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Miguel Sanches Neto

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Miguel Sanches

NetoO texto era explícito: “Será conside-rado crime um ariano casar-se com alguém de origem judaica ou de cor.” Ele não se casara, mas tinha tido um filho com uma alemã. E o fruto desse crime estava ali, diante

dos olhos de todos, e isso era uma afronta maior. A aplicação das leis alemãs nas áreas em que essa etnia fosse maioria estava garantida pelo acordo entre o Terceiro Reich e o Estado Novo. Adolpho Ventura achara que esse acordo seria uma grande oportunidade para que alçasse ou-tros postos por conta de seu domínio da língua, e agora surgia essa situa ção.

C om a liberdade que só pode ser conquistada através da ficção, Miguel Sanches Neto reescreve

a história do Brasil. Às vésperas da Se-gunda Guerra Mundial, Getúlio Vargas decide-se por uma aliança política com o Terceiro Reich. Com isso, os estados do sul, onde há grande presença de população de origem alemã, aderem ao nazismo, com a perseguição contra negros, índios e mestiços. Em Blumenau, Santa Catarina, à medida que a sauda-ção Heil Hitler se torna corriqueira, o engenheiro Adolpho Ventura convive atônito com um ambiente cada vez mais hostil. Seu crime é ser negro e pai de uma criança mestiça. Ele perde o emprego na prefeitura, os livros que cultua, a casa e, por fim, a liberdade.

Na mesma cidade, desenrola-se a trajetória de Hertha, jovem sedu-tora que encarna todos os predica-dos da superioridade ariana. A ela é confiada uma misteriosa missão, cujas con se quên cias afetam para sempre seu destino. Com violência e sensualidade, desenvolvem-se os dramas de personagens complexos, divididos entre a lealdade a uma pá-tria idealizada e o respeito por seus sentimentos mais profundos. Miguel Sanches Neto subverte os fatos para criar um Brasil que não está nos li-vros, mas que nem por isso deixa de ser assustadoramente plausível.

Miguel Sanches Neto

Miguel Sanches Neto ——

Nascido em Bela Vista do Paraíso, no interior do Paraná, é autor de seis ro-mances, além de livros infantojuve-nis, contos e ensaios. Foi finalista dos principais prêmios literários do país, tendo recebido, entre outros, o Prêmio Cruz e Souza (2002) e Binacional das Artes e da Cultura Brasil-Argentina (2005). Doutor em Teoria Literária pela Unicamp, exerceu a crítica literária nas principais publicações brasileiras, atuando no momento como professor do curso de Letras da Universidade Estadual de Ponta Grossa.

www.intrinseca.com.br

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A Segunda Pátria

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Miguel Sanches Neto —A Segunda Pátria

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Copyright © 2015 Miguel Sanches Neto

PreparaçãoKathia Ferreira

Revisão técnicaDennison de Oliveira

RevisãoEduardo CarneiroTamara Sender

Capa e projeto gráfi coAngelo Al levato Bott ino

Diagramaçãoô de casa

Foto do autorLeo Aversa

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃOSINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

S192s

Sanches Neto, Miguel A segunda pátria / Miguel Sanches Neto. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015.   320 p.; 23 cm.

ISBN 978-85-8057-671-9

1. Romance brasileiro. I. Título.15-19688 CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3

[2015]Todos os direitos desta edição reservados àEditora Intrínseca Ltda.Rua Marquês de São Vicente, 99, 3º andar22451-041 — GáveaRio de Janeiro — RJTel./Fax: (21) 3206-7400www.intrinseca.com.br

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“Povo de boa-fé, sempre à procura de um Führer; capaz de ser conduzido para o bem e para o mal.”

