativa de apreenso do real, tendo como base e
fundamento duas lgicas argumentativas: a pstis e peith.
Pstis e Peith: a dupla lgica argumentativa
Pstis: o discurso como no contradio.
A pstis uma palavra que designa a confiana em um discurso verdadeiro e
no contraditrio. Como deixa clara a prpria traduo como f, pstis traz algo de
religioso em sua concepo. uma palavra que aponta para a existncia de valores
transcendentes, valores divinos que se encontram para alm da existncia humana.
Representa a confiana em uma verdade imutvel a ser encontrada, um como
princpio. Segundo o discurso argumentado guiado por pstis, o dilogo deve buscar
demonstrar essa verdade, alcan-la segundo a coeso interna e o uso de princpios
no contraditrios. Seguindo uma lgica interna harmoniosa, ou seja, que no leve
em nenhum momento desarticulao do todo perfeito e imvel, esse o discurso
que d origem ao manejo tcnico do mundo e cincia enquanto busca de leis
gerais e no contraditrias para a elucidao do real. Explica Vernant:
Existe a uma ideia fundamental do ponto de vista da racionalidade; ela est ligada, tambm, ao desenvolvimento da matemtica e encontrar nos elementos de Euclides sua melhor expresso: trata-se da ideia que os homens so suscetveis de inventar um discurso tal que, uma vez colocadas as premissas, todo o resto segue necessariamente, a partir da, a verdade est ligada coerncia
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interna do discurso, sua no contradio interna, no mais sua adequao ao real. Eis o que caracteriza essa grande corrente filosfica (VERNANT, 2001, p. 206).
Para o discurso conduzido por pstis, o dilogo , portanto, uma forma de
convencimento. Dilogo desigual: papel daquele que tem o conhecimento da
verdade esse princpio, essas premissas que estruturam o real , ser capaz de
demonstrar ao outro a verdade. Independente da forma de encontro, a verdade
preceito externo e alcanvel por qualquer um que consiga se apoderar do discurso
(da lgica) que leve a desvendar a coerncia no contraditria do real. A verdade
que j est dada de antemo , deve ser descoberta, revelada em sua harmonia
atravs do discurso demonstrativo onde deve ser exercida a arte das simetrias, das
medidas e das propores. O mestre filsofo deve, assim, conduzir o aluno at a
verdade. essa ideia de busca por uma verdade imutvel que inaugura, a partir de
Plato, a chamada era da metafsica. Para Plato, a busca pela verdade a busca
pelo princpio, por uma arch originria que consiga ascender at as ideias
incorpreas e invisveis mundo suprassensvel da idea exteriores matria e
suas formas e imagens falsas, mundo sensvel e finito.
esse projeto metafsico de ciso entre o reino do ser e do no ser que
encontra, a partir de Aristteles e sua obra Organon, um novo desdobramento.
Ressignificando a unidade do ser seu princpio de no contradio , Aristteles
afirma uma causalidade maior por detrs de todos os movimentos do universo e cria
um sistema hierrquico que organiza esse princpio de dominao, inferiorizando e
submetendo o no ser. Como explica Borheim:
No correr do desenvolvimento da metafsica ocidental, a presena do outro sempre representou um perigo a ser cuidadosamente evitado. E o primeiro a dar-se conta do que poderia representar a anuncia a tal perigo foi nada menos que Aristteles [...]. O outro escamoteado ou reduzido marginalidade dos acidentes que no prejudicam em nada a prioridade do mesmo, da substncia. Nem h exagero em afirmar que Aristteles se revela, no fundo, mais parmendico do que Plato. Sua lgica, fundamentada no princpio da identidade e que acaba encontrando sua guarida ltima e definitiva na substncia absoluta, encontra seu desempenho maior precisamente no banimento da contradio, que se faz, simplesmente, sinnimo de erro (BORHEIM,1999, p.102).
