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    Marcelina das Graas de Almeida

    Edson Jos Carpintero Rezende

    Giselle Hissa Safar

    Roxane Sidney Resende de Mendona

    (organizadores)

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    C122 Caderno atempo : histrias em arte e design /Marcelina das Graas Almeida, Edson Jos Carpintero Rezende,Giselle Hissa Safar, Roxane Sidney Resende Mendona (organizadores). --

    Barbacena : EdUEMG, 2015.

    117p. ; il. color. -- (Caderno atempo : histrias em arte e design ; v. 2)

    ISBN: 978-85-62578-57-1Inclui bibliograas

    1. Desenho (Projetos) Estudo e ensino. 2. Arte (Histria) 3.Abordagem interdisciplinar do conhecimento Desenho (Projetos).I. Almeida, Marcelina das Graas. II. Rezende, Edson Jos Carpintero.III. Safar, Giselle Hissa. IV. Mendona, Roxane Sidney Resende de.V. Universidade do Estado de Minas Gerais. Escola de Design. VI. Ttulo.

    CDU: 7.05:7(091)

    Ficha Catalogrca: Cileia Gomes Faleiro Ferreira CRB 236/6

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    BarbacenaEditora da Universidade do Estado de Minas Gerais - UEMG

    2015

    CoordenadoraMarcelina das Graas de Almeida

    OrganizadoresEdson Jos Carpintero Rezende

    Giselle Hissa SafarRoxane Sidney Resende de Mendona

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    Cadernos aTempo Histrias em Arte e Design

    Ncleo de Design e Cultura - NUDECEscola de Design da Universidade do Estado de Minas Gerais ED UEMG

    Universidade do Estado de Minas Gerais

    ReitorDijon De Moraes Jnior

    Vice-reitorJos Eustquio de Brito

    Chefe de GabineteEduardo Andrade Santa Ceclia

    Pr-reitor de Planejamento, Gesto e FinanasAdailton Vieira Pereira

    Pr-reitora de Pesquisa e Ps GraduaoTerezinha Abreu Gontijo

    Pr-reitora de EnsinoRenata Nunes Vasconcelos

    Pr-reitora de ExtensoVnia Aparecida Costa

    EdUEMG - Editora da Universidade do Estado de Minas GeraisCoordenao

    Danielle Alves Ribeiro de Castro

    Projeto grco

    Dbora de Lima e Melo / Breno Pessoa dos Santos / Equipe LDG

    IlustraesTelma Martins

    Produo editorial e revisoDanielle Alves Ribeiro de Castro

    Escola de Design da Universidade do Estado de Minas GeraisDiretora:Simone Maria Brando M. de Abreu

    Revisores

    Andr Borges MeyerewiczPatrcia Pinheiro de SouzaPaula Barreto Paiva

    Organizadores:Edson Jos Carpintero Rezende

    Giselle Hissa SafarMarcelina das Graas de Almeida

    Roxane Sidney Resende de Mendona

    2015, Cadernos aTempo Histria em Arte e DesignEdUEMG - Editora da Universidade do Estado de Minas Gerais

    Avenida Coronel Jos Mximo, 200 - Bairro So SebastioCEP 36202-284 - Barbacena /MG | Tel.: 55 (32) 3362-7385 - [email protected]

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    Conselho Editorial do Caderno aTempo

    Profa. Dra. Adalgisa Arantes Campos UFMGProfa. Dra. Giselle Beiguelman USP

    Prof. Dr. Jos Francisco Ferreira Queiroz CEPESE,

    Universidade do Porto e Escola Superior Artstica do PortoProf. Dr. Leandro Cato UEMG/ Faculdade Educacional de Divinpolis

    Profa.Lucy Carlinda da Rocha de Niemeyer ESDI/RJProfa. Luzia Gontijo Rodrigues UEMG

    Prof. Dr Marcelo Kraiser - UFMGProf. Dr. Marcos Csar de Senna Hill- UFMG

    Profa. Dra. Maria Ceclia Loschiavo Santos USPProfa. Dra Maria Elizia Borges UFG

    Profa. Dra. Maria Lucia Santaella Braga PUC/SPProf. Dr. Rodrigo Vivas UFMG/PUC/MG

    Conselho Editorial EdUEMG

    Dijon Moraes Junior (Presidente)Fuad Kyrillos Neto

    Helena LopesItiro Iida

    Jos Eustquio de BritoJos Mrcio Barros

    Paulo Srgio Lacerda BeiroVnia A. Costa

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    Incio Apresentao 08

    Prefcio 010

    Captulo 1 Cdigos e Etiqueta masculina: uma leitura de representaes de masculinidade na arte funerria paulistana 15

    Maristela Carneiro

    Captulo 2 Questionamentos sobre a oposio marcada pelo gnero entre produo e consumo no 25

    design moderno brasileiro: Georgia Hauner e a empresa de mveis Moblinea (1962-1975)

    Marins Ribeiro dos Santos

    Captulo 3 Artefatos de identidade: questes de gnero nos reclames dosAlmanachsde Pelotas 45

    Paula Garcia Lima; Francisca Ferreira Michelon

    Captulo 4 Uma interseccin de trs historias: mujeres, cultura escrita y disen 60

    Marina Garone Gravier

    Captulo 5 A presena da mulher na trajetria do cinema brasileiro 73

    Adilson Marcelino

    Captulo 6 Hilma of Klint: uma arte para o futuro 84

    Vnia Myrrha de Paula e Silva

    Captulo 7 Mendini: a encenao do masculino na Coleo Mobili per Uomo 93

    Adriana Nely Dornas Moura

    Captulo 8 As mulheres e o design no Brasil 109

    Auresnede Pires Stephan

    Contato 116

    Sumrio

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    Apresentao

    com alegria que entregamos ao nosso pblico leitor o segundo

    volume do Caderno aTempo: histrias em arte e design, nessa

    edio, tendo como tema norteador o gnero.

    A proposta apresentada aos autores foi pensar a categoria

    conceitual a partir de toda a sua dimenso e complexidade,

    reetindo sobre os discursos e prticas, tanto sob os aspectos

    que envolvem o masculino, o feminino e o neutro. A questo

    fundamental se alicera na reexo sobre o visvel e o invisvel

    que se constroe quando nos propomos a conhecer e analisar edebater a complexidade das relaes histricas e sociais que se

    constituem ao redor desta temtica.

    Nesse sentido os captulos que compem essa edio pretendem

    ser uma contribuio para enriquecer as discusses que esto

    sendo feitas em diversos campos do conhecimento, entretanto

    nessa publicao, procuram enfatizar o olhar dos designers,

    historiadores e pesquisadores da arte.

    Desejamos a todos uma boa leitura e acreditamos que osaspectos destacados, certamente, suscitaro novas perguntas e

    ampliaro o campo do debate.

    Marcelina das Graas de Almeida

    Edson Jos Carpintero Rezende

    Giselle Hissa Safar

    Roxane Sidney Resende de Mendona

    Equipe editorial

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    Ao acolher nessa edio pesquisas em design que enfatizam a identidade de gnero, seus

    editores abrem um espao para a reexo sobre um tema com muitas histrias, ainda pouco ou

    insucientemente, contadas. Assumem mais uma vez o compromisso tico que valoriza e reconhece

    o papel do design na sociedade no sentido mais absoluto da atividade. Uma tarefa que inclui a

    integrao de vrios registros, em diferentes vozes, reas e lugares.

    No Brasil, os estudos da produo cientca baseada no gnero, ganha visibilidade no incio dos

    anos 1990 na passagem de estudos da mulher para estudos de gnero. No campo do design, o

    reconhecimento das realizaes femininas nem sempre encontra eco nos relatos histricos, com

    poucos registros e muitas lacunas por preencher.

    Se hoje assistimos ao incremento e crescimento da pesquisa na rea, ainda faltam estudos que

    abordem a importncia da mulher como prossional que se articula dentro do contexto social e

    cultural em que a atividade e as relaes de gnero se do.

    Como fenmeno cultural com articulaes complexas entre instncias e competncias mltiplas,

    o design utiliza vrios saberes e pontes interdisciplinares que deveriam ultrapassar qualquer

    exclusividade, seja ela de gnero ou de genialidade.

    Nessa publicao, o tema tratado sob diferentes abordagens, mas que convergem na constatao quea participao da mulher no design entrou pelas bordas da atividade. L-se no conjunto de artigos as

    restries, esteretipos e a invisibilidade do gnero nos diferentes domnios do design, evidenciando o

    papel secundrio ou oculto que a mulher ocupa no desenho do desenvolvimento dessa disciplina. Um

    reconhecimento dos atos de autoria que a diversidade, como matriz do design, no poderia omitir nem

    esconder. Reconhecimento que ganha voz neste espao, por meio dos autores aqui reunidos.

    A pesquisadora Maristela Carneiro em seu capitulo intitulado Cdigos e Etiqueta Masculina: uma

    leitura de representaes de masculinidade na arte funerria paulistana discorre sobre duas questes

    que, modo geral, so pouco consideradas no debate acadmico: a nudez masculina e os espaoscemiteriais como objetos de investigao. Atravs da anlise de dois tmulos, que compem

    o acervo do Cemitrio da Consolao, pertencentes famlias tradicionais da elite paulistana

    do incio do sculo XX, a autora argumenta sobre a representao do nu masculino e a rede de

    construes de signicados que podem ser lidos e arremata: Ao compreendermos a nudez como

    uma forma narrativa polissmica, especca e inscrita no corpo humano, entende-se as imagens

    representacionais de masculinidade e feminilidade como lugares de negociao.(p.12) E neste

    sentido Maristela Carneiro aponta aspectos relevantes para se pensar a gramtica simblica da arte

    e arquitetura tumular e,ao mesmo tempo, as construes imagticas acerca de temas peculiares

    como a representao do masculino nestes espaos e de modo especco, a nudez.

    Prefcio

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    A designer Marins Ribeiro dos Santos analisa a trajetria e produo da prossional Georgia Hauner

    junto empresa de mveis Mobilnea. Ela estabelece uma relevante discusso sobre o lugar do

    feminino e o signicado deste lugar no universo do design, da produo e consumo, permitindo

    ao leitor, enveredar por um tema delicado e recorrente na contemporaneidade: o protagonismo

    da mulher no tecido social e de modo particular em setores, eminentemente, masculinos. Sob o

    ponto de vista da autora: O estudo da atuao de Georgia Hauner [...] oportuniza a critica a um

    certo apagamento da participao das mulheres na historiograa do design. (p.24)

    Paula Garcia Lima e Francisca Ferreira Michelon apresentam uma pesquisa sobre os anncios

    ou reclames da publicao intitulada O Almanach,que circulou entre os anos de 1913 e 1935.

