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CONSEQUÊNCIAS DA RETÓRICA Rui Alexandre Grácio Para uma revalorização do múltiplo e do controverso Pé de Página EDITORES

C ONSEQUÊNCIAS DA R ETÓRICA · 2011-06-08 · racionalidade retorico-argumentativa de Perelman de uma outra racionalidade, retorico-interrogativa. PREFÁCIO. 8 ... A herança platónica

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CONSEQUÊNCIAS DA RETÓRICA

Rui Alexandre Grácio

Para uma revalorização do múltiplo e do controverso

Pé de PáginaEDITORES

Ficha técnica

TítuloConsequências da retórica.

Para uma revalorização do múltiplo e do controverso

AutorRui Alexandre Grácio

Pré-impressãoRPM, Ideias e Comunicação, Lda.

Montagem, Impressão e AcabamentosNorprint, Artes Gráficas, SA

1ª edição: Setembro de 1998

ISBN: 972-8459-05-X

Depósito Legal:126016/98

© Pé de Página Editores, Lda.Rua Afrânio Peixoto, nº 70

3030 COIMBRATelef.: 039 704164

A meus pais

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PREFÁCIO

Retórica e Desassossego

O facto é conhecido: entre nós a filosofia é umaactividade menoríssima, residual, quase invisível. Semtradição própria e sem produção original regular, sem pesonem prestígio na cultura portuguesa. Singular paradoxo:somos o país da Europa ocidental em que, ao mesmo tempo,a filosofia detém menos espaço cultural e mais espaçoescolar. Como se, em Portugal, o ensino da filosofia tivessesubstituído a filosofia, ocupado por completo o seu lugar e asua função. Sobretudo os nossos departamentosuniversitários neste domínio, a sua improdutividadeideológica e literária, testemunham esta redução dafilosofia, na prática, à menos interessante e fecunda das suastarefas possíveis. E os escassos textos filosóficos originaisque vão surgindo reflectem as mais das vezes, na ortodoxiado «estilo» e no espírito anti- -criativo, esse acantonamentoinstitucional e académico. Motivos de sobra para acolhercom entusiasmo a excepcional revelação e mais ainda aconfirmação de percursos individuais inconformistas, deautores que assumem a filosofia como risco e inovação, osúnicos que contam.

É sem dúvida o caso de Rui Grácio. Ele publicou antesum outro ensaio, o seu primeiro livro, Racionalidadeargumentativa(Edições Asa, Porto, 1993). Passou quasedespercebido, apesar da sua importância: em pouco mais decem páginas, e numa escrita sóbria e cristalina, talvez amelhor introdução mundial ao conjunto da obra de ChaïmPerelman. Mas já essa monografia não era trabalho de merocomentador, mas de filósofo, plenamente, e representavauma secreta ruptura. Grácio recorria a Perelman, e à suafilosofia da «nova retórica», para se libertar dos impasses dasua formação fenomenológica e hermenêutica inicial,

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formulados em excelentes estudos prévios, dispersos porrevistas ou inéditos, sobre Husserl, Heidegger e Gadamer.Mas também, e por isso mesmo, para tentar definir um tomou um perfil filosófico próprio que, cruzando Perelman, iajá para além dele. Essa presença crítica do pensamentonotava-se, quer pela discreta insinuação de reservas a teses econceitos nucleares de Perelman, quer através de um jogosubtil de preterições e de preferências. Assim, por exemplo, oderradeiro capítulo operava uma distinção, no pensamentoperelmaniano, entre uma teoria e uma filosofia daargumentação, ou entre a teorização da retórica comotécnica do discurso persuasivo e a «filosofia do razoável»fundada num modelo argumentativo de racionalidade. Ora,a ênfase dada à segunda, ou a consideração da primeiraapenas em função desta última, denunciava, da parte doautor, um claro desinteresse pelos processos e as práticas dacomunicação, portanto pela retórica na tecnicidade da suanoção corrente, como metodologia comunicativa. Em favordo pensamento, do modo de pensar, como construção deinteligibilidades, e da retórica, numa sua mais ampladeterminação teórica, como dimensão pragmática dessaconstrução. Ou seja, em favor da retórica como elementoconsubstancial a toda a criação filosófica (e tambémcientífica: cf. o presente livro) e articulação «interior» dasua eficácia estratégica. É isso o que verdadeiramenteinteressa Grácio: não a comunicação, mas o pensamento.Ou antes — mas é a mesma coisa: não a comunicação comosuscitação dialéctica de acordos, mas como «matriz darelacionalidade humana», da estrutura relacional do homemconstituída por mediação da linguagem e abrindo tanto parauma antropologia como para uma outra visão dopensamento. Para uma «antropologia retórica», assimqualificada porque assente na retoricidade performativa detoda a linguagem e por isso na destinação do homem a essa

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retoricidade, ao jogo infinito de problematicidade e decomprometimento ontológico que atravessa toda adiscursividade e, através dela, a relação interactiva dosujeito com outros sujeitos e com o mundo. E para umavisão do pensamento como actividade de objectivação emproblemas e em tematizações de problemas da tensãoproblemática inerente a essa relação, movimento dedistanciação da «ordem do ser» inscrita no discurso corrente,invenção de inteligibilidades alternativas: o contrário de umanegociação de proximidades, de produção de conformidadesou de consensos. Daí toda uma demarcação das teses dePerelman, enunciada de passagem no prefácio do livro sobreeste filósofo e desenvolvida nestas Consequências daRetórica.

Essa demarcação pode ser resumida em três pontoscorrelativos. 1) Desvinculação da retórica da sua identidadeperelmaniana com a argumentação, com o discursopersuasivo, por conseguinte com um uso específico dalinguagem, para a ressituar num âmbito linguísticogeneralizado, naquilo que Grácio designa como «campo dainteractividade comunicativa». Isto é: no campo total darelacionalidade antropológica configurada por umlinguisticidade ou retoricidade multímoda que vai muito paralá do discursivo e que inclui, por exemplo, a linguagememotiva, a linguagem dos corpos, etc. Com o que a noção deargumento ou de argumentatividade, e o seu centralismo naimagem do pensamento, sai desvalorizada, filiada aindanuma velha concepção proposicionalista do acto cogitativo,em proveito da noção de problema ou de problematicidade,de uma refocagem do pensamento na dinâmica extra-proposicional da sua interrogatividade. Grácio chega aexpressar-se, neste sentido, em termos de contraposição àracionalidade retorico-argumentativa de Perelman de umaoutra racionalidade, retorico-interrogativa.

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2) Mas já só é uma maneira de dizer, porque a filosofiade Grácio explicitamente aponta para um abandono doconceito de racionalidade, ou de razão, denunciado nas suaslimitações e compromissos. E para uma sensibilidade sóassim tornada disponível à criatividade ou imaginatividadefilosóficas, para uma reconceptualização do pensamento emfunção dessa vertente propriamente alógica de criação. «Maisque a relacionalidade ou a razoabilidade, os horizontes dafilosofia são aqueles que presidem à construção de novasinteligibilidades e que, com isso, permitem proceder a umalargamento daquilo que se é capaz de exprimir e de pensar».

3) Daí a crítica de Grácio à regulação do pensamentopor uma forma de universalidade, à polarização da filosofiaperelmaniana no conceito de «auditório universal» comocomunidade ideal dos sujeitos razoáveis. É esse conceitoque subsume a característica terminologia dessa filosofialiberal antidogmática: senso comum, adesão, acordo,assentimento, consenso obtido por «prova dialógica». Todoum secreto conformismo, um monismo travestido, umaorientação formal da experimentação conceptual pelasregras da «lógica» opinitiva. A este restritivo pluralismoempírico, fundado na conflitualidade de facto das opiniões,opõe Grácio um pluralismo consequente, legitimado dedireito na problematicidade estrutural, implicada nalinguagem, da relação homem-mundo, de todo oenvolvimento ontológico. O que, como se disse, por umlado conduz a esquissar uma tese antropológica afirmando«o homem como risco e a relação que o constitui comoenigma situado». E, por outro, a conceber o pensamento, e afilosofia em particular, como inelidível proliferação depossibilidades relacionais mais livres, expressão vital deresistência ou, na bela fórmula de uma carta de Grácio aoautor, «estratégia de desassossego».

Sousa Dias

PREFÁCIO

INTRODUÇÃO

É talvez tempo de nos distanciarmos da ideia de que osaber põe fim ao controverso e de esperar encontrar nele ajusteza do pensamento. Um saber não controverso é,frequentemente, um saber dogmatizado. Tende a gerarintolerância e a institucionalizar a mediocridade. Sob umaaparência salvífica, tende a esmagar os contra-poderes e aamordaçar o fulgor do pensamento interrogativo nairrequietude da sua liberdade.

É talvez tempo de nos libertarmos da ideia de que ocontroverso é sinónimo de escuridão e deixar de associar omúltiplo e o conflituoso às ideias de confusão, de impasse,de falta de discernimento ou de ausência de conhecimento,tal como propunha Descartes ao afirmar que «sempre que,sobre um mesmo assunto, duas pessoas têm perspectivasdiferentes, é óbvio que pelo menos uma delas estáenganada; aliás, parece que nenhuma sabe realmente, poisse as razões de uma delas fossem certas e evidentes, ela

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poderia expô-las à outra, de tal forma que acabaria por aconvencer. Vemos, pois, que sobre tudo o que apenas dáorigem a opiniões prováveis, é impossível adquirir umconhecimento perfeito, pois não podemos ter a presunção deesperar de nós mais do que dos outros»1.

É talvez tempo, pois, de considerarmos a racionalidadenão como o espaço de rasura da conflitualidade mas, antes,como o da sua manifestação2, de nos consciencializarmos dadimensão pressuposicional ou retórica de todo o saber e denão cedermos à tentação de branquear as tomadas deposição, ou decisões, que acompanham sempre — embora amaior parte das vezes apenas de uma forma implícita eamputadas da sua relação com a interrogatividade — aafirmação de qualquer saber enquanto tal.

Rejeitar os absolutismos, proceder a uma tematizaçãoretórico-interrogativa da filosofia e retoricizar a ciência —eis três eixos fundamentais em torno dos quais me proponholevar a cabo um programa de revalorização do múltiplo e docontroverso. Ele é, a meu ver, importante para que, mais doque viver em pluralismo, isto é, numa sociedade queapregoa os valores do direito à diferença e do respeito peladiversidade e pela alteridade, se possa viver o pluralismo,ou seja, em correspondência desinibida com a apetênciapela criação de novas possibilidades de viver ao qual se ligao esforço inconformista e resistente de pluralizar. Esforço,pois, de encantamento de um pluralismo vivo que implicatanto a capacidade de lidar com a dimensão conflitual e

INTRODUÇÃO

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1 Descartes, Œuvres et Lettres, Bibliothèque de La Pléiade, Éditions Gallimard, 1953, p. 40.2 Cf. M. Mª. Carrilho, «Perspectivismo», in M. Mª. Carrilho (Dir.), Dicionário do

Pensamento Contemporâneo, Publicações Dom Quixote, 1991, p. 260.

agonística que atravessa a vida dos homens, como ofortalecimento da acuidade crítica e estratégica dasracionalidades em que se articulam o nosso pensar, sentir eagir.

INTRODUÇÃO

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I. Rejeitar os absolutismos

A herança platónica é incontornável. Ela marcou deuma forma indelével o pensamento da tradição ocidental efoi a que mais contribuiu para o centramento ontológicodafilosofia, ou, segundo a expressão de Michel Meyer, parauma «ontologização do pensável» que teve comoconsequência o recalcamento do problematológico3.

Platão pensou o ser de uma forma metafísica, atirou-opara a esfera de uma realidade transcendente a que conferiuconsistência ontológica, transformou essa transcendênciaem referente absoluto e necessário de toda a interrogação ede toda a resposta, reduziu a interrogatividade a umprocesso epistemológico, consagrou a contemplação e omodelo da visão como via de acesso à verdade do ser,secundarizou a linguagem tematizando-a de uma formainstrumental (é o ser que ilumina, não as palavras), eticizouo ser ao inscrever no topo da sua hierarquia a ideia de Beme conferiu uma dimensão religiosa à filosofia ao fazer doencaminhamento para o ser um processo de purificação esalvação das almas.

Mas a exemplaridade da filosofia platónica passatambém pelo regime de exclusão que cuidadosamenteimpõe relativamente a tudo o que não seja ela mesma ou

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3 Cf. Michel Meyer, A Problematologia,Publicações Dom Quixote, 1991, p. 90.

que é irredutível aos seus pressupostos, pela inscrição danecessidade (e a consequente elisão da contingência) nanatureza do pensamento que pensa em conformidade com oser e, finalmente, pela desvalorização — consonante, aliás,com o monismo filosófico por ele defendido e com apostura absolutista dele decorrente — do problemático, domúltiplo e do controverso.

Parece por isso importante, se se pretende proceder auma revalorização do múltiplo e do controverso,desconstruir os pressupostos da metafísica platónica com ointuito de relativizar as suas propostas e de deixar em abertoas possibilidades que as suas opções filosóficas fecharam.

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1. SOB O SIGNO DA UNIDADE E DA NECESSIDADE

É sem dificuldade que podemos constatar na tradiçãofilosófica ocidental uma persistente valorização da unidadee não será por isso despropositado qualificar o pensamentoocidental como um pensamento «sob o signo do um».

Aliás, o tema da unidade versusmultiplicidadepreocupou desde cedo a mente dos filósofos que, perante oespectáculo visível de um mundo variado e em constantemudança, sentiram a necessidade de perguntar se nãohaveria, subjacente a toda esta diversidade, um princípiounificador e ordenador.

Mas o par filosófico unidade/multiplicidade ganhouuma especial relevância quando em torno dele secomeçaram a tematizar as questões de ordem ontológica.Parménides é o primeiro filósofo que define o ser através doadjectivo «uno» e que incompatibiliza a ideia de unidadecom a ideia de mudança. O ser é aquilo que é uno e é unoaquilo que não muda, aquilo que necessariamentepermanece, e que sempre permaneceu, idêntico a si mesmo.Além do mais, só o ser é real e, por isso mesmo, há tambémque desqualificar como aparência tudo aquilo que não seenquadra na necessária imutabilidade do ser.

À tematização parmenídia da questão do ser a partir dopar unidade/diversidade, associam-se assim três novos paresfilosóficos: o que contrapõe a imutabilidade e o devir, o quedissocia a realidade da aparência e, finalmente, o que opõe anecessidade à contingência.

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Esta constelação conceptual, toda ela construída combase em dicotomias cerradas, tem a melhor expressão da suacontinuidade na filosofia platónica, toda ela obsessivamenteelaborada em torno da intenção de discernir e de ensinarcomo é possível fazê-lo e de mostrar como é fundamentaldistinguir a realidade da aparência. Fundamental, sublinhe-se,pois só dessa maneira se poderá encontrar a plataforma apartir da qual é possível enraizar, com solidez, as nossasconvicções. Esta angústia, aliás genuinamente filosófica —mas afinal em que é que devemos acreditar? —, bem como aprofunda convicção de que se não soubermos entroncar asnossas convições em bases sólidas e inabaláveis nosencontraremos sempre expostos à ilusão, à errância e àmanipulação, foram, sem dúvida, motivos que de uma formaconstante impulsionaram o trabalho filosófico legado porPlatão.

O estado de suspeição incutido por Platão ao leitor dosseus diálogos — que poderão levar a que este, à semelhançade um qualquer interlocutor confrontado com as insistentese incómodas perguntas de Sócrates, acabe por se questionarsobre a certeza e o correcto estabelecimento das suasconvicções — tem um alcance verdadeiramente notável: se,por um lado, põe em evidência a frequente precaridade evanidade das convicções que, com tanto de veemente comode ridículo, nos dispomos defender, por outro lado, eaproveitando o eventual estado de desnorte provocado pelascorrosivas teias da suspeita e da crítica, Platão mostra-nos ocaminho, perfilando no seu término a iluminada casa do ser.Esse é, aliás, o longo desvio de Platão relativamente aSócrates: o de que só o suporte ontológico valida a ordemdo discurso, mesmo do discurso ao qaul a relação de acordoentre os homens conferiu uma dimensão de universalidade.

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Como lapidarmente escreveu F. Châtelet, «o discursouniversal, mesmo se se conseguisse elaborá-lo, ficaria semalcance real, sem eficácia se não fosse discurso verdadeiro,se não assinalasse claramente o Ser de que éconvenientemente expressão. O desvio consisteprecisamente nisso, nessa passagem da noção deuniversalidade— que implica somente uma aproximaçãodo homem com o homem — à de verdade— que significauma relação de identidade entre o Pensamento e o Ser. (...)Para que o discurso universal tenha um sentido, para que aaposta fi losófica não seja absurda, é preciso que auniversalidadeseja fundada em verdade. A metafísica nasceno momento em que a prática do discurso — do diálogo —desemboca naquilo que em última análise está em questãono discurso, quer dizer, no Ser»4.

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4 François Châtelet, Platão, Edições Rés, pp. 135 e 138.

2.ONTOLOGIZAÇÃO DO SABER , DIÁLOGO E DIALÉCTICA

Orientado para uma universalidade que encontra a suaverdade não na aproximação entre os homens, mas numa ordemdo ser que se deve limitar a traduzir, a linguagem deixa de valer,neste contexto, pelos efeitos que produz ou pelos peculiarespoderes que encerra para passar a obedecer à necessidade de umser cuja unidade e imutabilidade deve reflectir. O discurso, namedida em que a adequação da palavra só pode ser julgadaatravés de um conhecimento pré-linguístico das coisas, devesubordinar-se a uma dialéctica visionária, tomada como o únicométodo que «procede por meio da destruição das hipóteses, acaminho do autêntico princípio, a fim de tornar seguros os seusresultados, e que realmente arrasta os olhos da alma da espéciede lodo bárbaro em que está atolada e eleva-os às alturas»5. Ouseja, e como bem notou Gadamer a propósito da análise doCrátilo e da posição aí expressa por Platão sobre a linguagem,«a dialéctica (...) pretende evidentemente confiar o pensamentopor inteiro a si mesmo e aos seu verdadeiros objectivos, abri-loàs 'ideias', de tal modo que com ele se supere a força daspalavras e a sua tecnicização demoníaca na arte daargumentação sofística. A superação do âmbito das palavraspela dialéctica não quererá dizer que existe um conhecimentorealmente livre de palavras, mas sim unicamente que o que abreo acesso à verdade não é a palavra e que, pelo contrário, a'adequação' da palavra só poderia julgar-se a partir doconhecimento das coisas»6.

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5 Platão, Républica, VII, 533 c-d.6 H.-George Gadamer, Wahreit und Methode, trad. esp., Salamanca, Ediciones Sígueme,

1977, p. 489. (Doravante WM).

Ao diálogo, lugar de confronto, de polémica e onde aconflitualidade emerge como uma constante, Platãocontraporá uma dialéctica missionária cuja finalidade élibertar-nos do perigo da instrumentalização da palavra, davariedade de possibilidades abertas pelo discurso e dorelativismo inerente à emergência de uma pluralidade depontos de vista. Como se temesse todas as viagens em quese caminha sem se saber o caminho, Platão desvalorizarátodo o discurso que não diz o ser. E, uma vez que aconflitualidade não pertence à ordem do ser, todos osdiscursos que se alimentem da divergência de pontos devista ou que vinquem a diferença de perspectivas sópoderão roçar a charlatanice ou demonstrar errância.

É por isso que, como bem notou G. Mourelos, odiálogo que verdadeiramente se instaura como modelo naobra platónica é também subtraído às suas reaisvirtualidades pela mesma, sendo imediatamentesubordinado a um dialéctica que visa o necessário. Segundoa distinção do autor referido, o diálogo, ao contrário dadialéctica, que é manifestamente um processo detotalização, «não constitui uma tarefa totalizante nem umprocesso de superação, mas uma conduta de ensaio que tempor função a concretização do possível». Ou seja, «a tarefado diálogo é uma tarefa analisante que põe a coexistênciacomo possível, a tarefa da dialéctica é uma tarefa totalizanteque põe a negação como necessária»7.

Este é, aliás, um aspecto extremamente importante parase compreender a natureza dos diálogos platónicos daúltima fase. Eles não visam, seguramente, que osinterlocutores se entendam entre si a propósito de uma

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7 G. Mourelos, «Le dialogue et la concretization du possible», comunicação apresentadanos Entretiens Philosophiques de Athènes.

problemática sobre a qual têm pontos de vistas divergentes.Eles não visam plataformas possíveis de entendimento.Com efeito, e ao contrário do que sucede nos diálogos reaisem que do debate e da discussão não se seguenecessariamente a convergência de opiniões, nos diálogosplatónicos a prática do método dialéctico obriga sempre àopção por uma das alternativas apresentadas e,simultaneamente, à negação daquilo que se rejeita. Como sede um sistema binário que funciona em torno dasalternativas «verdadeiro»/«falso» se tratasse, o métododialéctico encenado por Platão nos seus diálogos obriga aorganizar a progressão do raciocínio em função da unicidadeda verdade, e, portanto, a fazer coincidir a consciência danecessidade do seu singular com o momento da suarevelação aos espíritos.

O papel atribuído ao interlocutor do diálogo platóniconão é, consequentemente, o de participar, com a suapersonalidade, as suas ideias, as suas intenções, num debateacerca de uma problemática. É, pelo contrário, o de se despirde todas as suas particularidades e condicionamentospessoais e de se submeter a um regime em que a necessidaderacional se tornou o critério que efectivamente assinala, nasua universalidade e autonomia, a clarividência do espíritohumano. De tal modo que, só por absurdo, seria possívelesperar uma resposta diferente daquela que o interlocutor dá.Se todos pensarem bem, todos pensarão o mesmo.

Esta subordinação do diálogo ao método dialéctico,bem como a identificação da dialéctica com a lógicaanalítica, leva a que o diálogo — ao contrário de seapresentar como o local onde se confrontam perspectivasdiferentes — se transforme emsistemadialéctico no interiordo qual a razão humana, qual máquina dialéctica,funcionaria segundo o modelo das máquinas de calcular.

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Contudo, esta conquista da evidência viadialecticização do diálogo, isto é, através da subordinaçãodeste último à necessidade lógica, tem, como assinalouPerelman, um pesado reverso: «tornando-se uma lógica, adialéctica torna-se um sistema de encadeamentosnecessários, mas com o preço de abandonar qualquerconformidade com o diálogo real, cujo desenvolvimento éinfluenciado, simultaneamente, pela personalidade dosinterlocutores e pelas intenções que os animam»8.

Foi aliás esta incompatibilização entre o discurso prenhede intenções (quem sabe boas, quem sabe más) e o discursobranco da verdade (insusceptível de ser maculado na suaindependência) que esteve na base da distinção platónicaentre os discursos queapenas procuram, ou têm comofinalidade, persuadir e convencer — ou seja, o discursoretórico-argumentativo, que lida com opiniões ou tesesquestionáveis e discutíveis e que depende, por isso, dosauditórios e da admissão dada por estes a tais teses — e odiscurso auto-suficiente da verdade— o discurso queapresenta a verdade na necessidade e unicidade da suanatureza, discurso que efectivamente convence,independentemente do auditório a que se possa dirigir poisconsiste, em última análise, na revelação(e é esse osignificado do método dialéctico de destruição de hipótesesque opera a passagem para o plano an-hipoético) da própriaverdade. Ou seja, a exigência da necessidade absoluta e,consequentemente, da universalidade do discurso só pode serassegurado recorrendo a um momento de revelaçãoontológica — ou, mais rigorosamente, à promessa do seuacontecer — no qual a verdade do ser se impõeao espíritopurgado pelo trajecto dialéctico.

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8 Ch. Perelman, «La méthode dialectique et le rôle de l’interlocuteur dans le dialogue» inJustice et Raison, Éditions de l’Université Libre de Bruxelles, 2ª edição, 1972, p. 134.

3. PLATÃO E A RETÓRICA

É nesta ordem de ideias que se inscreve a posição dePlatão relativamente à retórica, a arte de persuadir. Ela éapresentada de forma diferente nos dois diálogos em que éexpressamente abordada: o Górgias e o Fedro.

Um dos pontos centrais do Górgiasé a distinção entrecrer e saber. O primeiro tanto pode ser falso comoverdadeiro; já do segundo não faz sentido colocar a hipótesede haver um saber verdadeiro e um saber falso. O saber é,por definição (platónica) crença na verdade e só a verdadepode dar um estatuto de saber às crenças.

Desta distinção seguir-se-á — e uma vez que é admitidoque a persuasão é comum quer ao estabelecimento da crençaquer ao do saber — a diferenciação entre uma persuasãocuja finalidade é a produção da crença e uma persuasão cujafinalidade é a produção do saber9; esta última diferenciaçãopreparará, por sua vez, o terreno para a tematização daretórica em termos de uso e finalidade e a sua submissão aocrivo do juízo ético.

Ora quem sabe ou procura saber — sustentará Platão— nunca persuadirá por uma mera questão de conveniênciae aquele que o faz, fá-lo manifestamente por ignorância.

Assim, definir-se a retórica como uma arte de persuadirque apenas visa gerar a crença e não o saber, equivale aapresentá-la como prática interesseira identificada por Platãocom a sofística. Estamos, pois, perante um mau usodaretórica.

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9 Platão, Górgias, 454 d-e.

Já relativamente a um eventual bom uso da retórica,aquele que seria assinalado pelo empenho «em melhorar omais possível as almas dos cidadãos, esforçando-se semprepor dizer o melhor, seja ou não agradável ao auditório»,Sócrates parece desconhecê-lo, ao afirmar a Cálicles, aindano Górgias, «mas tu nunca viste uma retórica deste segundotipo»10.

Ora é precisamente a esta retórica que Sócrates sereferirá no Fedro. Ela tem algumas condições prévias:«quem não classificar os caracteres dos seus futurosouvintes, quem não for capaz de dividir por géneros oexistente e reunir objectos individuais numa única ideianunca será um artista retórico»11 e define-se como «umaespécie de psicagogia por meio do discurso»12. A verdadeiraretórica surge como algo que é capaz de convencer ospróprios deuses: não é um exibicionismo perante oshomens, mas um esforço por agradar aos deuses. Ela éassumida como rosto discursivo da dialéctica e torna-sesinónimo da própria filosofia.

O Górgias e o Fedro estabelecem, assim, umadistinção entre duas retóricas: no Górgiasestamos perante aretórica perigosa — a que encontra na manipulação doauditório a única finalidade do seu propósito —identificada por Platão com a sofística. É contra estaretórica que há que desvalorizar a noção de auditório esuperiorizar-lhe o discurso que fala a partir doconhecimento da verdade, seja-lhe esta favorável ou não.No Fedro temos a retórica salvadora — a que encontra noencaminhamento para a verdade a sua única razão de ser —

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10 Idem ibidem,503 b.11Platão. Fedro, 273 e.12 Idem ibidem, 261 b.

e que se identifica com a vocação da filosofia. Mas, porquenesta retórica o encaminhamento para a verdade parte doconhecimento do ser, a noção de auditório pode servalorizada sem receios como um dos elementos que importaconsiderar para que a condução das almas possa ser maisfacilmente realizada. Porque, para quem sabe, oconhecimento do auditório nunca poderá servir senão paraajudar o dialéctico na sua missionária tarefa de fazertransitar os espíritos encarcerados na caverna para a luz daverdade. E, nesta tarefa, segundo a advertência da alegoriada caverna, é preciso ser-se prudente:

«E a quem tratasse de soltá-los e conduzi-los até cima,se pudessem agarrá-lo e matá-lo, não o matariam?

