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1 Cá entre Nós 4ª EDIÇÃO - CAMPINAS, DEZ-2018|FEV-2019 Editorial Colegas, Conseguimos atingir a nossa meta de quatro edições do Cá entre Nós por ano. Viva! Foi um tempo de aprendizado, de muitas surpresas, alegrias, esforços envidados para que mais este sonho do LEPED se concretizasse. Cada edição teve seus artigos cuidadosa e carinhosamente escritos, ilustrados, diagramados, levando aos leitores nossas contribuições em favor de uma educação para todos. Queremos agradecer a todos os que participaram com tanta dedicação da elaboração de cada edição e continuar contando com esses e outros novos colaboradores. Porque assunto não nos falta, quando se pensa e se estuda a escola, em toda a sua complexidade e possibilidades. Vamos em frente, compartilhando o que sabemos e somos capazes de fazer para tornar realidade o que sonhamos para nossas crianças e jovens, dentro e fora de nossas escolas. Conheçam o nosso site, enviem-nos suas apreciações com toda sinceridade, pois, Cá entre Nós, esta é a melhor maneira de convivermos e crescermos juntos. O Editor. O que está em jogo na revisão da política de educação inclusiva? Marta Avancini Em 2006, minha filha nasceu com síndrome de Down e desde seu nascimento não tive dúvida de que ela estudaria numa escola comum. Esta não era uma questão que se colocava naquele contexto, em que o rumo natural para uma criança com deficiência (intelectual ou outra) era a sala de aula comum. Neste também foi o ano em que a Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada pelo Brasil dois anos mais tarde, o que lhe garantiu status de lei no país. Em sincronia com esse movimento, em 2008 foi implementada a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI), a qual se alinha com as disposições da Convenção da ONU sobre o direito à educação i . A PNEEPEI foi desenhada tendo em vista assegurar o direito à educação das pessoas com deficiência no ensino comum, em consonância - além da Convenção - com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e a Constituição federal. Foto: Antônio Scarpinetti / SEC-Unicamp

Cá entre Nóscaentrenosweb.com/gallery/iv caentrenós-editado. final.pdf · 2019. 3. 12. · A questão é puramente de princípios e, por isto mesmo, acontece de ser tão difícil

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    Cá entre Nós 4ª EDIÇÃO - CAMPINAS, DEZ-2018|FEV-2019

    Editorial

    Colegas,

    Conseguimos atingir a nossa meta

    de quatro edições do Cá entre Nós

    por ano. Viva! Foi um tempo de

    aprendizado, de muitas surpresas,

    alegrias, esforços envidados para

    que mais este sonho do LEPED se

    concretizasse.

    Cada edição teve seus artigos

    cuidadosa e carinhosamente

    escritos, ilustrados, diagramados,

    levando aos leitores nossas

    contribuições em favor de uma

    educação para todos.

    Queremos agradecer a todos os que

    participaram com tanta dedicação

    da elaboração de cada edição e

    continuar contando com esses e

    outros novos colaboradores.

    Porque assunto não nos falta,

    quando se pensa e se estuda a

    escola, em toda a sua complexidade

    e possibilidades. Vamos em frente,

    compartilhando o que sabemos e

    somos capazes de fazer para tornar

    realidade o que sonhamos para

    nossas crianças e jovens, dentro e

    fora de nossas

    escolas. Conheçam o nosso site,

    enviem-nos suas apreciações com

    toda sinceridade, pois, Cá entre

    Nós, esta é a melhor maneira de

    convivermos e crescermos juntos.

    O Editor.

    O que está em jogo na

    revisão da política de

    educação inclusiva?

    Marta Avancini

    Em 2006, minha filha nasceu com

    síndrome de Down e desde seu

    nascimento não tive dúvida de que

    ela estudaria numa escola comum.

    Esta não era uma questão que se

    colocava naquele contexto, em que

    o rumo natural para uma criança

    com deficiência (intelectual ou

    outra) era a sala de aula comum.

    Neste também foi o ano em que a

    Organização das Nações Unidas

    (ONU) aprovou a Convenção sobre

    os Direitos das Pessoas com

    Deficiência, ratificada pelo Brasil

    dois anos mais tarde, o que lhe

    garantiu status de lei no país. Em

    sincronia com esse movimento, em

    2008 foi implementada a Política

    Nacional de Educação Especial na

    Perspectiva da Educação Inclusiva

    (PNEEPEI), a qual se alinha com as

    disposições da Convenção da ONU

    sobre o direito à educaçãoi.

