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7/25/2019 Caderno-aTempo-volume-2.pdf
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Marcelina das Graas de Almeida
Edson Jos Carpintero Rezende
Giselle Hissa Safar
Roxane Sidney Resende de Mendona
(organizadores)
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C122 Caderno atempo : histrias em arte e design /Marcelina das Graas Almeida, Edson Jos Carpintero Rezende,Giselle Hissa Safar, Roxane Sidney Resende Mendona (organizadores). --
Barbacena : EdUEMG, 2015.
117p. ; il. color. -- (Caderno atempo : histrias em arte e design ; v. 2)
ISBN: 978-85-62578-57-1Inclui bibliograas
1. Desenho (Projetos) Estudo e ensino. 2. Arte (Histria) 3.Abordagem interdisciplinar do conhecimento Desenho (Projetos).I. Almeida, Marcelina das Graas. II. Rezende, Edson Jos Carpintero.III. Safar, Giselle Hissa. IV. Mendona, Roxane Sidney Resende de.V. Universidade do Estado de Minas Gerais. Escola de Design. VI. Ttulo.
CDU: 7.05:7(091)
Ficha Catalogrca: Cileia Gomes Faleiro Ferreira CRB 236/6
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BarbacenaEditora da Universidade do Estado de Minas Gerais - UEMG
2015
CoordenadoraMarcelina das Graas de Almeida
OrganizadoresEdson Jos Carpintero Rezende
Giselle Hissa SafarRoxane Sidney Resende de Mendona
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Cadernos aTempo Histrias em Arte e Design
Ncleo de Design e Cultura - NUDECEscola de Design da Universidade do Estado de Minas Gerais ED UEMG
Universidade do Estado de Minas Gerais
ReitorDijon De Moraes Jnior
Vice-reitorJos Eustquio de Brito
Chefe de GabineteEduardo Andrade Santa Ceclia
Pr-reitor de Planejamento, Gesto e FinanasAdailton Vieira Pereira
Pr-reitora de Pesquisa e Ps GraduaoTerezinha Abreu Gontijo
Pr-reitora de EnsinoRenata Nunes Vasconcelos
Pr-reitora de ExtensoVnia Aparecida Costa
EdUEMG - Editora da Universidade do Estado de Minas GeraisCoordenao
Danielle Alves Ribeiro de Castro
Projeto grco
Dbora de Lima e Melo / Breno Pessoa dos Santos / Equipe LDG
IlustraesTelma Martins
Produo editorial e revisoDanielle Alves Ribeiro de Castro
Escola de Design da Universidade do Estado de Minas GeraisDiretora:Simone Maria Brando M. de Abreu
Revisores
Andr Borges MeyerewiczPatrcia Pinheiro de SouzaPaula Barreto Paiva
Organizadores:Edson Jos Carpintero Rezende
Giselle Hissa SafarMarcelina das Graas de Almeida
Roxane Sidney Resende de Mendona
2015, Cadernos aTempo Histria em Arte e DesignEdUEMG - Editora da Universidade do Estado de Minas Gerais
Avenida Coronel Jos Mximo, 200 - Bairro So SebastioCEP 36202-284 - Barbacena /MG | Tel.: 55 (32) 3362-7385 - [email protected]
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Conselho Editorial do Caderno aTempo
Profa. Dra. Adalgisa Arantes Campos UFMGProfa. Dra. Giselle Beiguelman USP
Prof. Dr. Jos Francisco Ferreira Queiroz CEPESE,
Universidade do Porto e Escola Superior Artstica do PortoProf. Dr. Leandro Cato UEMG/ Faculdade Educacional de Divinpolis
Profa.Lucy Carlinda da Rocha de Niemeyer ESDI/RJProfa. Luzia Gontijo Rodrigues UEMG
Prof. Dr Marcelo Kraiser - UFMGProf. Dr. Marcos Csar de Senna Hill- UFMG
Profa. Dra. Maria Ceclia Loschiavo Santos USPProfa. Dra Maria Elizia Borges UFG
Profa. Dra. Maria Lucia Santaella Braga PUC/SPProf. Dr. Rodrigo Vivas UFMG/PUC/MG
Conselho Editorial EdUEMG
Dijon Moraes Junior (Presidente)Fuad Kyrillos Neto
Helena LopesItiro Iida
Jos Eustquio de BritoJos Mrcio Barros
Paulo Srgio Lacerda BeiroVnia A. Costa
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Incio Apresentao 08
Prefcio 010
Captulo 1 Cdigos e Etiqueta masculina: uma leitura de representaes de masculinidade na arte funerria paulistana 15
Maristela Carneiro
Captulo 2 Questionamentos sobre a oposio marcada pelo gnero entre produo e consumo no 25
design moderno brasileiro: Georgia Hauner e a empresa de mveis Moblinea (1962-1975)
Marins Ribeiro dos Santos
Captulo 3 Artefatos de identidade: questes de gnero nos reclames dosAlmanachsde Pelotas 45
Paula Garcia Lima; Francisca Ferreira Michelon
Captulo 4 Uma interseccin de trs historias: mujeres, cultura escrita y disen 60
Marina Garone Gravier
Captulo 5 A presena da mulher na trajetria do cinema brasileiro 73
Adilson Marcelino
Captulo 6 Hilma of Klint: uma arte para o futuro 84
Vnia Myrrha de Paula e Silva
Captulo 7 Mendini: a encenao do masculino na Coleo Mobili per Uomo 93
Adriana Nely Dornas Moura
Captulo 8 As mulheres e o design no Brasil 109
Auresnede Pires Stephan
Contato 116
Sumrio
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Apresentao
com alegria que entregamos ao nosso pblico leitor o segundo
volume do Caderno aTempo: histrias em arte e design, nessa
edio, tendo como tema norteador o gnero.
A proposta apresentada aos autores foi pensar a categoria
conceitual a partir de toda a sua dimenso e complexidade,
reetindo sobre os discursos e prticas, tanto sob os aspectos
que envolvem o masculino, o feminino e o neutro. A questo
fundamental se alicera na reexo sobre o visvel e o invisvel
que se constroe quando nos propomos a conhecer e analisar edebater a complexidade das relaes histricas e sociais que se
constituem ao redor desta temtica.
Nesse sentido os captulos que compem essa edio pretendem
ser uma contribuio para enriquecer as discusses que esto
sendo feitas em diversos campos do conhecimento, entretanto
nessa publicao, procuram enfatizar o olhar dos designers,
historiadores e pesquisadores da arte.
Desejamos a todos uma boa leitura e acreditamos que osaspectos destacados, certamente, suscitaro novas perguntas e
ampliaro o campo do debate.
Marcelina das Graas de Almeida
Edson Jos Carpintero Rezende
Giselle Hissa Safar
Roxane Sidney Resende de Mendona
Equipe editorial
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Ao acolher nessa edio pesquisas em design que enfatizam a identidade de gnero, seus
editores abrem um espao para a reexo sobre um tema com muitas histrias, ainda pouco ou
insucientemente, contadas. Assumem mais uma vez o compromisso tico que valoriza e reconhece
o papel do design na sociedade no sentido mais absoluto da atividade. Uma tarefa que inclui a
integrao de vrios registros, em diferentes vozes, reas e lugares.
No Brasil, os estudos da produo cientca baseada no gnero, ganha visibilidade no incio dos
anos 1990 na passagem de estudos da mulher para estudos de gnero. No campo do design, o
reconhecimento das realizaes femininas nem sempre encontra eco nos relatos histricos, com
poucos registros e muitas lacunas por preencher.
Se hoje assistimos ao incremento e crescimento da pesquisa na rea, ainda faltam estudos que
abordem a importncia da mulher como prossional que se articula dentro do contexto social e
cultural em que a atividade e as relaes de gnero se do.
Como fenmeno cultural com articulaes complexas entre instncias e competncias mltiplas,
o design utiliza vrios saberes e pontes interdisciplinares que deveriam ultrapassar qualquer
exclusividade, seja ela de gnero ou de genialidade.
Nessa publicao, o tema tratado sob diferentes abordagens, mas que convergem na constatao quea participao da mulher no design entrou pelas bordas da atividade. L-se no conjunto de artigos as
restries, esteretipos e a invisibilidade do gnero nos diferentes domnios do design, evidenciando o
papel secundrio ou oculto que a mulher ocupa no desenho do desenvolvimento dessa disciplina. Um
reconhecimento dos atos de autoria que a diversidade, como matriz do design, no poderia omitir nem
esconder. Reconhecimento que ganha voz neste espao, por meio dos autores aqui reunidos.
A pesquisadora Maristela Carneiro em seu capitulo intitulado Cdigos e Etiqueta Masculina: uma
leitura de representaes de masculinidade na arte funerria paulistana discorre sobre duas questes
que, modo geral, so pouco consideradas no debate acadmico: a nudez masculina e os espaoscemiteriais como objetos de investigao. Atravs da anlise de dois tmulos, que compem
o acervo do Cemitrio da Consolao, pertencentes famlias tradicionais da elite paulistana
do incio do sculo XX, a autora argumenta sobre a representao do nu masculino e a rede de
construes de signicados que podem ser lidos e arremata: Ao compreendermos a nudez como
uma forma narrativa polissmica, especca e inscrita no corpo humano, entende-se as imagens
representacionais de masculinidade e feminilidade como lugares de negociao.(p.12) E neste
sentido Maristela Carneiro aponta aspectos relevantes para se pensar a gramtica simblica da arte
e arquitetura tumular e,ao mesmo tempo, as construes imagticas acerca de temas peculiares
como a representao do masculino nestes espaos e de modo especco, a nudez.
Prefcio
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A designer Marins Ribeiro dos Santos analisa a trajetria e produo da prossional Georgia Hauner
junto empresa de mveis Mobilnea. Ela estabelece uma relevante discusso sobre o lugar do
feminino e o signicado deste lugar no universo do design, da produo e consumo, permitindo
ao leitor, enveredar por um tema delicado e recorrente na contemporaneidade: o protagonismo
da mulher no tecido social e de modo particular em setores, eminentemente, masculinos. Sob o
ponto de vista da autora: O estudo da atuao de Georgia Hauner [...] oportuniza a critica a um
certo apagamento da participao das mulheres na historiograa do design. (p.24)
Paula Garcia Lima e Francisca Ferreira Michelon apresentam uma pesquisa sobre os anncios
ou reclames da publicao intitulada O Almanach,que circulou entre os anos de 1913 e 1935.