— Matariam, sem dúvida — confirmou ele.»13.

Duas retóricas? Talvez não. Como opinacontundentemente Barbara Cassin: «a retórica pela qual ele(Platão) luta e aquela contra a qual luta são inteiramentedistintas: no Górgiasestamos perante uma retórica sofística,lisonja que se esconde sob a máscara da legislação e dajustiça, a sofística em pessoa; no Fedro, trata-se de umaretórica filosófica, a do dialéctico que analisa e compõe asideias, uma retórica enquanto filosófica, a própria filosofia.De tal forma que, a partir de Platão, o diagnóstico completotorna-se, segundo a severa equação, dois igual a zero: nãohá uma, mas duas retóricas, isto é, nenhuma retórica, já queem lugar da retórica ou encontramos a sofística ou então afilosofia»14.

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13Platão, A República, 517 a.14Barbara Cassin, «Bonnes et mauvaises rhétoriques: de Platon à Perelman» in Figures et

Conflits Rhétoriques, Éditions de l’Université de Bruxelles, 1990, p. 17.

Platão acusa frequentemente a retórica de sermanipulação do outro, de estar ao serviço de interessesparticulares e oportunistas, de ser interesseira e de apenasvisar a glória e a afirmação pessoais. De não se orientar porum conhecimento do ser cuja verdade quer fazer partilhar,mas de se servir de um conjunto de expedientes —baseados, não na necessidade racional, mas naverosimilhança e na paixão — com o fim de cativar eseduzir o auditório que procura conquistar. Enfim, de seaproveitar da ignorância, das fraquezas e da falta dediscernimento do vulgo e de as colocar habilmente aoserviço de conveniências pessoais.

Há contudo que observar que na crítica platónica daretórica tem origem um dos maiores equívocos que sobre aretórica tem pesado: a acusação de que ela não encerra emsi mesma a garantia do seu bom uso. Este juízo moralistalevou a que, tradicionalmente, se salientasse o lado «negro»da retórica, o da lisonja interesseira e da manipulação semescrúpulos. E, paralelamente, levou a condenar a retóricanão por aquilo que ela é — arte de persuadir — mas poraquilo que o seu mauuso pode originar (o sucesso do discursooportunista, a prática da sedução interesseira, a ausência deescrúpulos em fazer passar por verdade o que não são senãoaparências, a manipulação dos ignorantes) e que, de acordocom os ditames de um tribunal filosófico que a si mesmo seoutorga a competência de discernir a verdade da meraaparência, se afigura como eticamente reprovável.

O que mais interessa destacar neste ponto a que metenho vindo a referir não é a acusação da retórica se prestar àmanipulação, nem o facto de ela poder ser posta ao serviçodas piores intenções, problema que, aliás, se colocaigualmente a propósito da aplicação prática de todos ossaberes e técnicas.

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O que nos parece relevante salientar é que àdesvalorização platónica da retórica subjazem uma arrogânciae uma intolerância filosóficas que importa assinalar.Arrogância porque a filosofia se assume como discurso deúltima instância à qual compete decidir, em definitivo, sobre averdade do ser. Intolerância porque, sendo essa verdadecolocada sob o signo da necessidade e da unicidade, excluisem apelo todo o discurso que com ela não coincida.

Da natureza desta concepção de filosofia — que, nãoserá descabido notar, se nutre estrategicamente daassociação entre a noção de saber e a noção de salvaçãoespiritual, isto é, que pressupõe uma antropologia fundadana ideia de que o homem é um ser afastado da uma relaçãooriginária com verdade e que a sua vocação se cumpre noresgate de si mesmo a esta condição de queda e que, porisso, o conhecimento é purificador e salvador — decorrenaturalmente a desvalorização do múltiplo e do controverso,o desinteresse pela dimensão prática e situada da vida, asecundarização dos problemas da escolha ligados àpremência da acção, ou seja, em síntese, o desdém pelacontingência e pelo regime de instabilidade que lhe écaracterístico. Com efeito, não exigindo este último — deacordo com a sua natureza situada, transitória, adaptativa,circunstancial e efémera — que se pressuponhaantecipadamente a existência de uma verdade única enecessária cujo conhecimento aconteceria necessariamenteno culminar do processo dialéctico, o regime instável dacontingência parece ser inevitavelmente solidário de umdiscurso sem referente cujo vazio se presta aos maisperversos aproveitamentos.

É que, de acordo com esta concepção monista econtemplativa da filosofia, o pulsar da vida nas vicissitudes

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do seu percurso encontra-se em oposição à perenidadeontológica de uma verdade que cintila sob o céu daeternidade e que, ela sim, é a referência e o critério a partirdao qual tudo o mais pode ser ajuizado.

Vemos assim que a desvalorização platónica da retóricae da sofística não vai apenas no sentido de uma divergênciade pontos de vista. Pelo contrário, ela corresponde àtentativa de impor a filosofia como o saber, à identificaçãodo saber com a ausência de divergências e à interpretaçãoda conflitualidade como parente da errância ou daignorância.

Contudo, a leitura platónica da sofística não é única, enomes como o de Mario Untersteiner ou o de EugèneDupréel, entre outros, ficaram ligados à revalorização dasofística.

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4. A DIMENSÃO TEORICISTA DO SABER FRENTE À SUADIMENSÃO PRÁTICA . REABILITAÇÃO DOS SOFISTAS .

A imagem dos sofistas que se perpetuou ao longo datradição filosófica é uma imagem construída e mediada pelainterpretação platónica. Esta última, para além de fazerrecair uma conotação eminentemente pejorativa sobre ossofistas, facultou também um afastamento do contactodirecto e global com os fragmentos das suas obras eprestou-se mesmo a tornar viciosas as suas interpretações.Neste sentido, pode dizer-se que estes personagens dahistória da filosofia não foram devidamente reconhecidosno seu valor próprio pela tradição que fez recair sobre elesuma ideia pejorativa ainda hoje dominante.

A este propósito, afirmou Gilbert Romeyer-DHerbeyque «como há poetas malditos, também houve pensadoresmalditos, e estes foram os sofistas», acrescentando, ainda,que «não só o próprio nome de 'sofistas' foi desacreditado,mas ainda demasiadas vezes se expuseram teses mestras dossofistas apenas de acordo com a refutação operada peloplatonismo; deste modo, a imagem da sofística apareceu-nos através de uma distorção, em que os sofistas figuramcomo os eternos vencidos de antemão que, se existem, é porterem errado»15. Tem por isso sentido falar numareabilitação dos sofistas baseada sobretudo nos fragmentosque da sua obra chegaram até nós.

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15Gilbert Romeyer-DHerbey, Os Sofistas, Edições 70, pp. 9-10.

Protágoras é talvez a figura mais destacada domovimento sofístico e na obra platónica ele é alvo dereferências bem precisas; veja-se, por exemplo, o Teetetoouo diálogo que tem por título o seu próprio nome.

O aforismo mais célebre de Protágoras diz o seguinte:«O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que

são enquanto são e das coisas que não são enquanto não são»16.Este aforismo é interpretado por Platão como uma

afirmação que pressupõe um individualismo e umrelativismo. Por um lado, as coisas são tal como aparecem acada um, e, se assim é, elas são relativas ao modo como cadaum as sente num determinado momento. Donde, concluiráPlatão, este modo de conhecimento não é nem estável nemuniversal, duas condições que segundo ele sãoindispensáveis para que se realize o verdadeiroconhecimento. Por outro lado, mesmo interpretando oaforismo protagórico no sentido de um subjectivismo, entãoo conhecimento não incidiria no «em si», mas naquilo que seconstituiria como objecto de conhecimento. Ora, para Platão,o conhecimento visa a realidade em si mesma, pelo quetambém esta tese não é sustentável. Consequentemente, oaforismo protagórico conduz a um conhecimento que nãopode ser mais do que perspectiva.

Reduzido a um perspectivismo, o saber nunca se poderiaconstituir de uma forma absoluta, isto é, não poderia nuncaalcançar um saber total e definitivo. Ele teria que ser, aoinvés, uma tarefa necessariamente aberta, em confronto comoutros modos de apropriação das coisas, com outros modosde estar no mundo; ele seria um saber por excelênciaveiculado pelo diálogo, encarado não como forma de

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16Fr. 1, Diels.

suprimir as diferenças, mas como modo de as apresentar. Naforma como é encarado o diálogo decidem-se, aliás, duasconcepções de filosofia que colocam em oposição os sofistase Platão.

O que sobretudo interessa reter da interpretação críticaque Platão move ao aforismo do homo-mesuraé que elapressupõe que o termo «medida» seja tomado no sentido decritério teórico do saber e da realidade que a cada um seapresenta. Platão move-se na esfera teórica e interpreta afrase de Protágoras dentro desse âmbito. Todavia, estainterpretação não é única nem indiscutível, e se a sentençade Protágoras for interpretada a partir de uma dimensãopraxista, podemos atribuir ao termo «medida» um outrosentido que não o de critério teórico da realidade. Se oaforismo protagórico se inserir antes de tudo numadimensão prática, então o termo medida deve serinterpretado no sentido de mestria e de domínio.

Numa existência que o homem não domina integralmente,numa vida atravessada por campos de força conflituosos, nummundo fluente onde se articulam conjunturas sucessivas,numa palavra, no jogo da vida, o homem deve saber jogar. Esaber jogar não é escolher o máximo a que se ambiciona,mas optar pelo melhor dentro das possibilidades de umaconjuntura, dum momento presente. A sabedoria não tempropriamente a ver com o plano teórico mas com o planoprático: o valor das doutrinas avalia-se pelos seus efeitos, damesma forma que a hierarquia dos saberes é ordenada emfunção do seu valor prático.

Se esta interpretação é correcta, então a sentença deProtágoras não é uma mera teoria sensualista mas

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17E. Dupréel, Les sophistes, Éditions du Grifon, Neuchatel, 1948, p. 19 e seguintes.

pressupõe, segundo Dupréel17, uma concepção sociológicado sabere do seu valor. Ainda segundo o autor referido, asentença do homo-mesuranão expressa mais do que umconvencionalismo sociológico que põe em destaque asupremacia do convencional, do artificialmente construídopelo acordo dos espíritos, sobre o natural ou o que seriaeventualmente por natureza. É pelo acordo dos homensestabelecido pela linguagem que as coisas verdadeiramentesão, e o que, em última análise, há, é a actividade doshomens e é ela que assegura ou dá consistência às coisas.

Na mesma sintonia, encontram-se duas passagens daobra de Nietzsche, uma referente ao § 301 de A GaiaCiência e a outra relativa às notas de um curso que deu em1872, que vale a pena citar:

«Nós que pensamos e sentimos, somos nós quefazemos e não cessamos realmente de fazer o que nãoexistia antes; este mundo eternamente a crescer deavaliações, de cores, de pesos, de perspectivas, de escalas,de afirmações e de negações (...). Nada do que tenha muitoou pouco valor no mundo presente, possui este valor em si,por natureza — a natureza nunca tem valor; este valor foi-lhe dado, é um presente que lhe foi feito, e os que o fizeramfomos nós. Somos nós que criámos o mundo que dizrespeito ao homem».18

«Não é difícil provar que o que se chama 'retórica' paradesignar os meios de uma arte consciente se encontra já emacto, como meios de uma arte inconsciente, na linguagem ena sua formação, e mesmo que a retórica é um

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18F. Nietzsche, Le gai savoir, trad. franc. P. Klossowsi, Paris, Gallimard, 1967.

aperfeiçoamento dos artifícios já presentes na linguagem.(...) Não há uma 'naturalidade' não-retórica da linguagem aque se pudesse fazer apelo: a própria linguagem é resultadode artes puramente retóricas».19

Não é aliás de estranhar que o movimento sofísticoestivesse ligado ao domínio da linguagem. E não é tambémde molde a surpreender-nos que a sabedoria que os sofistasafirmam veicular não esteja situada ao nível teórico, masque ela seja uma sabedoria essencialmente prática; a suapedagogia é essencialmente a da oportunidade justa, únicarealmente adequada para a preparação do homem para avida. A sua tarefa não é a da abolição ou anulamento dosconflitos e forças antagónicas que tornam a vida similar aum jogo. Muito pelo contrário, é a de conseguirem a mestriasobre esse jogo, a de saber lidar com as tensões da vida, ade intervir no momento certo.

Não se trata, por conseguinte, de um empirismo sembases ou de um pragmatismo sem princípios, mas de algoque supera uma concepção teoricista sem limites. Asabedoria dos sofistas polariza-se no fascínio da acção e nasua dimensão falível e contingente. Ela não parte, comoacontece em Platão, de um desejável utópico, nem o procuralegitimar ontologicamente. Pelo contrário, o seu ponto departida é a realidade antropológica tal qual ela se mostra navida fluente dos homens, na necessidade destes lidaremsimultaneamente com o presumível e com o inesperado e,finalmente, na constatação de que, neste quadro humano emque nem as definições nunca suprimem o ambíguo, nem asevidências superam a efemeridade dos contextos, o que

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19F. Nietzsche, «Rhétorique et langage», trad. fanc. J.-L. Nancy e P.-L. Labarthe, in Poétique,nº 5, Paris, Seuil, 1971, p. 111.

prevalece é a força transformadora e criadora do agir e osefeitos dele decorrentes.

É assim que — e na medida em que se considera quenão há uma ordem do ser fora da interactividade com ohumanoe do seu interface linguístico — o interesse dossofistas não reside no ser, mas naquilo de que se fala, nasmaneiras como se fala, na negociação implícita a todos osactos comunicativos, nos jogos de forças que os atravessam,nos efeitos e nas repercussões que tudo isso tem no processode compreensão de si e dos outros e na orientação do agircolectivo e individual.

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5. A DINÂMICA DO PLURAL

A revalorização do múltiplo e do controverso obriga ainscrever o pensamento na dinâmica do pluralismofilosófico. Mas o que significa isso?

O pluralismo filosófico é configurado, antes de mais,quer pela rejeição de qualquer tipo de absolutismo, querpela assumpção da argumentação como matriz daracionalidade humana.

Ele pauta-se por um criticismo que, sem pretensõesexcessivas, visa proporcionar um maior nível deesclarecimento e uma maior acuidade na análise dosproblemas. Ele obriga a reequacionar as problemáticas daradicalidade e da fundamentação em filosofia,reformulando-as dentro de novas coordenadas. Ele é, porfim, consonante com um acolhimento da dimensão retóricano discurso filosófico. Vejamos cada um destes pontos.

5.1. Pluralismo filosófico e criticismo

Alimentando-se de um criticismo que cuidadosamenteexerce, ou seja, de «um processo sistemático deesclarecimento e de avaliação dos produtos da actividadehumana»20, o pluralismo filosófico afasta-se de posturasdogmáticas que, de uma ou de outra forma, interditem a

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20James R. Andrew, The Practice of Rhetorical Criticism, Longman, 1990, p. 3.

actividade questionadora e revê-se na afirmação queconsidera ilusória e inglória a pretensão da tarefa deremontar aquém de todo e qualquer pressuposto. Assume,por isso mesmo, a dimensão superficial e provisória de todaa análise e de toda a teoria, por mais profunda que pretendaser e por mais ao âmago da questão que pretenda ir.

É claro que uma teoria pode ser mais ou menos sólida,mais ou menos consistente, mais ou menos informada, maisou menos inovadora, mais ou menos erudita, mais ou menosgenial, mais ou menos oportuna, etc.; mas, do mesmo modoque se podem desencadear processos de análise e de críticaque procuram evidenciar pressupostos até então ocultos,dando mesmo a impressão de que, nesse movimento, seopera a passagem para um nível de autenticidade queaproxima o pensamento, ou nos faz senti-lo comocoincidente, daquilo que «realmente é», o facto é quenenhuma análise, nenhuma crítica e nenhuma teoria é, porsua vez, sem pressupostos, o que equivale a dizer quetambém ela pode ser considerada como superfície,susceptível de análise e questionamento, num processovirtualmente infinito. Ou seja, a abertura ao questionamento— mas também a recusa em conferir mais, ou menos, doque o estatuto de propostaa qualquer teoria que dele possaemergir — é característico do pluralismo filosófico.

O que significa, por sua vez, que a tematização dasproblemáticas da radicalidadee da fundamentaçãoemfilosofia são também, no quadro da defesa do pluralismofilosófico, abordadas e reequacionadas de uma forma bemprecisa.

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5.2 . Radicalidade, paixão das ultimidades e desconstrucionismo explicitante

A radicalidade do discurso filosófico está geralmenteassociada à ideia de que este leva às últimas consequênciaso questionamento que o anima. Colocar questões de ummodo radical significa pretender formular as perguntas nasua máxima abrangência — como, por exemplo, napergunta «porque há o ser e não o nada?» —, ou seja,procurar levar o questionamento a um plano que nos possasurgir como último e fundamental.

Segundo o filósofo Michel Meyer a radicalidade doquestionamento fi losófico desembocaria numaproblematologia, numa teoria do questionamento, já que,como escreveu, «importa acima de tudointerrogarmo-nossobre o principal, o originário, o que vem em primeirolugar, antes de embarcarmos em qualquer questão particular.Ora, o que se impõe como primeiro na interrogação sobre oque é primeiro é o próprio questionamento, o princípiofilosófico por excelência. (...) A filosofia é um pensamentoradical na medida em que tem como tema principal opróprio questionamento»21. Não se pense, contudo, afilosofia como um exercício apenas realizado na esfera dapura interrogatividade e obsecado com a sua própriadinâmica interrogativa. É que as questões são indissociáveisdas diversas respostas que lhes podem ser dadas e só aarticulação dinâmica entre perguntar e responder pode fazercompreender a produtividade específica da filosofia. Comoescreve ainda o filósofo acima citado, «dizer que ofundamento é um questionamento significa, em definitivo,dizer que só as questões são originárias, logo, a abertura

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21Michel Meyer, A Problematologia,Publicações Dom Quixote, 1991, pp. 14-15.

plural para as respostas que, apesar de se originarem nelasde um modo múltiplo, se separam e libertam num espaçopróprio»22.

A radicalidade do discurso filosófico pode sercaracterizada por dois gestos que poderíamos designar,respectivamente, como «a paixão das ultimidades» e como«o desconstrucionismo explicitante».

No primeiro dos gestos, o da «paixão das ultimidades» etipicamente característico da tradição filosófica, o que está emcausa é a tentativa de chegar a um nível zero de abordagem,isto é, a um plano originário a partir do qual se tematizariam,com sentido, as questões. O discurso filosófico apresenta-se,neste caso, como o discurso do «em última análise», do «nofinal de contas» ou, ainda, do «em derradeira instância», sendoa sua expectativa a de chegar a um terreno sem suposições oupressupostos. A esse terreno dá-se frequentemente o nome de«originário», quer no sentido de «absolutamente dado» quer node «radicalmente anterior a qualquer construção humana». Asquestões radicais são, nesta perspectiva, questões últimas e asua formulação tem a pretensão de conter ou de corresponder auma revelação do ser.

No segundo dos gestos, o do «desconstrucionismoexplicitante» e mais característico das filosofias pluralistas,assume-se à partida que as «ultimidades» são semprerelativas e susceptíveis de serem questionadas, pelo que aradicalidade filosófica consiste não em atingir planos quenada pressuporiam mas, antes, em tornar explícitos e patentesos pressupostos a partir dos quais se arquitectam os discursos,se elaboram os pensamentos e se fundamentam as decisões.Procura-se, desta forma, chegar a plataformas intelectuais demaior esclarecimento e acuidade, desenvolver com maior

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22 Idem ibidem,p. 272.

definição os contornos das posições em jogo e evidenciar asopçõesque lhes presidem. Ao «desconstrucionismo» quedesta forma é levado a cabo corresponde assim uma tarefa deexplicitação ou de evidenciação de pressupostos. Em suma,os seus propósitos são a constante preocupação em tornarexplícitos os pressupostos implícitos às diversas posições e oinsistente esforço de fomentar a discussão e o esclarecimentodos interlocutores através da confrontação de pontos de vista.

É por ser essencialmente solidário de uma posturacrítica que visa — de uma forma virtualmente insistente eincansável— o esclarecimento dos intervenientes e,consequentemente, por incidir não sobre eventuais intuiçõesreveladoras do ser, mas sobre a forma como se lida com asua plausibilidade e admissibilidade, que ele pode serqualificado, justamente, de «desconstrucionismoexplicitante».

Acrescente-se ainda que, no primeiro dos gestos, abusca da radicalidade conduz frequentemente a formulaçõeseivadas de dogmatismo que deixam pouca margem àtolerância e ao conflito de perspectivas. No segundo, aprocura de radicalidade não é incompatível com adiversidade de opiniões, conciliando o espírito de tolerânciacom uma apetência criativa de lucidez.

5.3. Fundamentos absolutos, fundamentos suficientes

Quanto à problemática da fundamentação, ela parece serum tema de importância nuclear em filosofia, já que não só émuitas vezes apontada como o horizonte da sua própriaactividade como, ainda, a ideia de que a filosofia se ocupaessencialmente da busca de fundamentos é frequentementeassumida por filósofos marcantes da tradição filosófica.

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Com efeito, encontramos em filósofos que constituemmarcos importantes na história da filosofia ideias como:

• o filosofar é um exercício «que procede por meio dadestruição de hipóteses, a caminho do autênticoprincípio, a fim de tornar seguros os seus resultados»(Platão);

• a filosofia ocupa-se do conhecimento primeiro, quetrata «dos princípios primeiros e das primeirascausas», do que é mais profundo e fundamental, pois«é graças aos princípios e a partir dos princípios quetudo o mais é conhecido e não inversamente, osprincípios das outras coisas que deles dependem»(Aristóteles);

• se o saber for comparado a uma árvore, a filosofia — quediz respeito ao «perfeito conhecimento de todas as coisasque ao homem é dado saber» — ocupar-se-á das raízesdessa árvore e adquirir-se-á através da pesquisa das«primeiras causas, ou seja, dos princípios» (Descartes);

• a filosofia é «a Ideia de uma sabedoria perfeita, quenos mostra os fins últimos da razão humana», ideiaessa a que contudo não se pode aceder sem procederpreviamente a um exame filosófico das própriascondições e limites do conhecimento, ou seja, semdefinir: «1. as fontes do conhecimento humano; 2. oâmbito do emprego possível e útil de todo o saber e,finalmente, os limites da razão» (Kant);

• a filosofia é o que permite aceder ao «fundamento doracional, ela é a inteligência do presente e do real»(Hegel);

• a filosofia ocupa-se «dos inícios verdadeiros, dasorigens» e, por isso, trata «dos fundamentos últimos»,é «uma doutrina dos princípios e das normas de todas

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as ciências, doutrina última, a mais profunda e a maisuniversal» (Husserl).

Se é assim certo que, em diversas filosofias marcantesque encontramos na história da filosofia, a busca dosfundamentos e a tarefa de fundamentar surgem comohorizonte indissociável da actividade filosófica, há contudode proceder a uma explicitação do conceito defundamentação. Para o fazer, procurarei, sucessivamente, a)delimitá-lo conceptualmente, b) evidenciar o movimento dopensamento para que remete e c) assinalar a finalidade quepersegue.

a) o conceito de fundamentação pode ser explicitadopela sua afinidade com certas ideias a que seencontra associado, tais como:

— base (no sentido de alicerce, daquilo em que assentae de que depende todo o resto);

— princípio (no sentido de critério de estruturação);— origem ou ponto de partida (no sentido daquilo de

que decorre tudo o mais);— pressuposto (no sentido daquilo que se encontra

subjacente e implícito);

b) o movimentoque encontramos na procura defundamentos aponta para:

— um caminho regressivo;— um trabalho de análise em que se procura remontar

às bases, aos princípios, ao originário, aos pontos departidas, aos pressupostos;

c) do ponto de vista da finalidadea tarefa defundamentação é a de chegar às bases, aos princípios,ao originário, aos pontos de partida, aos pressupostosque justificam e asseguram a inteligibilidade e acoerência das nossas perspectivas, e que mostram queelas, podendo não ser imediatamente evidentes, não

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são, de forma alguma, arbitrárias. A busca defundamentos é sempre, neste sentido, uma luta contra aarbitrariedade.

Depois de caracterizada a ideia de fundamentação, querdo ponto de vista conceptual, quer do ponto de vista domovimento reflexivo que implica, quer ainda do ponto devista da finalidade que persegue, há ainda que consideraruma outra importante questão: a do valor atribuído aosfundamentos, àquilo que se considera como fundamental.

Para uns — e tal é o que se verifica na tradiçãofilosófica — o que interessa é atingir fundamentos absolutose necessários, isto é, que se sustentam por si mesmos e queestão para além de todas as contingências. O fundamentalserá, nesta perspectiva, aquilo que é absolutamente primeiroe necessário, aquilo que se mantém para além das mudanças,assumindo, por isso, na sua validade intemporal, a dimensãode algo incontestável e incondicionado. É claro que, para osmais cépticos, uma tal pretensão é impossível de realizar.

Para outros, porém, o que interessa, e o que é possívelatingir, são fundamentos suficientes, isto é, fundamentosrelativos a uma dada situação e válidos para umdeterminado contexto e num dado momento, mas quepodem contudo ser contestados e reformulados.

No primeiro caso — e na medida em que se considereque a busca de fundamentos é sempre um empreendimentoracional —, a procura de fundamentos é solidária de umaconcepção da razão como razão eterna. O fundamental seráaquilo que é absolutamente necessário, universal e quepossui uma validade transtemporal. Será, por isso, algo deirrefutável para todo aquele que utilize correctamente a suarazão. Este tipo de postura face ao valor dos fundamentos écaracterístico das filosofias monistas, isto é, daquelasfilosofias que, à pluralidade das opiniões opostas, opõem a

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unicidade da verdade, esforçando-se por apresentar umavisão sistematizada e racionalizada do universo e porfornecer uma única solução verdadeirapara todos osconflitos de opinião e para todas as divergências.

No segundo caso, o estabelecimento de fundamentosremete para uma concepção da razão como razão histórica.O fundamental será, nesta perspectiva, algo que aspira àuniversalidade, ao acordo de todos os homens razoáveisnuma dada época e numa determinada situação, mas quenão é imutável nem se impõe necessariamente. Faz apelo àcomunidade dos homens — às suas maneiras de pensar, aosvalores que defendem e que predominam, aosconhecimentos que possuem — e aponta para as eventuaissituações de acordo saídas do debate e da discussão. Ofundamental tem, nesta perspectiva, o carácter de algo queparece razoável aceitar em função de factos e contextostemporalmente delimitados não sendo, como acontece naprimeira perspectiva, algo de absolutamente evidente,racionalmente necessário e independente dos contextos emque é considerado. Este tipo de postura face ao valor dosfundamentos é característico das filosofias pluralistas, istoé, das filosofias abertas à diversidade conflitual dasopiniões e conscientes de que a historicidade da razão leva aque aquilo que parece razoável numa determinada épocapossa deixar de o parecer num outro contexto ou numaépoca diferente. Como notou Perelman, «em vez depretender impôr uma verdade eterna, o filósofo pluralistaterá pretensões (...) comedidas: ele contentar-se-á emapresentar uma visão do homem, da sociedade e do mundoque lhe parecerá razoável e, como tal, susceptível de ganhara adesão do auditório universal. A tentativa é um ensaioimperfeito, mas sempre aperfeiçoável. Na medida em que aspensa como universalizáveis, parte das opiniões e das

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aspirações do seu meio, acreditando que as poderá fazerprogredir sempre através do diálogo e da controvérsia»23.Fundamentar é assim justificar as transformações que seoperaram relativamente a um quadro de referências anteriore não estabelecer, de uma vez por todas e a partir do zero, ocritério a partir do qual nada mais necessitaria dejustificação.