Um rio imita o Reno, Vianna Moog, 1939

“Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido?/Será essa, se alguém a escrever,/

A verdadeira história da humanidade.”“Pecado original”, Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, 1933

“Tínhamos a impressão de viver numa bárbara colônia alemã.”Memórias do cárcere, Graciliano Ramos, 1954

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Neger, 194011 —

Wolfsschlucht, 193891 —

A teoria do lobo, 1941165 —

Kanibalen, 1941241 —

Agradecimentos317 —

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Este romance é uma variante fi ccional da história do Brasil duran-te a Segunda Guerra Mundial. Embora alicerçado em questões la-tentes naquele período, ele nasceu das neuroses próprias de uma época de radicalismos e amplia temas e episódios que ainda hoje são tabus no Sul do país. Por isso, fatos, pessoas e lugares, mesmo quando identifi cáveis, não se referem a situações reais.

Dessa forma, o autor e a editora declaram que não há intenção de ofender nem de julgar ninguém, sendo esta obra o desenvol-vimento narrativo de uma circunstância histórica que, felizmen-te, pelo esforço e sofrimento de todos os envolvidos, não chegou a acontecer. Tudo não passa, portanto, de um pesadelo. E este é um dos papéis da literatura: fazer com que vivamos acordados os pio-res sonhos da humanidade.

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Neger, 1940—

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Um.Naquele domingo à tarde, uma tropa se organizava para um novo desfi le no Centro de Blumenau. Tais demonstrações se intensifi ca-vam, eram cada vez maiores e mais acaloradas. Os partidários che-gavam uniformizados, vindos de várias procedências, e se reuniam no começo da rua XV de Novembro, logo ordenados em formações impecáveis. A rapidez com que faziam isso revelava um poder de ação. Mesmo quem participava pela primeira vez já sabia em que posição fi car no grupo e as músicas e palavras que deveria repetir. Prevaleciam os hinos medievais, cantados como se estivessem em marcha, incentivando a luta contra os inimigos terríveis e odientos. Não há guerra sem essa mística. Moradores da região, mulheres e crianças entre eles, sabiam as canções do exército alemão, apren-didas em O novo livro de cantos de soldados, distribuído pelo Partido Nazista do Brasil. Esses hinos, executados em escolas e igrejas, vi-nham substituindo as músicas ancestrais e podiam ser ouvidos na cidade e nas imediações, enquanto uma mãe cuidava de sua crian-ça ou da casa ou quando um agricultor cultivava a terra. Todos se viam como soldados, até nas tarefas cotidianas.

Vagava pela cidade uma tropa de cerca de mil homens arma-dos, como se seus revólveres fossem parte de uma vestimenta de gala. Estavam ali, no entanto, para fazer a limpeza. Eram para isso os desfi les. Marchando rumo à Prefeitura e depois por várias ruas, meio desertas, a tropa de assalto exibia a bandeira nazista e fa-zia grande barulho. Era regra uma embriaguez de cerveja entre os

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adultos, que avivava o entusiasmo dos discursos. Em mastros er-guidos no jardim da frente das casas, tremulavam fl âmulas com a suástica. Nas lojas, alguns comerciantes mandaram fazer bustos de madeira de Hitler, deixando-os na entrada. Havia sempre a foto do presidente Getúlio Vargas nas repartições públicas, mas a do Führer aparecia com maior frequência.

Naquele domingo, a tropa saiu pelo Centro, cumprimentando os raros cidadãos com um Heil Hitler gritado em uníssono que ecoa-va nas quadras vizinhas. O bebê na casa do engenheiro Adolpho Ventura acordou com essas saudações estrondosas. Ele pegou o fi -lho no berço, interrompendo os estudos em seus livros em alemão. Negro, fi lho de trabalhadores que haviam chegado à cidade para a construção da estrada de ferro, tinha aprendido alemão na casa dos patrões de seu pai, frequentado a Neue Deutsche Schule, que recebia dinheiro da Alemanha, e se mudado para o Rio de Janei-ro, onde cursara a Faculdade de Engenharia. Voltara para a colônia pela nostalgia da infância, um tempo em que só tinha amigos loi-ros falando a língua de Goethe, que ele julgava a única com valor literário. Precisava ouvir nas ruas, usar no dia a dia e na hora de fa-zer amor o idioma que herdara. Nada lhe agradava mais do que ser um igual nos momentos em que se dirigiam a ele.