Publicado na cidade de Pelotas e nos seus arredores teve um grande alcance dentro daquela
sociedade, determinando identidades, reforando diferentes papis para homens e para mulheres.Os anncios dos Almanachs, como objetos de design grco, reetem as relaes de gnero do
contexto da poca a partir da observao da promulgao do papel atribudo mulher de assumir
as lidas domsticas e cuidar do esposo e lhos.
As representaes dos homens e das mulheres nesses reclames evidenciam o lxico visual de um
iderio de comportamento, permeado de valores traduzidos nas composies de imagem/texto.
As guras ilustravam poses e comportamentos aceitveis e desejveis cujas vestes e cenrios
esclareciam e reforavam a viso androcntrica peculiar poca
Marina Garone Gravier, no ensaio Una interseccion de tres historias: mujeres, cultura escrita y diseo
aborda a relao que as mulheres tem estabelecido com o mundo dos livros, tipograa e impresso,
principalmente a partir do perodo da impresso manual (sculo XV para o primeiro tero do sculo
XIX). Tratam -se de referncias isoladas e para muitos quase desconhecidas. Esta fragmentao
atribuida, em alguns casos, s prticas metodolgicas e discursivas tendenciosas de grande parte
dos historiadores e bibligrafos. Em outros, diculdade de localizao de fontes primrias. Isso
impediu construir uma viso geral do impacto do desempenho das mulheres na divulgao da
cultura escrita e impressa e gerar informaes sobre as questes de gnero. Os temas abordados
no trabalho so a relao das mulheres com a leitura, a escrita e os livros e a sua participaolaboral no mercado editorial. Traz informaes de algumas tipgrafas europeias e mexicanas de
destaque para chegar a casos mais contemporneos de mulheres editoras e designers.
Em A presena da mulher na trajetria do cinema brasileiro, Adilson Marcelino apresenta em
linguagem leve, porm atenta ao rigor histrico e cientco, a crescente participao da mulher
no cinema brasileiro ao longo das dcadas do sculo XX. No trata apenas das atrizes, mas inclui
diretoras, roteiristas, produtoras, enm a pouco conhecida histria das mulheres atuando nos mais
diferentes fazeres cinematogrcos. Por meio do resgate de protagonistas e referncias a inmeros e
relevantes trabalhos, o autor fala do desempenho feminino em um campo de certa forma inesperadopara as primeiras dcadas do sculo e certamente, ainda bastante refratrio na contemporaneidade.
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Vnia Myrrha em Hilma af Klint: uma arte para o futuro, levanta a discusso sobre o pioneirismo
da pintora sueca Hilma af Klint (1862 1944) no desenvolvimento da arte abstrata. Enquanto
a maioria defende a ideia de Kandisnky (1866-1944) e outros artistas do sexo masculino como
precursores da pintura no gurativa na segunda dcada do sculo XX, ela aponta os caminhos
desbravados por uma mulher alguns anos antes. A autora nos apresenta o envolvimento de Hilma
af Klint no meio artstico feminino e esotrico na passagem do sculo XIX para o XX, desenvolvendo
sua arte na busca do conhecimento e compreenso de si mesma e da ligao do mundo visvel com
uma dimenso espiritual. Integrada a um grupo de mulheres pintoras, The Five(De Fem), a artista
permaneceu muitos anos em uma esfera restrita, j que, diferente de seus contemporneos, a
maioria homens, no exps em vida suas telas abstratas, solicitando, ainda, que fossem mostradas
apenas 20 anos aps a sua morte (1944). Esse seria um dos motivos do pouco reconhecimento daobra de Hilma que, na viso da autora, alm de desbravar um universo artstico masculino, exerceu
importante papel nas artes abstratas, pintando, entretanto, seus quadros para o futuro.
Adriana Dornas, por meio do estudo da coleo Mobili per Umo do designer italiano Alessandro Mendini
(1931-), compactua com a atual discusso sobre a necessidade da abordagem do design pela questo
de gnero, uma vez que essa relao possui um carter social e cultural evidente nas relaes humanas,
presentes em nossas aes e a percepes do cotidiano de forma essencial. Primeiramente, a autora
destaca o importante papel de Mendini na histria da ruptura do design italiano, principalmente, a partir
da dcada de 70, quando se passava a incluir novos valores pratica projetual, aproximando os objetos
do cotidiano e da diversidade cultural dos grupos humanos. Em seguida, Dornas apresenta a coleo de
armrios Mobili per Umorealizada por Mendini entre 1997 e 2004, onde destaca o trabalho do designer
dentro do universo masculino, incluindo na coleo elementos desse universo que julga represent-lo.
A partir de uma anlise semiolgica dos objetos da coleo, a autora interpreta essa abordagem de
Mendini, concluindo que, apesar do designer ousar permear as fronteiras entre arte e design, funo e
signicao, a coleo arma o mundo masculino por signicaes muito prximas daquelas propostas
pelo discurso tradicional, como o trabalho e a fora fsica
Auresnede Pires Stephan, aps uma breve, porm esclarecedora, apresentao da complexa situao
das mulheres trabalhadoras no emergente cenrio da industrializao e do contexto urbano
brasileiros do nal do sculo XIX e incio do sculo XX, introduz suas consideraes e reexes
sobre a atuao feminina no design do pas. As mulheres e o design no Brasil faz um registro de
protagonistas em diferentes regies brasileiras, mas com uma compreensvel nfase no eixo Rio-
So Paulo. O autor apresenta prossionais e intelectuais que contriburam para a implantao
conceitual e projetual do design no Brasil. O texto nos leva reexo sobre o enorme potencial
que o assunto oferece para pesquisas e estudos que possibilitem a construo de uma histria
mais legtima. Descartando a funo exclusiva de registro histrico, o texto pretende ser mais um
chamamento, uma convocao ao aprofundamento das reexes sobre as mulheres que ajudarama construir a histria do design brasileiro bem como seus respectivos contextos.
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a esse chamamento que fao eco convocando a todos para a leitura de contedos que pretendem,
acima de tudo, nos instigar a ver alm de esteretipos e preconcepes e direcionar um olhar amplo e
receptivo a criaes que, antes de serem de um gnero ou outro, so produtos da genialidade humana.
Maria Bernadete dos Santos Teixeira
Professora Escola de Design, UEMG
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Como bero dos Jogos Olmpicos, a Grcia Antiga atribua signicativa importncia ao esporte e ao
cultivo do corpo. Homens concebiam o tempo nos ginsios como uma oportunidade de preparao
para a guerra. Qualquer sinal de fraqueza ou debilidade era percebido como feminino e indesejvel.
Esta cosmoviso certamente sugere a existncia de determinados cdigos de gnero, demonstrando
que papis masculinos e femininos so atribudos social e culturalmente h muitos sculos.
A masculinidade no tomada enquanto um discurso nico, homogneo e/ou verticalizado, mas
como uma coleo de informaes atribudas e debatidas em diferentes tempos e espaos, assim
como tambm ocorre com os discursos acerca da feminilidade. O conceito de gnero, em particular,
tem sido uma categoria utilizada e difundida de forma crescente nas ltimas dcadas. Matos (2005,
p. 22) destaca que a proposta basicamente relacional deste conceito ressalta que a construo
do feminino e masculino dene-se um em funo do outro, uma vez que se constituram social,
cultural e historicamente em um tempo, espao e cultura determinados.
Neste captulo buscamos demonstrar atravs da leitura de duas imagens funerrias, a serem
apresentadas na sequncia, a presena de cdigos de masculinidade. Neste caso particular, tais
cdigos so forjados como parte da resposta ao problema da nitude na sociedade paulistana da
primeira metade do sculo XX. Faz-se pertinente pontuar que a morte uma problemtica social,
que se concretiza de mltiplas formas no espao cemiterial, em torno da busca por perenizar a
memria do ambiente que o abriga.
Diante do pressuposto de que as relaes de gnero so um elemento constitutivo das relaes
sociais baseadas nas diferenas hierrquicas que distinguem os sexos, em outras palavras, umaforma primria de relaes signicantes de poder; ainda segundo Matos (2005, p. 22), devemos
evitar as oposies binrias xas e naturalizadas.No interior desse debate que nos propomos
a reetir sobre a categoria de masculinidade. Para tanto, selecionamos dois suportes funerrios
provenientes do acervo do Cemitrio da Consolao, em So Paulo/SP: os tmulos da Famlia David
Jafet e de FauziMaluf, concebidos respectivamente pelos escultores Germano Mariutti (1923-2010)
e Antelo Del Debbio (1901-1971).
1 Doutoranda em Histria pelo PPGH-UFG, atualmente em perodo sanduche na Universitdegli Studi di NapoliFederico II, em Npoles, Itlia. Bolsista CAPES/CNPQ. E-mail: [email protected]
Cdigos e etiqueta masculina:uma leitura de representaes de
masculinidade na arte funerria paulistanaMaristela Carneiro1
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Reetir sobre as representaes artsticas da arte funerria paulistana fazendo uso da categoria
de masculinidade implica reconhecer que cada obra artstica um suporte de representao de
um corpo sempre imaginrio, revelador de determinadas narrativas e concepes de masculino e
de feminino. Pendendo para representaes idealistas ou realistas, o corpo na arte sempre um
corpo generecado (BATISTA, 2011, p. 69). Ao buscarmos as representaes de masculinidade nasesttuas pretendemos identicar as tenses existentes entre vrios modelos e esteretipos que
so utilizados para construir o conceito de masculino.
Contemplamos como fonte de estudo duas obras funerrias masculinas provenientes do Cemitrio
da Consolao, conforme j observado. Este espao funerrio um dos mais signicativos e
destacados espaos de sepultamento no Brasil, em virtude da prpria conjuntura paulistana na
virada do sculo XIX para o XX, transformada rapidamente de cidade de fazendeiros em cidade de
imigrantes (GLEZER, 1994, p. 164). O cemitrio em questo administrado pelo Servio Funerrio
do Municpio de So Paulo. Esta autarquia ligada Prefeitura administra os vinte e dois cemitriosmunicipais, onze agncias funerrias (postos de atendimento aos muncipes para contratao de
funeral), dezoito velrios e um crematrio.