Para concluir, devemos ainda sublinhar um outroimportante aspecto — o da dimensão criadora dopensamento filosófico — e assinalar a sua importância nohorizonte da actividade filosófica. Com efeito, e do mesmomodo que se pode dizer que um criador, no acto criativo queorigina uma obra de arte, não se encontra necessariamente,à partida, preso às classificações e às interpretações a queesta poderá ser posteriormente submetida, também acapacidade imaginativa e criativaque faz irromper aoriginalidade de qualquer filosofia não se encontra, àpartida, agrilhoada à tarefa de fundamentar ou àpreocupação imediata de ajustar ideias e conceitos novos auma noção de razão previamente definida. Por isso, e apartir desta perspectiva que enfatiza a dimensão criativa ecriadora da filosofia, há que dizer que, mais que aracionalidade ou a razoabilidade, os seus horizontes sãoaqueles que presidem à construção de novasinteligibilidades e que, com isso, permitem proceder a umalargamento daquilo que se é capaz de exprimir e depensar.

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23 Ch. Perelman, «La philosophie du pluralisme et la Nouvelle Rhétorique», in RevueInternationale de Philosophie, 1979, 33º ano, nºs 127-128, p. 16.

5.4. A retórica ou as figuras do pragmatismo humano

A dinâmica do pluralismo remete, por fim, para aconsciência de que não é possível irradicar a dimensãoretórica do discurso filosófico. Com efeito, afirmar que háuma inultrapassável dimensão retórica do discursofilosófico significa, como observou Henri Gouhier, que «osfilósofos encontram-se sempre perante públicos» e que «acomunicação da filosofia não representa uma espécie desegundo tempo relativamente à sua elaboração»24. Dito deoutro modo, a fi losofia não se desenrola nemindependentemente dos auditórios a que se dirige, nem àmargem da crítica e da aceitação dos interlocutores queprocura persuadir e convencer. Ela permanece,inultrapassavelmente, solidária da argumentação dosprocessos negociais nela implicados.

A presença da retórica é também instrutiva porquantonos torna mais advertidos relativamente à tendência deontologizar o fundamento dos acordos que se estabelecementre os homens; por um lado, ela permite destacar a acçãode um pragmatismo que, precisamente, mostra que osacordos alcançados têm de ser considerados em relação aoseventuais inconvenientes que uma situação de desacordopoderia gerar; por outro lado, e pondo assim em evidência arelatividade e a precaridade de todos os acordos, ela tende adesdogmatizar a sua consideração e a fazer tomá-los comouma respostapossível e não como a soluçãodefinitiva.

Por fim, a retórica vem ainda pôr em causa a distinçãotradicional entre juízos de facto e juízos de valor, distinçãoessa que remete para uma separação entre o estabelecimentodos factos e o acto de avaliar, entre o objectivo e o subjectivo.

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24 Cf. Henri Gouhier, «La Philosophie et ses Publics», in AA.VV., Philosophie etMéthode, Editions de l'Université de Bruxelles, pp. 61-65.

Numa primeira e mais comum abordagem, os factoscorrespondem a acontecimentos ou ocorrênciase os juízosde facto pretendem apresentar-nos esses acontecimentos ouocorrências de uma forma objectiva, isto é, tal como elesefectivamente se passaram, são ou se passarão,independentemente de qualquer interpretação. O juízo defacto caracterizar-se-ia assim pela sua neutralidade eimpessoalidade, correspondendo a um registo de puradescritividade, anterior a qualquer valoração por parte dosujeito que o apresenta. Por isso muitas vezes se diz que «épreciso apurar os factos» ou então se ouve acusar alguém denão ser imparcial e de «manipular os factos».

Já com os juízos de valor o mesmo não se passaria.Eles não diriam respeito à apresentação de factos, mas à suaapreciação, dando por isso origem a uma avaliação, àemissão de uma opinião pessoal, à expressão das nossaspreferências subjectivas.

Esta dicotomia entre juízos de facto e juízos de valorvulgarizou-se e entrou na linguagem do senso comumsolidária e paralelamente a uma outra: a que estabelece apartilha entre o discurso científicoe o discurso não-científico e que opõe a objectividade científica àsubjectividade de tudo aquilo que não é susceptível de serprovado cientificamente. A cientificidade e os seus critériosde objectivação foram-se assim implantando como matrizdo estabelecimento e da apresentação dos factos, como aforma de os fazer falar — assim se ousa dizer — «por elesmesmos». É neste sentido que se tornaram lugares comunsfrases como «contra factos não há argumentos» e demolidoro argumento do «cientificamente provado» .

Ora o que com uma visão que não exclui a retórica dafilosofia passa a estar em causa e a ser alvo dequestionamento é a ideia de neutralidadepela qual se

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pretende pautar a objectividade factual, fazendo-acorresponder «àquilo que é», por contraposição «àquilo quese acha». Nietzsche escrevia, a este propósito: «Contra opositivismo que pára nos fenómenos — ‘Só há factos’ — eudiria: não, factos é precisamente o que não há, apenas háinterpretações. Não podemos estabelecer qualquer facto ‘emsi’: talvez seja loucura querer fazer tal coisa. (...) Não háfactos, tudo está em fluxo, incompreensivelmente ilusório: oque é relativamente mais resistente são — as nossasopiniões»25.

Com a admissão de uma inultrapassável presença daretórica no discurso filosófico — a qual significa, como vimosjá, a incontornabilidade da mediação comunicativa elinguística — então é possível contestar a distinção radicalentre juízos de facto e juízos de valor, e subscrever asseguintes ideias:

— a factualidade não é dissociável de uma leitura ouinterpretação;

— toda a leitura humana da realidade é já uma formade a interpretar (seja ela científica ou não);

— não há leituras neutras nem interpretações exclusivas;

— os factos não são algo que se descobre e quecorresponde ao mundo real, por oposição àquilo queseria fabricado e construído pela intervenção damente humana;

— os factos não podem ser dissociados da suaapresentação, ou seja, do reconhecimentode queaquilo de que se está a apresentar goza do estatutode facto.

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25 F. Nietzsche, The Will of Power, Nova Iorque, Vintage, 1968, pp. 267 e 327. Seguimosaqui a citação feita por Cornel West no seu artigo «Nietzsche e a filosofia americana pós--moderna», in Crítica, nº 9,Terramar, 1992, p. 21.

Podemos pois interrogarmo-nos sobre a pertinência dadistinção radical entre factos e valores. Serão os factosrealidades radicalmente separadas dos valores? Serápossível classificarmos este ou aquele dado concreto comosendo um facto, totalmente depurado da contaminaçãosubjectiva dos olhos que o vêem ou de uma leitura que oenquadra numa rede significativa?

Por exemplo, que significa o facto da medição datemperatura atmosférica marcar dois graus negativos?Significa que está frio — como provalvelmente dirá umafricano — ou que não — como provalvelmente dirá umesquimó? E um metro, é uma grande ou uma pequenaquantidade?

Com efeito, os factos não existem se por factoentendermos uma realidade concreta e verificável,completamente abstraída do sujeito que a percepciona, ainterpreta e lhe confere uma significação. A dificuldade daseparação radical entre factualização e valoração resideprecisamente nisto: é que os factos e a factualização sãoindissociáveis de uma avaliação que os interpreta, de umaleitura que os integra numa rede significativa e de umaargumentação que deles se socorre para tornar verosímeis ospontos de vista que sustenta. A pura constatação dos factosé, neste sentido, um momento retórico que visa assinalar arelevância de algo, fazê-lo aceitar para, a partir doreconhecimento do seu interesse e da sua aceitação, tirar asdevidas ilações e mostrar a sua significação. A realidade ésempre realidade para um sujeito que a interpreta e lheatribui significações.

A escritora francesa Marguerite Duras contava, apropósito, a seguinte história:

«Uma criança perguntava às pessoas crescidas: que é ocalor? E elas respondiam: é o que faz com que uma pessoa

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sinta que uma coisa está quente. E a criança voltava aperguntar: e o que é o calor quando não há ninguém?»

Os factos são já, de certo modo, uma construção dosujeito que os configura. O que existe é a leitura que nóspróprios fazemos da realidade — a qual podemos exprimirdiscursivamente ou de outros modos — e que podemos julgarcomo coincidente com a própria realidade. Mas mesmo amelhor fotografia ou o filme mais completo são ainda modosde ver a realidade e não a própria realidade. Como tal, sãoainda leituras particulares, feitas por este ou por aquelesujeito, com esta máquina ou com esta câmara concretas, decaracterísticas próprias e variáveis: aqui com os azuis maisfortes, ali com os vermelhos mais baços, com a selecção destepormenor e o ocultamento ou o esquecimento daquele outro...

Mas mesmo o discurso ou a filmagem mais fiéis dosfactos não seriam ainda inteiramente «realistas» pela simplesrazão de que a realidade de um facto nunca se encontraapenas onde ele se encontra. Encontra-se noutros factos,noutras vidas e noutras situações que por sua vez seriapreciso filmar numa cadeia de relações e de interpretações detal modo longa e intrincada, que toda a vida dos homens nãoduraria o suficiente para as levar a cabo.

Em suma, a tese da separação radical entre facto e valorrevela-se uma posição insustentável a partir do momento emque compreendemos que os factos remetem sempre para osujeito que os configura e os faz falar. Os valores estão,assim, mais intimamente ligados aos factos do que numaprimeira análise poderíamos supor.

Se não é possível definirmos os factos como realidadesconcretas inteiramente depuradas dos sujeitos que osapreendem e das suas leituras, devemos fixar-nos nos juízosde facto por eles produzidos e no seu estatuto. Quando é quealgo é reconhecido como um facto?

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Segundo Chaïm Perelman, «a noção de 'facto' écaracterizada unicamente pela ideia que se tem dum certogénero de acordos a propósito de certos dados, aqueles que sereferem a uma realidade objectiva e que designarão (...) 'oque é comum a vários seres pensantes e poderá ser comum atodos'.»26.

A noção de facto remete, pois, para o presumívelassentimento de um auditório universal.Só estamos empresença de um facto quando sobre ele podemos postularum acordo universal e incontroverso. Neste sentido umfacto subtrai-se à necessidade de justificação e deargumentação, pelo menos provisoriamente. Surge comoum dado incontestado que, por isso mesmo, é aceite.

No entanto, um facto pode perder o seu estatuto,nomeadamente, quando é susceptível de ser posto em causaou quando se questiona a competência do auditório. Esteauditório pode, assim, perder o seu estatuto universal, parase converter em auditório particular (quando se lhe juntaum outro auditório competente, cujas concepções se opõemao primeiro). O facto pode, pois, sê-lo apenasprovisoriamente, dependendo assim, indissociavelmente, doauditório.

Os factos relacionam-se também com as verdades. Noentanto, podemos, na opinião do autor anteriormente citado,distingui-los da seguinte forma:

«Fala-se geralmente de factos para designar objectos deacordo precisos, limitados; pelo contrário, designar-se-á depreferência pelo nome de verdades os sistemas maiscomplexos relativos às ligações dos factos, quer se trate deteorias científicas ou de concepções filosóficas ou religiosastranscendendo a experiência.»27.

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26Ch. Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca,Traité de l'argumentation. La nouvelle rhétorique,Paris, Éditions de l’Université de Bruxelles, 5ª ed., 1988, p. 89. Doravante TA.

27 Idem ibidem, p. 92.

Assim, ainda que distintos das verdades, pode dizer-seo mesmo que se disse dos factos: caracterizam-se,igualmente, pelo assentimento do auditório universal e,enquanto permanecem incontroversos e indiscutidos,dispensam a argumentação e a justificação. Tal como osfactos, possuem um carácter provisório, estandointimamente ligadas à noção de auditório que lhesreconhecerá, ou não, o seu estatuto. Ambos estão, afinal,intimamente ligados às exigências pragmáticas queatravessam o dinamismo da vida humana na suaincontornável necessidade de acreditar e de decidir.

A distinção entre a objectividade dos factos e asubjectividade do argumentativo é também posta em causano estudo da argumentação — desenvolvido por J.-P.Ascrombre e O. Ducrot — do ponto vista da linguística. Noartigo «Argumentativité et informativité», os autoresreferidos assumem a pretensão de abrir uma nova fase noseu estudo da argumentação, propondo aquilo que designampor «argumentativismo radical». Resulta este de, aoaveriguarem o papel desempenhado pela argumentatividadeno vestimento dos factos, terem acabado por «deixar dedistinguir os factos eles mesmos deste vestimento», sendolevados, por isso, a sustentar que «as relaçõesintersubjectivas não estão simplesmente ao lado, mas nofundo, na base de dados aparentemente objectivos».28

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28J.-P. Ascrombre e O. Ducrot, «Argumentativité et informativité», in De la métaphysiqueà la rhétorique, Éditions de l’Université de Bruxelles, pp. 79-94.

II. Tematização

retórico-interrogativa da filosofia

6. ALGUNS CONCEITOS FUNDAMENTAIS DO

HORIZONTE FILOSÓFICO CONTEMPORÂNEO

Partamos de uma distinção, cuja vulgarização meparece útil, entre tradição filosófica e filosofia actual.

O que distingue, em traços muito gerais, os horizontes dopensamento na tradição filosófica e os horizontes do pensamentona filosofia contemporânea? Atentemos no esquema seguinte:

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TRADIÇÃO FILOSÓFICA ≠ FILOSOFIA HOJE

Separação entre pensamento esituação, racionalidade e contexto,

razão e pessoa que pensa,pensamento e época em que se

pensa

verdades eternas

certezas absolutas

soluções perfeitas e definitivas

O homem pertence à história, oseu pensamento é fruto do tempo

em que vive

verdades temporais, epocais, situadas

certezas relativas

respostas aperfeiçoáveis

HISTORICIDADE

pensamento em situação

racionalidade ligada a contextos e conjunturas históricas

vinculação entre o pensamento e a pessoa que pensa

A grande diferença entre estes dois enquadramentosreside na forma como é concebida a relação entre a razãohumana e a contingência ou devir do tempo histórico.

No primeiro caso, em que o que é visado é a obtençãode verdades absolutas, a razão tem de encontrar a suaunidade para além das contingências da temporalidadehistórica. As verdades da filosofia, enquanto obra da razão,não têm, nesta perspectiva, uma dimensão histórica, nosentido em que não são afectadas pela temporalidade; são,ao invés, verdades intemporais que se elevam acima detodos os condicionalismos epocais.

No segundo caso, acolhe-se a historicidade e atemporalidade do pensamento. Tem-se consciência de que arazão humana não é, em si mesma, um princípio de que sepossa partir para estabelecer verdades eternas, mas umagente de estruturação. Dito de outro modo, a razão exerce asua actividade sobre dados epocalmente contextualizados,pelo que a sua acção, no presente, é sempre condicionadapor um passado que a marca e por um futuro em que seprojecta. É por isso que, ao contrário das pretensõesabsolutistas da filosofia tradicional, nesta perspectiva emque são valorizados a historicidade e os condicionalismostemporais, não faz sentido falar em absolutos racionais.

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7. A CONTEMPORANEIDADE NO EXEMPLO DAFILOSOFIA HERMENÊUTICA DE GADAMER :

UMA ABORDAGEM CRÍTICA

A filosofia hermenêutica — nomeadamente a deGadamer — é, a respeito da demarcação que acontemporaneidade filosófica procura operar relativamenteà tradição filosófica, exemplar, não só devido àpreponderância que nela assumem os temas da historicidadee da finitude humanas como, ainda, pela estrutura teórico-conceptual com que é abordado o tema da compreensão edo seu acontecer.

Segundo Gadamer, tomar em consideração ahistoricidade, a qual significa «a constituição intrínseca doespírito humano, que ao contrário de um intelecto infinitonão apreende de uma só vez tudo o que é, mas pelocontrário toma consciência da sua própria situaçãohistórica»29, equivale a introduzir na filosofia «um temaautocrítico que contesta a sua velha pretensão metafísica deconseguir atingir a verdade»30. Não que Gadamer abandone,de forma alguma, o problema da verdade; aquilo que aconsideração da historicidade vem sublinhar é o vínculo,inelutável, entre compreensão e situação, interpretação e

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29H.-G. Gadamer, «Historicidade» in História e Historicidade, col. Panfletos, Gradiva,1988, p. 101.

30 idem ibidem.31Cf.WM, p. 344.

preconceito31, e desta forma mostrar que, quer a dimensãode inacabamento da reflexão, quer a impossibilidade de umrecomeço radical e absoluto não são um defeito mas aprópria condição do nosso ser histórico. Pôde, por isso,concluir: «ser histórico quer dizer não se esgotar nunca numsaber total de si próprio»32. Dito de outra maneira, oprincípio da historicidade do ser implica que a existênciaseja essencialmente uma experiência33 e que a verdadeiraexperiência seja experiência dos limites ou da finitudehumana34.

Mas a proposta de um perspectivismo, inerente à nossacondição finita e histórica — que coloca a mediação darazão sob o signo da interpretação ou, para retomar aformulação de Ricoeur, que vem mostrar que a reflexão semove, originariamente, não no elemento da intuição, mas noda interpretação35 — não deverá ser levada mais adiantepor uma tematização das questões de saber de que modo épossível estabelecer e aferir critérios ou de como funcionamas competênciaspara ajuizar ou julgar a legitimidade ouilegitimidade das interpretações? Parece-nos, aliás, queapenas uma teoria deste tipo poderia contribuir para darresposta à questão que Gadamer coloca e que o próprioconsidera como «o problema epistemológico-chave» deuma hermenêutica que queira ser verdadeiramente histórica,a saber, o problema da selecçãodos preconceitos que guiama compreensão e a interpretação: «em que é que se podebasear a legitimidade dos preconceitos? Em que é que se

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32WM, p. 372.33WM, p. 432.34WM, p. 433.35Ver, por exemplo, P. Ricoeur, De l'Interprétation. Essai sur Freud, Seuil, Paris, 1965, p.52.

distinguem os preconceitos legítimos de todos osincontáveis preconceitos cuja superação representa ainquestionável tarefa de toda a razão crítica?»36.

Este modo de colocar a questão indica-nos que:conduzida a razão a um modo de ser interpretativo, vincada arelatividade de toda a inteligibilidade e de toda acompreensão, mas preservada, contudo, a exigência decritérios que impeçam a perigosa tendência para a sinonímiaentre relativismo, arbitrariedade, cepticismo — a questão queimediatamente surge é a questão críticade como funcionamos processos de legitimação das interpretações. Dito de outromodo, o que doravante fica claramente expresso é o laçoindissociável entre o modo de ser, interpretativo, da razão, e oexercício de uma racionalidade competente no domínio dosvalores, capaz de justificar as suas opções. Mas como sedesenvolvem e concretizam os processos que permitem aferira racionalidade de uma razão que se reconhece na suacondição hermenêutica?

Referindo-nos ainda à passagem acima citada, faremosnotar que Gadamer coloca como tarefa fundamental de todaa razão crítica a tarefa de fazer funcionar critérios racionaisjustificadores de valores (trata-se, no caso, de mostrarquando é que um preconceito tem o valor 'legítimo' ou ovalor 'ilegítimo'). Não alude, contudo, ao modo como taiscritérios se estabelecem ou podem estabelecer. Com efeito,o projecto gadameriano de pôr em evidência os limites quea ideia de método impõe ao saber — e que se mostram naimpossibilidade de uma tematização científica do problemada aplicação37 e, de uma maneira mais originária, na

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36WM, p. 344.37cf. WM, pp. 378-414.38cf. WM, p. 443.

inexistência de um método que ensine a perguntar ou a ver oque é questionável38 — encontra a sua realização napossibilidade de convocar uma ordem da experiênciahumana — linguageira — situada aquém, precedendo e porisso escapando às reduções amputadoras do método. Noseguimento da noção heideggeriana de experiência e emconsonância com ela, escreve Gadamer que na sua análisedo fenómeno da compreensão «não está em questão o quefazemos nem o que deveríamos fazer, mas sim o que ocorreem nós para lá do nosso querer e fazer»39. Ou seja, a suaanálise inscreve-se no pano de fundo do postulado dauniversalidade da razão hermenêutica, que Gadamerenuncia da seguinte forma:

«Por quanto compreendemos pertencemos a umacontecer da verdade, e quando queremos saber aquilo emque devemos acreditar chegamos sempre demasiadotarde»40.

Contudo, esta formulação afasta-o do problema críticoacerca do valor dos preconceitos. Por isso notou J. Greischque «na hermenêutica filosófica de Gadamer, não existemais instância crítica que permita separar os bons'preconceitos' (aqueles que tornam possível a compreensão)dos maus (aqueles que são um obstáculo

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39WM, p. 10.40WM, p. 585. É provavelmente o que acontece ao próprio Gadamer e à sua análise do

fenómeno da compreensão: apesar das suas palavras remeterem para um olharfenomenológico que analisa, a partir de um exterior (isto é, num plano independentizadodo nosso querer e do nosso fazer), o que ocorre quando compreendemos, o facto é que atematização do fenómeno da compreensão é sempre feita a partir de uma perspectiva e decrenças insusceptíveis de serem submetidas a um exercício epocaico que anularia a suaeficácia. Ora esta regra aplica-se ao próprio empreendimento de Gadamer que, contudo eparadoxalmente, parece querer subtrair-se ao perspectivismo da sua própria interpretação.

41J. Greisch, L’âge herméneutique de la raison, Les Éditions du Cerf, 1985, p. 32.

epistemológico)»41. Não se responde, além do mais, aperguntas de inegável pertinência, a começar pela questãode saber se não é (não estando nunca em causa a solidez dasconvicções de que partimos) à filosofia que competejustamente a tomada de posição crítica relativamente a todasessas convicções pré- -filosóficas.

Nesse sentido, haveria que perguntar em que medida eaté que ponto é possível, através do nosso querer e pelotrabalho de uma razão crítica, tornarmo-nos sujeitos activos,capazes de responder racionalmente pelas nossas crenças e,se necessário, de transformá-las ou mesmo de substituí-laspor outras. Parafraseando Sartre, poder-se-ia dizer que ointeresse reside menos naquilo em que nos fizeram acreditardo que naquilo que somos capazes de acreditar partindodisso que nos fizeram crer. Por isso, e formulada com toda aclareza, a questão interessante é a de saber «em que medidaposso modificar, graças à filosofia, os meus pontos departida, as convicções pré-filosóficas de que parti?»42 Estaquestão encontra-se no centro das reflexões de Perelman, ofundador da «nova retórica»; com efeito, recusando, este, adicotomia crença/verdade, mas, sobretudo, recusando-se ahipotecar a competência da razão a crenças que seriamnecessariamente cegas ou a convicções inevitavelmentedogmáticas — e delimita-se, desta forma, teologia efilosofia — pôde afirmar que «para poder dizer que estasconvicções são convicções válidas, não sendo as outrassenão ilusão, cada filosofia deve tomar posiçãorelativamente a todas estas convicções pré-filosóficas e queconstituem, por assim dizer, a matéria primeira da

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42Philosophie et Méthode, Actes du colloque de Bruxelles(1972), editadas por Ch.Perelman, Éditions de l'Université de Bruxelles, p. 194.

43 Idem ibidem, p. 195.

filosofia»43.Ora, esta questão de uma racionalidade competente no

domínio dos valores (em que é preciso escolher, decidir,deliberar), isto é, exercida no trânsito do dado para opreferível, não pertence, primordialmente, ao campo doproblema hermenêutico44, mas, por excelência, ao domínioda retórica45. É aqui, de facto, que o problema gadamerianoda legitimidade das interpretações aparece mais claramentetributário e associado aos problemas da argumentação e daretórica.

Se prescindirmos da ideia da existência de uma

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44Segundo Gadamer o problema hermenêutico não é o do estabelecimento de regras oupreceitos para compreender correctamente (não é, primordialmente, uma questãometodológica), mas o do fenómeno da própria compreensão enquanto fenómenoontológico. Quer dizer: o ponto de partida gadameriano é o de que a compreensão éuma experiência primordial e universal; a partir daí trata-se, um pouco à maneira deKant, de tentar determinar como é possível a compreensão (insere-se aqui a questão dospreconceitos) e saber quais são os limites da compreensão humana (aqui se inserindo,por sua vez, os temas da historicidade, da finitude a da consciência hermenêutica). Mas,assim formulado, o problema hermenêutico vai posteriormente permitir o relançar daquestão epistemológica. À análise fenomenológica da compreensão que visa aelucidação do que a compreensão é, Gadamer faz suceder a questão das condições e doslimites do compreender, abrindo simultaneamente para a questão da legitimidade dasinterpretações e, portanto, para o problema da arbitragem do que Ricoeur chamou ocampo conflitual das interpretações. Pelo nosso lado faremos remeter esta questão dofuncionamento dos critérios para o domínio da retórica e da argumentação.

45É certo que Gadamer não deixou de sublinhar que «os aspectos retórico e hermenêuticodo carácter linguageiro do homem se compenetram intimamente» pois que «a teoria é,nos dois casos, posterior àquilo da qual ela é abstraída, àquilo que chamamos praxis»(H.-G. Gadamer, L'art de comprendre, Éditions Aubier Montaigne, 1982,respectivamente p.129 e p. 126). Não explorou, contudo, as possibilidades que umateoria da argumentação poderia fornecer para o problema dos critérios de validade dasnossas opiniões e crenças no quadro do exercício de uma razão crítica.

46Mas isso não seria, como nota Perelman, uma situação normal: «A necessidade deinterpretar apresenta-se (...) como a regra, constituindo a eliminação de toda ainterpretação uma situação excepcional e artificial» (TA, p. 168).

47É que, como nota Ricoeur, é sob a condição fundamental do sentido só se dar atravésde leituras plurais ou de uma interpretação multívoca que a interpretação, tema centralda hermenêutica, se revela como uma teoria do sentido múltiplo (Cf. P. Ricoeur,«Rhétorique-Poétique-Herméneutique», in De la Métaphysique à la rhétorique, Ed. deL'Université de Bruxelles, 1986, p.150).

instância última e soberana de decisão que permitisse acabarcom o conflito das interpretações e instaurar, desse modo, aunicidade de um sentido inequívoco46 (o que equivaleria asacrificar, quer a ideia de interpretação47 nutrida da aberturasobre a possibilidade de um sentido inesgotável e múltiplo,quer a ideia de argumentaçãoforjada sobre a ideia depluralidade e da necessidade da escolha entre possíveis48),facilmente veremos que interpretação e argumentação —uma vez que qualquer forma de compreensão se encontrasempre vinculada a determinadas crenças ou convicções ese repercute na opção por determinadas perspectivas — seremetem mutuamente.