    A PNEEPEI foi desenhada tendo

    em vista assegurar o direito à

    educação das pessoas com

    deficiência no ensino comum, em

    consonância - além da Convenção -

    com a Lei de Diretrizes e Bases da

    Educação Nacional (LDB) e a

    Constituição federal.

    Foto: Antônio Scarpinetti / SEC-Unicamp

  • Edição trimestral

    2

    Passados dez anos, está na ordem

    do dia a revisão da PNEEPEI, sob

    o argumento de que é preciso

    “reverter as fragilidades ainda

    presentes e garantir que os

    serviços e recursos da educação

    especial sejam efetivos no

    ambiente educacional”,

    propiciando além do acesso, a

    participação e a aprendizagem dos

    estudantesii.

    Essa necessidade, segundo os

    defensores da atualização,

    justifica-se, entre outros fatores,

    pelo baixo nível de acesso dos

    alunos que compõem o chamado

    público-alvo da educação especial

    ao Atendimento Educacional

    Especializado (AEE), concebido

    para apoiar as atividades

    desenvolvidas na sala de aula

    comum: 37,6% das 897 mil

    matrículas dessas pessoas em salas

    comuns. Somam-se a ele, as

    elevadas taxas de repetência e

    evasão em comparação aos demais

    estudantes.

    Os indicadores, extraídos do Censo

    Escolar, funcionam como evidência

    de que a PNEEPEI não estaria

    cumprindo sua principal atribuição:

    assegurar o direito à educação de

    seu público-alvo, já que as taxas de

    insucesso desses alunos são

    elevadas. Atestariam, portanto, o

    baixo nível de eficiência da política

    e justificariam a ampliação do o

    espaço para as escolas e classes

    especiais, conforme previsto no

    novo ordenamento em discussão, a

    Política Nacional de Educação

    Especial.

    O argumento, que parece lógico e

    fundamentado remete, contudo, a

    determinada visão de escola, de

    aprendizagem e, por fim, de

    sociedade.

    Uma visão que vai na contramão

    daquela que prevalecia 12 anos

    atrás, quando minha filha nasceu: se

    naquela época, o horizonte era a

    inclusão – entendida como

    reconhecimento e incorporação das

    diferenças às dinâmicas sociais –, o

    novo ordenamento da “educação

    especial” tende a reforçar as

    identidades e a tratá-las em suas

    especificidades, fortalecendo o

    campo de atuação de especialistas,

    supostamente mais habilitados para

    lidar com as deficiências (em salas

    e classes especiais, entre outros

    espaços) do que os professores das

    salas de aula comum.

    A proposta de nova política

    certamente colabora para apaziguar

    as tensões geradas pela chegada de

    crianças e adolescentes com

    deficiência nas escolas comuns,

    pois a presença, numa sala de aula,

    de um aluno autista, cego ou com

    qualquer outra deficiência leva,

    necessariamente, ao rearranjo das

    dinâmicas e relações que se dão

    nela.

    Não por causa da suposta

    “incapacidade” desses estudantes

    se adequarem ao funcionamento de

    uma sala de aula. Embora pareça ser

    este o processo, na verdade, os

    alunos com deficiência funcionam

    como espelhos da falência de um

    tipo de educação que persiste:

    aquela que mede a aprendizagem

    pelo desempenho do estudante em

    testes. Nessa medida revelam a

    incapacidade desse modelo de

    escola enxergar e lidar com a

    diferença – a qual faz parte da

    escola, a despeito dos alunos com

    deficiência, e continuará existindo

    como potência de vida e de uma

    sociedade mais solidária e criativa,

    apesar das salas e classes especiais.

    Ainda há 12 milhões

    de brasileirxs que não

    sabem ler Pedro Busch

    Mesmo quem não sabe ler palavras

    sabe ouvir, observar e, portanto,

    tem algo a ensinar. O que digo é

    muito velho e não poderia dizer

    melhor que o patrono de nossa

    educação. Mas, que patrono é esse

    que nunca teve suas ideias aplicadas

    na Escola Nacional? Fora do país

    acorreram muitas reinvenções da

    didática revolucionária Paulo-

    Freiriana, enquanto que aqui,

    tirando a experiência muito bem-

    sucedida empreendida pelo próprio

    com camponeses no Rio Grande do

    Norte [40 horas de Angicos] e

    outros casos esparsos. Paulo Freire

    é nome de biblioteca, diretório

    acadêmico e vai ser lido por quem

    conseguir ingressar no Ensino.