    Publicado na cidade de Pelotas e nos seus arredores teve um grande alcance dentro daquela

    sociedade, determinando identidades, reforando diferentes papis para homens e para mulheres.Os anncios dos Almanachs, como objetos de design grco, reetem as relaes de gnero do

    contexto da poca a partir da observao da promulgao do papel atribudo mulher de assumir

    as lidas domsticas e cuidar do esposo e lhos.

    As representaes dos homens e das mulheres nesses reclames evidenciam o lxico visual de um

    iderio de comportamento, permeado de valores traduzidos nas composies de imagem/texto.

    As guras ilustravam poses e comportamentos aceitveis e desejveis cujas vestes e cenrios

    esclareciam e reforavam a viso androcntrica peculiar poca

    Marina Garone Gravier, no ensaio Una interseccion de tres historias: mujeres, cultura escrita y diseo

    aborda a relao que as mulheres tem estabelecido com o mundo dos livros, tipograa e impresso,

    principalmente a partir do perodo da impresso manual (sculo XV para o primeiro tero do sculo

    XIX). Tratam -se de referncias isoladas e para muitos quase desconhecidas. Esta fragmentao

    atribuida, em alguns casos, s prticas metodolgicas e discursivas tendenciosas de grande parte

    dos historiadores e bibligrafos. Em outros, diculdade de localizao de fontes primrias. Isso

    impediu construir uma viso geral do impacto do desempenho das mulheres na divulgao da

    cultura escrita e impressa e gerar informaes sobre as questes de gnero. Os temas abordados

    no trabalho so a relao das mulheres com a leitura, a escrita e os livros e a sua participaolaboral no mercado editorial. Traz informaes de algumas tipgrafas europeias e mexicanas de

    destaque para chegar a casos mais contemporneos de mulheres editoras e designers.

    Em A presena da mulher na trajetria do cinema brasileiro, Adilson Marcelino apresenta em

    linguagem leve, porm atenta ao rigor histrico e cientco, a crescente participao da mulher

    no cinema brasileiro ao longo das dcadas do sculo XX. No trata apenas das atrizes, mas inclui

    diretoras, roteiristas, produtoras, enm a pouco conhecida histria das mulheres atuando nos mais

    diferentes fazeres cinematogrcos. Por meio do resgate de protagonistas e referncias a inmeros e

    relevantes trabalhos, o autor fala do desempenho feminino em um campo de certa forma inesperadopara as primeiras dcadas do sculo e certamente, ainda bastante refratrio na contemporaneidade.

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    Vnia Myrrha em Hilma af Klint: uma arte para o futuro, levanta a discusso sobre o pioneirismo

    da pintora sueca Hilma af Klint (1862 1944) no desenvolvimento da arte abstrata. Enquanto

    a maioria defende a ideia de Kandisnky (1866-1944) e outros artistas do sexo masculino como

    precursores da pintura no gurativa na segunda dcada do sculo XX, ela aponta os caminhos

    desbravados por uma mulher alguns anos antes. A autora nos apresenta o envolvimento de Hilma

    af Klint no meio artstico feminino e esotrico na passagem do sculo XIX para o XX, desenvolvendo

    sua arte na busca do conhecimento e compreenso de si mesma e da ligao do mundo visvel com

    uma dimenso espiritual. Integrada a um grupo de mulheres pintoras, The Five(De Fem), a artista

    permaneceu muitos anos em uma esfera restrita, j que, diferente de seus contemporneos, a

    maioria homens, no exps em vida suas telas abstratas, solicitando, ainda, que fossem mostradas

    apenas 20 anos aps a sua morte (1944). Esse seria um dos motivos do pouco reconhecimento daobra de Hilma que, na viso da autora, alm de desbravar um universo artstico masculino, exerceu

    importante papel nas artes abstratas, pintando, entretanto, seus quadros para o futuro.

    Adriana Dornas, por meio do estudo da coleo Mobili per Umo do designer italiano Alessandro Mendini

    (1931-), compactua com a atual discusso sobre a necessidade da abordagem do design pela questo

    de gnero, uma vez que essa relao possui um carter social e cultural evidente nas relaes humanas,

    presentes em nossas aes e a percepes do cotidiano de forma essencial. Primeiramente, a autora

    destaca o importante papel de Mendini na histria da ruptura do design italiano, principalmente, a partir

    da dcada de 70, quando se passava a incluir novos valores pratica projetual, aproximando os objetos

    do cotidiano e da diversidade cultural dos grupos humanos. Em seguida, Dornas apresenta a coleo de

    armrios Mobili per Umorealizada por Mendini entre 1997 e 2004, onde destaca o trabalho do designer

    dentro do universo masculino, incluindo na coleo elementos desse universo que julga represent-lo.

    A partir de uma anlise semiolgica dos objetos da coleo, a autora interpreta essa abordagem de

    Mendini, concluindo que, apesar do designer ousar permear as fronteiras entre arte e design, funo e

    signicao, a coleo arma o mundo masculino por signicaes muito prximas daquelas propostas

    pelo discurso tradicional, como o trabalho e a fora fsica

    Auresnede Pires Stephan, aps uma breve, porm esclarecedora, apresentao da complexa situao

    das mulheres trabalhadoras no emergente cenrio da industrializao e do contexto urbano

    brasileiros do nal do sculo XIX e incio do sculo XX, introduz suas consideraes e reexes

    sobre a atuao feminina no design do pas. As mulheres e o design no Brasil faz um registro de

    protagonistas em diferentes regies brasileiras, mas com uma compreensvel nfase no eixo Rio-

    So Paulo. O autor apresenta prossionais e intelectuais que contriburam para a implantao

    conceitual e projetual do design no Brasil. O texto nos leva reexo sobre o enorme potencial

    que o assunto oferece para pesquisas e estudos que possibilitem a construo de uma histria

    mais legtima. Descartando a funo exclusiva de registro histrico, o texto pretende ser mais um

    chamamento, uma convocao ao aprofundamento das reexes sobre as mulheres que ajudarama construir a histria do design brasileiro bem como seus respectivos contextos.

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    a esse chamamento que fao eco convocando a todos para a leitura de contedos que pretendem,

    acima de tudo, nos instigar a ver alm de esteretipos e preconcepes e direcionar um olhar amplo e

    receptivo a criaes que, antes de serem de um gnero ou outro, so produtos da genialidade humana.

    Maria Bernadete dos Santos Teixeira

    Professora Escola de Design, UEMG

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    captulo 1

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    Como bero dos Jogos Olmpicos, a Grcia Antiga atribua signicativa importncia ao esporte e ao

    cultivo do corpo. Homens concebiam o tempo nos ginsios como uma oportunidade de preparao

    para a guerra. Qualquer sinal de fraqueza ou debilidade era percebido como feminino e indesejvel.

    Esta cosmoviso certamente sugere a existncia de determinados cdigos de gnero, demonstrando

    que papis masculinos e femininos so atribudos social e culturalmente h muitos sculos.

    A masculinidade no tomada enquanto um discurso nico, homogneo e/ou verticalizado, mas

    como uma coleo de informaes atribudas e debatidas em diferentes tempos e espaos, assim

    como tambm ocorre com os discursos acerca da feminilidade. O conceito de gnero, em particular,

    tem sido uma categoria utilizada e difundida de forma crescente nas ltimas dcadas. Matos (2005,

    p. 22) destaca que a proposta basicamente relacional deste conceito ressalta que a construo

    do feminino e masculino dene-se um em funo do outro, uma vez que se constituram social,

    cultural e historicamente em um tempo, espao e cultura determinados.

    Neste captulo buscamos demonstrar atravs da leitura de duas imagens funerrias, a serem

    apresentadas na sequncia, a presena de cdigos de masculinidade. Neste caso particular, tais

    cdigos so forjados como parte da resposta ao problema da nitude na sociedade paulistana da

    primeira metade do sculo XX. Faz-se pertinente pontuar que a morte uma problemtica social,

    que se concretiza de mltiplas formas no espao cemiterial, em torno da busca por perenizar a

    memria do ambiente que o abriga.

    Diante do pressuposto de que as relaes de gnero so um elemento constitutivo das relaes

    sociais baseadas nas diferenas hierrquicas que distinguem os sexos, em outras palavras, umaforma primria de relaes signicantes de poder; ainda segundo Matos (2005, p. 22), devemos

    evitar as oposies binrias xas e naturalizadas.No interior desse debate que nos propomos

    a reetir sobre a categoria de masculinidade. Para tanto, selecionamos dois suportes funerrios

    provenientes do acervo do Cemitrio da Consolao, em So Paulo/SP: os tmulos da Famlia David

    Jafet e de FauziMaluf, concebidos respectivamente pelos escultores Germano Mariutti (1923-2010)

    e Antelo Del Debbio (1901-1971).

    1 Doutoranda em Histria pelo PPGH-UFG, atualmente em perodo sanduche na Universitdegli Studi di NapoliFederico II, em Npoles, Itlia. Bolsista CAPES/CNPQ. E-mail: [email protected]

    Cdigos e etiqueta masculina:uma leitura de representaes de

    masculinidade na arte funerria paulistanaMaristela Carneiro1

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    Reetir sobre as representaes artsticas da arte funerria paulistana fazendo uso da categoria

    de masculinidade implica reconhecer que cada obra artstica um suporte de representao de

    um corpo sempre imaginrio, revelador de determinadas narrativas e concepes de masculino e

    de feminino. Pendendo para representaes idealistas ou realistas, o corpo na arte sempre um

    corpo generecado (BATISTA, 2011, p. 69). Ao buscarmos as representaes de masculinidade nasesttuas pretendemos identicar as tenses existentes entre vrios modelos e esteretipos que

    so utilizados para construir o conceito de masculino.

    Contemplamos como fonte de estudo duas obras funerrias masculinas provenientes do Cemitrio

    da Consolao, conforme j observado. Este espao funerrio um dos mais signicativos e

    destacados espaos de sepultamento no Brasil, em virtude da prpria conjuntura paulistana na

    virada do sculo XIX para o XX, transformada rapidamente de cidade de fazendeiros em cidade de

    imigrantes (GLEZER, 1994, p. 164). O cemitrio em questo administrado pelo Servio Funerrio

    do Municpio de So Paulo. Esta autarquia ligada Prefeitura administra os vinte e dois cemitriosmunicipais, onze agncias funerrias (postos de atendimento aos muncipes para contratao de

    funeral), dezoito velrios e um crematrio.

    Para o Cemitrio da Consolao o Servio Funerrio disponibiliza um guia para visitas monitoradas,

    tornando o espao acessvel para pesquisas acadmicas. Trata-se do primeiro cemitrio pblico a

    ser fundado em So Paulo, em 1858, com a denominao Cemitrio Municipal, assim como o mais

    antigo ainda em funcionamento na cidade. Localizada atualmente em uma das reas mais valorizadas

    da cidade Bairro de Higienpolis, a necrpole encontra-se em bom estado de conservao.