Com efeito, se a interpretação é o modo de ser da razãohistórica, a argumentação e a retórica são os meios atravésdos quais, por um trabalho de crítica, solidário de umesforço de persuasão, a racionalidade interpretativa serevela na sua competência prática. E isto por dois motivosfundamentais. Por um lado, é a dimensão pluralista daracionalidade argumentativa aquilo que permite acolher aconflitualidade interpretativa e o perspectivismo a elainerente. Por outro, e uma vez que qualquer argumentaçãonão é concebível senão em função da acção que ela preparaou determina49 nem pode ser considerada como exercíciointelectual inteiramente desligado de toda a preocupaçãoprática50, o suporte argumentativo de que se socorrequalquer interpretação mostra que esta última não se efectuanuma esfera de sentido desligada de toda a relação compreocupações de ordem prática, sendo, por isso, ilusória eartificial a pretensão de autonomizar o mundo do sentido

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48Pois que, como observa Perelman, «a argumentação visa uma escolha entre possíveis»(TA , p. 83).

49Cf.TA, p. 71.50Cf. TA, p. 78.

relativamente às exigências pragmáticas que estão,justamente, na base da necessidade de interpretar. Uma vezque ninguém interpreta só por interpretar, tal como ninguémduvida só por duvidar.

Mas há ainda algo de mais decisivo: é que para além decada interpretação que se reclame de racionalidade ser,necessariamente, solidária de um suporte argumentativoquea torne proponível ao assentimento de um auditório, ela étambém indissociável de um dispositivo retórico reguladornão só dos índices predisposicionaisveiculados nacomunicação (pode, por exemplo, dar-se ênfase a certoselementos que aproximam os interlocutores, como acontececom certos gestos de cortesia ou manifestações deafabilidade, do mesmo modo que se podem enfatizarelementos que os distanciam, como acontece com certosgestos que denotam indignação ou impaciência) comotambém dos índices de problematizaçãoque se estádisposto a aceitar na abordagem do problema em causa(definindo-se, por esta via, e para cada situação concreta, oque é, ou não, susceptível de ser posto em discussão).

Contudo, e chegados a este ponto, deparamo-nos com aseguinte questão: se o conflito das interpretações e oproblema da escolha entre interpretações conflituais tem deser considerado à luz da argumentação e da retórica, seráque a formulação da questão crítica em termos de«legitimidade» ou de «ilegitimidade» das interpretações serevela, neste enquadramento, adequada? Quando, porexemplo, os advogados de defesa e de acusação apresentam,num tribunal, as suas interpretações, é o critério dalegitimidade aquilo que nos faz optar por uma delas? E nocaso de uma interpretação da história da filosofia?Poderemos dizer que umas são legítimas e outrasilegítimas?

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A colocação da problemática do conflito dasinterpretações em termos de legitimidade e de ilegitimidadeconvoca sem dúvida a velha figura do tribunal filosóficoque deve decidir sobre o que é e sobre o que não é,remetendo pois para um representacionismo, para uma visãoessencialista da realidade que teima em falar da naturezaintrínseca das coisas e que se revela incompatível com opragmatismo inerente à argumentação e à retórica, no qualpontifica o abandono da distinção entre aparência erealidade e a sua substituição pela distinção entre meios dedescrição do mundo que achamos úteis para determinadospropósitos e meios que achamos úteis para outros, ou seja, aconsciência de que nunca lidamos senão com versões, umavez que a linguagem não é algo que nos coloca em relaçãocom coisas que lhe seriam exteriores, mas um dispositivoubíquo (isto é, sem um exterior que pudesse ser comunicadofora da sua eficácia) onde se tecem e articulam desejos ecrenças (que os pragmatistas definem como hábitos deacção). No contexto da orientação pragmatista, a figura dotribunal filosófico, enquanto instância que permitiria avaliara partir de uma posição exterior, afigura-se, porconseguinte, tão arrogante e absurda quanto dispensável. Seas interpretações são sempre, e só, versões — o que nãosignifica, pelo simples facto de serem múltiplas, diversas epossivelmente inconciliáveis, que as tenhamos de colocartodas num mesmo nível de consideração, ou queesvaziemos de importância o acto de aduzir motivos erazões quando precisamos de optar entre elas — tal apenasquer dizer que a variedade e a conflitualidade são a regracom a qual temos de lidar. Uma regra que, longe da possíveldebilidade filosófica que muitos poderão aí quererencontrar, aponta, pelo contrário, para a razão de ser dodinamismo crítico do pensamento filosófico.

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8.DO CENTRAMENTO ONTOLÓGICO DA FILOSOFIA

HERMENÊUTICA À EMERGÊNCIA DO RETÓRICO E DOPRAGMÁTICO : UM CONFRONTO ENTRE

GADAMER E PERELMAN

Na tentativa de articular os pressupostos da filosofiahermenêutica com a retórica e com a argumentação,deparámo-nos, como já se viu, com alguns problemas queconvirá agora aprofundar e cuja tematização nos conduziráao perfilar de uma concepção retórico-interrogativa dafilosofia.

Um deles, talvez o principal, diz respeito à noção deverdadee ao estatuto que esta assume no quadro de umafilosofia hermenêutica e no quadro da retórica e daargumentação.

Na hermenêutica, e não será talvez de negligenciar asimilitude de algumas das suas categorias com as dopensamento religioso, assistimos ao primado do ontológicosobre o antropológico, a uma abordagem ontologizada dalinguagem que põe o sentido e a verdade como primeiros edoadores e os usos da linguagem, o debate por exemplo,como algo de derivado e secundário. São neste sentidoparadigmáticas as afirmações heideggerianas segundo asquais «a linguagem é a casa do ser»51 ou «O homem não

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51Martin Heidegger, Carta sobre o humanismo, Guimarães & C.ª Editores, p. 27.52Martin Heidegger, Acheminement vers la parole, Gallimard, 1976, p. 37.

fala senão na medida em que corresponde à palavra. Apalavra é falante»52. É por isso natural a recusahermenêutica da ideia segundo a qual o fenómeno dosentido é inerente aos usos humanos da linguagem,constitui-se e emerge deles, significa-os no seio de umaretoricidade refractária à cristalização ontológica e remetesempre para uma condição humana que tem a sua matrizrelacional, não na revelação do ser, mas no agircomunicacional entre homens concretos e situados. Assim,enquanto na hermenêutica se procura salvaguardar a esferada verdade e do sentido da sua contaminação com a opinião,fazendo dessa forma prevalecer a dicotomiaverdade/opinião, já de um ponto de vista retórico o mesmonão se passa, assistindo-se, com a introdução e avalorização da ideia de crença, ao desaparecimento de umatal oposição.

Por outro lado, a própria conflitualidade interpretativa epluralidade de leituras, acolhidas na hermenêutica comoalgo que deriva na natureza íntrinseca do sentido do ser e doseu modo de se dar, é encarada, no quadro de uma filosofiaretórico-interrogativa, de um modo diverso. Neste, a ideiade que o sentido se dá numa multiplicidade deinterpretações afigura-se dispensável e redutora, sendopreferida a ideia de que aquilo de que se pode partir é deuma mutiplicidade de sentidosemergentes nos usos dalinguagem, sem que seja preciso postular uma instânciadoadora que asseguraria a unidade desses sentidos, masapenas valorizar a atenção aos contextosque, para cadacaso, poderão ajudar a clarificar as diferentes versões, a suaconflitualidade ou a sua eventual incompatibilidade. O quenos leva a considerar a verdade como um critério que, perantea irredutibilidade da conflitualidade e do controverso, se

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revela, tal como assinalou Nelson Goodman, insuficiente:«não apenas o facto de aprovarmos alternativas não-conciliadas coloca a verdade a uma luz diferente, como oalargamento do nosso limite para incluir versões e visõesque não fazem declarações, e que podem mesmo nãodescrever nem representar nada, exige que se consideremoutras normas que não a verdade. A verdade éfrequentemente inaplicável, raramente é suficiente e, porvezes, tem que ceder a critérios rivais.»53.

Mas voltemos à tentativa de articulação dos pressupostosda filosofia hermenêutica com a retórica e com aargumentação, e evidenciemos agora a sua conflitualidadeatravés de um confronto entre algumas das ideiasfundamentais dos pensamentos de Gadamer e de Perelman.

O sentido, afirma Gadamer, é sempre orientação desentido de uma possível pergunta54. Com efeito, naperspectiva do autor de Wahreit und Methodeé a dialécticada pergunta e da resposta aquilo que melhor caracteriza aessência da experiência hermenêutica e permite afirmar asua universalidade. Por isso, a análise do fenómeno dacompreensão e da interpretação remonta e encontra o seuverdadeiro núcleo na lógica da pergunta e resposta55.Interpretar e compreender é sempre procurar responder auma pergunta que se nos coloca e pode, por isso, dizer-seque a compreensão de um texto, por exemplo, passa semprepela explicitação da pergunta a que o texto responde.Aceder à compreensão é, assim, antes de mais, compreendero sentido da pergunta e, com isso, estabelecer o horizonte de

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53Nelson Goodman, Modos de fazer mundos, Edições ASA, 1995, p. 159.54Cf. WM, pp. 441.55Cf. ibidem, pp. 447-458.

sentido a partir do qual a resposta se torna, ela própria,passível de compreensão.

Mas, na hermenêutica gadameriana, o vigor com que seafirma o primado da pergunta no que diz respeito à essênciado saber leva o filósofo a dissociar radicalmenteo acto deperguntar de qualquer empreendimento metodológico.Afirma, por isso, que a primazia da pergunta é o quemelhor, e de forma mais originária, permite ver os limitesque a ideia de método impõe ao saber. Se quiséssemossintetizar numa frase o leitmotiv de Wahreit und Methodeescolheríamos, sem hesitação, a seguinte afirmação: «Nãohá método que ensine a perguntar, a ver o que équestionável»56. E, pelo que no parágrafo anteriorescrevemos, torna-se óbvio que este será, também, o alvoem que se concentrarão as nossas críticas. Antecipando umpouco: porque é que a afirmação da nossa condiçãohermenêutica justificaria e, portanto, dispensaria alegitimação da lógica da pergunta e resposta? J. Greischobservou, pertinentemente, a este respeito: «A hermenêuticade Gadamer adquire a sua dimensão universal à custa darenúncia da exigência normativa, de forma que as questões'críticas', familiares ao prático da interpretação, não relevamda competência da hermenêutica filosófica. A constituiçãohermenêutica do nosso ser-no-mundo não tem necessidadede legitimação. Se ela possui uma 'lógica', esta trabalha nascostas da razão, tal como na fenomenologia do espíritohegeliana uma 'lógica' trabalha sem ser transparente àconsciência»57.

Para Gadamer, com efeito, o perguntar, enquanto

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56 Cf. ibidem, p. 443.57Jean Greisch, L'age herméneutique de la raison, Les Éditions du Cerf, Paris, 1985, p. 113.

verdadeiro perguntar e não como um mero perguntarpedagógico ou retórico, suspenderiaos «por» e os «contra»,instauraria um espaço prévio à decisão ou tomada de posiçãoe, portanto, à questão dos meios pelos quais se poderiaelaborar uma resposta, deixando apenas em aberto«possibilidades de sentido». Neste pôr em suspensoencontrar-se-ia a verdadeira essência original do perguntar58.Contudo, isto pressupõe a possibilidade do pensamento seexercer num registo de pura analiticidade de possibilidadesque, vindo não se sabe donde ou como, o interpelam, numespaço prévio à escolha e à apropriação das possibilidades desentido que virão a introduzir-se, posteriormente, na nossaopinião59. Ora, aquilo que nos parece duvidoso e artificial éprecisamente esta distinção entre o nível das puraspossibilidades de sentido, como se se tratasse de uma esferaautónoma apenas acessível por um verdadeiro perguntar quenada mais visaria a não ser a interrogação60, e o nível dasopiniões e decisões como registo de apropriação e deresposta à pergunta que se colocou. Porque, e ainda paratomar as palavras de Gadamer, das perguntas se diz que elasnos ocorrem, que surgem e se colocam, e não que nós asprovocamos ou colocamos61. M. Mª. Carrilho observou, aeste propósito, que «para Gadamer a principal dificuldadenesta transição entre o saber e o não saber encontra-se naresistência da opinião. Para a ultrapassar, sugere que seconsidere o acesso à questão do mesmo modo como um

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58Cf. WM , p. 453.59Cf. WM , p. 454.60Cf. WM , p. 444.61Cf. WM , p. 444.62Manuel Mª Carrilho, Razão e transmissão da filosofia, Imprensa Nacional-Casa da

Moeda, 1986, p. 15.63Cf. Ch. Perelman, «Opinions et vérité», Justice et Raison, 2º ed., Éditions de l'Université

de Bruxelles, Bruxelles, 1972, p. 203.

achadovem ao espírito, ou seja, que não se trata nem de ummétodo nem de uma estratégia»62. Mas porque não ver naresistência da opinião, considerada em termos perelmanianoscomo um princípio de inércia e de estabilidade regulador danossa vida espiritual, a garantia de uma continuidadesem aqual não se poderá falar de racionalidade?63 E porque nãoafirmar que entre verdade e opinião não há diferença denatureza mas apenas de grau64, que as verdades não são maisdo que as nossas melhores e mais fundadas opiniões65 e que«é por se ter admitido uma opinião que é razoável mantê-la,que não é razoável abandoná-la sem razão»?66.

No perguntar, tal como o concebe Gadamer, parece,como num sonho, que as perguntas ocorrem em nós, comose de uma experiência para além do nosso querer e do nossofazer se tratasse67; e, de facto, para Gadamer é precisamentedisso que se trata: perguntar é mais padecer (no sentido dopaschein) que fazer68.

Admitindo que as perguntas são essenciais para aconstituição de qualquer filosofia, diremos, contudo, comPerelman,que «se alguém devesse elaborar uma filosofiaque nada tivesse de comum com o nosso mundo, diríamosque é um sonho, não uma filosofia. Toda a filosofia deve sercapaz de integrar as nossas convicções relativas ao mundoem que vivemos. (...) Reside aí, pois, uma característica de

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64 Idem ibidem, p. 202.65 Idem ibidem, p. 205.66Ch. Perelman, «Évidence et preuve», Justice et Raison, 2º ed., Éditions de l'Université

de Bruxelles, Bruxelles, 1972, p. 149.67Cf. WM , p. 10.68Cf. WM , p. 444.69AA.VV., Philosophie et méthode, Actes du Colloque de Bruxelles (1972), Éditions de

l'Université de Bruxelles, p. 195. Subl. meu.70 Cf. Ch. Perelman, «Le réel commun et le réel philosophique», Le champ de

l'argumentation, Éditions de l'Université de Bruxelles, Bruxelles, 1970, p. 264.

toda a filosofia: o mundo do senso comum não pode sernegligenciado»69.

Assim, Perelman afirma que é por referência ao realcomum que o filósofo dispõe de uma certa liberdade, que érelativamente ao pensamento comum que ele deve provar asua racionalidade70 e que a prova filosófica é de naturezaretórica, na medida em que os seus raciocínios se ligam ateses comummente admitidas que são princípios comuns,noções comuns e lugares comuns71.

Perelman exclui deliberadamente a possibilidade de seconsiderarem as perguntas enquanto perguntas,desimplicadas de qualquer estratégia explícita ou implícita.Para ele, a pergunta está sempre vinculada a um interesse eeste interesse não é meramente teórico-contemplativo. Emvários textos adverte-nos de que é fictício querer separarradicalmente teoria e prática e que é preciso ter em conta asexigências da acção no pensamento. As perguntas sãoindissociáveis do interesse de quem pergunta e, por isso, omodo gadameriano de colocar os termos deste problema nãotem aqui lugar. «Considerações retóricas ou pragmáticas —observa Perelman — influenciam de forma inevitável osproblemas de interpretação, isto é, os problemas semânticos.Querer tratar estes últimos de uma forma impessoal, comose as questões de sentido fossem independentes das intençõesdos utentes e das suas relações mútuas, é falsear a realidadehermenêutica tal como ela se apresenta em poesia, emteologia, em direito, em filosofia, nas ciências humanas enas comunicações quotidianas»72.

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71 Cf. Ch. Perelman, «Philosophie, Rhétorique et Lieux communs», Bulletin de la Classede Lettres et des Sciences morales et politiques de l'Académie Royal de Belgique, 5ªsérie, T. LVIII, 1972, pp. 144.

72 Ch. Perelman, «Perspectives rhétoriques sur les problèmes semantiques», Logique etAnalyse, nº 67-68, 1974, p. 251. Subl. meu.

As perguntas, somos nós que as fazemos e se asfazemos é porque temos interesse em fazê-las e razões paraas fazer. Se as perguntas nos ocorrem, para retomar a ideiagadameriana, há contudo que dizer que é porque há motivospara que nos ocorram, e esses motivos, ainda que possamnão estar imediatamente explícitos, devem ser tornadospatentes. Só compreendendo e podendo dizer aquilo que,através da interrogação, se pretende provocar, sugerir ouafirmar, se pode falar em aceder à «lógica» da pergunta,dessapergunta, que fazemos ou que nos colocam. Ainterrogatividade aparece, assim, pensada a partir dosefeitos e da intencionalidade do discurso e, portanto, comoum modo de pensamento cuja importância retórica éconsiderável. O questionar não pode deixar de se inserir,nesta perspectiva, na negociação argumentativapela qual sevisa regrar um diferendo ou lidar com o controverso73.Somos, deste modo, conduzidos à temática daargumentação.

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73Cf. Ch. Perelman, O Império Retórico, trad. port., Col. Argumentos, Edições ASA,1993, p. 30.

9. ARGUMENTAÇÃO , RETÓRICA E FILOSOFIA

9.1. O campo de argumentação

É um dado geralmente aceite que na argumentação selida sempre com pontos de vista discursivamenteapresentados, com perspectivas às quais estão subjacentesjuízos de valor e com opiniões sempre passíveis de seremcontestadas e discutidas. Tal não quer dizer, contudo, que deum ponto de vista argumentativo tudo deva ser discutido,mas unicamente que aquele que argumenta considera comodiscutíveis as teses a favor ou contra as quais argumenta.Assim, a constatação de um espaço argumentativo vai a pardo reconhecimento de um campo atravessado por umaproblematicidade intrínseca. Se se argumenta, é porque algonos surge na sua dimensão problemática. E, do mesmomodo, se essa dimensão problemática surge é porque asrespostas que podem ser dadas não constituem soluçõesindiscutíveis, isto é, soluções que, resolvendo essesproblemas, os irradicariam definitivamente enquanto tais.

O que acontece justamente com a argumentação é queela permite tematizar os problemas sem contudo lhes trazera solução; possui potencialidades conclusivas sem contudoenclausurar a conclusividade na imobilidade de umaevidência irrefutável, na indubitabilidade de uma certezaapodíctica ou na unidade de um saber necessário euniversal.

É a este respeito representativa a passagem do Euthyphronde Platão, na qual se pode ler o seguinte:

«Se nós divergíssemos de opinião, diz Sócrates a

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Euthyfron, acerca do número (de objectos num cesto), docomprimento (de uma peça de tecido) ou do peso (de umsaco de grão), não disputaríamos por isso; nãocomeçaríamos uma discussão; bastar-nos-ia contar, medir oupesar e o nosso diferendo estaria resolvido. Estes diferendosnem se prolongam, nem se agravam, a não ser quando nosfaltam esses processos de objectividade; é o caso, precisaSócrates, de quando se está em desacordo sobre o justo e oinjusto, o belo e o feio, o bem e o mal, numa palavra, sobreos valores»74.

A argumentação encontra-se, assim, não do ladodaquilo que pode ser resolvido e solucionadodefinitivamente e sem discussão ulterior, mas do ladodaquilo que, dando azo à manifestação de uma pluralidadede pontos de vista, porventura conflituais e irredutíveis,apela para que os interlocutores negoceiem as suasdistâncias e, sem veleidades de se arvorarem em instânciasúltimas detentoras da palavra derradeira, lidem com osdiferendos que entre eles se estabelecem de uma formainevitável e recorrente.

Mas, mais ainda, o reconhecimento do campoargumentativo e da sua problematicidade passa também pelofacto da argumentação não poder ser dissociada da suaprática, isto é, da contingênciadas situações em que sedesenvolve e, consequentemente, não ser susceptível deformalização.

Não se quer dizer com isto que não seja possívelestudar e aprender técnicas argumentativas ou tornar-se numhábil argumentador; o que se pretende salientar é que oprocesso argumentativo é sempre realizado no concreto,

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74Platão, Euthyfron, 7 b-d.

nesta ou naquela situação, perante este ou aquele auditório,sendo impossível, a priori, definir as estratégias que vão serefectivamente eficazes, ou saber antecipadamente queargumentos usar, como utilizá-los, como dispô-los, qual omomento certo para o fazer e que resultados se irão obter.

A argumentação remete para o contextoe só este podefornecer, caso a caso, as pistas que guiarão no desenrolar doprocesso argumentativo.

É justamente devido a esta incontornável necessidadede lidar com a irrupção da contingência que se pode afirmarque o sentido do cairos, da oportunidade justa, éfundamental na prática argumentativa. Uma prática que,como já dissemos é suscitada quando o que está em causa éproblemático e discutível, e que se justifica tanto maisquanto mais constatamos que, no jogo da vida, somosconstantemente confrontados com situações problemáticascom as quais temos de lidar e perante as quais temos, o maisacertadamente possível, de tomar posição.

A importância deste campo foi sem dúvida reconhecidopor Aristóteles através da distinção por ele estabelecidaentre juízos analíticos e juízos dialécticos: os primeiros,utilizados em ciência, permitem que, a partir de premissas eem obediência a princípios lógicos e a regras de inferência,se conclua de uma forma necessária; os segundos sãoaqueles que encontramos nos debates e nas controvérsias detoda a espécie e que se ligam não à verdade, mas àsopiniões, à sua plausibilidade e à sua verosimilhança.Aristóteles examinou este último tipo de raciocínio nosTópicos e estudou a sua utilização na Retórica.

Contudo, este reconhecimento não bastou para que, histo-ricamente, a argumentação e o campo da argumentação nãoacabassem por ser remetidos para um plano secundário e deinferioridade. É que, à luz do ideal da construção de um

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saber que, para ser digno desse nome e gozar do estatuto decientificidade, requeria as notas de necessidade e deuniversalidade, a argumentação não poderia, no melhor doscasos, deixar de ser considerada como uma lógica fraca ecomo parente pobre duma racionalidade demonstrativa,laminar e inequivocamente conclusiva.

A moldagem da racionalidade científica peloparadigma das matemáticas levou a que este fosso entredemonstração e argumentação se tornasse cada vez maisabismal, e o privilégio atribuído à demonstração acabou porconduzir a uma concepção estreita e acanhada deracionalidade e, consequentemente, a uma limitaçãoindevida e perfeitamente injustificada do domínio em queintervém a nossa faculdade de raciocinar e de provar. Essafoi, pelo menos, a tese sustentada por Chaïm Perelman e porStephen Toulmin, os filósofos que, no nosso século, maisdecididamente procuraram levar a cabo uma reabilitação daargumentação e da retórica e, concomitantemente, procedera um alargamento da noção de racionalidade. Vejamos, pois,mais de perto, os contornos da nova tematização que estesautores propuseram da problemática da argumentação.

9.2. Tematizações contemporâneas da problemática da argumentação: os contributos de Toulmin e de Perelman

A tematização contemporânea da problemática daargumentação, nomeadamente nos dois autores já referidos,teve uma raiz comum e foi portadora de um mesmoprograma. Com efeito, quer no pensamento de StephenToulmin, quer no de Chaïm Perelman, foi ponto de partida aconstatação da insuficiência da racionalidade científica, de

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matriz lógico-matemática, e foi igualmente comum oprojecto de proceder a um alargamento das noções de razãoe de racionalidade. Pode por isso dizer-se que a tematizaçãocontemporânea da problemática da argumentação seencontra associada à conceptualização de uma nova teoria dologos, a uma ideia de racionalidade que, pretendendo sermais abrangente, permitisse, quer proceder a uma reformada lógica (Toulmin) quer acolher, ao lado da lógica, aargumentação (Perelman).

Este enquadramento implicava um lance decisivo queimporta sublinhar: por um lado, ele conduzia a destituir alógica formal do valor paradigmático que a levou a serconsiderada como detentora exclusiva do modelo daracionalidade; levava, por outro, a abordar a argumentaçãode uma forma autónoma, enquanto prática portadora de umaracionalidade própria, essencialmente ligada à concretude dacoexistência humana e aos problemas práticos deladecorrentes.

Delineou-se assim a tarefa de definir a especificidadeda argumentação e, uma vez mais, foi comum aos filósofosacima mencionados associarem, ainda que por viasdiferentes, argumentação e contexto, flexibilizando, com aintrodução deste elemento, a concepção tradicional — istoé, analítica e regida pela validade formal — de argumento.

Em Toulmin, a introdução do elemento contexto é dadaapós a determinação da estrutura formal da argumentação.Uma argumentação implica sempre, segundo este autor, umdado (datum)de que se parte, uma tese (claim)ou seja umaasserção que se reporta a esse dado e uma justificação (warrant)que serve de fundamento à ligação estabelecida entre o dadoe a tese e que pode, no decorrer do processo argumentativo,suscitar um reforço. Destacada esta estrutura formal daargumentação surge então a introdução do elemento

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contexto: é que a aceitação da justificação varia consoanteos domínios e situações em que se argumenta. O que numdomínio pode ser aceite como justificação e servir defundamentação, noutro domínio ou contexto pode não o ser.É que o elemento prático, situacional, bem como aprotocolaridade contextual, são constitutivas da próprialogicidade da argumentação. Como notou, a este propósito,M. Mª Carrilho, a argumentação é «simultaneamente field-invariant e field-dependent. A validade de umaargumentação depende destes dois aspectos, mas compredominância no segundo, uma vez que é dele quedepende, em última análise, a pertinência da argumentação.Obtém-se assim uma nova compreensão formal daargumentação que integra os seus elementos contextuais eque apresenta duas consequências importantes: odesaparecimento das pretensões à universalidade e aemergência de racionalidades locais, de campo, que nãoreconhecem nenhuma racionalidade superior que,canonicamente, as ordene ou hierarquize.»75.

Em Perelman a introdução do elemento contexto naargumentação é feita por intermédio de uma noção tomada daretórica: a noção de auditório. A especificidade dosraciocínios argumentativos residiria no facto deles, ao invésdo que se passa com os raciocínios lógicos (isto é,demonstrativos), se dirigirem sempre a um auditório queprocuram convenver e persuadir e de nunca sedesenvolverem independentemente desse auditório. Por issoPerelman adjectivou de «nova retórica» a teoria daargumentação por ele desenvolvida em colaboração com L.Olbrechts-Tyteca. Para além do mais, o recurso à retórica

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75M. Mª. Carrilho, «Argumentação e contexto», in Caderno de Filosofias, nº 5,Associação de Professores de Filosofia, 1992. p. 25.

servia tanto melhor quanto acabava por ir ao encontro dopropósito destes autores no sentido de enfatizar e de explorara dimensão prática da racionalidade: a retórica, em todas assuas aplicações, centrava-se no particular, não no universal,visava questões particulares e situações concretas e aplicava-se sempre a factos ou dados particulares da experiência e dacoexistência humana. Tornava-se desta forma possível partirpara o estudo da argumentação opondo-a à demonstração, nãotendo o elemento contexto qualquer relevância nesta última esurgindo como fundamental na primeira: é que toda aargumentação, não será demais insistir, dirige-se a umauditório de que não se pode dissociar, sendo este vínculo aoauditório o elemento decisivo da racionalidade própria de quea argumentação é portadora.