    A questão é ainda mais profunda,

    pois, o escasso acesso ao “grau mais

    alto de saber” está intimamente

    ligado ao problema do

    analfabetismo.

    As Universidades são consideradas

    o nível mais alto de excelência em

    conhecimento (sua denominação:

    ensino superior), uma vez que a

    Educação Brasileira é concebida

    não como uma linha evolutiva ou

    Numa sala de aula, os alunos com

    deficiência funcionam como

    espelhos da falência de um tipo de

    educação que persiste: aquela que

    mede a aprendizagem pelo

    desempenho do estudante em

    testes.

    Imagem: Fantasmagoria, 1987 - Iberê Camargo

  • Edição trimestral

    3

    um diálogo aberto com o

    conhecimento, mas uma escada

    ascendente. Rumo às alturas. As

    alturas da ignorância, só se for! Não

    percebem que o conhecimento é

    uma maneira circular de propagar a

    cultura e não uma imposição

    sistemática de níveis e progressões

    matematicamente estipuladas? Não

    percebem que, se não for construído

    um ensino fundamental, de maneira

    fundamental, a universidade nunca

    será superior?

    A questão é puramente de

    princípios e, por isto mesmo,

    acontece de ser tão difícil subverter

    a questão, tanto em termos

    filosóficos quanto empíricos. É que

    lógica dos modos de produção

    propaga a pressa como verdade

    diária. Tudo acontece rápido

    demais. E por conta desse

    imediatismo, dessa pressa, dessa

    inquietude existencial mal

    resolvida, tenta-se resolver, e isso

    numa perspectiva tanto

    institucional, quanto social. Os

    problemas tapando o sol com uma

    peneira. Tentam solucionar

    questões estruturais sanando com

    violência ou ignorância seus

    resultados finais, suas conclusões.

    Como há de se perceber, faz tudo

    parte de uma lógica social, uma

    filosofia que guia os modos de

    expressão tanto em escala

    particular, em nível de indivíduo,

    quanto em escala abrangente, em

    nível social, de modo que pensar de

    forma livre é negar essa “carga”

    conhecida pelo costume e pela

    socialização, que é a ideologia das

    classes dominantes, e isto, em

    termos do processo de conhecer, é o

    equivalente a quebrar a noção de

    hierarquia no ensino. É quebrar,

    inclusive, a noção de que o

    conhecimento só deve ser feito

    dentro de uma sala fechada, com

    mesas postas em fila, de forma

    geométrica. É criticar o

    conhecimento e então criticar a

    crítica por meio da consciência do

    conhecimento.

    Não necessariamente haverão

    conclusões, mas, haverá, então,

    construção de conhecimento. Esse

    processo incansável, interminável e

    sempre frutífero que demanda um

    esforço cotidiano. Conforme disse

    Paulo Freire: a liberdade, que é

    uma conquista, e não uma doação,

    exige permanente busca, e ainda: as

    consciências não são comunicantes

    porque se comunicam, mas,

    comunicam-se, porque,

    comunicantes. (Pedagogia do

    Oprimido, 1968). Em uma

    perspectiva aberta da educação

    nacional, em uma abordagem

    comunitária da vida, deve-se buscar

    em diálogo com os cidadãos e

    cidadãs analfabetos, marginais e

    oprimidos sem Educação, aquilo

    que faz parte de seu mundo próprio,

    de sua experiência vital e, a partir

    dessa matriz material do

    pensamento, ajudá-los a despertar a

    consciência, primeiro da existência,

    por conseguinte da História e,

    então, da consciência de si na

    história, ou seja, do tempo. E o

    tempo é ação, é movimento.

    Movimento guiado em motivações,

    justificativas, sendo que cada

    palavra dita carrega uma

    significação atinada com alguma

    significante. Ora, busca-se a

    liberdade, deve-se encarar o mundo

    segundo a sua visão, a sua

    linguagem, conforme nos diz nosso

    patrono: Aprender a dizer a sua

    palavra é toda a pedagogia, e

    também toda a antropologia.

    (Pedagogia do Oprimido, 1968)

    A Virgem Velada: - a

    escola pode ajudar os

    alunos a admirá-la?

    Ayeres Brandão

    Estamos no final do inverno. O sol

    parece cochilar. Ruas viram rios,

    nuvens escurecem o mundo. Chove

    uma chuva preguiçosa, mas,

    constante.

    Difícil os pais levarem seus filhos

    para a escola dos bairros. Criança

    gosta de sol, de vento, de cores;

    correr, pular com um pé só.