Para o Cemitrio da Consolao o Servio Funerrio disponibiliza um guia para visitas monitoradas,
tornando o espao acessvel para pesquisas acadmicas. Trata-se do primeiro cemitrio pblico a
ser fundado em So Paulo, em 1858, com a denominao Cemitrio Municipal, assim como o mais
antigo ainda em funcionamento na cidade. Localizada atualmente em uma das reas mais valorizadas
da cidade Bairro de Higienpolis, a necrpole encontra-se em bom estado de conservao.
O Cemitrio da Consolao hoje notadamente marcado pela grande quantidade de tmulos depersonagens daquilo que Martins (2008, p. 12) chama de velha cultura do caf, vrios dos quais
responsveis pela transio do trabalho escravo para o trabalho livre, como Antnio da Silva Prado
(1840-1929), bem como de grandes empresrios, principalmente industriais, que disseminaram
a moderna economia capitalista em So Paulo e no Brasil, como Diogo Antnio de Barros (1791-
1876) e Roberto Cochrane Simonsen (1889-1948).
Segundo Matos (2001, p. 23), a expanso urbana de So Paulo esteve vinculada diretamente aos
sucessos e/ou diculdades da economia cafeeira. Isso permitiu que em poucos anos a capital paulista
pudesse se consolidar como grande centro capitalista, integrador regional, mercado distribuidor ereceptor de produtos e servios, fatores estes nitidamente vinculados ao crescimento da produo
cafeeira. O desenvolvimento paulistano tambm foi condicionado pela entrada da estrada de ferro
e o papel da imigrao, mudando em denitivo, segundo Schwarcz (2012, p. 46), as feies, os
dialetos, a culinria e os servios pblicos paulistanos.
A anlise das vrias representaes de masculinidade a partir do acervo artstico do campo funerrio
em questo uma possibilidade de lanarmos luzes sobre as facetas do projeto modernizador
paulistano. Isso porque nesse processo diferentes sentidos da modernidade foram construdos e
reconstrudos atravs dos tempos e por vrios grupos e setores (MATOS, 2007, p. 45), os quais se
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fazem, tambm se tornam existentes, representados, presenticados na cidade dos mortos. Aqui
vemos a expresso dos traos identitrios da sociedade de So Paulo, que oscilava entre a armao
hegemnica da elite e a incorporao dos novos elementos da vida cultural, representaes estas
que buscamos contemplar nesta investigao.
A primeira imagem a ser analisada procede do tmulo da Famlia David Jafet, de autoria do escultor
Germano Mariutti, possivelmente datado do incio da dcada de 1950 (FIGURA 1). Trata-se de um
conjunto escultrico monumental, cuja estrutura confeccionada em granito polido marrom eestaturias em bronze. Construdo em formato capelar, apresenta dois nveis distintos, constitudos
de forma a destacar tanto a verticalidade da estrutura como um todo, quanto o nvel superior,
onde encontramos duas composies em bronze e a cruz, ao centro, assim como a designao do
tmulo tambm em bronze: FAMLIA DAVID JAFET.
No nvel inferior, destacam-se a porta frontal e as janelas laterais, elementos constitudos em
bronze. Encimando este nvel, encontramos em bronze as palavras: LABOR, HONORITAS e FAMLIA,
da esquerda para a direita, enfatizando o trabalho, a glria e os laos familiares. Em consonncia
com estes valores, direita observamos um conjunto familiar composto por um homem, umamulher e uma criana, caracterizado de forma estilizada maneira da Antiguidade Clssica: tanto
o homem, quanto a mulher vestem o quton grego e usam penteados estilizados de poca. A pose
da mulher, abaixada e segurando a criana, aos ps do pater familias, parece remeter estrutura
familiar romana (FIGURA 2).
Por sua vez, esquerda temos a representao de uma gura masculina, com o torso nu, brandindo
ferramentas de trabalho (FIGURA 3). A caracterizao pode ser interpretada como alusiva ao
personagem Hefesto, deus grego dos trabalhos manuais, aqui representado empunhando um
martelo e uma tenaz contra uma bigorna. Na cabea podemos observar uma coroa de louros, o
Figura 1 Figura 2 Figura 3
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torso apresentado nu e a gura veste um avental de ferreiro, enquanto apoia o brao da tenaz
sobre uma colunaelementos clssicos e contemporneos em simbiose. Atrs da esttua axada
uma roda dentada, referncia simblica indstria e ao trabalho.
A ideia geral de trabalho reforada pela posio ereta e pela musculatura evidente com as quais agura apresentada, alm dos elementos supra mencionados os instrumentos do artce, a roda
dentada e a palavra labor. Observamos a convergncia para a construo discursiva do trabalho
como valor de enobrecimento burgus, ou seja, do homem que se tornou destacado socialmente
atravs do prprio esforo corporal, ao invs de ter nascido de uma linhagem nobre ou privilegiada,
como o Davi que triunfa sobre Golias, pelos mritos corpreos prprios. Tal discurso vemos se
fazer presente em muitos tmulos de famlias imigrantes, que vieram para o Brasil na virada do
sculo XIX para o sculo XX, por exemplo.
A famlia Jafet, em questo, faz parte da primeira gerao de imigrantes libaneses em So Paulo,
fundamental para a formao da elite industrial paulistana, cujos smbolos e legados ainda se
fazem presentes na cidade, por exemplo, o Hospital Srio Libans.Os elementos escolhidos para
a individualizao da memria familiar em um tmulo so signicativos para os determinados
grupos sociais que fazem parte dos elos sociais em determinado perodo e que so transferidos
para o espao cemiterial.
Ademais, as representaes escolhidas so as representaes possveis de serem construdas
e exibidas tendo em vista determinada moral regente e sociedade. Para Batista (2011), h nas
representaes artsticas de nudez um sistema de polaridade no qual o feminino est vinculado a
ideias de sensualidade, do selvagem, da uidez, da passividade. J a nudez masculina expressivada lgica, da linearidade, da racionalidade e do equilbrio. A representao deste homem seminu
na construo tumular de David Jafet implica a valorizao da masculinidade viril, do homem
provedor, associado ao mundo do trabalho, em face da presena de instrumentos e/ou de atributos
que remetem atuao prossional.
Observamos que as representaes de masculinidade associadas virilidade, fora e ao vigor
fsico, como o exemplo que ora apresentamos, so as mais hegemnicas imagens do ideal de
ser-homem no mundo burgus. Isso se deve valorizao do trabalho e funo deste como
engrandecimento social. H que se ressaltar que, a simbologia presente nos tmulos serve muitasvezes individualizao da sepultura e a construo da memria do falecido e/ou da sua famlia.
A memria que esta famlia busca perenizar quela associada ao empreendedorismo da famlia
Jafet no espao urbano paulistano.
Arma Nolasco (1993, p.50): O trabalho e o desempenho sexual funcionam como as principais
referncias para a construo do modelo de comportamento dos homens. Desde cedo, os meninos
crescem assimilando a ideia de que, com o trabalho, sero reconhecidos como homens. Essa
associao to intrnseca entre homem e trabalho encontra sentido no contexto de industrializao
crescente de So Paulo, desde a virada do sculo XIX para o XX. Ainda conforme o autor, efetivamente
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o trabalho dene a primeira marca de masculinidade, porque no plano social viabiliza a sada da
prpria famlia, ao conferir ao homem certo status de independncia. O homem passa a ser um
indivduo comprometido com uma obsesso produtiva e com a reproduo dos valores da ordem
capitalista. (NOLASCO, 1993, p. 51)
Todavia, o espao funerrio parece permitir a exposio de outras representaes de masculinidade.
A arte funerria burguesa, a partir da transio do sculo XIX para o sculo XX, mesclou de forma
harmoniosa os smbolos cristos aos profanos. Atravs das Constituies Primeiras a Igreja
prevenia a manipulao privada das representaes fnebres, consideradas manifestaes da
vaidade, conforme nos esclarece Cymbalista (2002, p. 72).
Isso indica a existncia de tenses entre esta instituio e as riquezas particulares j no incio do
sculo XVIII; enquanto os mortos eram sepultados nas igrejas, o anseio pela edicao fnebre
parece no ter estado ausente, mas sim vetado rigorosamente pela mediao eclesistica. Ao
serem institudos, os cemitrios no resultaram sbrios, padronizados, como eram os locais dos
sepultamentos tradicionais. Ao retirar os sepultamentos dos templos e lev-los para o espao
das necrpoles a cu aberto, possibilitou-se a construo privada dos tmulos, sem as barreiras
impostas anteriormente pela gesto eclesistica.
Ato contnuo, os cemitrios extramuros tambm permitiram a exposio das imagens humanas
com maior liberdade expressiva e esttica. Ao reetirmos sobre a masculinidade no perodo,
observamos a presena comum de idealizaes sobre o papel social dos homens, sobretudo a
partir da Proclamao da Repblica.
A intensa urbanizao, o processo de imigrao, o nal da escravido e do Imprio
e a industrializao exigiam novas formas de comportamento ditas civilizadas. Os
comportamentos feminino e masculino deveriam passar por reticaes que dotassem
cada qual de um perl mais homogneo, adequando-os a uma perspectiva sacramental e
ao novo regime. Assim, as aes da Igreja, do Estado e particularmente da medicina foram
convergentes e decisivas para disciplinar mulheres e homens. (MATOS, 2001, p. 25)
Em concordncia com o projeto burgus correspondente formao das elites em meados do
sculo XIX e incio do sculo XX, esperava-se que a mulher fosse contida em seus direitos sociais,voltada religio, famlia e s emoes veladas, assim como determinada a coroar as conquistas
masculinas (PEDRO, 2004, p. 290). Por sua vez, procurava-se reforar a identicao do homem
com o trabalho, destacando seu papel de provedor e, por conseguinte, de bom chefe de famlia:
[...] reforava-se a necessidade do homem de ser resistente, jamais manifestar dependncia,
sinais de fraqueza, principalmente devendo ser metdico, atento, racional e disciplinado. (MATOS,
2001, p. 41) Nos cemitrios, todavia, vericamos discursos polissmicos, que no obtm sucesso
ao constituir uma representao nica e/ou hegemnica do ser feminino e do ser masculino.
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A segunda imagem se encontra no jazigo monumento dedicado FauziMaluf (FIGURA 4).A
estrutura composta em granito preto, com estaturia em bronze. Tal como o exemplo anterior,esta construo d grande nfase verticalidade. O nvel superior destina-se a proporcionar certo
senso de elevao e serve de plataforma para a maior parte do conjunto escultrico, o qual se
apoia em uma cabeceira bastante alta, posicionada verticalmente. O nvel da base serve de ponto
de apoio para uma esttua isolada.