Contudo, este recurso à retórica para diferenciar osraciocínios lógicos dos raciocínios argumentativoslevantava, e levanta ainda frequentente, o seguinteproblema: se a especificidade da argumentação é conferidapela dimensão retórica que a atravessa, não será então aargumentação desprovida de racionalidade? Não é a retóricasuspeita de irracionalidade, de fazer apelo à sedução e àsemoções, de ser sempre, como diria Platão, mais ou menosmanipuladora?

É claro que esta pergunta — um velho fantasmafilosófico — parte do pressuposto dualista segundo o qual aracionalidade da razão é desprovida de emoção e aemotividade das emoções desprovida de razão. Coloca,além do mais, um problema ético cuja solução procuraassegurar, à maneira platónica, por via da pureza racional,isto é, proclamando que só a necessidade intrínseca darazãonos imuniza contra a manipulação. Por conseguinte, eeste será ainda o conselho platónico, só na pureza da

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necessidade inteligível pode a paridade humana serassegurada e só aí se pode encontrar refúgio para o risco dastentações que nos enfraquecem, nos desviam da nossaverdadeira natureza e nos afastam do verdadeiroconhecimento.

Ora, dizer que a argumentação é indissociável de umauditório ao qual se dirige e do qual procura obter adesão nãosignifica que argumentar é procurar obter adesão a qualquerpreço nem tão pouco significa que essa adesão seja um fimem si mesmo. E porque não pensar a argumentação comoportadora das melhores e mais bem intencionadas dasatitudes, a saber, respeito por aqueles com quem se fala,apreço pelos semelhantes, forma eticamente elevada decomunicação dialógica? Neste sentido H. Johnstone Jr.escreveu:

«Argumentar com outrem é olhá-lo para além doobjectivo de controlo efectivo, e por isso é precisamentecolocá-lo para além do objectivo do controlo efectivo,contanto que ele seja capaz de ouvir a argumentação e saibacomo é que nós o estamos a considerar. Damos-lhe a opçãode nos resistir, e assim que lhe retiramos esta opçãodeixamos de estar a argumentar. Argumentar é correrinerentemente o risco de falhar, tal como jogar um jogo éinerentemente arriscar-se a perder. Uma argumentação cujavitória nos esteja garantida deixa de ser uma argumentaçãoreal, tal como um jogo cuja vitória esteja garantida deixa deser um jogo real. Um argumentador versado pode sentir-seseguro de que vai ganhar uma argumentação contra alguém,mas se a sua certeza é uma consequência objectiva do

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76Henry W. Johnstone Jr, «Algumas reflexões sobre argumentação», in Caderno deFilosofias, nº 5, Associação de Professores de Filosofia, 1992. p. 39-40.

procedimento que usa, então este procedimento não éargumentação»76.

Deve ficar claro que o recurso à retórica na tematizaçãoda argumentação não deve ser visto como a colocação daargumentação ao lado de uma retórica que se oporia àlógica, mas como a forma de circunscrever um campo deracionalidade simultaneamente liberto da necessidadeinferencial da lógica formal e aberto à mobilidade do jogodas preferências que levam a que se opte por certas teses emdetrimento de outras. Neste campo assim delimitado, oelemento da racionalidade continua presente na rejeição daarbitrariedade e na procura de justificações que, afigurando-secoerentes e razoáveis, nada garante serem necessárias nemuniversalmente partilhadas.

Com a delimitação deste campo de racionalidade situa-do entre o necessário e o arbitrário é também aberta uma viade ultrapassagem de uma das principais dificuldades comque a tradição filosófica se tinha defrontado, a saber, com aincapacidade de fundamentar a racionalidade dosraciocínios práticos e de, dessa maneira, poder acolher osjuízos de valor (sejam eles morais, estéticos, políticos, etc.)no âmbito dessa racionalidade. Com efeito, a tradiçãofilosófica falhara sempre no capítulo da filosofia prática,pois se a concepção de razão de que se nutria lhe permitialidar com juízos que poderiam ser falsos ou verdadeiros ecujo valor cognitivo era estabelecido por procedimentoscientíficos capazes, se não de os verificar ou falsificar, pelomenos de os confirmar ou infirmar, já os juízos de valor queexprimem atitudes e avaliações de um indivíduo ou de umgrupo e que envolvem necessariamente preferências e a suajustificação pareciam escapar à alçada da razão e acabavampor ser votados ao irracional. É conhecido o falhanço do

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projecto cartesiano para converter a sua moral provisórianuma moral científica; é conhecida a ideia de Humesegundo a qual as acções podem ser louváveis oucensuráveis, mas não podem ser razoáveis ou desrazoáveis;é ainda conhecida a posição de certos filósofos analíticossegundo os quais qualquer proposição que, ao ser analisada,não possa ser reduzida a uma forma logicamente coerente éuma proposição desprovida de sentido; é finalmenteconhecida a lacuna que a abordagem da filosofia práticarepresenta no âmbito do positivismo.

Ora foi a estas conclusões que tanto Toulmin comoPerelman reagiram. Pensando o domínio daargumentatividade como «o campo magnético em que aargumentação capta a limalha não-matemática e não-experimental do espírito» (a expressão é de A. Robinet), erapossível acolher os juízos de valor sem que estes fossemconsiderados como mera expressão de desejos e de emoções(e assim eram considerados no quadro da «teoria emotivados valores») e afirmar mesmo que os argumentos não sãoinferências mas justificações ou, ainda, que naargumentação a inferencialidade é movida pelo esforço dejustificar a pertinência das nossas preferências.

Numa palavra, entre a possibilidade de fazer uso de ummodelo de prova (matemática ou experimental) que tudopretende esclarecer de uma forma inequívoca e aimpossibilidade de aplicar critérios universais àparticularidade e à contingência das nossas preferências —votando-as ao arbitrário —, existia um terceira via: a via daargumentação através da qual se procura justificar aplausibilidade e a razoabilidade das teses e das opçõesdefendidas. É neste sentido que para Toulmin a questão

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77S. Toulmin, The Uses of Argument, Cambridge University Press, 1958, p. 6.

primária da lógica não diz respeito à forma de inferir, mas àcapacidade de justificar, de mostrar que «as conclusões aque se chegou são aceitáveis porque são conclusõesjustificáveis»77.

Também para Perelman «raciocinar e provar não éapenas calcular e a lógica não se pode contentar com oestudo da prova formal. Este mesmo estudo não adquire asua significação senão nos quadros mais gerais de umateoria da argumentação»78.

Mas, no quadro que temos vindo a delinear, um outroaspecto interessa considerar. Como é sabido, o modelomatemático foi na tradição o modelo inspirador daracionalidade filosófica. Toda a gente conhece a famosafrase gravada no frontispício da Academia de Platão, aambição leibniziana de construir uma mathesis universalis,a construção espinosiana de uma ética demonstrada àmaneira dos geómetras, o projecto cartesiano de transporpara o pensamento filosófico o rigor e a certeza dasmatemáticas. Lembremos, deste último filósofo, umapassagem da segunda regra enunciada nas Regras para adirecção do espírito:

«E a conclusão de tudo o que precede não é, claro, queseja necessário aprender somente a Aritmética e aGeometria, mas exclusivamente que, na procura do rectocaminho da Verdade, não nos devemos ocupar de nenhumobjecto sobre o qual não possamos ter uma certeza tãogrande como a das demonstrações da Aritmética e daGeometria»79.

Tanto para Toulmin como para Perelman esta propostaacabou por se revelar altamente empobrecedora e redutora

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78Ch. Perelman, «Logique, langage et communication», in Justice et Raison, Éditions del’Université de Bruxelles, 1972, p. 195.

79Œuvres et Lettres, Bibliothèque de La Pléiade, Éditions Gallimard, 1953, p. 42.

do alcance da nossa faculdade de raciocinar. Ambos lhereagiram, propondo um novo modelo inspirador daracionalidade: o modelo jurisprudencial.

Para Toulmin o recurso à «analogia jurisprudencial» noempreendimento de analisar a natureza dos processosracionais, para além de permitir manter no centro das atençõesa função crítica da razão e não apenas a sua capacidadecalculadora, permite também soltar a lógica da rigidez do puroformalismo e torná-la comparativa, mais empírica e maishistórica80. Escreveu, por isso, que «a lógica é umajurisprudência generalizada. As argumentações podem sercomparadas a processos legais; e as teses que apresentamos epelas quais argumentamos em contextos extra-legais podemser comparadas a teses apresentadas nos tribunais, podendoainda os casos em que cada tipo de tese se afigura como bomserem comparados uns com os outros. (...) o nosso tema será aprudentianão apenas de jus, mas mais genericamente deratio»81.

Dentro da mesma ordem de ideias Perelman afirmou que«o modelo matemático invocado tão frequentemente pelosfilósofos racionalistas falseou completamente o ideal de racio-nalidade, impediu uma análise séria da argumentação etornou impossível ou ilusória a solução para o problema darazão prática, que me parece essencial em filosofia»82, eencontrou no recurso ao modelo jurídico a possibilidade dechegar à concepção de «um outro tipo de racionalidade».

No entanto, e como já se referiu, se o objectivo de Toulminera o de proceder a uma reforma da lógica, introduzindo noseu âmbito de estudo aspectos informais dados pela

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80S. Toulmin, The Uses of Argument, Cambridge University Press, 1958, p. 257.81 Idem ibidem, p. 7.82Ch. Perelman, «L’ideal de rationalité et la règle de justice», in Le Champ de

l’Argumentation, Presses Universitaires de Bruxelles, 1970, p. 293.

variabilidade da aceitação das argumentações em função dosdomínios (fields) em que elas são desenvolvidas, já o intuitode Perelman, inicialmente centrado na constituição de uma«lógica do preferível» e na consequente elevação daargumentação a procedimento racional de pleno direito,acabou por culminar na elaboração de uma teoria daargumentação, também designada por «nova retórica». Masem que consiste afinal a novidade da tematizaçãoperelmaniana da retórica?

9.3. O significado da reabilitação e da renovação perelmaniana da retórica

Consideremos, antes de mais, alguns dos motivosgerais que levam ao ressurgimento da retórica.

A retórica aparece principalmente em tempos de crise,em épocas em que aqueles que pareciam ser sólidosprincípios directores da vida humana se começam adesmoronar, a perder credibilidade, a insatisfazer, a serquestionados e a ser submetidos à controvérsia. A retóricaemerge em períodos de instabilidade e de mudança, quandose começa a sentir a ausência de princípios definitivos eincontestados, quando as respostas para as questõeshumanas se tornam ambíguas, passíveis de alternativasvárias, quando, em suma, nada assegura ou garanterespostas óbvias, únicas e definitivas. O surgimento daretórica está assim associado a épocas de instabilidadecultural, ao colapso de valores e modos de pensamentotradicionais, ao aumento do individualismo. Maisprecisamente o surgimento da retórica é solidário da perdade firmeza dos fundamentos culturais e do modelo de razãogeneralizado a todos os níveis pela sociedade. A retóricaresponde, neste sentido, à necessidade de reavaliação ereinvenção que épocas de incerteza e insegurança suscitam

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no homem. Ela ressurge quando a realidade histórica serevela como dinamismo e quando este dinamismo se tornainquietante, retirando ao homem o conforto da confiança emcritérios e quadros de inteligibilidade entretanto tornadosestreitos e inadequados para a compreensão do mundo que orodeia. A retórica ressurge, enfim, em épocas de renovaçãoacelerada que obrigam o homem a reestruturar, a todos osníveis, os seus modos de vida, em épocas em que o sentidocrítico se torna uma necessidade permanente e a atitudecrítica a única atitude possível para o homem aberto que sepretende minimamente esclarecido e interveniente.

Mas, se a retórica se encontra ligada a períodos decrise, é preciso não esquecer que das crises não resultamapenas escombros e destroços. Há um lado produtivo dascrises, um lado em que uma insuspeitada, e muitas vezesassustadora, riqueza deslumbra e desafia a reinvenção dohomem e do mundo. E se as crises derrubam muitas vezes ohomem, trazendo-lhe dor e desespero, é também certo que éatravés delas que o homem se vai reinventando emetamorfoseando e, em cada metamorfose, como quevoltando a despertar para a vida. Ao homem pálido eincrédulo da decadência não é raro suceder-se o homemenérgico e injectado de sangue novo. E se porventura comas crises se pode aprender algo, se a dor e o desespero nãose limitarem a revelar a vanidade da sua existência e levar apraguejar nostalgicamente contra um deus ausente ouentretanto morto, será possível e desejável esperar que,nesse homem que renasce, o desejo de se afirmar seequilibre com o sentido de uma prudência que bane toda aeuforia gratuita e arroubos de intolerância e cegueira.

A retórica surge hoje, mais do que nunca, comoresposta à necessidade de enquadramento de um pensar eagir críticos, isto é, libertos das tiranias das soluções únicas

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e vigilante quanto às consequências nefastas de devaneiosutópicos. Suscita um pensamento que se afere no diálogo ena linguagem e que se pensa tanto a partir das suasconsequências sociais como da sua viabilidade prática.

Depois destas considerações de ordem geral, passemosà questão da actual renovação da retórica a que estáindissociavelmente ligado o nome de Perelman. Diga-se, emprimeiro lugar, que os seus trabalhos se ligam não só àrenovação como também à reabilitação da retórica. Comefeito, a retórica foi na nossa tradição alvo demarginalização. A história desta marginalização começa,como já referimos, em Platão e insere-se, naturalmente, nocontexto do seu combate aos sofistas. Ainda que Platãodistinga entre a retórica dos charlatães, oca e verbalista,interesseira e amoral, e a retórica do filósofo, aquela que,fazendo falar a verdade, convenceria os próprios deuses, ofacto é que a retórica ficou tradicionalmente associada, nãoà actividade racional, mas ao floreado e aos artifícioslinguísticos, à eloquência, às figuras de estilo, ao aspectoartístico do discurso e da expressão, à persuasão obtida, nãopelo discernimento dos auditores, mas pelo efeitoencantatório sobre eles exercido.

Para Aristóteles, a retórica consiste no poder de divisaros caminhos possíveis de persuadir as pessoas sobrequalquer assunto dado83, o seu objecto é a arte de falar empúblico de uma forma persuasiva e a sua função é a de«tratar temas sobre os quais devemos deliberar e sobre osquais não possuimos técnicas, perante auditores que nãotêm a faculdade de inferir por numerosos degraus e deseguir um raciocínio desde um ponto afastado»84. De acordo

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83Aristóteles, Retórica, 1355 b.84 Idem ibidem, 1357 a.

com esta concepção, a retórica encontra-se associada quer àignorância dos auditores, quer às suas limitações.

Ela surge, neste quadro, como um expediente mais oumenos refinado e seguro que permite manipular ingénuos eignorantes. E bastará o que foi dito para se compreender osentido pejorativo — se comparada, por exemplo, com anobre dedicação do filósofo à busca da verdade — que aretórica acaba por assumir.

Assim, a reabilitação da retórica passa — digamo-lomuito esquematicamente — por dois pontos essenciais: oprimeiro é uma recusa de princípio, a saber, a de que não hádetentores do saber e da verdade; o que não quer dizer,naturalmente, que os homens não possuam competências esaberes diferentes e desiguais, mas apenas que estadiferença e desigualdade não legitimam, por si só, a suaautoridade e o saber. A reabilitação da retórica passa assimpelo primado do diálogo e da prova dialógica comoinstância incontornável de aferição das pretensões deverdade. O que consiste em mostrar que os debates e ascontrovérsias não são desprovidos de logos e não podem,por isso, ser reduzidos a questões de ordem meramenteverbal. As figuras de estilo, por exemplo, estão longe de sermeras ornamentações do discurso, possuindo um valorargumentativo da maior importância. De acordo com estaperspectiva, reabilitar a retórica significa libertá-la doconjunto de conotações pejorativas que conduziram à suadesvalorização e depreciação.

Reabilitação da retórica mas também, como dissemos,renovação da retórica. Em que consistiu, pois, a renovaçãoperelmaniana da retórica?

Referimos já, anteriormente, que o objecto da retóricapara os antigos era, antes de mais, a arte de falar em públicode forma persuasiva, de modo a obter a sua adesão ou o seu

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acordo às teses apresentadas. A retórica dizia, pois, respeitoà arte de falar, ao discurso oral, que se pronunciava napraça pública para o conjunto de pessoas aí reunidas.

Contudo, na perspectiva da nova retórica, que retomada retórica antiga a noção de auditório e os seus corolários,as noções de adesão e de acordo, a ideia de auditório éconsideravelmente ampliada.

Em primeiro lugar, enquanto a retórica antiga, comovimos, restringia o auditório ao conjunto de pessoasreunidas na praça pública, na perspectiva da nova retóricaentende-se por auditório o conjunto daqueles que o oradorquer influenciar por intermédio do seu discurso, ou ainda,mais abreviadamente, aqueles a quem a argumentação sedirige. E, acrescente-se, este discurso ou argumentação podeser tanto oral como escrito. Esta definição mais ampla deauditório permite dizer que a argumentação se dirige a todaa espécie de auditórios e a fazer uma importante distinção,nomeadamente para uma abordagem da filosofia, entre trêstipos fundamentais de auditório.

Assim, por exemplo, quando se procede a umadeliberação íntima ou quando se argumenta consigo mesmo,podemos considerar que estamos perante um auditórioconstituído pela própria pessoa.

Mas, se em vez de se argumentar consigo mesmo anossa argumentação se dirigir a um outro interlocutor, comoacontece frequentemente nos diálogos platónicos, podemosdizer que argumentamos com um único auditor, e que oauditório é constituído por uma só pessoa, ou queargumentamos perante um só interlocutor.

Uma terceira situação é aquela em que argumentandopara várias pessoas pretendemos todavia que o alcancepersuasivo do nosso discurso não abranja apenas essaspessoas actualmente perante nós. Podemos querer, mais do

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que persuadir aqueles que estão perante nós, convencer sejaque pessoa for. E quando assim é, dir-se-á que o auditóriopara o qual se dirige a nossa argumentação é um auditóriouniversal. Assim, do ponto de vista da nova retórica, todo odiscurso com alcance persuasivo e de convencimento, sejaele mediado pela palavra oral ou pela escrita, é um discursoargumentativo que, enquanto tal, se dirige a um certo tipode auditório.

Em segundo lugar, na nova retórica, as noções dediscurso e de orador tornam-se igualmente mais amplas.

Assim «discurso» equivale a dizer, neste novo quadro,argumentação, seja ela pensada silenciosamente, falada ouescrita; por seu turno, por «orador» entende-se aquele queapresenta a argumentação.

Em terceiro lugar, e como corolário, a nova retóricaconsidera que todo o discurso que não aspira a uma validadeimpessoal — seja a conversa em torno de uma mesa defamília, o sermão de um padre, o debate entre especialistas— se funda no recurso a procedimentos argumentativoscujas estruturas se podem tematizar e analisar.

Não é assim de estranhar que a nova retórica, que não éuma teoria da persuasão mas uma teoria do discursopersuasivo, (o que não quer, obviamente, dizer que, porexemplo, o uso das armas, do dinheiro, do corpo, dosanúncios na televisão, etc., não sejam formas muito eficazesde persuasão, mas apenas que a teoria da argumentação nãose interessa por essas modalidades de persuasão, limitando-se ao estudo da persuasão por meio do discurso e dalinguagem) pretenda ser uma componente fundamentalnuma educação liberal e de feição humanista.

Considerando que só uma competência argumentativa— que nos capacita para decompor os raciocínios, analisar aintenção e o alcance dos discursos, ponderar a pertinência

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dos argumentos — nos permite posicionar crítica,esclarecida e activamente face seja a que discurso for,facilmente se verá que a nova retórica, ao contrário de temeras manipulações pelo discurso, aposta em mostrar os meiosatravés dos quais é eventualmente possível fazê-lo,inventaria técnicas persuasivas nele utilizadas e fornece,desta forma, a quem tema a manipulação, os meios de sedefender. Ela é, neste sentido, um instrumento indispensávelpara todo o pensamento e toda a filosofia crítica. Em vez desonhar com a honestidade de um discurso verdadeiro, optapor se confrontar com a necessidade de se aferireminteresses, faz do discurso lugar onde se jogam interesses eprocura proporcionar aos indivíduos a consciência de que,queiram ou não, estão envolvidos no jogo e que, neste jogo,o discernimento argumentativo, a par da capacidade parafazer valer a sua determinação pessoal, são elementos semos quais não nos poderemos subtrair à queda em constantes«fora de jogo». O que, naturalmente, não quer dizer que ojogo não tenha regras e que não haja que jogá-lo comfairplay. Quer somente dizer que nos jogos da vida cada umé simultaneamente criador e árbitro e, como tal, é também aele que lhe compete lutar para que se joguem jogosmelhores e que lhe cumpre velar pela justa disputa de cadajogo em decurso.

9.4. O interesse filosófico de uma teoria da argumentação

Perelman espelhou bem, na seguinte frase, asconsequências que resultam quando se procede a umaabordagem da filosofia a partir dos contributos da teoria da

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85Ch. Perelman, «De l’évidence en métaphysique», in Le Champ de l’Argumentation,Presses Universitaires de Bruxelles, 1970, p. 236.

argumentação: «Pessoalmente acredito na significação e naimportância da filosofia, mas não acredito, nem nanecessidade, nem na evidência das suas teses»85.

Com efeito, a teoria da argumentação é filosoficamenterelevante a vários níveis. Ela implica, antes de mais, nãotomar a filosofia como um discurso do mestre, nem ver osfilósofos como os porta-vozes da verdade. No primeirocaso, a autoridade prevaleceria sobre o livre exame, e ofilosofar não poderia estar senão preso à tirania dodogmatismo. No segundo caso, os fi lósofos, aoconsiderarem que o seu discurso é o discurso da verdade,transportam para a filosofia a necessidade da revelação, eapresentam-se eles mesmos como os mediadores dessarevelação. Quer no primeiro quer no segundo casodeparamo-nos com um inconveniente dificilmente aceitável:é que, assim considerada, a filosofia fica destituída de toda acompetência crítica, a qual, todavia, sempre figurou comouma das suas notas caracterizadoras. Ora, se a filosofia estáessencialmente ligada a uma atitude crítica, facilmenteperceberemos que ela não pode, para se desenvolver,fundar-se seja no recurso à autoridade que põe fim àsdiscussões, seja na pretensão do filósofo a ser um iluminadoou um eleito a quem a luz da verdade guia as palavras econfere um fundamento profético. A filosofia torna-serealmente uma actividade crítica quando, descartadas asideias de que o filósofo não é nem um tirano, nem umprofeta, despertamos para a constatação de que não háverdade senão admitida86.

A filosofia, mais do que se encontrar ligada à posse daverdade, associa-se à crença na verdade e à aspiração detornar a verdade em que o filósofo crê admitida por outras

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86Ch. Perelman, «L’ideal de rationalité et la règle de justice», in Le Champ de l’Argumentation,Presses Universitaires de Bruxelles, 1970, p. 307.

pessoas e, eventualmente, por todas as pessoas ou, emtermos perelmanianos, pelo chamado auditório universal.Ora esta admissão, esta tentativa de fazer admitir certasteses, só pode ser realizada através de meiosargumentativos.

Aliás, se quiséssemos, como durante muito tempo sefez, decalcar do modelo das ciências uma pergunta quepermita caracterizar a filosofia, a saber, qual é o método dafilosofia, estaríamos em condições para responder que ométodo próprio da filosofia é a argumentação87.

Mas, se filosofar é implicitamente argumentar, então ofilósofo não é aquele que impõe as suas ideias aos outros,mas o que propõe teses ao assentimento de um auditório.Aliás, o que distingue o filósofo do não-filósofo não é o tipoou o papel que, para cada um, desempenhariam as suasintuições, mas, insistamos na ideia, o facto do filósofo, aocontrário do não-filósofo, ter de inserir as suas intuições emquadros que as tornem admissíveis.

Podemos, em suma, dizer que o interesse filosófico dateoria da argumentação reside no facto desta permitircompreender melhor a natureza do próprio empreendimentofilosófico, definindo-o em função de uma racionalidade que— não dissociada do elemento prático e local a que seaplica, nem separada da problemática das intenções, dosefeitos e das estratégias do discurso — ultrapassa, pelaênfase dada à noção de auditório e à dimensão persuasivapresente nos procedimentos argumentativos, a ideia deverdade. Pelo menos, tal como ela foi concebida, isto é, emtermos de unicidade e de atemporalidade, pela tradição

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87Cf. Ch. Perelman, O Império Retórico, trad. port. Col. Argumentos, Edições ASA,1993, p. 171.

88Cf. Ch. Perelman, «L’ideal de rationalité et la règle de justice», in Le Champ del’Argumentation, Presses Universitaires de Bruxelles, 1970, p. 303.

filosófica.A teoria da argumentação é também filosoficamente

importante porque permite uma nova abordagem da históriada filosofia, a qual consistiria em ver quais são osargumentos valorizados e desvalorizados pelos filósofos eem estabelecer uma correlação entre a ontologia de umpensador e os preceitos metodológicos por ele utilizadospara a sustentar88.

Para concluir, e na linha do que já referimos,acrescente-se que só à luz dos contributos de uma teoria daargumentação a filosofia poderá ser, efectivamente,compreendida como atitude crítica e aberta.

9.5. Da argumentação à retórica

A teoria da argumentação tem, como vimos, a virtudede colocar a filosofia sob o signo do pluralismo e de aafastar da velha figura do tribunal filosófico de últimainstância, tornando-a menos arrogante e abrindo espaço parauma tematização que acolhe a problematicidade, aconflitualidade e a controvérsia como dimensões que, deuma forma inevitável e recorrente, atravessam a sua própriaactividade. Como escreveu M. Meyer, «a reabilitação doretórico no seio da nova retóricaconsiste em tomar, enfim,consciência de que a argumentação filosófica não tem nemo rigor das ciências formais nem os recursos experimentaisdas ciências empíricas, que ela trabalha, portanto, comnoções confusas submetidas incessantemente ao jogo socialdo debate contraditório que não poderia ser evacuado nem

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89M. Meyer, «Chaïm Perelman», in Dictionnaire des philosophes, Paris, P.U.F., 1984, p. 2032.90Cf. Ch. Perelman, O Império Retórico, trad. port., Col. Argumentos, Edições ASA,

1993, p. 105. E TA, pp. 252-253.

pelo simples recurso à experiência nem pelo golpe devarinha mágica da formalização que exclui as alternativaspara as questões tratadas. Forçoso é permanecer com estasquestões e fornecer os meios de as discutir como tais»89.

Desenvolvida à margem do «debate ontológico»90,alheia a preocupações essencialistas e distante de umaconcepção de racionalidade polarizada na oposiçãonecessidade/arbitrariedade, a teoria da argumentação apontapara uma inegável vertente pragmática. Por um lado, recusaa consideração descontextualizada da interactividadediscursiva, acentuando sempre a necessidade de tomar emconsideração a importância das intenções, dascircunstâncias, dos contextos, das estratégias, dasconsequências e dos efeitos do discurso. Por outro lado, epara além desse movimento de circunscrição que convocatoda uma série de factores locais para a compreensão do queestá em jogo nos fenómenos da interactividade discursiva, ateoria da argumentação enfatiza também o lado dacontingência ao lembrar que toda a argumentação sedesenvolve num tempo útil, e não num tempo de acçãoilimitado91.