— Herr Ventura.Era assim que se referia a si próprio quando se imaginava dia-

logando com alguém. No Rio de Janeiro, era apenas um inadapta-do, tentando manter o rigor, a correção na vestimenta e a dedicação extrema a tudo que fi zesse, o que o colocava em confl ito com a ci-dade relaxada e os seus colegas de estudo e, posteriormente, de trabalho. Herr Ventura se sentira sempre isolado no Rio, e essa so-lidão só não era maior porque conseguia encontrar um ou outro descendente de alemão em viagem ou morando na capital federal.

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Após conversar de coração aberto com um dos que considerava seu irmão de alma, voltava eufórico para a pensão na Lapa. A alegria era tanta que ele abstraía a bagunça do local, os sons de músicas populares e o odor terrível de urina que empesteava aquela parte da cidade. Os demais negros com quem convivia o tratavam des-denhosamente como mulato, embora fosse tão puro quanto eles. Talvez por seus hábitos estrangeiros. Nunca amou o Rio e perma-necia ali porque precisava concluir a faculdade. Nos momentos de maior otimismo, imaginava-se morando na Alemanha, mesmo sabendo que só poderia conseguir, em termos de trabalho, empre-go nas áreas de colonização alemã no Sul do Brasil. De preferência em sua cidade. Como precisavam de engenheiro para a conclusão de um imponente teatro, o Verein Frohsinn, e tendo amigos de infância na Prefeitura, acabou voltando ao lugar de onde partira, não para um destino similar ao de seus pais, que ainda moravam numa casa de madeira na favela Farroupilha, às margens do rio Itajaí-Açu, mas para fazer parte da elite dirigente. Com o seu salá-rio antecipado, alugou uma casa na rua da Ginástica, passando a morar sozinho. Sua mãe o visitava duas vezes por semana, lavava e passava sua roupa; o resto do serviço Ventura fazia, hábito ad-quirido nos muitos anos morando no Rio. Dona Erendina entrava na casa do fi lho como empregada, as roupas humildes e gastas, e se dirigia a ele como a alguém superior. Ventura resmungava em alemão, recusando-se a demonstrações de intimidade.

Se seu plano tinha sido morar sozinho, juntar um capital e tentar abrir um negócio qualquer, passados dois anos de sua chegada estava cuidando de uma criança recém-nascida. Fazia o papel de pai e de mãe, não aceitando a ideia de que ela fi casse na casinha distante dos avós.

O menino tinha a pele escura, cabelos enrolados e os olhos cla-ros, numa tonalidade indefi nida entre o azul e o castanho, mudando

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de cor conforme a luz. Quando o fi lho acordou com a saudação da tropa, Ventura tentou niná-lo. Ele não só não queria dormir, como não parava de chorar. A única coisa que o acalmava, nesses mo-mentos, era um passeio no colo do pai. Saíram então para o jardim e para a calçada, indo até a esquina da alameda Rio Branco, a anti-ga Kaiserstrasse. Ao virar, encontraram os soldados. O engenheiro tinha sido enganado. Achara que a tropa seguia para o outro lado, mas era apenas o eco dos movimentos dela que estava às suas cos-tas. Evitava esses encontros por saber que a multidão anula as de-cisões pessoais, criando um monstro impiedoso. Uma pessoa que não tinha coragem de xingar outra, integrada a uma legião qual-quer, se tornava um agressor em potencial. Vinha conseguindo se proteger ao conversar individualmente com algum nazista, porém já fora constrangido diante de grupos. Ainda não havia se depara-do com uma tropa de assalto, embora conhecesse muitos de seus integrantes.