O tmulo apresenta um conjunto escultrico composto por cinco guras, sendo quatro reunidas no
nvel superior (FIGURA 5). Observamos um homem seminu, recebendo uma coroa de louros e sendo
alado a um plano mais elevado por duas guras femininas envoltas em panejamentos esvoaantes,
enquanto uma terceira gura feminina nua jaz presa ao solo em pose de lamentao (FIGURA 6). Por
m, a quinta gura se encontra isolada na base do tmulo (FIGURA 7). Trata-se de um jovem homem,
representado no que parece ser um estado de torpor, adormecido ou desolado sobre as pginas de
um livro. Sua pose denota fragilidade, no fortaleza. A composio tumular sugere que o homem ali
representado sonha com a composio acima, o desenlace da nitude que conduz a um plano superior.
Observamos que uma das guras masculinas marcada pela leveza, alando voo em uma pose
delicada, angelical; a outra debruada sobre o livro, inativa, resignada. Entretanto, ambas se
assemelham s mulheres da composio geral no que se refere ao porte fsico, no existindo grande
nfase musculatura ou solidez da construo do corpo masculino, ainda que apresentem o
corpo jovem e bem torneado. Em vez disso, valoriza-se a delicadeza da condio humana em faceda nitude. Aqui vemos ser contemplada a representao da nudez associada sensibilidade,
atravs da apresentao das duas guras masculinas delicadas.
Em especial, o homem que encontramos isolado se coloca em posio pranteadora e com uma
atitude resignada, cuja composio funerria refora a desolao ante a perda. Deste modo, a
sensibilidade perante a morte no de exclusividade feminina. Neste tmulo, como em outros,
encontramos exemplares masculinos que evidenciam uma postura de resignao perante morte
e de certo sofrimento contido. Os traos no conduzem a uma possvel leitura de feminilidade da
estrutura, visto que ainda expressam uma fora latente, por meio do corpo bem torneado, almdos cabelos curtos e do perl bem demarcado.
Figura 4 Figura 5 Figura 6 Figura 7
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As pequenas narrativas construdas nos tmulos expressam determinados valores morais da
sociedade burguesa, como a famlia e a cristandade, associada nitude, ou buscam sintetizar
de forma mais particular certos atributos do falecido. Esse o caso deste tmulo, constitudo
em homenagem Fauzi Maluf(1899-1930), visto que o mesmo foi em vida um destacado poeta,
de origem libanesa, expressivo autor romntico e simbolista, o que justica a presena da guraprostrada sobre o livro, podendo inclusive representar o prprio sepultado.
O espao cemiterial identicado enquanto experincia individual e coletiva, reexivo do
ambiente urbano no qual est inserido e portador das tenses e representaes inerentes ao
mesmo. So estas representaes simblicas dos valores morais que determinam a interpretao
dos comportamentos sociais e culturais da sociedade paulista, foco de nossa anlise. Estas
imagens masculinas, assim como outras esculturas, evocam diferentes discursos e papis sociais.
Rearmam a transitoriedade dos papis de gnero e dos valores morais, requeridos culturalmente
em determinados perodos histricos e artsticos, ao fazerem uso de distintos recursos e motivaes.Demonstram que a masculinidade no um discurso nico, monoltico, mas construdo socialmente
a partir das mltiplas tenses do real.
Smbolos profanos, provenientes do mundo do trabalho, so mesclados no espao cemiterial aos
tradicionais smbolos religiosos, em dilogo de maior ou menor medida com a moral burguesa da
primeira metade do sculo XX. Os cemitrios, deste modo, permitem a expresso e reconhecimento
de outros tipos de valores culturais e sociais, que fogem ao controle do pensamento burgus
conservador da poca ou mesmo so renovados por este mesmo pensamento, os quais buscamos
investigar no decorrer de nossa investigao.Ao reetirmos sobre a masculinidade no perodo, vemos que, em concordncia com o projeto
burgus correspondente formao das elites em meados do sculo XIX, enfatiza-se a associao
das atividades masculinas com o mundo social mais amplo da economia, da poltica e das interaes
sociais, alm do mbito da famlia, enquanto os de sua mulher eram rigidamente restringidos,
limitavam-se ao mundo domstico da prpria famlia.
Esta posio do homem no mundo social se expressa na representao das atividades voltadas ao
labor e virilidade masculina nas esttuas funerrias. Todavia, nos cemitrios vemos tambm um
grande nmero de guras fortes e ao mesmo tempo sensveis, que sentem a nitude tanto quantoas imagens femininas, que se colocam em posio resignada e pranteadora, em uma possvel
discordncia com a moral do seu tempo. Deste modo, pudemos observar que os cemitrios a
cu aberto permitiram a exposio da masculinidade com maior liberdade expressiva e esttica,
numa perspectiva mais plural e relacional, conforme possvel observar nas imagens elencadas,
sobretudo no que se refere ao segundo tmulo analisado.
Schmitt (2007, p. 11) defende que todas as imagens possuem razes de ser, exprimem e comunicam
sentidos, so carregadas de valores simblicos e cumprem mltiplas funes religiosas, polticas
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e ideolgicas. Em outras palavras, participam plenamente do funcionamento e da reproduo das
sociedades presentes e passadas. As imagens tumulares, enquanto representaes visveis de
contedos reais e/ou imaginrios, portanto, so compreendidas como caminhos para a compreenso
da construo da masculinidade no perodo em questo, propsito da investigao ainda em curso.
Ao compreendermos a nudez como uma forma narrativa polissmica, especca e inscrita no corpo
humano, entende-se as imagens representacionais de masculinidade e feminilidade como lugares
de negociao. Ao assumir um papel mediador entre o ideal, o real e o natural, em cada obra
artstica, o escultor recupera narrativas que buscam inspirar determinadas prticas a nvel social,
em outras palavras cdigos e etiqueta para uma determinada postura de masculinidade. Um corpo
artstico um corpo imaginrio que, ao mesmo tempo, inscrito de e busca inspirar mltiplos
valores. Tratar deste processo narrativo do ponto de vista da construo das masculinidades
reetir sobre como se d o revestimento da nudez atravs da arte, enquanto um discurso/prtica
de generecao do corpo.
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O meu entusiasmo por criar imagens de interiores com vivncia me levou a desenvolver a
arquitetura dos showroomsda Mobilinea e, da mesma forma, todas as fotograas de promoo
da rma. Os ambientes reetem um estilo de vida representativo do ideal quotidiano de uma
populao urbana, de bom nvel cultural e econmico. Nesta faixa me sinto a vontade e cono na
minha capacidade de dialogar com o pblico mediante imagens.
Georgia Hauner (maio 2011)
Nesse texto, tenho como objetivo colocar em relevo alguns aspectos do trabalho desenvolvido
por Georgia Hauner junto empresa de mveis Mobilinea, durante os anos de 1962 a 1975. Em
parceria com o marido, Ernesto Hauner que alm de ser um dos proprietrios do negcio, tambm
foi responsvel pelo design do mobilirio Georgia Hauner atuou no planejamento de showroomse na produo de fotograas para editoriais de revistas de decorao e anncios publicitrios.
As representaes de interiores domsticos que ela produziu, idealizadas a partir do emprego de
mveis modulados e fabricados em srie, contriburam para a construo do imaginrio social acerca
do que era entendido, na poca, por estilo de vida moderno. A abordagem aqui apresentada est
apoiada em reportagens e anncios publicitrios veiculados nas revistas Casa & Jardime Claudia,
bem como em relatos que me foram concedidos por Georgia Hauner por meio de correio eletrnico
entre 2011 e 2015, envolvendo narrativas de histria de vida e respostas a questionamentos mais
especcos sobre sua atuao prossional.
Mediante a discusso de questes relativas participao de Georgia Hauner na construo dos
signicados associados ao mobilirio moderno brasileiro, pretendo evidenciar as relaes de
interdependncia entre as dimenses de produo, circulao e consumo. No podemos separar
as interpretaes atribudas aos artefatos da Mobilinea das estratgias discursivas, imagticas
e materiais empregadas, tanto na produo dos showrooms das lojas, quanto no material de
divulgao que circulava nas revistas ilustradas. As percepes acerca da empresa foram, e ainda
so, atravessadas e constitudas por essas estratgias. No texto publicado no catlogo da exposio
1
Doutora em Cincias Humanas pela UFSC. Professora da UTFPR, vinculada ao Departamento Acadmico deDesenho Industrial e ao Programa de Ps-Graduao em Tecnologia.
Questionamentos sobre a oposio marcadapelo gnero entre produo e consumo no
design moderno brasileiro: Georgia Hauner ea empresa de mveis Mobilinea (1962-1975)
Marins Ribeiro dos Santos1
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Os modernos brasileiros +12 , Georgia Hauner arma que em poucos anos de existncia, a
Mobilinea se tornou uma empresa de vanguarda, ou seja, uma lanadora de tendncias. Defendo
que o trabalho de Georgia Hauner foi fundamental nesse processo.
O estudo da atuao de Georgia Hauner junto Mobilnea tambm oportuniza a crtica a um certoapagamento da participao das mulheres na historiograa do design. Nesse sentido, desejo no
s questionar o protagonismo atribudo aos atores sociais e s atividades ligadas produo
de artefatos, majoritariamente marcadas como masculinas, como reivindicar visibilidade para
prticas historicamente menos valorizadas por envolverem as dimenses dos consumos e dos usos,
muitas vezes desempenhadas por mulheres. Tal apagamento pode ser problematizado a partir da
observao das maneiras pelas quais as narrativas sobre o design vm sendo convencionalmente
construdas. Para dar incio discusso, vou abordar alguns aspectos relacionados a essa questo.
As formas convencionais de contar a histria do design
No livro Objetos de desejo: design e sociedade desde 1750, Adrian Forty (2007) se posiciona
contra o modelo de relato histrico que privilegia o foco na relao autoria/obra. Nesse registro,
artefatos considerados dignos de serem inventariados, so apresentados como concepes
engenhosas e inovadoras de atores sociais isolados que, por sua vez, so reconhecidos pela
genialidade e expertise. A explicao da qualidade da obra ca circunscrita trajetria biogrca do
sujeito, apresentando-se como expresso da sua criatividade individual. Contudo, segundo Forty
(2007,p.19), o mito da autonomia criativa diculta a percepo de que o resultado do trabalho
de designers inuenciado por questes sociais, culturais, econmicas e polticas. Embora sejalegtimo considerar a contribuio das personalidades consagradas e admirar suas realizaes,
a atividade do design no se esgota na relao entre a mente do designer e a forma do objeto
projetado (FORTY, 2007, p. 324).