    O Cemitrio da Consolao hoje notadamente marcado pela grande quantidade de tmulos depersonagens daquilo que Martins (2008, p. 12) chama de velha cultura do caf, vrios dos quais

    responsveis pela transio do trabalho escravo para o trabalho livre, como Antnio da Silva Prado

    (1840-1929), bem como de grandes empresrios, principalmente industriais, que disseminaram

    a moderna economia capitalista em So Paulo e no Brasil, como Diogo Antnio de Barros (1791-

    1876) e Roberto Cochrane Simonsen (1889-1948).

    Segundo Matos (2001, p. 23), a expanso urbana de So Paulo esteve vinculada diretamente aos

    sucessos e/ou diculdades da economia cafeeira. Isso permitiu que em poucos anos a capital paulista

    pudesse se consolidar como grande centro capitalista, integrador regional, mercado distribuidor ereceptor de produtos e servios, fatores estes nitidamente vinculados ao crescimento da produo

    cafeeira. O desenvolvimento paulistano tambm foi condicionado pela entrada da estrada de ferro

    e o papel da imigrao, mudando em denitivo, segundo Schwarcz (2012, p. 46), as feies, os

    dialetos, a culinria e os servios pblicos paulistanos.

    A anlise das vrias representaes de masculinidade a partir do acervo artstico do campo funerrio

    em questo uma possibilidade de lanarmos luzes sobre as facetas do projeto modernizador

    paulistano. Isso porque nesse processo diferentes sentidos da modernidade foram construdos e

    reconstrudos atravs dos tempos e por vrios grupos e setores (MATOS, 2007, p. 45), os quais se

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    fazem, tambm se tornam existentes, representados, presenticados na cidade dos mortos. Aqui

    vemos a expresso dos traos identitrios da sociedade de So Paulo, que oscilava entre a armao

    hegemnica da elite e a incorporao dos novos elementos da vida cultural, representaes estas

    que buscamos contemplar nesta investigao.

    A primeira imagem a ser analisada procede do tmulo da Famlia David Jafet, de autoria do escultor

    Germano Mariutti, possivelmente datado do incio da dcada de 1950 (FIGURA 1). Trata-se de um

    conjunto escultrico monumental, cuja estrutura confeccionada em granito polido marrom eestaturias em bronze. Construdo em formato capelar, apresenta dois nveis distintos, constitudos

    de forma a destacar tanto a verticalidade da estrutura como um todo, quanto o nvel superior,

    onde encontramos duas composies em bronze e a cruz, ao centro, assim como a designao do

    tmulo tambm em bronze: FAMLIA DAVID JAFET.

    No nvel inferior, destacam-se a porta frontal e as janelas laterais, elementos constitudos em

    bronze. Encimando este nvel, encontramos em bronze as palavras: LABOR, HONORITAS e FAMLIA,

    da esquerda para a direita, enfatizando o trabalho, a glria e os laos familiares. Em consonncia

    com estes valores, direita observamos um conjunto familiar composto por um homem, umamulher e uma criana, caracterizado de forma estilizada maneira da Antiguidade Clssica: tanto

    o homem, quanto a mulher vestem o quton grego e usam penteados estilizados de poca. A pose

    da mulher, abaixada e segurando a criana, aos ps do pater familias, parece remeter estrutura

    familiar romana (FIGURA 2).

    Por sua vez, esquerda temos a representao de uma gura masculina, com o torso nu, brandindo

    ferramentas de trabalho (FIGURA 3). A caracterizao pode ser interpretada como alusiva ao

    personagem Hefesto, deus grego dos trabalhos manuais, aqui representado empunhando um

    martelo e uma tenaz contra uma bigorna. Na cabea podemos observar uma coroa de louros, o

    Figura 1 Figura 2 Figura 3

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    torso apresentado nu e a gura veste um avental de ferreiro, enquanto apoia o brao da tenaz

    sobre uma colunaelementos clssicos e contemporneos em simbiose. Atrs da esttua axada

    uma roda dentada, referncia simblica indstria e ao trabalho.

    A ideia geral de trabalho reforada pela posio ereta e pela musculatura evidente com as quais agura apresentada, alm dos elementos supra mencionados os instrumentos do artce, a roda

    dentada e a palavra labor. Observamos a convergncia para a construo discursiva do trabalho

    como valor de enobrecimento burgus, ou seja, do homem que se tornou destacado socialmente

    atravs do prprio esforo corporal, ao invs de ter nascido de uma linhagem nobre ou privilegiada,

    como o Davi que triunfa sobre Golias, pelos mritos corpreos prprios. Tal discurso vemos se

    fazer presente em muitos tmulos de famlias imigrantes, que vieram para o Brasil na virada do

    sculo XIX para o sculo XX, por exemplo.

    A famlia Jafet, em questo, faz parte da primeira gerao de imigrantes libaneses em So Paulo,

    fundamental para a formao da elite industrial paulistana, cujos smbolos e legados ainda se

    fazem presentes na cidade, por exemplo, o Hospital Srio Libans.Os elementos escolhidos para

    a individualizao da memria familiar em um tmulo so signicativos para os determinados

    grupos sociais que fazem parte dos elos sociais em determinado perodo e que so transferidos

    para o espao cemiterial.

    Ademais, as representaes escolhidas so as representaes possveis de serem construdas

    e exibidas tendo em vista determinada moral regente e sociedade. Para Batista (2011), h nas

    representaes artsticas de nudez um sistema de polaridade no qual o feminino est vinculado a

    ideias de sensualidade, do selvagem, da uidez, da passividade. J a nudez masculina expressivada lgica, da linearidade, da racionalidade e do equilbrio. A representao deste homem seminu

    na construo tumular de David Jafet implica a valorizao da masculinidade viril, do homem

    provedor, associado ao mundo do trabalho, em face da presena de instrumentos e/ou de atributos

    que remetem atuao prossional.

    Observamos que as representaes de masculinidade associadas virilidade, fora e ao vigor

    fsico, como o exemplo que ora apresentamos, so as mais hegemnicas imagens do ideal de

    ser-homem no mundo burgus. Isso se deve valorizao do trabalho e funo deste como

    engrandecimento social. H que se ressaltar que, a simbologia presente nos tmulos serve muitasvezes individualizao da sepultura e a construo da memria do falecido e/ou da sua famlia.

    A memria que esta famlia busca perenizar quela associada ao empreendedorismo da famlia

    Jafet no espao urbano paulistano.

    Arma Nolasco (1993, p.50): O trabalho e o desempenho sexual funcionam como as principais

    referncias para a construo do modelo de comportamento dos homens. Desde cedo, os meninos

    crescem assimilando a ideia de que, com o trabalho, sero reconhecidos como homens. Essa

    associao to intrnseca entre homem e trabalho encontra sentido no contexto de industrializao

    crescente de So Paulo, desde a virada do sculo XIX para o XX. Ainda conforme o autor, efetivamente

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    o trabalho dene a primeira marca de masculinidade, porque no plano social viabiliza a sada da

    prpria famlia, ao conferir ao homem certo status de independncia. O homem passa a ser um

    indivduo comprometido com uma obsesso produtiva e com a reproduo dos valores da ordem

    capitalista. (NOLASCO, 1993, p. 51)

    Todavia, o espao funerrio parece permitir a exposio de outras representaes de masculinidade.

    A arte funerria burguesa, a partir da transio do sculo XIX para o sculo XX, mesclou de forma

    harmoniosa os smbolos cristos aos profanos. Atravs das Constituies Primeiras a Igreja

    prevenia a manipulao privada das representaes fnebres, consideradas manifestaes da

    vaidade, conforme nos esclarece Cymbalista (2002, p. 72).

    Isso indica a existncia de tenses entre esta instituio e as riquezas particulares j no incio do

    sculo XVIII; enquanto os mortos eram sepultados nas igrejas, o anseio pela edicao fnebre

    parece no ter estado ausente, mas sim vetado rigorosamente pela mediao eclesistica. Ao

    serem institudos, os cemitrios no resultaram sbrios, padronizados, como eram os locais dos

    sepultamentos tradicionais. Ao retirar os sepultamentos dos templos e lev-los para o espao

    das necrpoles a cu aberto, possibilitou-se a construo privada dos tmulos, sem as barreiras

    impostas anteriormente pela gesto eclesistica.

    Ato contnuo, os cemitrios extramuros tambm permitiram a exposio das imagens humanas

    com maior liberdade expressiva e esttica. Ao reetirmos sobre a masculinidade no perodo,

    observamos a presena comum de idealizaes sobre o papel social dos homens, sobretudo a

    partir da Proclamao da Repblica.

    A intensa urbanizao, o processo de imigrao, o nal da escravido e do Imprio

    e a industrializao exigiam novas formas de comportamento ditas civilizadas. Os

    comportamentos feminino e masculino deveriam passar por reticaes que dotassem

    cada qual de um perl mais homogneo, adequando-os a uma perspectiva sacramental e

    ao novo regime. Assim, as aes da Igreja, do Estado e particularmente da medicina foram

    convergentes e decisivas para disciplinar mulheres e homens. (MATOS, 2001, p. 25)

    Em concordncia com o projeto burgus correspondente formao das elites em meados do

    sculo XIX e incio do sculo XX, esperava-se que a mulher fosse contida em seus direitos sociais,voltada religio, famlia e s emoes veladas, assim como determinada a coroar as conquistas

    masculinas (PEDRO, 2004, p. 290). Por sua vez, procurava-se reforar a identicao do homem

    com o trabalho, destacando seu papel de provedor e, por conseguinte, de bom chefe de famlia:

    [...] reforava-se a necessidade do homem de ser resistente, jamais manifestar dependncia,

    sinais de fraqueza, principalmente devendo ser metdico, atento, racional e disciplinado. (MATOS,

    2001, p. 41) Nos cemitrios, todavia, vericamos discursos polissmicos, que no obtm sucesso

    ao constituir uma representao nica e/ou hegemnica do ser feminino e do ser masculino.

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    A segunda imagem se encontra no jazigo monumento dedicado FauziMaluf (FIGURA 4).A

    estrutura composta em granito preto, com estaturia em bronze. Tal como o exemplo anterior,esta construo d grande nfase verticalidade. O nvel superior destina-se a proporcionar certo

    senso de elevao e serve de plataforma para a maior parte do conjunto escultrico, o qual se

    apoia em uma cabeceira bastante alta, posicionada verticalmente. O nvel da base serve de ponto

    de apoio para uma esttua isolada.

    O tmulo apresenta um conjunto escultrico composto por cinco guras, sendo quatro reunidas no

    nvel superior (FIGURA 5). Observamos um homem seminu, recebendo uma coroa de louros e sendo

    alado a um plano mais elevado por duas guras femininas envoltas em panejamentos esvoaantes,

    enquanto uma terceira gura feminina nua jaz presa ao solo em pose de lamentao (FIGURA 6). Por

    m, a quinta gura se encontra isolada na base do tmulo (FIGURA 7). Trata-se de um jovem homem,

    representado no que parece ser um estado de torpor, adormecido ou desolado sobre as pginas de

    um livro. Sua pose denota fragilidade, no fortaleza. A composio tumular sugere que o homem ali

    representado sonha com a composio acima, o desenlace da nitude que conduz a um plano superior.

