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Caderno n.º 11 Biblioteca Municipal da Póvoa de Lanhoso, "Coisas", de Isa Pontes.
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COISAS
ISA PONTES
Hoje dormi com António Lobo
Antunes.
E acordei com Rossini - um
pardal a saltitar, na varanda do
meu quarto em delírios, a
lembrar-me as Bodas de Fígaro -
deveriam ser, pelo canto, 8 horas
da manhã.
E lá estava ele, a olhar para mim,
na capa do livro, olho franzido,
cabelo branco desalinhado e os
sinais ao lado direito da cara,
qual marca registada. (eu sou
aquele que gosta de isolamento
para ver melhor e que, vez por
outra, volta ao passado- sempre
presente- como forma de
alimento, minguado que ando de
colo, farto que ando de esgares
estudados).
Saltei da cama e telefonei à
Maria João, a saber da Lala que
ela ontem encontrou, por entre
os carros, no Parque de
estacionamento do Gaia Shoping
– alguém a deixou ali, mais outra
cachorrinha e também a
progenitora que andava aflita
por entre os carros, a tentar
levar os filhotes sem saber para
onde.
-Sabes uma coisa querida?
(adoro pregar partidas e assim
vingo-me das partidas que a vida
me arranja e me fazem chorar de
raiva e, como estas me fazem rir,
lá me vou equilibrando)
-Esta noite dormi com um
homem!
-É pá! Mamã!?
-É... o António Lobo Antunes.
-Olha, isso é o que se chama
uma noite de alto nível mas não
consegues ganhar-me: eu dormi
com o Luís Sepúlveda de um lado
e com o meu marido do outro
lado.
E entre o Bairro de Benfica de cá
e o Kiler todo dado ao
sentimento, de lá, assim foi
decorrendo a nossa conversa,
sem esquecer a nova
personagem que virá habitar a
nossa casa, em Friande, na falda
de um monte , a que dão o nome
de Monte da Paixão, quem sabe,
enamorado das montanhas do
Gerês aqui, em frente.
Desliguei o telefone e olhei em
redor...
A mamã sorri-me, a dormir, sob
uma camélia branca posta
ontem, numa jarra de cristal. O
Jinho, que também partiu, olha-
me da moldura, esperando-me,
num silêncio aparente, enfeitado
pelos tons trazidos do Vale,
amarelos e castanhos e pela
inebriante cadência dos ventos a
transportar, consigo, a meiguice
dos tordos, pardais e canários
que dizem : Estou aqui.
Continuei a percorrer a casa e o
meu olhar a fugir lá para fora...
Salto as montanhas e parto para
o sul e vejo-me jovem, bermudas
pretas, com ela ao colo, a Maria
João, pequenina... frente à
máquina fotográfica, eu de
bermudas, ela de fralda... a
mesma que agora me falava de
Luís Sepúlveda.
E tu que ainda não estavas na
foto, em lado algum à minha
espera, de Kodak em riste junto à
cintura, olhando o vidro
quadrado
-Ri-te! Olha para aqui e vira a
menina.
E eu ri-me
Meio distraída, pensava, com a
Maria João ao colo, de fralda...
Quem seria um tal António Lobo
Antunes de quem o diário
“Angola Norte” ontem tanto
falava? Dizia ter sido visto na
Baixa de Cassange, perto de
Kibangue Agrícola, também
referia que é escritor...
ISA PONTES
CADERNOS DA BIBLIOTECA MUNICIPAL DA PÓVOA DE LANHOSO,2008
Nº 11