    Emburra-se de ficar na janela, sem

    poder sair, adivinhando quantos

    carros passam pela rua. Por mais

    que muitos autores joguem pedra na

    Escola, não há quem não se lembre

    dos recreios, dos jogos de bola, das

    novidades do dia a dia, de conversar

    com aos amigos.

    Ver essa chuva mesmo que anêmica

    caindo sobre as plantas, assegura-

    nos o crescer dos galhos, a

    promessa das flores. A primavera

    começa a se espreguiçar e pouco a

    pouco vai acordando colorida. Ela

    boceja, se hidrata. Mostra sua face

    e aparece com os pássaros

    migrando em revoada.

    Visitando uma sala de aula, a

    professora frente a sua classe, pede

    aos alunos que contemplem uma

    escultura. Na verdade, são duas

    cópias de uma escultura, presas às

    paredes da sala. Os olhares das

    crianças são atraídos por elas.

    Tentam chegar mais próximas, pois

    não basta olhar: querem captar as

    reentrâncias táteis das esculturas,

    mesmo que impossível no papel.

    Têm um olhar curioso, tudo as

    surpreende. É um olhar e várias

    descobertas.

    As crianças, após o impacto,

    começam a perguntar como foram

    feitas as esculturas, de que material,

    se o véu foi colocado depois do

    busto pronto ou não.

    É criticar o conhecimento e,

    então, criticar a crítica por

    meio da consciência do

    conhecimento.

  • Edição trimestral

    4

    Relatam suas experiências em fazer

    esculturas na areia, de massinha,

    argila, na neve, no papel:

    representando pessoas, coisas,

    animais, em relevo, em várias

    dimensões.

    Muitas crianças revelam ter

    construído túneis, castelos, na areia,

    até que uma próxima onda forte,

    destruía o que fizeram com areia.

    Comumente tiravam uma foto,

    antes que desaparecessem. Quem

    mora em região de nevasca diz

    fazer bonecos que desmancham

    com o primeiro calor do sol.

    Em certas épocas, em São Paulo,

    diz um menino, encontramos vacas

    esculpidas e coloridas de espaços

    em espaços em determinadas

    avenidas da cidade. No começo

    todo mundo, parava para admirá-

    las, hoje já habituados nos detemos

    menos. São tão bonitas e bem-feitas

    que se espera que em instantes irão

    mugir ou balançar os rabos! ”

    A arte é uma oferenda a todos.

    Qualquer pessoa pode admirar estas

    figuras, mesmo que não saibam que

    constituem fotos de dois ângulos da

    Virgem Velada de Giovanni

    Strazza (1815-1878), que é uma

    obra prima na arte de esculpir.

    Talhada em Mármore de Carrara

    pelo escultor italiano, retrata o

    busto da Virgem Maria sob um véu.

    A peça não teve adições de

    material, ou seja, foi esculpida em

    uma peça única, por abstrações.

    Como foram criadas estas

    estatuetas, uma vez que busto, rosto

    e véu são uma peça só.? Do que é

    feito o véu? Ele a tornou invisível

    ou mais visível, explícita, mais

    clara, iluminada? Ver uma

    escultura assim, pode ser uma

    experiência mágica. É o véu, um

    complemento da Virgem, é para se

    escondê-la ou ele a torna mais

    sedutora?

    É uma obra de arte, única, delicada.

    Convida você para dançar de mãos

    dadas pelas ruas do sonho.

    De muitos textos que já li, nenhum

    me parece mais significativo para

    falar de arte, que aquele do escritor

    uruguaio Eduardo Galeano, quando

    Diego que ainda desconhecia o mar,

    diante da imensidão das águas,

    mudo de beleza, pede ao pai

    Santiago Kovadloff “me ajude a

    olhar”.

    Não seria essa uma das funções da

    escola? Sem dúvida, se pede

    sempre, desde a sua origem, que a

    escola desenvolva integralmente a

    criança, em todos os seus aspectos,

    para que se torne mais humana.

    A arte ensina a sentir e a ver. Educa

    para tornar-se si mesmo. Nos faz

    ver algo que antes não existia,

    acrescentado pelo sujeito que vê.

    As crianças, quando vistas de perto,

    se revelam incomuns, originais e

    únicas. Incentivar a sentir, deixar-se

    ser tomada pela emoção e sorvê-la,

    as humaniza, assim como deixar-se

    tomar inteiramente pelo amor,

    fruindo em muitas dimensões.