    Observamos que uma das guras masculinas marcada pela leveza, alando voo em uma pose

    delicada, angelical; a outra debruada sobre o livro, inativa, resignada. Entretanto, ambas se

    assemelham s mulheres da composio geral no que se refere ao porte fsico, no existindo grande

    nfase musculatura ou solidez da construo do corpo masculino, ainda que apresentem o

    corpo jovem e bem torneado. Em vez disso, valoriza-se a delicadeza da condio humana em faceda nitude. Aqui vemos ser contemplada a representao da nudez associada sensibilidade,

    atravs da apresentao das duas guras masculinas delicadas.

    Em especial, o homem que encontramos isolado se coloca em posio pranteadora e com uma

    atitude resignada, cuja composio funerria refora a desolao ante a perda. Deste modo, a

    sensibilidade perante a morte no de exclusividade feminina. Neste tmulo, como em outros,

    encontramos exemplares masculinos que evidenciam uma postura de resignao perante morte

    e de certo sofrimento contido. Os traos no conduzem a uma possvel leitura de feminilidade da

    estrutura, visto que ainda expressam uma fora latente, por meio do corpo bem torneado, almdos cabelos curtos e do perl bem demarcado.

    Figura 4 Figura 5 Figura 6 Figura 7

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    As pequenas narrativas construdas nos tmulos expressam determinados valores morais da

    sociedade burguesa, como a famlia e a cristandade, associada nitude, ou buscam sintetizar

    de forma mais particular certos atributos do falecido. Esse o caso deste tmulo, constitudo

    em homenagem Fauzi Maluf(1899-1930), visto que o mesmo foi em vida um destacado poeta,

    de origem libanesa, expressivo autor romntico e simbolista, o que justica a presena da guraprostrada sobre o livro, podendo inclusive representar o prprio sepultado.

    O espao cemiterial identicado enquanto experincia individual e coletiva, reexivo do

    ambiente urbano no qual est inserido e portador das tenses e representaes inerentes ao

    mesmo. So estas representaes simblicas dos valores morais que determinam a interpretao

    dos comportamentos sociais e culturais da sociedade paulista, foco de nossa anlise. Estas

    imagens masculinas, assim como outras esculturas, evocam diferentes discursos e papis sociais.

    Rearmam a transitoriedade dos papis de gnero e dos valores morais, requeridos culturalmente

    em determinados perodos histricos e artsticos, ao fazerem uso de distintos recursos e motivaes.Demonstram que a masculinidade no um discurso nico, monoltico, mas construdo socialmente

    a partir das mltiplas tenses do real.

    Smbolos profanos, provenientes do mundo do trabalho, so mesclados no espao cemiterial aos

    tradicionais smbolos religiosos, em dilogo de maior ou menor medida com a moral burguesa da

    primeira metade do sculo XX. Os cemitrios, deste modo, permitem a expresso e reconhecimento

    de outros tipos de valores culturais e sociais, que fogem ao controle do pensamento burgus

    conservador da poca ou mesmo so renovados por este mesmo pensamento, os quais buscamos

    investigar no decorrer de nossa investigao.Ao reetirmos sobre a masculinidade no perodo, vemos que, em concordncia com o projeto

    burgus correspondente formao das elites em meados do sculo XIX, enfatiza-se a associao

    das atividades masculinas com o mundo social mais amplo da economia, da poltica e das interaes

    sociais, alm do mbito da famlia, enquanto os de sua mulher eram rigidamente restringidos,

    limitavam-se ao mundo domstico da prpria famlia.

    Esta posio do homem no mundo social se expressa na representao das atividades voltadas ao

    labor e virilidade masculina nas esttuas funerrias. Todavia, nos cemitrios vemos tambm um

    grande nmero de guras fortes e ao mesmo tempo sensveis, que sentem a nitude tanto quantoas imagens femininas, que se colocam em posio resignada e pranteadora, em uma possvel

    discordncia com a moral do seu tempo. Deste modo, pudemos observar que os cemitrios a

    cu aberto permitiram a exposio da masculinidade com maior liberdade expressiva e esttica,

    numa perspectiva mais plural e relacional, conforme possvel observar nas imagens elencadas,

    sobretudo no que se refere ao segundo tmulo analisado.

    Schmitt (2007, p. 11) defende que todas as imagens possuem razes de ser, exprimem e comunicam

    sentidos, so carregadas de valores simblicos e cumprem mltiplas funes religiosas, polticas

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    e ideolgicas. Em outras palavras, participam plenamente do funcionamento e da reproduo das

    sociedades presentes e passadas. As imagens tumulares, enquanto representaes visveis de

    contedos reais e/ou imaginrios, portanto, so compreendidas como caminhos para a compreenso

    da construo da masculinidade no perodo em questo, propsito da investigao ainda em curso.

    Ao compreendermos a nudez como uma forma narrativa polissmica, especca e inscrita no corpo

    humano, entende-se as imagens representacionais de masculinidade e feminilidade como lugares

    de negociao. Ao assumir um papel mediador entre o ideal, o real e o natural, em cada obra

    artstica, o escultor recupera narrativas que buscam inspirar determinadas prticas a nvel social,

    em outras palavras cdigos e etiqueta para uma determinada postura de masculinidade. Um corpo

    artstico um corpo imaginrio que, ao mesmo tempo, inscrito de e busca inspirar mltiplos

    valores. Tratar deste processo narrativo do ponto de vista da construo das masculinidades

    reetir sobre como se d o revestimento da nudez atravs da arte, enquanto um discurso/prtica

    de generecao do corpo.

    REFERNCIAS

    BATISTA, Stephanie Dahn. O corpo falante:as inscries discursivas do corpo na pintura acadmicabrasileira do sculo XIX. 2011, 287 p. Tese (Doutorado em Histria), Setor de Histria, Universidade

    Federal do Paran, Paran, 2011.

    CYMBALISTA, Renato. Cidades dos Vivos.Arquitetura e atitudes perante a morte nos cemitrios do estadode So Paulo.So Paulo: Annablume / Fapesp, 2002.

    GLEZER, Raquel. Vises de So Paulo. In: BRESCIANI, Stella (org).Imagens da Cidade.Sculos XIX e XX.So Paulo: Anpuh/Marco Zero/Fapesp, 1994.

    MARTINS, Jos de Souza.O que a morte no leva, entrevista a Miguel Glugoski.In:JORNAL DA USP.AnoXXIV, n 847, 6 a 12 de outubro de 2008, p. 12-13. So Paulo: Coordenadoria de Comunicao Social -

    USP, 2008B.

    MATOS, Maria Izilda Santos de.A cidade, a noite e o cronista:So Paulo e Adoniran Barbosa.Bauru: Edusc,2007.

    MATOS, Maria Izilda Santos de.ncora de emoes: corpos, subjetividades e sensibilidades.Bauru: Edusc,2005.

    MATOS, Maria Izilda Santos de. Meu lar o botequim:alcoolismo e masculinidade.So Paulo: CompanhiaEditora Nacional, 2001.

    NOLASCO, Scrates. O mito da masculinidade.Rio de Janeiro: Rocco, 1993.

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    PEDRO, Joana Maria. Mulheres do Sul. In: DEL PRIORE, Mary (org.); BASSANEZI, Carla (coord. de textos).Histria das Mulheres no Brasil.So Paulo: Contexto, 2004.

    SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens:ensaios sobre a cultura visual na Idade Mdia.Bauru: Edusc,2007.

    SCHWARCZ, Lilia Moritz. Populao e Sociedade. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.).A abertura para omundo:1889-1930. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

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    captulo 2

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    O meu entusiasmo por criar imagens de interiores com vivncia me levou a desenvolver a

    arquitetura dos showroomsda Mobilinea e, da mesma forma, todas as fotograas de promoo

    da rma. Os ambientes reetem um estilo de vida representativo do ideal quotidiano de uma

    populao urbana, de bom nvel cultural e econmico. Nesta faixa me sinto a vontade e cono na

    minha capacidade de dialogar com o pblico mediante imagens.

    Georgia Hauner (maio 2011)

    Nesse texto, tenho como objetivo colocar em relevo alguns aspectos do trabalho desenvolvido

    por Georgia Hauner junto empresa de mveis Mobilinea, durante os anos de 1962 a 1975. Em

    parceria com o marido, Ernesto Hauner que alm de ser um dos proprietrios do negcio, tambm

    foi responsvel pelo design do mobilirio Georgia Hauner atuou no planejamento de showroomse na produo de fotograas para editoriais de revistas de decorao e anncios publicitrios.

    As representaes de interiores domsticos que ela produziu, idealizadas a partir do emprego de

    mveis modulados e fabricados em srie, contriburam para a construo do imaginrio social acerca

    do que era entendido, na poca, por estilo de vida moderno. A abordagem aqui apresentada est

    apoiada em reportagens e anncios publicitrios veiculados nas revistas Casa & Jardime Claudia,

    bem como em relatos que me foram concedidos por Georgia Hauner por meio de correio eletrnico

    entre 2011 e 2015, envolvendo narrativas de histria de vida e respostas a questionamentos mais

    especcos sobre sua atuao prossional.

    Mediante a discusso de questes relativas participao de Georgia Hauner na construo dos

    signicados associados ao mobilirio moderno brasileiro, pretendo evidenciar as relaes de

    interdependncia entre as dimenses de produo, circulao e consumo. No podemos separar

    as interpretaes atribudas aos artefatos da Mobilinea das estratgias discursivas, imagticas

    e materiais empregadas, tanto na produo dos showrooms das lojas, quanto no material de

    divulgao que circulava nas revistas ilustradas. As percepes acerca da empresa foram, e ainda

    so, atravessadas e constitudas por essas estratgias. No texto publicado no catlogo da exposio

    1

    Doutora em Cincias Humanas pela UFSC. Professora da UTFPR, vinculada ao Departamento Acadmico deDesenho Industrial e ao Programa de Ps-Graduao em Tecnologia.

    Questionamentos sobre a oposio marcadapelo gnero entre produo e consumo no

    design moderno brasileiro: Georgia Hauner ea empresa de mveis Mobilinea (1962-1975)

    Marins Ribeiro dos Santos1

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    Os modernos brasileiros +12 , Georgia Hauner arma que em poucos anos de existncia, a

    Mobilinea se tornou uma empresa de vanguarda, ou seja, uma lanadora de tendncias. Defendo

    que o trabalho de Georgia Hauner foi fundamental nesse processo.