O mundo hierarquizado e regido por leis de Aristteles define assim um lugar
demarcado para aquilo ou aquele que traz o emblema da outredade, o convvio com
31
o no ser. Expressa pela ideia de uma realidade natural formada por espcies fixas
em uma hierarquia inaltervel, o sistema aristotlico tambm se aplica natureza
humana. O escravo, para Aristteles, representa assim esse lugar possvel para o
no ser, para o outro na cadeia hierrquica que forma o mundo. Ele seria a
ferramenta inanimada, dotado apenas da alma de escravo incapaz de raciocnio
lgico e de orientar uma deciso tica. O no ser absorvido dentro de um sistema
de inferiorizao e dominao de sua natureza, justificando assim a escravido e,
sculos depois, a ideia de raas superiores e inferiores.
Essa hierarquizao ganha, na Idade Mdia, o corpo religioso do cristianismo.
A partir de Plotino e sua ideia de Uno, o princpio absoluto descrito como sem
movimento nem repouso, atemporal e sem limites. A realidade passa a ser vista
como criao de uma fora exterior a ela, tornando ainda maior a distncia entre ser
e no ser. J em Santo Agostinho, Deus comparado ao Sol e passa a ser a
luminosidade divina que d a luz a tudo, oferecendo inteligibilidade ao mundo. J o
princpio da hierarquia aristotlica retomado por So Toms de Aquino que,
escrevendo sobre a diferena ontolgica entre essncia e existncia, cria um
sistema hierrquico entre criaturas e seres divinos. Anjos e homens habitam assim
esse novo quadro. So Toms retoma tambm a noo aristotlica de causalidade
ltima, que passa a ser entendida como intelecto agente que controla todo plano de
hierarquia, conformando o mundo dividido em Esprito e Matria, Alma e Corpo, Bem
e Mal. O outro ento concebido como aquilo que detm essa capacidade de
afastar o ser humano do seu criador, o mundo manifesto, universo dos sentidos e,
em ltima anlise, reduto do Mal, oposto radical e separado do Bem, causalidade
primeira e ltima, alm do tempo e da criao.
J no sc. XVI, temos dois textos inaugurais da modernidade, O Discurso do
Mtodo de Descartes e Os aforismos de Francis Bacon que, no por acaso iniciam
com o Novo Organon e apresentam o homem (animal rationale) como o ente que
passa a conter em si mesmo (dentro de si) o princpio universal e inabalvel do
mundo suprassensvel, a razo matemtica. Tudo aquilo que imanente, mltiplo,
diversificado e em transformao passa a compor o mundo enquanto objeto do
conhecimento. Dali em diante, o sujeito, centro do real, pode apreender o que h de
absoluto e, portanto, verdadeiro (leis eternas e imutveis) no mundo. Deus um
como princpio passa a habitar o humano atravs da razo. Explica Pessanha:
32
Toda vez que estamos diante um discurso monolgico, e um discurso que se pretende pleno, perfeito e acabado do ponto de vista racional, ns estamos na verdade subentendendo primeiro um monismo. Estamos admitindo que tudo tem um princpio nico, uma nica sustentao mas, estamos subentendendo o ocidente subentendeu isso em grande parte um monotesmo que sacraliza e diviniza o monismo e diz que tal realidade nica de sustentao tem a garantia de Deus Descartes um exemplo (PESSANHA, 1994, p. 93).
Peith: o discurso como persuaso
A outra lgica argumentativa guiada pela peith, a fora da persuaso.
Diferentemente da busca pela coerncia interna e no contraditria, a persuaso
uma fora que emana do discurso retrico e da discusso. No h aqui a inteno
de isolar o no ser e sim participar da relao contraditria e da extrair a verdade do
discurso. O confronto a fora motriz que conforma a verdade. Ela nasce dessa
disputa entre posies contraditrias que se enfrentam. A persuaso essa forma
de argumentar que busca enredar o seu oposto em uma teia argumentativa, que
procura seduzi-lo de maneira a conquist-lo sem a necessidade de domin-lo com a
imposio de uma verdade exterior. A verdade, como peiths, se realiza pelo
debate. Dessa forma, a persuaso uma atitude intelectual eminentemente poltica.