A maneira pela qual a histria contada congura uma espcie de lente pela qual olhamos o
design. Essa lente amplia e d foco para o que considerado importante de ser lembrado, mas
tambm relega o que cou de fora ao esquecimento. A nfase no protagonismo de designers
desconsidera uma rede de parcerias que envolve a negociao nem sempre tranquila entre
diversos saberes e prticas, invisibilizando outros atores sociais que tambm contriburam paraos resultados alcanados (CAMPI, 2003). O alargamento do escopo de anlise torna plausvel o
reconhecimento dos artefatos como fenmenos intrinsecamente coletivos, no apenas por serem
manifestaes culturais e histricas logo dependentes de condies materiais e sistemas de
signicados socialmente compartilhados mas tambm por serem fruto de negociaes entre
vrias instncias, envolvendo mltiplas competncias.
2 Mostra comprometida em apresentar a obra de mestres do mobilirio moderno brasileiro. Foi promovida peloMuseu Oscar Niemeyer, em Curitiba, durante o perodo de 23 de setembro a 28 de novembro de 2010.
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Portanto, a prtica do design no uma atividade isolada. Ela ganha suas condies de possibilidade
no contexto e no intercurso social. Enquanto fenmeno cultural, o design e seus produtos precisam
ser entendidos como resultado da articulao entre processos de produo, circulao e consumo,
implicados na constituio de identidades e constrangidos por sistemas de regulao social (Du
GAY et al., 2003). Considerar essas articulaes, demanda o comprometimento com uma forma maiscomplexa de entender a congurao da cultura material, que vai alm da crena na concepo dos
artefatos como efeito exclusivo da genialidade de prossionais competentes.
Contudo, muitas das abordagens comprometidas com uma viso mais ampliada dos processos de
design acabam por privilegiar a investigao das relaes sociais circunscritas etapa de produo
dos artefatos. De certa forma, esse o caso da pesquisa apresentada no j citado livro de Forty
(2007). Mas vale ressaltar que a concentrao na dimenso da produo reconhecida pelo prprio
autor como um fator limitante. No prefcio acrescentado edio brasileira, a partir de um olhar
retrospectivo, ele faz o seguinte comentrio sobre a obra:
Em particular, h em suas pginas forte nfase no design como um aspecto da produo,
como resultado de decises tomadas pelos produtores. Embora eu ainda defenda essa
perspectiva como um modo de compreender as razes da aparncia das mercadorias, no h
dvida de que, se as olharmos como um veculo social, para o que acontece quando comeam
a circular no mundo que outro tema principal do livro , os motivos dos designers e
fabricantes e as intenes que tm para seus produtos depois que os consumidores passam
a us-los no foram, com a frequncia devida, levados em conta no livro (FORTY, 2007, p. 9).
No se trata, aqui, de questionar a relevncia do livro de Forty (2007), cuja contribuio para a
articulao crtica entre o design e as dinmicas socioculturais inegvel, mas sim de chamar a ateno
para outras possibilidades de construir os relatos historiogrcos. O destaque produo quando
valorada como a instncia mais relevante na denio dos produtos e dos seus signicados reproduz
alguns pressupostos do senso comum, onde a circulao e o consumo dos artefatos so vistos como
etapas subsequentes e tributrias da fase da produo. Logo, circulao e consumo seriam domnios
onde predominaria a reproduo de sentidos j denidos anteriormente no processo produtivo.
Essa viso carrega consigo profundas implicaes de gnero, que podem ser percebidas na assuno
da histria do design como uma narrativa escrita no masculino (CAMPI, 2003). A categoria gnero est
sendo entendida, nesse texto, como um conjunto de normas, discursos, prticas e materialidades
que operam na naturalizao de noes de feminilidades e masculinidades culturalmente
construdas. De acordo com Judith Butler (2003), os efeitos do gnero so incorporados e produzem
no s a sensao de estabilidade dos sexos, como tambm prescrevem limites para interesses e
comportamentos atribudos a mulheres e homens. A hierarquia da produo sobre o consumo
um desses efeitos, pois decorre da clivagem entre esferas pblica e privada e da marcao desses
domnios como masculino e feminino, respectivamente (HOLLOWS, 2008).
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Ciente das implicaes acarretadas pela sobrevalorizao da produo nas relaes de gnero,
a crtica feminista tem trabalhado no sentido de questionar tal pressuposto e de deslocar sua
primazia. Enquanto espao social historicamente marcado por restries de acesso e por estratgias
de ocultamento da presena feminina, a nfase na produo diculta uma percepo mais ampla
da participao das mulheres na constituio da cultura material. Conforme nos mostram BrendaMartin e Penny Sparke (2003), so diversas as maneiras pelas quais as mulheres tm se envolvido
com a atividade de design, seja como produtoras e consumidoras, mas tambm como clientes,
colaboradoras e comentaristas.
Estudos histricos, interessados no questionamento da invisibilidade feminina, tm reivindicado
o reconhecimento de mulheres que atuaram prossionalmente como designers, mas cujos nomes
no constavam ou ainda no constam na narrativa ocial. Isso envolve a crtica pouca relevncia
atribuda s mulheres que desenvolveram seu trabalho em parceria criativa com homens, por vezes
seus maridos ou companheiros. frequente o apagamento de suas contribuies, que terminamsubsumidas na sobrevalorizao da atuao masculina ou na autoria outorgada exclusivamente
aos seus parceiros (SIMIONI, 2007; RUBINO, 2010). Essa pode ser uma das chaves de leitura para
a interpretao do caso de Georgia Hauner.
Contudo, visando extrapolar a nfase na etapa de produo, a crtica feminista tambm tem investido
em abordagens de pesquisa que possibilitam perceber a contribuio das mulheres a partir de
outros domnios. Nessa perspectiva, ganham relevo os engajamentos em prticas muitas vezes
no remuneradas relacionadas ao consumo e ao espao domstico. Estudos tm demonstrado
que, embora as mulheres nem sempre estejam ocupando funes consideradas centrais no mundodo design, elas esto frequentemente nas bordas, envolvidas em atribuies que inuenciam o
resultado nal. Levando isso em conta, pesquisadoras feministas armam a importncia de conferir
o devido crdito participao das mulheres, pleiteando a revalorizao de espaos, funes e
atividades classicadas como subalternas (MARTIN; SPARKE, 2003). Como a prtica prossional
de Georgia Hauner se desenvolveu em estreita interao com as dimenses da circulao e do
consumo, essa mais uma questo a ser considerada na problematizao aqui apresentada.
Georgia Hauner e a representao de interiores domsticos
Georgia Hauner nasceu com o sobrenome Morpurgo, no ano de 1931, em Pozega, cidade na poca
localizada em uma regio da Iugoslvia, que atualmente corresponde Crocia. Contava 15 anos
quando desembarcou no Brasil, em 1946, acompanhando os pais que imigraram motivados por
negcios de famlia. Aps ter concludo a formao secundria em So Paulo, passou o ano de 1951
nos Estados Unidos, cursando Advertising & Illustration(publicidade e ilustrao) na Art Center
School,de Los Angeles (HAUNER, fevereiro 2012).
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Retornando ao Brasil, trabalhou por um tempo em uma agncia publicitria e, no nal de 1953,
ingressou na empresa Mveis Artesanal 3, onde deu incio s suas experimentaes na produo
de showrooms. Discorrendo sobre o assunto, Georgia Hauner (2010) comenta: comecei a trabalhar
l, assistindo clientes na colocao de mveis nas plantas e logo fui promovida para planejar
exposies. O perodo na Artesanal, embora no seja o foco principal desse artigo 4, importantepara a compreenso da trajetria de Georgia Hauner junto Mobilinea, em funo de algumas
questes que vou destacar na sequncia.
A primeira delas diz respeito oportunidade de entrar em contato com prossionais da arquitetura
e do design, entre eles Srgio Rodrigues e os irmos Carlo e Ernesto Hauner, que faziam parte
de um grupo maior de especialistas interessadas/os no dilogo com tendncias internacionais
e na implementao de processos de produo seriada como estratgias de modernizao do
mobilirio produzido no Brasil (SANTOS, 1995). Tal grupo de prossionais, cujos interesses vinham
animados pelo crescimento econmico ocorrido no ps-guerra e pela poltica desenvolvimentistapromovida pelo Estado, foi responsvel pela abertura de diversas empresas, lojas e pequenas
fbricas, principalmente no Rio de Janeiro e So Paulo (DENIS, 2000, p. 161).
No que concerne linguagem, o projeto de modernizao capitalista, baseado na industrializao,
estimulou identicaes com a vertente funcionalista denominada Estilo Internacional, que se
consolidava como tendncia na Europa e nos Estados Unidos. Tendo como preceitos a otimizao
da produo e a nfase na funcionalidade, o Estilo Internacional primava pela abstrao das formas
mediante a geometrizao dos volumes e a supresso de ornamentos; pela transparncia da
composio estrutural e pelo emprego de elementos modulares ou padronizados (ARGAN, 1992).Essas diretivas eram defendidas como meios para alcanar padres universais, decorrentes de
dedues lgicas pautadas em exigncias objetivas. Contudo, a produo da poca tambm foi
inspirada pelo iderio nacionalista, traduzido no desejo por imprimir caractersticas brasileiras no
design de mveis (SANTOS, 1995).
Logo, a experincia na Artesanal possibilitou a insero de Georgia Hauner, na ocasio da admisso
ainda Georgia Morpurgo, em um contexto de prticas e discursos interessados na promoo do
design moderno que tinha, como pano de fundo, implicaes culturais, polticas e econmicas
associadas ao modelo de desenvolvimento implementado na sociedade brasileira. Isso abarcava
no s aspectos relacionados aos esforos pela consolidao do design como campo prossional
vale lembrar que as tentativas de institucionalizao do ensino tiveram incio nos anos 1950
(DENIS, 2000) como tambm a articulao com dinmicas e contradies decorrentes do processo
mais amplo de industrializao e de formao de uma cultura de consumo no pas. Se por um
lado a modernizao promoveu certa democratizao do acesso a novos tipos de bens, servios e
informaes, por outro aprofundou clivagens e diferenas sociais (MELLO; NOVAIS, 1998).