    O estudo da atuao de Georgia Hauner junto Mobilnea tambm oportuniza a crtica a um certoapagamento da participao das mulheres na historiograa do design. Nesse sentido, desejo no

    s questionar o protagonismo atribudo aos atores sociais e s atividades ligadas produo

    de artefatos, majoritariamente marcadas como masculinas, como reivindicar visibilidade para

    prticas historicamente menos valorizadas por envolverem as dimenses dos consumos e dos usos,

    muitas vezes desempenhadas por mulheres. Tal apagamento pode ser problematizado a partir da

    observao das maneiras pelas quais as narrativas sobre o design vm sendo convencionalmente

    construdas. Para dar incio discusso, vou abordar alguns aspectos relacionados a essa questo.

    As formas convencionais de contar a histria do design

    No livro Objetos de desejo: design e sociedade desde 1750, Adrian Forty (2007) se posiciona

    contra o modelo de relato histrico que privilegia o foco na relao autoria/obra. Nesse registro,

    artefatos considerados dignos de serem inventariados, so apresentados como concepes

    engenhosas e inovadoras de atores sociais isolados que, por sua vez, so reconhecidos pela

    genialidade e expertise. A explicao da qualidade da obra ca circunscrita trajetria biogrca do

    sujeito, apresentando-se como expresso da sua criatividade individual. Contudo, segundo Forty

    (2007,p.19), o mito da autonomia criativa diculta a percepo de que o resultado do trabalho

    de designers inuenciado por questes sociais, culturais, econmicas e polticas. Embora sejalegtimo considerar a contribuio das personalidades consagradas e admirar suas realizaes,

    a atividade do design no se esgota na relao entre a mente do designer e a forma do objeto

    projetado (FORTY, 2007, p. 324).

    A maneira pela qual a histria contada congura uma espcie de lente pela qual olhamos o

    design. Essa lente amplia e d foco para o que considerado importante de ser lembrado, mas

    tambm relega o que cou de fora ao esquecimento. A nfase no protagonismo de designers

    desconsidera uma rede de parcerias que envolve a negociao nem sempre tranquila entre

    diversos saberes e prticas, invisibilizando outros atores sociais que tambm contriburam paraos resultados alcanados (CAMPI, 2003). O alargamento do escopo de anlise torna plausvel o

    reconhecimento dos artefatos como fenmenos intrinsecamente coletivos, no apenas por serem

    manifestaes culturais e histricas logo dependentes de condies materiais e sistemas de

    signicados socialmente compartilhados mas tambm por serem fruto de negociaes entre

    vrias instncias, envolvendo mltiplas competncias.

    2 Mostra comprometida em apresentar a obra de mestres do mobilirio moderno brasileiro. Foi promovida peloMuseu Oscar Niemeyer, em Curitiba, durante o perodo de 23 de setembro a 28 de novembro de 2010.

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    Portanto, a prtica do design no uma atividade isolada. Ela ganha suas condies de possibilidade

    no contexto e no intercurso social. Enquanto fenmeno cultural, o design e seus produtos precisam

    ser entendidos como resultado da articulao entre processos de produo, circulao e consumo,

    implicados na constituio de identidades e constrangidos por sistemas de regulao social (Du

    GAY et al., 2003). Considerar essas articulaes, demanda o comprometimento com uma forma maiscomplexa de entender a congurao da cultura material, que vai alm da crena na concepo dos

    artefatos como efeito exclusivo da genialidade de prossionais competentes.

    Contudo, muitas das abordagens comprometidas com uma viso mais ampliada dos processos de

    design acabam por privilegiar a investigao das relaes sociais circunscritas etapa de produo

    dos artefatos. De certa forma, esse o caso da pesquisa apresentada no j citado livro de Forty

    (2007). Mas vale ressaltar que a concentrao na dimenso da produo reconhecida pelo prprio

    autor como um fator limitante. No prefcio acrescentado edio brasileira, a partir de um olhar

    retrospectivo, ele faz o seguinte comentrio sobre a obra:

    Em particular, h em suas pginas forte nfase no design como um aspecto da produo,

    como resultado de decises tomadas pelos produtores. Embora eu ainda defenda essa

    perspectiva como um modo de compreender as razes da aparncia das mercadorias, no h

    dvida de que, se as olharmos como um veculo social, para o que acontece quando comeam

    a circular no mundo que outro tema principal do livro , os motivos dos designers e

    fabricantes e as intenes que tm para seus produtos depois que os consumidores passam

    a us-los no foram, com a frequncia devida, levados em conta no livro (FORTY, 2007, p. 9).

    No se trata, aqui, de questionar a relevncia do livro de Forty (2007), cuja contribuio para a

    articulao crtica entre o design e as dinmicas socioculturais inegvel, mas sim de chamar a ateno

    para outras possibilidades de construir os relatos historiogrcos. O destaque produo quando

    valorada como a instncia mais relevante na denio dos produtos e dos seus signicados reproduz

    alguns pressupostos do senso comum, onde a circulao e o consumo dos artefatos so vistos como

    etapas subsequentes e tributrias da fase da produo. Logo, circulao e consumo seriam domnios

    onde predominaria a reproduo de sentidos j denidos anteriormente no processo produtivo.

    Essa viso carrega consigo profundas implicaes de gnero, que podem ser percebidas na assuno

    da histria do design como uma narrativa escrita no masculino (CAMPI, 2003). A categoria gnero est

    sendo entendida, nesse texto, como um conjunto de normas, discursos, prticas e materialidades

    que operam na naturalizao de noes de feminilidades e masculinidades culturalmente

    construdas. De acordo com Judith Butler (2003), os efeitos do gnero so incorporados e produzem

    no s a sensao de estabilidade dos sexos, como tambm prescrevem limites para interesses e

    comportamentos atribudos a mulheres e homens. A hierarquia da produo sobre o consumo

    um desses efeitos, pois decorre da clivagem entre esferas pblica e privada e da marcao desses

    domnios como masculino e feminino, respectivamente (HOLLOWS, 2008).

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    Ciente das implicaes acarretadas pela sobrevalorizao da produo nas relaes de gnero,

    a crtica feminista tem trabalhado no sentido de questionar tal pressuposto e de deslocar sua

    primazia. Enquanto espao social historicamente marcado por restries de acesso e por estratgias

    de ocultamento da presena feminina, a nfase na produo diculta uma percepo mais ampla

    da participao das mulheres na constituio da cultura material. Conforme nos mostram BrendaMartin e Penny Sparke (2003), so diversas as maneiras pelas quais as mulheres tm se envolvido

    com a atividade de design, seja como produtoras e consumidoras, mas tambm como clientes,

    colaboradoras e comentaristas.

    Estudos histricos, interessados no questionamento da invisibilidade feminina, tm reivindicado

    o reconhecimento de mulheres que atuaram prossionalmente como designers, mas cujos nomes

    no constavam ou ainda no constam na narrativa ocial. Isso envolve a crtica pouca relevncia

    atribuda s mulheres que desenvolveram seu trabalho em parceria criativa com homens, por vezes

    seus maridos ou companheiros. frequente o apagamento de suas contribuies, que terminamsubsumidas na sobrevalorizao da atuao masculina ou na autoria outorgada exclusivamente

    aos seus parceiros (SIMIONI, 2007; RUBINO, 2010). Essa pode ser uma das chaves de leitura para

    a interpretao do caso de Georgia Hauner.

    Contudo, visando extrapolar a nfase na etapa de produo, a crtica feminista tambm tem investido

    em abordagens de pesquisa que possibilitam perceber a contribuio das mulheres a partir de

    outros domnios. Nessa perspectiva, ganham relevo os engajamentos em prticas muitas vezes

    no remuneradas relacionadas ao consumo e ao espao domstico. Estudos tm demonstrado

    que, embora as mulheres nem sempre estejam ocupando funes consideradas centrais no mundodo design, elas esto frequentemente nas bordas, envolvidas em atribuies que inuenciam o

    resultado nal. Levando isso em conta, pesquisadoras feministas armam a importncia de conferir

    o devido crdito participao das mulheres, pleiteando a revalorizao de espaos, funes e

    atividades classicadas como subalternas (MARTIN; SPARKE, 2003). Como a prtica prossional

    de Georgia Hauner se desenvolveu em estreita interao com as dimenses da circulao e do

    consumo, essa mais uma questo a ser considerada na problematizao aqui apresentada.

    Georgia Hauner e a representao de interiores domsticos

    Georgia Hauner nasceu com o sobrenome Morpurgo, no ano de 1931, em Pozega, cidade na poca

    localizada em uma regio da Iugoslvia, que atualmente corresponde Crocia. Contava 15 anos

    quando desembarcou no Brasil, em 1946, acompanhando os pais que imigraram motivados por

    negcios de famlia. Aps ter concludo a formao secundria em So Paulo, passou o ano de 1951

    nos Estados Unidos, cursando Advertising & Illustration(publicidade e ilustrao) na Art Center

    School,de Los Angeles (HAUNER, fevereiro 2012).

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    Retornando ao Brasil, trabalhou por um tempo em uma agncia publicitria e, no nal de 1953,

    ingressou na empresa Mveis Artesanal 3, onde deu incio s suas experimentaes na produo

    de showrooms. Discorrendo sobre o assunto, Georgia Hauner (2010) comenta: comecei a trabalhar

    l, assistindo clientes na colocao de mveis nas plantas e logo fui promovida para planejar

    exposies. O perodo na Artesanal, embora no seja o foco principal desse artigo 4, importantepara a compreenso da trajetria de Georgia Hauner junto Mobilinea, em funo de algumas

    questes que vou destacar na sequncia.

    A primeira delas diz respeito oportunidade de entrar em contato com prossionais da arquitetura

    e do design, entre eles Srgio Rodrigues e os irmos Carlo e Ernesto Hauner, que faziam parte

    de um grupo maior de especialistas interessadas/os no dilogo com tendncias internacionais

    e na implementao de processos de produo seriada como estratgias de modernizao do

    mobilirio produzido no Brasil (SANTOS, 1995). Tal grupo de prossionais, cujos interesses vinham

    animados pelo crescimento econmico ocorrido no ps-guerra e pela poltica desenvolvimentistapromovida pelo Estado, foi responsvel pela abertura de diversas empresas, lojas e pequenas

    fbricas, principalmente no Rio de Janeiro e So Paulo (DENIS, 2000, p. 161).

    No que concerne linguagem, o projeto de modernizao capitalista, baseado na industrializao,

    estimulou identicaes com a vertente funcionalista denominada Estilo Internacional, que se

    consolidava como tendncia na Europa e nos Estados Unidos. Tendo como preceitos a otimizao

    da produo e a nfase na funcionalidade, o Estilo Internacional primava pela abstrao das formas

    mediante a geometrizao dos volumes e a supresso de ornamentos; pela transparncia da

    composio estrutural e pelo emprego de elementos modulares ou padronizados (ARGAN, 1992).Essas diretivas eram defendidas como meios para alcanar padres universais, decorrentes de

    dedues lgicas pautadas em exigncias objetivas. Contudo, a produo da poca tambm foi

    inspirada pelo iderio nacionalista, traduzido no desejo por imprimir caractersticas brasileiras no

    design de mveis (SANTOS, 1995).