Mas importará assinalar, nesta concepção que realça asexigências que a acção exerce sobre o pensamento e queentrosa as crenças, não em fundamentos ou princípiosnormativos, mas na consideração das suas consequências edos seus efeitos, os poderes da retoricização configuradoresdas diferentes versões emergentes na linguagem surgemcomo nucleares no tecer da variedade de jogos deracionalidade que instituem.

Esta não foi, contudo, uma consequência que o

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91Cf. Ch. Perelman, «Le raisonnement pratique», in Le Champ de l’Argumentation,Presses Universitaires de Bruxelles, 1970, p. 188.

92Cf. TA, p. 13.

fundador da nova retórica tivesse retirado da sua teoria daargumentação. Preso à oposição entre demonstração eargumentação, a sua tentativa de alargar a concepçãotradicional de racionalidade e de fazer acolhercomplementarmente92, isto é, ao lado da teoria dademonstração, uma teoria da argumentação, acabou por nãoquestionar o núcleo duro da racionalidade científica. E, se écerto que encontramos na sua obra várias passagens queindiciam uma insatisfação relativamente à oposição lógicaformal/argumentação — escreve, por exemplo: «raciocinare provar não é apenas calcular e a lógica não se podecontentar com o estudo da prova formal. Este mesmo estudonão adquire a sua significação senão nos quadros maisgerais de uma teoria da argumentação»93, ou ainda, «não éopondo nitidamente a verdade à opinião, a teoria à prática ea demonstração à argumentação que se elabora umametodologia do saber válido»94 — é também verdade queinsiste sempre numa contrastação dos dois domínios, nãochegando nunca a propor uma abordagem unificada dosmesmos, a qual implicaria uma tematização da retórica nãoem função da noção de auditório mas, e como propôs M.Meyer, em função «de uma teoria da linguagem na qual, dalógica à literatura, passando pelas situações de todos osdias, se lide com a problematicidade. Esta teoria geral tem opropósito de unificar, mas também de conferir umfundamento objectivo à razão retórica»95.

Perelman, com efeito, usou a retórica como operador da

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93Ch. Perelman, «Logique, langage et communication», in Justice et Raison, Éditions del’Université de Bruxelles, 1972, p. 195.

94Ch. Perelman, «Une théorie philosophique de l’argumentation», in Le Champ del’Argumentation, Presses Universitaires de Bruxelles, 1970, p. 22.

95M. Meyer, «Problematology and rhetoric», in James L. Golden e Joseph J. Pilotta,Pratical reasoning in human affairs, D. Reidel Publishing Company, 1986, p. 134.

distinção entre demonstração e argumentação, irradicando oesforço persuasivo da primeira e afirmando a suaincontornabilidade na segunda. Com isso foi levado aconsiderar a retórica como subsidiária do fenómeno deadesão visado pela argumentação, identificou-a com adimensão persuasiva do discurso dirigido a outrem, masacabou por restringir o seu alcance ao ligá-la estreitamente àcapacidade de se lidar com o conflitual e com o controverso.Partindo do pluralismo, da conflitualidade e dainevitabilidade do confronto de perspectivas, não sepreocupou, pois, em averiguar onde radicava a emergência deuma tal conflitualidade, procurando pôr antes em evidênciaos meios e os processos de lidar discursivamente com ela.

Ora, foi justamente uma tal preocupação que levouMichel Meyer a propor uma abordagem problematológicada linguagem. Segundo este filósofo, o uso da linguagemremete sempre para a articulação da diferençaproblematológica. Nele está sempre em jogo a diferençaentre problemas e soluções e activa a tensão inerente ao parquestão-resposta em que a linguagem encontra a suaunidade constitutiva. Na linguagem estamos constantementea lidar com a problematicidade e o seu uso — que seinscreve no quadro geral da acção humana — é resolução deproblemas96. Ora é precisamente isso que importacompreender. De facto, como é que, através da linguagem,resolvemos problemas?

Antes de mais, é preciso acentuar que falar é semprearticular pressupostos e enunciados, estabelecer relaçõesentre o implícito e o explícito. Por exemplo, na pergunta«onde é que vamos jantar?», pressupõe-se que se vai jantare que, portanto, esse é implicitamente um ponto que não

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96Michel Meyer, Logique, Langage et Argumentation, Hachette, 1982, p.122.

suscita questões nem levanta problemas; assim, apesar deexprimir uma interrogação, a referida pergunta apresenta-sesimultaneamente como solução. Não, obviamente, daquestão que coloca, mas sim de uma outra questão — a desaber se se vai ou não jantar — que, por estarimplicitamente respondida, deixa de fazer problema.Também numa exclamação como, por exemplo «Sou contraa pena de morte!», estamos desde logo perante uma respostaao problema da justiça ou da injustiça da pena de morte e,ainda que sem o formular explicitamente, é relativamente aele que o locutor propõe, de uma forma explícita, a suaopinião. No entanto, e para continuar nos exemplos, sealguém que se dirige a um determinado local disser ao seuacompanhante «não sei que caminho tomar», estamos jáperante um caso em que a solução do problema passa pelasua expressão, remetendo-se assim a sua resolução paraoutrem. É por isso que Michel Meyer afirma existiremapenas duas maneiras de lidar com um problema através dalinguagem: «ou o exprimimos, porque a resolução dependede outrem, ou damos a solução a alguém que se interessapela questão ou a quem interessamos, eo ipso, pela questãotratada. Compreendemos então que a linguagem é um fazerfazer directono primeiro caso, e um fazer fazer indirectonosegundo, pela sugestão de uma conclusão sobre a questãoresolvida e tratada explicitamente»97.

Ora, foi a incompreensão da dimensãoproblematológica da linguagem que conduziu a umaconcepção proposicionalista do logos, fortemente criticadapor Michel Meyer. É que esta, em vez de articular aproblematicidade do par questão-resposta, subordina acolocação das questões à lógica das respostas (lembremo-

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97 Idem ibidem, p. 122.98Cf. M. Meyer, A Problematologia, Publicações Dom Quixote, 1991, p. 88-93.

nos do paradoxo doMénon). Considerando que aquilo quejustifica uma resposta nada tem a ver com a questão que elaresolve98, o proposicionalismo conduz necessariamente àautonomização do responder relativamente ao questionar,autonomização que é levada a cabo através de umaconcepção do responder como proposição ou juízo (que éassim tomado como unidade da razão) e que culmina nairradicação da problematicidade. «O logosproposicional —escreve Meyer — nasceu da necessidade de evacuar oproblemático, não por uma teoria do responder que ocontinuasse a pressupor, mas por uma teoria do juízo que oevacua pura e simplesmente.»99

No interior de uma concepção proposicionalista derazão a retórica será vista, de Platão e Aristóteles aPerelman, como «contraditoriedade de proposições, e nãocomo reenvio a uma questão que, apenas ela, permitiriacompreender porque é que a oposição é possível erelativamente a quê ela o é.»100. Mas, reduzida a retórica àconflitualidade de proposições e continuando o objectivo darazão a ser o de decidir entre alternativas, o de chegar a umaconclusão, o de justificar a sua aceitação, torna-se evidentea superioridade da lógica relativamente à retórica: ela éintrinsecamente convincente, convence enquanto tal,elimina as alternativas reconduzindo-nos à unicidade donecessário. Ora, essa capacidade de acabar liminarmentecom a conflitualidade e com a contraditoriedade dasproposições não a encontramos na retórica. Por isso,

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99Michel Meyer, «De la fin de la raison propositionnelle» in A. Lampereur (Dir),L’homme et la rhétorique, Méridiens Klincksieck, 1990, p. 77.

100Michel Meyer, «Pour une anthropologie rhétorique», in M. Meyer (Ed.), De lamétaphysique à la rhétorique, Éditions de l’Université de Bruxelles, 1986, p. 129.

101Michel Meyer, «Pour une rhétorique de la raison», in A. Lampereur (Dir), L’hommeet la rhétorique, Méridiens Klincksieck, 1990, p.154.

esclarece Meyer, «o mínimo que podemos dizer é que aretórica se encontra numa situação de inferioridade, poissitua-se aquém do estabelecimento da verdade e não podedecidir, de uma vez por todas, aquilo que opõe, já que opõe.(...) Se considerarmos a retórica como um procedimentopossível para decidir entre proposições, ela seráforçosamente inferior à ciência e à lógica, colocando-seigualmente fora do campo literário. A literatura nãoargumenta, e a ciência encontra-se para lá de toda aargumentação, devido aos seus métodos de justificaçãoproposicional que reduzem a oposição pelo absurdo».101

Neste quadro, Meyer pensa que a efectiva reabilitaçãoda retórica não passa, como acontece em Perelman, por lheconferir direito de cidadania na esfera duma racionalidadeem que teria que coexistir com o logicismo. Se é certo queeste perde o seu monopólio, o facto é que não perde a suapreponderância, já que não é minado nos seus fundamentos.A reabilitação da retórica não pode ser feita, assim, nem apartir de uma coexistência forçada entre demonstração eargumentação, nem a partir de si mesma. A sua reabilitaçãoconsumar-se-á quando, compreendidas a partir de ummesmo processo, tanto a lógica como a argumentaçãosurgirem, precisamente, como duas das suas modalidades. Oque quer dizer que, na perspectiva de Meyer, a reabilitaçãoda retórica é solidária da filiação, quer da lógica, quer daargumentação, no processo de questionamento. Desse pontode vista, pode então dizer-se que «a lógica e a argumentaçãojá não são duas realidades distintas, sendo uma inferior àoutra. São sim duas modalidades de um mesmo processo dequestionamento. Na lógica, a questão é decidida de um

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102Idem ibidem, p.159.103Idem ibidem, p. 164.

modo unívoco e pode decidir-se que uma questão não podeter uma determinada solução (Gödel). Quando a decisão daquestão não é susceptível de uma tal formalização, então édecidida de outro modo, mas nem por isso pior decidida.»102

Assim consideradas, ambas remetem para a inferênciaproblematológica, inferência que consiste na relaçãoquestão- -resposta; aquilo que caracteriza a inferênciaproposicional é o facto dela articular as questões e asrespostas unicamente no registo assertórico103 daapodicticidade através do qual suprime a problematicidade,ao contrário do que se passa com a inferênciaproblematológica que, articulando igualmente questões erespostas, ao mesmo tempo que responde exprime também,pois essa é a sua função, as questões que resolve.

Deste modo somos encaminhados para um novatematização da retórica, cuja unidade remete para a noçãode problema, tal como a sua fractura remetia para aproposicionalização da razão. Como escreve Meyer, «aproposição visa tratar a alternativa irradicando-a, quando aunidade da retórica exigia que a alternativa fosseconsiderada como um autêntico problema. Aquilo que é eaquilo que não é, em vez de reenviar para uma disjunção, ados conflitos e das figuras, exprimirá um problema. E daretórica tradicional passaremos, muito naturalmente, àanálise problematológica.»104

Será bom de ver que, nesta nova tematização daretórica, a dimensão proposicional torna-se verdadeiramenteinessencial e a sua polarização em torno da noção de

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104Michel Meyer, «Y a-t-il um fondement possible à l’unité de la rhétorique?» in Meyere Lampereur (Ed.), Figures et conflits rhétoriques, Éditions de l’Université deBruxelles, 1990, p.256.

105Michel Meyer, «As bases da retórica», in M. Mª., Carrilho (Org.), Retórica eComunicação, Edições ASA, 1994, p. 42.

106Idem ibidem,p. 42.

problema permite desprendê-la do vínculo que Perelman lhetinha estabelecido com o auditório e com o fenómeno daadesão e concebê-la, de uma forma consideravelmente maisampla, como «negociação da distância entre os homens apropósito de uma questão, de um problema.»105 Destaforma, a retórica aponta para a esfera da intersubjectividadee para o modo como os sujeitos negociam, na comunicação(isto é, através de uma qualquer linguagem, seja ela racionalou emotiva106), as suas diferenças. E nesta negociação dasdiferenças, a distância entre eles tanto pode ser aumentada,diminuída, como mantida. Assim, escreve ainda Meyer, aretórica é aquilo «que dá forma aos problemas, mas éigualmente uma relação entre problemáticas, definidas porhomens e situações. Uma relação com o mundo, em que oOutro é determinante, como um implícito, uma ausência quevagueia para aquém da linguagem e lhe condiciona o uso.(...) Este jogo da identidade e da diferença fundamenta alógica da retórica »107.

Torna-se assim óbvia a maior amplitude da concepçãode retórica proposta por Meyer relativamente àargumentação tal como Perelman a definiu, isto é, como oconjunto de «técnicas discursivas que permitem provocar ouaumentar a adesão dos espíritos às teses propostas ao seuassentimento»108. Esta maior abrangência verifica-se a doisníveis. Em primeiro lugar, a argumentação, visando aadesão, enfatiza o estabelecimento de uma proximidade, acriação de uma identificação, a procura de um acordo, oque, na concepção de retórica proposta por Meyer e na quala argumentação surge como uma das modalidades daretórica, representa apenas uma das suas possibilidades. Em

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107M. Meyer, «Argumentação e questionamento», in M. Mª. Carrilho (Org.), Dicionáriodo pensamento contemporâneo, Publicações D. Quixote, 1991, p. 15.

108TA, p. 5.

segundo lugar — e será bom relembrar que, após definir aretórica como negociação da distância entre sujeitos, Meyerrefere que esta negociação tem lugar na linguagem,precisando, logo em seguida, que ela se faz «através dalinguagem ou de umalinguagem, racional ou emotivapouco importa» — a concepção de retórica proposta porMeyer tem um campo de acção muito mais amplo — que sepoderia designar por «campo da interactividadecomunicativa» — do que aquele que encontramos na teoriada argumentação de Perelman, deliberadamentedesenvolvida à margem da acção «directa» e restringida aodiscurso e aos seus meios de persuasão. «Aquilo em queestou interessado — escreveu Perelman — é na persuasãopelo raciocínio, pelo argumento. A retórica está, para mim,ligada ao uso persuasivo da linguagem. Não estouinteressado no uso persuasivo da arma, no uso persuasivodo dinheiro, no uso persuasivo do corpo humano ou emanúncios. Estes tipos de influência não atraem a minhaatenção. É por isso que olho para a retórica do ponto devista do humanista, do filósofo. Por esta razão restrinjo aretórica ao uso persuasivo da linguagem como parte daeducação liberal.»109 Neste sentido, a proposta de Meyerparece superar uma certa carga intelectualista presente nateoria perelmaniana da argumentação, que descorporizadeliberadamente a cena discursiva, centra-a numa estritaarticulação do ouvido e da voz e permanece numa cândidaatitude de boa fé quanto aos efeitos decorrentes do usoracional da linguagem.

A este ponto não será aliás alheio o critério a partir do

TEMATIZAÇÃO RETÓRICO-INTERROGATIVA DA FILOSOFIA

107

109Ch. Perelman, «Old and New rhetoric», in J. Golden and J. Pilotta, Pratical Reasoning inhuman affairs. Studies in honor of Chaïm Perelman, Dordrecht, Reidel, 1986, p. 13.

110Ch. Perelman, «Cinq leçons sur la justice», in Droit, Morale et Philosophie, LGDJ,1976, p. 57.

qual Perelman define filosoficamente a racionalidade daargumentação: a ideia de «auditório universal». Ora, pensara racionalidade do discurso argumentativo como apelo àrazão concebida em termos de auditório universal, atribuirao filósofo a tarefa de ser «o porta-voz da razão e o defensordos valores universais supostos valerem para todos oshomens»110, e, ainda, usar expressões como «honestidadeintelectual», «rectidão dos espíritos», «esforço de lucidez»,«desinteresse» e «boa vontade» para caracterizar o perfildesejável do filósofo, leva-nos a constatar que, não noquadro da teoria da argumentação, mas no da filosofia dorazoável111 proposta por Perelman, deparamo-nos com umaconcepção ventríloqua da retórica que, afinal, tal comoacontece com a retórica capaz de convencer os própriosdeuses, de que Platão nos fala, recebe os seus valores deuma ética pré-concebida pela filosofia.112 Está-se, uma vezmais, a pensar a retórica em termos de uso e não como algoque está sempre em acto na linguagem e nos processos dainteractividade comunicativa. Está-se, em suma, a restringir-lhe viciosamente a incontornável eficácia das suasconsequências. É por isso que preferirei falar, agora, deretoricidade, de lances retóricos e de antropologia retórica.

CONSEQUÊNCIAS DA RETÓRICA

108

111Propus esta distinção em Racionalidade argumentativa, Edições ASA, 1993, pp. 111 e segs.112Cf. Barbara Cassin, «Bonnes et mauvaises rhétoriques: de Platon à Perelman» in

Figures et Conflits Rhétoriques, Éditions de l’Université de Bruxelles, 1990, p. 34.

10. A INEVITABILIDADE DO LANCE RETÓRICO :

ELEMENTOS PARA UMA ANTROPOLOGIA RETÓRICA

Vimos já que, sendo o domínio da retórica aquele emque se negociam as influências comunicativas, isto é, aqueleem que «o que é» tem sempre de ser tomado como aquiloque alguém considera como sendo tal ou tal, que alguémadmite, aceita ou rejeita como sendo isto ou aquilo — e é denotar que não se pode aqui prescindir da tomada de posiçãopessoal, seja ela explícita ou implícita, consciente ouinconsciente — acabamos por ser conduzidos à capitulaçãodos fundamentalismos ontológicos que, contra as outrasretóricas, obviamente as más, pretendem, afinal, instaurar omonismo da sua retórica. Da uma retórica negra edesvirtuada, pois que, como bem observou M. Meyer,dispondo-se «a tornar concludente, verídico e justo o que narealidade coloca problemas»113, se apresenta como negadorado pluralismo, do criticismo, da inventividade e dainterrogatividade que animam o pensamento livre.

A respeito dessa tentação de ontologizar o que é deordem retórica, L. Olbrechts-Tyteca, a colaboradora dePerelman, escreveu: «É-se tentado, a partir do momento emque se está em presença de um acordo, a transformá-lo emacordo universal e absoluto e em procurar-lhe umfundamento ontológico. A retórica, pela lembrançaconstante do caminho percorrido para obter este acordo, dasua precaridade, impede de ver nele algo de fixo, de eterno,

TEMATIZAÇÃO RETÓRICO-INTERROGATIVA DA FILOSOFIA

109

113 Michel Meyer, «As bases da retórica», in M. Mª., Carrilho (Org.), Retórica eComunicação, Edições ASA, 1994, p. 65.

de dado de uma vez por todas. Ela situa o acordorelativamente a um desacordo cujos inconvenientes eramtais que se foi obrigado a procurar um meio para o superar,facto que constitui mais uma pausa do que uma realizaçãodefinitiva. Ela dá também valor aos acordos limitados»114 .

É assim que, a partir da actual compreensão daargumentação e da retórica, da sua inscrição no registo dacomunicação e da rejeição dos fundamentalismosontológicos a que me referi, é possível fazer emergir aquiloque se poderá designar por «antropologia retórica».

Dela procurarei apresentar aquilo que considero serem assuas duas teses de base, aproveitando, no seguimento, pararetomar a tematização das relações retórica/ontologia, agoraatravés da ideia de «inevitabilidade do lance retórico» e dasua articulação com a noção de tensão problemática, ou seja,enquanto «lugar onde se traduzem os esforços decompreensão, de transformação ou de interrogação doshomens».115

Em termos muito gerais diria, então, que a antropologiaretórica assume duas teses fundamentais:

1º - A comunicação é a matriz da dimensão relacionaldo homem.

2º - A compreensão humana do mundo e a construçãode inteligibilidades produz-se sempre no interior deuma retoricidade a cujo pragmatismo não épossível escapar.

Enunciadas estas duas teses, será, agora, necessárioexplicitar aquilo que designarei como «a inevitabilidade dolance retórico».

CONSEQUÊNCIAS DA RETÓRICA

110

114Lucie-Olbrechts-Tyteca, «Rencontre avec la Rhétorique», in Logique et Analyse, nº21, 1963, p. 12.

115Cf. M. Mª. Carrilho, Filosofia, Difusão Cultural, 1994, p. 103.

Entendo por lance retóricoa passagem em que, noâmbito da comunicação, se circunscreve o nível e o registoda problematicidade, delimitação essa que se opera atravésda aceitação, ou não, de estados de coisas que apenas sãosugeridos implicitamente. Desta forma, o lance retóricoocorre no trânsito do problematizável (isto é, daquilo quepode ser alvo da interrogatividade) para o inquestionado(isto é, daquilo que se tornou tacitamente aceite, deixandode fazer problema). Porque é que é que esse trânsito se dá,e, ainda por cima, de uma forma inevitável, é o queprocurarei esclarecer em seguida.

Ao pôr em destaque, no seu Tratado da Argumentação,a considerável importância retórica do modo interrogativo,Perelman escreveu uma passagem que ilustra a ideia delance retórico:

«A questão — (uma qualquer questão, entenda-se) —supõeum objecto sobre a qual incide e sugereque há umacordo quanto à existência desse objecto. Responder éconfirmaresse acordo implícito»116.

Podemos exemplificar com uma situação simples doquotidiano. O marido pergunta à mulher: «A que horasvamos ao cinema?» Ao que ela responde: «Mas que filmevamos ver?». Esta resposta confirmou o que estavapressuposto na pergunta, a saber, que iam ao cinema. Comessa confirmação a questão de saber se vão ou não aocinema foi irradicada, sendo o registo da problematicidadeestabelecido ao nível da escolha do filme a que irão assistir.

Mas voltemos ao lance retórico e à sua inevitabilidade.Começámos por dizer que ele ocorria no âmbito dacomunicação. Mas o que entendemos, aqui, porcomunicação?

TEMATIZAÇÃO RETÓRICO-INTERROGATIVA DA FILOSOFIA

111

116TA, p. 214.

Considerarei a comunicação, de uma forma ampla ealargada, como um fenómeno de interacção sobresujeitos.Esta definição engloba tanto a interacção de sujeitos sobreoutros sujeitos— como acontece, por exemplo, na conversaquotidiana entre duas pessoas — como a interacção que seestabelece entre a dimensão simbólica das coisas, oscontextos e os sujeitos— como acontece, por exemplo,quando o nosso comportamento e a nossa forma de estar semodificam por termos entrado num Tribunal ou numaIgreja, ou por nos encontrarmos a assistir a uma conferênciaou a participar numa confraternização.

A propósito desta definição de comunicação, gostariade salientar que ela conduz à tematização de uma teoria dosujeito menos preocupada em saber se o sujeito se pode ounão definir pela consciência reflexiva, do que em averiguaro alcance dos fluxos e refluxos que uma reflexividadeexposta ao jogo dos actos e das influências comunicativasproduz.

É que, nesta perspectiva em que se assume acomunicação como matriz da relacionalidade do homem, arelação do sujeito a si mesmo não pode ser desvinculada doregisto performativo que a atravessa (pois trata-se de lidarcom problemas), e não se pode, por isso, desatender nem àdimensão interpeladora dos contextos, nem à emergência dediferentes plataformas de acuidadeque vão transformandoas posturas e as capacidades crítica e interventiva dossujeitos relativamente aos actos e aos processos dasinfluências comunicativas a que estão, e de que são,precisamente, sujeitos.

Deste ponto de vista o sujeito definir-se-á pela

CONSEQUÊNCIAS DA RETÓRICA

112

dinâmica das reformulações que, nas suas convicções e/ouestratégias, é levado a operar perante a emergência deproblemas que, na linguagem, «assumem a forma de umadissonância entre o homem e o mundo»117. E a tomada deconsciência, que é fundamental nesta dinâmica, nãocorresponde a um momento da descoberta da verdade, ou amais um passo no caminho dessa descoberta, mas sim aoemergir de uma nova reconfiguração da suarelacionalidade.Podemos, deste modo, falar do sujeitocomo arquitectónica retórica.

Deste ponto de vista englobante que temos vindo aassumir, e em que a comunicação surge como matriz darelacionalidade do homem, utilizarei o termo retoricidadepara designar a inevitabilidade do lance que, face a umproblema, leva a que se aceite convictamente umadeterminada resposta e, com essa convicção, se irradique(por um momento, por um período, por uma vida inteira) oíndice de problematicidade que afecta a nossa relação comas coisas. Por isso, a retoricidade assinala, por um lado, olance da nossa incontornável rendição ao inquestionado.Mas assinala, também, o outro lado desta rendição — asaber, a problematicidade — e, ao fazê-lo, atira arelacionalidade do homem para um jogo cuja regra, cujaúnica regra, é a de ser um jogo infinito.

É por isso que afirmarei que, sendo a retórica umanegociação entre sujeitos a respeito de uma questão, de umproblema (como bem propõe M. Meyer), ela é também o eloque, impedindo de descontextualizar o dinamismo das

TEMATIZAÇÃO RETÓRICO-INTERROGATIVA DA FILOSOFIA

113

117Cf. M. Mª. Carrilho, Filosofia, Difusão Cultural, 1994, p. 103.

inteligibilidades da sua vertente pragmática e humana,conduz a uma antropologia fundada tanto no direito de cadaum permanecer ligado a certas convicções, como no direitode as modificar ou transformar. Uma antropologia fundadana liberdade de aderir e na liberdade de recusar, ou seja, nodireito de colocar em questão e de discutir. E, com efeito, aproblematização e a discutibilidade são, simultaneamente,condição de exercício da liberdade e do livre exame,princípio dialógico que perpetua a abertura à alteridade,negação de toda a autoridade dogmática e regra de umcriticismo que postula a apropriação e a relação a si comocritérios de formação de uma competência humana quenenhum saber feito nem nenhuma técnica podem substituir.

A problematicidade e a discutibilidade implicam pensaro homem como risco e a relação que o constitui comoenigma situado: por um lado, afirmar a possibilidade deproblematizar e de discutir é afirmar a precaridade de todo oacordo, vincar a efemeridade de toda a convicção,desconstruir a utopia de um saber perfeito e concluído; poroutro, é dizer que pensar não é descobrir o caminho de umaproximidade que culminaria numa qualquer coincidênciacom o ser, mas uma actividade em que se lidaincontornavelmente com a tematização daproblematicidade, na qual, como salienta M. Mª. Carrilho,«se desenrola o movimento duplo de nuclearização eperiferização dos problemas. É ela que talha, discrimina asmodalidades da problematização através da adopção de umconjunto de procedimentos argumentativos (analíticos,transcendentais, intuitivos, etc.), ao mesmo tempo quedefine o regime de um ou vários problemas: a suainstalação, o seu acolhimento ou irradiação, o seu

CONSEQUÊNCIAS DA RETÓRICA

114

abandono. No primeiro caso trata-se de novos problemas,no segundo e terceiro da sua movimentação centrípeta oucentrífuga, no último do seu desaparecimento ou elisão. (...)a filosofia como prática interrogativa é sempre um trabalhoproblematizador que em rigor não conhece soluções masapenas respostas, que são sempre tematizações dos seusproblemas.»118

E a inevitabilidade da retoricidadee do queclassifiquei de lance retóricoadvém da impossibilidade decontornar o que se poderia chamar «os momentos daconversão ontológica», isto é, aqueles momentos em que aconsistência e a força dos hábitos de acção se impõem comoconvicção indiscutível, levando a inscrever no discurso umaordem do ser, deva-se esta imposição ao insustentáveldesconforto da queda no abismo da regressão ao infinito(ninguém questiona ou problematiza ad eternum), ou àtensão que a premência e a irreversibilidade dasconsequências da acção exercem sobre o pensamento,obrigando-o a decidir.