    Pena que a arte seja algo tão pouco

    valorizada na escola. Ainda são

    poucas as escolas que favorecem

    que as crianças desenhem, criem

    sem copiá-los; não são obrigadas a

    pintar desenho pronto. Os desenhos

    livres das crianças tão únicos e

    originais não estão nas paredes das

    escolas; o que se vê são traços dos

    seus professores ou ainda moldes

    pintados das revistas de Maurício

    de Souza.

    A que questões a arte nos

    responde? Somos tomados pelo

    arquétipo da paixão como diria

    Jung, atirados à terra do

    encantamento. A arte ajuda o ser

    humano a entrar em contato com

    sua fragilidade, permitir-se ter

    medo, ser bobo e ao mesmo tempo

    sábio. A fragilidade é uma âncora

    que nos segura vivos. Ajuda a

    avaliar a vida de uma nova

    perspectiva estética. Fazer da vida

    de cada um de nós, como queria

    Foucault, uma arte singular, uma

    obra de arte.

    Li um livro interessante, cujo autor

    narra que as crianças que viviam em

    uma determinada instituição

    escolar, eram incentivadas a

    expressar muitas linguagens

    artísticas: desenhar, escrever, criar

    objetos, fazer artes. Suas produções

    eram consideradas vestígios de suas

    almas.

    Na aula, com que olhos, os alunos

    admiram e se encantam com a

    Imagem: A Virgem Velada

  • Edição trimestral

    5

    Virgem Velada? Por certo são com

    os olhos da alma, da imaginação,

    vêm a harmonia, a expressão, a

    delicadeza dos traços, o sagrado...

    Ante a alegria e o êxtase pela

    beleza, a ternura jorra

    efusivamente: -“A Virgem Velada,

    como é linda, diz um aluno, vamos

    juntos admirá-la?.

    O Atendimento

    Educacional

    Especializado e os

    Sentidos da Diferença

    na Escola

    Rosângela Machado

    O Atendimento Educacional

    Especializado – AEE, como parte

    da Educação Especial na

    perspectiva da Educação Inclusiva,

    não é fácil de ser compreendido

    devido às barreiras que se impõem

    em função de velhos conceitos e

    práticas que se formaram ao longo

    dos tempos e, principalmente, do

    sentido que é atribuído à diferença.

    Ele tem como finalidade

    desconstruir a ideia de que a

    diferença é reduzida a identidades

    fechadas, que limitam o estudante à

    sua deficiência e à concepção de um

    serviço especializado para os

    estudantes que são marcados como

    aqueles que apresentam um

    desempenho acadêmico que não

    atende ao esperado pela sala de aula

    comum.

    Nessa perspectiva, o AEE vai além

    do atendimento individualizado no

    contraturno do horário escolar de

    um estudante. Suas ações têm como

    base o estudo de caso, considerando

    o contexto de vida de cada

    estudante, buscando informações

    provindas da família, da escola e de

    outros profissionais envolvidos,

    identificando dificuldades,

    possibilidades e potencialidades.

    Cada estudante, considerado único,

    requer um plano de atendimento

    educacional especializado que

    inclui objetivos desde a orientação

    a família e toda equipe da escola; a

    produção de materiais e recursos

    acessíveis; a realização de

    atendimentos individualizados; a

    interlocução com outras áreas do

    conhecimento; o envolvimento com

    políticas intersetoriais, entre tantas

    outras ações. É imprescindível

    conhecer o estudante com

    deficiência em sua interação com o

    ambiente escolar, em suas

    experiências, em suas relações

    humanas; e, acima de tudo, colocar

    em evidência que ele não vive a sua

    deficiência do mesmo modo que

    outro estudante com a mesma

    deficiência.

    Cada estudante com deficiência tem

    formas diferentes de se constituir,

    fato que contraria o que se teoriza e

    define sobre ele. A diferença se

    diferencia infinitamente e a

    deficiência não pode ser vista como

    ponto de partida e de chegada para

    o atendimento.

    O professor do AEE, assim, não é

    centrado na deficiência como único

    referencial para conhecer o

    estudante. Ele não é um especialista

    em uma determinada deficiência;

    ele está aberto ao atendimento de

    todos os estudantes que constituem

    o público-alvo da Educação

    Especial e que necessitam de

    recursos, estratégias, materiais,

    equipamentos, serviços que

    promovem acessibilidade e

    participação na escola comum. Seu

    objetivo é encontrar a criança, o

    estudante, identificar seus desejos,

    suas experiências, suas

    potencialidades, compreendendo os

    sistemas de significação e

    representação nos quais ela está

    inserida.