    Logo, a experincia na Artesanal possibilitou a insero de Georgia Hauner, na ocasio da admisso

    ainda Georgia Morpurgo, em um contexto de prticas e discursos interessados na promoo do

    design moderno que tinha, como pano de fundo, implicaes culturais, polticas e econmicas

    associadas ao modelo de desenvolvimento implementado na sociedade brasileira. Isso abarcava

    no s aspectos relacionados aos esforos pela consolidao do design como campo prossional

    vale lembrar que as tentativas de institucionalizao do ensino tiveram incio nos anos 1950

    (DENIS, 2000) como tambm a articulao com dinmicas e contradies decorrentes do processo

    mais amplo de industrializao e de formao de uma cultura de consumo no pas. Se por um

    lado a modernizao promoveu certa democratizao do acesso a novos tipos de bens, servios e

    informaes, por outro aprofundou clivagens e diferenas sociais (MELLO; NOVAIS, 1998).

    3 A Mveis Artesanal Ltda., que a partir de meados da dcada de 1960 tornou-se Forma S. A. Mveis e Objetos de

    Arte, foi fundada em 1950, na cidade de So Paulo (SANTOS, 1995).4 Para uma abordagem aprofundada sobre a Mveis Artesanal, ver Mina Warchavchik Hugerth (2014).

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    J a outra questo que vale ressaltar diz respeito ideia sugerida por Mina Warchavchik Hugerth

    (2014) de que o trabalho colaborativo, desenvolvido na Artesanal, serviu como uma espcie de

    laboratrio de formao, inuenciando os percursos posteriores das/os personagens envolvidas/

    os. Em funo do recorte denido para esse texto, alm do aprendizado e da experincia adquirida,

    ganham relevncia o casamento de Georgia e Ernesto Hauner em 1955 e a deciso de investirem emuma fbrica prpria, motivada pelo desejo de Ernesto Hauner por maior autonomia no planejamento

    e produo de seus desenhos (HAUNER, maio 2012). Esses eventos so denidores da parceria

    prossional rmada entre os dois na Mobilinea.

    Os Hauner e a Mobilinea

    Em 1959, depois de um ano morando em Roma onde nasceu o segundo lho do casal os Hauner

    retornaram a So Paulo. Nessa ocasio, aps reencontrar o mestre marceneiro Vicente Barbarullo e

    outros operrios com os quais j havia trabalhado anteriormente, Ernesto Hauner abriu sua prpriaocina. Assim, surgiu a Ernesto Hauner Cia. Ltda 5, que a partir de 1962, com a incorporao do

    engenheiro John de Souza como scio, passou a se chamar Mobilinea. Tal como Georgia, Ernesto

    Hauner tambm imigrou para o Brasil na adolescncia. Nascido na Itlia, chegou em So Paulo

    com a famlia aos 17 anos, em 1948. Consta que sua carreira como designer de mveis comeou

    com um trabalho de desenhista junto ao Studio de Arte e Arquitetura Palma, dirigido por Lina Bo

    Bardi e Giancarlo Palanti (HUGERTH, 2014; LEON, 2005; SANTOS, 1995).

    Segundo Hugerth (2014), a sociedade que originou a Mobilinea possibilitou a ampliao do campo

    de atuao da empresa, inicialmente voltada para a fabricao de estantes moduladas em madeiramacia. Sendo assim, outras matrias primas e uma variada gama de tipologias de mobilirio

    foram introduzidas na linha de produo. Ernesto Hauner passou a projetar famlias completas

    de mveis, tanto para ambientes residenciais, como para escritrios. O investimento crescente

    em novos pontos de venda um indicativo do desenvolvimento do negcio, que em poucos

    anos abriu liais em diferentes capitais brasileiras. Conforme Ethel Leon (2005), num primeiro

    momento, a Mobilinea contava com duas lojas em So Paulo. Com o tempo, a fbrica chegou a ter

    350 funcionrios e lojas no Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Braslia.

    Mesmo trabalhando em casa por conta dos lhos, Georgia Hauner esteve envolvida com a construoda Mobilinea desde o incio. Alm de participar da escolha do nome e de ter sido responsvel pela

    criao da marca da empresa, sua atuao abrangia a produo de imagens destinadas divulgao

    dos produtos. Sobre os primeiros tempos, em relato pessoal, ela diz:

    5 No existe consenso acerca do nome da empresa na literatura especializada. A nomenclatura adotada nesse

    texto a usada por Maria Ceclia Loschiavo dos Santos (1995). J Ethel Leon (2005) faz referncia a Ernesto HaunerIndstria de Mveis, enquanto Mina Warchavchik Hugerth (2014) utiliza Ernesto Hauner Decoraes.

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    Eu estava em casa, cuidando de dois lhos pequenos, mas continuei ligada atividade do

    Ernesto. Ele trazia os modelos dos mveis para casa, e eu preparava ambientaes e fundos

    para fotograf-los no estdio de um fotografo comercial que morava na nossa rua. Ernesto

    e eu desenvolvemos juntos a ideia e o nome Mobilinea, e eu desenhei a marca. Inventei o

    estilo de vida e as imagens, que identicavam a rma para o pblico, atravs das promoes

    e dos anncios. Ernesto e eu sempre trabalhamos bem em conjunto (HAUNER, maio 2012).

    Com a abertura das primeiras lojas, Georgia Hauner tambm tornou-se responsvel pelo

    planejamento de vitrines e showrooms:

    Planejei as exposies das primeiras lojas: uma para mveis residenciais na Rua Augusta

    e em seguida a loja para as linhas de escritrio, na Av. So Lus. No me lembro quando

    comecei a receber uma remunerao da Mobilinea. Nos primeiros anos o dinheiro andava

    apertado e geralmente havia outras prioridades. Para mim no era importante, porque para

    Ernesto e para mim a Mobilinea era uma lha (HAUNER, maio 2012).

    Por volta de 1962, visando obter renda prpria para contribuir com o oramento da famlia, Georgia

    Hauner comeou a desenvolver, em casa, a produo de luminrias feitas em papel dobrado,

    inspiradas em um modelo de origem dinamarquesa. Ela conta que um par de arquitetos na cidade

    [de So Paulo] fazia esses bales de papel, que eram bonitos e para os quais tinha bastante

    procura (HAUNER, maio 2012). Quando conseguiu dominar os processos de corte e dobra, passou

    a introduzir novas formas e acabamentos com aplicao de tecidos e passamanarias, recursos queno haviam sido explorados antes. Como algumas luminrias eram de tamanho grande, Georgia

    Hauner passou a utiliz-las como artifcio para preencher espaos vazios entre os mveis baixos

    e o teto alto das lojas, nas montagens dos showrooms. Duas dessas montagens, cujas fotograas

    foram usadas para ilustrar anncios publicitrios, podem ser observadas na gura 1.

    Os lustres se tornaram populares entre a clientela que frequentava a Mobilinea em busca por novidades.

    Devido maior visibilidade, a procura aumentou signicativamente. Para vencer as encomendas,

    Georgia Hauner contatou trs ajudantes e transferiu a produo para um apartamento que cava no

    Figura 1: Reproduesfotogrcas deshowroomsdaMobilinea, utilizadasem annciospublicitrios. Fonte:Casa & Jardim, junhode 1967 e Claudia,fevereiro de 1969.Acervo de peridicosda Biblioteca Pblicado Paran.

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    andar de cima da loja da Mobilinea, localizada na Rua Augusta (HAUNER, maio 2012). Esse processo

    de incorporao de produtos confeccionados artesanalmente por Georgia Hauner, produo seriada

    ligada empresa, se repetiu algumas vezes, conforme vou tratar mais adiante, nesse texto.

    Com o desenvolvimento da empresa, Georgia Hauner incorporou as funes de escolher as linhas de

    tecidos para estofamento de mveis; de elaborar as cartelas de combinaes de cores e de treinar

    assistentes para auxiliar clientes na distribuio do mobilirio nas plantas de suas residncias.

    Na medida em que os lhos foram crescendo e cando mais independentes, ela tambm passou a

    prestar servios fora da Mobilinea. Assim, por intermdio de Srgio Rodrigues, desenvolveu projetos

    de interiores para moradias de clientes da lial da Oca 6em So Paulo, bem como para alguns

    clientes da prpria Mobilinea; produziu fotograas para divulgao de equipamentos de som da

    empresa Gradiente e, no nal dos anos 1960, realizou editoriais de decorao para a revista Claudia

    (HAUNER, maio 2012). Todas essas experincias, certamente, contriburam para o desenvolvimento

    da linguagem que caracteriza os showroomsprojetados por Georgia Hauner para a Mobilinea.

    A modernidadepopda Mobilinea

    Conforme j foi abordado, a viso de Georgia Hauner quanto concepo dos interiores, estava alinhada

    aos preceitos do design e da arquitetura modernista. No que concerne arquitetura, esses preceitos

    envolviam o planejamento da construo a partir da organizao interna dos cmodos em setores

    social, ntimo e de servio, bem como a integrao de algumas funes mediante a eliminao de

    paredes, resultando em espaos mais amplos, cujas especializaes eram demarcadas pela disposio

    do mobilirio (SPARKE, 2008). Em relao aos valores que pautavam seus projetos, ela arma:

    6 Em 1955, Srgio Rodrigues abriu no Rio de Janeiro a loja de mveis Oca, onde comercializava sua prpriaproduo (SANTOS, 1995).

    7 Importante escola de design e arquitetura ligada s vanguardas modernistas, que funcionou na Alemanhadurante o perodo entre guerras (DROSTE, 1994).

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    Eu desejava que a arquitetura residencial se desenvolvesse de dentro para fora, evitando a

    ostentao externa e focalizando mais na harmonia interior. A grande maioria de pessoas

    aceitou sem reservas os interiores com paredes divisrias de alvenaria, formando caixas

    designadas s funes da vida domstica, segregando homens e mulheres, crianas e

    adultos, empregados e donos, e mantendo as visitas afastadas das atividades cotidianas. Eu

    no estava satisfeita com o estilo de vida sugerido e estava procura de alternativas. Alguns

    arquitetos se preocuparam em criar mveis modernos para acompanhar a nova arquitetura

    e se concentraram na elegncia, funcionalidade e simplicidade de linhas dos mveis. Mas

    o pblico achava tudo isto frio. Para se sentir vontade em casa, as pessoas se agarravam

    aos mveis de estilo, ou cpias de mveis antigos. Pouca gente estava interessada em

    design, ou tinha conhecimento da Bauhaus7e outras tendncias modernas. A atitude dos

    jovens apontava para um comportamento mais informal. Apoiar os ps em cima da mesa

    de centro, car reclinados no sof, jogar as pernas em cima do brao da poltrona, descansar

    os cotovelos na mesa, sentar no cho e encostar nos estofados era a nova maneira de viver.O design dos mveis modernos convidava a relaxar. As sedas e brocados dos estofamentos

    antigos estavam sendo substitudos com capas de algodo cru e brim para jeans, que

    podiam ser tiradas mediante um zper e lavadas (HAUNER, maio 2011).