No entanto, e nunca será de mais sublinhar, se odiscurso e a tensão problemática que o atravessa acabampor remeter para uma ordem do ser, esta ordem só podesurgir porque os dispositivos retórico-argumentativos quepermitem tematizar os problemas já aí produziram os seusefeitos.

A «maldição» que tem pesado sobre a retórica nãoresulta senão da limitada resistência dos homens aosreferidos desconforto e tensão, limites que surgem aos olhosdos próprios homens como um paradoxo de que, afinal, segostariam de livrar.

TEMATIZAÇÃO RETÓRICO-INTERROGATIVA DA FILOSOFIA

115

118M. M.ª Carrilho,Jogos de Racionalidade, Edições ASA, 1994, pp. 31-38.

E, da mesma maneira que a dimensão relacional dohomem, tematizada em termos de mediação retórica,implica, como já vimos, a irradicação de pressupostos deordem ontológica — o que equivale a dizer, com Nietzsche,que não há «uma naturalidade não-retórica da linguagem aque se possa fazer apelo» — também «os momentos deconversão ontológica», se colocados sob o signo de umaqualquer transcendência do ser e da verdade edesvinculados de qualquer estratégia (não é a minhaopinião, as coisas são mesmo assim — dir-se-á), farãosurgir a suspeita e a reprovação de uma retórica que, aopossibilitar constantemente a alternativa, a conflitualidade eo pluralismo, tende a ser relegada para o lado negro dumadissidência possivelmente mal intencionada.

Como se a leveza da retórica — essa condição que,voltemos a insistir, faz com que todas as afirmações quepretendem dizer o real, o que de facto é, as coisas como elasverdadeiramente são, tenham de ser tomadas como aquiloque alguém (uma pessoa, um grupo de pessoas, umacomunidade) considera como sendo isto ou aquilo(e é denotar que nesta colocação das coisas fica aberta apossibilidade do problemático se exprimir sem ocultar osseus argumentos e respostas) — como se a leveza daretórica, dizia eu, pelo simples facto de ser inevitavelmenteindissociável de uma qualquer estratégia de acção e, porconseguinte, também susceptível de ser manipuladora,fosse, efectivamente, censurável. Todavia, como bemobservou e incisivamente escreveu M. Meyer: «Censurar odiscurso por ser manipuladorreduz-se, na realidade, acensurar o discurso por ser. Porque está na natureza dadiscursividade apresentar-se desde logo como responder,como respostas, tal como está nas mãos dos homens decidir

CONSEQUÊNCIAS DA RETÓRICA

116

encarar ou não esse facto, aceitá-lo ou não, jogar ou não ojogo, procurar ou não os problemas subjacentes, enfim,pronunciar-se livremente ou fiar-se no que os outros lhespropõem, muitas vezes em função de interesses próprios. Sea retórica é culpada, é-o como o pode ser a medicina, ou aciência em geral. Condenar-se-á a arte médica porque osmédicos podem usar a sua ciência para fazer mal, comofizeram nos campos nazis ou nas prisões argentinas? Passa-se o mesmo com o louvor: serve a verdade mas não basta sópor si para a garantir. Pode encobrir a mentira, pode seduzire convencer, como pode manipular e enganar. Se a retórica,precisamente, é útil, isso deve-se ao facto de que permitelevar os homens a exercer em plena consciência o seusentido crítico e o seu juízo».119

Chegámos, assim, com a tematização da argumentaçãoe da retórica feita a partir de uma vertente problematológica,a uma concepção da filosofia em que a emergência domúltiplo e do controverso decorre da problematicidade e daretoricidade que atravessam os usos da linguagem. É com oconflitual e com o controverso que a filosofia tem,incontornavelmente, de lidar, e é à filosofia que competefazê-los proliferar, pois de outro modo, sem essa apetênciapela resistência, não fará prevalecer a intempestividadecriativa, a acuidade crítica e o fulgor interrogativo sobre adormência dos conformismos, a senescência dosdogmatismos e as mordaças e demagogias dos poderesinstituídos.

Percebe-se que, em filósofos como Gilles Deleuze, ocentramento na dimensão criadora da filosofia, a ênfase

REJEITAR OS ABSOLUTISMOS

117

119Michel Meyer, «As bases da retórica», in M. Mª., Carrilho (Org.), Retórica eComunicação, Edições ASA, 1994, p. 70.

dada a um fazer em cuja absorção se acaba por diluir, até aosupérfluo, o interesse em dizer e discutir, seja solidário deuma profunda suspeita relativamente às ditas filosofiascomunicacionais, conversacionais, dialógicas: «Todo ofilósofo foge — escreve Deleuze — quando ouve a frase:vamos discutir um pouco. As discussões são boas para asmesas redondas, mas é sobre uma outra mesa que a filosofialança os seus dados cifrados. Das discussões, o mínimo quese pode dizer é que não fariam avançar o trabalho, porqueos interlocutores nunca falam da mesma coisa. Que alguémtenha tal opinião e pense isto em vez daquilo, o que é queisso pode interessar à filosofia, enquanto os problemas emjogo não forem ditos? E quando são ditos, já não se trata dediscutir, mas de criar indiscutíveis conceitos para oproblema que se assinalou. A comunicação vem sempredemasiado cedo ou demasiado tarde, e a conversa, sempre amais, relativamente a criar. (...) A filosofia tem horror àsdiscussões. Ela tem sempre mais que fazer. O debate é-lheinsuportável, não porque ela esteja demasiado segura de si:pelo contrário, são as suas incertezas que a arrastam paracaminhos mais solitários.»120

Contudo, esta passagem deve ser entendida à luz dodispositivo retórico com que o próprio Deleuze opera ademarcação da sua concepção de filosofia relativamente aoutras concepções por ele desvalorizadas e, portanto, comoo alheamento impossível ao espaço da conflitualidade e dacontrovérsia à margem das quais, todavia, procurou situar apura afirmatividade da sua filosofia como prática criadora.E, mesmo que se conceda que os conceitos não sãoinventados para serem discutidos e que a sua criação não se

CONSEQUÊNCIAS DA RETÓRICA

118

120G. Deleuze/F. Guattari, Qu’Est-Ce Que la Philosophie?, Éditions de Minuit, Paris,pp. 32-33.

encontra obrigatoriamente agrilhoada à preocupação, ou aointeresse, de lhes conferir uma aparência racional ourazoável, um qualquer tipo de fundamento; se, porconseguinte, se pode admitir a intempestividade da suacriação e nisso encontrar a postura de resistência radical àlinguagem da tribo, nem por isso deixará de ser excessivoafirmar que os conceitos, assim criados, são indiscutíveis.São, seguramente, frutos de um trabalho problematizador aque respondem mas que não solucionam. E o seuisolamento não lhes retira a dimensão de proposta que, entremuitas, há que considerar.

REJEITAR OS ABSOLUTISMOS

119

III. Retoricizar a ciência

O terceiro momento do programa de revalorização domúltiplo e do controverso por nós proposto diz respeito àretoricização da ciência, isto é, à enfatização da dimensãoretórica do discurso científico. Ele contrapõe-se à ideiageneralizada de que os domínios da ciência e da retórica nãosó não se tocam como, ainda, se excluem reciprocamente epropõe uma leitura da actividade científica em que osmotivos que levaram a privilegiar a sua racionalidade,conduzindo à sua hegemonia, sejam questionados erepensados.

Antes de introduzir o tema propriamente dito, fareireferência a dois pontos que considero importante focarcomo enquadramento preliminar da abordagem da dimensãoretórica da ciência: o da questão do estatuto cultural doconhecimento científico(em que procurarei apontar asoscilações que historicamente se registaram quanto ao valoratribuído à ciência — oscilações que vão da exaltação doconhecimento científico como a forma mais sublime derealização do espírito humano a uma atitude de prudênciarelativamente à aparente excelência dos seus poderes e deuma certa desconfiança quanto às suas promessas salvíficas)e o do movimento de desdogmatização do conhecimentocientífico (em que procurarei mostrar como as perspectivasda epistemologia dos nossos dias levam a desabsolutizar a

RETORICIZAR A CIÊNCIA

123

natureza das teorias científicas, a acentuar a incontornáveldimensão humana e social que elas carregam e a convergirem fazer da racionalidade científica uma forma deracionalidade que se deve complementar, articuladamente eà luz de uma dinâmica cultural mais vasta em que o homemse insere e de que é produtor, com outras e variadas formasde racionalidade). Trataremos, assim, num primeiro ponto, aquestão do estatuto da ciência do ponto de vista dovalor queculturalmente lhe foi sendo atribuído. No segundo debruçar--nos-emos sobre osesclarecimentos que a epistemologiacontemporânea nos dá sobre o valor e a natureza das teoriascientíficas.

CONSEQUÊNCIAS DA RETÓRICA

124

11. CULTURA E CONHECIMENTO CIENTÍFICO

Será bom começar por referir que a ciência, tal comohoje a consideramos — isto é, como um conhecimento que,aliado a sofisticadas técnicas, confere ao homem um saberque é simultaneamente um poder — tem a sua origem naIdade Moderna. Quer isso dizer que antes da modernidadenão havia ciência? É claro que não. A existência da ciênciaremonta à necessidade dos homens elaborarem teorias racio-nais explicativas dos fenómenos que os rodeiam e que osintrigam. Ela é tão antiga quanto o desejo humano decompreender racionalmente o mundo e de sobre ele teorizar.No entanto, desde os primeiros filósofos até à IdadeModerna, a ideia de ciência com que nos deparamos,embora já orientada para o conhecimento do universal, temessencialmente uma matriz contemplativa(a ciência édesinteressada e contenta-se com a contemplação domundo), apoia-se em procedimentos dedutivos(partindo-sede princípios gerais para deles extrair verdades de âmbitoparticular) e as fronteiras do seu conhecimento não estãoainda demarcadas nem da filosofia (não se podendo falarnuma separação radical entre a «mãe» filosofia e as diversasciências que nela se originam), nem da teologia(não sepodendo falar, nomeadamente durante o período da IdadeMédia, em investigação livre e autónoma).

Para além de todas estas características, a concepção denatureza subjacente às teorias científicas não aconsideravam como algo desprovido de vida e inteligênciapróprias. A ciência grega da natureza, por exemplo,

RETORICIZAR A CIÊNCIA

125

assentava no princípio de que o mundo da natureza estásaturado ou penetrado pela mente, pelo entendimento, e naIdade Média a natureza aparece como criação divina e a suaordem reflecte uma finalidade nela incutida pelo criador.Neste sentido o conhecimento científico não assenta nadicotomia sujeito/objecto, e mesmo quando os homens doRenascimento procuram dar os seus primeiros passos numaciência que ao homem confira poder, não é ainda através daideia de objectividade que eles tentam descodificar omundo, mas sim fazendo apelo à magia e à alquimia.

É esta concepção de ciência — de que apenassucintamente apresentámos alguns traços — que seráprofundamente alterada com o advento da modernidade e,particularmente, com a revolução científica dos séculos XVIe XVII. Vejamos alguns dos traços do paradigma desta novaciência.

a) Em primeiro lugar, a ciência moderna carrega oprojecto da dominação humana da natureza. Ela visatornar o homem dono e senhor da natureza e, nessesentido, está associada a uma vontade de poder e dedomínio. São a este respeito elucidativas as palavrasque Descartes escreve no seu Discurso do Método:«Essas noções (de física) fizeram-me ver ser possívelchegar a conhecimentos utilíssimospara a vida e que,em vez da filosofia especulativa que se ensina nasescolas, se pode encontrar uma filosofia prática pelaqual — conhecendo a força e as acções do fogo, daágua, dos astros e de todos os outros corpos que nosrodeiam tão distintamente como conhecemos asdiversas profissões dos nossos artesãos — poderíamosda mesma maneira utilizá-los para todos os usos que

CONSEQUÊNCIAS DA RETÓRICA

126

lhes são próprios e, assim, portanto, tornarmo-nossenhores e possuidores da natureza.»121

É pois sob o signo do útil, do assenhoreamento e dopoder que o pensamento moderno se desenvolve. Eleé um pensamento que se concebe como sabendo tantomais quanto mais domine. E, na medida em que éactivo, interventivo e dominador, ele rompe com amatriz contemplativa do pensamento científicoprecedente.

b) Em segundo lugar, na ciência moderna aobservação, a experiência e a experimentaçãovêmocupar um lugar de destaque, dando lugar aoaparecimento de novos procedimentos metódicos. Ométodo experimental, que norteia a actividade danova ciência, surge precisamente como umainovadora teoria da aquisição e da validação doconhecimento e pressupõe uma íntima articulaçãoentre a experiência e a razão. Deste método resulta oafastamento do modelo tradicional de saberessencialmente fundado na dedução e a suasubstituição por um modelo no qual a induçãoassume um lugar de destaque (pois todo oconhecimento se inicia na experiência e naobservação dos seus dados); todavia, a valorizaçãoda indução não significa que ela seja o único modode inferência do novo pensamento científico: por umlado, ela articula-se com a capacidade de formularhipóteses, e nesse sentido apela à criatividade, àinventividade e à engenhosidade do espírito humano;

RETORICIZAR A CIÊNCIA

127

121Descartes, Œuvres et Lettres, Bibliothèque de La Pléiade, Éditions Gallimard, 1953,p. 168.

por outro, ela continua-se e completa-se através deinferências dedutivas, e por isso não põe de parteeste procedimento. A novidade desta mudança deorientação reside assim no ponto de partida daciência: aos princípios gerais a partir dos quais tudoo mais se deduziria, a nova ciência responde com aexperiência e com a necessidade de se edificar oconhecimento a partir desta.

c) Em terceiro lugar, a ciência moderna caracteriza-sepela luta contra todas as formas de autoridade e dedogmatismoe é neste movimento que se insere aemancipação que de si mesma promove relativamenteà filosofia e à teologia. A sua emancipaçãorelativamente à filosofia passa por dois pontosessenciais: por um lado, ela delimita, recorrendo àsmatemáticas, o domínio da sua investigação. A esterespeito é célebre a seguinte passagem de Galileu: «Afilosofia está escrita neste grande livro eternamenteaberto perante os nossos olhos — refiro-me aouniverso — mas não pode ler-se antes de se teraprendido a língua e de se estar familiarizado com oscaracteres em que está escrito; está escrito emlinguagem matemática e as letras são triângulos,círculos e outras figuras geométricas sem as quais éhumanamente possível compreender uma únicapalavra.» Mas também não são menos elucidativas aspalavras de Descartes nos seus Princípios deFilosofia: «Não aceito princípios em física que nãosejam também recebidos em matemática, para poderprovar por demonstração tudo o que deles deduzirei;estes princípios bastam visto que todos os fenómenos

CONSEQUÊNCIAS DA RETÓRICA

128

da natureza podem ser explicados por meio deles.»122

Ou seja: a ciência moderna procede a umamatematização da natureza e com isso faz da naturezaum objecto de estudo mais delimitado ou preciso: àcompreensão do mundo através de teorias com umalto teor especulativo, há que contrapor explicaçõesbaseadas na medida, no cálculo e na quantificação. Emais: ao mundo vivo estudado pela ciência anterior,há agora que contrapor um mundo de matéria semintencionalidade própria e cujo funcionamento seassemelha a uma máquina. A metáfora da máquina (omundo-máquina, o corpo-máquina, etc.) funda omecanicismo que acompanha a emergência da ciênciamoderna. Mas se, como se disse, a emancipação destanova ciência relativamente à filosofia passa, por umlado, pela matematização da natureza, ela passatambém, por outro lado, pela definição dos novoscritérios de aquisição e de validação do saber. O novométodo experimental mune a ciência emergente deprocedimentos próprios que nada devem à filosofia:os seus resultados serão, doravante, avaliados eaferidos no interior da própria actividade científicaque, por isso mesmo, se autonomiza.Este mesmo movimento de autonomização regista-seigualmente nas relações da ciência com a teologia e,particularmente, com a Igreja. Também aqui omovimento é o de cortar com a submissão daactividade científica à tutela religiosa, o de distinguiro domínio da teologia e o domínio da ciência comodois domínios distintos: um expressaria o ponto de

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129

122Descartes, Œuvres et Lettres, Bibliothèque de La Pléiade, Éditions Gallimard, 1953,p. 652.

vista da fé, o outro o ponto de vista da razão.

d) Em quarto lugar, a ciência moderna traz consigo aseparação sujeito/objecto e leva a concepçõesepistemológicas que, numa primeira fase, insistirãona existência de uma harmonia pré-estabelecidaentre o pensamento descodificador do sujeito e arealidade coisificada do mundo (o pensamento dosujeito descobriria naturalmenteo funcionamento darealidade, havendo uma adequação natural entrepensamento e realidade) e, numa segunda fase,sublinharão a total submissão da realidadecognoscível ao sujeito do conhecimento que, porisso mesmo, se torna legislador. Esta cisãosujeito/objecto representa também uma cisão entre ohomem e o mundo. E faz com que, ao invés dascumplicidades e da relação de pertença queanteriormente uniam o homem e o mundo, este deixede ser a casa onde o homem habita e se torne, com odesenvolvimento da técnica, uma fonte deexploração.

e) Em quinto lugar, a ciência moderna traz consigo aconvicção de que o estabelecimento dosconhecimentos a que aspira — leis formuladas à luzdas regularidades observadas e possibilitadoras deprever o comportamento futuro dos fenómenos —possuem uma validade independente do tempo e dolugar em que foram descobertos, o que conduz a umavisão absolutista necessariamente solidária dodeterminismo. Com efeito, e como salientouBoaventura de Sousa Santos, «o determinismomecanicista é o horizonte certo de uma forma de

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conhecimento que se pretende utilitário e funcional,reconhecido menos pela capacidade de compreenderprofundamente o real do que pela capacidade de odominar e de o transformar.»123

A partir dos séculos XVII e XVIII o paradigma daciência tende a tornar-se culturalmente hegemónico. Aciência é tomada como a mais sublime criação do espíritohumano, como a mais elevada conquista do homem e chegamesmo a ser considerada como a via de salvação erealização da humanidade. Ela torna-se matriz daracionalidade e depósito das esperanças e das ambições doshomens.

Essa avaliação está já patente no Iluminismo e na suaimagem-símbolo: a de um sol que trespassa com os seusraios luminosos uma mancha de nuvens negras, dissipando-asprogressivamente. Dentro desse sol, aparece um rostohumano sorridente. O sol representa a razão humanadissipando as trevas do erro e da ignorância; o sorrisohumano é expressão da felicidade trazida aos homens pelosprogressos científicos, técnicos, artísticos e morais.

Mas a ideia de que a ciência e o seu imparávelprogresso solucionará todos os problemas humanos elançará luz sobre todos os aspectos da realidade é aindamais explicitamente veiculada pelo positivismo e pelocientismo dos finais do século XIX e princípios do séculoXX, cuja obra mais emblemática é a de Auguste Comte.

Todavia, o ânimo vitorioso deste cientismo que faz daciência e do progresso científico o horizonte da esperançahumana acabará por declinar, e a confiança com base naqual a ciência vertiginosamente se desenvolve, bem como a

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131

123Boaventura de Sousa Santos, Um Discurso sobre as Ciências, Edições Afrontamento,1987, p. 17.

própria ideia de progresso, acabarão por oscilar. Estamos nodealbar de um século que, em termos das mentalidades, nosreservaria profundas, vertiginosas e dolorosastransformações que não encontraram ainda o seu termo eque continuam a configurar o século XX como um séculode crises e grandes apreensões.

Poder-se-ão destacar alguns momentos-choque ou situa-ções-limite que alteraram profunda e violentamente amentalidade optimista dominante do cientismo e queconduziram à questionação da racionalidade tecno-científica.

O primeiro grande choque que, em termos dementalidades, é infligido ao homem do século XX, decorreda eclosão da 1ª Grande Guerra Mundial (1914-1918). Esteacontecimento marca um abalo decisivo e tem mesmo umimpacto superior ao da 2ª Grande Guerra Mundial. É odesmoronar da confiança inocente e optimista no poder darazão humana, é o irromper da perplexidade face a poderesdestrutivos insuspeitados que a razão e as suas criações,afinal, também comportam. O mundo da razão e da ciênciadescobre-se também como o mundo da guerra, osinstrumentos que a razão criou revelam-se tambéminstrumentos de morte e de aniquilamento dos próprioshomens. A razão semeadora da concórdia, a razãopacificadora e libertadora, a razão que sonhou a felicidade,revela-se também como a razão que aos homens não evita opesadelo da violência e que, pelo contrário, o agrava comum requinte que fere a dignidade humana. A 1ª GrandeGuerra Mundial marca o fim de uma época e o fim de umamaneira de pensar: remete os homens para uma atitudereflexiva que conduz ao esboço de novas formas de estar ede pensar.

Com a 2ª Grande Guerra Mundial (1939-1945) a

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suspeita face à razão e às suas obras parece instalar-sedefinitivamente. O refinamento das atrocidades que então sepraticam fere de novo uma razão já debilitada. É que agoraa ciência e a técnica contribuem para planear campos onde amorte é racionalizada — inventam-se locais para matar eonde se morre na razão directa das possibilidades dasmáquinas exterminadoras. As infelizmente famosas câmarasde gás, mas também o requinte de outras técnicassofisticadas de aniquilação e extermínio massivo da vidahumana — pense-se em Hiroshima e Nagasaki — levam aque um pensamento que se quis racional se sinta agoracompletamente desorientado. Como pensar depois deAuschwitz? Como acreditar ainda no império da razão e daciência? Como confiar numa razão que organiza a morte eespalha a destruição? Como evitar a suspeita queinevitavelmente se instala?

Mas o século XX brindou-nos com mais uma «oferta».Os conhecimentos científicos e os desenvolvimentostecnológicos permitiram que se chegasse a um poderinaudito: o poder da destruição do planeta. A possibilidadede um holocausto nuclear tornou-se numa possibilidade real.E eis-nos chegados a uma situação que, sendo consequênciada modernidade, nos leva a equações nada modernas. É queo poder decorrente do saber científico e do engenho técnico,esse saber que se mede pela capacidade de obter um poderincondicionalmente bom para o homem, apresenta-se agoracomo uma ameaça. E as perguntas surgem: o poder é semprebom? A capacidade dominadora e exploradora do homem éincondicionalmente factor de felicidade? Se a ciência e atécnica — para não se falar no poder do capital — são hojeas principais formas de poder, e se o poder que o homemdetém lhe permite a autodestruição, não se tornará necessáriopensar o saber, como forma de poder que necessariamente é,

RETORICIZAR A CIÊNCIA

133

a partir da ideia de responsabilidade? Não deverão estarsubjacentes aos problemas da ciência e da técnica questõesde ordem ética?

Boaventura de Sousa Santos sintetizava estaproblemática ao afirmar que se a ciência moderna nos legouum conhecimento funcional do mundo, alargandoextraordinariamente as nossas perspectivas de sobrevivência,a questão que hoje se coloca não é tanto a de comosobreviver mas a de como saber viver. E a seguintepassagem do seu escrito Um Discurso sobre as Ciênciasébem uma síntese da necessidade de pensar uma forma deencarar a ciência:

«Estamos de novo regressados à necessidade deperguntar pelas relações entre ciência e virtude, pelo valordo conhecimento dito ordinário ou vulgar que nós, sujeitosindividuais ou colectivos, criamos e usamos para darsentido às nossas práticas e que a ciência teima emconsiderar irrelevante, ilusório e falso; e temos finalmentede perguntar pelo papel de todo o conhecimento científicoacumulado no enriquecimento ou no empobrecimentoprático das nossas vidas, ou seja, pelo contributo, positivoou negativo, da ciência para a nossa felicidade. (...) Eufalarei, por agora, do paradigma de um conhecimentoprudente para uma vida decente.»124

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134

124Idem ibidem, pp. 8-9 e 36-37.

12. OS CONTRIBUTOS DA EPISTEMOLOGIACONTEMPORÂNEA NO MOVIMENTO DE

DESDOGMATIZAÇÃO DA CIÊNCIA MODERNA

Se no ponto anterior vimos que ocorrem no século XXum conjunto de acontecimentos históricos e sociais quelevaram ao questionar do paradigma tecno-científico daciência moderna, vamos neste ponto abordar algumas daslinhas de força com que a própria epistemologiacontemporânea impulsionou uma nova abordagem daciência e que a vai lançando na sua fase pós-moderna. Taislinhas de força referem-se, nomeadamente, aos critérios decientificidade, ao modo como a ciência se constrói, evolui eprogride, à validade das leis que estabelece, às questõesrelativas ao problema da responsabilidade na construção dosconhecimentos científicos. Vejamos, pois, alguns dosprincipais mitos da epistemologia clássica e a falência quedeles se dá com a epistemologia contemporânea.

a) Realidade dada ou descoberta/realidade construídaou inventada

Uma das convicções que durante muito tempopersistiram, foi a ideia de que as teorias científicasreflectiam o real. A realidade estava aí para serdescoberta e as teorias científicas mais não fariamque traduzi-la de uma forma directa. Acreditava-se,assim, que as teorias científicas apenas se limitavama dar voz aos factos e a deixar transparecer a sua

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verdade. Dito de outro modo, acreditava-se que osfactos são descobertos e não construídos e que asteorias não são uma forma de abordar a realidade maso espelho fielda própria realidade. Contudo, esta éuma ingenuidade hoje denunciada pela epistemologiacontemporânea que insiste sobre a não-neutralidadedas teorias científicas, afirmando que todo oconhecimento é uma construçãoe que os própriosfactos são sempre fabricados. O pretenso plano dos«factos puros e simples» é hoje visto como um mitoou, quando muito, como premissa argumentativa: arealidade que a ciência nos apresenta não é a própriarealidade mas uma forma de a abordar; ela é umaforma perspectivada de ver a realidade e estáindissociavelmente ligada à criatividade humana e aoesforço de submeteros dados em estudo ao conjuntodeterminante da teoria. Como afirma R. D. Laing, osdados com que lida a ciência «exprimem osresultados do modo como procedemos sobre arealidade, o que não é a expressão dos processos daprópria realidade».125 Por seu turno Boaventurade Sousa Santos faz salientar que «a ciência modernanão é a única explicação possível da realidade e nãohá sequer nenhuma razão científica para a considerarmelhor que as explicações alternativas da metafísica,da astrologia, da religião, da arte ou da poesia. Arazão por que privilegiamos hoje uma forma deconhecimento assente na previsão e no controlo dosfenómenos nada tem de científico.»126

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125R. D. Laing, The Politics of Experience,Penguin Books, 1971, p. 53.126Boaventura de Sousa Santos, Um Discurso sobre as Ciências, Edições Afrontamento,

1987, p. 52.

b) Sujeito neutro/sujeito participanteOutra das convicções que prevaleceram no

paradigma da ciência moderna foi a ideia de que asobservações e investigações levadas a cabo peloscientistas deveriam ter um carácter absolutamenteimpessoal, devendo o cientista eliminar da suainvestigação todos os preconceitos de ordemsubjectiva, fossem eles de tipo sócio-cultural,religioso, afectivo, moral, etc. Assim, o cientista,como pessoa, deveria apagar-se perante os factos e osseus juízos deveriam ser estritos juízos de facto enunca juízos de valor. Notou a este respeitoBoaventura de Sousa Santos que «a ciência modernaconsagrou o homem enquanto sujeito epistémico masexpulsou-o, tal como a Deus, enquanto sujeitoempírico. Um conhecimento objectivo, factual erigoroso não tolerava a interferência de valoreshumanos ou religiosos. Foi nesta fase que seconstruiu a distinção dicotómica sujeito/objecto.»127

Esta distinção, correlativa da dicotomiaobservador/observado, é hoje questionada pelaepistemologia que — ao enfatizar o enraizamentocultural e social de todo o homem e a impossibilidadede qualquer pessoa se libertar totalmente dospreconceitos que a constituem e que fazem dela umser inultrapassavelmente cultural e situado — adenuncia como uma abstracção extremamenteartificial e ilusória.128 A este respeito, observa Morinque «o princípio de explicação da ciência clássicaeliminava o observador da observação. A microfísica,

RETORICIZAR A CIÊNCIA

137

127Idem ibidem,p. 50.128Cf. Edgar Morin, Ciência com Consciência, Publicações Europa-América, s/d, p. 237

a teoria da informação, a teoria dos sistemasreintroduzem o observador na observação. Asociologia e a antropologia apelam para anecessidade de se situarem hic et nunc, isto é, detomarem consciência da determinação etno-sociocêntrica que, à partida, hipoteca toda aconcepção da sociedade, da cultura, do homem. Osociólogo deve incessantemente perguntar a simesmo como pode conceber uma sociedade de quefaz parte. Já o antropólogo contemporâneo diz de sipara si: ‘Como é que eu, portador inconsciente dosvalores da minha cultura, posso julgar os valoresduma cultura dita primitiva ou arcaica? Que valem osnossos critérios de racionalidade?’ A partir daí,começa a necessária auto-relativização doobservador, que pergunta ‘Quem sou eu?’, ‘Ondeestou eu?’. O eu que surge aqui é o eu modesto quedescobre que o seu ponto de vista é necessariamenteparcial e relativo. Assim, vemos que o próprioprogresso do conhecimento científico exige que oobservador se inclua na sua concepção, em suma, queo sujeito se reintroduza de forma autocrítica e auto--reflexiva no seu conhecimento dos objectos.»129

Por seu turno também Karl Popper fez notar quequalquer observação é sempre precedida por uminteresse em particular, ou um problema — em suma,por algo teórico — que faz com que as observaçõessejam sempre previamente direccionadas e, por isso,pressuponham um princípio de selecção. Assim, ao invés de se pretender que o conhecimento

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129Idem ibidem,pp. 35-36.

científico é um conhecimento «sem ponto de vista»(que significa aqui a anulação do sujeito observadorenquanto co-produtor do objecto que investiga)poder-se-á dizer que «definir um objecto de ciênciaequivale a estabelecer um ponto de vista.»130

c) Absolutismodo valor das teorias/relativismodascomunidades científicas.