Como explica Vernant:
Desenvolve-se um tipo de atitude intelectual, um tipo de discurso que no uma narrativa e sim uma argumentao, uma argumentao ad hominin interessada, que tem pouca relao com a preocupao com a verdade, mas que constitui um aspecto fundamental da vida grega, seu papel justamente a persuaso, ou seja, a crena, mas uma crena que no religiosa [...]. Assim a peith opera sobre as questes humanas no nvel poltico, jurdico ou pessoal, mas uma fora que desenvolve um tipo de discurso novo, o discurso persuasivo ou argumentado (VERNANT, 2001, p. 205).
Assim, foi utilizando da peith, da persuaso argumentativa realizada pela
contradio enquanto fundamento da verdade, que se desenvolveu o pensamento
de um grupo de filsofos que andavam de cidade em cidade nos arredores de
Atenas, animando debates e ensinando os atributos da retrica: eram os sofistas.
Devido s crticas e polmicas que estes pensadores criaram com Plato e
Aristteles, o termo sofista acabou sendo identificado com a ideia de falso
argumentador, falsrio e at mesmo prostituto da cultura. Essas ideias acabaram se
instalando devido crtica realizada pelos sofistas cultura aristocrtica e ideia
muito difundida da superioridade da cultura grega em relao s demais.
33
Defendendo o debate e a argumentao aberta em relao aos mais variados
temas, os sofistas desafiavam no s a filosofia clssica, mas tambm convidavam
reflexo sobre a diferena cultural como exerccio de alteridade e no de domnio.
Ou seja, os sofistas inauguraram a problematizao filosfica acerca do relativismo
cultural. Como explica Casertano:
Ganharam peso duas ideias originais, a ideia de relatividade dos valores culturais, que se manifestava pelo confronto, pela investigao, pela discusso e que ancora as conquistas conceptuais, tcnicas e polticas s situaes humanas, relativas e histricas; e a ideia de unidade fundamental da espcie humana, alm das fronteiras de classe e nao (CASERTANO, 2011, p. 181).
Ou seja, com os sofistas, ganha peso e consistncia a ideia de que o outro,
aquele diferente de mim (no ser) deve participar da elucidao da verdade
filosfica. Para os sofistas, o homem a medida de todas as coisas e pelo
debate contraditrio e argumentado entre diferentes posies filosficas, polticas e
culturais que avanamos em relao verdade universal. Indo contra a ideia da
existncia dos aristoi (da a palavra aristocrata), grupo que guardaria um parentesco
natural com os deuses, acessando assim com maior facilidade as verdades
emanadas da physys, os sofistas defendiam a ideia de nmos9. Traduzido como
conjunto de normas ou convenes, nmos era o particular de cada cultura ou grupo
social entendido como particularidade histrica que poderia ser modificada a partir
da poltica e do debate cultural. A universalidade, nesse sentido, realizada no
exerccio do debate contraditrio no mundo poltico e no atravs de prticas
discursivas que revelem sua natureza transcendental. Para os sofistas, a verdade
no algo dado ou revelado por detentores da tradio ou de um mtodo decisivo
para a apreenso do real. A verdade, construda pelo constante debate no seio do
mundo, um exerccio dialtico entre posies distintas que se modificam e se
contradizem, como explica Chau:
Os sofistas introduziram em Atenas o ardor pela dialtica e pela retrica, as dvidas quanto pretenso da filosofia de conhecer a verdade ltima das coisas e as discusses sobre a diferena entre o nmos (a conveno, que depende de uma deciso humana) e a
9 Sobre o pensamento sofstico acerca da physis e nmos, bem como sobre suas implicaes na
crtica aristocracia grega, que ser posteriormente legitimada metafisicamente, ver AGUIAR, Roberto A. R. O que Justia: Uma Abordagem Dialtica. So Paulo: Editora Alfa-mega, 1982.