    Nesse depoimento, vale destacar dois aspectos que foram determinantes na caracterizao das

    ambientaes desenvolvidas por Georgia. A diculdade apontada quanto aceitao do mobilirio

    moderno pelo pblico consumidor, motivou a introduo de elementos decorativos, muitas vezes

    inusitados e bem humorados, visando promover a identicao das pessoas com novas possibilidades

    de conceber os interiores domsticos. A ideia era mostrar que ambientes compostos por mveisindustrializados no precisavam ser frios, mediante propostas que sugerissem solues bem

    planejadas em termos de aproveitamento dos espaos, mas que tambm produzissem o efeito de

    evocar sensaes de conforto e acolhimento.

    Articulada ao interesse em promover ambientes acolhedores, est a ateno de Georgia Hauner

    pelo comportamento informal da juventude da poca. A partir de meados dos anos 1960, ela

    estreitou o dilogo com a linguagem pop, forjada junto cultura jovem, que vinha ganhando vulto

    desde o incio da dcada em escala internacional. No cerne da cultura jovem estava a chamada

    revoluo comportamental, que envolveu o combate s instituies sociais fundadas em relaeshierrquicas, tanto no mbito pblico, quanto no privado. Diversas mobilizaes de jovens, como

    os movimentos estudantil, hippie, negro, gay e feminista, informaram os investimentos nas

    transgresses experimentadas na poca (PEDRO, 2009). No Brasil, as modicaes comportamentais

    adquiriram o contorno de enfrentamento ao carter conservador da Ditadura Militar instaurada

    em 1964, uma vez que, para os militares a dissoluo dos costumes era vista como parte da

    subverso fomentada pelas organizaes de esquerda (ALMEIDA; WEIS, 1998).

    Com origem na Inglaterra ainda nos anos 1950, a linguagempopespraiou-se para outros pases ao longo

    da dcada de 1960, tendo Nova Iorque como um dos principais centros irradiadores. Em contraposio

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    austeridade do modernismo funcionalista pautado, conforme j foi dito, na simplicao formal

    e na padronizao o pop rmou suas bases na irreverncia, no humor e na expresso pessoal

    (WHITELEY, 1987). Sua repercusso no design de mveis privilegiou concepes ldicas e informais

    que favoreciam posturas corporais descontradas. Dessa forma, o vocabulrio engendrado pelo pop

    serviu de suporte para setores da juventude interessados em demarcar um espao identitrio que osdiferenciasse dos padres convencionais, sendo utilizado como um marcador geracional.

    Para alm de uma tipologia claramente delimitada, o design popse caracterizou pela incorporao

    de mltiplas referncias. A inuncia das artes plsticas foi signicativa e diversicada. Na

    interao com aPop Art, houve o interesse compartilhado pela iconograa da cultura de massa.

    A busca por resultados de impacto visual motivou a apropriao dos efeitos de iluso de tica

    obtidos naOp Art. A dramaticidade das cores intensas e dos contrastes vibrantes, presente no

    trabalho de artistas conhecidos como a segunda gerao de abstracionistas norte-americanos,

    tambm foi incorporada, compondo a paleta de matizes puros e chapados que marcou a produomaterial do perodo (GARNER, 1996).

    As referncias de vanguarda dividiram espao com o retorno aos movimentos artsticos do

    passado. Tal disposio para o revivalismo almejava restabelecer a valorizao da ornamentao,

    presente em estilos suntuosos como o Vitoriano, o Art Nouveaue o Art Deco (SPARKE, 1987). J

    o apoio na cultura psicodlica e no estilo tnico, adotado pela comunidade hippie, contestava o

    racionalismo ocidental e expressava o desejo por um arcabouo de referncias capaz de superar a

    postura eurocntrica tradicional (JACKSON, 2000). O imaginrio mobilizado pela corrida espacial

    disputada entre as duas superpotncias que emergiram da Segunda Guerra, a saber, os EUA ea URSS, rmou-se como outra inuncia importante (GARNER, 1996). A possibilidade de sonhar

    com a era espacial instigou a criao de um repertrio de formas futuristas, baseado nas linhas

    orgnicas, nos materiais sintticos e na combinao do prateado com o branco.

    No Brasil, o dilogo com a linguagem popocorreu em diversas instncias. Nas artes plsticas, a partir

    de 1965, a inuncia popaparece na obra de artistas interessadas/os em investir na representao

    gurativa como meio de explorar temticas vinculadas realidade urbana (HOLLANDA; GONALVES,

    1995). A formao do Tropicalismo, em 1967 e 68, tambm ocorreu em interao com a linguagem

    pop, reunindo diversas reas da produo cultural, com grande destaque na msica (FAVARETO, 2000).

    Superando o circuito artstico, referncias popcirculavam em verses adaptadas para um mercado

    mais amplo, sendo percebidas, tanto na moda ligada ao vesturio, quando em uma innidade de

    artefatos de uso cotidiano, como louas e outros utenslios domsticos (SANTOS, 2010).

    Logo, o investimento de Georgia Hauner na linguagem popocorreu em interao com um contexto

    mais amplo de renovao esttica, que se desenrolava nos mbitos nacional e internacional. A

    incorporao da linguagem pop, na decorao dos ambientes da Mobilinea servia como recurso

    para localizar sua produo entre as vanguardas do momento, apresentando ao pblico uma

    empresa em sintonia com as novidades do seu tempo. Vale observar que, alm da Mobilinea, vrias

    outras empresas brasileiras ligadas ao setor de mobilirio incorporaram inuncias do iderio pop

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    em suas propostas (SANTOS, 2010). Contudo, os ambientes projetados por Georgia Hauner, muitas

    vezes, se destacam pela ousadia dos arranjos, conforme veremos na sequncia.

    Casa & Jardim visita Mobilinea

    Para discorrer sobre a contribuio de Georgia Hauner na construo de uma reputao arrojada

    para a Mobilinea, vou destacar, como exemplo, algumas imagens que ilustram a reportagem C.

    J. visita... Mobilinea, veiculada na revista de decorao Casa & Jardim, de julho de 1970. Embora

    no constem crditos na publicao, todos os ambientes retratados foram produzidos por Georgia

    Hauner em espaos que ela projetou para abrigar um novo showroomadquirido pela empresa:

    Quando apareceu a oportunidade de fazer um showroomnovo para as linhas de mveis

    residenciais da Mobilinea, em 500 m2 distribudos em dois andares do novo Shopping Center

    da Iguatem, me entusiasmei com a ideia de projetar uma exposio diferente de tudo queexistia em So Paulo na poca. Eu no sabia nada sobre construo, mas segui as preparaes

    da turma de prossionais da Mobilinea. A arquiteta e assistente do Ernesto, Yone Koseki

    Pierre, me deu muito apoio. Ela me convenceu de que tudo era possvel. Fiz os desenhos

    e Yone se dedicou a seguir a execuo das obras, no local. Juntaram uma turma de gente

    da fbrica. Um mestre-pedreiro me ensinou muitas coisas e fez boas sugestes quando eu

    estava em dvida. [] Descobri que podamos cavar o piso do andar trreo do shopping e

    projetei ali trs nveis a vista das vitrines. A entrada permaneceu no mesmo nvel, uma rea

    em primeiro plano mais baixa de meio andar, e em segundo plano, um nvel na altura dos

    olhos, para quem observava de fora. Isto separou as exposies sem vedar a vista geral

    do espao. Aproveitei a alvenaria nova para criar degraus que formavam assentos, paredes

    baixas para encostar mveis e paredes divisrias rsticas, vazadas, com luz embutida para

    expor objetos. As estantes de linha do Ernesto eram desmontveis e moduladas, auto-

    portantes e acabadas de todos os lados, portanto podiam ser colocadas para dividir os

    espaos de maneira diferente a cada mudana de exposio (HAUNER, maio 2011).

    O primeiro ambiente que aparece na reportagem

    de Casa & Jardim, uma sala de jantar de

    inspirao futurista (Figura 2). Aqui, Georgia

    Hauner aproveita os materiais, as cores e os

    acabamentos do mobilirio para criar uma

    ambincia que remete ao imaginrio da era

    espacial. Os mveis possuem estruturas em ao

    cromado. Os assentos e encostos das cadeiras,

    assim como o tampo da mesa, so de polister

    reforado com bra de vidro. A atmosfera fria

    e tecnolgica, promovida pelas superfcies

    Figura 2: Sala dejantar inspirada

    no imaginrio daera espacial.Fonte: Casa &Jardim, julho de1970. Acervo deperidicos daBiblioteca Pblicado Paran.

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    sintticas, brilhantes e polidas, intensicada pelo predomnio do branco e pelo jogo de reexos

    do cromado. Ao fundo, como contraponto, aparece um painel feito em feltro preto, recortado em

    desenhos rebuscados. Segundo Georgia Hauner, esse painel servia como divisria, denindo os

    limites do ambiente, sem vedar completamente a viso para outras reas do showroom. Ela mesma

    idealizou o desenho de inuncia oriental e executou parte do recorte no tecido:

    Recortar o feltro preto foi uma tarefa enorme e difcil. Nunca teria feito isto para somente

    uma montagem de fotograa. Mas era til para o nosso showroomdurante muito tempo,

    (podia ser mudada de lugar) e servia bem para isolar outros ambientes, alm deste. Comecei

    a tarefa sozinha, porm depois de algum tempo (e calos nos dedos) recebi uma ajuda da

    Irene (chefe da tapearia na Mobilinea). A divisria no estava venda. Eu inventava estas

    coisas para promover a Mobilinea e para dar uma personalidade aos nossos ambientes

    (HAUNER, maio 2012).

    Na opinio de Georgia Hauner (maio 2012), o contraste entre o desenho da divisria e os mveis

    modernos esquentava o espao, ajudando a aproximar o pblico proposta do ambiente. Mas,

    tambm, vale lembrar que, assim como o imaginrio futurista, referncias a culturas orientais eram

    recursos explorados pela linguagem pop. A gura 2 ainda possibilita a observao de uma outra

    caracterstica presente em muitas das as imagens produzidas por Georgia Hauner para promover a

    Mobilinea. Trata-se da incluso de modelos femininos nas fotograas. Ela conta que, a insero de

    modelos nas cenas, contemplava diversos ns, que englobam desde chamar a ateno ou criar uma

    composio mais harmoniosa, at dar proporo ou explicar o uso de determinado tipo de mvel(HAUNER, abril 2011). No caso especco dessa reportagem, a presena das modelos foi inspirada

    em uma feira visitada em Montreal, no Canad, intitulada Expo 1967: quei impressionada com

    uma srie de robs sentados em livingsmodernos, conversando uns com os outros e assumindo

    atitudes expressivas da era pop (HAUNER, abril 2011). Em um outro relato, Georgia Hauner (maio

    2012) arma que a ideia das posturas estava relacionada ao desejo por demonstrar que os mveis

    modernos eram confortveis.