A epistemologia clássica era uma epistemologiaabsolutista. Acreditava que as leis científicaspossuíam uma validade necessária, universal e eternae que o caminho da ciência era feito por umacumular de conhecimentos que gradualmenteengrandeciam o corpo do seu saber. Esta convicção,solidária aliás das ideias de que a ciência é o espelhodo real e de que o sujeito é um olhar transparente eneutro que nesse espelho projecta a verdade dosfactos, é também questionada nos nossos dias. Kuhn,por exemplo, alerta-nos para o facto da investigaçãocientífica estar fortemente ligada à educaçãorecebida pelos cientistas («as convicções fortes queexistem antes da própria investigação — escreveKuhn — aparecem frequentemente como pré-condições para o sucesso das ciências»131) e davalidade das teorias não poder ser dissociada dascomunidades científicas que as apreciam e em quesão discutidas. Tal alerta dá uma dimensão deprovisoriedade às teorias científicas e introdu-las no

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130Jeanne Parain-Vial, La Nature du Fait dans les Sciences Humaines, Paris, P.U.F.,1966, pp. 145

131T. S. Kuhn, «A função do dogma na investigação científica», in M. Mª. Carrilho(Org.), História e prática das ciências, Regra do jogo, 1979, p. 47.

campo da relatividade histórico-social da vida doshomens. Max Planck vincava já, curiosamente, estaideia da mutabilidade das verdades científicasvigentes e da sua dependência relativamente àscomunidades científicas, quando afirmava que umaverdade científica nova não é geralmente apresentadade modo a convencer aqueles que se lhe opõem...simplesmente a pouco e pouco eles morrem, e a novageração que se forma familiariza-se com a verdadedesde o início. Ou seja, a ciência não pode serdesligada das convicções com que os investigadores,pela sua formação, estão familiarizados nem podeser dissociada da persuasão com que pretendemvalidar as suas teorias perante o auditóriocompetente da comunidade científica. Neste sentidopode falar-se numa retórica da ciência cujafinalidade é justamente a de promover e assegurar acientificidade das teorias no contexto alargado dacomunidade científica que regula as práticas deinvestigação. Como concluía Kuhn, no seu posfácioao livro A Estrutura das Revoluções Científicas, «talcomo a linguagem, o conhecimento científico nãopode ser senão, intrinsecamente, a propriedadecomum de um grupo. Para o compreender, é precisoconhecermos as características especiais dos gruposque o criam e o utilizam.»132

d) Desenvolvimento por acumulação contínuadeverdades/desenvolvimento não-cumulativo, por crisese descontinuidades

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132T. S. Kuhn, La Structure des Révolutions Scientifiques, Flammarion, 1983, p. 284.

Referiu-se já na alínea anterior que na perspectiva daepistemologia clássica se via o caminho da ciênciacomo um acumular de conhecimentos queprogressiva e linearmente engrandeceriam o corpo doseu saber. No entanto esta visão cumulativa é hojecontestada por vários epistemólogos que procurampôr em relevo a tese segundo a qual odesenvolvimento da ciência passa por crises edescontinuidades, pela instauração de modelosexplicativos (paradigmas) que rompem com os queanteriormente vigoravam (Kuhn) ou por uma intensaactividade crítica cuja dinâmica visa a eliminação deerros (Popper). Outros epistemólogos, comoFeyerabend, vão ainda mais longe opondo, à pretensaunidade de uma ciência que progride por acumulaçãode verdades, o anarquismo epistemológico, que sepode sintetizar nas seguintes palavras: «há umapluralidade de teorias e de concepções; todasfuncionam, todas podem funcionar; nenhuma éverdadeira, mas isso não tem nenhuma importância.».

e) Determinismo/incerteza.Na ciência moderna dominou o princípio do

determinismo segundo o qual os fenómenos danatureza são regidos por nexos causais necessários.Partindo desta convicção no determinismo universal,reinava a crença de que a ciência eliminaria toda aincerteza e reflectiria a ordem necessária da natureza.Ora as contribuições da ciência no nosso século vêmpôr em causa este princípio: Heisenberg, físico alemãoe teórico da física dos quanta, formulou o princípio daincerteza que coloca o indeterminismo na base damecânica quântica.

REJEITAR OS ABSOLUTISMOS

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Outros epistemólogos têm vindo, por seu turno, ainsistir no facto de não se poder dissociar a ordem dadesordem e a vincar a ideia de que a ciência tem quetrabalhar com o aleatório, com o impreciso, com oindeterminado. Escreveu a este propósito EdgarMorin: «É certo que a missão quase vital da ciênciaaté ao fim do século passado consistiu em eliminar oincerto, o indeterminado, o impreciso, acomplexidade, para poder controlar e dominar omundo pelo pensamento e pela acção. Ora esta ciênciaconduziu, não à chave determinística universal, mas àproblemática fundamental da incerteza, da imprecisão,da complexidade. A ciência nova (...) em gestação éaquela que trabalha, que negocia com a áleatório, oincerto, o impreciso, o indeterminado, o complexo.»133

f) Verificação/falsificaçãoOutro dos conceitos centrais na epistemologia

clássica era o conceito de verificação. Seria averificação aquilo que asseguraria a cientificidade dasteorias e que mostraria em definitivo a sua validade.Esta é uma perspectiva que alguns epistemólogos —nomeadamente Karl Popper — hoje questionam. ParaPopper a ciência deve ser aberta, crítica e falibilista.Ela procede por conjecturas que poderão ser refutadasou falsificadas no seio das comunidades científicas. Aciência não surge, segundo esta perspectiva, como umconjunto de verdades irrefutáveis, mas sim como umesforço para eliminar o erro. A cientificidade aparece,desta forma, como meio de assinalar que uma teoria

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133 Cf. Edgar Morin. Ciência com Consciência, Publicações Europa-América, s/d.

não foi refutada ou falsificada e não como afirmaçãode que ela é, em definitivo, irrefutável.

g) Mundo da ciência/mundo davidahumanaA ciência moderna pretendeu ser absolutamente

autónoma. Pretendeu separar a validade das teoriascientíficas dos decretos da vontade humana.Pretendeu situar-se acima das controvérsiasfilosóficas que tantas vezes fez passar por fúteis edesinteressantes. Contudo, o próprio progresso dacivilização tem vindo a pôr cada vez mais emevidência a necessidade de destruir o mito daautonomia da ciência e de aliar o mundo da ciênciaao mundo da vida e do sentido. Exige-se, hoje, umaciência com consciência, ou, como escreve Morin,«é tempo de tomar consciência de que uma ciênciaprivada de reflexão e de que uma filosofiapuramente especulativa são insuficientes.Consciência sem ciência e ciência sem consciênciasão mutiladas e mutilantes.»134

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134 Cf. Edgar Morin. Ciência com Consciência, Publicações Europa-América, s/d.

1.3. A RETORICIDADE DO DISCURSO CIENTÍFICO

«Toda a ciência é retórica e a sua retórica é a cientificidade»Boaventura de Sousa Santos

A expressão «retoricizar a ciência» pode parecer, numaprimeira abordagem, estranha e suspeita. Com efeito, vemde longe a ideia segundo a qual o domínio da retórica e odomínio da ciência não só não se tocam como ainda seexcluem reciprocamente; além do mais, é característico datradição científica o esforço de eliminar do seu discursotodos os resíduos retóricos e, nesse movimento, a tentativade elaborar as normas do seu funcionamento segundo umideal de auto-suficiência e auto-engendramento que nadadevem ficar a dever ao assentimento humano. A ideia deque os números, ou os factos, falam por si mesmos, porexemplo, é a este respeito esclarecedora e inscreve-se nalinha de ideias segundo a qual a desumanização do discursoparece ser o mais forte aval da sua cientificidade.

Por outro lado, a própria distinção entre o científico e onão-científico parece ficar posta em causa se se admitir queo discurso científico é portador de uma dimensão retórica deque não pode ser dissociado. A irradicação desta últimaparece ser, mesmo, condição da ciência se afirmar como odiscurso transparente dos números, dos factos e das leis,como discurso que retira a legitimação da sua autoridade senão da própria realidade (da «coisa mesma»), pelo menosdo nível de abordagem que dela faz e que, do ponto de vistadas pretensões científicas, se situa sempre num plano de

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anterioridaderelativamente aos processos de comunicaçãoe de interpretação a que os seus dados podem vir a estarsujeitos. Ora, admitir a dimensão retórica da ciência não édesprover esta última da possibilidade de uma neutralidadesem a qual o seu discurso já não se saberia distinguir deoutros discursos? Não é torná-la um discurso entre outrosdiscursos? Não é, finalmente, descaracterizá-la até à suatotal desvirtuação?

A esta questão temos de responder com um «sim» ecom um «não».

Sim, se se persistir na ideia de que a ciência apenasreflecte a verdade dos factos e, portanto, se se pensar que aciência é a via de acesso ao real e à sua verdade. Estaspretensões, sublinhe-se, são antes de mais de ordemfilosófica, e fazem ecoar os fantasmas metafísicos da «coisamesma» e da «Natureza que fala por si mesma». Na medidaem que, nesta orientação, prevalece o pressuposto monista,esta concepção de ciência pode ser alvo das críticas queanteriormente tecemos às pretensões exacerbadas da tradiçãometafísica.

Não, se nos deslocarmos da compreensão da ciênciafeita em termos de verdade e de objectividade real parauma compreensão da ciência em termos de eficácia. Comefeito, a ciência não precisa de uma justificação filosófica— que aliás apenas é compreensível quando as suaspretensões são as de se substituir à filosofia — da suaactividade e dos seus feitos. Ninguém nega os seus poderesou contesta a sua eficácia. Mas a ciência deve ser tomadapor isso mesmo: como algo que permite ao homem intervirno curso dos acontecimentos, modificá-los, transformá-lose, até certo ponto, dominá-los e controlá-los. Ela deve sertomada por isso mesmo, isto é, como algo que

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146

simultaneamente abre e fecha possibilidades, como umsaber no qual operam simultaneamente, como em todo osaber, o conhecimento e o desconhecimento. Como umsaber ao qual subjazem sempre opções que, por definição,excluem a possibilidade do monismo das vias únicas,mesmo que travestido com as roupagens sedutoras de umaqualquer coincidência com a realidade ou portador de umapromessa de verdade que finalmente nos permitiria deixarde pensar/decidir.

Retoricizar a ciência não quer dizer questionar a suaeficácia; significa, sim, devolvê-la à dimensão crítica ehumana, fazendo o mito da objectividade ceder perante ojogo das negociações intersubjectivas e, deste modo,permitindo rearticular a ciência com o mundo da vida. Comoobservou A. Gross, lembrando a importância conferida porHusserl, na sua Crise das Ciências Europeias, ao mundo davida, o «conhecimento científico não é especial, mas social; éresultado não de revelação, mas de persuasão. Neste sentido,podemos ver a ciência como uma componente permanente domundo da vida de Husserl, no qual teve a sua origem, a parao qual devem estar dirigidos os seus propósitos.»135

A «viragem retórica», como lhe chamou Rorty em1984, consiste precisamente em centrar o interesse menosnos produtos da ciência do que nos seus processos e naspráticas dos cientistas. Para esta viragem foram de extremaimportância não só a obra de Kuhn e a ênfase dada por esteà educação científica e ao papel da comunidade científica,como também a de Feyerabend que, com a sua proposta dopluralismo metodológico, permite a substituição daepistemologia pela retórica.

REJEITAR OS ABSOLUTISMOS

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135Allan G. Gross, The Rhetoric of Science, Cambridge, Harvard University Press, 1990,p. 20.

A abordagem retórica da ciência parte de duas teses: 1)a de que a ciência não é fruto da actividade de indivíduosque, apenas na companhia dos seus telescópios,microscópios, máquinas de fotografar, aceleradores,computadores, etc., desenvolveriam solitariamente a suainvestigação, mas encontra-se não só socialmentecontextualizada como, ainda, inserida em comunidades maisespecíficas, com as suas instituições, as suas conferências ecolóquios, as suas revistas, os seus valores, as suas políticas,os seus objectivos; 2) a de que não há apenas um métodoem ciência, mas um pluralidade de abordagens — todasfeitas com recurso a uma linguagem —, ou estilos, quediferem de ciência para ciência, de programa deinvestigação para programa de investigação, de comunidadepara comunidade. Destas teses infere que o valor de umateoria científica depende não apenas da forma como seprocurou «atacar» o problema mas, também, da forma comoele é articulado no contexto de uma abordagem e de umacomunidade específicas.

Foi neste sentido que Boaventura de Sousa Santossalientou que, no domínio da ciência, a verdade é não sóindirecta e prospectiva — «não copia o que existe (a grandemetáfora da ciência moderna), copia, por assim dizer, o quehá-de vir, o que corresponde às expectativas»136 — comoacaba ainda por se identificar com a retórica da verdade:«Se a verdade é o resultado, provisório e momentâneo, danegociação de sentido que tem lugar na comunidadecientífica, a verdade é intersubjectiva e, uma vez que essaintersubjectividade é discursiva, o discurso retórico é ocampo privilegiado da negociação de sentido. A verdade é,

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148

136 Boaventura de Sousa Santos, Introdução a uma Ciência Pós-Moderna, EdiçõesAfrontamento, 1989, p. 108.

pois, o efeito de convencimento dos vários discursos deverdade em presença. A verdade de um discurso não é algoque lhe pertença inerentemente, acontece-lhe no decurso dodiscurso em luta contra outros discursos num auditório departicipantes competentes e razoáveis. Quando tal acontece,o discurso, de subjectivo, passa a objectivo.»137 Mas, e namedida em que, para compreender cabalmente osprocedimentos da produção dos conhecimentos científicos,é preciso saber tanto porque é que determinados argumentosforam considerados válidos e aceites pela comunidade,como porque é que outros foram desqualificados einvalidados, Boaventura de Sousa Santos propõecomplementar a abordagem retórica da ciência com umasociologia da retórica.138

Pelo nosso lado, limitar-nos-emos a indicar, sem apretensão de proceder a mais do que uma abordagemsuperficial, alguns elementos que mostram o trabalhar daretórica no coração da própria ciência, isto é, no desenrolardos seus procedimentos de investigação; não situaremos,neste livro, a nossa abordagem da presença da retórica nodiscurso científico no nível dos processos de vulgarização ede iniciação científica139 (relativamente aos quais GeorgesThinès propôs a distinção entre uma retórica externadodiscurso científico, que prepararia a acessibilidade dosresultados da ciência aos auditórios não-especializados, euma retórica internaque, num dos seus casos particulares,diria precisamente respeito aos procedimentos de iniciação

REJEITAR OS ABSOLUTISMOS

149

137Idem ibidem, p. 109.138Idem ibidem, p. 110.139Cf. Ch. Perelman, «La vulgarisation scientifique, problème philosophique», in Justice

et Raison, Éditions de l’Université de Bruxelles, 1972, 2ª. ed., pp. 118-120.140Cf. Georges Thinès, «Une rhétorique optimale du discours scientifique», in Vincent

de Coorebyter, Rhétoriques de la science, PUF, 1994, pp. 117-130.

aos conhecimentos científicos no quadro do seu ensino140),mas no nível da produção das teorias científicas,aproximando-nos, nesta orientação, daquela que foi propostapor Bruno Latour em Science in Action141. Figura conhecidapela sua ligação à chamada área da «sociologia da ciência»,a sua obra propõe que se desconstrua a ciência com afinalidade de mostrar que esta não é alheia às diversas forçasactuantes na sociedade, do mesmo modo que a sua prática eo seu tecer não são imunes à retórica. Pelo contrário, Latourpensa que a retórica não é um atributo acidental da ciência,algo de que esta pudesse ser depurada de modo a deixarapenas os seus dados. A isso que a ciência chama dados, istoé, às teorias ou aos factos que se tornaram tãocompactamente fundados que são olhados como verdadesinquestionáveis, chama Latour «caixas negras». E são elasque é preciso examinar para, percebendo como é que sãoconstruídas, encontrarmos nesse processo a importânciadesempenhada pelos argumentos que decidem que teorias eobservações devem ser consideradas verdadeiras e quaisdevem ser rejeitadas. Estudar a ciência em acção é, destemodo, remontar ao estádio em que o estabelecimento defactos e o uso de instrumentos (nos laboratórios, porexemplo) ainda não se tornaram seguros nem garantidos, éseguir o percurso da controvérsia que precede o seu«encapsulamento», ou, ainda, retomar as controvérsias quereabrem as «caixas negras».

A tematização retórica da ciência, por conseguinte, aomesmo tempo que se afasta da mítica ideia de que «os factosfalam por si mesmos», não se contenta também com aposição do construtivismo racionalista segundo a qual ésempre uma teoria que fala pelos factos, retorquindo a esta

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150

141Bruno Latour, Science in Action, Cambridge, MA: Harvard University Press, 1987.

que, por sua vez, há sempre alguém que fala pelas teorias: ocientista ou o grupo de cientistas, a comunidade científica,etc.

É nessa ordem de ideias que Boaventura de SousaSantos afirma haver uma duplicidade retórica no processode produção da ciência: a que diz respeito aos processos deauto-convencimento do investigador e a relativa aosprocessos de convencimento da comunidade científica cujojuízo é, por esse mesmo investigador, antecipado. «Mas ocientista, se fôr competente, isto é, se conhecer bem acomunidade científica a que se dirige, sabe que a tradiçãointelectual instaurou uma duplicidade e que, por isso, osexpedientes que usa para se auto-convencer não coincidemou não têm de coincidir exactamente com aqueles quepodem convencer a comunidade científica. Advertido dessaduplicidade, toma as medidas necessárias durante oprocesso de investigaçãopara neutralizar, ou seja, para queos resultados a que chega sejam tão convincentes à luz dosexpedientes privados (a consciência do valor de uso dosresultados) como à luz dos expedientes públicos (aconsciência do valor de troca dos resultados).»142

Mas a retoricidade da ciência pode ser aindaconsiderada do ponto de vista do uso das metáforas e dasanalogias no discurso científico. Perelman, por exemplo,considera o uso das analogias como um ponto de apoio parao pensamento científico criador, o qual parte muitas vezesdelas quanto mais não seja para, posteriormente, as superarem função da «conclusão de uma semelhança, dapossibilidade de aplicar tanto ao tema como ao foro os

REJEITAR OS ABSOLUTISMOS

151

142Boaventura de Sousa Santos, Introdução a uma Ciência Pós-Moderna, EdiçõesAfrontamento, 1989, p. 1119.

143TA, p. 531.

mesmos conceitos. Procurar-se-á reunir tema e foro numúnico campo de investigação, tornando-os passíveis dosmesmo métodos.»143 Nelson Goodman refere também, porseu turno, que «supor que a ciência é decididamentelinguística, literal e denotativa seria ignorar, por exemplo,os instrumentos analógicos por vezes usados, a metáforaenvolvida na medição quando o esquema numérico éaplicado a um novo domínio, e o discurso sobre o charme,estranheza e buracos negros na física e astronomiaactuais.»144

Por fim, o papel e o uso da retórica na ciência e nainvestigação científica podem ainda ser assinalados por umareferência às questões do método. Quer a ciência, quer ainvestigação, são geralmente conduzidos através deprocedimentos metódicos rigorosos. Contudo, oestabelecimento dos preceitos metodológicos não são denatureza científica, mas remetem para a retórica. QuandoAristóteles explica, nos seus Tópicos, a utilidade dosraciocínios dialécticos (cuja aplicação procura evidenciar nasua Retórica), escreve o seguinte: «Prosseguindo, cumpre-nos enumerar e descrever as utilidades que se podem extrairdeste tratado. Por três formas é útil: como exercício, nosencontros quotidianos casuais, e nas ciências filosóficas.Que seja útil como exercício é por si mesmo óbvio, pois queo domínio deste método nos capacitará mais paraargumentar acerca do tema proposto. É também útil nosfortuitos encontros do dia-a- -dia, porque, uma vez in-ventariadas as opiniões do vulgo, podemos confrontar-noscom ele no campo das suas próprias opiniões, e não nocampo dos dogmas, que lhe são estranhos, deitando abaixo

CONSEQUÊNCIAS DA RETÓRICA

152

144Nelson Goodman, Modos de fazer Mundos, Edições ASA, 1995, p. 158.

todo o argumento que não pareça bem fundamentado.Quanto ao estudo das ciências filosóficas, a possibilidade detrazer os argumentos pró e contra às diaporias levar-nos-á adescobrir com maior facilidade a verdade e o erro em cadacaso. Outra util idade ainda, quanto aos princípiosprimeiros de cada ciência: é impossível sujeitá-los adiscussão a partir dos mesmos princípios da ciênciaparticular em causa, posto que os princípios são oselementos anteriores a tudo o mais; estes devem discutir-se àluz e em virtude das opiniões prováveis relativas a cada umdeles, e esta é a tarefa própria, ou mais apropriada, àdialéctica, porque em virtude da sua natureza indagatriz,ela nos abre o caminho aos princípios de todo o método.»(100b-102a)

Gostaria de salientar dois pontos neste excerto, um decarácter geral e outro relativo à frase sublinhada. O primeiroé o de que, segundo Aristóteles, recorre-se aos raciocíniosdialécticos quando os princípios deixam de ser indiscutidose se tornam alvo de discussão. Os raciocínios dialécticos,que o Estagirita opõe aos raciocínios analíticos — utilizadosem ciência e que permitem, partindo de premissas e emobediência a princípios lógicos e a regras de inferência apartir deles formuladas, inferir de uma forma necessária —são aqueles que se encontram nos debates e nascontrovérsias de toda a espécie e que se ligam não à verdadeou à certeza apodíctica, mas às opiniões e à suaplausibilidade.

Em segundo lugar, os raciocínios dialécticos sãoaqueles em que a razão não se encontra subordinada a ummétodo. Neles não se trata de submeter a razão aprocedimentos metódicos pré-definidos, mas de avaliar osprincípios que estão na base de todo e qualquer método.

REJEITAR OS ABSOLUTISMOS

153

O que destas duas observações pretendo concluir não éque a retórica não tenha qualquer afinidade com a ideia demétodo, mas que só à luz da retórica é possível abordar osmétodos como questãoe averiguar os processos queconduzem aos seus estabelecimentos e transformações.

De todos os pontos, sumariamente salientados,poderemos então concluir que o processo dedesdogmatização da ciência moderna, para que contribuiu aepistemologia contemporânea, pode, à luz da retórica,ganhar um novo fôlego e possibilitar a desmistificação dosprivilégios que foram atribuídos ao conhecimento científico,restituindo-lhe um rosto em que o questionamento, aproblematicidade, a multiplicidade e a controvérsia sãoincontornavelmente os seus traços humanos.

CONSEQUÊNCIAS DA RETÓRICA

154

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CONSEQUÊNCIAS DA RETÓRICA

158

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Índice

Prefácio: Retórica e Desassossego. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5

Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

I. Rejeitar os absolutismos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131. Sob o signo da unidade e da necessidade . . . . . . . . . . . . . . . . 172. Ontologização do saber, diálogo e dialéctica . . . . . . . . . . . . . 213. Platão e a retórica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 254. A dimensão teoricista do saber frente à sua dimensão prática. .

Reabilitação dos sofistas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 315. A dinâmica do plural . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37

5.1. Pluralismo filosófico e criticismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . 375.2. Radicalidade, paixão das ultimidades e . . . . . . . . . . . . .

desconstrucionismo explicitante . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 395.3. Fundamentos absolutos, fundamentos suficientes . . . . . 415.4. A retórica ou as figuras do pragmatismo humano . . . . . 47

II. Tematização retórico-interrogativa da filosofia . . . . . . . . . 556. Alguns conceitos fundamentais do horizonte . . . . . . . . . . . .

filosófico contemporâneo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 577. A contemporaneidade no exemplo da filosofia . . . . . . . . . . .

hermenêutica de Gadamer: uma abordagem crítica . . . . . . . . 598. Do centramento ontológico da filosofia hermenêutica . . . . .

à emergência do retórico e do pragmático: . . . . . . . . . . . . . . um confronto entre Gadamer e Perelman . . . . . . . . . . . . . . . . 69

9. Argumentação, retórica e filosofia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 779.1. O campo da argumentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 779.2. A tematização contemporânea da problemática da. . . . .

argumentação: os contributos de Toulmin e de Perelman. . 809.3. O significado da reabilitação e da renovação . . . . . . . . .

perelmaniana da retórica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 899.4. O interesse filosófico de uma teoria da argumentação . . 959.5. Da argumentação à retórica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98

10. A inevitabilidade do lance retórico: . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . elementos para uma antropologia retórica . . . . . . . . . . . . . . . 109

III. Retoricizar a ciência. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121

11. Cultura e conhecimento científico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125

12. Os contributos da epistemologia contemporânea. . . . . . . . . .

no movimento de desdogmatização da ciência moderna . . . . 135

13. A retoricidade do discurso científico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145

Referências Bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155

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