3 A Mveis Artesanal Ltda., que a partir de meados da dcada de 1960 tornou-se Forma S. A. Mveis e Objetos de
Arte, foi fundada em 1950, na cidade de So Paulo (SANTOS, 1995).4 Para uma abordagem aprofundada sobre a Mveis Artesanal, ver Mina Warchavchik Hugerth (2014).
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J a outra questo que vale ressaltar diz respeito ideia sugerida por Mina Warchavchik Hugerth
(2014) de que o trabalho colaborativo, desenvolvido na Artesanal, serviu como uma espcie de
laboratrio de formao, inuenciando os percursos posteriores das/os personagens envolvidas/
os. Em funo do recorte denido para esse texto, alm do aprendizado e da experincia adquirida,
ganham relevncia o casamento de Georgia e Ernesto Hauner em 1955 e a deciso de investirem emuma fbrica prpria, motivada pelo desejo de Ernesto Hauner por maior autonomia no planejamento
e produo de seus desenhos (HAUNER, maio 2012). Esses eventos so denidores da parceria
prossional rmada entre os dois na Mobilinea.
Os Hauner e a Mobilinea
Em 1959, depois de um ano morando em Roma onde nasceu o segundo lho do casal os Hauner
retornaram a So Paulo. Nessa ocasio, aps reencontrar o mestre marceneiro Vicente Barbarullo e
outros operrios com os quais j havia trabalhado anteriormente, Ernesto Hauner abriu sua prpriaocina. Assim, surgiu a Ernesto Hauner Cia. Ltda 5, que a partir de 1962, com a incorporao do
engenheiro John de Souza como scio, passou a se chamar Mobilinea. Tal como Georgia, Ernesto
Hauner tambm imigrou para o Brasil na adolescncia. Nascido na Itlia, chegou em So Paulo
com a famlia aos 17 anos, em 1948. Consta que sua carreira como designer de mveis comeou
com um trabalho de desenhista junto ao Studio de Arte e Arquitetura Palma, dirigido por Lina Bo
Bardi e Giancarlo Palanti (HUGERTH, 2014; LEON, 2005; SANTOS, 1995).
Segundo Hugerth (2014), a sociedade que originou a Mobilinea possibilitou a ampliao do campo
de atuao da empresa, inicialmente voltada para a fabricao de estantes moduladas em madeiramacia. Sendo assim, outras matrias primas e uma variada gama de tipologias de mobilirio
foram introduzidas na linha de produo. Ernesto Hauner passou a projetar famlias completas
de mveis, tanto para ambientes residenciais, como para escritrios. O investimento crescente
em novos pontos de venda um indicativo do desenvolvimento do negcio, que em poucos
anos abriu liais em diferentes capitais brasileiras. Conforme Ethel Leon (2005), num primeiro
momento, a Mobilinea contava com duas lojas em So Paulo. Com o tempo, a fbrica chegou a ter
350 funcionrios e lojas no Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Braslia.
Mesmo trabalhando em casa por conta dos lhos, Georgia Hauner esteve envolvida com a construoda Mobilinea desde o incio. Alm de participar da escolha do nome e de ter sido responsvel pela
criao da marca da empresa, sua atuao abrangia a produo de imagens destinadas divulgao
dos produtos. Sobre os primeiros tempos, em relato pessoal, ela diz:
5 No existe consenso acerca do nome da empresa na literatura especializada. A nomenclatura adotada nesse
texto a usada por Maria Ceclia Loschiavo dos Santos (1995). J Ethel Leon (2005) faz referncia a Ernesto HaunerIndstria de Mveis, enquanto Mina Warchavchik Hugerth (2014) utiliza Ernesto Hauner Decoraes.
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Eu estava em casa, cuidando de dois lhos pequenos, mas continuei ligada atividade do
Ernesto. Ele trazia os modelos dos mveis para casa, e eu preparava ambientaes e fundos
para fotograf-los no estdio de um fotografo comercial que morava na nossa rua. Ernesto
e eu desenvolvemos juntos a ideia e o nome Mobilinea, e eu desenhei a marca. Inventei o
estilo de vida e as imagens, que identicavam a rma para o pblico, atravs das promoes
e dos anncios. Ernesto e eu sempre trabalhamos bem em conjunto (HAUNER, maio 2012).
Com a abertura das primeiras lojas, Georgia Hauner tambm tornou-se responsvel pelo
planejamento de vitrines e showrooms:
Planejei as exposies das primeiras lojas: uma para mveis residenciais na Rua Augusta
e em seguida a loja para as linhas de escritrio, na Av. So Lus. No me lembro quando
comecei a receber uma remunerao da Mobilinea. Nos primeiros anos o dinheiro andava
apertado e geralmente havia outras prioridades. Para mim no era importante, porque para
Ernesto e para mim a Mobilinea era uma lha (HAUNER, maio 2012).
Por volta de 1962, visando obter renda prpria para contribuir com o oramento da famlia, Georgia
Hauner comeou a desenvolver, em casa, a produo de luminrias feitas em papel dobrado,
inspiradas em um modelo de origem dinamarquesa. Ela conta que um par de arquitetos na cidade
[de So Paulo] fazia esses bales de papel, que eram bonitos e para os quais tinha bastante
procura (HAUNER, maio 2012). Quando conseguiu dominar os processos de corte e dobra, passou
a introduzir novas formas e acabamentos com aplicao de tecidos e passamanarias, recursos queno haviam sido explorados antes. Como algumas luminrias eram de tamanho grande, Georgia
Hauner passou a utiliz-las como artifcio para preencher espaos vazios entre os mveis baixos
e o teto alto das lojas, nas montagens dos showrooms. Duas dessas montagens, cujas fotograas
foram usadas para ilustrar anncios publicitrios, podem ser observadas na gura 1.
Os lustres se tornaram populares entre a clientela que frequentava a Mobilinea em busca por novidades.
Devido maior visibilidade, a procura aumentou signicativamente. Para vencer as encomendas,
Georgia Hauner contatou trs ajudantes e transferiu a produo para um apartamento que cava no
Figura 1: Reproduesfotogrcas deshowroomsdaMobilinea, utilizadasem annciospublicitrios. Fonte:Casa & Jardim, junhode 1967 e Claudia,fevereiro de 1969.Acervo de peridicosda Biblioteca Pblicado Paran.
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andar de cima da loja da Mobilinea, localizada na Rua Augusta (HAUNER, maio 2012). Esse processo
de incorporao de produtos confeccionados artesanalmente por Georgia Hauner, produo seriada
ligada empresa, se repetiu algumas vezes, conforme vou tratar mais adiante, nesse texto.
Com o desenvolvimento da empresa, Georgia Hauner incorporou as funes de escolher as linhas de
tecidos para estofamento de mveis; de elaborar as cartelas de combinaes de cores e de treinar
assistentes para auxiliar clientes na distribuio do mobilirio nas plantas de suas residncias.
Na medida em que os lhos foram crescendo e cando mais independentes, ela tambm passou a
prestar servios fora da Mobilinea. Assim, por intermdio de Srgio Rodrigues, desenvolveu projetos
de interiores para moradias de clientes da lial da Oca 6em So Paulo, bem como para alguns
clientes da prpria Mobilinea; produziu fotograas para divulgao de equipamentos de som da
empresa Gradiente e, no nal dos anos 1960, realizou editoriais de decorao para a revista Claudia
(HAUNER, maio 2012). Todas essas experincias, certamente, contriburam para o desenvolvimento
da linguagem que caracteriza os showroomsprojetados por Georgia Hauner para a Mobilinea.
A modernidadepopda Mobilinea
Conforme j foi abordado, a viso de Georgia Hauner quanto concepo dos interiores, estava alinhada
aos preceitos do design e da arquitetura modernista. No que concerne arquitetura, esses preceitos
envolviam o planejamento da construo a partir da organizao interna dos cmodos em setores
social, ntimo e de servio, bem como a integrao de algumas funes mediante a eliminao de
paredes, resultando em espaos mais amplos, cujas especializaes eram demarcadas pela disposio
do mobilirio (SPARKE, 2008). Em relao aos valores que pautavam seus projetos, ela arma:
6 Em 1955, Srgio Rodrigues abriu no Rio de Janeiro a loja de mveis Oca, onde comercializava sua prpriaproduo (SANTOS, 1995).
7 Importante escola de design e arquitetura ligada s vanguardas modernistas, que funcionou na Alemanhadurante o perodo entre guerras (DROSTE, 1994).
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Eu desejava que a arquitetura residencial se desenvolvesse de dentro para fora, evitando a
ostentao externa e focalizando mais na harmonia interior. A grande maioria de pessoas
aceitou sem reservas os interiores com paredes divisrias de alvenaria, formando caixas
designadas s funes da vida domstica, segregando homens e mulheres, crianas e
adultos, empregados e donos, e mantendo as visitas afastadas das atividades cotidianas. Eu
no estava satisfeita com o estilo de vida sugerido e estava procura de alternativas. Alguns
arquitetos se preocuparam em criar mveis modernos para acompanhar a nova arquitetura
e se concentraram na elegncia, funcionalidade e simplicidade de linhas dos mveis. Mas
o pblico achava tudo isto frio. Para se sentir vontade em casa, as pessoas se agarravam
aos mveis de estilo, ou cpias de mveis antigos. Pouca gente estava interessada em
design, ou tinha conhecimento da Bauhaus7e outras tendncias modernas. A atitude dos
jovens apontava para um comportamento mais informal. Apoiar os ps em cima da mesa
de centro, car reclinados no sof, jogar as pernas em cima do brao da poltrona, descansar
os cotovelos na mesa, sentar no cho e encostar nos estofados era a nova maneira de viver.O design dos mveis modernos convidava a relaxar. As sedas e brocados dos estofamentos
antigos estavam sendo substitudos com capas de algodo cru e brim para jeans, que
podiam ser tiradas mediante um zper e lavadas (HAUNER, maio 2011).