    Outro ambiente que convm destacar, pela ousadia, a proposta direcionada para sala de estar,

    cujo efeito alude a uma atmosfera psicodlica (Figura 3). A imagem mostra um jogo de sofsamarelos e uma mesa de centro, dispostos em um espao onde pinturas decorativas sobem

    do cho s paredes. A aplicao de espelhos no teto e o uso da iluminao de baixo para cima,

    por meio de luminrias dispostas sobre o piso, criam um efeito ldico e contribuem para uma

    percepo diferenciada do entorno. A modelo que posa para a fotograa demonstra uma atitude

    descontrada, apoiando os ps descalos sobre o brao do sof. Quanto produo desse ambiente,

    Georgia Hauner (maio 2012) esclarece:

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    Como de costume, preparei os desenhos do inicio do sculo em escala para a pintura e

    o [funcionrio] Ernestinho transferiu para o cho e paredes. Ele trabalhava na fbrica da

    Mobilinea e eu pedia a ajuda dele quando precisava destes trabalhos nos showrooms,

    quando descobri por acaso que ele tinha este talento.

    Sobre a presena da modelo, ela destaca

    novamente a preocupao em conseguir

    traduzir o estilo de vida moderno para um

    pblico relutante, ainda apegado aos velhos

    costumes e agarrado s tradies (HAUNER,

    maio 2012). Simplicidade e informalidade

    deveriam ser as caractersticas chave parauma nova forma de viver. Na interpretao de

    Georgia Hauner (maio 2012), os ps descalos

    das modelos convidam as pessoas a se sentirem vontade: a

    atitude de tranquilidade, de segurana e de informalidade

    na prpria moradia. Os ambientes cam aquecidos pela

    personalidade dos indivduos que os usam sem constrangimento.

    A opo pelas poses informais, tambm associava os ambientes,

    s transformaes comportamentais em curso. As imagens de

    mulheres em poses ousadas para a poca evocam, ainda que em uma verso adaptada para o consumo

    de massa, as reivindicaes feministas por liberdade e domnio sobre o prprio corpo 8. Dessa forma, as

    fotograas que circulavam nas revistas e anncios publicitrios estabeleciam vnculos entre a imagem

    da Molilinea e as novidades do perodo, em termos de valores e comportamentos.

    A reportagem de Casa & Jardim tambm apresenta um ambiente que oportuniza o retorno

    discusso sobre a incorporao de artefatos confeccionados por Georgia Hauner ao processo

    produtivo da Mobilinea. Trata-se de uma proposta para quarto de casal, elaborada com mveis

    modulados, laqueados em branco, onde o grande destaque da fotograa direcionado para a

    colcha que reveste a cama (Figura 4). Batizada de Romeu e Julieta, a colcha exibe o desenhode um casal nu, dormindo lado a lado. A representao sugere intimidade e remete ao tema da

    sexualidade conjugal, abordagem audaciosa para a poca e em sintonia com as transformaes

    comportamentais. Ao longo dos anos 1960, o corpo ganhou relevo como meio de contestao

    de valores morais conservadores e a nudez passou a servir como instrumento poltico para a

    reivindicao por mudanas (MACIEL, 1987). A colcha mais um dos recursos idealizados por

    Georgia Hauner para aquecer os ambientes modernos, visando identicao com o pblico

    consumidor de classe mdia. Sobre a materializao do conceito, ela explica:

    8 Para uma abordagem mais aprofundada sobre essa questo, ver Marins Ribeiro dos Santos (2010).

    Figura 3:Sala de estarpsicodlica.Fonte: Casa &Jardim, julho de1970. Acervode peridicosda Biblioteca

    Pblica doParan.

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    O quarto de casal, de uma simplicidade total, eu quis apresentar num tom romntico sem

    recorrer aos tradicionais enfeites e babados. A colcha Romeu e Julieta eu desenhei e

    executei na minha casa. Eu visava personalizar um produto popular, bem tradicional brasileiro

    e de fcil identicao. Era a colcha de piqu branco, barata, bonita e lavvel. Desenhei as

    guras nuas em tamanho natural, sobre rolos de papel, esticando, um por vez, em cima da

    porta do meu estdio. Os meus modelos ao vivo foram vrios membros de minha famlia.

    De cada um, eu desenhava os traos melhores (minha me tinha as melhores pernas; braos

    e seios eram de uma sobrinha; sobrinhos e lhos posaram para cabeas, ombros, mos e

    tudo mais). Usando folhas de papel copiativo da minha mquina de escrever (coladas uma

    com a outra com ta adesiva), passei os desenhos no avesso da colcha. Enrolei linha de

    bordar grossa e preta na bobina da mquina de costura e, com linha normal branca, costurei

    trao por trao o desenho no avesso da colcha. No lado direito do piqu saiu o desenho do

    casal em linha de bordar preta, que vinha da bobina da mquina (HAUNER, maio 2012).

    Em princpio a colcha, Romeu e Julieta no foi pensada para

    ser vendida em loja. Contudo, em decorrncia da demanda, o

    artefato foi includo no rol de produtos comercializados pela

    empresa:

    A colcha chamou muita ateno, apesar de que o desenho era delicado e discreto. Algum

    da Editora Abril me advertiu que eu iria ter problemas com a censura. Mas nunca tive. No

    era minha inteno a de vender colchas, porm havia tanta procura por parte do pblico,

    que a Mobiliea resolveu contratar uma pessoa para trabalhar na fbrica, imprimindo a mo,

    em serigraa, as colchas Romeu e Julieta, substituindo assim o bordado feito na mquina

    de costura (HAUNER, maio 2012).

    O mesmo processo ocorreu com um conjunto de almofadas que Georgia Hauner bordou para

    incrementar uma proposta de sala de estar, cuja imagem ilustra o anncio publicitrio reproduzido

    na gura 5. As almofadas apresentam a gura de uma mulher deitada, portando roupas de baixo

    que remetem ao estilo em uso, durante a virada do sculo XIX para o XX. Ela conta que desenhou e

    bordou as almofadas mo, com a ajuda da me, para dar personalidade ao ambiente:

    Figura 4: Quarto de casal coma colcha Romeu e Julieta.Fonte: Casa & Jardim, julho de1970. Acervo de peridicosda Biblioteca Pblica doParan.

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    Foi outro desenho de grande sucesso que a Mobilinea teve que mandar imprimir para dar

    conta dos pedidos. No sei quantos conjuntos foram estampados (capas de algodo para

    almofadinhas, com zper de um lado.) Lembro que havia fundos estampados com uma

    grande escolha de cores, para acompanhar qualquer ambiente (HAUNER, maio 2012).

    Em seu relato, Georgia Hauner (maio 2012) tambm discorre sobre

    alguns aspectos envolvidos na produo da fotograa:

    A imagem publicitria dos mveis da Mobilinea foi feita em nossa fbrica. O modelo,

    vestindo roupa vitoriana, um funcionrio da fbrica da Mobilinea. Se no me engano, era

    o chefe de produo, que concordou de ser modelo para esta foto. Aqui ele est fazendo

    de conta de estar jogando xadrez com a gura bordada nas almofadas. Para completar a

    brincadeira na foto, coloquei as toalhas de croch sobre os sofs de linha da Mobilinea. Um

    pouco de humorismo tambm ajudava a vender o moderno para um pblico relutante.

    O dilogo com a linguagem pop pode ser percebido pelo recurso do humor; pela inspirao

    vitoriana presente na estampa das almofadas e no gurino do modelo; bem como pelo retorno

    ornamentao, mediante o uso de toalhas de croch sobre os encostos dos sofs. A opo pelas

    toalhas de croch no deixa de evocar certa ironia, tendo em vista a averso do modernismo aos

    itens de decorao considerados supruos. As imagens na parede ao fundo, que parecem oriundas

    de revistas ilustradas, evocam o apreo do poppela iconograa, caracterstica da cultura de massa.

    Aqui temos mais um exemplo de como Georgia Hauner interpretava a noo de moderno, durante

    os anos 1960 e 1970, a partir da lente da linguagem pop. Ela entende a sua atuao, na congurao

    de showroomse imagens de divulgao, como uma prtica de cenograa: a minha especialidade

    era a encenao de imagens que incluam mobilirio (HAUNER, maio 2015).

    Chama ateno o sucesso alcanado pelos artefatos que Georgia Hauner confeccionava para

    personalizar ou esquentar os ambientes dos showrooms. Contudo, a importncia que esses

    artefatos adquiriram junto clientela da Mobilinea, contrasta com o tipo de produo material

    Figura 5: Sala de estar como conjunto de almofadasbordadas. Fonte: Claudia,maro de 1968. Acervo deperidicos da BibliotecaPblica do Paran.

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    considerada digna de registro,na historiograa referente ao design moderno, no Brasil. Nos relatos

    histricos, o que consta como produo representativa diz respeito, sobretudo, ao mobilirio. Creio

    que isso pode ilustrar o que Silvana Rubino (2010,p.334) chama de tenses entre escalas, na

    valorao de tipologias de artefatos nas instncias de validao da arquitetura e do design.

    Quando faz meno s escalas, Rubino est se referindo busca do projeto modernista por unidade

    conceitual, entre diferentes dimenses da materialidade envolvida no suporte vida cotidiana, a

    saber: os objetos de uso, a habitao e a cidade. Essa orientao foi traduzida por Walter Gropius9

    no postulado segundo o qual da colher cidade, tudo poderia ser tarefa do arquiteto (RUBINO,

    2010, p. 334). Aparentemente, a declarao de Gropius no estabelece escalas de importncia

    entre as diferentes prticas de projeto. Contudo, a diviso de trabalho, estabelecida entre elas,

    marcada por hierarquias de gnero que poderiam ser metaforicamente representadas da seguinte

    forma: aos homens, s cidades; s mulheres, s colheres.

    Tal diviso de trabalho foi sendo constituda historicamente, sobretudo pelo acesso desigual a

    determinados conhecimentos e prticas. Magdalena Droste (1994), ao discorrer sobre o sistema

    de ensino da Bauhaus, destaca as diculdades enfrentadas pelas mulheres no ingresso aos atelis

    de projeto mais valorizados, como os de mobilirio e arquitetura. Aps qualicadas, na etapa

    de formao fundamental, as estudantes eram, sistematicamente, direcionadas para o ateli de

    tecelagem. Segundo observa Droste (1994, p. 40), grande parte do que as mulheres produziam era

    rejeitado pelos homens como sendo feminino ou artesanal. Os homens receavam uma tendncia

    demasiado decorativa e viam o objetivo da Bauhaus, a arquitetura, em perigo. Dessa forma, um

    sistem