Olhando o desfi le, extasiado com o movimento sincrônico dos partidários, o bebê deixou de chorar. Ventura fi cou estático na esquina. Se retornasse, seria perseguido ou levaria um tiro. Só se afasta quem está fazendo algo errado. Restava esperar que o pelotão passasse. Contemplou com atenção, uma atenção exagerada, os sol-dados. E viu que vários deles o olhavam com ódio. Nunca antes sen-tira que sua fi gura despertasse tamanha repulsa, embora sempre incomodasse as pessoas por seu porte atlético, pelas roupas de qua-lidade e pela fl uência de ideias expressas no melhor alemão. Como um negro pode ter essa postura? Agora o ódio era mais profundo, ia além do despeito pessoal. Era um ódio contra seu fi lho mestiço.

Ao intuir isso, resolveu fazer uma saudação amistosa. Ergueu o braço direito, deixando o fi lho no braço esquerdo, e disse Heil Hitler. E o efeito foi o inverso do que imaginara. Não conseguiu

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desarmar os olhares severos nem obteve o menor sinal de cumpri-mento. A tropa passou em silêncio, como se ele não existisse.

Ventura fi xou os olhos nos soldados, recebendo com altivez aque-le desprezo silencioso. Quase no fi nal do desfi le, ele ainda imóvel na esquina, um jovem saiu subitamente da formação, aproximando-se de Ventura, e lhe cuspiu na cara, para logo em seguida gritar:

— Suma daqui, negro nojento.Tal como se aproximara, o soldado se distanciou. Ventura não esbo-

çou qualquer reação. O cuspe encatarrado, com forte cheiro de cerve-ja, tinha atingido o rosto do bebê, que continuava quieto, hipnotizado.

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NetoO texto era explícito: “Será conside-rado crime um ariano casar-se com alguém de origem judaica ou de cor.” Ele não se casara, mas tinha tido um filho com uma alemã. E o fruto desse crime estava ali, diante

dos olhos de todos, e isso era uma afronta maior. A aplicação das leis alemãs nas áreas em que essa etnia fosse maioria estava garantida pelo acordo entre o Terceiro Reich e o Estado Novo. Adolpho Ventura achara que esse acordo seria uma grande oportunidade para que alçasse ou-tros postos por conta de seu domínio da língua, e agora surgia essa situa ção.

C om a liberdade que só pode ser conquistada através da ficção, Miguel Sanches Neto reescreve

a história do Brasil. Às vésperas da Se-gunda Guerra Mundial, Getúlio Vargas decide-se por uma aliança política com o Terceiro Reich. Com isso, os estados do sul, onde há grande presença de população de origem alemã, aderem ao nazismo, com a perseguição contra negros, índios e mestiços. Em Blumenau, Santa Catarina, à medida que a sauda-ção Heil Hitler se torna corriqueira, o engenheiro Adolpho Ventura convive atônito com um ambiente cada vez mais hostil. Seu crime é ser negro e pai de uma criança mestiça. Ele perde o emprego na prefeitura, os livros que cultua, a casa e, por fim, a liberdade.

Na mesma cidade, desenrola-se a trajetória de Hertha, jovem sedu-tora que encarna todos os predica-dos da superioridade ariana. A ela é confiada uma misteriosa missão, cujas con se quên cias afetam para sempre seu destino. Com violência e sensualidade, desenvolvem-se os dramas de personagens complexos, divididos entre a lealdade a uma pá-tria idealizada e o respeito por seus sentimentos mais profundos. Miguel Sanches Neto subverte os fatos para criar um Brasil que não está nos li-vros, mas que nem por isso deixa de ser assustadoramente plausível.

Miguel Sanches Neto

Miguel Sanches Neto ——

Nascido em Bela Vista do Paraíso, no interior do Paraná, é autor de seis ro-mances, além de livros infantojuve-nis, contos e ensaios. Foi finalista dos principais prêmios literários do país, tendo recebido, entre outros, o Prêmio Cruz e Souza (2002) e Binacional das Artes e da Cultura Brasil-Argentina (2005). Doutor em Teoria Literária pela Unicamp, exerceu a crítica literária nas principais publicações brasileiras, atuando no momento como professor do curso de Letras da Universidade Estadual de Ponta Grossa.

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