Nesse depoimento, vale destacar dois aspectos que foram determinantes na caracterizao das
ambientaes desenvolvidas por Georgia. A diculdade apontada quanto aceitao do mobilirio
moderno pelo pblico consumidor, motivou a introduo de elementos decorativos, muitas vezes
inusitados e bem humorados, visando promover a identicao das pessoas com novas possibilidades
de conceber os interiores domsticos. A ideia era mostrar que ambientes compostos por mveisindustrializados no precisavam ser frios, mediante propostas que sugerissem solues bem
planejadas em termos de aproveitamento dos espaos, mas que tambm produzissem o efeito de
evocar sensaes de conforto e acolhimento.
Articulada ao interesse em promover ambientes acolhedores, est a ateno de Georgia Hauner
pelo comportamento informal da juventude da poca. A partir de meados dos anos 1960, ela
estreitou o dilogo com a linguagem pop, forjada junto cultura jovem, que vinha ganhando vulto
desde o incio da dcada em escala internacional. No cerne da cultura jovem estava a chamada
revoluo comportamental, que envolveu o combate s instituies sociais fundadas em relaeshierrquicas, tanto no mbito pblico, quanto no privado. Diversas mobilizaes de jovens, como
os movimentos estudantil, hippie, negro, gay e feminista, informaram os investimentos nas
transgresses experimentadas na poca (PEDRO, 2009). No Brasil, as modicaes comportamentais
adquiriram o contorno de enfrentamento ao carter conservador da Ditadura Militar instaurada
em 1964, uma vez que, para os militares a dissoluo dos costumes era vista como parte da
subverso fomentada pelas organizaes de esquerda (ALMEIDA; WEIS, 1998).
Com origem na Inglaterra ainda nos anos 1950, a linguagempopespraiou-se para outros pases ao longo
da dcada de 1960, tendo Nova Iorque como um dos principais centros irradiadores. Em contraposio
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austeridade do modernismo funcionalista pautado, conforme j foi dito, na simplicao formal
e na padronizao o pop rmou suas bases na irreverncia, no humor e na expresso pessoal
(WHITELEY, 1987). Sua repercusso no design de mveis privilegiou concepes ldicas e informais
que favoreciam posturas corporais descontradas. Dessa forma, o vocabulrio engendrado pelo pop
serviu de suporte para setores da juventude interessados em demarcar um espao identitrio que osdiferenciasse dos padres convencionais, sendo utilizado como um marcador geracional.
Para alm de uma tipologia claramente delimitada, o design popse caracterizou pela incorporao
de mltiplas referncias. A inuncia das artes plsticas foi signicativa e diversicada. Na
interao com aPop Art, houve o interesse compartilhado pela iconograa da cultura de massa.
A busca por resultados de impacto visual motivou a apropriao dos efeitos de iluso de tica
obtidos naOp Art. A dramaticidade das cores intensas e dos contrastes vibrantes, presente no
trabalho de artistas conhecidos como a segunda gerao de abstracionistas norte-americanos,
tambm foi incorporada, compondo a paleta de matizes puros e chapados que marcou a produomaterial do perodo (GARNER, 1996).
As referncias de vanguarda dividiram espao com o retorno aos movimentos artsticos do
passado. Tal disposio para o revivalismo almejava restabelecer a valorizao da ornamentao,
presente em estilos suntuosos como o Vitoriano, o Art Nouveaue o Art Deco (SPARKE, 1987). J
o apoio na cultura psicodlica e no estilo tnico, adotado pela comunidade hippie, contestava o
racionalismo ocidental e expressava o desejo por um arcabouo de referncias capaz de superar a
postura eurocntrica tradicional (JACKSON, 2000). O imaginrio mobilizado pela corrida espacial
disputada entre as duas superpotncias que emergiram da Segunda Guerra, a saber, os EUA ea URSS, rmou-se como outra inuncia importante (GARNER, 1996). A possibilidade de sonhar
com a era espacial instigou a criao de um repertrio de formas futuristas, baseado nas linhas
orgnicas, nos materiais sintticos e na combinao do prateado com o branco.
No Brasil, o dilogo com a linguagem popocorreu em diversas instncias. Nas artes plsticas, a partir
de 1965, a inuncia popaparece na obra de artistas interessadas/os em investir na representao
gurativa como meio de explorar temticas vinculadas realidade urbana (HOLLANDA; GONALVES,
1995). A formao do Tropicalismo, em 1967 e 68, tambm ocorreu em interao com a linguagem
pop, reunindo diversas reas da produo cultural, com grande destaque na msica (FAVARETO, 2000).
Superando o circuito artstico, referncias popcirculavam em verses adaptadas para um mercado
mais amplo, sendo percebidas, tanto na moda ligada ao vesturio, quando em uma innidade de
artefatos de uso cotidiano, como louas e outros utenslios domsticos (SANTOS, 2010).
Logo, o investimento de Georgia Hauner na linguagem popocorreu em interao com um contexto
mais amplo de renovao esttica, que se desenrolava nos mbitos nacional e internacional. A
incorporao da linguagem pop, na decorao dos ambientes da Mobilinea servia como recurso
para localizar sua produo entre as vanguardas do momento, apresentando ao pblico uma
empresa em sintonia com as novidades do seu tempo. Vale observar que, alm da Mobilinea, vrias
outras empresas brasileiras ligadas ao setor de mobilirio incorporaram inuncias do iderio pop
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em suas propostas (SANTOS, 2010). Contudo, os ambientes projetados por Georgia Hauner, muitas
vezes, se destacam pela ousadia dos arranjos, conforme veremos na sequncia.
Casa & Jardim visita Mobilinea
Para discorrer sobre a contribuio de Georgia Hauner na construo de uma reputao arrojada
para a Mobilinea, vou destacar, como exemplo, algumas imagens que ilustram a reportagem C.
J. visita... Mobilinea, veiculada na revista de decorao Casa & Jardim, de julho de 1970. Embora
no constem crditos na publicao, todos os ambientes retratados foram produzidos por Georgia
Hauner em espaos que ela projetou para abrigar um novo showroomadquirido pela empresa:
Quando apareceu a oportunidade de fazer um showroomnovo para as linhas de mveis
residenciais da Mobilinea, em 500 m2 distribudos em dois andares do novo Shopping Center
da Iguatem, me entusiasmei com a ideia de projetar uma exposio diferente de tudo queexistia em So Paulo na poca. Eu no sabia nada sobre construo, mas segui as preparaes
da turma de prossionais da Mobilinea. A arquiteta e assistente do Ernesto, Yone Koseki
Pierre, me deu muito apoio. Ela me convenceu de que tudo era possvel. Fiz os desenhos
e Yone se dedicou a seguir a execuo das obras, no local. Juntaram uma turma de gente
da fbrica. Um mestre-pedreiro me ensinou muitas coisas e fez boas sugestes quando eu
estava em dvida. [] Descobri que podamos cavar o piso do andar trreo do shopping e
projetei ali trs nveis a vista das vitrines. A entrada permaneceu no mesmo nvel, uma rea
em primeiro plano mais baixa de meio andar, e em segundo plano, um nvel na altura dos
olhos, para quem observava de fora. Isto separou as exposies sem vedar a vista geral
do espao. Aproveitei a alvenaria nova para criar degraus que formavam assentos, paredes
baixas para encostar mveis e paredes divisrias rsticas, vazadas, com luz embutida para
expor objetos. As estantes de linha do Ernesto eram desmontveis e moduladas, auto-
portantes e acabadas de todos os lados, portanto podiam ser colocadas para dividir os
espaos de maneira diferente a cada mudana de exposio (HAUNER, maio 2011).
O primeiro ambiente que aparece na reportagem
de Casa & Jardim, uma sala de jantar de
inspirao futurista (Figura 2). Aqui, Georgia
Hauner aproveita os materiais, as cores e os
acabamentos do mobilirio para criar uma
ambincia que remete ao imaginrio da era
espacial. Os mveis possuem estruturas em ao
cromado. Os assentos e encostos das cadeiras,
assim como o tampo da mesa, so de polister
reforado com bra de vidro. A atmosfera fria
e tecnolgica, promovida pelas superfcies
Figura 2: Sala dejantar inspirada
no imaginrio daera espacial.Fonte: Casa &Jardim, julho de1970. Acervo deperidicos daBiblioteca Pblicado Paran.
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sintticas, brilhantes e polidas, intensicada pelo predomnio do branco e pelo jogo de reexos
do cromado. Ao fundo, como contraponto, aparece um painel feito em feltro preto, recortado em
desenhos rebuscados. Segundo Georgia Hauner, esse painel servia como divisria, denindo os
limites do ambiente, sem vedar completamente a viso para outras reas do showroom. Ela mesma
idealizou o desenho de inuncia oriental e executou parte do recorte no tecido:
Recortar o feltro preto foi uma tarefa enorme e difcil. Nunca teria feito isto para somente
uma montagem de fotograa. Mas era til para o nosso showroomdurante muito tempo,
(podia ser mudada de lugar) e servia bem para isolar outros ambientes, alm deste. Comecei
a tarefa sozinha, porm depois de algum tempo (e calos nos dedos) recebi uma ajuda da
Irene (chefe da tapearia na Mobilinea). A divisria no estava venda. Eu inventava estas
coisas para promover a Mobilinea e para dar uma personalidade aos nossos ambientes
(HAUNER, maio 2012).
Na opinio de Georgia Hauner (maio 2012), o contraste entre o desenho da divisria e os mveis
modernos esquentava o espao, ajudando a aproximar o pblico proposta do ambiente. Mas,
tambm, vale lembrar que, assim como o imaginrio futurista, referncias a culturas orientais eram
recursos explorados pela linguagem pop. A gura 2 ainda possibilita a observao de uma outra
caracterstica presente em muitas das as imagens produzidas por Georgia Hauner para promover a
Mobilinea. Trata-se da incluso de modelos femininos nas fotograas. Ela conta que, a insero de
modelos nas cenas, contemplava diversos ns, que englobam desde chamar a ateno ou criar uma
composio mais harmoniosa, at dar proporo ou explicar o uso de determinado tipo de mvel(HAUNER, abril 2011). No caso especco dessa reportagem, a presena das modelos foi inspirada
em uma feira visitada em Montreal, no Canad, intitulada Expo 1967: quei impressionada com
uma srie de robs sentados em livingsmodernos, conversando uns com os outros e assumindo
atitudes expressivas da era pop (HAUNER, abril 2011). Em um outro relato, Georgia Hauner (maio
2012) arma que a ideia das posturas estava relacionada ao desejo por demonstrar que os mveis
modernos eram confortveis.