    Na concepção dos serviços do AEE,

    a deficiência sai do viés de

    categoria em si, do laudo e do

    parecer como únicas fontes para

    conhecer o estudante, sem ignorar a

    deficiência e suas características; e

    vai além, porque supera a visão de

    homogeneidade que encerra, por

    exemplo, crianças com deficiência

    intelectual em uma forma de

    agrupamento marcado por uma

    definição que a enquadra.

    É nessa perspectiva que o AEE é

    um serviço que promove o diálogo

    entre gestores e professores, para

    que se envolvam em mudanças

    gerais na escola. O AEE institui

    uma prática de conversação e de

    aproximação com/do outro de

    modo que se reconheça que a

    diferença não representa um

    discurso racional sobre o outro e de

    entender que o contexto e as

    situações mudam, que as crianças

    com deficiência têm, cada uma,

    suas próprias histórias. Elas são

    impossíveis de ser enquadradas em

    sistemas binários: criança com e

    criança sem deficiência.

    Concomitância

    Eliane de Souza Ramos

    O trabalho me encanta desde muito

    jovem. Intensa e às vezes obstinada,

    quando uma questão me perturba

    não sossego até encontrar uma

    resposta.

    Nos encontros e acasos da vida uma

    concomitância se evidenciou. A

    cada passo dado vou

    compreendendo que essa

    coexistência indivisa na qual eu

    vivo, é o que produz essa

    concomitância.

    Assessorando a rede municipal de

    Educação de Amparo/SP,

    Cada estudante com

    deficiência tem formas

    diferentes de se constituir, fato

    que contraria o que se teoriza

    e define sobre ele.

  • Edição trimestral

    6

    desconfiei dos textos que

    sentenciavam os alunos com surdez

    enquanto pessoas que leriam e

    escreveriam mal na Língua

    Portuguesa.

    Quando me reunia mensalmente

    com as professoras comuns e do

    Atendimento Educacional

    Especializado (AEE), que

    trabalhavam com alunos que têm

    surdez, os relatos sobre a

    capacidade cognitiva, de linguagem

    e de interação social sobre cada um

    desses alunos, preenchiam o meu

    pensamento com novas

    possibilidades de ensino. Cada um

    dos alunos surdos eram ativos e

    capazes cognitivamente! Por que

    eles não se alfabetizavam na Língua

    Portuguesa?

    Nestes últimos 12 anos tenho

    buscado diariamente uma resposta

    para essa pergunta. Eu não duvidei

    que um a um dos alunos com surdez

    dessa rede poderia se alfabetizar,

    mas intuí que os caminhos para que

    a alfabetização se tornasse

    acessível, não seriam fáceis.

    Foi no estudo de cada caso,

    conectando os impedimentos de

    natureza biológica, no caso um

    aparelho auditivo inoperante na

    escuta dos sons da fala, e os

    impedimentos de natureza social,

    logo, aqueles impedimentos que

    tornavam a pauta sonora do

    ambiente escolar inacessível aos

    alunos com surdez, que um ensino

    inclusivo foi sendo construído.

    Dialogando, analisando a prática

    docente, numa dinâmica

    democrática, colaborativa, e nem

    por isso desprovida de

    discordâncias, desconfortos e

    estranhamentos, cada um dos

    alunos com surdez foi

    disponibilizando dados que iam

    ensinando a mim e às professoras

    com as quais eu trabalhava sobre

    como agir, a fim de tornar a pauta

    sonora do meio escolar acessível.

    Eu percebia que os alunos com

    surdez se conectavam e se

    desconectavam da Língua

    Brasileira de Sinais (Libras) e da

    Língua Portuguesa falada e escrita,

    quando lhes interessava. Sabia

    também que eles não ouviam a fala,

    porém, compreendi que esses

    alunos surdos poderiam entender o

    que é a fala e conceituá-la. Com

    isso passei a defender que não

    seriam as professoras do ensino

    comum, regente e de Libras,

    tampouco a professora do AEE, que

    definiriam qual seria a primeira

    língua e qual seria a segunda língua

    a ser adquirida por cada um dos

    alunos com surdez. Se os olhos, os

    ouvidos, a sensibilidade e a

    percepção são periféricos, centrais

    e também cognitivos, e operam

    concomitantemente, o ensino

    deveria corresponder a esse

    dinamismo criador local, particular,

    que habita o interior de cada aluno,

    surdo e ouvinte.