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physis (a natureza, cuja ordem necessria independe da ao humana), optando pelo primeiro contra a segunda [...]. Nmos passa a significar os usos e costumes, e da, opinio geral ou mxima aceita por todos, o costume com fora de lei ou a lei escrita, a lei costumeira (CHAU, 2002, p. 165).
Seguindo esse princpio da defesa dos usos e costumes, um dos aspectos
mais polmicos do pensamento sofstico a defesa das sensaes e da linguagem
como caminho at a descoberta da verdade. Contrariamente ao pensamento
platnico, as sensaes e a linguagem eram, para os sofistas, fontes de
conhecimento sobre a verdade, elas no estavam separadas do pensamento nem
da dimenso coletiva de produo de valores. A sensao seria, assim como a
linguagem, mais uma fonte inteligvel ao humano para que ele, utilizando do discurso
e do debate acerca da factualidade percebida por todos, pudesse expressar uma
verdade consensual. O mundo sensorial considerado o meio de elaborao da
verdade e no mero produtor de engano. A imanncia lcus de manifestao da
verdade que se presentifica a partir de relaes onde tanto a sensorialidade (o
sentir) como a linguagem ocupam lugar central.
J durante a Idade Mdia, apesar da enorme hegemonia da Igreja e da
filosofia escolstica aristotlica, o pensamento regido pelo dois como totalidade
continua presente. Derivados do pensamento agostiniano (da linhagem de Santo
Agostinho) os doutores franciscanos defendiam que, ao contrrio do que afirmava
Aristteles, havia uma realidade prpria matria. De acordo com os franciscanos, o
mundo material teria uma forma vivente independente da alma e do intelecto
primordial. Dessa forma haveria uma pluralidade substancial no composto, ou seja,
haveria vida prpria e ativa no mundo das criaturas e no s no Criador. Para alm
de um dos desdobramentos e, at mesmo, cpia do Criador, a criao tinha uma
vida, beleza e dinmica prpria, tambm considerada manifestao divina do Belo e
da Perfeio. O no ser ganhava assim, juntamente com o Um causal, a dignidade
da existncia divina e a multiplicidade, por sua vez, ganhava uma relativa
independncia do princpio da unidade de todas as coisas.
Essa importncia da matria torna-se ainda mais forte no pensamento de
Duns Scott (1266-1308), filsofo cristo que ganhou notoriedade por sua teoria do
voluntarismo (liberdade divina), assim como por suas opinies crticas
centralizao do poder poltico nas mos do Papa. Segundo Scott, Deus cria o
mundo segundo sua prpria liberdade divina, ou seja, sem estar submetido a
35
nenhuma causa ou princpio do Intelecto. Ao contrrio, o Intelecto s pode agir a
partir da vontade, sendo a vontade livre de Deus a essncia do mundo. Cada ente
um ser independente e dotado de uma vontade livre e indeterminada. Deus, unidade
entre todas as coisas, se expressa e se faz presente no amor que liga, relaciona e
comunica um ente ao outro. Assim, com Duns Scott, a importncia do no ser, do
mundo acidental e sensvel chega a seu ponto mximo de importncia em relao
inteligncia unitria de Deus. O infinito poder de criao e multiplicao, antes
relegado ao mundo exterior, passa a habitar no reino do mundo e portanto, no seio
da existncia humana. Como explica Konder:
Durante a Idade Mdia, na vigncia da hegemonia da Escolstica, o infinito aparece no pensamento medieval, relativamente domesticado [...]. O infinito existe no cosmos, isso um tema antigo. Mas pensar o infinito a partir da capacidade do homem de se inventar, do poder do homem intervir no mundo, transformando o mundo com possibilidades que, em princpio, no podem ser definidas outra coisa (KONDER, 1994, p. 50).
Essa ideia de pluralidade criativa do mundo vivido estava presente no s na
filosofia dos pensadores que teciam crticas aos Papas no interior da instituio da
Igreja, mas no cotidiano das populaes do chamado Velho Mundo. Assim, o
cristianismo foi assimilando a mitologia grega expressa nos rituais praticados no
Imprio Romano, bem como outras mitologias prprias de outros povos por onde o
Imprio se estendeu. Se opondo concepo do um como princpio, se concretizava
na prtica da vida cotidiana uma coeso social baseada na diversidade cultural
expressa atravs de cultos de carter comunitrio que incorporavam elementos
externos no interior do cristianismo. Juntamente com a doutrina autoritria da Igreja
me do obscurantismo se desenvolveu de maneira tensa e copertencente a ela,
uma religio crist permeada de valores culturais das diversas populaes que
compunham o mundo europeu da Idade Mdia. Para essas populaes, a
concepo do elemento divino, presente na relao e na comunicao entre
diferentes, era a expresso de seu modo de vida, sendo o cristianismo praticado por
eles muito mais um aglutinador e sintetizador de diferentes crenas do que uma
doutrina rgida e encerrada em seus prprios dogmas10.
10
Sobre a relao tanto histrica como do campo da formao das ideias, entre igreja popular e cultura popular, ver Dussel (2004).
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Dessa forma, as duas lgicas discursivas (dupla racionalidade grega) se
constituram como via dividida da filosofia ocidental, desde a sua origem at
alcanar a Idade Mdia. O princpio de uma metafsica a-histrica nos remete
existncia de uma identidade baseada na no contradio, identidade imvel que
serve como fundamento primeiro de onde provm todo o manifesto. o princpio
hierrquico superior que rege todo o manifesto. E como se todo o real
correspondesse ao mesmo. Todos os entes, em sua finalidade ltima, correspondem
mesma substncia ontolgica, o ser. Ou seja, o pressuposto da mesmidade,
onde o no ser (o que no si mesmo) absorvido para o interior do ser e seu
sistema de valores e relaes definidas ou ento tem a sua existncia negada,
ignorada e at mesmo exterminada. a ideia do um como princpio.
J no princpio da ontologia realizado enquanto tenso e copertencimento
entre opostos, o no ser participa constantemente da reinveno do mundo, seu
devir. Inserindo o princpio da criao nessa perene contradio no seio do mundo,
no h um princpio fundante e sim a dualidade ontolgica onde ser e no ser esto
inseparavelmente imbricados um no outro. o pressuposto da outredade, no qual a
identidade designada a partir da relao com a alteridade. Aquilo que , s na
medida em que se realiza na relao com o outro de si. Dessa forma, ser e no ser
esto mutuamente implicados no movimento contraditrio que caracteriza o real
enquanto dois como totalidade.
Assim, podemos afirmar que a radical diferena que marca os dois
pressupostos filosficos da mesmidade e da outredade constitui uma clara imagem
da dupla racionalidade que conformou a produo do chamado mundo ocidental. No
sc. XVI, essa duplicidade estava presente no interior do projeto civilizatrio que
animava o empreendimento colonizador no continente americano. Dupla razo,
dupla argumentao, dupla noo de verdade que foram se combinando e se
desdobrando em projetos de domnio, resistncia e elaborao de novos sentidos
histricos (utopias) para o conjunto das populaes oriundas desse processo. Entre
a mesmidade e a outredade se constituram os mpetos civilizatrios que forjaram,
no encontro/confronto com as populaes originrias, o momento inicial da Amrica,
inaugurando assim a modernidade11.
11
Compartilhamos aqui da concepo de Dussel dentre outros (ver LANDER, org., 2000) para quem a modernidade se inicia em 1492. Segundo Dussel: Propomos uma segunda viso da modernidade, num sentido mundial, e consistiria em definir como determinao fundamental do mundo moderno o
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2. O EMPREENDIMENTO COLONIZADOR: CONQUISTA, CAOS E MESTIAGEM
O Novo Mundo
Em 1972 publicado As Cidades Invisveis, livro escrito pelo italiano talo
Calvino, onde contada a histria de uma grande viagem a partir de descries e
dilogos realizados entre o navegante veneziano Marco Polo e o Imperador Kublai
Khan. Com objetivo de acompanhar dois monges que levavam a mensagem crist
at a China durante o sc. XIV, Marco Polo permaneceu vinte e quatro anos
viajando pela sia, Oriente Mdio e Europa oriental. No relato fantstico de Calvino,
o objetivo de Marco Polo era descrever ao seu Imperador, Kublai Khan, os detalhes
de seu enorme imprio que inclua o atual territrio da China, Tibete, Sibria e
Afeganisto, chegando a ocupar um quinto da extenso da rea habitada do mundo
da poca.
A estrutura do livro, que nos remete ao universo oriental tanto em seu mote
central quanto estrutura narrativa que faz clara aluso s Mil e uma noites,
dividido em cinquenta e cinco descries de cidades pertencentes ao Imprio de
Kan, todas com nomes femininos. Ou seja, em As Cidades Invisveis, criada uma
arquitetura onde reunida, em uma mesma totalidade, o mpeto de dominao de
Kublai Khan e o processo de descoberta, de encontro e de maravilhamento que
envolvia esse processo. talo Calvino, ao descrever as cidades com nomes
femininos, propositadamente leva o leitor a imaginar o ato de descoberta do
imperador como um encontro romntico entre ele e uma mulher, representando o
contato e a relao com a alteridade como um dilogo amoroso. Dessa forma, na
narrativa de Calvino se tensionam e se enamoram o esprito de domnio, violncia e
extermnio prprios aos projetos imperiais e sua face complementar, sua face
invisibilizada, de expresso da vida enquanto uma ertica, ou seja, tenso desejante
produzida no seio do mundo.
Em um trecho que descreve o dilogo entre Marco Polo e Kublai Khan,
Calvino desvenda essa dinmica prpria ao movimento da conquista, essa dialtica
da conquista como domnio e/ou persuaso. Escreve ele:
fato de ser (seus Estados, exrcitos, economia, filosofia etc.) centro da Histria Mundial (DUSSEL in: LANDER, 2000, p. 24).
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Contudo, cada notcia a respeito de um lugar trazia ao imperador o primeiro gesto ou objeto com o qual o lugar fora apresentado por Marco. O novo dado ganhava um sentido daquele emblema e ao mesmo tempo apresentava um novo sentido ao emblema. O imprio, pensou Kublai, talvez no passe de um zodaco de fantasmas da mente. Quando possuir todos os emblemas perguntou a Marco conseguirei possuir meu imprio finalmente? E o veneziano: No creio: nesse dia vossa Alteza ser um emblema entre os emblemas (CALVINO, 1972, p. 12).
A multiplicidade dos gestos vindos dos mais diferentes territrios formando
novos sentidos se confronta com o zodaco de fantasmas na mente do dominador
que incapaz de dar consistncia real ao outro. No dilogo entre o imperador e o
viajante se explicita essa tenso intrnseca ao processo de expanso de uma
estrutura centralizada, imposio e dilogo inextricavelmente reunidos. Presentes na
dbia palavra conquista, o sentido de domnio e imposio no reconhecimento
e do necessrio dilogo entre cdigos distintos ganham, a partir do incio do sc.
XVI, desdobramentos de uma intensidade at ento indita. Data inicial do confronto
que fundaria a modernidade e a desenvolveria, a fundao da Amrica inaugura um
ciclo histrico onde os pressupostos filosficos da mesmidade e da outredade se
expandem e adquirem nova configurao. A partir do sc. XVI, um novo mundo
emerge como resultado das grandes navegaes mercantilistas, do confronto entre
mundos e da acumulao gerada nesse processo. A condio desse acontecimento
histrico, sua radicalidade, ir determinar o caminho da chamada civilizao dali
para diante:
A descoberta da Amrica, ou melhor, a dos americanos, sem dvida o encontro mais surpreendente de nossa histria. Na "descoberta" dos outros continentes e dos outros homens no existe, realmente, este sentimento radical de estranheza. Os europeus nunca ignoraram totalmente a existncia da frica, da ndia ou da China, sua lembrana esteve sempre presente, desde as origens. A Lua mais longe do que a Amrica, verdade, mas hoje sabemos que a no h encontro, que esta descoberta no guarda surpresas da mesma espcie [...]. No unicamente por ser um encontro extremo, e exemplar, que a descoberta da Amrica essencial para ns, hoje. Alm deste valor paradigmtico, ela possui outro, de causalidade direta. A histria do globo , claro, feita de conquistas e derrotas, de colonizaes e descobertas dos outros; mas, como tentarei mostrar, a conquista da Amrica que anuncia e funda nossa identidade presente (TODOROV, 1996, p. 06).
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Essa radicalidade do encontro de modos de vida at ento desconhecidos
uns para os outros, inaugura assim a possibilidade de uma oposio indita. Essa
oposio no , entretanto, homognea. Pensando historicamente, cada grupo
continental vinha de uma histria de milhares de anos onde a heterogeneidade da
memria histrica e formao cultural das populaes que se confrontaram na
conquista realizaram distintas relaes de domnio, resistncia e adaptao. Mais do
que uma justaposio mecnica entre dois mundos estanques, a Amrica surge
como um fenmeno histrico complexo, articulador e desarticulador de diversas
estruturas antigas e recm-emergidas, onde os efeitos do genocdio, da doena e da
catstrofe generalizada se configuraram como efeito comum do processo
colonizador: essa desorganizao generalizada que caracterizou o
empreendimento colonial em seu incio. Como explica Gruzinsky:
No Mxico, assim como em todas as frentes do Novo mundo, a chegada dos europeus foi, primeiro, sinnimo de desordem e caos. Gerou zonas de altas turbulncias, tanto no Caribe (1493-1520), como nos Andes (1532-1555) ou no Brasil dos portugueses. No se pode compreender a evoluo da colonizao, nem as misturas provocadas pela conquista espanhola se esquecemos esses dados iniciais (GRUZINSKY, 2001, p. 73).
E, um pouco adiante, continua:
Na Amrica, o choque to brutal como imprevisto. No se resume a uma questo de simples defasagem, nem a coliso de dois sistemas estveis, em que um tivesse sido perturbado pelo surgimento do outro. O ambiente que viviam os conquistadores no tem nada de monoltico [...]. A diversidade de protagonistas indgenas e europeus religiosa, lingustica, fsica, social etc. e as tenses que os opem, introduzem uma heterogeneidade ainda mais acentuada pelo choque da derrota e pelas deficincias do quadro poltico (GRUZINSKY, 2001, p. 73).
Dessa forma, podemos afirmar que mais do que o confronto entre mundos
opostos, a Conquista foi tambm um complexo processo de profunda
desestabilizao e destruio , assim como de reestruturao de diferentes
projetos societrios, no qual afinidades, negociaes e diferenas irremediveis se
combinaram em uma trama histrica contraditria que tinha como pano de fundo o
projeto colonizador. Em ambos os mundos vicejavam diferentes interesses polticos
e horizontes de mundo, suas contradies. Esse grande empreendimento
econmico imperial que deixou, em seu primeiro sculo, quarenta milhes de
40
mortos, trouxe para a Amrica os diferentes sentidos, contradies e disputas por
territrios que se digladiavam no Velho Mundo antes do sc. XVI, assim como
encontrou um universo tambm saturado de contradies e confrontos, com
diferentes formas de organizao, populaes dominadas em processos de
expanso e civilizaes milenares muito distintas entre si. Dessa intrincada trama de
relaes de poder e vises de mundo possvel identificar objetivos comuns onde
diferentes grupos sociais convergiam, compartilhando assim de um mesmo sentido
histrico para as suas aes. Dessa forma, o empreendimento colonial se
configurou, de um lado, por uma tentativa de cpia do mundo europeu em continente
americano e de outro, pelo profundo encontro e mestiagem entre diferentes modos
de vida que veio trazido para o continente americano.
Porm, assim como na Grcia de Plato e Aris