Outro ambiente que convm destacar, pela ousadia, a proposta direcionada para sala de estar,
cujo efeito alude a uma atmosfera psicodlica (Figura 3). A imagem mostra um jogo de sofsamarelos e uma mesa de centro, dispostos em um espao onde pinturas decorativas sobem
do cho s paredes. A aplicao de espelhos no teto e o uso da iluminao de baixo para cima,
por meio de luminrias dispostas sobre o piso, criam um efeito ldico e contribuem para uma
percepo diferenciada do entorno. A modelo que posa para a fotograa demonstra uma atitude
descontrada, apoiando os ps descalos sobre o brao do sof. Quanto produo desse ambiente,
Georgia Hauner (maio 2012) esclarece:
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Como de costume, preparei os desenhos do inicio do sculo em escala para a pintura e
o [funcionrio] Ernestinho transferiu para o cho e paredes. Ele trabalhava na fbrica da
Mobilinea e eu pedia a ajuda dele quando precisava destes trabalhos nos showrooms,
quando descobri por acaso que ele tinha este talento.
Sobre a presena da modelo, ela destaca
novamente a preocupao em conseguir
traduzir o estilo de vida moderno para um
pblico relutante, ainda apegado aos velhos
costumes e agarrado s tradies (HAUNER,
maio 2012). Simplicidade e informalidade
deveriam ser as caractersticas chave parauma nova forma de viver. Na interpretao de
Georgia Hauner (maio 2012), os ps descalos
das modelos convidam as pessoas a se sentirem vontade: a
atitude de tranquilidade, de segurana e de informalidade
na prpria moradia. Os ambientes cam aquecidos pela
personalidade dos indivduos que os usam sem constrangimento.
A opo pelas poses informais, tambm associava os ambientes,
s transformaes comportamentais em curso. As imagens de
mulheres em poses ousadas para a poca evocam, ainda que em uma verso adaptada para o consumo
de massa, as reivindicaes feministas por liberdade e domnio sobre o prprio corpo 8. Dessa forma, as
fotograas que circulavam nas revistas e anncios publicitrios estabeleciam vnculos entre a imagem
da Molilinea e as novidades do perodo, em termos de valores e comportamentos.
A reportagem de Casa & Jardim tambm apresenta um ambiente que oportuniza o retorno
discusso sobre a incorporao de artefatos confeccionados por Georgia Hauner ao processo
produtivo da Mobilinea. Trata-se de uma proposta para quarto de casal, elaborada com mveis
modulados, laqueados em branco, onde o grande destaque da fotograa direcionado para a
colcha que reveste a cama (Figura 4). Batizada de Romeu e Julieta, a colcha exibe o desenhode um casal nu, dormindo lado a lado. A representao sugere intimidade e remete ao tema da
sexualidade conjugal, abordagem audaciosa para a poca e em sintonia com as transformaes
comportamentais. Ao longo dos anos 1960, o corpo ganhou relevo como meio de contestao
de valores morais conservadores e a nudez passou a servir como instrumento poltico para a
reivindicao por mudanas (MACIEL, 1987). A colcha mais um dos recursos idealizados por
Georgia Hauner para aquecer os ambientes modernos, visando identicao com o pblico
consumidor de classe mdia. Sobre a materializao do conceito, ela explica:
8 Para uma abordagem mais aprofundada sobre essa questo, ver Marins Ribeiro dos Santos (2010).
Figura 3:Sala de estarpsicodlica.Fonte: Casa &Jardim, julho de1970. Acervode peridicosda Biblioteca
Pblica doParan.
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O quarto de casal, de uma simplicidade total, eu quis apresentar num tom romntico sem
recorrer aos tradicionais enfeites e babados. A colcha Romeu e Julieta eu desenhei e
executei na minha casa. Eu visava personalizar um produto popular, bem tradicional brasileiro
e de fcil identicao. Era a colcha de piqu branco, barata, bonita e lavvel. Desenhei as
guras nuas em tamanho natural, sobre rolos de papel, esticando, um por vez, em cima da
porta do meu estdio. Os meus modelos ao vivo foram vrios membros de minha famlia.
De cada um, eu desenhava os traos melhores (minha me tinha as melhores pernas; braos
e seios eram de uma sobrinha; sobrinhos e lhos posaram para cabeas, ombros, mos e
tudo mais). Usando folhas de papel copiativo da minha mquina de escrever (coladas uma
com a outra com ta adesiva), passei os desenhos no avesso da colcha. Enrolei linha de
bordar grossa e preta na bobina da mquina de costura e, com linha normal branca, costurei
trao por trao o desenho no avesso da colcha. No lado direito do piqu saiu o desenho do
casal em linha de bordar preta, que vinha da bobina da mquina (HAUNER, maio 2012).
Em princpio a colcha, Romeu e Julieta no foi pensada para
ser vendida em loja. Contudo, em decorrncia da demanda, o
artefato foi includo no rol de produtos comercializados pela
empresa:
A colcha chamou muita ateno, apesar de que o desenho era delicado e discreto. Algum
da Editora Abril me advertiu que eu iria ter problemas com a censura. Mas nunca tive. No
era minha inteno a de vender colchas, porm havia tanta procura por parte do pblico,
que a Mobiliea resolveu contratar uma pessoa para trabalhar na fbrica, imprimindo a mo,
em serigraa, as colchas Romeu e Julieta, substituindo assim o bordado feito na mquina
de costura (HAUNER, maio 2012).
O mesmo processo ocorreu com um conjunto de almofadas que Georgia Hauner bordou para
incrementar uma proposta de sala de estar, cuja imagem ilustra o anncio publicitrio reproduzido
na gura 5. As almofadas apresentam a gura de uma mulher deitada, portando roupas de baixo
que remetem ao estilo em uso, durante a virada do sculo XIX para o XX. Ela conta que desenhou e
bordou as almofadas mo, com a ajuda da me, para dar personalidade ao ambiente:
Figura 4: Quarto de casal coma colcha Romeu e Julieta.Fonte: Casa & Jardim, julho de1970. Acervo de peridicosda Biblioteca Pblica doParan.
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Foi outro desenho de grande sucesso que a Mobilinea teve que mandar imprimir para dar
conta dos pedidos. No sei quantos conjuntos foram estampados (capas de algodo para
almofadinhas, com zper de um lado.) Lembro que havia fundos estampados com uma
grande escolha de cores, para acompanhar qualquer ambiente (HAUNER, maio 2012).
Em seu relato, Georgia Hauner (maio 2012) tambm discorre sobre
alguns aspectos envolvidos na produo da fotograa:
A imagem publicitria dos mveis da Mobilinea foi feita em nossa fbrica. O modelo,
vestindo roupa vitoriana, um funcionrio da fbrica da Mobilinea. Se no me engano, era
o chefe de produo, que concordou de ser modelo para esta foto. Aqui ele est fazendo
de conta de estar jogando xadrez com a gura bordada nas almofadas. Para completar a
brincadeira na foto, coloquei as toalhas de croch sobre os sofs de linha da Mobilinea. Um
pouco de humorismo tambm ajudava a vender o moderno para um pblico relutante.
O dilogo com a linguagem pop pode ser percebido pelo recurso do humor; pela inspirao
vitoriana presente na estampa das almofadas e no gurino do modelo; bem como pelo retorno
ornamentao, mediante o uso de toalhas de croch sobre os encostos dos sofs. A opo pelas
toalhas de croch no deixa de evocar certa ironia, tendo em vista a averso do modernismo aos
itens de decorao considerados supruos. As imagens na parede ao fundo, que parecem oriundas
de revistas ilustradas, evocam o apreo do poppela iconograa, caracterstica da cultura de massa.
Aqui temos mais um exemplo de como Georgia Hauner interpretava a noo de moderno, durante
os anos 1960 e 1970, a partir da lente da linguagem pop. Ela entende a sua atuao, na congurao
de showroomse imagens de divulgao, como uma prtica de cenograa: a minha especialidade
era a encenao de imagens que incluam mobilirio (HAUNER, maio 2015).
Chama ateno o sucesso alcanado pelos artefatos que Georgia Hauner confeccionava para
personalizar ou esquentar os ambientes dos showrooms. Contudo, a importncia que esses
artefatos adquiriram junto clientela da Mobilinea, contrasta com o tipo de produo material
Figura 5: Sala de estar como conjunto de almofadasbordadas. Fonte: Claudia,maro de 1968. Acervo deperidicos da BibliotecaPblica do Paran.
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considerada digna de registro,na historiograa referente ao design moderno, no Brasil. Nos relatos
histricos, o que consta como produo representativa diz respeito, sobretudo, ao mobilirio. Creio
que isso pode ilustrar o que Silvana Rubino (2010,p.334) chama de tenses entre escalas, na
valorao de tipologias de artefatos nas instncias de validao da arquitetura e do design.
Quando faz meno s escalas, Rubino est se referindo busca do projeto modernista por unidade
conceitual, entre diferentes dimenses da materialidade envolvida no suporte vida cotidiana, a
saber: os objetos de uso, a habitao e a cidade. Essa orientao foi traduzida por Walter Gropius9
no postulado segundo o qual da colher cidade, tudo poderia ser tarefa do arquiteto (RUBINO,
2010, p. 334). Aparentemente, a declarao de Gropius no estabelece escalas de importncia
entre as diferentes prticas de projeto. Contudo, a diviso de trabalho, estabelecida entre elas,
marcada por hierarquias de gnero que poderiam ser metaforicamente representadas da seguinte
forma: aos homens, s cidades; s mulheres, s colheres.
Tal diviso de trabalho foi sendo constituda historicamente, sobretudo pelo acesso desigual a
determinados conhecimentos e prticas. Magdalena Droste (1994), ao discorrer sobre o sistema
de ensino da Bauhaus, destaca as diculdades enfrentadas pelas mulheres no ingresso aos atelis
de projeto mais valorizados, como os de mobilirio e arquitetura. Aps qualicadas, na etapa
de formao fundamental, as estudantes eram, sistematicamente, direcionadas para o ateli de
tecelagem. Segundo observa Droste (1994, p. 40), grande parte do que as mulheres produziam era
rejeitado pelos homens como sendo feminino ou artesanal. Os homens receavam uma tendncia
demasiado decorativa e viam o objetivo da Bauhaus, a arquitetura, em perigo. Dessa forma, um
sistem