    No ensino comum, a professora de

    Libras não era uma tradutora e

    intérprete. Ela atuava em parceria

    com a professora regente, que

    desconhecia a Libras, a fim de que

    as particularidades dessa língua

    fossem incorporadas à cada

    atividade realizada com a turma

    toda, criando um ambiente no qual

    todas as crianças tinham a

    oportunidade de aprender as duas

    línguas, concomitantemente,

    conforme as investigavam, pois

    desejavam se comunicar e criar

    conhecimentos pelas mesmas.

    Lembro que as barreiras

    comunicacionais e atitudinais não

    são naturais, elas são criações

    culturais e sociais que podem forjar

    a capacidade de se desenvolver,

    interagindo com pessoas e objetos,

    que é própria dos seres humanos.

    Certo aluno com surdez vem me

    ensinando muito nestes tantos anos

    de trabalho. Ele adquiriu a Libras,

    compreendeu o que é a fala e a

    escrita na Língua Portuguesa, e

    construiu uma consciência ímpar

    sobre as nuances dessas duas

    línguas. Ele “passeia” pela Libras e

    pela Língua Portuguesa e coloca em

    xeque aquela quase “verdade

    inquestionável” de que uma pessoa

    com surdez lerá e escreverá mal.

    Ele se alfabetizou. Ele aprendeu a

    falar na Língua Portuguesa quando

    começou a ler e a escrever.

    Ele me presenteou com o seu

    desenvolvimento, suas

    aprendizagens e sua plena

    Imagem: “Fábrica de trilhos de trem no Brasil”

    Ele se alfabetizou. Ele

    aprendeu a falar na

    Língua Portuguesa

    quando começou a ler e a

    escrever

  • Edição trimestral

    7

    participação nas atividades em uma

    escola comum, bilíngue, acessível e

    inclusiva.

    Essa amável criança é um dos casos

    que estudei no doutorado intitulado

    “Alfabetização e letramento de

    alunos com surdez o ensino

    comum”, que felizmente realizei no

    Laboratório de Estudos e Pesquisas

    em Ensino e Diferença (LEPED),

    da Faculdade de Educação

    FE/UNICAMP. Minha orientadora

    e grande parceria foi a professora

    Dra. Maria Teresa Eglér Mantoan.

    A defesa da tese ainda é recente, 13

    de novembro de 2018. Esse estudo

    em breve estará disponível caso

    você queira ler. Quem sabe ainda

    nos encontraremos nos tantos

    “trilhos da vida”.

    In memoriam

    Queridos amigos,

    Esse texto representa nossa singela

    homenagem à professora Ângela

    Tessari. Tivemos o prazer de

    conhecê-la, em 2011, em nosso

    projeto Todos Nós em Rede.

    Professora Ângela foi atuante e nos

    ensinou sobre enfrentar os desafios

    a qualquer tempo da vida. Mostrou-

    nos coragem, dedicação e ética no

    trabalho educacional. Nós, da

    equipe do Todos Nós em Rede

    compartilhamos com os familiares

    nossos sentimentos e desejamos

    dividir com vocês um pouco da

    alegria que ela nos trouxe enquanto

    esteve conosco.

    Recebam nosso abraço fraternal.

    Equipe e Professores do Todos Nós

    em Rede

    Imagens: Grupo Todos em Rede - 2011

    Angela Maria

    Tessari Farias

    1966

    † 2018

    Entre no site do tabloide,

    opine a respeito das suas

    leituras e concorra ao

    um livro autografado.

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    Fala aí!

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    Aguardamos!

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    Leonardo Cesar de Campos:

    “Site bem estruturado, fácil de se guiar, é

    com design original. O jornal impresso

    interessante e com a mesma "cara" do site,

    muito bom! ”

    Marina Betetto Drezza:

    “Eu sou estudante de geografia da Unicamp

    e tive o primeiro contato com a edição 3 da

    "cá entre nós", gostei muito de como os

    assuntos são abordados, principalmente

    porque para minha graduação de

    licenciatura, eu quero trabalhar com

    cognição de surdos e, ver que o tema

    principal desta edição foi sobre educação

    inclusiva foi extremamente relevante para

    mim. Dei para meus pais lerem, o que os

    ajudou a entender o porquê que é tão

    importante pensarmos em uma sociedade e

    uma escola mais inclusiva e os diretos que

    nossas leis proporcionam a todos aqueles

    que necessitarem dela.

    Acredito que essa publicações deveriam ter

    mais alcance para a comunidade externa da

    Unicamp, para criar pensadores críticos

    sobre temas educacionais, mas acima de

    tudo, para que respeitem as opiniões e

    estudos dos educadores acima de qualquer

    "achismo" perante à escola.

    Agradeço muito ter tido essa oportunidade.”

    Elizane Denadai:

    “Oi, jornal de excelente qualidade,

    informações bem elaboradas e escritas,

    conteúdos de grande importância gerando

    bons conhecimentos aos leitores. Gosto

    muito”

    Suely Galli Soares:

    “Cá entre Nós, inaugura uma comunicação

    despojada e convidativa a leitura, com

    temas abertos a reflexão sobre a educação e,

    implicitamente, formação de professores.

    Nos conteúdos transparecem abordagens

    filosóficas, com tons poéticos e narrativos.

    Sua qualidade e permanência certamente

    trará adeptos das mais diferentes áreas do

    conhecimento.”

  • 8

    Diga lá!Prof. Guilherme Toledo

    1. O que você considera importante

    na educação e acontece?

    Para mim o que é importante na

    educação e acontece é o espaço de

    encontro e de diálogo tão falado e

    comunicado pelo Mestre Paulo Freire,

    que as escolas públicas propiciam no

    cotidiano de seus diversos e diferentes participantes. Ainda

    que não seja em todas as aulas, que estudantes e professores,

    ao encontrarem-se conversem, em muitas salas de aula e

    escolas, os estudantes e professores encontram-se para

    dialogar em torno dos conhecimentos e acontecimentos que

    permeiam o cotidiano de suas vidas. E esse encontro, entre

    vozes e conhecimentos e saberes cotidianos, entre os sujeitos

    da escola, possibilita o desenvolvimento humano e possibilita

    aprendizados importantes para vida social, em uma

    democracia, a constituir-se nas práticas cotidianas destes

    mesmos sujeitos

    2. O que você considera importante na educação e não

    acontece?

    Considero importante, da perspectiva dos professores e

    profissionais da educação, o estabelecimento de uma prática

    autônoma de construção de conhecimento e participação no

    contexto escolar. O diálogo necessário à construção

    democrática, precisa primeiro acontecer na escola, junto e

    com a comunidade na qual ela trabalha, desenvolve diferentes

    práticas de produção de conhecimento, junto à comunidade

    diversa de que faz parte. Infelizmente, no âmbito das políticas

    públicas educacionais, a escola é a última instância a ser

    ouvida no estabelecimento destas políticas, o que dificulta o

    desenvolvimento de uma política educativa local, em diálogo

    com necessidades mais amplas, sejam elas: municipais,

    estaduais, nacionais e até internacionais, ou, mundiais.

    3. O que você não considera importante na educação e

    acontece?

    Excessiva regulação da avaliação e não avaliação regulada.

    Esses excessos avaliativos que acontecem na escola, não são

    gerados por demandas educacionais locais e situadas pelos

    sujeitos dos processos educativos. É próprio dos sistemas de

    ensino a avaliação! E a avaliação regulada, quando situada

    em relação aos sujeitos dos processos educativos –

    notadamente professores e estudantes – gera processo

    regulatórios que aprimoram e potencializam as

    aprendizagens dos sujeitos, referenciadas pelas necessidades

    locais. Do modo como vem acontecendo a avaliação, com o

    único sentido de regular e condicionar os processos de

    ensino e de aprendizagem em uma determinada perspectiva,

    perdem os professores e perdem os estudantes, porque não

    são mais tratados como sujeitos produtores de

    conhecimentos, socialmente, relevantes.

    4. O que você não considera importante na educação e

    não acontece?

    Os sujeitos da escola, quando optam por trabalhar em

    diálogo, expondo seus conhecimentos e saberes, constroem

    a possibilidade do estabelecimento de novos patamares de

    conhecimentos a serem agenciados nos próprios processos

    educativos escolares. Por mais que certos grupos de sujeitos

    das instituições escolares queiram cercear o diálogo, a partir

    do controle dos processos comunicacionais e ideológicos –

    como apregoa as propostas da “Escola Sem Partido” – o

    encontro entre os sujeitos da escola produzem inúmeras

    “faíscas” interacionais, acionando e promovendo o

    desenvolvimento de diferentes e diversas formas de

    comunicação e linguagem, produzindo, nas brechas e nas

    fissuras do cotidiano, o surgimento de novos modos de ser

    humano na escola e fora dela.

    Cá entre Nós caentrenosweb.com

    Direção editorial: Maria Teresa E. Mantoan Produção: Vanessa F. Alves Direção de arte: Gustavo Tomazi Revisão: Maria Da Luz Veiga e Ayeres Brandão

    Realização:

    Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença.