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Cadernos 16.1 (2013) Com Capa

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Cadernos de Psicologia Social do Trabalhoversão impressa ISSN 1516-3717, versão online ISSN 1981-0490

volume 16, número 1, janeiro/junho de 2013

EDITORES Leny Sato (Universidade de São Paulo. Brasil, SP, São Paulo) Fábio de Oliveira (Universidade de São Paulo. Brasil, SP, São Paulo)

CONSELHO EDITORIAL Alexandre Bonetti Lima (Universidade Estadual de Londrina. Brasil, PR, Londrina) Francisco Antonio de Castro Lacaz (Universidade Federal de São Paulo. Brasil, SP, São Paulo) Iram Jácome Rodrigues (Universidade de São Paulo. Brasil, SP, São Paulo) Isaac Prilleltensky (University of Miami. EUA, Florida, Miami) Jorge Vala (Universidade de Lisboa. Portugal, Lisboa) José Miguel Sabucedo (Universidad Autônoma de Santiago de Compostela. Espanha, Santiago de Compostela) José Moura Gonçalves-Filho (Universidade de São Paulo. Brasil, SP, São Paulo) Josep Maria Blanch (Universitat Autònoma de Barcelona. Espanha, Barcelona) Maria Elizabeth Antunes Lima (Universidade Federal de Minas Gerais. Brasil, MG, Belo Horizonte) Maristela Dalbello de Araújo (Universidade Federal do Espírito Santo. Brasil, ES, Vitória) Peter Kevin Spink (Fundação Getúlio Vargas de São Paulo. Brasil, SP, São Paulo) Sigmar Malvezzi (Universidade de São Paulo. Brasil, SP, São Paulo) Sylvia Leser de Mello (Universidade de São Paulo. Brasil, SP, São Paulo)

CENTRO DE PSICOLOGIA APLICADA AO TRABALHO Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Departamento de Psicologia Social e do Trabalho

Docentes Psicólogos SecretáriaMarcelo Afonso Ribeiro (coordenador) Anete de Souza Farina Tania M. F. de A. Silva

Leny Sato Fábio de Oliveira Flavio Ribeiro Tatiana Freitas Stockler das Neves

PATROCÍNIO Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social

Revisão Tikinet Edição Ltda.

Diagramação e capa Fábio de Oliveira

Foto da Capa Artista ao ar livre na Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2013. Por Tiago Rodrigo Marin.

Idealização do padrão da capa Sandro A. Mazzio

AgradecimentosAndré Serradas, Aparecida Angélica Z. P. Sabadini, Claudenia Diniz da Silva Lima, Gerson Yukio Tomanari, Maria ImaculadaCardoso Sampaio, Maria Júlia Kovács, Marinalva A. S. Gil, Sonia Regina Pereira Piola Luque, Tânia M. F. de A. Silva, VâniaMaria Ogeda da Silva.

Os Cadernos de Psicologia Social do Trabalho são uma publicação periódica do Centro de Psicologia Aplicada ao Trabalho que visadifundir a produção científica na área da psicologia do trabalho e dos processos organizativos a partir da leitura da psicologia social,compreendida como um campo interdisciplinar.

Endereço para envio de manuscritos, compra, permuta e assinatura:Centro de Psicologia Aplicada ao TrabalhoAv. Prof. Mello Moraes, 1721, bloco D, sala 163, Cidade Universitária, São Paulo-SP, Brasil, 05508-030Telefone: +55 11 3091 4188, fac-símile: +55 11 3091 4174Correio eletrônico: [email protected], página eletrônica: http://www.revistas.usp.br/cpst

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A revista conta com a colaboração de consultores ad hoc. Indicadores de 2012: 40 manuscritos recebidos, 34 aceitos parapublicação, 5 reprovados e 1 retirado. Intervalo médio entre recebimento e aprovação de um original em 2012: 8,68 meses.Intervalo médio entre recebimento e publicação de um original em 2012: 14,05 meses. Tiragem: 300 exemplares.

Avaliação Qualis Capes de 2012: B2 (Área de Psicologia)

Indexadores internacionais

Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS) – http://www.bireme.br/

Citas Latinoamericanas em Ciencias Sociales y Humanidades (CLASE) – http://dgb.unam.mx/

Sistema Regional de Información en Línea para Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal (Latindex) – http://www.latindex.unam.mx/

Sociological Abstracts – http://www.csa.com

Indexadores nacionais

Index Psi Periódicos (BVS-Psi) – http://www.bvs-psi.org.br

Periódicos Eletrônicos em Psicologia (PePSIC) – http://pepsic.bvs-psi.org.br/

Disponível online em: http://pepsic.bvs-psi.org.br/cpst e http://www.revistasusp.sibi.usp.br/revistas/cpst

Disponível nas bibliotecas das universidades ligadas à Rede Brasileira de Bibliotecas da Área de Psicologia (ReBAP)

http://www.bvs-psi.org.br/rebap/

Cadernos de Psicologia Social do Trabalho / Centro de Psicologia Aplicada ao Trabalho(CPAT) do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia daUniversidade de São Paulo. Vol. 1, nº 1 (1998) – São Paulo: Instituto de Psicologia da USP,1998.

Anual até 2005 Semestral desde 2006

ISSN 1516-3717 versão impressa ISSN 1981-0490 versão online

1. Psicologia do Trabalho; 2. Psicologia Social.I. Universidade de São Paulo. Instituto dePsicologia. Centro de Psicologia Aplicada ao Trabalho.

CDD 150LC HF5548.8 / HM251

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Cadernos de Psicologia Social do Trabalhoversão impressa ISSN 1516-3717, versão online ISSN 1981-0490

volume 16, número 1, janeiro/junho de 2013

Sumário

Editorial …...................................................................................................................... vii

Artigos originais

Imagine que eu sou seu sósia... Aspectos técnicos de um método em clínica da atividade …...................................................................................... 1Matilde Batista e Laís Rabelo

Prática de gestão e controle da subjetividade dos trabalhadores: a ideologia de encantamento em uma empresa de varejo …................................... 9Ana Carolina Horst, Lis Andréa Pereira Soboll e Édna Cicmanec

Trabalho, vida e morte no setor de rochas ornamentais: efeitos psicossociais do acidente de trabalho fatal para a família …..................... 25Ana Beatryce Tedesco Moraes e Maria das Graças Barbosa Moulin

A economia solidária na inclusão social de usuários de álcool e outras drogas: reflexões a partir da análise de experiências em Minas Gerais e São Paulo …...... 41Raquel de Oliveira Barreto, Fernanda Tarabal Lopes e Ana Paula Paes de Paula

Atenção básica e saúde mental: experiência e práticas do Centro de Saúde Escola Samuel B. Pessoa …...................................................... 57Maria Luisa Sandoval Schmidt

Campo de atuação do(a) psicólogo(a) no movimento da Economia Solidária no Brasil ….......................................................................... 71Iara Lais Raittz Baratieri e Marilene Zazula Beatriz

Entre o atender e o ser atendido: políticas em saúde para o trabalhador do serviço público …................................ 87Zelma Borges de Souza e Lélia Marília dos Reis

Aproximações entre o conceito de uso de si e a teoria da mais-valia de João Bernardo …........................................................ 107Moacir Fernando Viegas

Vivências de trabalhadores com diferentes vínculos empregatícios em um laboratório público …............................................................................ 119Marcia Hespanhol Bernardo, Fábio Frazatto Verde e Johanna Garrido Pinzón

“Todos são iguais”, “todos são responsáveis” e “todos estão no mesmo barco”: os (des)entendimentos da autogestão cooperativa …......................................... 135Egeu Gómez Esteves

Instruções para colaboradores …................................................................................... 149

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Cadernos de Psicologia Social do Trabalhoprinted version ISSN 1516-3717, online version ISSN 1981-0490

volume 16, number 1, January/June, 2013

Summary

Editorial …...................................................................................................................... vii

Original articles

Imagine I’m your double... Technical aspects of a method in clinical activity ….... 1Matilde Batista e Laís Rabelo

Practice management and control of the workers' subjectivity: the ideology of enchantment in a retail company ….............................................. 9Ana Carolina Horst, Lis Andréa Pereira Soboll e Édna Cicmanec

Work, life and death regarding the sector of ornamental rocks: psychosocial effects of fatal work accidents for the families …............................ 25Ana Beatryce Tedesco Moraes e Maria das Graças Barbosa Moulin

Solidarity economy in the social inclusion of users of alcohol and other drugs: reflections from the analysis of experiments in Minas Gerais and São Paulo …... 41Raquel de Oliveira Barreto, Fernanda Tarabal Lopes e Ana Paula Paes de Paula

Primary health and mental care: experience and practice in the Health Center School Samuel B. Pessoa …......................................................... 57Maria Luisa Sandoval Schmidt

The role of psychologists in the solidarity economy movement in Brazil …......... 71Iara Lais Raittz Baratieri e Marilene Zazula Beatriz

Between the meeting and being met: health policy for public service workers … 87Zelma Borges de Souza e Lélia Marília dos Reis

Approximations between the concept of use of self and the theory of value of João Bernardo ….................................................................. 107Moacir Fernando Viegas

Experiences of workers with different employment relationships in a public laboratory …............................................................... 119Marcia Hespanhol Bernardo, Fábio Frazatto Verde e Johanna Garrido Pinzón

“Everybody is equal”, “everybody is responsible” and “everybody is in the same boat”: the (mis)understandings of cooperative self-management …......... 135Egeu Gómez Esteves

Directions for contributors …....................................................................................... 149

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Consultores ad hoc dos Cadernos de Psicologia Social do Trabalho em 2011

Adélia Augusta Souto de Oliveira (Universidade Federal de Alagoas. Brasil, AL, Maceió)

Alessandro de Oliveira dos Santos (Universidade de São Paulo. Brasil, SP, São Paulo)

Ana Raquel Rosas Torres (Universidade Federal da Paraíba. Brasil, PB, João Pessoa)

Andréa Bittencourt Pires Chaves (Universidade Federal do Pará. Brasil. PA, Belém)

Angela Maria Dias Fernandes (Universidade Federal da Paraíba. Brasil, PB, João Pessoa)

Angela Maria Pires Caniato (Universidade Estadual de Maringá. Brasil, PR, Maringá)

Anita Cristina Azevedo Resende (Universidade Federal de Goiás. Brasil, GO, Goiânia)

Anita Guazzelli Bernardes (Universidade Católica Dom Bosco. Brasil, MS, Campo Grande)

Antônia Vitória Soares Aranha (Universidade Federal de Minas Gerais. Brasil, MG, Belo Horizonte)

Antonio Stecher (Universidad Diego Portales. Chile, Santiago)

Arianna Sala (Universidade Federal de Santa Catarina. Brasil, SC, Florianópolis)

Arley Andriolo (Universidade de São Paulo. Brasil, SP, São Paulo)

Bernadete de Lourdes Alexandre Mourão (Universidade Federal Fluminense. Brasil, RJ, Niterói)

Carlos Alberto Batista Maciel (Universidade Federal do Pará. Brasil, PA, Belém)

Carlos Henrique Armani (Universidade Federal de Santa Maria. Brasil, RS, Santa Maria)

Caroline Goerck (Universidade Federal de Santa Maria. Brasil, RS, Santa Maria)

Cássia Maria Carloto (Universidade Estadual de Londrina. Brasil, PR, Londrina)

Cássio Adriano Braz de Aquino (Universidade Federal do Ceará. Brasil, CE, Fortaleza)

Christiane Girard Ferreira (Universidade de Brasília. Brasil, DF, Brasília)

Cícero Roberto Pereira (Universidade de Lisboa. Portugal, Lisboa)

Claudia Maria França Mazzei Nogueira (Universidade Federal de Santa Catarina. Brasil, SC, Florianópolis)

Cláudia Osório da Silva (Universidade Federal Fluminense. Brasil, RJ, Niterói)

Cristiane A. Fernandes da Silva (Universidade Federal de Uberlândia. Brasil, MG, Uberlândia)

Daisy Moreira Cunha (Universidade Federal de Minas Gerais. Brasil, MG, Belo Horizonte)

Décio Orlando Soares da Rocha (Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Brasil, RJ, Rio de Janeiro)

Denis Barros de Carvalho (Universidade Federal do Piauí. Brasil, PI, Teresina)

Dóris Lieth Nunes Peçanha (Universidade Federal de São Carlos. Brasil, SP, São Carlos)

Dulce Helena Penna Soares (Universidade Federal de Santa Catarina. Brasil, SC, Florianópolis)

Dulcinéa Sarmento Rosemberg (Universidade Federal do Espírito Santo. Brasil, ES, Vitória)

Edite Krawulski (Universidade Federal de Santa Catarina. Brasil, SC, Florianópolis)

Edith Seligmann-Silva (Fundação Getulio Vargas. Brasil, SP, São Paulo)

Egeu Gómez Esteves (Universidade Federal do Rio Grande. Brasil, RS, Rio Grande)

Eloísio Moulin de Souza (Universidade Federal do Espírito Santo. Brasil, ES, Vitória)

Erico Rentería Pérez (Universidad del Valle. Colômbia, Cali)

Fernanda Spanier Amador (Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Brasil, RS, Porto Alegre)

Florianita Coelho Braga Campos (Universidade Federal de São Paulo. Brasil, SP, São Paulo)

Francisco José Batista de Albuquerque (Universidade Federal da Paraíba. Brasil, PB, João Pessoa)

Hector Omar Ardans Bonifacino (Universidade Federal de Santa Maria. Brasil, RS, Santa Maria)

Hélder Pordeus Muniz (Universidade Federal Fluminense. Brasil, RJ, Niterói)

Hélio Rebello Cardoso Júnior (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Brasil, SP, Assis)

Izabel Cristina Ferreira Borsoi (Universidade Federal do Espírito Santo. Brasil, ES, Vitória)

Jacyara Carrijo Rochael Nasciutti (Fundação Getulio Vargas. Brasil, RJ, Rio de Janeiro)

Janine Kieling Monteiro (Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Brasil, RS, São Leopoldo)

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João César de Freitas Fonseca (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Brasil, MG, Belo Horizonte)

João Leite Ferreira Neto (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Brasil, MG, Belo Horizonte)

José Luis Álvaro Estramiana (Universidad Complutense de Madrid. Espanha, Madri)

José Maria Carvalho Ferreira (Universidade Técnica de Lisboa. Portugal, Lisboa)

José Roberto Montes Heloani (Universidade Estadual de Campinas. Brasil, SP, Campinas)

Jussara Cruz de Brito (Fundação Oswaldo Cruz. Brasil, RJ, Rio de Janeiro)

Karen Eidelwein (Serviço Social da Indústria. Brasil, RS, Porto Alegre)

Katia Faria de Aguiar (Universidade Federal Fluminense. Brasil, RJ, Niterói)

Katia Maria Teixeira Santorum (Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Brasil, RJ, Rio de Janeiro)

Liliana Andolpho Magalhães Guimarães (Universidade Católica Dom Bosco. Brasil, MS, Campo Grande)

Liliana Rolfsen Petrilli Segnini (Universidade Estadual de Campinas. Brasil, SP, Campinas)

Luiz Gonzaga Chiavegato Filho (Universidade Federal de São João Del-Rei. Brasil, MG, São João Del-Rei)

Luiz Inácio Germany Gaiger (Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Brasil, RS, São Leopoldo)

Marcelo Afonso Ribeiro (Universidade de São Paulo. Brasil, SP, São Paulo)

Marcelo Gonçalves Figueiredo (Universidade Federal Fluminense. Brasil, RJ, Niterói)

Maria Dionísia do Amaral Dias ( Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Brasil, SP, Botucatu)

Maria Elizabeth Barros de Barros (Universidade Federal do Espírito Santo. Brasil, ES, Vitória)

Maria Helena Fávero (Universidade de Brasília. Brasil, DF, Brasília)

Maria Luísa Sandoval Schmidt (Universidade de São Paulo. Brasil, SP, São Paulo)

Marilene Zazula Beatriz (Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Brasil, PR, Curitiba)

Marília Veríssimo Veronese (Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Brasil, RS, São Leopoldo)

Mayte Raya Amazarray (Fundação Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre. Brasil, RS, Porto Alegre)

Milton Raimundo Cidreira de Athayde (Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Brasil, RJ, Rio de Janeiro)

Neide Regina Sampaio Ruffeil (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Brasil, RJ, Nova Iguaçu)

Paulo César Zambroni de Souza (Universidade Federal da Paraíba. Brasil, PB, João Pessoa)

Pedro Fernando Bendassolli (Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Brasil, RN, Natal)

Peter Kevin Spink (Fundação Getulio Vargas. Brasil, SP, São Paulo)

Regina Heloísa Mattei de Oliveira Maciel (Universidade de Fortaleza. Brasil, CE, Fortaleza)

Rosemeire Aparecida Scopinho (Universidade Federal de São Carlos. Brasil, SP, São Carlos)

Sarita Brazão Vieira (Universidade Federal da Paraíba. Brasil, PB, João Pessoa)

Silvio Yasui ( Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Brasil, SP, Assis)

Suzana Canez da Cruz Lima (Universidade Federal Fluminense. Brasil, RJ, Niterói)

Suzana Guerra Albornoz (Universidade de Santa Cruz do Sul. Brasil, RS, Santa Cruz do Sul)

Tânia Mara Galli Fonseca (Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Brasil, RS, Porto Alegre)

Tatiana Ramminger (Universidade Federal Fluminense. Brasil, RJ, Niterói)

Thiago Drumond Moraes (Universidade Federal do Espírito Santo. Brasil, ES, Vitória)

Thomas Josué Silva (Universidade Federal do Pampa. Brasil, RS, Uruguaiana)

Tommy Akira Goto (Universidade Federal de Uberlândia. Brasil, MG, Uberlândia)

Vanderléia de Lurdes Dal Castel Schlindwein (Universidade Federal de Rondônia. Brasil, RO, Porto Velho)

Vanessa Andrade de Barros (Universidade Federal de Minas Gerais. Brasil, MG, Belo Horizonte)

Yves Schwartz (Université de Provence. França, Aix-en-Provence)

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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, 2013, vol. 16, n. 1, p. vii

Editorial

Volume 16 dos Cadernos de Psicologia Social do Trabalho traz uma surpresa para seusleitores. Além das duas edições regulares, teremos este ano dois números especiais. O

Número Especial 1 reunirá artigos produzidos a partir de debates que se deram no I ColoquioInternacional de Clinica da Atividade, realizado na Universidade Federal de Sao Joao del Rei,em outubro de 2010. Por sua vez, o Número Especial 2, que terá como tema a Psicossociologiado Trabalho, será uma edição simultânea com revista francesa Nouvelle Revue dePsychosociologie, do Centre International de Recherche, Formation et Intervention emPsychosociologie (CIRFIP), com artigos de autores do Brasil e da França.

O

Quanto ao número que apresentamos agora, ele conta com três artigos que tratam datemática da economia solidária e do cooperativismo. Outros três artigos abordam a temática dotrabalho no setor público. Dois artigos discutem as clínicas do trabalho, incluindo a clínica daatividade e a ergologia. Além de um artigo que trata das práticas de controle sobre ostrabalhadores em uma empresa de varejo e outro que retrata os efeitos dos acidentes detrabalho no setor de rochas ornamentais sobre as famílias dos trabalhadores.

São Paulo, junho de 2013.

Leny SatoFábio de Oliveira

Universidade de São Paulo (São Paulo, SP)

vii

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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, 2013, vol. 16, n. 1, p. 1-8

Imagine que eu sou seu sósia... Aspectos técnicosde um método em clínica da atividade

Matilde BatistaI e Laís RabeloII

I Conservatoire National des Arts et Métiers (Paris, França)II Universidade Federal de Minas Gerais (Belo Horizonte, MG)

Este artigo pretende contribuir para uma elucidação sobre alguns aspectos técnicos do método de instrução ao sósiadentro da metodologia da clínica da atividade, que busca ampliar o poder de agir dos trabalhadores. Apesar da vastaliteratura sobre o tema, consideramos que há uma lacuna no que diz respeito a uma orientação mais específica sobre“como” realizar uma instrução ao sósia dentro dessa abordagem. Apresentaremos alguns elementos da aplicação datécnica que podem apoiar os profissionais que utilizam a clínica da atividade como um caminho promissor paratransformar as situações degradadas de trabalho e preservar a saúde dos trabalhadores. Assim, visamos contribuirpara a ampliação e a discussão dos contextos de intervenção.

Palavras-chave: Instrução ao sósia, Clínica da atividade, Trabalho, Método, Metodologia.

Imagine I’m your double... Technical aspects of a method in clinical activity

This article aims at contributing for the elucidation of some technical aspects of the method of instruction to adouble under the methodology of clinical activity, which seeks to expand the worker’s force. Despite the widebibliography on the theme, we think that there is a lack of more specific guidance on “how to” conduct aninstruction to a double through this approach. We will present some elements of this technique that can stimulateprofessionals who use the clinical activity as a promising path for changing degraded work situations and preservingthe health of workers. This way, we aim to contribute to the expansion and to the discussion on interventioncontexts.

Keywords: Instruction to a double, Clinical activity, Work, Method, Methodology.

Origem

ormulado inicialmente pelo médico e psicólogo italiano Ivar Oddone, em 1970, o métodode instrução ao sósia era utilizado em seminários de formação operária junto aos

trabalhadores da FIAT, em Turim. Preocupado em recuperar e discutir a experiência concretados operários, ele propôs a instrução ao sósia que visava trazer à tona a forma como cadatrabalhador realizava sua atividade. Tratava-se de desenvolver uma psicologia do trabalho naqual o trabalhador estivesse no papel central, pois, até aquele momento, essa disciplinaprescindia de tal abordagem1. Oddone solicitava que os trabalhadores instruíssem um eu-auxiliar, um sósia. A demanda era formulada da seguinte maneira:

F

Se existisse outra pessoa perfeitamente idêntica a você, do ponto de vista físico, como vocêdiria a ela para se comportar na fábrica, em relação à tarefa, aos colegas, à hierarquia e àorganização informal, de forma que ninguém percebesse que não se trata de você mesmo?(Oddone, Re & Briante, 1981, p. 57, tradução livre).

1 Inclusive podemos nos perguntar se, atualmente, os avanços propostos por Oddone são levados a termo ou se continuamos a nospautar em uma psicologia que pretende observar de fora o que se passa na realidade de trabalho.

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Imagine que eu sou seu sósia... Aspectos técnicos de um método em clínica da atividade

A apropriação da instrução ao sósia pela clínica da atividade

Com a mesma preocupação de Ivar Oddone, o psicólogo francês Yves Clot recuperou,posteriormente, o método de instrução ao sósia. Reinventou o método dentro da teoria, dosobjetivos e da metodologia da clínica da atividade, que busca transformar as situações laboraisdegradadas por meio da coanálise da atividade de trabalho. Baseado na concepção vygotskyanade que o “homem é pleno a cada minuto de possibilidades não realizadas” (Vygotsky,1925/1994, p. 41, citado por Clot, 2007, p. 115), a clínica da atividade vai além da clássicaproposta da ergonomia francesa acerca da distância entre o trabalho prescrito e o trabalho real(Daniellou, Laville & Teigeir, 1989) ao acrescentar o real da atividade, conceito que dizrespeito ao:

[…] que não se faz. O que se tenta fazer sem ser bem sucedido – o drama dos fracassos – oque se desejaria ou poderia ter feito e o que se pensa ser capaz de fazer noutro lugar […] oque se faz para evitar fazer o que deve ser feito; o que deve ser refeito, assim como o que setinha feito a contragosto (Clot, 2010, p. 104).

Para a clínica da atividade, a transição, de dupla-via, entre o real da atividade e aatividade realizada é fonte de desenvolvimento para os sujeitos2. Entretanto, o real da atividadenão é observável e acessível diretamente, sendo necessário um método indireto que permita aossujeitos transformar a experiência vivida de um objeto em um objeto de uma nova experiênciavivida.

Contudo, aceder ao real da atividade não significa descartar a atividade realizada, masse servir dela para alcançar a atividade não observável. Pois é justamente nas diferentesrealizações da experiência que o real da atividade pode se duplicar. A transformação daexperiência vivida em meio de fazer uma nova experiência torna manifesto o real da atividadenos seus desenvolvimentos. Isso porque entre o real da atividade e a atividade realizada existeuma contradição que oferece uma possibilidade quando o primeiro se realiza. Neste processo, oreal pode se reorganizar e se modificar. O sujeito se produz neste vir a ser do real na atividaderealizada e vice-versa (Clot, 2001). A tomada de consciência não se define pelo resgate de umpassado intacto, mas na recriação da experiência passada que é revivida na ação presente. Esseé o princípio norteador de uma metodologia histórica e desenvolvimental praticada na clínicada atividade.

Vale destacar a diferença entre a metodologia e o método em clínica da atividade. Ametodologia da clínica da atividade busca criar as condições necessárias para que ostrabalhadores sejam capazes de transformar seu ofício, aumentando assim seu poder de agir.Para tanto, um dos momentos da intervenção consiste na realização de métodos como ainstrução ao sósia e/ou das autoconfrontações simples ou cruzadas que buscam favorecer oacesso dos trabalhadores ao real da atividade. Muitas vezes, verifica-se uma confusão entremétodo e metodologia, ou, ainda, o equívoco de que a intervenção em clínica da atividade seresume à aplicação dos métodos.

As instruções ao sósia e as autoconfrontações se limitam a técnicas, mas, dentro dametodologia da clínica da atividade, podem provocar uma transformação do trabalho, poispossibilitam o deslocamento das atividades para outros contextos e, consequentemente, paradiferentes destinatários.

A redefinição do método da instrução ao sósia, na forma como foi apropriada pelaclínica da atividade, pressupõe o entendimento de que os trabalhadores, os próprios, são osefetivos transformadores de seu trabalho. Sendo assim, o psicólogo tem um papel preciso: criar

2 Para um melhor entendimento da relação entre real da atividade e atividade realizada, ver o capítulo 2 da terceira parte de Clot(2010).

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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, 2013, vol. 16, n. 1, p. 1-8

as condições necessárias para o processo de análise da atividade pelos trabalhadores, recusandoo lugar de expert na análise do trabalho. O principal objetivo do clínico da atividade é atingidoquando os trabalhadores se utilizam dele como meio para seu desenvolvimento. Nesse sentido,a intervenção com a instrução ao sósia, ao resgatar a história do desenvolvimento real dosujeito, possibilita dar visibilidade aos obstáculos e às possibilidades insuspeitas na situação detrabalho (Clot, 2010) e, assim, oferece condições para que os trabalhadores cuidem do seupróprio ofício.

Alguns aspectos relevantes na condução de uma instrução ao sósia

Consideramos que, apesar da ampla publicação em clínica da atividade em torno dotema3, há uma lacuna, no contexto brasileiro, no que diz respeito a uma orientação maisespecífica sobre “como” realizar uma instrução ao sósia dentro da abordagem téorico-metodológica da clínica da atividade. Apresentaremos, então, alguns aspectos técnicos dacondução do método que podem apoiar os profissionais que veem na clínica da atividade umcaminho promissor para transformar as situações degradadas de trabalho e preservar a saúdedos trabalhadores.

É importante dizer que este artigo não expõe uma experiência brasileira de utilizaçãodo método de instrução ao sósia. O objetivo é contribuir para a prática da clínica da atividadeao colocar em foco as características do método que são constantemente demandadas àsautoras por terem formação4 e experiência com a metodologia da clínica da atividade.

Acreditamos que as técnicas de condução da intervenção nesta abordagem são desuma importância, por permitirem uma ação mais precisa do clínico da atividade tendo emvista os objetivos a serem alcançados. Contudo, essas formas de fazer não devem ser tomadascomo a única possibilidade de uso do método. Se as descrevemos aqui é com o intuito de quepor meio delas possamos discutir seus efeitos e contribuir no desenvolvimento das maneiras deintervir. Mas, quando não sabemos como agir, o desenvolvimento dos métodos indiretos podemse constituir como imensos obstáculos na realização da intervenção. Além disso, éindispensável esclarecer que nossa proposta não é uma fórmula de como fazer instruções aosósia, mas uma orientação que deve, frente às dificuldades colocadas pelas realidades concretasde trabalho, ser reinventada e transformada.

Ainda destacamos que a utilização do método é passível de outros fins que nãoenvolvem necessariamente os objetivos dessa orientação teórico-metodológica, como, porexemplo, o uso para uma coleta de dados. Entretanto, quando deslocada dos pressupostos daclínica da atividade, a simples aplicação do método pode não promover o desenvolvimento dotrabalho, além de mobilizar afetos importantes que podem colocar o sujeito em situaçãovulnerável, sem o espaço necessário para elaborar transformações no seu ofício. A técnica deinstrução ao sósia em clínica da atividade tem como momento primordial a ação, ou seja, aintervenção nas situações degradadas de trabalho, não se restringindo à produção deconhecimento acadêmico sobre determinado ofício. Isso não significa que a produção deconhecimento seja menos importante que a intervenção, mas que o conhecimento deve serproduzido a partir dos resultados da ação.

Em função dos objetivos deste artigo e dos limites da discussão, partiremos dopressuposto de que os outros momentos metodológicos da intervenção em clínica da atividade

3 Para mais esclarecimentos sobre os aspectos teórico-metodológicos da clínica da atividade, ver: Clot (2007, 2010).

4 No Conservatoire National des Arts et Métiers (França) há um curso de especialização em instrução ao sósia; o mesmo não severifica no Brasil.

3

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Imagine que eu sou seu sósia... Aspectos técnicos de um método em clínica da atividade

já foram realizados. Assim, supõe-se que a comanda/demanda já foi apresentada, discutida eenquadrada dentro da proposta de intervenção; um grupo de pares já esteja constituído, ouseja, trabalhadores que realizam a mesma atividade e se apresentam como voluntários para aparticipação subsequente; os encontros já foram negociados etc. Passemos, então, para odesenrolar do método a partir de tópicos que julgamos importantes no sentido de auxiliar acondução do processo.

Explicitação das regras ao grupo

Parte importante do processo reside na discussão, com trabalhadores voluntários,acerca das regras que devem ser seguidas no desenvolvimento da intervenção. São essas regrasque vão enquadrar os participantes a um contexto específico que lhes permita pensar otrabalho.

Antes de iniciar as instruções, os participantes devem estar cientes de que não háresposta certa ou errada, pois o intuito é avançar na análise das diferentes maneiras de realizara atividade de trabalho. A discussão das diferentes formas de agir que cada trabalhadorrealizará na atividade dialógica é possibilidade de alimentar a discussão. Também é importanteressaltar que todo o processo se dá dentro do coletivo de trabalho, ou seja, na presença de umgrupo de pares.

A regra central

A instrução ao sósia pressupõe que clínico da atividade deverá ser o sósia de umtrabalhador e o substituirá em sua atividade de trabalho. O sósia é “um interlocutordeliberadamente artificial que apresenta um defeito irremediável: não sabe, mas deve saber”(Clot, 2007, p. 149). O clínico da atividade instaura a seguinte norma ao trabalhador:“Suponha que eu seja seu sósia e que amanhã vou substituí-lo em seu local de trabalh o. Quaisinstruções você deveria me transmitir para que ninguém perceba a substituição?” (Clot, 2007,p.144).

Diante dessa proposta, o trabalhador deve colocar-se na posição de instrutor e, dessaforma, ajudar seu sósia “a se orientar em uma situação que ele não conhece, ao lhe indicar nãosó o que faz habitualmente, mas também aquilo que não faz nessa situação, aquilo que deveria,sobretudo, não fazer ao substituí-lo, aquilo que ele poderia fazer, mas que não se faz etc.” (Clot,2007, p. 146).

A sequência de trabalho

Delimitar uma sequência de trabalho facilita a focalização da experiência nos detalhesda execução da atividade (Clot, 2007). A escolha da sequência pode ser definida pelotrabalhador que será o instrutor ou também pode ser objeto de debate no grupo de pares.Contudo, deve conter uma atividade real, com a qual o trabalhador já esteja habituado. Parafacilitar a suposta substituição do trabalhador pelo sósia, é importante que se construa umaprojeção para um futuro próximo e concreto, com dia e hora marcados (exemplo: Instrutor –Você me substituirá amanhã, no turno da tarde, na atividade da recepção).

A instrução

Nessa troca dialógica, o trabalhador deve, de fato, assumir sua posição de instrutor.Para tanto, é interessante que suas falas sejam realizadas na segunda ou terceira pessoa dosingular, como se o sósia já estivesse em seu lugar, ou seja, o instrutor deve se referir à sua

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atividade usando o “tu” ou “você”, e não o pronome “eu”. O sósia pode ajudar que essa regrase mantenha, lembrando ao instrutor quem exercerá as atividades (exemplo: Instrutor – Aí euchego perto da mesa. Sósia – Então eu chego perto da mesa? Instrutor – Sim, você chega pertoda mesa e pega os papéis). Também é importante que o sósia não tome decisões diante de duasou mais possibilidades colocadas pelo instrutor (exemplo: Instrutor – Você pode subir com aescada ou com um banquinho. Sósia – Eu vou fazer como você faz. Devo subir com a escada oucom um banquinho?). O sósia deve recolocar os lugares para forçar o deslocamento do sujeito,podendo, assim, ver sua atividade de uma nova perspectiva.

Segundo Clot (2010), “nenhuma reflexão direta sobre a ação é possível de si para si”(p. 201), vindo daí a importância de propor ao trabalhador que descreva sua própria atividadelevando em conta seu interlocutor, o sósia:

A análise das relações entre o sujeito e sua própria atividade – objeto do trabalho deinstrução – é dirigida para a atividade do sósia que incide sobre esse objeto. […] Essasituação em que o sujeito dialoga consigo mesmo sob a restrição com o outro torna suaexperiência “alheia” (Clot, 2007, p. 144).

Ou, nos termos de Vygotsky, esse exercício torna-se “um contato social consigomesmo” (Vygotsky, 1925/1994, pp. 46-47, citado por Clot, 2007, p. 144).

As intervenções do sósia

O sósia deve impedir o fluxo linear da descrição da atividade, já que ele não vê aatividade como o próprio instrutor a vê. O sósia deve descobrir a atividade. Assim, eleinterrompe o discurso do instrutor em todos os momentos em que ocorre uma descriçãolacunar de uma sequência, quando não compreende bem o que deve fazer, quando percebe quehá outras possibilidades de fazer ou, ainda, de não fazer etc. Nesse sentido, “o sósia, ao buscar –sem jamais encontrar – todos os possíveis e todos os obstáculos da situação que não conhece[…] substitui o sujeito antes das escolhas que ele fez, nas contradições em que este se vê e nasquais encontrou […]” (Clot, 2007, p. 147). Logo, o clínico da atividade enquanto sósia“multiplica os obstáculos a fim de aprender mesmo aquilo que o outro não previu lhe ensinar”(Clot, 2007, p. 149). Nesse movimento, o sósia deve levar em consideração as quatrodimensões propostas originalmente por Oddone, Re e Briante (1981), quais sejam: a relação dotrabalhador com sua própria tarefa, com os colegas, com a hierarquia e com a organizaçãoinformal.

Assim, mais que um receptor de instruções, o sósia será também um questionador que,nesse momento, se detém ao como fazer e não ao por que o sujeito realiza a atividade da formacomo a realiza. Pois, se o sósia deve substituir o instrutor, ele buscará fazer como o instrutor faz,e não saber por quais motivos deve fazê-lo (exemplo: Instrutor – Aí, você organiza asferramentas. Sósia – Organizo como?). Com isso, instaura-se uma troca discursiva que serárecuperada como objeto de elaboração em um momento subsequente. Essa situação dialógicadeve ser orientada de forma que o sósia faça o trabalhador revelar os subentendidos e osimplícitos que sua atividade comporta. O resultado dessa fase é, sobretudo, a descrição dasescolhas feitas pelo sujeito na realização de sua atividade (Scheller, 2001).

Logo após a instrução...

A instrução tem duração de cerca de uma hora. Depois da instrução terminada, oclínico abandona a posição de sósia e pergunta ao trabalhador: “O que esse exercícioprovocou/causou em você?”. Essa pergunta possibilita uma reflexão acerca dos efeitos daexperiência sobre o sujeito, principalmente porque não é raro que os instrutores sejam

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fortemente afetados pelo exercício. Assim, falar sobre o que a instrução provocou no sujeito éuma estratégia clínica para que o ele se refaça.

Após a explanação do trabalhador, o clínico da atividade dá a palavra aos demaismembros do grupo, presentes como observadores, que, a partir de então, podem ocupar o lugardo sósia (exemplo: Trabalhador-sósia – Se um paciente me pedir, eu posso entregar os examesnos horários que não estão previstos?). Este momento deve ser conduzido pelo clínico daatividade de forma que os colegas prossigam o trabalho do sósia. Os pares devem tentar ajudaro instrutor na análise de sua atividade por meio de questionamentos que visem esclarecimentossobre os pontos não compreendidos ou sobre as formas de realizar a atividade que não foramdetalhadas. Dessa maneira, qualquer tentativa de sugestão ou de orientação de como otrabalho deve, ou não deve, ser feito precisa ser impedida pelo clínico da atividade, levando oscolegas a buscar compreender a atividade do instrutor, mas não devem, de maneira alguma,avaliá-la. Até este ponto, o que ocorre é uma autoconfrontação, ou seja, o sujeito éconfrontado consigo mesmo pela mediação do(s) sósia(s) frente ao coletivo de pares.

Em seguida, o trabalhador receberá a gravação de áudio integral da instrução e deverá,posteriormente, escutá-la, transcrevê-la5 e elaborar um comentário para ser apresentado nospróximos encontros do grupo. Nesse momento, o clínico da atividade pode indicar passagens àsquais considera que o trabalhador deva voltar sua atenção, tais como: silêncios, risos, bloqueios,irritações, surpresas etc.

A partir dos traços materializados da instrução, o sujeito desenvolve uma atividade deescrita que não é mais dirigida ao sósia, mas ao grupo de análise. O retorno ao exercício deinstrução pelo trabalhador, por meio da escuta, da transcrição, das reflexões e dos comentários,proporciona uma retomada da própria atividade de trabalho, que inclui as possibilidadesrealizadas e aquelas não realizadas, ou seja, a gênese das escolhas, compreendida peloscomportamentos que venceram e aqueles que foram abandonados, mas não abolidos.

Próximos passos e encontros

Após a realização dos passos anteriores, o grupo continuará a se encontrar dentro deum intervalo a ser definido, tendo em vista o tempo necessário de reflexão por parte dotrabalhador acerca da sua instrução, mas também a disponibilidade de encontro de todos osmembros do grupo. Assim são possíveis intervenções em que as sessões se desenrolam uma vezpor mês, ou a cada quinze ou vinte dias, ou mesmo semanalmente. Essas sessões em grupo sãovariadas: podem ser realizadas durante um dia inteiro, com os intervalos necessários; durantedois dias consecutivos a cada dois meses; uma vez por semana, durante duas ou três horas etc.A definição da frequência dos encontros tem efeitos importantes, embora não possam serpensados independentemente de outros aspectos da condução do processo.

É interessante que o próximo encontro seja iniciado com a retomada da últimainstrução realizada, ou das últimas, caso mais de um trabalhador tenha realizado o exercício.Ou seja, antes da próxima instrução, o clínico da atividade deve abrir espaço ao trabalhador(ex-instrutor) perguntando-lhe como foi ouvir a própria gravação, o que encontrou designificativo e quais foram os comentários que produziu em torno desses momentos. Essa fasepermite que o trabalhador compartilhe algumas de suas reflexões, assim como possíveiselaborações suscitadas pela instrução e pela análise posterior. Nesse momento, as análises

5 Considerando que o ato de transcrever cerca de uma hora de gravação, em geral, implica mais de cinco horas de trabalho, tempode que os trabalhadores geralmente não dispõem, sugerimos a transcrição parcial – escolha de passagens da instrução – como umapossibilidade de aplicação do método. Estamos conscientes das mudanças substanciais que esse tipo de configuração acarreta nodecorrer da intervenção, embora não estejamos convencidas de que esse formato impeça a elaboração dos trabalhadores ecomprometa os desenvolvimentos que podem dela decorrer. Sendo assim, optamos por utilizar o dispositivo e compreender asimplicações de fazê-lo desta maneira.

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voltam-se para o grupo e buscam destrinchar as razões pelas quais o profissional realiza suaatividade de uma maneira específica. Assim, passa-se de “como” para o “por que” se faz.

Após a finalização das instruções, os próximos encontros serão destinados a umareflexão coletiva em torno das diferentes formas de fazer o trabalho que vieram à tona.Ressaltamos que tal reflexão não se dará necessariamente apenas neste momento de conclusão,pois não há linearidade no processo de análise da atividade de trabalho.

Considerações finais

A riqueza do método, para os fins apresentados no início deste artigo, reside no fato deque as atividades não se mantêm fixas, congeladas. Elas se desenvolvem, graças ao fato de queas verbalizações, nesse contexto, não servem de expressão às atividades prontas. No processo detransformação das atividades em linguagem, elas se reorganizam e se modificam. A linguagemrealiza a atividade no sentido pleno do termo:

Com o sósia, o sujeito introduz-se em diálogos exteriores e interiores. Eles podem serconsiderados como exercícios estilísticos que lhe permitem tomar consciência do que faznesse exato momento ou do que se desfaz para, eventualmente, voltar a fazê-lo. […] Aanálise do trabalho se revela como um instrumento de desenvolvimento da consciência dosujeito quando lhe é oferecida a possibilidade de alterar o estatuto do vivido: de objeto deanálise, o vivido pode tornar-se meio para viver outras vidas (Clot, 2010, p. 223).

Assim, o que se busca na clínica da atividade é ampliar o raio de ação do trabalhadorpela modificação do estatuto do vivido, que o sujeito tome em suas mãos sua própria históriapara se propor um novo futuro (Clot, 2010).

Nesse sentido, acreditamos que devemos, assim como fazemos junto aos trabalhadores,desenvolver os meios para cuidar do nosso próprio ofício. É evidente que uma breveexplicitação de aspectos ligados às técnicas do método de instrução ao sósia não poderá sanartodas as lacunas e os obstáculos para uma intervenção em clínica da atividade, pois essa éapenas uma parte daquilo que é necessário para desenvolver nosso trabalho. Contudo, asdiscussões a respeito das formas de realizá-lo, pela exposição das técnicas desenvolvidas paraatingir os objetivos, podem diminuir os impedimentos para fazer a intervenção. Isso nãosignifica que a intervenção em clínica da atividade esteja livre dos impedimentos que podemfrustrá-la. Mas é justamente colocando em debate as formas de intervir que poderemos analisaros limites e as possibilidades para fazer delas instrumentos de transformação de nosso próprioofício. E, claro, esse percurso não se faz sozinho. Conscientes, então, do esforço que devemosrealizar para tomar em nossas mãos nossa própria história e da necessidade da construção deum coletivo que possa impulsionar tal desenvolvimento, esperamos ter contribuído com algunsmodestos elementos para o debate.

Referências

Clot, Y. (2001). Méthodologie en clinique de l’activité. L’exemple du sosie. In M. Santiago-Delefosse & G. Rouan(Eds.), Les méthodes qualitatives en psychologie (pp. 125-147). Paris: Dunod.

Clot, Y. (2006). Vygotsky: para além da psicologia cognitiva. Pro-posições, 17 (2), 19-30.

Clot, Y. (2007). A função psicológica do trabalho (2ª ed.). Petrópolis: Vozes.

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Clot, Y. (2010). Trabalho e poder de agir. Belo Horizonte: Fabrefactum.

Daniellou, F., Laville, A. & Teiger, C. (1989). Ficção e realidade do trabalho operário. Revista Brasileira de SaúdeOcupacional, 17 (68), 7-13.

Oddone, I., Re, A. & Briante, G. (1981). Redécouvrir l’expérience ouvrière: vers une autre psychologie du travail? Paris:Messidor.

Scheller, L. (2001). L’élaboration de l’expérience du travail. La méthode des instructions au sosie dans le cadre d’uneformation universitaire. Education Permanente, 146, 161-174.

Endereço para correspondê[email protected], [email protected]

Recebido em: 25/08/2011Revisado em: 05/11/2012

Aprovado em: 08/11/2012

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Prática de gestão e controle da subjetividade dostrabalhadores: a ideologia de encantamento em

uma empresa de varejo

Ana Carolina Horst1, Lis Andréa Pereira Soboll2 e Édna Cicmanec3

Universidade Federal do Paraná (Curitiba, PR)

Este artigo apresenta um estudo de caso realizado em uma empresa do ramo de varejo e aborda a relação entre aspráticas de gestão organizacionais e o controle da subjetividade dos trabalhadores. A pesquisa é de naturezaqualitativa e está fundamentada em observações, entrevistas, registros fílmicos e análise documental. Os dados foramanalisados de acordo com a técnica de análise qualitativa de conteúdo proposta por Bardin. A discussão teóricafundamenta-se nas contribuições de autores da Psicossociologia e da Economia Política do Poder. Destacam-se, naempresa estudada, as seguintes práticas que envolvem subjetivamente o trabalhador com a organização: (i) processode imersão para integração; (ii) rituais de inauguração das novas filiais, com elaboração de hinos pelos própriostrabalhadores; (iii) internalização das normas e regras de conduta, pela participação dos trabalhadores na construçãodas políticas de encantamento e pela repetição dos objetivos e valores organizacionais; e (iv) elaboração de livroscom as histórias de sucesso que imprimem uma formatação da subjetividade ao destacar um ideal comportamental.Como principais resultados, o estudo destaca a efetividade das práticas de controle da subjetividade que focam oengajamento e o envolvimento sedutor e perverso dos trabalhadores pela organização, além da adesão dostrabalhadores via ideologia do encantamento, que se assemelha a uma instância “religiosa”.

Palavras-chave: Práticas de gestão, Controle da subjetividade, Psicossociologia, Ideologia, Encantamento.

Practice management and control of the workers' subjectivity: the ideology of enchantment in a retail company

This paper presents a case study of a retail company and approaches the relationship between organizationalmanagement practices and the control of workers’ subjectivity. The research is qualitative and is based inobservations, interviews, video records and analysis of documents. The collected data were analyzed followingBardin’s proposal for qualitative content analysis. The theoretical discussion is grounded on the contributions fromauthors of Psychosociology and Political Economy of Power. Within the researched company, the practices thatsubjectively involve the worker with the organization are: (i) process of immersion for achieving integration betweenworkers; (ii) rituals for inaugurating new branch offices, with anthems composed by the workers themselves; (iii)internalization of norms and rules of conduct through the participation of workers in the creation of policies ofenchantment and through the systematic repetition of organizational objectives and values; and (iv) production ofbooks with stories of success, shaping the subjectivity by evidencing an ideal behavior. The main result of this essayis to highlight the effectiveness of practices for controlling the subjectivity that reinforce both the involvement andthe seductive and perverse engagement of workers with the organization, and their adherence through an ideologyof enchantment which resembles a “religious” instance.

Keywords: Management practices, Subjectivity control, Psychosociology, Ideology, Enchantment.

Introdução

contexto competitivo que envolve as organizações capitalistas, aliado à busca constantepela elevação dos padrões de excelência, tem conduzido tais empresas a promoverem

esforços cada vez maiores para reduzir os custos, diminuir o tempo de produção e,O1 Mestre em Organizações e Desenvolvimento (FAE-PR). Psicóloga (UFPR). Advogada com bacharelado em Direito (UEPG).

2 Professora no Departamento de Psicologia da UFPR. Psicóloga e Mestre em Administração pela UFPR. Doutorado em MedicinaPreventiva pela USP. Site: www.assedioorganizacional.com.br

3 Doutoranda PMDA (Universidade Positivo). Mestre PMDA (Universidade Positivo). Administradora de empresas (FaculdadesIntegradas do Brasil). Professora da FAE-PR.

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Prática de gestão e controle da subjetividade dos trabalhadores: a ideologia de encantamento em uma empresa de varejo

consequentemente, ampliar a lucratividade. Ocorre que, na busca incessante por resultados,essas organizações têm usado estrategicamente a gestão da subjetividade dos trabalhadorescomo forma de atingir seus objetivos (Alves, 2007; Enriquez, 2006; Faria, 2004; Gaulejac,2007; Pagès, Bonetti, Gaulejac & Descendre, 1987; Sennett, 2001).

Alves (2011) afirma que o espírito toyotista, enquanto ideologia do capital, dissemina,consolida e explicita sua capacidade de controle social por meio de três dimensões distintas dareestruturação produtiva: (i) inovações tecnológicas – tecnologia, robótica, telemática – aliadasao aumento da concorrência e da massificação do consumo, acompanhadas de processosprodutivos e organizacionais que visam obter o máximo da capacidade produtiva de cadatrabalhador (Alves, 2007, 2011; Faria, 2004); (ii) inovações organizacionais, em que o controlee a mobilização da subjetividade dos trabalhadores aparecem enquanto ferramentas de gestão,uma vez que “é a ‘alma’ do indivíduo que é chamada para a produção” (Lazzarato & Negri,2001), configurando a cooperação complexa da nova produção capitalista (Alves, 2011); e (iii)as inovações sociometabólicas, entendidas enquanto matrizes analíticas portadoras de múltiplasformas de precarização, objetiva e subjetiva, da força de trabalho (Alves, 2011).

Diante desse contexto, em que as organizações articulam estratégias que empregammétodos instrumentais práticos e ferramentas de controle psicológico, a subjetividade dostrabalhadores passa a ser controlada e mobilizada por meio de mecanismos poderosos e sutis,que têm como finalidade última aumentar sua produtividade e lucratividade,independentemente do custo que isso represente aos trabalhadores envolvidos em seusprocessos.

De acordo com Faria (2004), esse tipo de controle evidencia que as organizaçõesreconhecem a existência e a importância da subjetividade para a produção. Tal ação explicitaque os instrumentos de gestão e os dispositivos de informação e de comunicação dessasorganizações estão revestidos por uma visão de mundo que corrobora os ideais da ideologiagerencialista, descrita por Gaulejac (2007).

Para Gaulejac (2007), a ideologia gerencialista preenche o vazio ético do capitalismo,uma vez que o poder contemplado pelo mesmo se desenvolve mediante um movimento duplode abstração e de desterritorialização do capital. Sob essa orientação, a prática da gestão seperverte em função do favorecimento de uma visão de mundo na qual o humano é convertidoem um recurso a serviço da empresa. Nesse contexto, “os negócios se desenvolvem, a ética deresultado substitui a moral, o projeto capitalista procura em si mesmo sua própria finalidade”(Gaulejac, 2011).

Reconhecer e analisar as práticas de gestão nesse momento histórico do trabalhopermite compreender as relações que se estabelecem entre indivíduo e organização, tendo emvista que estas se configuram como mecanismos privilegiados de controle da subjetividade dostrabalhadores (Pagés et al., 1987). Permite também destacar as relações de poder quesubmetem os sujeitos de forma política, econômica, ideológica e psicológica ao processodominante do sistema do capital (Faria & Meneguetti, 2011).

Este artigo apresenta um estudo de caso realizado em uma loja de departamentos queatua em diversos estados do país. O estudo aborda especificamente a relação existente entre aspráticas de gestão organizacionais e o controle da subjetividade dos trabalhadores. O objetivoprincipal deste estudo é identificar, a partir da perspectiva da Psicossociologia e da EconomiaPolítica do Poder, como as práticas de gestão empreendidas no interior da organizaçãopossibilitam um controle ideológico-comportamental dos trabalhadores. Para tanto, o textoapresenta inicialmente uma breve revisão teórica sobre o controle da subjetividade no trabalho.Em seguida, é feita a descrição da metodologia utilizada para a realização da pesquisa. Osresultados da pesquisa e a análise dos resultados são apresentados no terceiro item de modoarticulado e contínuo, relacionando dados da pesquisa com análise teórica, revelando, dessaforma, os mecanismos de controle da subjetividade utilizados na organização pesquisada.

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Estratégias de controle da subjetividade no trabalho

Os instrumentos de gestão não são uma simples “abordagem racional da realidade”, etambém não são neutros, uma vez que “são construídos sobre pressupostos raramenteexplicitados, lógicas implícitas que se impõem por meio de regras, de procedimentos, de ratios ede indicadores que se aplicam sem que haja possibilidade de discutir sua pertinência”(Gaulejac, 2007, p. 100). No mesmo sentido, Pagès et al. (1987) atestam que os dispositivos degestão e a ideologia estão indissoluvelmente ligados e têm como finalidade fazer que ostrabalhadores internalizem normas de conduta e princípios que as legitimam dentro daorganização. No modelo toyotista de produção, a “mecanização” atinge o corpo e a mente dohomem produtivo, caracterizando uma “subjetividade às avessas” (Alves, 2011), permitindoque não somente o corpo, mas também a mente do trabalhador, sejam utilizados de acordo coma racionalidade instrumental do capital.

A partir desses instrumentos racionalizados de gestão, que não deixam margem paraquestionamentos ou discussão, as organizações promovem a construção de valores, induzemhábitos e modelam comportamentos que facilitam o controle dos trabalhadores de acordo comos interesses da própria instituição (Gaulejac, 2007). Assim, são construídos instrumentos quesubjugam os sujeitos à lógica da empresa, por meio de relações totalmente assimétricas, nasquais prevalecem interesses particulares, com a utilização de um discurso coletivo que dissimulaos reais interesses e objetivos promovidos pelas práticas da companhia (Faria & Meneguetti,2011).

As organizações, por meio de suas práticas de gestão, buscam o primado dos objetivosfinanceiros, a produção da adesão e a mobilização psíquica. Dessa forma, esperam de seusempregados “uma implicação subjetiva e afetiva” (Gaulejac, 2007, p. 108), que deve seraplicada sobre a própria companhia, “personificada” com o objetivo de que a energia libidinalde seus empregados seja convertida em força de trabalho. Logo, a empresa apresenta-se aotrabalhador como um ente com o qual este possa identificar-se e satisfazer-se, isto é, aorganização propõe ocupar o lugar de “mãe onipotente” (Faria, 2004), “satisfazendo seusfantasmas e seus desejos de sucesso” (Gaulejac, 2007, p. 117), culminando em uma adesão totale uma mobilização psíquica intensa do sujeito para com a instituição.

Para tanto, desde o início do processo, já na seleção de pessoal, são procuradosfuncionários que tenham valores individuais próximos aos valores da organização (Gaulejac,2007). Os candidatos são submetidos a um sistema, e não a outros indivíduos no momentodessa seleção, afirmam Pagès et al. (1987). A responsabilização dos trabalhadores pelosresultados esperados pela empresa e pela elaboração de normas também é uma prática que geraa adesão. Sentir o poder nas mãos, e não ser meros cumpridores de ordens, motiva ostrabalhadores a dedicarem-se mais pelo sucesso ilusoriamente pessoal e efetivamenteorganizacional (Gaulejac, 2007).

Nessa atmosfera artificialmente elaborada, os trabalhadores não estão ligados àorganização por um mecanismo de coerção; é a dependência psíquica, apoiada em processos deprojeção, idealização, angústia e prazer, isto é, processos de mobilização psíquica, que liga ostrabalhadores à empresa. Na concepção de Gaulejac (2007), é essa carência de afetos quepermite que os empregados se dediquem fielmente a satisfazer os “desejos” da organização. “Oindivíduo espera da empresa que ela favoreça sua realização, e a empresa espera do indivíduoque ele dê sua adesão total a seus objetivos e a seus valores” (Gaulejac, 2007, p. 229).

Faria e Meneguetti (2007, p. 50) afirmam que o que ocorre é um “sequestro dasubjetividade” dos trabalhadores, em que os mecanismos de gestão do processo de trabalhoatuam impedindo que os sujeitos se apropriem da realidade e elaborem seus saberes, “ficando àmercê dos saberes e valores produzidos e alimentados pela organização sequestradora”. Alves(2011, p. 114) define essa mesma prática com o nome de “captura da subjetividade”, definindo-

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a como um “processo intrinsecamente contraditório e densamente complexo, que articulamecanismos de coerção/consentimento e de manipulação”, mobilizando as instânciasconsciente e inconsciente do psiquismo humano.

Portanto, as estratégias de gestão estão organizadas de modo a oferecer soluções para ascontradições psicológicas individuais e interindividuais. Desse modo, os trabalhadores aceitame introjetam os princípios, os valores, as ameaças e os prazeres oferecidos pela organização. “[Asempresas] permitem ao indivíduo defender-se da angústia, lhe propõem um sistema de defesasólido, socialmente organizado e legitimado pela sociedade” (Pagès et al., 1987, p. 39-40).

Esses mesmos autores entendem que são, portanto, os sentimentos de segurança e depoder que facilitariam a adesão dos trabalhadores às regras, aos princípios e aos valores daorganização. “Oferecendo um sistema de crenças, um ideal de vida, concretizado por regras eprocedimentos, a organização não faz senão responder a uma necessidade profundamenteenraizada no indivíduo.” (Pagès et al., 1987, p. 158) Por meio da adesão a esse sistema queresponde a necessidades inerentes dos indivíduos, os trabalhadores encontram energias para sededicar de “corpo e alma” ao seu trabalho, e a adesão dos trabalhadores constitui-se em umelemento fundamental para a dominação da empresa e alienação dos trabalhadores, concluemos autores.

O individualismo, característica tão marcante da sociedade atual, exacerbado pelalógica de competitividade, do sucesso, da flexibilidade, da urgência, da instabilidade, da fluidez,da dinamicidade (Enriquez, 2006; Faria, 2004; Sennett, 2001), desestrutura a solidariedade egera a cisão do coletivo (Dejours, 1999), dificultando a formação de vínculos dentro e fora doambiente de trabalho (Horst, Cavallet, Pimenta & Soboll, 2011). A organização se aproveitadessa carência do trabalhador e se apresenta a este enquanto instrumento de poder e desatisfação. “A necessidade de ser aceito, protegido e amado é refletida na relação que oindivíduo tenta estabelecer com a organização” (Faria & Meneguetti, 2007, p. 55).

O deslocamento dos objetivos econômicos para o plano psicológico serve como umaespécie de ferramenta estratégica para as organizações. Por meio desse tipo de mecanismo, aempresa oferece aos trabalhadores a oportunidade de trabalhar por um objetivo mais nobre queo dinheiro – trabalhar para ser um vencedor. O sucesso dentro da organização torna-se, assim,um ideal para o sujeito, afirmam Pagès et al. (1987).

Acreditando que estão realizando projetos de interesse pessoal e que sua subjetividadeestá sendo reconhecida, os indivíduos, na verdade, estão a serviço da produtividade e do lucroda organização, colocando seu potencial à disposição do capital (Enriquez, 2006; Pagès et al.,1987). O trabalhador é “instrumentalizado para serventia dos objetivos financeiros,operatórios” (Gaulejac, 2007), enquanto acredita ser em grande parte autônomo (Enriquez,2006).

Para atingir tais objetivos, as organizações se utilizam daquilo que Faria e Meneguetti(2011) conceituam como “dissimulação discursiva”, isto é, a organização propõe uma estruturadiscursiva falaciosa na qual os sujeitos acreditam, mas que, em realidade, não corresponde aoenunciado, e, sim, aos objetivos capitais da empresa. Nesse sentido, Alves (2011) afirma que “aorganização toyotista do trabalho capitalista possui uma densidade manipulatória de maiorenvergadura” (p. 111).

Dentro dessa lógica, as práticas de gestão da organização pesquisada evidenciam comosão instrumentalizados os mecanismos de poder e de controle da subjetividade dostrabalhadores envolvidos em seus processos. Para a realização da pesquisa, foram utilizados osprocedimentos metodológicos descritos a seguir.

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Procedimentos metodológicos

O estudo que originou este artigo utilizou-se de dados secundários, de naturezaqualitativa, coletados em uma loja de departamentos, aqui denominada de CRM. Inicialmente,tais dados foram coletados e tratados por uma das autoras e subsidiaram a realização de umapesquisa de mestrado (Cicmanec, 2009), a qual foi realizada a partir de dados primárioscoletados por meio das técnicas de entrevista semiestruturadas, observação não participante,visitas técnicas, registros fílmicos e análise documental.

Posteriormente, para esta pesquisa, obteve-se acesso ao relato original das entrevistas eda observação participante, na íntegra, assim como aos registros fílmicos utilizados na pesquisaoriginal. Os documentos analisados compreendem o manual de boas práticas (chamado deHistórias de Encantamento), cedido pela gerência, e o website da organização, na ocasião dapesquisa realizada por Cicmanec (2009). Os documentos permitiram conhecer as estratégiasorganizacionais, bem como detalhes da atuação gerencial sobre os grupos de trabalhadores,servindo, assim, como base para as investigações que sucederam.

Foram realizadas três entrevistas individuais semiestruturadas com funcionários donível operacional da empresa devidamente selecionados pelo critério temporal (estar na filialdesde o início de sua operação e ter passado pelo processo de imersão e treinamento) e,também, por acessibilidade e adesão. O conteúdo das entrevistas – registradas por meio deáudio e vídeo e posteriormente transcritas – abordou questões relativas às atividadesdesenvolvidas pelos trabalhadores, bem como aspectos da prática de gestão da organização. Otempo utilizado para as entrevistas variou entre vinte minutos e uma hora, de acordo com adisponibilidade dos participantes. Durante a observação não participante, a pesquisadora(devidamente autorizada pela gerência da filial) registrou a realização de duas reuniões queprecedem o início do trabalho das equipes. Os encontros são parte formal da rotina diária dafilial, envolvem colaboradores, supervisores e gerentes e têm como objetivo divulgar a todos osresultados individuais e coletivos conquistados na data anterior, bem como comunicar aoscolaboradores as pretensas metas do dia de trabalho que se inicia. As visitas técnicas e demaisobservações foram registradas na forma de diário de campo. Os registros fílmicos cedidos pelagerência da organização contemplam as formalidades da inauguração da filial pesquisada.

Na fase da análise dos dados, foi empregada a técnica de análise de conteúdo propostapor Bardin (1977). A análise seguiu as etapas propostas pela autora: (i) As descrições foramlidas e categorizadas, considerando a ênfase e a relevância dos temas dominantes encontradosnos dados coletados – o que consistiu na fase de pré-análise e resultou na definição da questãoa ser estudada na pesquisa. As práticas de gestão da organização e o controle da subjetividadedos trabalhadores foi o tema escolhido, a posteriori, como foco da pesquisa; (ii) Na fase dedescrição analítica, foram escolhidos os pontos recorrentes, que são as categorias de análise eque circundam e esclarecem o tema principal; (iii) Somente após essas duas fases, foidesenvolvida a análise propriamente dita, na qual as categorias encontradas foraminterpretadas a partir de fundamentos da teoria.

Política de encantamento e controle organizacional – resultados e discussão

As características da gestão que refletem a reestruturação produtiva – tais como abusca do “engajamento estimulado” do trabalho e a ideologia do autoempreendedorismo,descritas por Alves (2007, 2011), a proposta de autonomia controlada, descrita por Sennett(2001), e a lógica da mobilidade perpétua de Pagès et al. (1987) – têm levado a organização a

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se interessar, como nunca, pelas crenças, pela interioridade e pela personalidade dostrabalhadores, com o objetivo de moldar o mais íntimo do sujeito aos padrões da organização,de modo que este responda às suas demandas produtivas, afirma Alves (2011).

Pagès et al. (1987), em um estudo acerca das estratégias de gestão de uma organizaçãohipermoderna, apontam para a ocorrência de um domínio ideológico sobre os trabalhadores.Neste estudo, os autores identificaram os processos pelos quais a organização “responde às maisprofundas expectativas dos empregados, à sua ‘necessidade de crer’ [...] na medida em queparticipam (os funcionários) da sua elaboração, em um vasto processo de autopersuasão” (Pagèset al., 1987, p. 74), por meio de dispositivos de gestão explícitos, reforçando a dominação e aexploração dos trabalhadores. A empresa é como uma “religião” para os trabalhadores, em quea dedicação a um objeto de culto surge enquanto satisfação de uma necessidade inerente decrença dos sujeitos.

Tal estratégia organizacional é exitosa na medida em que os sujeitos do trabalhoestejam alienados não somente com relação a sua força de trabalho, mas também no que serefere aos âmbitos político e psicossocial de suas ações:

As novas condições de trabalho impostas pela reorganização e pelo desenvolvimento dasforças produtivas passam a ser aceitas como naturais por se constituírem em práticascomuns da sociedade. Daí decorre que a alienação invade o mundo do trabalho nãoapenas em seu aspecto econômico, mas político e social. [...] No entanto, é necessárioconsiderar que a violência não é originária da falta de consciência dos trabalhadores emfunção do condicionamento que os leva a serem explorados. Ao contrário, é a lógica dosistema de capital que faz dos indivíduos alienados tanto dos objetos de criação (dosresultados de seus trabalhos) quanto de sua consciência política e psicossocial. (Faria &Meneguetti, 2011, p. 5).

Nesse contexto de alienação, são cada vez mais utilizadas a dominação e a manipulaçãopor meio de estratégias de gestão que sequestram a subjetividade dos trabalhadores. Uma dascaracterísticas do processo de mediação das organizações é o desenvolvimento da organizaçãocomo um lugar autônomo de produção ideológica, criando-se uma espécie de religião daempresa que articula e legitima suas práticas, conforme descrevem Pagès et al. (1987). A CRM,da mesma forma, é identificada pelos entrevistados como uma “religião”. A organização propõea criação de um sistema religioso, fundamentado em crenças, ritos e uma hierarquia que serve aum deus, encarnado pela organização e seus representantes. Por meio das estratégias de gestão,a empresa torna-se um lugar de produção de conceitos e de valores que justificam as práticasdesenvolvidas. Assim, a “contribuição do indivíduo para a produção depende em grande partede sua integração ideológica” (Pagès et al., 1987, p. 74).

Desse modo, as políticas de gestão de pessoal, como dispositivos operacionais, têm afunção de interiorizar certas condutas e princípios que as legitimam, de maneira que“dispositivos operacionais e ideologia estão indissoluvelmente ligados” (Pagès et al., 1987, p.98), replicando tais posicionamentos por meio de rituais que multiplicam os momentos e oslugares de difusão dessa ideologia que reconhece a grandiosidade do sujeito que com ela seidentifica.

Na organização pesquisada, a “nova” religião desenvolvida está fundamentada em umapolítica de encantamento e é difundida por meio de práticas que compõem as estratégias degestão de pessoas: imersão para integração, rituais de inauguração de novas lojas, rituais deavaliação e histórias encantadoras. Tais estratégias serão analisadas pela ótica da ideologiareligiosa tal como descrita por Pagès et al. (1987), a partir dos ritos religiosos. A descrição dosrituais da CRM e a análise teórica estão organizadas em quatro categorias: (i) o batismo, comoimersão para integração; (ii) a missa, observada pelos rituais de inauguração das novas filiais;(iii) a liturgia, proposta por meio da internalização das normas e regras de conduta; e (iv) osmanuais de direito canônico, expressos por meio dos livros com as histórias de sucesso.

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Na CRM, o “engajamento” dos trabalhadores é decorrente de um conjunto de rituaisque geram a adesão aos objetivos de produtividade da organização, ao mesmo tempo queoferece um projeto com o qual o trabalhador pode se identificar e se dedicar. A organizaçãopropõe uma política de atendimento excelente, a qual pretende que o trabalhador vá além, façao que não se espera, surpreenda, encante o cliente. As práticas de gestão são um mecanismoque busca “dar vida” a esta “filosofia”.

O batismo: imersão para integração

Os trabalhadores contratados pela organização passam por uma fase de seleção,treinamento e ambientação na empresa visando a composição das equipes das lojas que estãopor inaugurar. Após uma etapa classificatória (promovida por testes de conhecimento), osfuncionários permanecem reunidos em imersão durante alguns dias em um local determinadopela organização, participando de dinâmicas e palestras. Nesse processo, o novo funcionárioconhece melhor a empresa, sua história, princípios, valores, regras e sistemas e passa poralgumas atividades coletivas a fim de promover sua interação com os demais funcionários.Entre as atividades propostas para os novos funcionários da organização está a composição deuma música que será o hino da nova filial.

Para Pagès et al. (1987), a identificação com a ideologia da empresa é facilitada namedida em que os funcionários participam da sua elaboração, contribuindo, eles mesmos, parasua submissão. Na CRM, constata-se esse processo pela colaboração dos trabalhadores nacriação das referidas canções, facilitando a internalização das regras e a submissão aosmecanismos de controle.

Um trabalhador explica esse processo:

Na época do treinamento inicial, a gente ficava dez dias no hotel. E desde o primeiro dia,eles pediram que fizéssemos um hino para apresentar aos clientes e ao presidente daorganização no dia da inauguração da loja. E temos várias músicas. Música de tudo o quevocê possa imaginar (sexo masculino, 20 anos, atendente – produtos financeiros, 11 mesesde empresa).

Estes programas têm como propósito favorecer a internalização das regras, doscontroles e dos princípios da organização, a partir de um ritual de iniciação, como em umareligião. A forma mais eficaz de controle é a autopersuasão, pois parte de uma escolha pessoal,de uma participação voluntária no processo. Dessa forma, a cobrança não se dá de forma direta,mas associada a outros interesses dos trabalhadores, como visibilidade para obterreconhecimento e sucesso na organização (Pagès et al., 1987).

A elaboração de músicas pelos trabalhadores em diversos rituais promove ainternalização dos valores e a cumplicidade na sua difusão, ao mesmo tempo que propicia aotrabalhador um espaço de reconhecimento pelos pares e diferenciação no coletivo, aos olhosdos superiores, reforçando a ideia de que a organização atende às expectativas dos seustrabalhadores (Dejours, 1999). Ocorre aquilo que Faria e Meneguetti (2011) apontam como amanipulação de símbolos e fantasias decorrentes de expectativas, de desejos de reconhecimentoe de idealizações próprias da condição humana.

A organização espera que seus colaboradores, por meio da internalização das regrasestabelecidas – via identificação organizacional –, busquem, incessantemente, alcançar osobjetivos propostos por ela. Para tanto, a política de encantamento dos clientes está estruturadade modo a promover o encantamento e a sedução dos trabalhadores pela organização, por umprocesso de imersão em uma nova cultura, de acordo com os objetivos da empresa.

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Nós temos que fazer as coisas muito mais rápido, de uma forma muito mais eficiente. Nósvamos ter que atender nas nossas lojas como nunca atendemos. Nós vamos ter queencantar como nunca encantamos (sexo masculino, aproximadamente 45 anos, presidenteda organização CRM, mais de quinze anos de empresa).

Finalmente, como orientação, a organização CRM tem os seguintes valores: encantar énossa realização. Nos colocamos no lugar de nossos clientes, fazendo por eles tudo aquiloque gostaríamos que fizessem por nós. Devemos entender seus desejos e necessidades,exceder suas expectativas e, assim, encantá-los. Não somos meros trabalhadores, somosencantadores de clientes (site da organização CRM).

Desse modo, a “lei não precisa ser imposta de fora, pois está interiorizada: o ‘você deve’dá lugar ao ‘é preciso’” (Sennett, 2001, p. 160). Não é necessário que alguém diga o tempo todoo que cada um deve fazer, uma vez que a vontade de ser uma pessoa encantadora, que supera asexpectativas, é fonte de desejo desses trabalhadores. O trabalhador se submete ao projetoorganizacional como se este fosse seu e, assim, tem sua autonomia sequestrada por um contratopsicológico inconsciente (Faria & Meneguetti, 2011).

A missa: inauguração de novas filiais

Os eventos de inauguração de novas filiais da empresa têm status de grande“espetáculo”: reúnem-se diversos gerentes das linhas superiores da empresa, funcionários deoutras filiais que ocupam posições hierárquicas de destaque, celebridades da sociedade local(políticos, empresários etc.) e a equipe de trabalho. A organização procura ainda, quandopossível, contar com a presença do seu presidente.

Na inauguração, todos os convidados vindos de outras filiais fazem seu discurso,contam suas histórias e reafirmam a importância da contribuição dos funcionários nocumprimento de suas obrigações, na superação de metas, na busca frequente de recursos para aempresa e do entendimento de que fazem parte de algo especial, uma vez que são considerados“pedras brutas”4 cuja lapidação é promovida pela organização. É como se houvesse sacerdotesdestinados a repassar aos seguidores as doutrinas defendidas pela “religião” e as condutasesperadas dos mesmos.

O processo de “deificação da organização” é apresentado nos estudos de Pagès et al.(1987), que destacam a descrição da organização como uma entidade suprema que enunciagrandes princípios, como um ente criador de todas as coisas, um modelo de conduta aos seuspróprios sujeitos, “criados à sua imagem e semelhança”. Na organização estudada, esse processoaparece nos dispositivos que fazem crer que participar de tal “religião” é um privilégio quetransforma pedras brutas em peças lapidadas. Em um evento de inauguração, um gerente deloja explicita a expectativa depositada sobre os novos colaboradores:

Agora chegou a hora de dar resultados. A festa é muito legal, até aqui tudo foi divertido,mas, a partir de agora, esta unidade precisa dar lucro. É isso que a diretoria espera, é issoque vocês vieram fazer aqui. Temos de pensar em ser, daqui pra frente, a melhor unidadeda empresa, a melhor unidade das Américas. Precisamos superar todas as metas. Já tiveuma demonstração de que vocês têm condições, vocês mostraram isso no período detreinamento (sexo masculino, 45 anos, gerente de vendas, mais de dez anos de empresa).

O diretor de operações da CRM, no discurso de inauguração da unidade, aponta:

Com a ajuda dos nossos colegas, do RH, de lideranças da loja, tivemos a chance degarimpar 60 pedras preciosas brutas, que são vocês, os novos colaboradores da CRM.

4 A expressão “pedras brutas” foi amplamente utilizada por um dos diretores da empresa durante seu discurso na inauguração dafilial. A ideia era demonstrar aos funcionários, por da desta metáfora, a preocupação da organização com o desenvolvimento destes.

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Estamos, desde então, começando a lapidar essas pedras. Assim começa nossa política deencantamento. [...] Trabalhadores comprometidos, que realmente tenham dentro do seuespírito o desejo de encantar, terão muito sucesso na família da CRM (sexo masculino, 45anos, diretor de operações, mais de quinze anos de empresa).

No fim do evento, os funcionários e a equipe de gerência da filial se reúnem paraapresentar diversos cânticos, com dança coreografada, que exaltam os princípios, as regras e ascrenças da organização, como a força da equipe, o comprometimento de todos e a imagem daorganização. As músicas feitas pelos funcionários durante o processo de treinamentodemonstram a medida de adoração desses colaboradores. Nesse sentido, participar daorganização já é um privilégio, segundo Gaulejac (2007).

Destaca-se um trecho de uma das músicas elaboradas pelos colaboradores da CRM:

Vem chegando um novo dia. Chega de mágoas, tristeza, esqueça o lado negativo, abra oseu coração. Não esconda sua alegria quando supera fraquezas e descobrir que não estásozinho não […].

Encantar é fazer o que não se espera. Encantar é ver o que ninguém enxerga. Encantar émostrar muita vontade. Encantar é vida com humildade.

É fácil de ser contagiado, lembra uma filosofia, parece uma religião é nosso jeito deatender. Encante e será encantado, é como uma magia, trate todos como irmãos, vêm verpra crer.

A internalização das regras da “religião” CRM fica evidente por meio das letras dasmúsicas. A empresa é colocada como aquela que proporcionará felicidade para a vida dosfuncionários, apontando para a submissão às regras colocadas. A deificação da organização éexpressa pelos “colaboradores” na medida em que assumem tudo aquilo que é proposto pelaorganização como uma ordem suprema, afirma Pagès et al. (1987).

Só pelo fato de enunciar grandes princípios, a organização erige-se em entidade suprema,em sujeito da história, em princípio ativo da criação. As crenças postulam que é a própriaorganização que tem consideração pelas pessoas, oferece o melhor serviço e realiza todas astarefas com cuidado da perfeição. [...] Ao se instituir como sujeito princípio de todas ascoisas, a organização se propõe como modelo de conduta a seus próprios sujeitos, comoDeus criou o homem à sua imagem, pois é a seus membros que ela se dirige antes de tudo(Pagès et al., 1987, p. 85).

Com relação ao comparecimento do presidente da organização a algumas inauguraçõesde novas unidades, diz uma funcionária:

Eu quase desmaiei quando ele veio aqui. De repente chegou a gerente e falou: “A., vocêviu quem ta lá fora? Não é o E. (diretor); é o G. (presidente)”. Eu respirei e fiquei assim(expressão de falta de sentido, desorientação), aí ele me chamou pra tirar foto com eleporque ele ficou encantado comigo (sexo feminino, 21 anos, atendente/caixa, 11 meses deempresa).

A organização ganha o status de entidade suprema que premia seus seguidores aoconceder que representantes apareçam encarnados ou personificados nas filiais da empresa(Enriquez, 1994; Pagès et al., 1987).

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A liturgia: internalizando o sistema de avaliação

Outra prática de controle ritualizada adotada pela CRM é o “cliente surpresa”. Estaprática é uma espécie de avaliação inesperada a que todos os funcionários da empresa estãosujeitos durante seu horário de trabalho, na qual um membro externo (consultor), que se passapor um cliente normal, avalia se o colaborador está cumprindo as orientações da empresa comofora estabelecido.

Por meio desse processo de avaliação, os colaboradores devem externar toda a “liturgia”proposta pela organização, apresentando, no dia a dia, ações que demonstrem quanto sãoobedientes às propostas da empresa e aos seus valores já internalizados. Na ação, o consultor“travestido” de cliente observa a “atuação” do funcionário (como se comporta, qual é aqualidade do seu atendimento, como estão as condições gerais de seu espaço de trabalho, suaaparência, comunicação, agilidade, entre outros aspectos). Ainda em sigilo, o consultor deixa aloja, e os funcionários não sabem exatamente em que momento e por quem estão sendoavaliados. Instala-se aí uma estratégia de controle permanente, com a semelhança de umpanóptico (Foucault, 1977), diante do qual o trabalhador está constantemente sendo vigiadopela possibilidade de avaliação, instituindo um comportamento padronizado e docilizado. Apercepção dos trabalhadores com relação a essa prática da empresa é ilustrada pela fala de umaentrevistada: “A CRM seleciona um profissional para que ele avalie o nosso atendimento. Nóstemos de ficar o dia inteiro sorrindo” (sexo feminino, 18 anos, atendente, 11 meses deempresa).

Como resultado da avaliação do “cliente surpresa”, é enviado à gerência geral daorganização um relatório com a nota atribuída ao funcionário e à filial onde ele trabalha. Deacordo com a avaliação feita pelo “cliente oculto”, é atribuída uma “nota” para o setor dofuncionário pesquisado. Se o atendimento prestado foi considerado adequado (cumpre asexigências da organização), o setor recebe uma carinha verde5; a carinha amarela é atribuída aum atendimento intermediário, que descumpre alguns itens de qualidade estabelecidos pelaorganização; a carinha vermelha corresponde à avaliação de que o atendimento prestado nãocumpre grande parte dos itens exigidos; e, por fim, a carinha roxa significa que o funcionárionão estava disponível para atender ao cliente no momento. Essa modalidade de avaliaçãoaponta para o fato de que, quanto maior é o investimento do indivíduo dentro da organização,maior é a dominação desta sobre ele, afirma Pagès et al. (1987).

O relato de uma das entrevistadas ilustra esta relação:

Se o colaborador oferece ajuda, não espera o cliente solicitar alguma coisa; se ocolaborador procura no estoque algo que o cliente não está encontrando na loja, porexemplo, ganha a carinha verde. Se ninguém estiver no setor para atender ao cliente, osetor ganha a carinha roxa, que é a pior de todas! (sexo feminino, 18 anos, atendente, 11meses de empresa).

Para Sennett (2001), as empresas modernas reconhecem seus trabalhadores por umamedida objetiva, embora estas sejam fundamentadas em um controle subjetivo, que passa pelainternalização das práticas organizacionais como modelos inquestionáveis que subsidiam aaceitação dos critérios de desempenho dados pela organização (Gaulejac, 2007), muitas vezescentrados em resultados parciais e distantes do trabalho efetivamente realizado.

Segundo Sennett (2001), essa concepção, que se pretende racional, tende a reconhecero indivíduo apenas em função de sua utilidade para a organização – medida por meio daavaliação quantificada de seu rendimento e de sua adaptação às regras e aos mecanismos que

5 Imagem impressa em cores diferentes, afixada em um painel próximo ao local em que são realizadas as reuniões de início dasatividades dos grupos de trabalhadores, que indica qual é a qualidade do atendimento prestado pelos trabalhadores/setoresabordados/visitados pelo cliente oculto dentro de um período específico de avaliação.

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veiculam as exigências do sistema. Instaura-se o totalitarismo, a homogeinização da forma deum pensar coletivo. “Não há a possibilidade da multiplicidade das visões de mundo, de ondedecorre a alienação a qualquer modelo de pensamento diferenciado” (Faria & Meneguetti,2011, p. 9).

É um aspecto de controle do rendimento dos trabalhadores segundo um sistema pré-definido que canaliza o máximo de energias em prol da organização.

Ele é encorajado e sustentado não apenas por seu gerente, mas também pelo sistema quevaloriza, através de boas notas, boas apreciações, todo dispêndio de energia que seja “nobom sentido”, e desvaloriza aquela que é despendida para outros fins (Pagès et al., 1987, p.105).

As práticas de reconhecimento na CRM são desenvolvidas no nível simbólico. Oscolaboradores se sentem felizes porque o supervisor ou gestor os elogia em reuniões, ou duranteo horário de funcionamento das unidades pelo sistema de som. Uma colaboradora demonstrasua alegria por ter esse tipo de reconhecimento: “Cada vez que você acerta, eles te elogiam,falam no “bocão”6: Parabéns, A., pelo que você fez. Você faz acontecer” (sexo feminino, 21anos, atendente/caixa, 11 meses de empresa).

A empresa, por meio dessas avaliações, permite que o sujeito se supere, vá além daexecução simples e objetiva de uma atividade, dá um sentido à vida dos trabalhadores, oferecea possibilidade de ser reconhecido e amado e de vencer (Sennett, 2001). Os trabalhadores sãolevados a acreditar que precisam trabalhar muito e bem por um objetivo maior, que é encantaras pessoas, e não para ganhar mais, apontando para o deslocamento do nível financeiro para onível psicológico de mobilização. Nesse sentido, a organização passa para o indivíduo a ideia deque é ele quem está se superando em sua carreira, quando, na verdade, são os objetivos daorganização que estão sendo atingidos (Pagès et.al., 1987).

Porque, sei lá, foi um desafio assim para mim trabalhar com metas. Eu nunca tinhatrabalhado com metas até então [...] Fico chateado, desesperado, totalmente estressado,fico tudo. Tudo o que você imaginar. Eu fico mesmo. E daí eu fiquei desesperado, naqueleesquema. Meu Deus do céu, eu não acredito que não vai bater a meta (sexo masculino, 20anos, atendente – produtos financeiros, 11 meses de empresa).

Para Faria e Meneguetti (2007), a necessidade de ser aceito, protegido e amado érefletida na relação que o indivíduo tenta estabelecer com a organização, aceitando seusmecanismos de gestão em troca de pequenas recompensas simbólicas oferecidas aos quesuperam as expectativas.

Manuais do direito canônico

As histórias encantadoras constam no relato semanal dos trabalhadores, destacandoalgo a mais que foi feito em favor de um cliente da empresa. Dependendo do efeito ou de comoforam realizadas, essas histórias podem fazer parte de um rol de relatos consideradosencantadores. A organização já publicou um livro com várias dessas histórias, que foramselecionadas entre mais de dez mil relatos.

No livro, temos a expressão do que significam tais ações realizadas pelos colaboradores:“Histórias de encantamento. Nossa razão de ser. O segredo da felicidade. Quem encanta éencantado”.

6 “Bocão” é o nome atribuído pelos trabalhadores ao sistema de som da loja.

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Nas entrevistas e também nas observações, é possível perceber a preocupação dosfuncionários em descrever casos encantadores e também a satisfação daqueles que conseguiramter suas histórias aprovadas para o livro.

As histórias encantadoras evidenciam a internalização da ideologia da organizaçãoCRM pelos trabalhadores. Várias ações relatadas como histórias encantadoras são realizadas emhorários em que o trabalhador não está na empresa, isto é, fora de seu expediente de trabalhoe/ou com seus próprios recursos, quando abre mão de uma parcela de seu tempo de lazer e/oude seu salário para este fim. A história relatada ilustra a dissolução das fronteiras do trabalhopara a ideologia religiosa do encantamento:

Quando eu estou em algum lugar, por exemplo, dentro do ônibus, e escuto uma conversaassim: “Ah... eu tô precisando de um empréstimo...”. Eu digo: “Eescuta, eu trabalho naorganização CRM. De repente, se você quiser dar uma passada lá, nós oferecemos esse tipode serviço...”. Eu tô sempre correndo atrás... A minha história de encantamento éresultado de uma ação fora da empresa, eu conquistei um cliente pra CRM... Até hoje essapessoa vai lá e tudo... Eu trabalho fora do trabalho [risos] (sexo masculino, 20 anos,atendente de produtos financeiros, 11 meses de empresa).

A intensificação do trabalho, portanto, não precisa ser imposta ou cobrada; o própriotrabalhador, por meio da internalização da lógica de autocontrole e pela expectativa dereconhecimento simbólico da organização (Faria & Meneguetti, 2007), trabalha além das oitohoras diárias, de modo voluntário, numa relação de exploração consentida.

É importante destacar que “o fazer”, neste caso, está atrelado à “visibilidade do que sefaz”. Nesse sentido, esta prática de gestão atribui sentido às relações sócio-profissionais aopermitir o reconhecimento de sua ação como uma história encantadora. Sendo assim, reforçatambém o sentimento de pertença a essa “família” organizacional encantada. A ideologia daorganização, que leva os funcionários a desejarem seguir regras e normas, também é ummecanismo de difusão da fé, em que os “colaboradores” estariam seguindo os manuais daquelareligião (Pagès et al., 1987).

A internalização dos valores da empresa e o reconhecimento se evidenciam no discursodo trabalhador, o qual assume que a política de encantamento o tornou uma pessoa melhor,como no trecho de entrevista transcrito abaixo:

Eu acho que foi coisa da organização CRM, porque desde o momento em que entrei aqui,na primeira reunião do treinamento, onze meses atrás, o nosso lema era encantar. Encantaro cliente, fazer o que ele não espera. Então isso entrou dentro de mim. E entrou dentro decada colaborador também. Depois que entrei na organização CRM, várias coisas mudaram.A minha visão global, assim, mudou tudo. O mundo pessoal, profissional, tudo mudou. Eudevo bastante à organização CRM, porque ela me proporcionou isso (sexo masculino, 20anos, atendente – produtos financeiros, 11 meses de empresa).

Sennett (2001) afirma que, “neste universo, o homem é despersonalizado. A medida desuas aptidões e seu potencial ‘em si’, sua capacidade em se adaptar às normas, planos, quotas,objetivos fixados [...] tomam para ele o lugar de identidade” (p. 118).

Segundo Enriquez (1997), na medida em que se identificam com a empresa, ostrabalhadores tornam-se serviçais voluntários, tendo, inclusive, satisfação nessa submissão.Buscar tudo o que seja possível para atender às expectativas da empresa torna-se algo inerente,interno ao colaborador. Sennett (2001) complementa apontando algumas consequências desseprocesso de internalização para a subjetividade dos trabalhadores:

A mais direta é a introjeção pelos indivíduos das exigências fixadas pela organização. […]De sua parte, o indivíduo submetendo-se totalmente (corpo e alma, como diríamos em

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outros tempos) trabalha para a organização como se esta fosse ele próprio. Ele acredita quea organização faz parte dele, da mesma forma que ele faz parte da organização, o que o ligaao futuro dela (p. 158).

A organização propõe que o valor da empresa na vida dos colaboradores seja grande aoponto de ocupar um espaço que transcende o ambiente de trabalho, fazendo que toda a vida dofuncionário fique condicionada às especificações colocadas pela organização. Num processo deevangelização, os trabalhadores são levados a internalizar as regras e os valores da empresa e, apartir de então, moldar suas vidas para responder a tais princípios. Os trabalhadores sesubmetem a um poder condicionado que, na maioria das vezes, não é perceptível, passando aaceitar, admirar e se dispor a regras sem questionar sua validade e legitimidade (Faria &Meneguetti, 2007).

Os colaboradores reconhecem a organização como aquela que “tem consideração pelaspessoas, oferece o melhor serviço e realiza todas as tarefas com o cuidado da perfeição” (Pagèset al., 1987, p. 84), visando o benefício dos colaboradores. Eles se sentem acolhidos por esta“grande mãe” e devedores com relação a todos os benefícios que dela recebem, comoevidenciado no relato:

Eu fico imaginando vocês chegando em casa... antes o assunto era futebol, o que eu voucomer à noite, o que tem de almoço, e agora vocês provavelmente devem estar falandomuito da organização CRM, não é?!! [...] E deve ser isso mesmo. O maridão querendodividir alguma coisa com vocês, a esposa, namorado, e vocês ficam falando da organizaçãoCRM (sexo masculino, 45 anos, gerente regional, mais de 15 anos de empresa).

A organização incute nos trabalhadores a ideia de que é uma grande mãe para eles, quelhes oferece a possibilidade de, por meio do trabalho, serem reconhecidos como pessoas desucesso, que têm condições de “encantar” outras. Isso, na visão de Sennett (2001), é ummecanismo de controle em que “o maior objetivo é o de alcançar a adesão, impedir o desvio, oque é alcançado pela oferta de amor (gratificação, reconhecimento) ou pela retirada do amorda mãe (o desprezo pelo fracasso)” (p. 156).

Os colaboradores comprometidos que realmente tenham dentro do seu espírito o desejo deencantar vão ter muito sucesso na família da organização CRM. Quem são os responsáveispor essa lapidação? Eu sempre coloco que os primeiros responsáveis por isso são vocês(sexo masculino, aproximadamente 45 anos, diretor de operações, mais de 15 anos deempresa).

Pagès et al. (1987, pp. 134-135) afirmam que vencer dentro de uma organização é omodo para ser reconhecido, aceito; responde à fantasia de ser “amado” pela organização.“Veremos que este mecanismo contribui para a introjeção da organização pelo Ego: o indivíduoreproduz nele o modelo da organização, visto que ele se estrutura em função deste modelo. Suanecessidade de reconhecimento será satisfeita quando reconhecer a empresa nele, isto é,quando ele não for mais ele mesmo”.

As estratégias de gestão organizacionais, apesar de todos os efetivos mecanismos deidentificação e de adesão, não estão livres de contradições de ambivalência. Apesar de aorganização ser amada e respeitada, há, ao mesmo tempo, um sentimento contrário, em que, deacordo com Pagès et al. (1987, p. 147), “a organização-droga é, ao mesmo tempo, amada edetestada”: “Um ambiente que eu amo e detesto ao mesmo tempo”, o que é confirmado pelafala de um colaborador: “Não sei se foi bendito ou maldito o dia em que entrei na CRM” (sexomasculino, 20 anos, atendente – produtos financeiros, 11 meses de empresa).

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Prática de gestão e controle da subjetividade dos trabalhadores: a ideologia de encantamento em uma empresa de varejo

Portanto, ainda que os colaboradores se submetam às regras da organização,internalizem os valores e objetivos da mesma para alcançar sucesso para si e para a empresa,isso não ocorre livre de contradições.

Considerações finais

Ao analisar de forma articulada as diversas práticas de gestão da empresa CRM,percebe-se um sistema coeso de controle da subjetividade, que deixa pouca margem para adominância de valores externos ao da ideologia religiosa de encantamento.

As diferentes práticas de gestão identificadas e descritas evidenciam a adesão dostrabalhadores via controle da subjetividade. A empresa, ao propor uma ideologia religiosa detrabalho, oferece um sentido de vida, que faz o sujeito se descobrir “uma pessoa melhor”,quando, efetivamente, a organização busca canalizar afetos e energia psíquica em prol de seusobjetivos; oculta e desloca os objetivos financeiros e os substitui por objetivos psíquicos. Essaideologia religiosa de encantamento transcende as fronteiras da organização e invade a vida e otempo privados.

Ao pautar-se por um discurso de encantamento do outro, a organização efetiva oencantamento dos trabalhadores, que, sem perceber, reproduzem, colaboram na construção eestimulam essas práticas. O reconhecimento dos pares, dos clientes e dos supervisores renova aadesão e a submissão. O encantamento cega os trabalhadores, que, dedicando-se parasurpreender os clientes, não notam as contradições organizacionais e os exageros da ideologiareligiosa proposta pela empresa. Cantam, dançam e vivem a ambivalência de prazer e angústiaem uma relação fundada na exploração, mas que se mascara no discurso da colaboração e doserviço ao próximo.

O sucesso dessas práticas organizacionais se evidencia na criatividade e na mobilizaçãode tais sujeitos, que, “encantados”, agem encantando clientes, e também a organização, quetem seus objetivos de exploração e lucro alcançados. O controle que se evidencia,extremamente sutil e refinado, que sequestra a subjetividade e substitui os valores pessoais porvalores da organização, efetiva a dissimulação discursiva das organizações que têm suas práticasorganizacionais manipulatórias tornadas imperceptíveis para os trabalhadores.

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Endereço para correspondê[email protected], [email protected], [email protected]

Recebido em: 16/02/2012Revisado em: 02/10/2012

Aprovado em: 09/10/2012

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Trabalho, vida e morte no setor de rochasornamentais: efeitos psicossociais do acidente de

trabalho fatal para a família1

Ana Beatryce Tedesco Moraes e Maria das Graças Barbosa Moulin

Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento,Universidade Federal do Espírito Santo (Vitória, ES)

Este estudo analisou os efeitos psicossociais dos acidentes de trabalho fatais, ocorridos em 2008, para as famílias dasvítimas, no setor de mármore e granito, no estado do Espírito Santo. A pesquisa exploratória utilizou a entrevistasemiestruturada como instrumento de coleta de dados, cuja análise seguiu o Método de Interpretação de Sentidos.Participaram da pesquisa oito famílias, identificadas a partir da Comunicação de Acidente de Trabalho. A percepçãodas famílias sobre o acidente de trabalho se mostrou associada às características da atividade no setor de rochas,como: condições de trabalho desfavoráveis à segurança, proximidade entre relações pessoais e profissionais e falta deinformação sobre os acidentes. O acidente de trabalho fatal trouxe diversas implicações para todos os membros dasfamílias, como agravos à saúde, mudanças de comportamento e dificuldade em lidar com a ruptura dos planos. Asformas de enfrentar a morte indicaram que a superação da perda foi viabilizada principalmente por familiares, amigose religião. A maioria das empresas cumpriu suas obrigações legais com presteza, e o Poder Público foi evidenciado noque tange aos benefícios concedidos às famílias das vítimas, mas se mostrou ausente nas ações de transformação daorganização do trabalho para prevenção de acidentes.

Palavras-chave: Acidentes fatais, Efeitos psicossociais, Setor de rochas, Saúde do trabalhador.

Work, life and death regarding the sector of ornamental rocks: psychosocial effects of fatal work accidents for thefamilies

This study analyzed the psychosocial effects for the families of the victims of fatal work accidents occurred in thesector of marble and granite in 2008, in the state of Espírito Santo, Brazil. In the exploratory research, semi-structured interviews were utilized as the means of collection of data, whose analysis followed the Method of SensesInterpretation. Eight families, identified through the Work Accidents Communication, participated in the research.The families’ perceptions about the work accidents were associated to the characteristics of the activity in the rocksector, such as: work conditions unfavorable to safety, proximity between personal and professional relations andlack of information about accidents. The fatal work accidents brought several implications for all the familymembers, for instance, damage to health, behavioral changes and difficulty to deal with the break of plans. Themanners of facing death indicated that the overcoming of losses was mainly enabled by family members, friends andreligion. Most of the companies complied with all the legal obligations with promptitude. Government washighlighted regarding the benefits granted to families of the victims; however, it was absent in the transformationalactions toward the organization of work in order to prevent accidents.

Keywords: Fatal accidents, Psychosocial effects, Sector of rocks, Worker’s health.

A saúde do trabalhador e os acidentes de trabalho

relação entre a saúde e o trabalho passou por diversas mudanças conceituais e práticasocorridas historicamente. O processo de construção dessa relação foi descrito por Mendes

e Dias (1991), que apontam as principais características da medicina do trabalho, da saúdeocupacional e da saúde do trabalhador. A medicina do trabalho surgiu no interior das fábricas,no século XIX, com a Revolução Industrial, onde o papel do médico estava a serviço doempregador e do capital, cujas atividades estavam voltadas para a manutenção da força de

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1 Este trabalho foi baseado na dissertação de mestrado apresentada à Universidade Federal do Espírito Santo, em julho de 2011,por Ana Beatryce Tedesco Moraes, sob orientação da Professora Dra. Maria das Graças Barbosa Moulin. Apoio financeiro: Bolsa deMestrado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

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trabalho e do processo produtivo. Nesse contexto, os problemas relativos à saúdeconcentravam-se exclusivamente na figura do médico (Mendes & Dias, 1991).

No período após a Segunda Guerra, a evolução da tecnologia industrial repercutiu emprocessos e produtos, acompanhados da insatisfação dos empregados e empregadores quantoaos agravos à saúde. “Entre muitos outros desdobramentos deste processo, desvela-se a relativaimpotência da medicina do trabalho para intervir sobre os problemas de saúde causados peloprocesso de produção” (Mendes & Dias, 1991, p. 191). A saúde ocupacional emergiu nessecenário como tentativa de resposta a essas questões, enfatizando a higiene industrial eobjetivando o controle dos riscos presentes no ambiente de trabalho.

A saúde ocupacional também se tornou um modelo insuficiente diante de um cenáriode movimento social nos países industrializados, nos anos 1960, a partir da introdução de novastecnologias de comunicação e informatização, que se traduziram em outras formas deadoecimento associadas ao trabalho (sofrimento psíquico, LER/DORT, cânceres, problemascardiovasculares). Conforme relatam Mendes e Dias (1991, p. 347), a saúde do trabalhadoremerge como consequência dessas mudanças sociais e se configura como “um campo emconstrução no espaço da saúde pública”, rompendo com a concepção hegemônica decausalidade entre doença e agente específico. Nessa perspectiva, o trabalhador é reconhecidocomo um sujeito histórico, dotado de subjetividade, de criatividade e de conhecimento daatividade que pratica.

Atualmente, as práticas relacionadas com a saúde ocupacional não foram sobrepostaspelo campo da saúde do trabalhador e estão em vigor até hoje no interior das empresas. Deacordo com Minayo-Gomez e Thedim-Costa (1997), a saúde do trabalhador pode sercompreendida por

[...] um corpo de práticas teóricas interdisciplinares – técnicas, sociais, humanas – einterinstitucionais, desenvolvidas por diversos atores situados em lugares sociais distintos einformados por uma perspectiva comum. Essa perspectiva é resultante de todo umpatrimônio acumulado no âmbito da Saúde Coletiva, com raízes no movimento daMedicina Social latino-americana e influenciado [sic] significativamente pela experiênciaitaliana (p. 25).

A medicina social latino-americana, ilustrada pelos estudos de Laurell e Noriega(1989), critica a concepção de saúde da medicina tradicional em relação à coletividade, em quea saúde é entendida como ausência de doença. Essa abordagem preconiza a historicidade dosprocessos biopsíquicos humanos e compreende a saúde como processo social e histórico.

A análise do acidente de trabalho constitui-se um grande desafio ao campo da saúde dotrabalhador, uma vez que sua prática tem sido pautada na medicina tradicional, em que o riscoé entendido de forma monocausal, considerando somente as condições e os atos inseguros(Laurell & Noriega, 1989). Em contraposição a esse modelo, Laurell e Noriega (1989, p. 110)propõem uma nova categoria para integrar os elementos presentes no trabalho, relacionadacom o processo de saúde-doença, denominada “carga de trabalho”.

Essa categoria permite entender como os elementos presentes no trabalho interatuamdinamicamente entre si e com o corpo do trabalhador, “gerando aqueles processos de adaptaçãoque se traduzem em desgaste, entendido como perda da capacidade potencial e/ou efetivacorporal e psíquica”. Nessa perspectiva, o acidente de trabalho é entendido a partir do processode produção, e não como resultado de condição insegura e do ato inseguro. É analisado como“produto de uma combinação de cargas determinada pela lógica global do processo detrabalho” (Laurell & Noriega, 1989, p. 114).

A despeito dos avanços em estudos sobre acidentes de trabalho, uma das formas deanálise de acidentes que ainda persistem nas empresas brasileiras está ligada à Teoria dos

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Dominós, elaborada por Heinrich, na década de 1930, cujos conceitos centrais se baseiam noato inseguro e na condição insegura, concepções estas que, em última instância,responsabilizam o próprio trabalhador pelos acidentes. Esses argumentos se sustentam comrespaldo no processo de naturalização dos riscos, como se eles fizessem parte do processo detrabalho e fossem naturais e inevitáveis (Oliveira, 2007).

Freitas (2001) evidencia que o foco da análise do acidente deve ser modificado, pois, seo trabalhador for culpabilizado pelo acidente, suas causas não são sanadas, uma vez que estãorelacionadas com o contexto social e organizacional. O autor aponta a necessidade de melhoriados métodos de análise de acidentes, em que a realidade do trabalho deve ser revelada pelaincorporação dos conhecimentos dos trabalhadores na investigação das suas causas subjacentes,já que os eventos finais que resultam em acidentes são frutos da acumulação de falhasorganizacionais e gerenciais. O processo de culpabilização dos trabalhadores, vítimas deacidentes pelas organizações, refere-se a uma tentativa de convencer que os riscos estão sobcontrole e manter a estabilidade das relações sociais de trabalho, conservando a estrutura depoder interno (Freitas, 2001).

O acidente de trabalho implica mudanças e perdas significativas não apenas noambiente organizacional, mas também no andamento da organização familiar. Nesse sentido, éimportante compreender a morte no que se refere ao seu processo histórico e à elaboração doluto para analisar os efeitos psicossociais de um acidente de trabalho.

Entendendo a vida a partir da morte

Diversos estudos analisam a morte a partir de circunstâncias vivenciadas pelo serhumano, como doenças ou perda de pessoas, buscando entender seu sentido a partir destasexperiências. Kovács (1992) aborda a morte como parte do desenvolvimento humano,vivenciada em várias etapas da vida como falta, perda, ausência e limite, aspectos que vão alémda morte biológica. O conceito de morte abordado por Torres (2002) retrata sua complexidadee indica os aspectos mais estudados pelos pesquisadores sobre esse tema:

Embora se observem diferenças na forma como os diversos pesquisadores enfocam oconceito de morte, alguns estudiosos [...] assinalaram a importância de que o mesmo sejainvestigado não como um conceito único, mas como um conceito complexo,multidimensional, que envolve subconceitos, sendo a universalidade, a não funcionalidadee a irreversibilidade as três componentes mais amplamente pesquisadas (p. 221).

De acordo com Kovács (1992, p. 153), as reações diante de uma perda são definidascomo processo de luto e, durante seu período de elaboração, “podem ocorrer distúrbios naalimentação ou no sono. Um grande número de enlutados apresenta quadros somáticos edoenças graves depois do luto, podendo se configurar uma depressão reativa ou até um quadromais grave”.

Bowlby (1985), citado por Kovács (1992), descreve quatro fases do luto:

1. Fase de choque, que tem a duração de algumas horas ou semanas e pode viracompanhada de manifestações de desespero ou de raiva; 2. Fase de desejo e busca dafigura perdida, que pode durar também meses ou anos; 3. Fase de desorganização edesespero; 4. Fase de alguma organização (p. 151).

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O autor destaca que o processo de elaboração do luto depende de fatores relacionadosà causa e à circunstância da perda, ao investimento afetivo depositado no vínculo e àscaracterísticas da personalidade da pessoa enlutada.

Aspectos ligados à cultura e ao momento histórico também interferem na forma devivenciar uma perda, pois as atitudes diante da morte não se deram na mesma maneira aolongo dos tempos. Ariès (1989) descreve essas atitudes nos diferentes momentos históricos,mas lembra o caráter lento e pouco perceptível desse processo de mudança. Para o autor, “amorte domesticada” é caracterizada na primeira Idade Média, período em que as pessoaspressentiam a morte e havia grande valorização da preparação para esse momento, com rituaise organização para aguardá-la. O autor destaca que a morte se apresentava como algo simples efamiliar, ligada a uma concepção coletiva de destino. Nesse período, existia uma relação deproximidade entre os espaços de convivência e as sepulturas; estas, por sua vez, eramlocalizadas no interior da igreja, e os cadáveres eram alojados em locais comuns.

O fenômeno da utilização das sepulturas para conservar a identidade e memória domorto se estabelece a partir do século XII, quando o reconhecimento de um lugar individual,definitivo e personalizado para os mortos se associava à ideia de individualidade. Esse período,denominado por Ariès (1989) como “a morte de si próprio”, não substitui a atitude anterior,mas introduz sutis modificações a partir de novas atitudes que representam particularidades decada indivíduo, como a ideia de prestação de contas no Juízo Final e a personalização dassepulturas. Nesse período,

[...] fez-se uma aproximação entre três categorias de representações mentais: as da morte,as do conhecimento por cada um da sua própria biografia e as do apego apaixonado àscoisas e aos seres possuídos durante a vida. A morte converte-se no lugar onde o homemtomou melhor consciência de si mesmo (Ariès, 1989, p. 38).

A atitude perante a morte adquire conotação mais intensa a partir do século XVIII,enunciada por Ariès (1989) como “a morte do outro”. Nesse período, a morte é consideradauma ruptura, uma transgressão, de modo que a intolerância à separação é acompanhada porsofrimento, exaltação emocional e vivência do luto de forma exacerbada. O ritual dascerimônias diante do leito do morto continua, mas apresenta algumas diferenças quecaracterizam as atitudes desse período:

A morte no leito tinha noutros tempos a solenidade, mas também a banalidade, dascerimônias sazonais. A morte era aguardada e as pessoas entregavam-se então aos rituaisprevistos pelo costume. Ora, no séc. XIX, uma paixão nova se apodera dos presentes. Aemoção agita-os, eles choram, rezam, gesticulam. Não recusam os gestos ditados pelo uso,bem pelo contrário, mas retiram-lhes o seu carácter banal e costumeiro (Ariès, 1989, p.45).

A intolerância à morte do outro se mostrava presente no sentimento dos familiaresrelacionado com o fato de esconderem do doente a gravidade de seu estado, com a intenção depoupá-lo. Em determinado momento posterior, tal atitude foi recoberta por um sentimento

[...] característico da modernidade: evitar já não ao doente mas à sociedade e ao própriocírculo de relações, o incômodo e a emoção demasiado forte, insustentável, provocadospela fealdade da agonia e a simples presença da morte em plena vida feliz, pois se admiteagora que a vida é sempre feliz ou deve parecê-lo sempre. Nada mudou ainda nos ritos damorte, que se conservam ao menos na aparência, e ninguém tem por enquanto a ideia deos alterar. Mas começou-se já a esvaziá-los da sua carga dramática; iniciou-se o processo deescamoteamento (Ariès, 1989, p. 56).

A discrição das manifestações e do luto diante da morte caracteriza, segundo Ariès

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(1989), “a morte interdita”, período no qual “o luto deixa de ser, portanto, um temponecessário cujo respeito a sociedade impõe; tornou-se um estado mórbido que é preciso tratar,abreviar, eliminar” (p. 62). As mudanças de atitude diante da morte, como a contenção dasemoções, foram propiciadas pelo fenômeno de transferência do local da morte, que outrora eraem casa e passa a ser no hospital, local agora destinado não só a curar, mas também a morrer.

Como foi possível observar, a morte traz implicações psicológicas e sociais associadas àscaracterísticas pessoais, e também ao período histórico e à cultura. Estabelece-se aqui umdesafio relacionado à compreensão da morte em uma atividade valorizada socialmente, como otrabalho.

Levando em consideração esses aspectos, o presente estudo pretendeu dar visibilidadeàs consequências da morte no trabalho e se constitui também uma tentativa de preencherlacunas e produzir novas questões para o estudo nessa área. Pretende-se, em particular, darmaior visibilidade aos efeitos psicossociais dos acidentes de trabalho fatais para as famílias dasvítimas e entender como elas se reorganizaram após o acidente fatal. Como pano de fundo, estápresente a ideia de contribuir para a desnaturalização dos acidentes de trabalho como inerentesà atividade. Só assim entende-se ser possível transformar a organização do trabalho empromotora de vida e saúde.

Metodologia

Este estudo analisou como acidentes de trabalho fatais, ocorridos em 2008, no setor demármore e granito, no estado do Espírito Santo, afetaram psicossocialmente as famílias dasvítimas, na tentativa de responder a diversas indagações: O que mudou na vida das famíliasapós a ocorrência do acidente? Como elas se reorganizaram dos pontos de vista social,econômico, simbólico e afetivo? Como superaram a fatalidade? Que recursos materiais esubjetivos utilizaram? A apreensão desses fatos foi feita por meio da pesquisa qualitativa decunho exploratório, pois pretendeu dar maior visibilidade ao objeto investigado, que ainda épouco estudado.

Em função de sua finalidade e organização, utilizou-se a entrevista semiestruturada. Asentrevistas tiveram características de uma conversa, mas com propósitos bem definidos pelopesquisador, como forma de obter informações construídas no diálogo com as famílias (Minayo,2007).

O levantamento das famílias das vítimas de acidente de trabalho foi realizado por meioda Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT), disponibilizada pelo Sindicato dosTrabalhadores em Indústria de Extração e Beneficiamento do Mármore, Granito e Calcário doEspírito Santo (Sindimármore). Dez famílias foram identificadas pelas CATs, mas apenas oitoforam entrevistadas, pois uma esposa não quis participar da pesquisa, e a outra família havia semudado do Espírito Santo. Entre as famílias entrevistadas, três residiam no município deCachoeiro de Itapemirim e duas em Vargem Alta; as demais eram de Castelo, Guarapari eVenda Nova do Imigrante. O tempo decorrido entre os acidentes e a realização das entrevistasvariou de 13 a 24 meses.

As entrevistas foram individuais, mas, como estavam sujeitas às relações existentes nadinâmica familiar, em duas entrevistas houve participação de mais de um integrante da família(uma entrevista foi concedida pela mãe com participação do pai da vítima, e outra, pela mãecom participação da irmã da vítima). As demais entrevistas foram concedidas pelas esposas dasvítimas. Para facilitar a identificação das famílias, nos resultados e na discussão, elas serão

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apresentadas pela letra “F”, seguida de uma numeração, que corresponde à ordem em que asentrevistas ocorreram.

Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas integralmente. A análise e ainterpretação dos dados seguiram o Método de Interpretação de Sentidos, que, de acordo comGomes (2007, p. 82), “trata de uma proposta ancorada em obras clássicas do campo da pesquisaqualitativa”. O autor descreve três etapas que compõem esse método de interpretação. Oobjetivo da primeira é ter uma visão de conjunto a partir da leitura compreensiva do materialselecionado e apreender as particularidades do material. O segundo passo refere-se àexploração deste material, quando o pesquisador deve ser capaz de ir além das falas e dos fatos,no sentido de chegar ao que está implícito e velado, decompondo o material em unidades. Aúltima etapa aproxima-se de uma síntese, possibilitada pelo trabalho “com sentidos maisamplos, que traduzem a lógica do conjunto do material. Para que tenhamos êxito nessa sínteseinterpretativa, devemos, principalmente, fazer uma articulação entre os objetivos do estudo, abase teórica adotada e os dados empíricos” (Gomes, 2007, p. 101).

Resultados e discussão

Para analisar os efeitos psicossociais do acidente de trabalho fatal para as famílias, foiimprescindível compreender algumas características do setor de rochas que emergiram nasentrevistas. A investigação dessas características se mostrou fundamental para entender o queo trabalho representa dos pontos de vista social e psicológico para o grupo pesquisado, e como oacidente de trabalho fatal é vivenciado, como fruto dessa atividade.

O cenário que se descortinou sobre as características identificadas a partir dasentrevistas mostrou condições de trabalho desfavoráveis à segurança, como máquinasquebradas e sem freio e falta de equipamentos de segurança. Todas as famílias entrevistadasrelataram a ocorrência de diversos acidentes no setor, como se fizessem parte da rotina dasempresas. Todos tinham um “caso” pra contar, com a própria vítima, antes de sua morte, oucom outros trabalhadores da mesma empresa. As famílias não fizeram correlação entre esseselementos e o acidente fatal, mas se entende que os acidentes anteriores à fatalidade são“pistas” de que algo mais grave, cedo ou tarde, poderia acontecer, pois dão sinais de que algumacoisa não vai bem no trabalho. Observa-se que essa falta de correlação está associada àpercepção das famílias de que os riscos são inerentes ao trabalho, como se a aceitação dessacondição desfavorável à segurança fosse em prol da garantia da permanência no emprego,conforme relato:

Ele falou: “A máquina tá sem freio e tem que consertar”. Inclusive, antes, o encarregado da firmaera meu cunhado, né? [...] Ele não deixava a máquina ir pra um lugar perigoso, porque ele sabiado perigo [...]. Aí, depois que meu cunhado saiu, que veio um outro encarregado, que começou amandar, né? Aí, se não fosse, mandava embora e ele, já viu, né? Tinha que trabalhar (F6).

Esse contexto cultural e social faz as famílias perceberem e conviverem com os riscospresentes no setor de rochas em função de sua inserção no trabalho, garantindo a sobrevivênciamaterial e simbólica.

Foi possível observar nas entrevistas que os trabalhadores e suas famílias mantinhamcom os patrões um tipo de relação que comumente extrapolava a convivência no ambiente detrabalho. Esse fenômeno ocorria não só pela grande quantidade de membros das famílias dosempregados no setor de mármore e granito, mas também pela existência de parentesco entre avítima e o patrão, além das relações afetivas estabelecidas entre as famílias e os donos dasempresas, como mostra o relato: “Aí, eu não tenho como ficar sentida com nada, que o patrão dele,

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que é tão honrado, tão amigo nosso, que ele sofreu, sofre muito. Ele me toma bênção agora, ele mechama até de mãe tem hora” (F3). A proximidade observada entre as relações pessoais eprofissionais pode ser propiciada pelo fato de o setor de rochas ser a principal fonte de trabalhona região, restringindo as oportunidades de trabalho às atividades de extração e beneficiamentodo mármore e granito. Em pesquisa realizada com trabalhadores sindicalizados do setor derochas em Itaoca, no sul do Espírito Santo, Baptistini (2009, p. 138) constatou que “todos osresidentes do distrito [de Itaoca] têm, de alguma forma, uma ligação com o setor”, uma vez quea atividade de extração de rochas é a principal atividade econômica do município.

Essa proximidade entre a vida pessoal e profissional pode ter interferido na percepçãoque as famílias das vítimas tinham sobre os acidentes de trabalho e sobre a responsabilidade dasempresas sobre eles, principalmente quando se estabelecia uma relação afetiva entre a família eo dono da empresa. No estudo de Moulin realizado em Itaoca (2006), também ficou evidenteesse fenômeno – que a autora nomeou de relações de compadrio –, que, na ocorrência deinfortúnio, desvelava para a família tratar-se de uma relação de trabalho, em uma atividade tãoperigosa, que o trabalhador chegou a morrer.

Outro aspecto recorrente nas entrevistas foi a falta de informação sobre o acidentefatal. Em geral, a notícia do acidente chegou às famílias por conhecidos ou colegas de trabalhoda vítima, mas os motivos que o ocasionaram não eram claros. A constatação de que as famíliasnão tinham informações sobre os acidentes no setor de rochas também foi feita por Moulin(2006), ao entrevistar diferentes atores sociais, como aposentados, vítimas de acidentes, viúvase membros do sindicato. De acordo com a autora, “a culpabilização apressada do trabalhador,sem sequer analisar quaisquer outros elementos envolvidos no evento, foi e é ainda uma formaeficaz de perpetuação dos acidentes” (Moulin, 2006, p. 63).

Embora algumas famílias tivessem mais elementos sobre a causa do acidente detrabalho, o fato que prevaleceu nas entrevistas realizadas foi a falta de informação sobre suaocorrência. A partir do levantamento dos acidentes para realização desta pesquisa, constatou-se que não são apenas as famílias que estão desprovidas dessas informações, mas também osórgãos públicos responsáveis pela elaboração e pela emissão de registros de acidentes detrabalho, o que remete à questão da falta absoluta de investigação sobre os acidentes detrabalho no setor.

Entendemos que a investigação apropriada do acidente, com especial atenção àscondições de trabalho, pode ser um elemento para questionar um processo de trabalho quevitima duplamente os trabalhadores: quando ele se acidenta e quando é culpabilizado peloacidente que sofreu. No entanto, as famílias ainda enunciam esses infortúnios como fatalidades,em que o questionamento não está previsto. Ao contrário, trata-se de algo sobre o que, porvezes, não se quer falar. Conhecer a visão das famílias sobre o acidente de trabalho fatalpossibilitou a constatação da falta de informação sobre suas causas – ou falta de desejo porinformação, o que impede a transformação na organização do trabalho e leva à perpetuação deacidentes. Embora a investigação do acidente fatal não tenha sido uma questão para osentrevistados, ela se coloca para o pesquisador como tal. Trata-se de uma das contribuiçõesdeste estudo: insistir em fazer falar algo que o senso comum, por razões diversas, insiste emcalar.

Os efeitos psicossociais do acidente de trabalho foram analisados separadamente – poruma questão didática –, sob a perspectiva dos filhos, das esposas e da família ampliada.Posteriormente, foram analisadas as formas de suporte social e de superação relacionadas àsfamílias das vítimas de acidentes de trabalho.

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Trabalho, vida e morte no setor de rochas ornamentais: efeitos psicossociais do acidente de trabalho fatal para a família

A repercussão para os filhos

Os efeitos do acidente de trabalho fatal observados pelas famílias em relação aos filhosforam: diminuição do desempenho escolar, interferência na saúde e, principalmente, mudançasno comportamento. Os problemas relacionados ao desempenho escolar foram observados comtodos os filhos de uma família:

E com isso, esse ano todos os três [filhos] foram péssimos na escola. [...] O de 11 anos ficoureprovado. Não teve jeito, eu tentei, fui a psicólogo [...]. E o de 14 quase perdeu o ano também, enunca tirou uma nota vermelha, era um menino excelente na escola. Esse ano, ele deu essetrabalho, ele assim, ficou distraído. Enfim, tudo prejudica, né? Não tem nada que não prejudicou(F6).

O discurso desta mãe introduz um elemento à dinâmica de reorganização emocional dafamília, que é a possibilidade (ou não) do recurso às técnicas psicoterápicas. A busca peloserviço psicológico relatada por esta e outras esposas entrevistadas não se mostrou uma escolhaespontânea das famílias, mas aconteceu por incentivo da empresa ou da escola – alguém de forada intimidade do grupo familiar – que comunga desse tipo de recurso direcionado para o âmbitoindividual. Sobre este aspecto, Kovács (1992, p. 164) acredita “que o trabalho psicoterápico,embora não obrigatório, [...] pode auxiliar enormemente no processo de luto”.

De acordo com Baptistini (2009, p. 116), no distrito de Itaoca, há apenas “umaunidade do Programa de Saúde da Família (PSF) e um Pronto Atendimento (PA)”. Levandoem consideração esse fato e os relatos das famílias entrevistadas sobre o custo da psicoterapia,conclui-se que os serviços de psicologia ofertados pela rede pública são restritos, quando nãoausentes. Tais informações indicam que as famílias têm acesso à psicoterapia por meio daconsulta particular: “Inclusive eu tive muito problema com meu filho o ano passado no colégio, meufilho mais novo. Inclusive, a professora pediu que eu levasse num psicólogo, mas não tive como levá-lo,que é muito difícil, você não consegue levar pelo SUS, particular é muito caro, então não consegui”(F7).

O fato de algumas famílias não buscarem o profissional de psicologia pode estarrelacionado não apenas à falta de recurso material, mas também à questão simbólica, pois,como mostrou o estudo de Moulin (2006), trata-se de uma cultura cujos recursos de superaçãoadvêm do coletivo, como religião, vizinhança e família.

Em relação aos efeitos na saúde dos filhos, estes foram relatados pelas famíliasjuntamente com mudanças no comportamento associadas a tristeza e sofrimento, como foi ocaso de dois irmãos: “A pequenininha, a de três aninhos na época, [...] ela ficou doente, ela nãocomia. Durante um mês, ela emagreceu, ela perdeu peso, sentindo muito, chorava muito, queria o pai,ela sofreu muito. [...] Agora o do meio, o de 11 anos [...], ele ficou passando mal vários meses [...]”(F6).

Tais efeitos também foram observados a partir das mudanças de comportamentodescritas, como agressividade, rebeldia e revolta, como conta uma esposa: “Ele ficou umacriança mais agressiva, igual na escola. Ele falava que ninguém aqui em casa gostava dele, que quemgostava aqui era o pai dele e o pai dele morreu. [...] tudo que a gente fala com ele, se não for do gostodele, ele fica irritado, brigando, sabe?” (F7).

Algumas crianças apresentaram outro tipo de comportamento, pois se tornaram maisretraídas e caladas, conforme relato de uma esposa: “Eu não sei explicar, porque ela se fechou. Elase fechou pro mundo, pras amizades. Eu até, num certo momento, eu não percebi que ela tavasentindo muito, porque criança, todo mundo acha assim: criança não sente, né?” (F2). Kovács (1992,p. 157), referenciando o estudo de Bowlby (1979), relata que “a criança passa pelas mesmasfases de luto que o adulto, desde que esteja de posse dos esclarecimentos de que necessita e que

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devem ser fornecidos, levando-se em conta o seu nível cognitivo e capacidade decompreensão”.

As rupturas vivenciadas pelas esposas

Os efeitos psicossociais do acidente de trabalho fatal para as esposas versaram sobre asaúde, a saudade e a ruptura dos planos. As mudanças ocorridas após o acidente fatalprovocaram destruição de sonhos e interrupção das formas de viver, evidenciando as rupturasrelacionadas com os aspectos afetivos e psicológicos. Uma das entrevistadas relatou: “No anopassado, eu ia começar [...] a fazer o estágio e começar o trabalho, aí aconteceu isso tudo, eu parei,minha vida parou” (F2). Em outros relatos, as consequências, na esfera afetiva, evidenciam-sepela destruição de um sonho: “Nossa, ele era lindo. Então, assim, ele jogava bola, ele tava vivendoassim, o auge da vida dele, então foi um choque assim, que tirou, acabou o sonho, né?” (F6).

O estudo de Moulin (2006, p. 116) mostrou que, aos poucos, as famílias entrevistadasconseguiram se recuperar “do ponto de vista material, simbólico, social e afetivo”. Na presentepesquisa, a reestruturação foi observada apenas com relação à questão financeira, o que fazsupor que as entrevistas foram realizadas num período ainda recente em relação à morte dasvítimas fatais. Tal suposição pode ser evidenciada pelo relato de uma esposa sobre a falta domarido no cotidiano:

Ah, mudou tudo, né? Porque ele era meu companheiro, a pessoa que eu convivi 29 anos, casada.[...] Então eu sinto muita falta dele, né? Porque eu perdi minha mãe, eu tinha dez anos então eunão tive infância, não tive juventude. Eu comecei a viver, eu sempre falo, eu comecei a viverdepois que eu casei, entendeu? Que eu não tenho um pingo de saudade da minha vida solteira,então ele foi tudo. Eu perdi tudo (F5).

Entre os efeitos na saúde das esposas, os mais significativos foram o emagrecimentobrusco, a depressão e o uso de remédios, como se pode verificar no relato: “ Bom, eu perdi dezquilos, estou dormindo a poder de remédio. Até hoje. [...] comecei a perder cabelo” (F2). Outraesposa também percebeu agravos a sua saúde e relata, entre outros sintomas, a hipertensão. Elaacredita que seja em função do seu estado emocional, já que não tinha problemas dessanatureza antes da morte do marido.

A depressão foi referida como consequência do acidente do marido na saúde de duasesposas, conforme relato de uma delas: “Eu trabalho. Eu sou servente num colégio. Trabalho pelaPrefeitura, fui concursada pela Prefeitura, trabalho. Fiquei uns tempos afastada, né? Por causa, tiveque fazer duas cirurgias e num sei também, fiquei muito depressiva, não tinha como eu trabalhar. Nãoaguentava trabalhar” (F5).

A partir das entrevistas, não foi possível identificar se a depressão relatada por ambas asesposas foi diagnosticada por um profissional de saúde ou se, simplesmente, elas se apropriaramdesse nome comumente usado pelo senso comum para exprimir a tristeza e o desânimo adianteda perda dos respectivos maridos. De qualquer forma, optou-se por registrar esse efeito relatadopelas famílias como consequência dos acidentes fatais.

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Os efeitos para a família extensa

Os entrevistados relataram os efeitos do acidente para a família extensa – entendidaaqui como a família além da nuclear, como avós, tios e cunhados –, conforme conta umaesposa: “[...] pra minha família foi um impacto muito grande também, porque, ele era uma pessoamuito querida, entendeu? Todo mundo gostava dele” (F7). Outra esposa relata a reação do irmãoda vítima ao saber do acidente:

Olha, o irmão dele ficou revoltado, tanto é que, quando ele ficou sabendo da morte, ele cercou oencarregado. [...] e ele foi lá tirar satisfação: “Não, eu avisei você, pra nunca deixar a máquinaassim, que ia acabar matando alguém. Quem que se machucou naquela pedreira?”. Perguntouele, mas ele sabia que era o irmão, né? Aconteceu com o irmão, né? Ele entrou em choque. Afamília ficou toda assim, né?” (F6).

Foram observadas mudanças nos relacionamentos entre as esposas e a família de origemda vítima. Em um dos casos, o relacionamento melhorou após o acidente: “Parece que, depoisque ele morreu, parece que a família dele trata a gente melhor [...] quando a gente vai lá, elesconversam com a gente, assim, não igual antes, conversa talvez até melhor de que antes, lembra muitodele, né?” (F1). Já outra esposa conta que os familiares do marido acabaram se afastando delaapós o acidente fatal, pelo fato de terem superado a perda com mais facilidade do que ela e, poresse motivo, não a compreendiam: “Até porque a minha dor eles não aceitavam, assim. [...] elesaceitaram depressa, eles queriam que eu também aceitasse, entendeu? Achavam, assim, exagero daminha parte. Então houve aquele afastamento e depois disso, eu procurei ficar mais no meu canto, eeles, mais no canto deles” (F2).

Os momentos vividos em família, como as datas comemorativas, foram relatados comoos mais difíceis de serem superados após o acidente: “Olha, foi dois dias antes do Natal. Falo queNatal, pra gente, acabou, né? Natal acabou. Eu falei que Natal agora é como se fosse um qualquerdia de mês, não tem mais a graça” (F6). Outra família também relatou que as datascomemorativas perderam o sentido, além da dificuldade dos filhos em vivenciar momentos emfamília e de lazer:

Se você vai fazer alguma coisa, tá faltando alguém, vai sair, é o final de ano, é Natal, essascoisas, os meus filhos já não têm mais aquele prazer, tá entendendo? Pra eles, tanto faz, pra elesnão existe Natal, não existe final de ano. Até sai, passeia, mas assim, aquele tipo: não querenturmar com a família dele, nem com a minha pra poder não lembrar (F4).

Uma esposa observou mudanças na saúde do sogro após o acidente: “[...] o pai dele tádoente, o pai dele fica variando, falando que ele vai voltar” (F4). Outro relato também aponta osefeitos do acidente para o irmão da vítima, que, conforme a mãe, “ ficou em tempo de ficar doido”(F8), referindo-se ao fato de ele ter ficado “desorientado” e nervoso, pois trabalhava junto como irmão e presenciou sua morte, não se conformando com o fato.

Suporte social

Neste estudo, entende-se como suporte social elementos que ajudaram nareorganização da família, no que tange às obrigações legais e aos setores públicos. Areorganização familiar, do ponto de vista econômico, após a ocorrência do acidente fatal, foipropiciada em grande parte pelas indenizações e pensões, viabilizadas pela empresa ou pelosindicato. As famílias entrevistadas foram assistidas pelas empresas, que se mostraram

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preocupadas em oferecer suporte ao que fosse necessário e mantinham contato frequente comos familiares das vítimas. Embora os entrevistados tenham reconhecido o apoio das empresas,quando descreveram o tipo de ajuda oferecida, observou-se que esta estava, na maioria dasvezes, restrita aos direitos legais das vítimas: “Ajudaram muito [empresa]. Ajudaram. Com odinheiro da indenização, a mãe comprou essa casa aqui. O outro restante, a mamãe comprou algumacoisinha pra ela e pagou o advogado” (F8).

Os relatos indicaram que as empresas agilizaram o processo burocrático com o intuitode que as famílias fossem beneficiadas com: pensão do INSS, seguro de vida, pagamento pelotempo de serviço e, em alguns casos, indenização. Há diversos relatos sobre os esforçosempreendidos pelas empresas para “correr atrás da burocracia” para conseguir tais direitos: “Eutive muito apoio dos patrões dele, né? Me apoiaram bastante pra tá providenciando documentação,coisas do seguro, precisa de muita documentação” (F2).

Uma esposa relatou ajuda da empresa associada aos direitos legais: “Tanto que meajudou, a gente fez um acordo. Eu sou pensionista hoje, eu recebo, por causa dessa firma que entrouna época, tudo direitinho [...] a gente foi no advogado, tá pagando direitinho, tudo certinho. Eu nãotenho nada a reclamar” (F4). De acordo com outra esposa, logo que o marido faleceu, a empresaentrava em contato com frequência, mas foi possível observar que, em geral, tais contatosversavam sobre questões legais: “Eles [empresa] me chamavam lá quase sempre assim, no começo.[...] Eles só me chamavam lá mesmo quando tava dando algum problema, alguma coisa assim, igualno seguro de vida dele, precisava de mais alguma coisa” (F1). Esse relato dá indícios de que aempresa se fazia presente para tratar de assuntos burocráticos, mas, à medida que eles iamsendo resolvidos, o contato diminuía.

Além do suporte relacionado aos direitos trabalhistas cumpridos pela maioria dasempresas, observou-se que existia preocupação de alguma delas com as consequênciaspsicológicas do acidente. Uma empresa sugeriu tratamento psicológico para a esposa e a filha davítima e arcou com as despesas: “Então eles me ajudaram bastante. Até hoje, eles pagam o psicólogoda gente. Eles pagam até hoje. Eles dão bastante assistência. Me procuram, de vez em quando elesligam, vêm aqui pra saber como a gente tá” (F2).

A realidade abordada pelo grupo pesquisado mostrou que, em alguns casos, a ajuda dasempresas foi além da questão financeira, pois o fato de as famílias “sentirem” que podiamcontar com elas propiciou também conforto psicológico. Essa realidade contrasta com dados deMoulin (2006, p. 108), já que, em todas as entrevistas realizadas pela autora, houvereclamações sobre o patrão após a ocorrência do acidente de trabalho, a partir das quais aautora verificou que “a reação dos empresários deslizou entre a omissão e a irresponsabilidade”.A reação da família em face da conduta da empresa, embora pareça antagônica a princípio,revela-se como os lados da mesma moeda, ou seja, a presente pesquisa evidenciou que asfamílias entrevistadas ficaram satisfeitas por terem sido “amparadas” pela empresa. Já notrabalho de Moulin (2006), as famílias mostraram-se “indignadas” porque foram destratadaspelos empresários. A partir dessas duas pesquisas, configura-se a ideia de que se trata de umaquestão relacional – entre patrão, empregado e família –, e não de direitos ou contrato detrabalho regido por lei.

Ao se pensar no trabalhador apenas como provedor material das famílias entrevistadas,não houve alterações significativas na renda familiar, como conta uma esposa: “Olha, eu entreina Justiça junto com o sindicato, entrou na Justiça contra a firma, né? Pedindo a indenização e euganhei. [...] Então assim, em matéria financeira, nós ficamos bem amparados, a gente não tem o quereclamar, não” (F6). Observou-se que as famílias não perceberam mudanças em relação àquestão financeira em função de terem recebido as indenizações e os benefícios após oacidente.

O Poder Público foi mencionado de forma indireta nos relatos das famílias, no que sereferia aos benefícios recebidos, mas se percebe que não era atuante sob o ponto de vista do

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atendimento das vítimas de acidentes de trabalho, da fiscalização e de políticas públicas para osetor. Apenas uma família relatou que o Ministério do Trabalho multou a empresa em que avítima trabalhava em função das condições de trabalho, mas antes da ocorrência do acidentefatal. Se, por um lado, o Poder Público pareceu ausente na realidade da maioria das famílias,por outro, viabilizou que elas se reorganizassem economicamente – via benefícios concedidos –,propiciando que dessem início à reorganização de outros aspectos, o que mostra a importânciado vínculo de trabalho formal em um mundo de trabalho cada vez mais precário.

Duas famílias entrevistadas relataram que as empresas não cumpriram seus devereslegais, o que não ocorreu com as demais que, prontamente, se preocuparam com esse auxílio.Em uma delas, o dono era irmão da vítima e, inclusive, descontou as despesas do funeral doirmão do acerto pelo tempo de trabalho ao qual a esposa tinha direito: “[...] daí um mês eucomecei a receber a pensão, mas a indenização, não. Eu deixei quieto, porque eu achei que ele ia medar mais apoio, né? [...]. Ele nunca me perguntou se tava faltando alguma coisa, se eu tava precisandode alguma coisa” (F5).

O Sindimármore foi citado espontaneamente apenas por essas duas famílias, o quepode evidenciar que as famílias só buscam o sindicato quando não recebem apoio das empresas,como foi o caso dessas famílias, conforme uma delas relata: “[...] eu gostei muito da visita dele[membro do sindicato], então, assim, eu vi que eu tinha alguém que queria me ajudar, né? Porque, sedepender de patrão de firma, eu tenho certeza que eles não fizeram nada pra me ajudar de imediato ”(F6).

As formas de superação

As formas de superação referem-se a elementos de apoio relacionados a característicasculturais, sociais e individuais. Entre os elementos que auxiliaram no processo de superação emdiante da perda provocada por acidente de trabalho fatal, os mais frequentes foram a família eos amigos, seguidos da religião. O trabalho, o estudo e a psicoterapia também forammencionados pelas famílias como apoios presentes no processo de luto, mas de forma isolada.

Os entrevistados sentiram-se muito reconfortados pelos parentes, motivo pelo qual afamília emergiu em quase todos os relatos como importante elemento no processo desuperação, conforme conta uma esposa:

A minha família sempre procura não me deixar muito sozinha. Quando eu estou muito aqui, elesvêm, aí minha mãe me leva pra casa dela, eu fico assim, fim de semana todo com ela. Só fico emcasa de segunda a sexta, sábado e domingo eu fico com ela, mesmo morando perto. Aí, hoje, porisso que eu consigo falar mais (F2).

Os filhos aparecem como fonte de significado para continuar vivendo, como mostrou orelato: “O que me fez ficar de pé foi meus filhos, lutar” (F6). Outra esposa também falou queencontrou força nos filhos para superar a morte do marido:

Então, eu busco força nos meus filhos, pra tentar lidar com isso. Só que é igual eu te falei, euqueria que, eu preferia que isso não acontecesse mais, porque, do mesmo jeito que eu sofro, eunão queria que outras pessoas sofressem por causa disso, entendeu? Por que quantas criançasmais ainda vai ter que ficar órfãos de pai pra essa firma tomar providência? (F7).

As famílias entrevistadas também enfatizaram o apoio recebido pelos amigos,principalmente nos momentos vivenciados logo após a fatalidade, como conta uma esposa:“Visitas aqui direto, toda tarde. Os amigos dele vinham toda tarde e muita gente, os vizinhos, telefone,

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pessoas que a gente nem pensava [...]” (F3). Os colegas de trabalho das vítimas se mostraramsolidários com a família, sendo lembrados como fontes de apoio no processo de superação,conforme relato: “E ele tinha muito amigo, e, nessas horas, foi muito bom os amigos dele. Mas isso éo quê, né? É erguer a cabeça e continuar, né? Mas que uma morte assim choca a gente, choca, nossa!”(F6).

Os vizinhos – entendidos como amigos – foram citados por duas famílias como suporteno processo de superação: “Ó, teve meus vizinhos aqui que me apoiaram. Estava uma vizinhaminha até na semana passada. Ela foi embora pro Rio. Ela me dava muita força, meus vizinhos aquivinham aqui sempre pra conversar comigo” (F5).

Outro elemento que fez parte do processo de superação foi a religião, mencionadacomo fonte de conforto obtido pela fé e pelas orações: “Mas ele também tá me dando força, Deus.Eu acho que age na nossa vida, né? Acho não, com certeza” (F5). Uma esposa conta que suaparticipação na Igreja foi uma ajuda importante: “E também sou uma pessoa, assim, muitocatólica, muito temente a Deus. [...] procuro sempre estar na Igreja. Eu entrei no trabalho da Pastoralda Criança, fiquei como a coordenadora. Então são coisas assim que têm me ajudado bastante” (F2).

Observou-se que a religião apareceu como elemento que ajudou a suportar a mortecom mais facilidade, que, por vezes, se traduziu em aceitação desse fato, conforme relato:

[...] só coloquei assim, que Jesus fizesse o melhor pra ele [vítima]. Falei: “Eu vou aguentar o quevier pra mim eu tenho certeza”. E, colocando assim, que a gente tem um filho todo espatifado,também eu sei que aquilo é muito forte, né? E coloquei assim. A gente tá assim, a gente vendooutras coisas piores, que a gente vê, isso me dá força. Continuei indo a velórios, levando confortoe trazendo pra mim (F3).

O tom conformista quanto ao acidente de trabalho apresentou-se como uma forma delidar com o sofrimento diante da perda, ancorado na recorrência e na naturalização deacidentes no setor. Tal aceitação está relacionada também ao fato de as famílias não quereremfalar sobre o acidente, não quererem saber informações sobre sua ocorrência e não seindignarem pela forma como ocorreu. Como mencionou essa família, o fato de ver “coisaspiores” – como outros acidentes fatais ou mutilações graves – “dá forças”.

Se, por um lado, a resignação diante do acidente de trabalho se apresenta como umaforma de superar a perda, por outro, impede que o acidente de trabalho se torne um eventoquestionável pela sociedade. No relato citado, a indignação existe, mas fica restrita à perda domarido e não abrange a contradição presente no trabalho.

Na pesquisa de Moulin (2006, p. 103), os meios de superação estavam ancorados nareligião, na família e na comunidade, elementos comuns aos identificados na presente pesquisa.Conforme a autora, “além de Deus, a rede de familiares, amigos e vizinhos foram fonte deajudas materiais, espirituais e afetivas para suportar e para enfrentar as consequências doacidente”. Mas, além desses elementos associados ao apoio coletivo, novos recursos emergiramno processo de superação das famílias na presente pesquisa. São eles: o trabalho, o estudo e apsicoterapia.

O trabalho formal foi citado por uma esposa – a única que não tinha filhos – comoforma de superar a ausência do marido: “Olha, o que mais ajuda assim a ir superando é o serviço.Sai pra ir ao serviço, volta, assim. Lá tem um menininho que eu tomo conta dele, brinco com ele”(F1).

Duas esposas mencionaram a realização de trabalhos manuais como sinal da melhorano processo de superação da perda, como conta uma delas: “[...] até meus trabalhos artesanais –que eu faço crochê, tricô, essas coisas assim – eu abandonei. Agora eu já comecei a voltar a mexercom essas coisas. Então, foi isso que me ajudou bastante” (F2).

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A psicoterapia também foi citada por essa esposa como ajuda para superar a morte domarido: “[...] foi uma coisa que derrubou muito mesmo, me botou bem pra baixo, agora que euconsigo falar no assunto, depois de acompanhamento de psicólogo, eu consigo conversar. Mas, antes,eu nem, não gostava nem de tocar no assunto” (F2). Como já abordado, a presença deprofissionais, como pedagogos e psicólogos, foi relatada por três famílias como recurso utilizadopara auxiliar no processo de superação dos filhos, relacionado principalmente ao desempenhoescolar.

Outra esposa encontrou nos estudos nova possibilidade de inserção social que auxiliouem seu processo de superação:

[...] o que me ajudou mais foi o fato de estudar [...]. Agora eu terminei a oitava série, com issofoi maravilhoso, né? [...]. Então o fato de eu ir lá, e lá eu conheci muita gente diferente, coisasdiferentes, passa a ter vários conhecimentos, com isso a mente da gente abre. Então é lá na escolaque eu me reencontrava. Aqui eu era mãe, lá não, lá eu me reencontrava, então isso fez muitobem, o fato de eu estar estudando (F6).

Mesmo entendendo que o sindicato tenha função de suporte social, destacamos orelato de uma esposa que o citou como elemento do processo de superação: “[...] então eu fuimuito bem amparada por eles [sindicato], lá, né? Até hoje, eu continuo indo lá, porque isso meajudou muito a superar” (F6).

Entre as famílias entrevistadas, duas deram indícios de que superaram com maisfacilidade a perda. Uma esposa (F1) não cita grandes mudanças após o acidente do ponto devista financeiro, na saúde, na vida afetiva e relacional, embora relate a falta que sente domarido. Outra família conta que “não mudou praticamente quase nada. Quando ele era vivo, agente era assim, depois que ele morreu, continuou a mesma coisa. [...] Aí, depois de 15 dias, voltoutudo ao normal” (F8). Levando em consideração as observações do pesquisador, a entrevistadessa família diferiu drasticamente das demais. Primeiro, em razão do pouco interesse que afamília demonstrou sobre a pesquisa e, principalmente, devido ao pouco impacto da mortedemonstrado pela família. Os relatos da mãe da vítima foram muito fragmentados e confusos, e,na maior parte da entrevista, foram complementados por sua filha.

Considerações finais

Estudar os efeitos psicossociais do acidente de trabalho fatal para a família da vítimamostrou que sua ocorrência não estava restrita ao mundo do trabalho, pois trouxe implicaçõespara os filhos, esposas e a família extensa. Para os filhos, a perda do pai refletiu em agravos àsaúde e em problemas no desempenho escolar. As mães também observaram mudanças nocomportamento dos filhos, como: revolta, rebeldia, agressividade, retraimento, tristeza esofrimento. As esposas sofreram efeitos associados à saúde, mas a maior dificuldade foi lidarcom a ruptura dos sonhos e vivenciar o dia a dia na ausência do marido. Os efeitos, para afamília extensa, ficaram mais evidentes nas datas comemorativas e nos momentos vivenciadosem família, quando a ausência da vítima fez que as comemorações perdessem seu sentido.

A questão fundamental desta análise está pautada na interpretação de que as famíliasentrevistadas percebem os riscos presentes no setor de rochas como parte do trabalho, pois, emse tratando de processo de elaboração do luto, não há diferenças significativas quando secompara com o luto vivenciado pela perda por outros motivos. Ou seja, não existem diferençassignificativas quanto a efeitos na saúde, nos comportamentos e nas relações sociais das famíliasquando a morte ocorre no trabalho. Destaca-se que as diferenças entre a morte no trabalho e a

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causada por outro motivo foram justamente as características do setor de rochas, anaturalização dos riscos e a resignação diante da morte no trabalho.

As formas de enfrentar a morte indicaram que a superação da perda foi viabilizada, emgeral, por familiares, amigos e religião, elementos também encontrados no estudo de Moulin(2006) e que estão associados à coletividade. Embora haja semelhanças entre as pesquisas sobreessa questão, emergiram elementos novos no presente trabalho, mais voltados à esferaindividual, como trabalho, estudo e psicoterapia. Os serviços de psicologia e pedagogiaestiveram presentes no processo de superação das famílias das vítimas, incentivados pelaempresa e pela escola.

Não foi possível analisar os efeitos psicossociais dos acidentes de trabalho fatais semlevar em consideração o contexto em que eles ocorreram, pois as relações estabelecidas com otrabalho interferem na atitude das famílias quanto ao fato e, além disso, contribuem, mesmoindiretamente, para que os acidentes continuem acontecendo, uma vez que nada é feito paraevitá-los ou desvelar suas causas.

A análise do setor de rochas no Espírito Santo foi possibilitada pelos relatos dasfamílias, cujas vivências, atitudes e percepções sobre o trabalho no setor permitiramcompreender como se constrói esse terreno cultural sobre trabalho e acidente, vida e morte.Observou-se que existe uma estreita relação entre esses acidentes e as condições de trabalho,como recorrência de acidentes no setor e condições de trabalho desfavoráveis à segurança.Essas características deram indícios de que os acidentes fatais estavam relacionados a esseselementos, que, mesmo não sendo associados ao acidente de trabalho pelas famílias, tal relaçãoficou evidente para o pesquisador, que não pode desconsiderar que a culpabilização dotrabalhador é reforçada nessa situação.

É interessante observar que a percepção das famílias em relação à empresa não semodificou após a ocorrência do acidente. A família não “quer atrapalhar” a empresa, cujopatrão oferece trabalho e ajuda a ela. Acredita-se que essa atitude também contribui para queos acidentes não sejam investigados, pois a percepção dos familiares sobre o acidente está ligadaà fatalidade e à visão do risco como inerente ao tipo de trabalho. Entender o risco dessa formafaz que não se vislumbre a possibilidade de transformação.

Quanto aos aspectos de suporte social, a maioria das empresas cumpriu suas obrigaçõeslegais com presteza, e, além disso, alguns empresários mostraram-se preocupados emacompanhar a situação das famílias. Levando em consideração o trabalho de Moulin (2006), aspessoas entrevistadas pela autora tiveram de recorrer a advogados e ao sindicato na busca deseus direitos, o que não prevaleceu entre as famílias entrevistadas na presente pesquisa. Noentanto, não houve mudanças do ponto de vista da falta de informação, da análise dosacidentes e das alterações nos processo de trabalho visando sua prevenção.

Tanto na presente pesquisa quanto no estudo de Moulin (2006), observa-se o desejo deser ajudado pelo patrão/amigo, indicando que a expectativa baseada nessa relação é muitoforte, seja quando a empresa não ampara a família – realidade observada por Moulin –, sejaquando a empresa se mostra solidária – realidade encontrada no estudo atual. Esta pesquisaevidenciou que as indenizações foram fundamentais para as famílias e, de fato, ajudaram emsua reorganização após o acidente.

Embora o Poder Público tenha sido importante para a reorganização familiar sob oponto de vista econômico – em função dos benefícios concedidos –, mostrou-se falho quanto àconsolidação de informações sobre os acidentes de trabalho, o que foi identificado nolevantamento dos acidentes para realização desta pesquisa. Essa constatação alerta para aurgência de que a análise do acidente se torne relevante, pois, se o Poder Público desconhece ascausas dos acidentes de trabalho e como eles ocorreram, não tem como atuar de formapreventiva, para promover mudanças na organização do trabalho com o intuito de evitar que

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novos acidentes ocorram. Além dessa questão prática, a falta de informação sobre o acidenteproduz concepções sobre a morte associadas a fatalidade e aos desígnios de Deus, o que,consequentemente, não leva em consideração a responsabilidade da organização do trabalho.Pensando que a resignação diante da morte por acidente de trabalho pode ser um fator quedificulta sua transformação, a pesquisa tem um efeito de contradiscurso, que vai de encontro àculpabilização do trabalhador e à forma hegemônica de análise de acidentes baseada no atoinseguro e na condição insegura.

Ao retratar o cenário e os desafios da saúde na década de 1990, Lacaz (1997) adverte“que se deve pensar na pauta de tarefas e embates quando se fala de políticas sociais no Brasil”,mostrando que a saúde só se torna uma questão a partir do momento em que os trabalhadorestêm força política para isso. Entende-se que o acidente de trabalho está submetido às mesmascircunstâncias descritas por Lacaz, que, no presente contexto, depende dos sindicatos, do PoderPúblico, da família, dos colegas de trabalho da vítima e também do que é produzido pela ciênciapara ter visibilidade social e força para promover mudanças. Dessa forma, espera-se que esteestudo contribua para promover uma psicologia interessada no trabalho como possibilidade dese trabalhar e (sobre)viver com dignidade.

Referências

Ariès, P. (1989). Sobre a história da morte no ocidente desde a idade média (2ª ed.). Lisboa: Teorema.

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Endereço para correspondência: [email protected], [email protected]

Recebido em: 03/04/2012Revisado em: 25/10/2012

Aprovado em: 29/10/2012

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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, 2013, vol. 16, n. 1, p. 41-56

A economia solidária na inclusão social deusuários de álcool e outras drogas: reflexões a

partir da análise de experiências em Minas Gerais e São Paulo

Raquel de Oliveira Barreto, Fernanda Tarabal Lopes e Ana Paula Paes de Paula

Centro de Pós-Graduação e Pesquisas em Administração, Faculdade de Ciências Econômicas,Universidade Federal de Minas Gerais (Belo Horizonte, MG)

Este artigo tem como objetivo analisar as ações de economia solidária como via de inclusão social deusuários/dependentes de álcool e outras drogas. Para isso, foram estudadas duas experiências inscritas na RedeBrasileira de Saúde Mental e Economia Solidária, rede esta organizada pelo Ministério do Trabalho e Emprego. Taldiscussão se insere em um projeto mais amplo, apoiado pelo CNPQ, cuja proposta é problematizar a relação entre otrabalho e o uso/dependência de álcool/drogas, resgatando formas alternativas de organização que propiciem ainclusão social desse público em particular. Na fundamentação teórica, primeiramente apresenta-se uma visão sobreo que é a parte álcool/drogas dentro do todo saúde mental, principalmente quanto às suas especificidades e a relaçãocom o trabalho. Realizou-se, então, uma investigação exploratória que ocorreu, em Minas Gerais e em São Paulo,verificando a existência de lacunas significativas no que se refere a essas ações. Nas conclusões, ressaltaram-se asdificuldades que emergem, principalmente no que se refere aos dependentes de psicoativos, como a questão dodinheiro, dos ganhos secundários e do desinteresse pelas atividades. Nesse sentido, o artigo reforça a complexidadedo fenômeno em questão, que implica, necessariamente, a adoção de ações integrais, que façam parte de umapolítica mais ampla de atenção a esses indivíduos.

Palavras-chaves: Economia solidária, Toxicomania, Trabalho, Políticas públicas.

Solidarity economy in the social inclusion of users of alcohol and other drugs: reflections from the analysis ofexperiments in Minas Gerais and São Paulo

This article is an attempt to analyze the actions of solidarity economy as a mean of social inclusion ofusers/dependents of alcohol and other drugs. For this purpose, two experiences included in the Brazilian Network ofMental Health and Solidarity Economy, which is organized by the Ministry of Labor and Employment, were studied.This discussion is part of a larger project, supported by CNPq, whose purpose is to analyze the relation between laborand use/dependency of alcohol/drugs, rescuing alternative forms of organization that facilitate the social inclusion ofthat particular audience. In the theoretical foundation, firstly, an overview on what is the part alcohol/drugs in thewhole mental health is presented, especially regarding its specificities and its relationship to work. Accordingly, anexploratory investigation, that took place in Minas Gerais and in São Paulo, verifying the existence of significantgaps in relation to these actions, was conducted. The conclusions highlighted the difficulties that arise, particularlywith regard to the dependents of psychoactive drugs, such as the question of money, the secondary gains, the lack ofinterest in activities, among others. In this sense, the article reinforces the complexity of this issue, which necessarilyimplies the adoption of integral actions which are part of a broader policy of attention to these individuals.

Keywords: Solidarity economy, Substance abuse, Work, Public policy.

Introdução

ste artigo tem como objetivo analisar as ações de economia solidária como via de inclusãosocial de usuários de álcool e outras drogas. Para isso, foram estudadas duas experiências

inscritas na Rede Brasileira de Saúde Mental e Economia Solidária, rede organizada peloMinistério do Trabalho e Emprego, a partir de 2005. Tal discussão se insere em um projeto depesquisa mais amplo, que foi apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico eTecnológico (CNPq), cuja proposta era estudar a relação entre o trabalho e o uso/dependência

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de álcool/drogas, resgatando formas alternativas de organização que propiciem a inclusão sociale o resgate de cidadania desse público em particular.

Mas o que a economia solidária teria a contribuir com o campo da saúde mental? Essarelação é extremamente instigante e já vem sendo abordada em alguns trabalhos (Silva,Oliveira & Bertani, 2007; Lima & Guirardi, 2008; Andrade, Ramos & Marini, 2008). Éinteressante destacar que alguns desses textos descrevem experiências que vêm sendorealizadas, reafirmando a possibilidade real e frutífera da junção dessas duas dimensões. Aimportância de se trazer ao campo da saúde mental a discussão sobre as potencialidades elimitações da economia solidária insere-se nas conquistas e transformações proporcionadas pelomovimento da Reforma Psiquiátrica, o qual evocou mudanças radicais na estrutura de atençãoaos portadores de sofrimento mental, incluindo o trabalho como parte essencial na extremidadeda cadeia de reabilitação.

No âmbito da saúde mental como um todo, o governo realizou em 2005 uma parceriaentre a Secretaria Nacional de Economia Solidária (Ministério do Trabalho e Emprego) e oMinistério da Saúde, de forma a constituir a Rede Brasileira de Saúde Mental e EconomiaSolidária. Essa rede visa mapear e contribuir para iniciativas de geração de renda e inclusão dospacientes com transtornos mentais e/ou que apresentam problemas decorrentes do uso deálcool e outras drogas, contando com 393 iniciativas cadastradas (Portal da Saúde, 2010). Noentanto, como resultado de um primeiro levantamento entre as iniciativas da regiãometropolitana de Belo Horizonte, constatou-se que, de dez iniciativas cadastradas, apenas umaatende a essa demanda dos usuários de álcool e outras drogas, sendo que atualmente não setem nenhum paciente desse grupo sendo atendido. A mesma realidade pôde ser observada emSão Paulo, pois apenas uma organização declarou atender a esse público específico. A fim decompreender melhor tal contexto, realizou-se então uma pesquisa exploratória nessas duasorganizações encontradas e em órgãos a elas relacionados, de modo a entender asespecificidades do atendimento a esses usuários e a forma como a economia solidária tem sidovivenciada, para atuar como um elo para a reinserção social desses sujeitos.

Os resultados revelaram que, no momento, as organizações não atuam na perspectivada economia solidária, embora estejam cadastradas como tal. Percebeu-se que, devido a umalacuna existente no que tange ao atendimento a esse público, que por vezes não encontraespaços de atenção voltados especificamente para ele, as organizações acabam por atuar emfases anteriores do tratamento, como a do próprio acolhimento, e não exclusivamente no elofinal da cadeia, como via de inclusão social. Ou ainda, como no caso mineiro, os profissionaissequer se consideram preparados para atender a essa demanda. Entende-se que trazer essadiscussão para o âmbito da administração é relevante, uma vez que refletir sobre como asorganizações tratam esta questão é fundamental para pensar ações mais efetivas na recuperaçãoe na inclusão desses indivíduos.

Este artigo organiza-se, então, da seguinte forma: inicialmente, é contextualizado ocenário do campo álcool e drogas dentro da saúde mental, destacando, nesse contexto, oelemento trabalho. Em seguida, aborda-se a relação entre saúde mental e economia solidária,ressaltando suas características. Posteriormente, expõem-se as considerações sobre a realidadeespecífica desses usuários/dependentes, a partir da análise das experiências já apontadas. Emseguida, retoma-se a temática da economia solidária, problematizando os limites epotencialidades em relação a esse público em particular, para então serem tecidas asconsiderações finais.

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Fundamentação teórica: álcool, drogas e trabalho

O campo da saúde mental abarca diversos tipos de sofrimentos psíquicos, dentre osquais estão os transtornos relacionados a consumo/dependência de álcool e outras drogas. Taltipo de transtorno se diferencia dos demais e vem crescendo significativamente por inúmerasrazões, com destaque para a omissão histórica de atuação do Estado no âmbito da saúdepública. Como explicitado pelo Ministério da Saúde (2005), essa questão vem sendo tratada aolongo dos anos como pertencente mais à área de segurança e pedagogia do que de fatocompreendida como um problema de saúde pública. Uma decorrência dessa postura estatal foio desenvolvimento de várias iniciativas de caráter filantrópico e, principalmente, religioso, afim de dar conta de uma realidade cada vez mais preocupante, em instituições que secaracterizam pela busca da abstinência possibilitada por meio da exclusão e do isolamentosocial.

Em 2002, esse problema começou a ser analisado sob uma nova ótica, ao se definir oPrograma Nacional de Atenção Comunitária Integrada aos Usuários de Álcool e outras Drogas.Com a implantação do programa pelo Ministério da Saúde, inaugurou-se um atendimentoespecífico a esse público, tendo como objetivo proporcionar a expansão do tratamento, umaabordagem mais ampla do problema e a inclusão da perspectiva da redução de danos. Aocontrário da exigência de abstinência pregada em geral pelas instituições, a perspectiva daredução de danos busca reduzir ou amenizar as consequências salutares e sociais da utilizaçãodos psicoativos a partir do entendimento de que a exigência da abstinência imediata costumaser uma ação pouco efetiva (Ministério da Saúde, 2005).

Nesse cenário, surgem os Centros de Atenção Psicossocial para Atendimento dePacientes com dependência e/ou uso prejudicial de álcool e outras drogas (CAPSad), que seconstituem como dispositivos estratégicos na rede de atenção e assistência a essa clientela.Além dos CAPSad, destacam-se também outros componentes importantes na rede de atençãoaos usuários de álcool e outras drogas, como as ações no âmbito da atenção primária, aarticulação com as redes de suporte social (tais como os grupos de ajuda mútua e entidadesfilantrópicas) e a implementação nos hospitais gerais e em suas estruturas de atendimentos deurgência e emergência de uma rede hospitalar de retaguarda aos usuários/dependentes deálcool e outras drogas.

O Ministério da Saúde (2005) defende que, assim como nas outras áreas da saúdemental, a organização da rede deve ser diversificada, complexa, com abordagens diversas e coma perspectiva da integração social do usuário. No entanto, admite que o campo voltado para otratamento da dependência química é uma rede em formação, ainda muito distante dasnecessidades da demanda, e que busca recuperar o tempo perdido pela saúde pública noenfrentamento da questão. É importante destacar que é questão primordial no caso dessesusuários o (re)estabelecimento de uma rede social, que em geral é deteriorada pelo uso abusivoda substância psicoativa. Desse modo, o foco apenas na abstinência ou alteração do padrão deconsumo não é o bastante, pois não é suficiente viver longe das drogas, uma vez que também épreciso redescobrir um sentido para a vida. Nessa direção, o trabalho se destaca comoalternativa privilegiada de resgate da autonomia e como instrumento de inclusão social para odependente químico.

Considerar as potencialidades do trabalho significa tratá-lo como categoriafundamental na conquista da saúde mental dos indivíduos e como um recurso terapêutico navida dos sujeitos (Brun, 2007). Karam (2003) defende que, além de se considerar acentralidade do trabalho na vida dos sujeitos, é importante resgatá-lo como operador de saúdemental, por meio da promoção da cidadania, que se dá no próprio local de trabalho. Baseadaem Yves Clot, Karam (2003) sustenta que o trabalho não se encontra apenas no registro doconsumo, mas também no registro da constituição do ser. Em seu estudo sobre alcoolismo, a

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A economia solidária na inclusão social de usuários de álcool e outras drogas: reflexões a partir da análise de experiências em MG e SP

autora demonstra que, em geral, as abordagens tradicionais sobre tratamento e prevenção deálcool e drogas restringem o problema à esfera doméstica, não levando em conta a primazia dadimensão política na qual se insere o trabalho. Para a autora, a intervenção sobre as doençastem sido feita “em detrimento do investimento em ações ético-políticas, voltadas para umaabordagem compreensiva do sofrimento humano em sua relação com o trabalho – vetor peloqual entendemos a construção da cidadania” (Karam, 2003, p. 473).

Economia solidária e saúde mental: o que a primeira tem a contribuir com a segunda?

A proposta de se trazer ao campo da saúde mental a discussão sobre a economiasolidária insere-se nas conquistas e transformações proporcionadas pelo movimento daReforma Psiquiátrica. No Brasil, este movimento foi fortemente influenciado pela experiênciaitaliana de desinstitucionalização em psiquiatria e sua crítica radical ao manicômio, e seinscreve – em referência tanto a um contexto internacional de superação de um modelo asilarquanto a transformações provenientes da Reforma Sanitária, iniciada no Brasil nos anos 1970 –em favor de mudanças nos modelos de atenção e gestão nas práticas de saúde (Ministério daSaúde, 2005).

Nacionalmente, este movimento foi marcado pela Lei nº 10.216, sancionada em 6 deabril de 2001, após um longo e lento processo de tramitação iniciado em 1989. Tal legislaçãodecreta, entre outras questões, a progressiva extinção dos manicômios (instituições fechadas) esua substituição por instituições abertas, tais como: unidades de saúde mental em hospitalgeral, emergência psiquiátrica em pronto-socorro geral, unidade de atenção intensiva em saúdemental em regime de hospital-dia, Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), serviçosterritoriais que funcionem 24 horas, pensões protegidas, lares abrigados, centros deconvivência, cooperativas de trabalho e outros serviços que busquem preservar a integridade docidadão. Tal rede, que busca substituir a internação psiquiátrica, tem como ideal o resgate decidadania dessa parcela de sujeitos excluídos, sustentando-se nos princípios de inclusão,solidariedade, cidadania e resgate ético (Ministério da Saúde, 2005).

Além da sanção da lei, vale destacar que a Reforma Psiquiátrica é um movimentocomplexo e que vai além das mudanças na legislação, sendo composto por vários atores,instituições e forças de diferentes origens, incidindo em diversos territórios, no âmbitogovernamental, na educação, no mercado dos serviços de saúde, nos movimentos sociais, noimaginário social e na opinião pública. O movimento da Reforma Psiquiátrica significou umgrande avanço em termos de transformações sociais do modo de ver e de tratar a loucura, vistoque representa a busca de maior humanização no atendimento aos portadores de sofrimentopsíquico, optando por uma tentativa de reinserção social em detrimento do afastamentooutrora realizado (Ministério da Saúde, 2005).

Costa-Rosa (2006), ao comparar o paradigma asilar, anterior à Reforma Psiquiátrica,com o psicossocial, revela que o primeiro parte de uma concepção em que o indivíduo écolocado como o centro do problema, o que culmina em seu isolamento do meio familiar esocial. Em oposição, o paradigma psicossocial se baseia na noção de que o sujeito não é o únicoproblema, visão que acarreta a inclusão da família no tratamento e, eventualmente, de umgrupo mais ampliado. Nesse novo contexto, tem-se a potencialização do trabalho comoinstrumento de inclusão social e promoção da cidadania dos sujeitos portadores de sofrimentomental. Para tanto, é fomentada a criação de cooperativas, associações e oficinas de geração derenda (Ministério da Saúde, 2005).

Nesse contexto, a proposta da economia solidária emerge como uma possibilidade de

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inserção, geração de renda e mudança social. Mas em que consiste o movimento da economiasolidária? Apesar das inúmeras definições que têm sido dadas ao movimento, que refletem,inclusive, as diferentes perspectivas que coexistem sobre o tema, alguns elementos sãoconsiderados fundamentais. Independentemente do ponto de vista, é fato que a economiasolidária constitui um caminho alternativo, capaz de possibilitar aos envolvidos a vivência daimersão de dimensões sociais – e, aqui, leiam-se: laços sociais, solidariedade e ajuda mútua – nocampo econômico. Tais iniciativas representam uma possibilidade para os excluídos do mundodo trabalho (França Filho & Laville, 2004).

A economia solidária baseia-se na ideia de que os benefícios da atividade econômicadevem estar ao alcance daqueles que a realizam, ou seja, dos trabalhadores. Essa propostadiferencia-se da realidade da sociedade centrada no mercado justamente em função dos seusprincípios e valores. Seus fundamentos são o humanismo, a liberdade, a igualdade, asolidariedade e a racionalidade (Singer, 2002).

No campo da saúde mental, a proposta da economia solidária se apresenta como formade inserção social pelo trabalho. Tais iniciativas compreendem as possibilidades de geração deatividade e renda solidárias, que permitam o processo de emancipação dos usuários pelodesenvolvimento de empreendimentos que promovam espaços reais de trabalho, onde estejamimplicadas a atividade cooperada, a participação democrática e a autogestão, o fortalecimentodo coletivo, a validação dos saberes e dos recursos das pessoas e dos contextos locais, a inserçãono mercado e a possibilidade de ganho econômico real (Ministério da Saúde & Ministério doTrabalho e Emprego, 2006).

Historicamente, o trabalho para os portadores de sofrimento mental é limitado aosimples desenvolver de tarefas que tendem a manter o sujeito na restrição de seu campoexistencial. Ao contrário, a proposta do trabalho pela economia solidária busca a “inserçãolaborativa”, ou seja, a inclusão social pelo trabalho, por meio da qual o sujeito articula novoscampos de interesse, possibilidades e desejos (Silva, Oliveira & Bertani, 2007). No entanto,apesar de sua reconhecida importância, o movimento da economia solidária na saúde mentalainda se encontra incipiente e esbarra em uma série de desafios, que vão desde as dificuldadesde financiamento aos projetos, preconceito e exclusão, até a capacitação dos profissionais, cujaformação nem sempre se volta à importância do trabalho como recurso terapêutico, ou mesmoa conhecimentos sobre empreendimentos solidários e autogestionários.

Além disso, ao se tratar da economia solidária, não devem ser negligenciadas asdificuldades vividas pelo movimento como um todo. Entre as principais estão asustentabilidade dessas organizações, a vivência dos princípios que as sustentam e a questão dacompetição de mercado (Vietez & Dal Ri, 2001). Essas dificuldades afetam todos os tipos deempreendimentos da economia solidária, inclusive os relacionados a saúde mental. Mas essaslimitações, ao contrário de serem percebidas como fatores desmotivadores, podem serencaradas como obstáculos a serem trabalhados. Nesse sentido, abordar essas questões dentrodo campo dos Estudos Organizacionais significa uma possibilidade de refletir sobre problemassociais e abrir possibilidades de atuação sobre eles.

Percurso metodológico: o desenho da pesquisa

Como já explicitado anteriormente, este trabalho se insere em uma pesquisa maisampla, que objetiva investigar a relação entre economia solidária e saúde mental,especificamente no que diz respeito aos usuários/dependentes de álcool e outras drogas. Apesquisa apresenta, no que se refere aos seus fins, um caráter exploratório (Vergara, 2004) e,quanto aos meios, configura-se como uma pesquisa de campo, utilizando-se do estudo de casosmúltiplos como estratégia de coleta de dados. O estudo de casos múltiplos, segundo Yin (2005),

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permite um aprofundamento em relação a realidades específicas, possibilitando ao pesquisadorcompreendê-las de forma mais detalhada e, se possível, compará-las.

Inicialmente, elencaram-se para estudo as iniciativas de Economia Solidária da RedeBrasileira de Saúde Mental e Economia Solidária1 do Ministério d o Trabalho e Empregoinseridas no “Cadastro de Iniciativas da Saúde Mental de Inclusão pelo Trabalho”2 localizadasna região metropolitana de Belo Horizonte (10 iniciativas) e na cidade de São Paulo (5iniciativas). Todas as instituições que abrigam essas iniciativas foram contatadas por telefone e,para surpresa dos pesquisadores, em apenas duas delas afirmou-se haver o atendimento aosusuários/dependentes de álcool e drogas, uma em cada Estado. No caso mineiro, a únicainiciativa é na região metropolitana, em Itaúna, onde há um Centro de Convivência de SaúdeMental que não é especializado em usuários/dependentes de álcool e drogas, embora atenda aesse tipo de público, ainda que no momento da pesquisa não houvesse nenhum frequentadorem tais condições. No caso paulista, foi identificado um centro destinado exclusivamente a essepúblico, chamado Centro de Convivência “É de Lei”.

Após esse levantamento, partiu-se, então, para a realização de uma pesquisaexploratória nessas instituições e em órgãos relacionados a elas. No caso mineiro, em função daausência de usuários/dependentes de álcool e drogas, optou-se por estender a pesquisa tambémpara o Centro de Atenção Psicossocial para Atendimento de Pacientes com dependência e/ouuso prejudicial de álcool e outras drogas (CAPSad) de Itaúna, instituição que encaminha osusuários/dependentes para o Centro de Convivência de Saúde Mental de Itaúna. Sendo assim,objetivou-se apreender como estas organizações utilizam-se da economia solidária no processode reinserção social dos usuários/dependentes de álcool e outras drogas. Além disso, buscou-secompreender quais são as principais características e especificidades desses usuários/dependentes, bem como do tratamento, de forma a ampliar e problematizar a realidadeencontrada.

Em Minas Gerais, foram realizadas quatro entrevistas, duas no CAPSad e duas noCentro de Convivência de Itaúna. As duas primeiras foram realizadas no Centro deConvivência de Saúde Mental com duas psicólogas, uma que coordena o Centro (Luiza)3 eoutra que conduz oficinas de trabalho (Leila). As outras duas, realizadas no CAPSad, foramcom um psicólogo (Marcos) e com uma assistente social (Maria). Já no Centro de Convivência“É de Lei”, de São Paulo, foram realizadas três entrevistas, com Tales, Vando e Rogério. Tales épsicólogo e atua como técnico, Rogério era um usuário do serviço, mas hoje também atua naOSCIP4 na função de redutor de danos, e Vando é um dos usuários mais antigos do serviço. Éimportante destacar que os dados coletados foram analisados pela técnica de análise deconteúdo (Machado, 2002), a partir da qual foram extraídos os principais temas que emergiramnas falas dos sujeitos. No tópico a seguir, serão apresentadas algumas questões que permitemcompreender melhor a realidade dessas organizações e as especificidades dos usuários/dependentes, bem como a lacuna existente no seu atendimento.

1 A criação desta rede foi uma iniciativa do Ministério do Trabalho e Emprego e do Ministério da Saúde que consta na Portaria doInterministerial nº 353, de 7 de março de 2005, que institui o Grupo de Trabalho Saúde Mental e Economia Solidária.

2 Este cadastro consta no Anexo V do documento “Saúde Mental e Economia Solidária. Relatório Final do Grupo de Trabalho”(Ministério da Saúde & Ministério do Trabalho e Emprego, 2006).

3 Todos os nomes dos entrevistados são fictícios.

4 O Centro de Convivência “É de Lei”, visitado na cidade de São Paulo, é uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos ecaracteriza-se por seu trabalho voltado para a promoção da redução de danos à saúde e sociais relacionados ao uso de drogas,atuando como um espaço de interação social e promoção da cidadania e direitos humanos entre os usuários.

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Economia solidária e tratamento da toxicomania: o quadro em MG

A primeira visita em Minas Gerais foi realizada no Centro de Convivência de SaúdeMental na cidade de Itaúna, na região metropolitana do Estado. Tal organização, inscrita no“Cadastro de Iniciativas da Saúde Mental de Inclusão pelo Trabalho” , atende aos diversospúblicos que compõem o campo da saúde mental. De acordo com a entrevistada Luiza, existeuma diferença entre as oficinas tipicamente terapêuticas e as oficinas desenvolvidas no Centro,pois estas incluem a questão da produção. Essas oficinas assumiram um caráter diferente, poistêm como objetivo o alcance de resultados econômicos como parte de um projeto maior dereinserção social.

Embora a atividade produtiva e remunerada pareça ser o objetivo do Centro deConvivência de Saúde Mental de Itaúna, quando a entrevistada foi questionada sobre avivência da economia solidária, afirmou que a construção de uma cooperativa é um projetoque, embora exista enquanto ideia, ainda não foi estruturado e documentado. Ainda queclassificado como uma iniciativa de economia solidária, o Centro não desenvolve exatamenteatividades nesse sentido, embora realize ações como a produção em grupo e a divisão dosganhos. Percebeu-se um trabalho bastante incipiente, que, apesar de tentar se diferenciar dasoficinas terapêuticas pelo discurso, na prática funciona mais como terapia do que comoatividade de geração de renda e inclusão.

Além de não se caracterizar como uma iniciativa de economia solidária, no momentoda pesquisa não havia nenhum usuário/dependente de álcool e outras drogas participando dasatividades do Centro, mas apenas pessoas com outros transtornos mentais, o que gerou certoestranhamento. Leila, responsável por uma das oficinas de produção, argumenta que existeuma demanda de assistência por parte do público de usuários/dependentes de álcool e outrasdrogas, mas que não há para onde encaminhá-los, deixando implícita a ideia de que um centrode saúde mental geral não seria esse lugar de atendimento. Em outros momentos da entrevista,ela justifica essa afirmativa argumentando que os próprios profissionais que trabalham no localnão estão preparados para o acolhimento destes usuários/dependentes. No entanto, se oCentro, que, teoricamente, seria o local de atendimento dessa demanda, não está preparadopara tal, onde ela poderá ser atendida? A resposta, infelizmente, é que tal demandasimplesmente não está sendo atendida. A profissional do Centro apresenta ainda mais umarazão para o afastamento desses usuários:

Percebo um certo preconceito dos usuários daqui e deles. Tipo assim, pra um paciente que éalcoólatra ou drogadito, é difícil aceitar que ele é doente, muitos têm essa dificuldade de aceitarque isso é uma doença. Então chega aqui e vê esse tanto de gente que é doente, que assume aprópria doença... geralmente eles falam que eles têm depressão, depressão muito grave, ou entãofalam “eu sou doido mesmo”. Então pra eles é “ah, eu não sou doido, o que eu vou fazer aqui?”.Então eu acho que isso é um dos agravantes que afasta eles daqui.

Como exposto no trecho, existe claramente uma diferença entre os drogaditos ealcoólatras e os demais usuários do serviço de saúde mental, os quais possuem distúrbios deoutra natureza, havendo um preconceito entre os grupos, cultivado pelos dois lados. Asconstatações até este ponto geram dois tipos de questionamento: 1) não seria necessáriocomeçar a estruturar centros de convivência exclusivos para os usuários/dependentes de álcoole outras drogas no Estado de Minas Gerais? e 2) as atividades de trabalho realizadas peloCentro de Convivência realmente conseguem transcender os objetivos terapêuticos e alcançaros propósitos de inclusão social?

Nesse sentido, se os usuários/dependentes químicos ou de álcool somente são atendidos– e ainda parcialmente – pelas oficinas terapêuticas, e estas possuem uma ação limitada quantoà reinserção social, tem-se uma lacuna evidente: a insuficiência de experiências com este

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A economia solidária na inclusão social de usuários de álcool e outras drogas: reflexões a partir da análise de experiências em MG e SP

objetivo. A fim de compreender melhor essa realidade e as especificidades relacionadas aosusuários de álcool e outras drogas, foi realizada a segunda visita em Minas Gerais, ao Centro deAtenção Psicossocial para Atendimento de Pacientes com dependência e/ou uso prejudicial deálcool e outras drogas (CAPSads), localizado em Itaúna. Nele, foi possível compreender melhora realidade desses usuários/dependentes.

Um primeiro aspecto observado nas entrevistas acerca dos usuários/dependentesquímicos e de álcool refere-se aos prejuízos atinentes ao âmbito familiar, constatados naliteratura sobre o tema. Isso porque a dependência acaba por levar o indivíduo a ter atitudesnegativas, como violência doméstica e prática de roubos, as quais tendem a degenerar seusvínculos sociais e afetivos. A reconstrução dos vínculos familiares constitui um processofundamental quando se trata da reabilitação dos dependentes de substâncias químicas e deálcool, pois a família constitui um ponto de apoio para o paciente durante o período detratamento.

Nesse sentido, o psicólogo Marcos defendeu durante a entrevista a necessidade de sebuscar restabelecer esses vínculos, o que muitas vezes exige a intervenção de um profissional deassistência social. É interessante destacar que o isolamento dos pacientes, que costuma ser umaexigência do tratamento, tende a dificultar esse retorno ao seio social, que se iniciaria pelareintrodução na própria família. Além dessa questão dos vínculos, percebeu-se outradificuldade relacionada ao tratamento, que são os ganhos secundários: “Já tivemos pacientes aquique não almoçavam, guardavam o marmitex pra trocar por álcool, trocar por droga e álcool. Inclusive,até a passagem”.

Ao se referir ao ganho secundário, o psicólogo retrata um problema fundamental,porque o paciente acaba por se tornar dependente do tratamento, sendo refratário à cura, emfunção dos ganhos advindos da posição de usuário/dependente, sejam eles intangíveis, como oganho de atenção por parte dos profissionais e de outras pessoas, sejam os tangíveis, como amanutenção de uma renda financiada pela previdência social, a alimentação e os demaisbenefícios oferecidos pela instituição. Nesse sentido, há um movimento por parte dosprofissionais envolvidos visando à não cronificação dos assistidos, para que eles possam, após otratamento, retornar ao convívio social.

Quando questionada especificamente sobre um espaço de trabalho existente dentro doCAPSad, Maria explicou que a maior parte dos usuários/dependentes não possui interesse nasatividades disponíveis. No entanto, ressalta – a título de exemplo – que é positivo quandoalguém se interessa pelo trabalho na horta, contextualizando o trabalho mais como umaatividade braçal. Haveria um desinteresse dos pacientes ou uma ausência de opções deatividades gerando um aparente desdém pelo trabalho? Não se pode desconsiderar tambémque, para os toxicômanos, o trabalho pode representar repressão, de modo que o desafio deoficinas no contexto da economia solidária é justamente estabelecer um contraponto a isto erestabelecer a possibilidade de expressão em um espaço público. Outro ponto fundamentallevantado pelo psicólogo ao tratar do tema trabalho refere-se à dificuldade do paciente em lidarcom o dinheiro: “Tem esse problema do dinheiro. Tem esse problema, hoje, o paciente, ele falou queele consegue ficar sem beber quando ele fica sem um centavo no bolso. A relação com o dinheiro é[...]. Ele vai ter que reaprender a lidar com o dinheiro”.

A questão do dinheiro também aparece na literatura sobre o tema (Melo, 2006). O fatoé que o dinheiro é especialmente perturbador para o toxicômano, que faz do encontro com esterecurso um problema, e não uma solução. Nas mãos do toxicômano, o dinheiro assume outroestatuto, pois não metaforiza a falta nem um equivalente universal: dinheiro significa álcool oudroga. Assim, a remuneração percebida por alguma atividade pode ser uma arma contra otratamento, de forma a constituir-se um caminho para possíveis recaídas. No entanto, énecessário destacar que a inserção do trabalho, contida, inclusive, na proposta da ReformaPsiquiátrica, localiza-se ao final do processo de tratamento, momento em que o sujeito já se

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encontra em um grau de estabilização maior. Todavia, ainda assim o dinheiro é uma questãoproblemática, levantada por todos os entrevistados, sobre a qual é preciso refletir.

Economia solidária e tratamento da toxicomania: o quadro em SP

Em São Paulo, a visita foi a um Centro de Convivência chamado “É de Lei”, tambéminscrito no Cadastro de Iniciativas da Saúde Mental de Inclusão pelo Trabalho (Ministério daSaúde & Ministério do Trabalho e Emprego, 2006), constatado como a única instituição dacidade cujo atendimento se volta especificamente a usuários/dependentes de álcool e drogas ebusca iniciativas no âmbito da economia solidária. Assim como em Minas Gerais, constatamosuma lacuna, pois há uma escassez de iniciativas para o tratamento deste público. O Centro éuma organização da sociedade civil sem fins lucrativos e se caracteriza por seu trabalho voltadoà promoção da redução de danos à saúde e sociais relacionados ao uso de drogas, atuandocomo um espaço de interação social e promoção da cidadania e dos direitos humanos entre osusuários. Esta ONG foi inaugurada em 1998 e estava vinculada inicialmente ao NEPAIDS(Núcleo de Estudos e Prevenção em Aids do Instituto de Psicologia da Universidade de SãoPaulo). Entre seus trabalhos iniciais, destacam-se aqueles que visam à implementação deestratégias de prevenção das doenças sexualmente transmissíveis (DST), do vírus daimunodeficiência humana (HIV) e da síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA).

Assim como aconteceu na investigação em Minas Gerais, não foram encontradas, nomomento da realização da pesquisa (2010), iniciativas de trabalho voltadas à perspectiva daeconomia solidária. Os entrevistados, entretanto, alegaram que algumas oficinas de trabalho jáocorreram em outros momentos. Atualmente, o principal foco de trabalho da ONG é umaregião do centro da cidade de São Paulo conhecida como “Cracolândia”, onde se concentramdiversos sujeitos usuários de crack. Lá, os profissionais da ONG atuam segundo a perspectivada redução de danos, que busca reduzir ou amenizar as consequências salutares e sociais dautilização dos psicoativos a partir do entendimento de que a exigência da abstinência imediataé, em geral, uma ação pouco efetiva (Ministério da Saúde, 2005). Os trabalhos realizados peloCentro estão vinculados, por meio de projetos, a parceiros tanto do governo brasileiro como dasociedade civil, e tratam de questões relacionadas a cidadania e direitos humanos. Além detrabalhos relacionados à saúde, atualmente a ONG está buscando realizar ações na áreacultural.

Sobre atividades desenvolvidas no Centro de Convivência “É de Lei” relacionadas àperspectiva de trabalho, incluindo a geração de renda, Tales conta sobre uma oficina de pão,que partiu de uma ideia de usuários do serviço que possuíam experiência com essa atividade.Iniciaram então a “oficina de pão”, e logo começaram a vender os pães para pessoas quetrabalhavam no shopping onde funciona o Centro. A iniciativa foi bem sucedida, masinterrompida devido a problemas que tiveram com o forno, que foi considerado inadequadopara aquelas atividades após uma fiscalização. Sem possibilidades financeiras de adquirir outroequipamento, uma das poucas iniciativas de geração de renda desenvolvidas no serviço teve deser encerrada.

E aí tem o trabalho aqui na sede, que já rolou as oficinas de geração de renda [...[ eu participeimais da oficina de pão, a gente fez em 2007, que foi bem legal, que na verdade veio da ideia deles– tinham dois usuários que tinham tido a experiência de fazer pão em outro lugar, falaram:“vamos fazer, a gente consegue tirar alguma, pelo menos pra ONG pagar produtos de limpeza”.A gente fazia pão duas vezes por semana aqui à tarde, e a gente vendia os pães aqui mesmo noprédio, é um shopping, uma galeria: a gente vendia pras costureiras, pros africanos e aí o pessoalcomprava pão. É super interessante (...) eu nunca tive outra experiência com geração de renda,mas eu considero que ela gerou pouca renda. Acabou gerando pouca renda, mas durante um ano

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a gente conseguiu comprar nossos produtos de limpeza, os ingredientes, e os usuários sempreacabavam saindo com um trocado mínimo pra comer, pra comprar um maço de cigarro, pra fazeras coisas dele (Tales).

Com esses pães a gente tomava o café no final da tarde. Aí, quando foi um dia, sobrou pão, e agente saiu aqui na galeria vendendo, e [...] aí a mulher falou “se você tiver mais amanhã, traz”.Aí no outro dia foi feito e [...] quando a gente percebeu, nós estávamos com a oficina de pãesfeita, entendeu? [...] não foi mais ou menos uma geração de renda, mas foi uma coisa assim: [...]a gente estava sem nada pra fazer e inventou uma coisa pra gente comer no final da tarde e eu seique a coisa começou a andar e que hoje é a oficina de pães, entendeu? E a coisa foi indo, foi indo,foi indo nessas oficinas até que a gente não podia usar mais gás aqui (Rogério).

Assim, o que se constatou nessa instituição foi uma tímida atividade de trabalho, hajavista o tempo de funcionamento da ONG, apesar de a mesma estar cadastrada no Ministério daSaúde e Trabalho como uma iniciativa de inclusão social pelo trabalho, conforme já exposto. Aatividade descrita gerou resultados positivos, tanto entre os usuários como em relação àcomunidade local do shopping, mas não teve continuidade. Dessa forma, não podemos afirmarque a atividade de geração de renda seja uma prioridade nesta instituição. Uma questãointeressante, relacionada a esta iniciativa da oficina de trabalho, foi o reconhecimento e avalorização dos saberes dos trabalhadores para a implantação e o desenvolvimento daatividade, como foi explicitado nas entrevistas. Outra discussão a respeito desta iniciativa équanto à renda gerada pela atividade. Muitas atividades de trabalho realizadas no Centropossuem um foco mais terapêutico, e menos produtivo, aproximando-se de uma terapiaocupacional, na qual a atividade de trabalho se configura como um meio, e não um fim a seralcançado, não gerando, por exemplo, renda para o indivíduo necessária para suasobrevivência, nem inserção política e social.

Desse modo, mesmo com a atividade da oficina de pão, embora com esta finalidade,não se conseguiu uma renda significativa para os sujeitos. Tal fato certamente não desqualificaa iniciativa, que estava em seu desenvolvimento inicial, mas aponta para uma reflexãoimportante sobre a inserção de iniciativas como esta, que se voltam à recuperação dedependentes na perspectiva da economia solidária. Além disso, há que se refletir sobre a renda,tendo em vista as dificuldades do toxicômano para lidar com o dinheiro, problema que tambémconstatamos no caso de Minas Gerais. Sobre esta relação, os sujeitos apontam a importância dotrabalho para tal sujeito, mas atentam para os obstáculos:

Eu acho que primeiramente se tratar né?! Ela tem que ter consciência de que ela precisa de umtratamento. [...] Agora o que enobrece a pessoa é o trabalho, o estudo... É tipo assim, você temque ter estratégia, entendeu?! (Tales).

Em primeiro lugar o tratamento, porque se a pessoa não tiver um tratamento psicológico [...]como vai fazer quando a pessoa for pegar o dinheiro? Ela vai trabalhar, que nem eu falei umavez, pro traficante. Entendeu?! Então, quer dizer, é uma coisa psicológica, quer dizer, a pessoaprimeiro tem que ter um tratamento, ter um conhecimento pleno que ela precisa de ajuda e [...]que ela vai se engajar nessa ajuda. [...] Muitas vezes, o dinheiro, ele se torna inimigo. [...] Então,tem pessoas que trabalham feito louco, e, quando chega no pagamento, o cara, ele simplesmentese detona, entendeu? Mas, muitas vezes, você trabalhar é bom, porque você vai se ocupar, vocêvai vendo que você é uma pessoa útil, entendeu? (Vando).

O dinheiro se torna seu inimigo. É muito complicada a coisa. A pessoa tem que tá bem em todosos aspectos, em todos os aspectos (Rogério).

Mesmo como uma iniciativa inicial, e diante da discussão relativa à relação dotoxicômano com o dinheiro, o trabalho com a oficina de pão aproximou-se dos ideaispreconizados na economia solidária, por trabalho coletivo, relações horizontais, valorização dossaberes locais, dentre outros fatores. Essas características possibilitaram aos sujeitos, com estetrabalho, estabelecer relações diferentes daquelas pautadas na organização do trabalho

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capitalista. Vando comenta sobre essas relações na oficina e em outras que teve oportunidadede desenvolver em outros espaços:

Ajuda muito sabe no quê? [...] no fator diálogo, comunicação, ou seja, a pessoa que é usuária dedroga, a pessoa que ela usa droga, ela é delirante... [...] E através desses trabalhos você entranaquele clima, aquele elo, aquela amizade gostosa e tal [...] Agora você vê, eu tô conversandocom você aqui numa boa. A partir desse trabalho, a partir... fica astral, fica harmonioso, fica quenem uma família, que nem uma família. (Entrevistador: Aí tem um sentido diferente dotrabalho formal, do chefe, empregado?) Com certeza, porque você faz as coisas com maisespontaneidade, você faz as coisas com mais amor, com mais carinho, com mais vontade. Vocêsabendo que ninguém tá ali te enchendo o saco, você sabendo que tá fazendo aquilo ali porquevocê quer fazer, ninguém tá te mandando fazer. É tão legal fazer as coisas porque você quer. Vocêjá provou isso? (Vando).

Vando enfatiza também os benefícios do trabalho na vida do toxicômano em geral. Umponto interessante sobre a atuação do Centro é que, apesar de tímidas, nessas iniciativas deoficinas de trabalho, há o reconhecimento e valorização do trabalho e suas possibilidades natoxicomania, tanto psíquicas quanto sociais, de resgate de cidadania e do sujeito político. Nessesentido, é incentivada pelos técnicos a participação dos usuários do serviço em atividades daONG, como participação em eventos com entidades governamentais, seminários, cursos deformação etc.

É bom que você se reintegre à sociedade, a pessoa se sente mais útil [...]. Porque às vezes [...] aspessoas ficarem nas drogas, ficar nessa vida, a pessoa ela não se sente útil à sociedade, ela pensaque ela é um lixo. [...] pra ela já era; não tem mais um por que viver [...]. Ela tá totalmenteerrada. A gente tenta transmitir para os usuários qual que é o projeto, qual que é a visão, qualque é o olho clínico da ONG. É o quê? É resgatar essas pessoas. Pra quê? Pra ter uma vida socialigual às outras. Não é ser rico, ser um Sílvio Santos da vida; é igualdade (Vando).

Há também o incentivo de que os usuários do serviço tornem-se trabalhadores daONG, como já aconteceu com outros participantes e ocorre no momento com Rogério. Rogérioatua na ONG na função de redutor de danos. “Hoje eu sou um funcionário da ONG, tenhotrabalho e tal”. Tales esclarece sobre esta ação:

O Rogério, que é da redução de danos e estava ali, tem uma história interessante, que ele era umusuário nosso, que o CAPSad encaminhou ele pra cá, começou a frequentar aqui. Foi umamudança na vida dele toda. [...] Já teve acho que alguns, pelo menos uns sete, oito, redutores dedano que chegaram a trabalhar com a gente. Alguns deram certo, que nem o Rogério tá dando;alguns também não deram certo – o cara começava a receber o dinheiro dele e já desandava(Tales).

Além das atividades localizadas na sede, que envolvem o acolhimento do indivíduousuário de droga em um espaço de convivência, os técnicos do serviço se deslocam para áreasde alto índice de uso de drogas e desenvolvem um trabalho tanto informativo sobre a utilizaçãode substâncias psicoativas como de redução de danos físicos e morais. Dentre as atividadesrealizadas, cita-se a distribuição de seringas descartáveis, preservativos, além de outrosinstrumentos para uso de drogas, que evitam o uso compartilhado e a propagação de doenças.Além das atividades no âmbito da saúde, destacam-se as atividades culturais, atualmentebastante preconizadas no centro. Sobre estas, Tales aponta a possibilidade futura de umaperspectiva de geração de renda, mas no momento a atividade está apenas iniciando. Éinteressante pensar, até mesmo como uma ação propositiva desta pesquisa, uma maior inter-relação entre ações voltadas para saúde com as culturais e aquelas voltadas para o trabalho. Asfalas dos sujeitos apontam que todas essas ações constituem-se em importantes “estratégias”(conforme termo utilizado por eles), para ficar longe das drogas.

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Nessa linha, pode se inserir também a perspectiva da educação, amplamente inter-relacionada com as anteriores; o estudo foi referenciado pelos sujeitos da pesquisa e destacadoem seus benefícios e possibilidades de transformação e elaboração.

Ela [a droga] destrói você em todos os aspectos, [...] ela é um alto poder viciante: a dependênciadela é muito pior do que as outras. Aí, nesse tempo que eu estava me recuperando, foi quando euvoltei a estudar [...] porque quando eu estava preso, eu tinha estudado só até a oitava série, aí lána cadeia, quando eu estava preso [...] eu terminei o ensino fundamental. Aí quando eu saí [...]fiquei sabendo de um programa que tem aqui no Mackenzie. Então, é uma faculdade aqui quetem um programa de EJA, educação de jovens e adultos, então eu fui lá, me inscrevi. Então hojeeu estudo numa faculdade, eu não tô fazendo faculdade, tô terminando o ensino médio, tô noterceiro ano, e o uso, ele tá praticamente a zero (Rogério).

O fato é que o uso do trabalho no Centro de Convivência, seja por terapêutica, seja porgeração de renda, seja pela inclusão dos usuários do serviço como membros da equipe, não é,conforme já mencionamos, a atividade principal do Centro, assim como também foi observadono caso de Minas Gerais. Isso aponta para a incipiência dessas ações no atendimento da saúdemental no campo da dependência de álcool e outras drogas: infelizmente, há um reduzidonúmero de iniciativas com este fim. Na realidade, o que a instituição mais preconiza são açõesno âmbito da saúde, voltadas para a perspectiva de redução de danos, com destaque para asatividades realizadas em trabalho de campo.

A economia solidária na saúde mental: por um olhar propositivo

Os dois casos estudados, em Minas Gerais e na cidade de São Paulo, revelaram que,embora sejam experiências que fazem parte da Rede Brasileira de Saúde Mental e EconomiaSolidária, elas não realizam, no momento, atividades que se aproximam da proposta daeconomia solidária. De forma mais específica, percebeu-se que elas não enfocam o trabalhocomo forma de inclusão de sujeitos que possuem alguma dependência de álcool e outras drogas.Tal constatação aponta para a existência de uma lacuna no atendimento a esses sujeitos no quese refere a essa possibilidade de recuperação de sua cidadania e espaço social. Percebeu-se, narealidade, que tais organizações acabam por atuar em esferas anteriores da cadeia detratamento, como a própria fase de acolhimento de pacientes que resolvem se tratar.

No entanto, ainda que essas práticas não estejam sendo vivenciadas, é fato que otrabalho aparece nas entrevistas como um elemento central na vida dessas pessoas e,especialmente no caso das pessoas em processo de recuperação, revela-se uma possibilidade dereconstrução dos laços sociais. No caso de São Paulo, especificamente, observou-se que jáhouve uma iniciativa neste sentido, mas que essa não teve continuidade. Ao mesmo tempo,algumas especificidades desses usuários foram elencadas como dificultadoras da inserção pelotrabalho, como é o caso da relação com o dinheiro. Diante desse contexto, pretende-se, nestaseção, refletir sobre as potencialidades e limitações da proposta da economia solidária nocampo da saúde mental relacionado ao uso abusivo do álcool e outras drogas. Então,primeiramente, quais seriam as potencialidades dessa aproximação?

Um primeiro aspecto importante se refere à preocupação existente sobre a criação e amanutenção de vínculos afetivos e sociais pelos usuários, dado que o vício, na maior parte dasvezes, acaba por desgastar as relações dos indivíduos, acentuando o processo de isolamento e aexclusão. Nesse sentido, a economia solidária se destaca pela necessária condição de existênciadesses vínculos, os quais constituem, ao contrário das organizações tradicionais, o motor quealimenta a produção de bens ou serviços. Os laços sociais são, portanto, parte da essência domovimento da economia solidária, tornando esses empreendimentos espaços de socialização e

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também de expressão política (participação). Esses laços são fundamentais quando se leva emconsideração a racionalidade que permeia essas organizações: a racionalidade substantiva(Ramos, 1981). Tal racionalidade, fundamentalmente baseada em valores, envolve um novosentido para o trabalho, que além de constituir meio de subsistência, também é o espaço deautoconstrução do sujeito, sendo que a presença do ideal da autogestão e o rompimento com osentido de hierarquia diferenciam essas iniciativas do trabalho tradicional.

Outro aspecto importante relacionado à proposta da economia solidária é a questão daautonomia (Singer, 2002). Ela se relaciona estreitamente com o entendimento de que aorganização também se configura, conforme explicitado anteriormente, como um espaço deexpressão política (Andion, 2005). Isso porque uma característica fundamental do movimentoé a vivência de uma gestão democrática, em que todos os participantes podem influenciardiretamente nas decisões da organização. As decisões coletivas, bem como a possibilidade deexperienciar uma posição de igualdade dentro da organização, pode ser um fator capaz dedespertar maior interesse dos participantes.

Outros aspectos relacionados às experiências em economia solidária podem constituirfontes de motivação para a participação do público em questão. Uma prática comum – erecomendada – aos empreendimentos solidários é a rotatividade das funções (Vietez & Dal Ri,2001). Isso porque possibilita que o indivíduo saiba lidar com todo o processo de produção,abandonando a posição de especialista. Esse aprendizado torna também o cotidiano de trabalhomenos monótono, na medida em que não se repetem diariamente as mesmas atividades.

Um aspecto importante identificado na pesquisa exploratória é a dificuldade dosusuários em lidar com o dinheiro. Primeiramente, é válido destacar que a proposta da economiasolidária envolve uma ressignificação da visão de mundo em que o trabalho e as questõeseconômicas são subjugados à dimensão social. Nesse sentido, em certa medida, essaressignificação do dinheiro é algo inerente à proposta, já que o “ter” é repensado em relação ao“ser” e “construir”. No entanto, pôde-se perceber que a relação com o dinheiro é algorealmente problemático para esses indivíduos, podendo ser o caminho mais rápido para umarecaída. Nesse contexto, pode-se considerar a constituição de clubes de troca e da criação deuma moeda social, a qual tenha valor circunscrito ao espaço da própria organização ou de umarede de organizações. Essa experiência de criação de uma moeda própria se deu no âmbito dosclubes de troca e, como explicitado por Búrigo (2000, p. 2), tem ganhado expressão tanto empaíses desenvolvidos quanto nos periféricos. Segundo o autor, “em cada uma dessasexperiências a moeda adotada assume nome e regras próprias”.

Como explicita Singer (2002), os clubes de troca se constituem em organizações depessoas que se unem para trocarem umas com as outras os frutos de seu trabalho. As moedassociais foram, portanto, um meio de quantificar essas trocas sem os “vícios” embutidos namoeda tradicional. Búrigo (2000) também apresenta o relato de um grupo brasileiro que seutiliza de uma moeda social. O depoimento esclarece como esta funciona e quais são as suasvantagens.

Ela é produzida, distribuída e controlada pelos seus usuários. Por isso, o valor dela não estánela própria, mas no trabalho que vamos fazer para produzir bens, serviços, saberes edepois trocar com o resultado do trabalho dos outros. A moeda enquanto tal não temvalor, até que comecemos a trocar trabalho com trabalho. Ela é diferente também porque aela não está ligada nenhuma taxa de juros. Por isso não interessa a ninguém guardá-la.Interessa, sim trocá-la continuamente por bens e serviços que venham responder às nossasnecessidades. Esta moeda será sempre um meio, nunca um fim. (Multirão Abopuru, 2000,citado por Búrigo, 2000).

Por fim, o autor destaca que a ideia da constituição de uma moeda social pode serassociada a outras iniciativas, como programas de desenvolvimento local. Neste contexto, é

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válido destacar outra questão muito discutida no campo da economia solidária, tanto no meioacadêmico quanto pelos envolvidos diretamente no cotidiano dessas organizações: a construçãode redes. As redes propiciam que as organizações se apoiem e enfrentem as dificuldades emconjunto, possibilitando maiores chances de sustentabilidade e crescimento (Mance, 2002).

No entanto, quais seriam as limitações da aproximação entre economia solidária esaúde mental, especialmente no que tange aos usuários de álcool e outras drogas?Primeiramente, devem-se levar em consideração as limitações que a proposta da economiasolidária enfrenta de uma forma geral. Dentre estas questões, destacam-se a dificuldade de semanter uma lógica diferenciada, uma vez que estas instituições estão incrustadas em umambiente no qual predomina o ideário capitalista, e também o fato de possuir valores (umimaginário) muito distantes dos tradicionais, o que exige dos indivíduos processos deressignificação e conscientização expressivos (Barreto & Paes de Paula, 2009). Além disso,salienta-se a questão das dificuldades de sustentabilidade (sobrevivência) dos empreendimentos(Vietez & Dal Ri, 2001), os dilemas relativos à intervenção ou não do Estado no movimento eproblemas relativos ao aparato legal (Tesch, 1999), dentre outras. Essas dificuldades quepermeiam o movimento e que têm sido reveladas pela vivência prática dessas organizações sãoobjetos de várias pesquisas e, embora não devam ser perdidas de vista quando se deseja tratardo assunto, não serão aprofundadas aqui, já que se está priorizando as dificuldades relativas àvivência da proposta em um contexto particular.

De certa maneira, discute-se que as dificuldades apontadas ao longo da pesquisaexploratória em relação aos indivíduos em questão podem ser transpostas ao contexto detrabalho. Um dos aspectos levantados diz respeito ao ganho secundário, ou seja, aos ganhospercebidos pelos pacientes ao se manterem em tratamento em detrimento do empenho pelaalta. Neste esteio, coloca-se um desafio à economia solidária no sentido de se revelar umaopção mais interessante do que esses ganhos secundários, pois os ganhos no que se refere àautonomia e ao estreitamento de laços solidários talvez possam gerar um sentido de alteridadeque supere a busca por ganhos materiais e pela obtenção narcísica de atenção.

Ainda no que tange à dimensão financeira, o dinheiro foi apontado como um aspectobastante problemático. Embora a proposta da constituição de uma moeda social se mostre umcaminho viável para amenizar o problema, ela abrange apenas parte dele. Isso porque, comoapontado nas entrevistas, qualquer bem, até mesmo o alimento fornecido pela instituição detratamento, pode ser objeto de troca para sustentar o vício. Neste sentido, mais que colocar odinheiro como algo “fora do alcance” desses indivíduos, deve-se vislumbrar um movimentomaior de ressignificação como parte do processo de reabilitação como um todo. Ou seja, o quese deseja ressaltar aqui é a complexidade do problema, que acaba por exigir uma atuaçãoampliada em que o empreendimento seja apenas um elo de uma cadeia maior, que vai daprevenção à reabilitação.

Tal complexidade referente à temática tratada neste trabalho implica, portanto, aconstrução de políticas mais efetivas no que diz respeito ao atendimento a esse público. Assim,problemas como o despreparo dos profissionais para este atendimento e a deficiência em termosde locais para receber essa demanda – apontados nas entrevistas – precisam ser resolvidos.Como pensar em uma ação mais ampla, envolvendo até mesmo a construção de redes deempreendimentos solidários, em que esses usuários possam se recuperar socialmente,reconstruindo sua dignidade e cidadania, se não há suporte do Estado para isso?

Diante de todos esses pontos levantados, é possível perceber a potencialidade e oslimites das relações entre o problema do uso/dependência de álcool e outras drogas e as saídasapontadas pela economia solidária. Muito mais do que um recurso terapêutico, trata-se aqui dapercepção do trabalho como este elo que proporciona ao indivíduo sentir-se novamente partedo todo social. Sendo assim, pensar na possibilidade da vivência da economia solidária significamuito mais do que a potencial de inserção pela renda, mas toda uma mudança de visão de

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mundo que o movimento propõe: resgatando laços, aprendendo a viver em comunidade,ressignificando o trabalho e seus produtos. Quanto às dificuldades, elas realmente existem enão podem ser ignoradas sob pena de acusação de uma visão ingênua da realidade. Não se tratade ignorá-las, mas de trabalhar sobre elas, considerá-las menos dificuldades e mais desafios quetal realidade impõe.

Considerações finais

Como apontado ainda na introdução, o objetivo deste trabalho foi analisar as ações deeconomia solidária como via de inclusão social de usuários de álcool e outras drogas, mas aconstatação empírica da ausência ou incipiência de ações dessa natureza levou à discussão dalacuna de atendimento aos usuários/dependentes de álcool e outras drogas, bem como doslimites e potencialidades de economia solidária como via de cura e reinserção dos assistidos.Conforme foi averiguado, entre as organizações da região metropolitana de Belo Horizonte e dacidade de São Paulo, listadas no Cadastro de Iniciativas da Saúde Mental de Inclusão peloTrabalho, apenas duas confirmaram atender a esse público, uma em cada localidade. E, aopesquisá-las, percebeu-se que nenhuma das duas no momento atua, de fato, com a proposta daeconomia solidária.

No entanto, a investigação realizada nessas organizações possibilitou certoaprofundamento sobre a realidade desses sujeitos, contribuindo para a compreensão de suasdificuldades e especificidades. Os aspectos discutidos no artigo apontam que, apesar daincipiência das ações, há potencialidades para a reinserção social dos usuários/dependentes deálcool e outras drogas por meio da economia solidária, devido às características percebidasnessas iniciativas fora do campo da saúde mental. Tais potencialidades provêm, basicamente, dacongruência entre os objetivos do movimento da economia solidária e as problemáticasatinentes ao público em questão, pois os valores, a lógica e a racionalidade do movimentopossibilitam um resgate desses indivíduos para o convívio público. Por outro lado, chamou-se aatenção para as dificuldades que emergem, tanto no movimento da economia solidária comoum todo quanto no que tange aos dependentes de psicoativos, como a questão do dinheiro, dosganhos secundários, do desinteresse, entre outros.

O que o artigo reforça é a complexidade do fenômeno em questão, que implica,necessariamente, a adoção de ações integrais. Em que sentido? Ações que não se restrinjam aopontual, ou seja, que façam parte de uma política mais ampla de atenção a esses indivíduos.Isso significa a articulação de uma cadeia – interligada e harmônica – de programas e propostasde ação. Em outra via, isso também implica um envolvimento mais amplo dos vários atoressociais sob a ótica de um esforço conjunto.

Em termos de contribuições, este trabalho realiza uma investigação de um tema aindapouco explorado no que tange às relações de trabalho, ao abordar a reflexão de formasalternativas de organização do trabalho como vias para inclusão social de sujeitosusuários/dependentes de substâncias psicoativas. Além disso, destaca-se o caráter propositivoda pesquisa, que tenta expandir a discussão e contribuir para que essas experiências possam, defato, constituírem-se em possibilidades de ações concretas de mudança social.

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Endereços para correspondê[email protected], [email protected],[email protected]

Recebido em: 11/04/2012Revisado em: 25/11/2012

Aprovado em: 29/11/2012

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Atenção básica e saúde mental: experiência epráticas do Centro de Saúde Escola

Samuel B. Pessoa

Maria Luisa Sandoval Schmidt

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (São Paulo, SP)

O presente artigo apresenta e analisa achados de estudo etnográfico realizado junto ao Centro de Saúde EscolaSamuel B. Pessoa, focalizando as relações entre o campo da saúde mental e a atenção básica em saúde. Está divididoem três partes principais, contemplando a história dessas relações na referida instituição, aspectos atuais das políticaspúblicas de saúde que incidem sobre essa esfera e a prática de supervisão de saúde mental para agentes comunitáriosde saúde como espaço privilegiado de formação e diálogo para a composição de práticas de cuidado. O estudomostrou que a experiência e as práticas do CSEB, relacionando saúde mental e atenção primária e básica em saúde,conservam a memória histórica desta relação na cidade de São Paulo, experimentando, ao mesmo tempo, as novaspropostas para área, desde uma perspectiva crítica e problematizadora.

Palavras-chave: Saúde mental, Atenção básica em saúde, Políticas públicas de saúde, Supervisão, Etnografia.

Primary health and mental care: experience and practice in the Health Center School Samuel B. Pessoa

This paper presents and analyzes findings from an ethnographic study conducted inside the Health Center SchoolSamuel B. Pessoa, focusing on the relationship between mental health and primary health care. It is divided intothree main sections covering the history of these relations in that institution, current aspects of public healthpolicies related to this area and the practice of supervision for community mental health workers as a privilegedspace for training and dialogue on the designing of care practices. The study showed that the experience andpractices of CSEB, linking mental health and primary care and basic health, preserve the historical memory of thisrelationship in Sao Paulo, trying at the same time, the new proposals for the area, from a critical perspective.

Keywords: Mental health, Primary health care, Public health policies, Supervision, Ethnography.

o contexto de um projeto de pesquisa sobre acesso aos serviços de saúde mental na cidadede São Paulo,1 realizei um estudo etnográfico no Centro de Saúde Escola Samuel Barnsley

Pessoa (CSE Butantã), situado na zona oeste da cidade.N

As relações entre saúde mental e atenção básica em suas dimensões teóricas e deinteresse para a organização de serviços, bem como a consideração das possibilidades evicissitudes desta associação no âmbito da recente história das políticas públicas de saúde nomunicípio de São Paulo, mostraram-se temas relevantes para a abordagem da questão doacesso, especialmente no que diz respeito à posição da saúde mental a partir da progressivaimplantação do Programa de Saúde da Família (PSF) e da Estratégia da Saúde da Família(ESF).

O estudo etnográfico contribuiu para o entendimento dessa relação problemática e,numa interpretação que deriva do próprio percurso da pesquisa, decisiva para a saúde mental,considerando-se, por um lado, sua tradição de apresentar-se também, na história da reformapsiquiátrica paulista (e paulistana), como dispositivo de atenção primária e, por outro, seusrumos e destinos nas propostas de apoio matricial.

1 Itinerários de cuidado e desamparo: políticas públicas de saúde mental e acesso aos serviços na cidade de São Paulo, pesquisa quecontou com auxílio de bolsa de produtividade do CNPq.

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A escolha do Centro de Saúde Escola, por sua vez, permitiu a aproximação de ideias epráticas de contato entre atenção básica e saúde mental que, em certo sentido, condensam eabrigam expressões significativas da história desse campo.

O estudo envolveu, entre 2009 e 2010, entrevistas individuais com a coordenadora doProjeto São Remo, que é a versão do PSF naquela instituição, a coordenadora do Programa deSaúde Mental, a supervisora de saúde mental do grupo de agentes comunitários de saúde(ACSs) e entrevistas coletivas com ACSs; observação participante das supervisões dos ACSsna saúde mental; e anotações de observações participantes realizadas por alunos de graduaçãodo curso de psicologia do Instituto de Psicologia da USP, sob minha orientação, junto àsupervisão dos ACSs na saúde mental, nos anos de 2007, 2008 e 2009.

Este texto combina apresentação e interpretação das práticas e das concepções dostrabalhadores do centro de saúde, buscando, ao modo de uma descrição densa, traduzir pontosde vista e vozes em suas complexidades e riquezas e transcrever vinhetas e fragmentossignificativos daquilo que foi testemunhado. Traduzir e transcrever são ações que procuramfazer jus à experiência de campo, constituindo-se em ensaios, experimentos e exercícios deescrita que tateiam significados e sentidos que ora encontram, ora traem, aquilo que os própriosinterlocutores pensam, sentem e vivem (Clifford, 2002; Geertz, 1989; 2002).

Por respeito ao diálogo e à interlocução como atmosfera do trabalho intelectual que sequer realizar sobre o tema aqui proposto, uma primeira versão desta comunicação foi discutidacom profissionais do Programa de Saúde Mental e suas contribuições foram aqui incorporadas.

A decisão de identificar o Centro Escola e indicar apenas os cargos e categoriasprofissionais dos participantes da pesquisa foi feita a partir de conversas e ponderações com osmesmos sobre as dimensões éticas do trabalho. Essa solução, negociada, atendeu àsexpectativas de compor uma certa proteção de suas identidades com a atribuição dos devidoscréditos à trajetória original e significativa, para o campo da saúde pública, desta instituição ede seus trabalhadores.

Centro de saúde escola e saúde mental

Os centros de saúde foram, e seus remanescentes ainda são, equipamentos da redepública de saúde de primeira linha ou de atenção primária, ligados à esfera estadual de governo.A quase totalidade deles foi municipalizada com a implantação do Sistema Único de Saúde(SUS), tornando-os Unidades Básicas de Saúde (UBSs).

Na cidade de São Paulo, existem alguns centros de saúde ligados ao ensino e àpesquisa, cumprindo funções de atendimento a usuários aliados à sua constituição como campode investigações e de formação para estudantes e residentes das áreas de medicina eenfermagem, bem como para estágio de alunos de outras áreas afeitas à saúde como psicologia,fonoaudiologia, terapia ocupacional e fisioterapia, para citar algumas. São os chamados Centrosde Saúde Escola.

Os centros escola, quase sempre, têm autonomia para implementar políticas públicas apartir de uma perspectiva crítica ou própria, construindo e sedimentando uma experiência quecostuma unir prestação de serviço à criação de instrumentos práticos e teóricos “de ponta”.Alguns profissionais dessas instituições referem-se à criação de tecnologias como modos deproblematizar, discutir, analisar e fazer que podem ser transpostos para outras instituições dosistema de saúde.

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Os modos de problematizar, discutir, analisar e fazer que unem atenção primária, saúdemental e, mais recentemente, a atenção básica representada pelo PSF são aquilo que se quercompreender, e o CSE, um lugar onde estudá-los.

A apresentação do CSEB será feita, então, pelo viés da história da relação entre saúdemental e atenção primária, acompanhando de perto a entrevista concedida pela coordenadorado Projeto São Remo, que articula o trabalho dos agentes comunitários de saúde nestainstituição, e as contribuições trazidas pela equipe de saúde mental para a construção dessamemória.

A história do Programa de Saúde Mental no CSEB confunde-se com a própria históriada saúde mental com a atenção primária, e é marcada, nesse local, por três momentos.

O primeiro, por volta de 1978 e 1987, começa com a fundação do CSEB e seu interesseem “herdar” uma equipe de saúde mental que atuava em outro centro escola. O interesse foiduplo: ter uma equipe de saúde mental atendendo em primeira linha e tê-la como parceira naproposição de “tecnologia para atenção primária”.

Profissionais da saúde mental lembram que a história da equipe começara no centro desaúde de Pinheiros, com uma visão da psiquiatria comunitária na abordagem da chamadadoença mental. Nos anos 1980, existiu ali um setor de reabilitação, bem como um programa deatenção ao psicótico que era um “portas abertas”, buscando dar atenção e cuidado ambulatorialàs pessoas com transtornos graves. Este programa inspirou o Programa de Intensidade Máxima(PIM)2 e as interconsultas.

Depois, com a transferência para o Butantã, veio a colaboração com a atenção básica apartir de uma perspectiva epidemiológica. As profissionais lembram ainda que viveram, nocontato com as outras equipes do CSEB, uma rica experiência de ação programática, diferentede uma mera justaposição de programas, realizando um trabalho conjunto de proposição,execução e avaliação de práticas de cuidado, com a introdução da psicanálise, da sociologia ede outras disciplinas, na busca por uma abordagem convergente dos diferentes setores.

O Programa de Saúde Mental, assim batizado desde seu início no CSEB, teria, aindasegundo sua equipe, se pautado pela visão das determinações sociais do processo saúde/doençae pelo modelo de atenção pública em saúde mental.

Retomando a periodização esboçada pela coordenadora do Projeto São Remo, nesteprimeiro momento, a saúde mental, como um dos programas do CSEB, constituiu-se como umadas portas de entrada para a população.

Por um lado, na perspectiva do desenvolvimento de tecnologia para atenção primária,houve uma colaboração intensa e profícua, principalmente com o Programa de Saúde doAdulto. As consultas no setor de adultos eram bastante detalhadas, e a equipe de saúde mentalajudou a elaborar um roteiro de anamnese, estabeleceu a possibilidade de interconsultas esupervisões, tendo em vista o acompanhamento de casos, e recebeu encaminhamentos. Omodelo da atenção integral, hegemônico no CSEB naqueles anos, fazia apelo a tarefascompartidas entre diferentes profissionais, e a colaboração entre programas tinha este teor.

A proposta do CSEB era comum a todos os programas: a sala de espera era coletiva, asauxiliares de enfermagem faziam formação nos vários setores do CSEB e as supervisõesconjuntas dos trabalhadores da saúde mental e sanitaristas, na perspectiva da saúde integral,eram um espaço importante na construção do serviço.

A equipe de saúde mental foi influenciada pela equipe do CSEB, modificou-se, compôscom o CSEB e sofreu influência da medicina preventiva. O modelo do Programa de Saúde

2 O Programa de Intensidade Máxima (PIM) realizava atendimento ambulatorial intensivo com pacientes e suas famílias, buscandoevitar a internação hospitalar, numa perspectiva sintônica com a reforma psiquiátrica. Sobre a reforma psiquiátrica desde aperspectiva governamental, ver: Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (1983).

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Mental foi gestado no CSEB e teria sido o primeiro equipamento a ter um programa de saúdeintegral do adulto. A equipe de atenção primária, por sua vez, beneficiou-se “com osinstrumentos, a retaguarda, o conhecimento da área de saúde mental”.

A partir de 1987, no horizonte das mudanças anunciadas pelo Sistema Único de Saúde(SUS), então em gestação, o CSEB passou por uma reformulação, deslocando a ênfase daatenção integral para a preocupação com uma maior cobertura, maior produtividade e recortemais preciso do objeto das ações. Identifica-se, aqui, o segundo momento da história do CSE.

No plano concreto, a reformulação implicou uma restrição das consultas individuais,que, no modelo de atenção integral, eram extensas e minuciosas.

As antigas consultas abriam espaço para que o usuário tratasse de temas da vida comotrabalho, sexualidade e família, e, dessa forma, não só o “problema” de saúde aparecia nocontexto maior da história de vida, mas, também, aparecia ou podia aparecer como talhadopara uma abordagem psicológica, para a qual contribuíam as supervisões e interconsultas com aequipe de saúde mental.

No novo modelo, com a focalização clínica das consultas, as questões da vida migrarampara os grupos que se tornaram frequentes. Houve, ainda, o estabelecimento de prioridades noatendimento com base em estudos epidemiológicos. O serviço organizou-se em torno deprogramas voltados para grupos específicos: crianças, idosos, mulheres, adolescentes.

Um dado importante dessa reformulação é a passagem da gestão do CSEB da Secretariade Saúde do Estado para a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Issotrouxe a estrutura departamental comum nas instituições universitárias, bem como certamultiplicidade de propostas teóricas e práticas, e de interesses também usuais na estruturadepartamental.

No período de 1987 a 1994, em que se consolidou a proposta de atenção organizada emprogramas prioritários e grupos específicos, do ponto de vista da coordenadora do Projeto SãoRemo, a saúde mental experimentou uma espécie de “retrocesso” na colaboração com os outrosprogramas do CSEB: as consultas individuais, sendo mais restritas, clínicas, não deixavamespaço para as vivências da população que passaram a ser discutidas nos grupos deenvelhecimento, “de ser mulher”, “de ser homem”, entre outros. Essas mudanças reduziram asoportunidades de contato com a equipe de saúde mental e de encaminhamento da clientela.

Da perspectiva da atenção básica, representada pela coordenadora do Projeto SãoRemo, teria havido uma psiquiatrização do setor de saúde mental. O termo e o fenômenopsiquiatrização são contestados pela equipe de saúde mental como característico deste período.

É importante, talvez, fazer um comentário sobre a polissemia da expressãopsiquiatrização e o que ela parece denotar naquele momento da relação entre atenção básica esaúde mental no CSEB. Para a coordenadora do Projeto São Remo, a psiquiatrização nomeia ummaior isolamento e fechamento da saúde mental em seu serviço, que, como explicitadoanteriormente, foi resultado, também, das escolhas feitas por um modelo de atendimentoclínico na saúde do adulto que “pedia” menos sua colaboração direta. Ao mesmo tempo, asaúde mental passou a receber encaminhamentos de casos graves ou dos casos mais graves. Narelação com a atenção primária, a saúde mental tornava-se cada vez mais uma especialidade,atendendo o indivíduo “doente” e enfatizando diagnóstico e tratamento.

O sentido que a coordenadora do Projeto São Remo deu à expressão e sua localizaçãocomo fenômeno no tempo foram diferentes daqueles entendidos pelas profissionais de saúdemental, que lembram que os atendimentos do programa eram, naquela época, mais completos,incluindo psicoterapia e terapia ocupacional, e não exclusivamente psiquiátricosconvencionais.

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Para elas, sempre houve valorização de um modelo de atenção pública em saúdemental, e a chamada psiquiatrização é mais recente, estando relacionada ao aumento dademanda, ao desaparelhamento do distrito, desde o ano 2000, ao crescimento da população eda prevalência de problemas de saúde mental, à maior incidência de violência no território e àdiminuição do número de profissionais do CSE.3 Incide no quadro atual de psiquiatrização omaior conhecimento e a busca da população pela saúde mental. Este quadro compele aoatendimento psiquiátrico como forma de responder às urgências e ao sofrimento da populaçãoque não pode esperar pela melhoria da rede de referências ou pela recomposição das equipesdesfalcadas.

Na visão da atual coordenadora do Programa de Saúde Mental, naquele segundoperíodo, houve uma separação entre saúde mental e os outros programas do CSEB, mas nãopsiquiatrização da prestação do serviço.

O terceiro momento corresponde à experiência do CSEB com o Programa de Saúde daFamília.

Saúde mental e Programa de Saúde da Família

A ideia do PSF foi rejeitada pelo CSE em 1995/1996, pois havia, em seu interior,posições críticas ao programa, e nas discussões sobre o tema as posições contrárias forammajoritárias. Em 1998, houve uma experiência “inspiradora” com a figura das doulas: práticatradicional em alguns lugares da África, em que mulheres “leigas” acompanham parturientes.

E, então, em 2001, quando o programa começava a ser implantado de modosistemático na cidade de São Paulo,4 a posição inicial de rejeição foi revista, levando-se emconta que o caráter de escola do CSEB “obrigava” a conhecer o PSF, mas, também, sugeria aadoção de um modelo próprio, diferente do modelo hegemônico na rede municipal. Tratou-se,para o centro escola, de ter um experimento com o PSF, constituindo-se, no entanto, comocontraponto crítico e de produção de conhecimento sobre o programa.

O CSEB exibe uma condição de relativa autonomia que produz efeitos interessantes:no caso da implantação do PSF, parece claro que esta deve se articular à perspectiva dosProgramas que vige como orientação geral da prestação de serviços. Essa maneira de agiracontece na contramão das mudanças feitas na lógica de “terras arrasadas”, em que umaproposta nova deve substituir integralmente formas de organização e práticas existentes. Acapacidade de negociar a entrada de novidades vindas das políticas públicas conservandosentidos e vínculos pré-existentes que enlaçam trabalhadores, modos de fazer e pensar eusuários, parece ser uma lição que este centro de saúde escola ensina. Renovar preservando éalgo bastante estranho à intermitência das políticas que, por isso, muitas vezes transpiram aideia de que em saúde está-se frequentemente começando do zero.

A proposta negociada no interior do CSEB entre os diferentes departamentos e com aPrefeitura pautou-se pela inserção do PSF na programação do CSEB, configurando uma espéciede equipamento misto (PSF e atenção primária tradicional) que, na ocasião, foi aceito pelagestão municipal, mas que vem sendo, muitas vezes, motivo de tensão entre o equipamento e aPrefeitura.5

3 Durante a realização da pesquisa, o Programa de Saúde Mental contava com uma psicóloga prestes a se aposentar e umaterapeuta ocupacional, sendo os psiquiatras e auxiliares de enfermagem maioria na composição da equipe.

4 Em função dos oito anos das gestões de Paulo Maluf e Celso Pitta na Prefeitura de São Paulo (de 1993 a 2000), com a adoção doPlano de Atendimento à Saúde (PAS), a implantação do SUS e do PSF só ocorreu de modo sistemático e contínuo a partir dogoverno de Marta Suplicy, que começou em 2001.

5 No final de 2009, o CSEB sofreu com a remoção, pela Prefeitura, de médicos fundamentais para garantir a capacidade de

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No lugar da formação de equipes mínimas de saúde da família – médico, enfermeira,auxiliar de enfermagem e seis agentes comunitários – como referência para grupos de 600 a 800famílias do território de uma unidade, regra no PSF, o CSEB incorporou doze agentes que,compondo uma única equipe, trabalham com as famílias moradoras de uma favela da região. Osmoradores da favela recebem cuidados de acordo com alguns princípios do PSF, especialmenteno que diz respeito a visitas domiciliares e ações comunitárias. No equipamento, no entanto,são atendidos nos programas de saúde como o restante dos usuários da região. Ou seja, nãoexistem entradas diferenciadas, coexistindo a atenção primária tradicional e a experiência comos agentes comunitários no espírito do PSF. A atenção básica, nesse caso, articula-se numespaço de invenção entre princípios do PSF e a organização em programas da atenção primária.

A presença dos agentes comunitários, segundo a coordenadora do Projeto São Remo,abre duas frentes de trabalho interessantes: a) a promoção de saúde com as visitas domiciliarese as ações comunitárias; e b) a assistência primária domiciliar (APD), envolvendo outrosprofissionais na ida às residências para a dispensa de cuidados especiais.

O projeto com os agentes foi tornando visíveis dimensões da atenção básica noconfronto entre as proposições das leis e sua colocação em prática. A independência relativa doCSEB em relação às metas e cobranças de produtividade vindas dos gestores de governopermite experimentar essas dimensões de maneira mais aproximada daquilo que foioriginalmente idealizado, valorizando elementos como: a) registros escritos do trabalho dosACSs, com a confecção de prontuários de família detalhados; b) formação em serviço, com aoportunidade de participação dos ACSs em vários e diferentes tipos de supervisão e reuniões detrabalho; c) ênfase nas atividades de promoção de saúde, equacionando as visitas domiciliaresde acordo com as necessidades concretas, e não em função de alvos quantitativos definidos deforma abstrata, e, nessa direção, as visitas domiciliares são pensadas como devendo “render”para a proposição de atividades comunitárias;6 e d) aproveitamento de informações dadinâmica da comunidade, das relações de vizinhança, das relações de poder trazidas pelosACSs, ajudando a compor o quadro mais amplo dos problemas em que a saúde da família seapresenta.

Por outro lado, como devem integrar-se à programação do CSEB, os agentes acabammobilizando maiores participação e inserção do CSEB na favela e, ainda, provocam umtrabalho intersetorial, constituindo-se como fatores de articulação entre os programas e ações.

Neste terceiro momento, destacado pela experiência singular com o PSF, a saúdemental participou na seleção e no treinamento dos agentes comunitários, na construção deperguntas específicas sobre saúde mental no cadastro geral das famílias, na elaboração de umcadastro de saúde mental, na composição das equipes de Assistência Primária Domiciliar(APD) e na supervisão dos ACSs em saúde mental.

Na visão da supervisora de saúde mental, há dois aspectos que interessam à saúdemental no PSF: a) a seleção e o treinamento dos agentes comunitários; e b) a introdução dequestões sobre saúde mental no cadastro geral das famílias.

No cadastro geral, foram introduzidas três perguntas sobre saúde mental: a) internaçõespsiquiátricas pregressas; b) problemas com álcool e/ou drogas; e c) sofrimento emocional de

cobertura. Naquela ocasião, houve uma mobilização dos trabalhadores e usuários e a criação de um Conselho Popular, instância departicipação democrática e aberta que não existia no centro de saúde desde 2003. A mobilização em defesa do CSEB e aperspectiva de início de uma reforma em suas dependências físicas trouxeram “um horizonte de esperança e recuperação do serviçopara 2010”. Em 2010, a reforma teve começo, sem que os atendimentos fossem suspensos. Ao mesmo tempo, houve aconcretização da passagem de sua gestão para uma organização social que, sob muitos aspectos, abre um período de instabilidade eincerteza sobre os destinos do CSEB. Atualmente, a reforma das dependências físicas está quase pronta, e as negociaçõesenvolvendo a gestão do CSEB pela organização social estão em curso. Na saúde mental, persiste a necessidade de contratação deprofissionais, embora esteja em andamento a contratação de um(a) psicólogo(a) para o lugar daquela que se aposentou.

6 Cabe notar esta concepção da visita domiciliar como, também e principalmente, uma espécie de observatório e indicador dasnecessidades da comunidade que podem e devem ser tratadas em atividades coletivas.

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algum tipo. Caso haja resposta afirmativa a uma ou mais dessas perguntas, procura-sepreencher um segundo cadastro específico da saúde mental.

Os dois cadastros são preenchidos pelos agentes comunitários a partir de conversascom as famílias nas visitas domiciliares.

Essa tarefa demanda um refinamento da percepção dos agentes quanto aos problemasemocionais da população. O setor de saúde mental espera que os agentes detectem os casosgraves e sejam sensíveis aos casos menos graves que passam despercebidos. A formação emserviço, ensejada principalmente pela supervisão, tem esta função de afinar a percepção dosproblemas e sua gravidade e aprimorar o modo de contatar e conversar com os outros.

No âmbito do Programa de Saúde Mental, as mudanças introduzidas pela presença dosagentes comunitários incluem aumento de frequência de usuários da favela ao programa,inclusão de questões postas à saúde mental pela comunidade, uso do prontuário/família paraatendimento, pesquisa e ensino no setor, visão mais ampla dos pacientes no contexto familiar,necessidade de fazer atendimento domiciliar psiquiátrico e/ou psicológico e realização dealguma atividade comunitária, ainda segundo a supervisora de saúde mental.

Nos comentários da equipe de saúde mental sobre a presença dos agentes comunitáriosdestaca-se a avaliação de que eles tornam mais visíveis algumas contradições do CSEB etensões entre a população e o sistema de saúde; entre o que é a vida, suas dores e dificuldades,e o que é a doença.

A troca com os agentes é valiosa, enriquecendo o trabalho na saúde mental, queenxerga a necessidade de valorizar seus aportes ricos em informações sobre a comunidade.

As profissionais de saúde mental ainda tematizaram a formação identitária dos agentescomunitários: trata-se de profissão em situação de fronteira ou “não lugar”, sofrendo pressõespara se constituir em braço de vigilância do sistema de saúde, podendo resvalar para umaatividade interventiva. Notam que muitos agentes vêm procurando categorias profissionaismais bem definidas e com atividades profissionais mais confortáveis.

Devido à falta de formação, da qual a saúde mental participou de maneira mais amplano início da implantação do PSF no distrito do Butantã e da qual ainda participa no CSEB pormeio das supervisões, percebem que o perfil dos agentes não é mais político e tende a sercaritativo ou filantrópico, perdendo sua diretriz ideológica inicial: a ênfase na assistênciamédica e a medicalização têm ganhado terreno em relação à promoção da saúde.

Se na avaliação da coordenadora do projeto São Remo a presença dos agentescomunitários ajudou a estabelecer pontes entre os programas e setores do CSEB entre si e coma população, para a equipe de saúde mental, além disso, os agentes permitiram e permitem ocontato com dimensões e características próprias de um lugar precário, não hegemônico, com oqual é possível identificar tanto o campo da saúde mental como o CSEB.

O sofrimento das auxiliares de enfermagem da saúde mental assemelha-se aosofrimento dos agentes pela necessidade de construir limites para o trabalho, na relação diretacom população e suas demandas. E o sofrimento de todos da saúde mental advém, como aqueledos agentes comunitários, do lugar intersticial: “a saúde mental é o paraíso das contradições entreabrir a porta e o montante de questões que aparecem”, no dizer de uma médica da equipe. A saúdemental, tal como a atividade dos agentes, abre-se à configuração de um retrato dos problemasda população, pois ali tudo pode ser falado, reivindicado, expressado.

A relação com os agentes é boa porque amplia o acesso e “oferece remédio, ouvido,compreensão”, ainda, segundo a mesma médica. Mas, ao mesmo tempo, denuncia os impasses devisitar as famílias, descobrir as necessidades e depois não conseguir responder por falta de redee intersetorialidade, ou não conseguir dar continuidade ao atendimento.

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A posição “meio pária” do CSEB, por seu turno, permitiu que ele continuasse a fazerum trabalho consistente: “não estar em lugar nenhum tem o ônus de receber menos verba, mas temo bônus de experimentar com certa liberdade e manter uma referência com as origens”, considera amédica.

Esta experimentação está no cerne das práticas que enlaçam saúde mental, saúde dafamília e atenção básica, equipe de saúde mental e agentes comunitários de saúde na históriamais recente do CSEB.

Saúde mental, atenção primária e atenção básica

A entrevista com a coordenadora do Projeto de Saúde Mental do CSEB abriu umconjunto de comentários e interpretações articulando saúde mental, atenção primária eatenção básica. Uma análise sócio-histórica das políticas públicas de saúde mental no Brasil(Pereira, Rizzi & Costa, 2008), somada à singularidade da situação do Programa de SaúdeMental no CSEB, dá o tom para as questões desde aí suscitadas.

O modelo do Programa de Saúde Mental no CSEB foi, desde sua construção inicial, deatenção primária. Como explicado anteriormente, tratou-se da instalação de uma equipe desaúde mental como porta de entrada para a clientela de uma unidade básica de saúde, nestecaso um centro de saúde escola.

Este modelo é filiado à estrutura piramidal tradicional de prestação de serviços emsaúde, reformulada, no Estado de São Paulo, no governo de Franco Montoro (1983-1987), nobojo da reforma assistencial que antecedeu o SUS. Nela, se buscava inverter a pirâmide dasatenções primária, secundária e terciária, que, na saúde mental, era composta por uma baseínfima de atenção primária, seguida de um miolo mediano de atenção secundária e um topolargo e robusto de atenção terciária, representado pelos hospitais psiquiátricos. A inversãoaspirava diminuir o “parque manicomial” e aumentar o atendimento ambulatorial e a atençãoprimária nos centros de saúde e unidades básicas.

Na sequência, houve certa concomitância da reforma sanitária que instituiu o SUS e oPSF e a reforma psiquiátrica, que, como vertente da luta antimanicomial, centrou suas forçasno desmancho do setor terciário. Esses dois movimentos, até certo ponto paralelos, incidemsobre a ideia e as práticas de atenção primária em saúde mental e a permanência do Programade Saúde Mental no CSEB encarna e expressa muitos dos problemas e preocupações destaconvergência.7

A reforma psiquiátrica de cunho antimanicomial realiza, pouco a pouco, a substituiçãodos hospitais psiquiátricos pelos Centros de Atenção Psicossocial (CAPSs) que devem “ segurarpacientes que poderiam ser internados” e “fazer um trabalho de desinstitucionalização, de inclusão, dedesestigmatização que evitaria que o resto da sociedade internasse”. Os CAPSs são destinadosàquelas pessoas com “transtornos graves” e provocam a preocupação com o atendimento damaioria da população que sofre com “transtornos moderados ou leves”.

Paralelamente, o avanço do PSF, a partir de 2001, na cidade de São Paulo, tende aretirar as equipes de saúde mental das unidades básicas ou, o que dá no mesmo, tende a fazerdesaparecer a saúde mental como atenção primária.

Na configuração atual da política de saúde, ainda na visão da coordenadora doprograma de saúde mental, as pessoas com “transtornos moderados e leves” que ficaram “sem

7 Sobre os temas da reforma psiquiátrica, do SUS e do PSF ver: Cohn (2005, 2009), Junqueira (2001), Luzio e L’Abbate (2006),Schmidt (2004) e Viana e Dal Poz (2005).

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lugar” podem e devem ser cuidadas pelas equipes de PSF, contando com o apoio dosprofissionais de saúde mental como retaguarda. Trata-se do modelo de matriciamento dosNúcleos de Apoio à Saúde da Família (NASFs) que deverão se articular em torno de duaspráticas principais, juntando equipes de PSF e especialistas: supervisão e discussão de casos ecorresponsabilidade em alguns atendimentos.

Na crítica desta coordenadora, nesta situação, destacam-se alguns pontos cruciais: a)na atenção básica, com o PSF, a saúde mental transforma-se em especialidade, enquanto naatenção primária era e é uma porta de entrada específica; b) na atenção básica a saúde mentalmatricia, principalmente, médicos, enfermeiros e agentes comunitários numa perspectivamédico-assistencialista – a saúde mental reduz-se a uma especialidade médica; c) a saúdemental como matriciadora de PSF corre o risco de só poder oferecer ou sugerir remédio e “vidasocial” (participação em atividades socializantes dos mais diversos tipos); d) o matriciamentocorre o risco de tornar-se atendimento em saúde mental, porque os profissionais da área podemficar tentados a assumir a prestação de serviço no lugar das equipes de PSF “despreparadas”para tal empreitada ou porque os próprios profissionais de saúde mental não foram formadospara atuar no território como apoiadores.

No CSEB, tendo em vista seu caráter de unidade mista e a singularidade dessa“mistura” que não é propriamente feita de atenção primária e equipes de PSF, mas, sim, como jáfoi explicado, da inserção dos agentes comunitários na programação de saúde, o Programa deSaúde Mental encara uma experiência dupla: de um lado, o atendimento da população emgeral, atendimento que vem se tornando mais psiquiátrico, medicamentoso, conservando,contudo, grupos de terapia ocupacional e alguma agenda para psicoterapias individuais; deoutro, a relação com os agentes comunitários de saúde.

Na relação com os agentes comunitários de saúde, atualizam-se perguntas epreocupações derivadas da análise da política atual. Alguns exemplos: a) a preocupação emidentificar e distinguir os problemas de saúde mental e suas gravidades norteando o tipo deformação e de informação que constitui a supervisão e o tipo de ação possível no âmbito deuma combinação peculiar de atenção primária e básica; b) o estudo de casos difíceis tomadocomo ocasião de aprendizagem tanto para a equipe de saúde mental quanto para os ACSs; c) atentativa de entender o que é um ACS atendendo um “caso de psicose”; d) a provocação docuidado em saúde mental como prevenção e o risco de medicalização da população e damentalidade dos ACSs, entre outras.

Se é verdade que o Programa de Saúde Mental vem se psiquiatrizando, o contato com osagentes comunitários introduz uma tensão nessa psiquiatrização.

As supervisões e a formação, estando intimamente ligadas, oferecem um terrenofecundo para compreender do que é feita essa tensão.

Supervisão em saúde mental: formação e confronto

A tensão anteriormente referida pode ser descrita, num primeiro momento, como entreum modelo de serviço de saúde mental composto por atendimento psiquiátrico, psicológico egrupos de terapia ocupacional aos quais a clientela se acomoda, ou não, e um convite que vemdos ACSs e da comunidade para um movimento do serviço no sentido de ler e compreendernecessidades não contempladas pelo modelo.

Nas entrevistas com a supervisora de saúde mental e com os ACSs e, também, nasobservações das supervisões, foi possível distinguir uma série de demandas, por assim dizer,dirigidas do programa de saúde mental aos ACSs e, destes, ao programa que se destaca dos

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objetivos formativos principais, que são ensinar os agentes a diferenciar níveis de gravidade dostranstornos mentais e ensinar como falar sobre e se aproximar do sofrimento emocional junto àpopulação.

Se, por um lado, a supervisão promove o refinamento da percepção e da compreensãodos agentes sobre o sofrimento emocional, por outro, os agentes respondem aumentando avisibilidade dos casos graves e acolhendo os casos moderados e leves, exercendo uma função devigilância e ampliando a esfera de influência da saúde mental: a colaboração muda o perfil dosagentes e altera, também, o conhecimento do programa de saúde mental sobre a populaçãoatendida pelo PSF, no que diz respeito tanto ao acesso a “casos” que de outra forma nãochegariam ao setor quanto à oportunidade de entendê-los no contexto mais abrangente dafamília e da comunidade ou bairro.

A construção de vínculos é condição para as ações de cuidado dos agentes com apopulação e, ao mesmo tempo, objeto de um cuidado dispensado aos agentes nas supervisões.

Os agentes que têm casos falam, algumas vezes os colegas participam, outras a conversapermanece entre aquele que trouxe o caso e a supervisora. Esta, por sua vez, intervém,sobretudo, com perguntas sobre a visita domiciliar, informações sobre como a ciência médicaleria o caso relatado e orientações para a ação dos agentes.

Os comentários têm, por um lado, o sentido de provocar ou ensinar os agentes a “fazerfalar” o sintoma: se o usuário fala em depressão ou ansiedade, é preciso aprender a perguntarsobre a experiência singular daquela ansiedade ou depressão.

Há ênfase na necessidade dos agentes acercarem-se do que vive o usuário, sob a capade uma palavra tomada do repertório médico. Alguns agentes fazem isso com desenvoltura e/oudeparam com usuários dispostos a falar; outros parecem não ter clareza sobre o sentido desse“fazer falar”, sentem dificuldade em perguntar e/ou se defrontam com usuários calados oureservados.

Essas dificuldades remetem ao espaço problemático onde a condução adequada detarefas de cuidado depende de qualidades subjetivas e pessoais cuja aquisição não é possível pormeio de um treinamento instrumental.

A supervisão é uma prática com vocação para acolher e trabalhar subjetivamente asimplicações dos vínculos de cuidado. No entanto, precisa lidar com a questão delicada denegociar condições nas quais trabalhar a si mesmo para trabalhar possa ser assumido comopropósito formativo. A tensão entre treinamento e formação perpassa a supervisão.

Um agente, por exemplo, aponta que o formulário de saúde mental não ésuficientemente minucioso em relação às perguntas e questões nas quais o setor estáinteressado. Parece que a forma mais administrada da supervisão ou da relação da saúde mentalcom os agentes reflete-se, aqui, na relação de exterioridade deste agente com a aplicação doquestionário, mas, também, a reclamação pode sugerir uma maneira de defender-se deste estiloe denunciá-lo: a “acusação” ao questionário encobre ou protege as dificuldades encontradaspelo agente e, ainda, denuncia seu desejo de contar com um apoio melhor para entrevistar osusuários. Um questionário “melhor”, “mais completo”, serve, talvez, como metáfora dessedesejo.

Os comentários da supervisora contemplam, ainda, ensinamentos sobre comodiagnosticar sem estigmatizar, comparações e aproximações entre saberes da ciência médica ecrenças populares e considerações sobre a “normalidade” de certas “anormalidades”.

Os diagnósticos ou informações diagnósticas são tratados com precaução, tentandoevitar sua apropriação como estigma ou sinal de anormalidade.

As histórias trazidas pelos agentes são oportunidades para a apresentação das visõesmédicas e psiquiátricas. Como legendas, explicam e inscrevem as histórias no léxico

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especializado: “chamamos isso de somatização”; “trata-se, sim, de uma depressão, que pode estarassociada ao enfarte, pois há pesquisas que mostram alto índice de depressão depois de acidentes ouoperações cardiovasculares”; “o uso de anfetaminas é comum em caminhoneiros e pode levar àansiedade, associada ao estresse da própria profissão”.

O saber especializado enseja certo tipo de entendimento das histórias, de valorcientífico e, portanto, considerado útil aos agentes. Essa espécie de informação associa-se aoutro tipo de intervenção formativa que busca assinalar o valor de algumas crenças para oimaginário popular. Essas crenças têm uma tradução ou explicação científica, na maioria dasvezes.

Uma senhora que diz ser tomada por espíritos foi um exemplo anotado em supervisão.A supervisora frisa que, na experiência daquela mulher, os espíritos são organizadores potentes,e é preciso respeitar esta crença; para a psiquiatria, porém, há pessoas que têm facilidade paraentrar em um estado alterado de consciência e ficam, então, em transe. Esses estados podem sermodos de lidar com conflitos, nos quais a pessoa se evade, desmaiando ou dissociando.

O exemplo ilustra uma comparação, uma colocação em paralelo: necessidade derespeitar a religiosidade e modos de pensar e sentir próprios da experiência religiosa do usuárioe a explicação científica para os mesmos fenômenos. Essa colocação em paralelo enseja ainterrogação sobre a pertinência de um tratamento religioso para os transes, mostrando apresença de abertura para acolher formas de cuidado de outras esferas sociais e culturais.

Existe, também, uma preocupação da supervisora de colocar certos “mecanismos” ou“fenômenos” psicológicos como comuns a todos, como recurso pedagógico para combater opreconceito e a estigmatização por parte dos agentes em relação a usuários.

É ilustrativa uma referência da supervisora à ambivalência de sentimentos como baseda conduta de uma mulher que permanece com o marido que a espanca. A ambivalência écomum, segundo a supervisora, acontecendo “com todos nós”: “queremos por uma parte e nãoqueremos por outra”. A mulher que apanha do companheiro e continua com ele, portanto,expressa algo comum, normal.

Os meios formativos – transmissão de informação científica e de pesquisa, orientaçãoquanto à importância de os agentes fazerem os usuários falar de suas experiências em relaçãoaos sintomas, ênfase no discurso de respeito às práticas e concepções religiosas, atenção aocaráter excepcional ou anormal de certas condutas e sentimentos dos usuários, buscandoatenuar eventuais preconceitos – fazem pensar que os agentes ouvem do supervisor que épreciso respeitar os valores culturais e religiosos da população e, ao mesmo tempo, aprender asinterpretações para o sofrimento e para os fenômenos oferecidas pela ciência, bem comodesenvolver uma atitude receptiva às múltiplas e diversas maneiras de cuidar.

Essa orientação evidencia o lugar fronteiriço do agente comunitário que o coloca comointermediário e tradutor na relação entre o sistema de saúde e as populações assistidas.

Na supervisão, os agentes são convidados a falar, trazendo os casos ou oferecendo asinformações que a equipe de saúde mental pede.

Existe pouca intervenção dos agentes no relato e na discussão dos casos de seuscolegas. Porém, é frequente intervirem contando o que sabem sobre alguém ou alguma família.São especialmente dispostos para contar as histórias de vida dos indivíduos e famílias queconhecem: por que o irmão de “fulana” apanhou na rua? O agente não sabe. Mas os colegasimediatamente contam que ele brigou no bar, quebrou a perna do filho de não sei quem e levouo troco.

Quando se trata de interpretar ou compreender o caso, alguns são mais ativos,elaborando suas percepções e recomendações. Uma agente relata o caso de uma moça que

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apanha do marido e atribui seu nervosismo e depressão à situação de vida que está passando enão vê necessidade de atendimento psiquiátrico. As psiquiatras concordam.

Outros arriscam interpretações e oferecem informações, dados históricos que vãocompondo o contexto ou o quadro de vida de um usuário ou de sua família.

A participação dos agentes nas supervisões, além do oferecimento de informações ehistórias e do relato e discussão de tarefas estabelecidas nesse coletivo, como, por exemplo, aaplicação de cadastro de saúde mental ou a realização de uma visita domiciliar com algumpropósito singular, inclui falas próprias de interpretação e compreensão dos casos e algumaconfrontação ou resistência às interpretações especializadas.

Em alguns momentos, diferentes interpretações são confrontadas: uma senhora temdores por causa de problemas ósseos, como artrite, artrose, bico de papagaio, tendinite; quandoa supervisora aventa a possibilidade de somatização e do uso evasivo das dores, uma agenteprotesta dizendo que a senhora sente mesmo as dores que diz sentir. A “psicologização” pareceuà agente uma espécie de afronta ao sofrimento físico.

O saber dos agentes aparece, ocasionalmente, na forma condensada de provérbios emáximas. Trata-se da sabedoria associada ao senso comum que remete à elaboração daexperiência de vida de coletividades feita em tempos muito prolongados:8 uma agente concordacom o encaminhamento de uma usuária para uma atividade com a expressão “mente vazia éoficina do diabo”.

A esses modos de saber fazer juntam-se valores, traduzindo julgamentos. A “casabagunçada” elucida o julgamento que associa a desarrumação da moradia com a da família.

Os agentes comunitários entendem que seu trabalho ajuda sobremaneira a diminuir opreconceito da população em relação ao serviço de saúde mental e faz crescer o interesse e ademanda por esse serviço.

Uma opinião comum aos agentes é a de que o cuidado em saúde mental acaba seconcentrando muito na medicação. Para eles, haveria necessidade de psicoterapia, de conversa,porque as doenças “da cabeça” são diversas daquelas do corpo para as quais os remédiosbastariam. Veem que a população tem medo de ficar dependente do remédio, embora mostreatitudes híbridas de medo e desejo.

Os ACSs, por sua vez, acham que a loucura e o sofrimento mental estão mais ligados aum modo de ser dos indivíduos ou às histórias de vida do que a uma doença. Por isso, também,o remédio que é útil para o corpo pode ser insuficiente ou mesmo ineficaz para a “cabeça”.

Em sua crítica ao cuidado dispensado pela equipe de saúde mental, aparece, portanto,aquela sobre o uso de remédios e a observação de que os pacientes do setor passam anostomando medicação sem, no entanto, melhorarem de forma definitiva: “passam anos e anostomando remédio, com períodos de melhora intercalados com crises”, observa uma agente.

A equipe de saúde mental também demonstra preocupação com o uso intenso eexclusivo de medicamentos: por um lado, quando enfrenta a demanda alta, acaba medicandocomo uma maneira de aliviar um sofrimento presente que não encontra outro lugar, deconversa, onde ser cuidado; e, por outro, na formação dos agentes, procurando torná-loscapazes de dar continência ao sofrimento, embora, em grande parte, trate de habilitá-los paraperceber e informar os problemas da comunidade.

A visão epidemiológica da saúde mental, diferenciando transtornos leves, moderados egraves, é um organizador potente das ações de cuidado e de formação dos agentes.

Os agentes parecem não experimentar dificuldade na identificação dos chamados casosgraves, exuberantes na produção de sintomas como delírios e alucinações e que impressionam

8 Sobre essa questão ver Benjamin (1936/1985).

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pelo estranhamento e, algumas vezes, medo que provocam. Estes, sem dúvida, para eles,requerem consultas psiquiátricas.

Os chamados casos leves ou de média gravidade já oferecem maior dificuldade paradiferenciar. No entanto, na abordagem desses casos, foi possível presenciar, por parte dosagentes, um trabalho de reflexão sobre o sentido do sofrimento atribuído, na maioria das vezes,às histórias de vida, e não a uma doença. Revela-se nos agentes a percepção aguda de efeitosemocionais e afetivos de vidas difíceis e a concepção do sofrimento expresso nas depressões,ansiedades e sintomas psicossomáticos, principalmente como modos de responder àsdificuldades intransponíveis da vida.

A percepção dos problemas da saúde mental provoca maneiras de dizer interessantes,que guardam uma certa distância em relação à nomenclatura psiquiátrica. Alguns exemplos:“conversa certinho, mas está muito agitado”; “parece normal, por fora”.

As ponderações das agentes, nas supervisões, faziam, frequentemente, o papel decontraponto às tentações da medicalização, remetendo às formas de existência social e familiara origem do que tenderia a ser interpretado como doença de um indivíduo, embora oschamados transtornos graves, as psicoses, fossem lidos mais comumente como a doença dealguém.

Há, em certo sentido, uma expectativa da saúde mental quanto à atuação dos agentesno âmbito da vigilância, e estes, por seu turno, esperam que a saúde mental possa dar conta dosproblemas encontrados. Mas a supervisão não se reduz à confrontação dessas expectativas,apresentando-se como exemplo profícuo de prática em que a convivência de saberes é possível,gerando, algumas vezes, formas de cuidado peculiares e adequadas e, outras, a certeza de quehá um longo caminho de construção entre atenção básica e saúde mental a percorrer.

Referências

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Atenção básica e saúde mental: experiência e práticas do Centro de Saúde Escola Samuel B. Pessoa

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Endereço para correspondê[email protected]

Recebido em: 15/04/2012Revisado em: 30/11/2012

Aprovado em: 04/12/2012

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Campo de atuação do(a) psicólogo(a) nomovimento da Economia Solidária no Brasil

Iara Lais Raittz Baratieri1 e Marilene Zazula Beatriz2

Universidade Tecnológica Federal do Paraná (Curitiba, PR)

Esta pesquisa teve como objetivo levantar a atuação do profissional de psicologia no espaço do movimento daEconomia Solidária no Brasil. Trata-se de um estudo exploratório com base em um levantamento de dados de fonteprimária, que foram submetidos a análise estatística descritiva. A amostra foi composta por 123 sujeitos, sendo 26homens e 97 mulheres. Levantou-se que grande parte dos(as) psicólogos(as) atua em entidades de apoio junto acoletivos informais, incubadoras tecnológicas, cooperativas populares e associações de trabalho. Os temas maistrabalhados no âmbito comportamental são: relações interpessoais, autogestão, tomada de decisões, conflitos,disseminação dos valores da cooperação e participação; e no âmbito técnico são: gestão básica, inserção do produtono mercado, desenvolvimento local e consciência crítica sobre o trabalho assalariado.

Palavras-chave: Trabalho, Economia solidária, Psicologia do trabalho, Psicologia comunitária, Atuação do psicólogo.

The role of psychologists in the solidarity economy movement in Brazil

This study aims to get the professional performance in the movement of Solidarity Economy in Brazil. This is anexploratory study based on data collection of primary source, which were submitted to statistic and descriptiveanalysis. The sample was composed by 123 subjects (26 males and 97 females). It was found that most part of thepsychologists works on support agencies, technological incubators, popular cooperatives and working associations.The themes more worked on the behavioral ambit are: interpersonal relationships, self-management, decision-making, conflicts and spreading the values of cooperation and participation; and on technical ambit are: basicmanagement, insertion of the product in the market, local development and critical conscience about employment.

Keywords: Work, Solidarity economy, Work psychology, Community psychology, Role of the psychologist.

Introdução

presente pesquisa teve como objetivo levantar a atuação do profissional de psicologia nomovimento da Economia Solidária no Brasil. A Economia Solidária está aqui entendida

como uma forma de fazer economia baseada em valores como: autogestão, cooperação,democracia, solidariedade, respeito à natureza, valorização do ser humano, distribuição derenda e uma forma de organização do trabalho que busque a inclusão e o fomento para acriação e/ou fortalecimento de políticas públicas que se contraponham ao sistema econômicocapitalista (Cartilha da Campanha Nacional de Mobilização Social, 2007; Coser & Cortegoso,2007; Lima, 2008; Singer, 2002).

A

O interesse por ligar a atuação do profissional da Psicologia (como área deconhecimento) e a Economia Solidária (como campo de atuação) ocorreu quando se começoua questionar sobre a formação do psicólogo face às exigências específicas dessa forma deorganização do trabalho versus o crescimento de empreendimentos econômicos solidários noBrasil. Da mesma forma, constatou-se a baixa publicação de estudos científicos quecontemplassem tal atuação. Nesse sentido, optou-se pela realização de uma pesquisa quepudesse mapear a atuação e a formação dos(as) psicólogos(as) atuantes, ou que já atuaram, naEconomia Solidária.

1 Psicóloga formada pela Universidade Tuiuti do Paraná. Bolsista do Programa de Iniciação Científica em 2010/2011.

2 Professora adjunta na área de Psicologia da Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Professora Colaboradora do Mestradode Psicologia da Universidade Tuiuti do Paraná.

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Campo de atuação do(a) psicólogo(a) no movimento da Economia Solidária no Brasil

Com relação à formação dos(as) psicólogos(as), observa-se que dispõem, em suamaioria, de modelos e estratégias clássicas, utilizadas nas áreas tradicionais da psicologia clínica,educacional e organizacional. Entretanto, para se trabalhar com a Economia Solidária,partindo-se das demandas das comunidades e, mais especificamente, dos grupos de trabalhosinformais, das cooperativas populares, das associações, das feiras de economia solidária, entreoutros formatos dessa organização de trabalho, necessita-se de uma instrumentalização teóricae ideológica diferenciada. A área da Psicologia Organizacional e do Trabalho, por exemplo,utiliza-se de técnicas e de instrumentos direcionados para o trabalhador do modo de produçãocapitalista. É nisso que apoiam-se Coutinho, Beiras, Picinin e Lükmann (2005, p. 10) quandocomentam que “os métodos tradicionais da psicologia do trabalho, construídos nos setores derecursos humanos das organizações de grande porte, não são compatíveis com as organizaçõessolidárias”.

Então, qual deveria ser a postura ético-política, bem como a instrumentalização doprofissional da psicologia, para se trabalhar com a Economia Solidária? Concorda-se comVeronese e Guareschi (2005) que é preciso um profissional habilitado para auxiliar nastransformações da subjetividade durante o processo de construção da cultura da solidariedade;o processo de constituição dos grupos para os empreendimentos; o processo de mudança daheteronomia para a autonomia; a “micro-política das relações laborais” (p. 66) para oesclarecimento de conceitos como democracia, política e ações; bem como o desenvolvimentode relações intrafamiliar, grupal e comunitária. É necessário, portanto, que haja um processopermanente de autocrítica desse profissional para evitar que a Economia Solidária se subordineà lógica do capital. Segundo Spink (2004), isso requer uma psicologia comprometida com aação social que se dispõe a assumir os fenômenos da coletividade e a se inserir nos processos docotidiano. Nesse sentido, é necessária uma psicologia preocupada com a emancipação, umaciência responsável e atuante no processo de desalienação do indivíduo e dos grupos sociais.

Por isso, esta pesquisa tem como objetivo compreender a atuação do(a) psicólogo(a) noespaço do movimento da Economia Solidária no Brasil, tendo em vista seu desenvolvimentonas duas últimas décadas. Para melhor organização do artigo, optou-se por dividi-lo da seguinteforma: na primeira parte, revisam-se brevemente algumas abordagens teóricas sobre aEconomia Solidária, bem como a atuação do profissional de psicologia; na segunda, apresenta-se a metodologia de pesquisa propriamente dita; e, na terceira, discutem-se os resultados dareferida pesquisa, além das considerações finais.

Economia Solidária

A Economia Solidária propõe uma lógica de funcionamento da economia que deve sersolidária em vez de competitiva (Lima, 2008; Rosenfield, 2003): deve privilegiar o coletivo aoindividual. No entanto, uma das grandes dificuldades encontradas pelo movimento daEconomia Solidária é que se vive em uma sociedade em que predominam os valores dacompetitividade e do individualismo, dificultando sobremaneira a introdução da culturasolidária, por significar enfrentar inúmeras contradições e superar algumas delas. O excesso decompetitividade e ambição gerou impactos sociais, ambientais, culturais e econômicosdevastadores, a ponto de exigir uma grande e eficiente soma de esforços para sua reversão. Osindivíduos estão tão habituados a agir individualmente que a articulação eficiente de açõescoletivas acaba se tornando um grande desafio (Arroyo, 2008).

No entanto, segundo Singer (2002), a solidariedade na economia

só pode se realizar se ela for organizada igualitariamente pelos que se associam para produzir,comercializar, consumir ou poupar. A chave dessa proposta é a associação entre iguais emvez do contrato entre desiguais. Na cooperativa de produção, protótipo de empresa

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Solidária, todos os sócios têm a mesma parcela do capital e, por decorrência, o mesmodireito de voto em todas as decisões (p. 9).

Apesar de o cooperativismo ter surgido no Brasil no início do século XX, trazido pelosemigrantes europeus, é somente com a crise econômica social das décadas de 1980 e 1990,provocada, em parte, pela abertura de mercado para empresas multinacionais, pelo aumento dodesemprego estrutural causado pela tecnologia, pela demissão de milhões de trabalhadores epelo aumento da exclusão social, que o movimento cooperativo, por meio da EconomiaSolidária, renasceu no Brasil (Singer, 2002).

Para alguns, a Economia Solidária surge como uma forma de combater asconsequências advindas do modelo de produção capitalista. É uma maneira que ostrabalhadores encontraram de aumentar/obter sua renda, de incluir-se novamente no mundodo trabalho. Os empreendimentos econômico-solidários passam a ser, então, uma oportunidadede resgate da dignidade humana e do desenvolvimento de autoajuda e ajuda mútua.

Para outros, o movimento da Economia Solidária propõe, em seu bojo, a superação domodelo capitalista, deixando de ser apenas uma reação da sociedade frente à falta de emprego,pois isso fatalmente a transformaria em mais uma forma complementar da economia capitalista(Singer, 2002). Já Souza (comunicação pessoal, 28 de março de 2006) acredita que astransformações da sociedade ocorrem simultaneamente ao sistema hegemônico, sendoconstruídas a partir do sistema vigente até alcançar maturidade suficiente para se transformardefinitivamente. Essa transformação deve vir embasada por um processo educativo que leve aspessoas a refletirem sobre os princípios da Economia Solidária, principalmente aquelaspopulações excluídas do sistema que, aliadas aos movimentos sociais, buscam resgatar aautoestima e reagir contra o assistencialismo.

Nesse sentido, a área de conhecimento da psicologia pode contribuir sobremaneira; porexemplo, a psicologia comunitária, que, historicamente, esteve voltada para os grupospopulares. A psicologia comunitária pode, então, aparecer no cenário da Economia Solidáriaprivilegiando o trabalho com grupos, colaborando com a formação e o incremento daconsciência crítica, para a construção de uma identidade social e individual (Freitas, 1996,citado por Brito & Figueiredo, 1997).

Já a psicologia organizacional e do trabalho, inicialmente conhecida como psicologiaindustrial, surge no fim do século XIX e início do século XX. Conforme Zanelli e Bastos (2004),esta área da psicologia está associada à crescente industrialização que ocorreu nos paísesocidentais dominantes e sua tarefa central pode ser resumida em explorar, analisar ecompreender como interagem os grupos, as pessoas e as organizações. Tem a finalidade deconstruir estratégias e procedimentos que possam promover, preservar e restabelecer aqualidade de vida e o bem-estar das pessoas (Zanelli & Bastos, 2004).

No entanto, sua forma de atuação não leva em consideração a exclusão social e odesemprego, pois atua para atender à lógica do capital, quando implanta nas empresas:processos de recrutamento e seleção excludentes; avaliações de desempenho que visam àmelhoria do desempenho empresarial; treinamentos e políticas de desenvolvimento em buscada melhoria da qualidade dos produtos; programas de qualidade de vida que, em últimainstância, visam a manutenção da empresa e não a do trabalhador; trabalhos em equipe com oobjetivo de unir os trabalhadores para o alcance de maior lucratividade. Ou seja, o foco maior éa empresa. Os trabalhadores e a trabalhadoras são peças dessa engrenagem, os quais, enquantoúteis ao processo produtivo, serão tratados como “colaboradores”. Caso contrário, poderão serfacilmente descartados.

Nesse sentido, buscar uma psicologia do trabalho vinculada à visão da psicologia sociale comunitária se faz importante, por ter sua história voltada para trabalhos com o coletivo e,

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Campo de atuação do(a) psicólogo(a) no movimento da Economia Solidária no Brasil

assim, implica a melhoria das relações sociais, tentando uma consciência crítica e ofortalecimento desses sujeitos e da comunidade.

Esta pesquisa levantou os dados para a compreensão da atuação do(a) psicólogo(a) noespaço do movimento da Economia Solidária e, para isso, utilizou-se de um instrumento paramediar essa aproximação, conforme descrito na metodologia a seguir.

Metodologia

Participantes

A população desta pesquisa compreendeu os(as) profissionais psicólogos(as) atuantes,ou que já atuaram, com a Economia Solidária no Brasil. A amostra foi composta por 123sujeitos, sendo 26 do sexo masculino e 97 do sexo feminino, com idades entre 22 e 60 anos.

Instrumento

Esta pesquisa se constituiu em um estudo exploratório com base em um levantamentode dados de fonte primária (questionário virtual). Os dados secundários subsidiaram aelaboração do questionário “Psicólogos(as) atuantes em Economia Solidária”, a partir dolevantamento de material bibliográfico; da participação em fóruns regional e estadual; decartilhas de mapeamento de empreendimentos solidários no Brasil (2005 e 2007); daparticipação no III Encontro Estadual de Economia Solidária e na I Feira Universitária deEconomia Solidária da Universidade Tuiuti do Paraná; e de fôlderes e materiais publicitáriossobre Economia Solidária.

O questionário foi dividido em blocos de perguntas abordando: o Perfil do(a)Psicólogo(a) (dados pessoais, região onde se formou em psicologia, tempo de experiência empsicologia, formação em outras áreas) e a Atuação do(a) Psicólogo(a) com a EconomiaSolidária (tempo de experiência em Economia Solidária; como conheceu a Economia Solidária;participação em fóruns regionais e estaduais; relato das atividades, facilidades e dificuldadesencontradas; tipo e natureza do empreendimento; temas trabalhados; linha teórica adotada;motivação para trabalhar com Economia Solidária; disciplinas oferecidas na graduação; equestões relacionadas à natureza do empreendimento em que o(a) psicólogo(a) atua, ou jáatuou). O questionário foi elaborado para ser respondido tanto pelo profissional que estavaatuando quanto pelo que já atuou com Economia Solidária. A construção do questionáriopassou por dezesseis alterações até sua finalização. Durante a elaboração, foram realizadostestes do instrumento de pesquisa com duas profissionais de Letras, duas de Psicologia e umprofissional da área de Informática da Universidade Tuiuti do Paraná, além de seis alunos docurso de Psicologia da mesma universidade.

Procedimentos

O referido questionário foi encaminhado, por um link, aos contatos levantados a partirde pesquisa nos sites do Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES), buscando os contatoscom os fóruns regionais e municipais (totalizando 130 contatos); dos Conselhos Regionais dePsicologia; de entidades nacionais de psicologia (vinte); de cooperativas e redes de EconomiaSolidária; de cursos de Psicologia em âmbito nacional; da Associação Brasileira de Ensino dePsicologia; da Secretaria de Estado do Trabalho e Emprego; do Conselho Nacional deDesenvolvimento Científico e Tecnológico (Currículo Lattes: 257 contatos de psicólogos epsicólogas que trabalham com Economia Solidária); além de algumas universidades doterritório brasileiro e órgãos envolvidos com Economia Solidária.

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Obteve-se o retorno de 480 respondentes, sendo que, destes, somente 123 foramconsiderados válidos, por motivos variados: respondente não ser psicólogo(a), não terexperiência em Economia Solidária, não terminar de responder ao questionário, o sistema nãogravar as respostas etc.

A coleta de dados ocorreu em três momentos. O primeiro aconteceu entre agosto eoutubro de 2009, obtendo-se 52 questionários válidos, sendo 10 do sexo masculino e 42 dosexo feminino, com idades entre 22 e 60 anos. O segundo momento aconteceu entre junho de2010 e março de 2011, obtendo-se a amostra de 65 respondentes válidos, sendo 14 do sexomasculino e 51 do sexo feminino, com idades entre 22 e 60 anos. Por fim, o terceira momentoaconteceu entre março e outubro de 2011, com 6 respondentes válidos, sendo 2 do sexomasculino e 4 do sexo feminino, com idades entre 22 e 35 anos, todos profissionais atuantes, ouque já atuaram, na área de Economia Solidária no Brasil. Optou-se por repetir os momentos decoletas de dados devido ao alto grau de questionários considerados não válidos, bem como àdificuldade para se encontrar os referidos profissionais.

Finalmente, a análise dos dados baseou-se na amostra de 123 sujeitos, sendo 26 do sexomasculino e 97 do sexo feminino, obtida durante os três momentos de coletasupramencionados.

Análise dos dados

Os dados referentes às questões fechadas foram submetidos a análise estatísticadescritiva, que teve como objetivo a descrição das características dos(as) psicólogos(as)atuantes, ou que já atuaram, com Economia Solidária no Brasil, sendo possível a construção dequadros e gráficos que demonstraram objetivamente os dados coletados, visando a suadiscussão. Os dados referentes às questões abertas foram categorizados e organizados por meiode quadros.

Conforme o objetivo da presente pesquisa, a partir da amostra de 123 psicólogos(as)atuantes, ou que já atuaram, com Economia Solidária no Brasil, foram encontrados os seguintesresultados.

O número de psicólogos(as) respondentes atuantes, ou que já atuaram, na EconomiaSolidária é predominantemente do sexo feminino, sendo 97 psicólogas e 26 psicólogos. Esteresultado pode estar relacionado ao fato de que a Psicologia é uma profissão exercidapredominantemente por mulheres, como mostra uma pesquisa realizada pelo InstitutoBrasileiro de Opinião Pública e Estatística, Ibope (2004) sobre o perfil do psicólogo brasileiro,em que, em um total de 2000 entrevistados, 91% eram do sexo feminino e apenas 9%, do sexomasculino. Sendo assim, nossa pesquisa corrobora os dados do Ibope.

Figura 1: Perfil do psicólogo quanto a idade. Fonte: Questionário “Psicólogos(as) atuantes em Economia Solidária”

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Com relação à idade dos(as) psicólogos(as), 58,4% da amostra tem até 35 anos, comomostra a figura 1. De acordo com a pesquisa realizada pelo Ibope (2004), a maior parte dospsicólogos brasileiros tem entre 26 e 35 anos de idade (35%).

Figura 2: Perfil do psicólogo quanto a escolaridade. Fonte: Questionário “Psicólogos(as) atuantes em Economia Solidária”

Em relação ao nível de escolaridade, 28% dos respondentes possui apenas a graduaçãocompleta, seguido por 16% dos sujeitos que possuem mestrado completo e 14% comespecialização incompleta, conforme apresentado na figura 2. É importante observar que emPsicologia encontram-se profissionais altamente qualificados, com 26% dos respondentes commestrado (completo e em andamento) e 18% dos sujeitos com doutorado completo eincompleto. Ainda entre os respondentes, 19 pessoas afirmaram que possuíam outra formaçãoem cursos de graduação, como: Administração, Assistência Social, Design de Produto, Designde Interiores, Economia, Enfermagem, Engenharia Eletrônica, Filosofia, Geografia,Matemática, Pedagogia, Turismo, Terapia Ocupacional, Letras e Direito.

Figura 3: Perfil do psicólogo quanto ao tempo de experiência na Psicologia. Fonte: Questionário “Psicólogos(as) atuantes em Economia Solidária”

O tempo de experiência em Psicologia tem como prevalência de 1 a 5 anos entre osrespondentes, como observado na figura 3. Isso pode estar relacionado ao fato de que a maioriapossui idade entre 22 e 30 anos e aos cursos de graduação em Psicologia terem duração mínimade 5 anos, o que explica o pouco tempo de experiência. Também se levantou, nesta pesquisa,que, dos 123 respondentes, 108 informaram a região onde se formaram em Psicologia: Sudeste(52%), Sul (34%), Nordeste (9,2%), Centro-Oeste (3,7%) e Norte (0,92%). Os estados maiscitados foram: São Paulo (26 incidências), Paraná (16), Minas Gerais (13), Santa Catarina (12)e Espírito Santo (11).

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Figura 4: Perfil do psicólogo quanto ao tempo de experiência em Economia Solidária. Fonte: Questionário “Psicólogos(as) atuantes em Economia Solidária”

O tempo de experiência em Economia Solidária, como observado na figura 4, temcomo prevalência de 1 a 5 anos (49%). Esses dados podem estar relacionados ao fato de que aEconomia Solidária é um movimento recente no Brasil, que revigorou no país com a criseeconômica social das décadas de 1980 e 1990 (Singer, 2002), quando os primeirosempreendimentos econômicos solidários começaram a ganhar mais destaque, tornando-se maiscomum a partir da metade da década de 1990, como resposta dos trabalhadores às novasformas de exclusão e exploração no mundo do trabalho (Coutinho et al., 2005).

Figura 5: Perfil do psicólogo quanto a como conheceu a Economia Solidária. Fonte: Questionário “Psicólogos(as) atuantes em Economia Solidária”

Dos entrevistados, 32% tiveram acesso à Economia Solidária como campo de atuaçãona graduação, por meio de conversas informais com o professor, conteúdo de disciplina, cursode extensão, estágio curricular e pesquisa (iniciação científica e trabalho de conclusão decurso). 20% dos sujeitos conheceram a Economia Solidária por meio de ONGs e/ou institutos.Observou-se que o grande fomentador de estudos sobre Economia Solidária é a graduação.Nesse sentido, é preciso pensar sobre a viabilidade dos cursos de Psicologia inserirem em seusconteúdos este campo de atuação e de conhecimento.

Quando perguntados se consideram importante terem tido uma disciplina comconteúdos de Economia Solidária durante a graduação, 51 respondentes concordaram, contra 7que não concordaram. No entanto, tivemos 65 pessoas que não responderam. As disciplinasmais citadas para se apropriar deste conteúdo, na opinião dos respondentes, foram: PsicologiaSocial (22 incidências), Psicologia do Trabalho (13), Psicologia Comunitária (3) e Sociologia,Educação e Processos Grupais (1 cada).

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Figura 6: Perfil do psicólogo quanto a motivos para não participação nos Fóruns Regional e/ou Estadual de Economia Solidária. Fonte: Questionário “Psicólogos(as) atuantes em Economia Solidária”

A Economia Solidária é um movimento político que busca políticas públicas junto aoEstado. Promoveu, nos anos de 2006 e 2010, duas conferências nacionais em que a sociedade,por meio dos três segmentos (entidades de apoio, empreendimentos econômicos solidários egestores públicos), foi convidada a participar de fóruns regionais e estaduais elegendo delegadospara as respectivas conferências nacionais. Pela amostra apresentada, os(as) psicólogos(as)mostraram-se medianamente atuantes em fóruns, com 115 respondentes que afirmaram teremparticipado de um ou mais fóruns, sendo 56 participações em fóruns regionais e 59 emestaduais, enquanto 67 não participaram de fóruns regionais e 64 dos estaduais, totalizando 131respondentes. Entre os motivos alegados para a não participação, encontraram-se os seguintes:indisponibilidade de tempo (19 incidências), desconhecimento (14), não ter oportunidade departicipar (10), não ter fórum em sua região (6), não trabalhar mais na área (5), não serconvidado (2) e já existir outra pessoa no grupo de trabalho responsável por representá-lo (2),conforme se observa na figura 6.

Esta pesquisa constatou que os(as) psicólogos(as) que participam do movimento daEconomia Solidária o fazem se posicionando fortemente no segmento das Entidades de Apoio,compreendidas como entidades que fomentam e apoiam a Economia Solidária, com 59% dosrespondentes; seguido pelo segmento dos representantes do poder público (federal, estadual,municipal e Distrito Federal), como gestores, administradores públicos, Poder Legislativo ePoder Judiciário (20%); organizações e ciências jurídicas, administrativas e organizacionais,com 12%; e o segmento dos empreendimentos econômicos solidários e suas organizações derepresentação, com 9%, conforme apresentado na figura 7.

Figura 7: Perfil do psicólogo quanto ao segmento de atuação na Economia Solidária. Fonte: Questionário “Psicólogos(as) atuantes em Economia Solidária”

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Figura 8: Perfil do psicólogo quanto ao tipo de empreendimento solidário em que atua no momento.Fonte: Questionário “Psicólogos(as) atuantes em Economia Solidária”

Já os tipos de empreendimentos solidários para os quais os(as) psicólogos(as) maisatuam, como observado na figura 8 acima, foram: grupo ou coletivo informal (24%),incubadoras tecnológicas (16%), cooperativas populares (12%), associação de trabalho (6%),feiras de Economia Solidária (3%), banco comunitário (2%) e os especificados pelosrespondentes no quesito “outros” (3%), tais como: entidade de fomento à Economia Solidária,pesca artesanal, assessoria de entidade de representação de empreendimento e fase deplanejamento de uma incubadora.

Figura 9: Perfil do psicólogo quanto à forma de atuação na Economia Solidária. Fonte: Questionário“Psicólogos(as) atuantes em Economia Solidária”

Em relação à forma de atuação do profissional, os respondentes puderam se posicionarem mais de uma resposta. Encontrou-se a seguinte distribuição: 17% alegaram atuar no grupono âmbito comportamental. Já na formação de agentes multiplicadores e na atuação no grupono âmbito técnico, foram 15%. Com pesquisas científicas, foram 13%. Além disso, 40% dossujeitos não responderam ou não atuavam no momento com a Economia Solidária, como sepode observar na figura 9.

A seguir, serão apresentados os temas desenvolvidos pelo profissional de Psicologiajunto ao empreendimento econômico solidário.

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Quadro 1: Temas trabalhados pelo(a) psicólogo(a) com o empreendimento econômico solidário noâmbito comportamental

Temas Incidência

Relacionamento interpessoal 16

Gestão cooperativa – autogestão 15

Formação dos cooperados: individual versus coletivo 14

Processo de tomada de decisão 14

Administração de conflitos 13

Acompanhamento do grupo – ouvir e orientar os participantes do empreendimento econômico solidário 13

Formação dos cooperados: competitividade versus cooperação 12

Formação dos cooperados: construção de autonomia 12

Aprender a conviver com as diferenças 12

Integração e união do grupo 11

Comunicação humana 10

Programa de saúde ocupacional 3

Manejo do estresse 2

Nota: Dados levantados do questionário “Psicólogos(as) atuantes em Economia Solidária”

Quadro 2: Temas trabalhados pelo(a) psicólogo(a) com o empreendimento econômico solidário noâmbito técnico

Temas Incidência

Gestão Básica – métodos e processos de produção em Economia Solidária 12

Inserção do produto no mercado 10

Desenvolvimento local 10

Relações de trabalho assalariado – consciência crítica sobre o mundo do trabalho 9

Comércio justo e solidário 6

A importância da rede de matéria-prima, produção, comércio, consumo e sustentabilidade 6

Plano de negócio – gestão básica 5

Organização de redes – integração entre campo e cidade 5

Inclusão social 5

Políticas públicas em Economia Solidária 5

Técnicas de separação e classificação de materiais recicláveis 4

Consumo consciente e solidário 4

Montagem do regimento do grupo cooperado 4

Uso da moeda solidária/comunitária 3

Marketing – divulgação e formação de preço 3

Planejamento estratégico 3

Transferência de tecnologia – informática 2

Microcrédito e finanças solidárias 2

Economia Solidária e EJA – educação emancipadora 2

Marco legal 2

Como abrir um empreendimento? 2

Mulher e a Economia Solidária 1

Contabilidade básica 1

Padaria comunitária 0

Nota: Dados levantados do questionário “Psicólogos(as) atuantes em Economia Solidária”

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Figura 10: Perfil do psicólogo quanto à linha teórica adotada para trabalhar com economia solidária.Fonte: Questionário “Psicólogos(as) atuantes em Economia Solidária”

Sobre a linha teórica utilizada, observada na figura 10, 22% dos(as) psicólogos(as)responderam o quesito “outras”, em que a maior incidência foi a teoria sócio-histórica, com 6incidências, seguido de psicologia social (5), análise institucional (4), psicologia social crítica(3), psicossociologia e psicodrama (ambas com 2), fenomenologia existencial, sistêmica epsicologia comunitária (1 cada).

Chama a atenção o alto número dos que não responderam (50%), levantando-se ahipótese de o(a) psicólogo(a) não ter clareza de que tipo de abordagem teórica utiliza em seucotidiano e/ou não estar sendo devidamente preparado pela graduação e/ou a graduação nãoperceber este novo campo de atuação, já que um alto índice de respondentes (55) disseram nãoter tido o conteúdo de Economia Solidária oferecido por nenhuma disciplina do curso, emoposição a apenas 14 pessoas que disseram ter visto este conteúdo em disciplinas como:Psicologia Comunitária (4 incidências), Psicologia do Trabalho e Psicologia Social (ambas com3), Psicologia Social do Trabalho, Relações Sociais do Trabalho, Psicologia Institucional ePsicologia e Movimentos Sociais (1 cada).

Conforme mencionado anteriormente, os respondentes se posicionaram de maneirafavorável à inclusão de uma disciplina com conteúdos de Economia Solidária na graduação,sendo as disciplinas de Psicologia Social e do Trabalho as citadas como mais adequadas.

Figura 11: Perfil do psicólogo quanto às técnicas utilizadas com a Economia Solidária. Fonte:Questionário “Psicólogos(as) atuantes em Economia Solidária”

A base da figura 11 difere das demais, pois os(as) psicólogos(as) atuantes na EconomiaSolidária utilizam-se de várias técnicas em sua atuação. São estas predominantemente:dinâmica de grupo (24%), diagnóstico do grupo (19%) e diagnóstico comunitário (16%).

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A partir das questões abertas em que se solicitava ao respondente que relatassebrevemente sua atual e/ou última experiência com Economia Solidária, levantaram-se asseguintes experiências, separadas por temas, respectivamente, nos quadros 3, 4, 5 e 6.

O item mais comentado foi o desenvolvimento da autogestão, sendo primordial para agestão de um empreendimento econômico solidário (quadro 3). Além disso, grande partedos(as) psicólogos(as) atua com resolução de conflitos interpessoais e/ou intergrupais. Umademanda premente é a contradição entre viver em um sistema capitalista e trabalhar em umaorganização solidária. Os valores são opostos, e as pessoas ainda não estão plenamentepreparadas para viver sob os princípios da Economia Solidária, sendo isso uma grande fonte deconflitos. As relações interpessoais e grupais são outros pontos fortemente trabalhados pelos(as)psicólogos(as), pois se tem um sistema que promove o trabalho coletivo e as decisões coletivas,e a convivência neste novo foco exige maior atenção da psicologia. Ainda no quadro 3,percebe-se que há mais demanda pelo tipo de relacionamento voltado para o nível grupal doque propriamente por questões que envolvam a formação política desses trabalhadores.

Quadro 3: Atividades desenvolvidas por psicólogos em relação ao acompanhamento e intervenção psicossocial do grupo de trabalho

Desenvolvimento da autogestão (autonomia, instrumentos de autogestão, processos de gestão coletiva do trabalho, gestão compartilhada)

Resolução de conflitos

Fortalecimento das relações grupais (formação de grupo, integração, estímulo a ações coletivas)

Relações interpessoais

Disseminação dos valores da cooperação, democracia, participação, solidariedade e visão coletiva; formar consciência participativa e inclusiva

Identidade (pertencimento), valorização do pessoal, autoestima, histórias de vida

Encaminhamento para psicologia clínica (plantão psicológico)

Comunicação humana (assertiva)

Aprender a atuar em rede (articulação em rede)

Tomada de decisão

Emancipação – empoderamento das pessoas

Cidadania

Grupos de reflexão tratando de temas de interesse do grupo

Negociação

Nota: Dados levantados do questionário “Psicólogos(as) atuantes em Economia Solidária”

Já no quadro 4, são relatadas as atividades desenvolvidas pelos(as) psicólogos(as) emrelação à intervenção técnica do grupo de trabalho, ou seja, todas as intervenções quecontemplem ações para o bom desenvolvimento do empreendimento econômico solidário emtermos do processo produtivo. Nesse sentido, os(as) psicólogos(as) podem atuar tanto napreparação das pessoas para desenvolverem a formalização de uma cooperativa ou associaçãode trabalho quanto na melhoria dos processos internos de produção, bem como decomercialização. É um trabalho fortemente desenvolvido por equipes multidisciplinares,principalmente em incubadoras tecnológicas de cooperativas populares e/ou entidades deapoios. Outro item forte desse processo perpassa por formação e capacitação, por meio depalestras, oficinas e cursos, com temas focados em refletir sobre a Economia Solidária, alémdaqueles que visam preparar os(as) trabalhadores(as) com formação técnica, objetivando amelhoria do produto final e a sustentabilidade de seu negócio em um mercado que nãocontempla os valores da Economia Solidária. Percebe-se que boa parte dos(as)trabalhadores(as), antes acostumados(as) a ter alguém “superior” para fazer a gestão daempresa, agora passa a ter de pensar, compreender e atuar de forma ampla e sistêmica em seu

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empreendimento econômico solidário, desde a aquisição da matéria-prima até acomercialização de seu produto.

Quadro 4 : Atividades desenvolvidas por psicólogos(as) em relação ao acompanhamento eintervenção técnica do grupo de trabalho

Formação de cooperativas/associações (formulação de estatuto social, orientação para formalização)

Condução de reuniões

Elaboração de atas e/ou relatórios

Encaminhamento de documentos à Junta Comercial

Registro de marcas junto ao INPI

Planejamento de empreendimentos e planejamento estratégico participativo

Organização do empreendimento (organização de documentação organizacional, do trabalho, da produção, da comercialização e de processos administrativos)

Gestão (controle financeiro, divisão lucros)

Aplicação de questionários diagnósticos

Formação e capacitação: palestras, cursos, oficinas, seminários (elaboração de materiais didáticos e cartilhas; desenvolvimento de metodologia de formação; alfabetização de trabalhadores – junto com pedagogo – qualificação para trabalhar com questões técnicas, tais como: cerâmica, reciclagem, inclusão digital e captação de recursos; formação em Economia Solidária, formação de preço e atendimento ao cliente)

Plano de negócios

Mediação e animação de trocas (clubes de troca)

Nota: Dados levantados do questionário “Psicólogos(as) atuantes em Economia Solidária”

Os profissionais de psicologia encontram no espaço das entidades de apoio(incubadoras, universidades e ONGs, por exemplo) forte entrada para desenvolver seutrabalho, conforme demonstra o quadro 5. Tais entidades de apoio aproximam não só os(as)psicólogos(as), mas também uma equipe multidisciplinar, dos grupos de trabalhadores queatuam sob os princípios da Economia Solidária. A questão que se coloca é se o profissional estásendo preparado na graduação para atuar com esta forma de organização social do trabalho.Quando perguntados se tiveram alguma disciplina relativa a Economia Solidária na faculdade,grande parte disse que não e que acha importante sua inclusão na grade curricular.

Quadro 5: Atividades desenvolvidas por psicólogos(as) atuantes em entidades de apoio (assessorias)

Elaboração de projetos para captação de recursos para os empreendimentos econômicos solidários (EES)

Busca de parcerias e outros profissionais para atendimento das necessidades dos EES

Mobilização popular, organização das pessoas para reivindicação de maior participação do poder público

Palestras, cursos e assessorias para ONGs, prefeituras e outros EES

Implantação de clubes de troca

Desenvolvimento de novos projetos de incubação com ou em parceria com outros órgãos do poder público (prefeituras, Ministérios) e o Terceiro Setor

Coordenação e/ou atuação junto a projetos de incubação já existentes

Intercâmbio com outras incubadoras

Realização de encontros na comunidade

Auxílio na organização das feiras de Economia Solidária

Realização de reuniões para relato de atividades, encaminhamentos administrativos, decisões coletivas e grupos de estudos da equipe executora

Participação em reuniões, assembleias, fóruns sociais – conferências regional e estadual de ES, articulação para implantação de fóruns intermunicipais, coordenação de rede de saúde mental e Economia Solidária

Participação no Conselho Orientador da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares

Nota: Dados levantados do questionário “Psicólogos(as) atuantes em Economia Solidária”.

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Campo de atuação do(a) psicólogo(a) no movimento da Economia Solidária no Brasil

Há também uma forte entrada do(a) psicólogo(a) em atividades de pesquisa eaprofundamento do tema, conforme demonstrado no quadro 6. Além de promoverem oaumento do conhecimento para outras esferas da vida social, os formatos metodológicos daspesquisas são de forma processual e de campo, refletindo sobre o movimento da EconomiaSolidária e suas interfaces, agregando, com isso, maior maturidade profissional para o campo deatuação.

Quadro 6: Atividades desenvolvidas por psicólogos(as) em pesquisas em Economia Solidária

Desenvolvimento de pesquisas de mestrado e doutorado (compreensão de aspectos subjetivos envolvidos no processo de formação de grupos de ES; compreensão da ação coletiva dos grupos; práticas de consumo; impacto da participação de pessoas em cooperativas populares de trabalho em outras esferas de sua vida social; pesquisa em empresas autorrecuperadas; banco comunitário; entre outros)

Participação em eventos científicos com apresentação de pôster, comunicação oral e publicação de artigos em anais de eventos

Elaboração de artigos científicos

Desenvolvimento de grupos de estudos

Discussão metodológica sobre intervenções em Economia Solidária

Nota: Dados levantados do questionário “Psicólogos(as) atuantes em Economia Solidária”

Observou-se que os quadros 3, 4, 5 e 6 acabam corroborando as atividades previamentecolocadas nos quadros 1 e 2.

Considerações Finais

Para alguns, a Economia Solidária não passa de uma proposta para combater asconsequências advindas do modelo econômico capitalista, incluindo os(as) trabalhadores(as)no mundo do trabalho. Para outros, é considerada um modelo econômico para superar ocapitalismo. Seja a Economia Solidária entendida como coadjuvante do sistema ou como ummodelo econômico, é importante compreender a atuação do(a) psicólogo(a) neste contextosocial.

O movimento da Economia Solidária é uma oportunidade de resgate da dignidadehumana e desenvolvimento de autoajuda e ajuda mútua, o que é essencial à saúde de todos osindivíduos, do ponto de vista da psicologia. Dessa forma, a atuação deste profissional torna-sede suma importância para trabalhar na prevenção e na promoção de saúde do trabalhador, nacapacitação e na conscientização dos membros do sistema cooperativo e na intervenção emquestões importantes que surgem no cotidiano, decorrentes da mudança a um sistema opostoao capitalista.

Os resultados desta pesquisa mostraram evidências de que a atuação do(a) psicólogo(a)na Economia Solidária está pautada no contato direto com os(as) trabalhadores(as) tendo emvista: a orientação no desenvolvimento da autogestão, a resolução de conflitos, ofortalecimento das relações grupais e também o assessoramento no diagnóstico e na gestão dosempreendimentos cooperativos. Além disso, mostraram-se fortemente empenhados em projetosde pesquisas e produção de conhecimento sobre a área da Economia Solidária no que tange àcompreensão dos aspectos subjetivos envolvidos no processo de formação de grupos deEconomia Solidária; às práticas de consumo; ao impacto da participação de pessoas emcooperativas populares de trabalho em outras esferas de sua vida social; à pesquisa em empresasautorrecuperadas; aos bancos comunitários; entre outros.

As áreas da Psicologia citadas como as mais adequadas para se trabalhar com estademanda foram a Psicologia Social e a Psicologia do Trabalho.

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Já com relação à área da Psicologia Organizacional e do Trabalho, urge que ela se volterealmente para o trabalho e o trabalhador. Pois, ao ver o trabalho e o trabalhador sob o modode produção capitalista, atuar-se-á visando a lógica do capital: o lucro, em detrimento do serhumano e da valorização do trabalho. Nesse sentido, serão privilegiados a exclusão, oindividualismo, a competição, a heterogestão (hierarquia), a concentração de renda, aconcentração do saber e, consequentemente, do poder, formando separações entre classes eacentuando as diferenças sociais. Por outro lado, ao ver o trabalho e o trabalhador sob o focodos princípios da Economia Solidária, se atuará na integração das pessoas, no coletivo, nacooperação, na solidariedade, na autogestão, na distribuição de renda, de saberes e de poder,visando uma relação social voltada para uma forma diferenciada de pensar a economia e omundo, no sentido de repensar os modos de produção, de comercialização e de consumo. Serábuscada, também, a melhoria das relações entre as pessoas e a natureza, além de mobilizar ascomunidades na busca de melhores condições de bem viver (Franco, 1988).

Percebeu-se que a atuação do(a) psicólogo(a) no movimento da Economia Solidária vaimuito além da resolução de conflitos em grupos, e isto é visível no relato de suas experiências.Na realidade, convive-se com situações muito contraditórias. Por isso, a mudança de valores ede atitudes se faz necessária, pois a ideia de que não há alternativas ao capitalismo conseguiuum nível de aceitação que provavelmente não tem precedentes na história do capitalismomundial. No entanto, nos últimos anos, essa situação começou a mudar, a partir dorenascimento do ativismo em favor de uma globalização contra-hegemônica. E, apesar dopassado recente do movimento da Economia Solidária para construir uma identidade e doresgate de um projeto histórico, é necessária maior aproximação da psicologia com os atoressociais desse movimento, para o estabelecimento de estratégias de resgate da cidadania e daconsciência coletiva, estimulando a reflexão dos(as) trabalhadores(as) sobre seu potencialcomo agentes de mudança e autores de suas próprias histórias.

Referências

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Endereços para Correspondê[email protected], [email protected]

Recebido em: 10/05/2012Revisado em: 22/10/2012

Aprovado em: 25/10/2012

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Entre o atender e o ser atendido: políticas em saúdepara o trabalhador do serviço público

Zelma Borges de Souza1 e Lélia Marília dos Reis2

Secretaria da Fazenda do Estado da Bahia (Salvador, BA)

As relações do mundo do trabalho repercutem nos processos saúde/doença do servidor público. Nosso propósito foicompreender como são percebidas as políticas em saúde do trabalhador do serviço público. Apresentamos relatos derepresentantes de sete instituições públicas de um município do sudoeste da Bahia. Os relatos foram mediados apartir da seguinte questão norteadora: “Fale-me de sua experiência na área da saúde do trabalhador e como vocêpercebe essa política no município e no órgão no qual você está inserido”. Os dados foram analisados a partir dométodo fenomenológico, tendo emergido sete categorias: 1) estruturação dos serviços: institucionalizar os serviçosna rede de saúde municipal; 2) ações e diretrizes: divulgação sobre o tema; 3) equipes e serviços: registro deadoecimentos relacionados ao trabalho; 4) atenção à saúde do servidor público por meio de políticas públicas:carência de ações; 5) principais demandas em saúde do trabalhador: LER-DORT, transtornos mentais; 6) limites edificuldades: burocracia, mudanças de gestores; 7) Ausência de protocolo e planejamento: ações pontuais.Conclusão: necessidade de ampliação de ações visando à saúde do servidor público e dar visibilidade a essanecessidade, por meio de dados mensuráveis e de divulgação. Indicação de ampliação de espaço para discussãodentro das instituições públicas.

Palavras-chave: Políticas públicas, Saúde do trabalhador, Servidor público.

Between the meeting and being met: health policy for public service workers

The relationships in the work world reflect upon the health/disease processes of public servants. Our purpose was tocomprehend how the policies within Public Service Occupational Health are viewed. We present reports byrepresentatives of seven public institutions from a municipality in southwestern Bahia. The reports were mediatedfrom the following question: “Tell me about your experience in the occupational health field and how you view thispolicy in the municipality and in the agency in which you are”. Data were analyzed through the phenomenologicalmethod with the emergence of seven categories: 1) structuring of services: institutionalization of services in themunicipal health network; 2) actions and guidelines: diffusion on the subject; 3) teams and services: registration ofwork-related illnesses; 4) health care for public servants by means of public policies: lack of actions. 5) mainoccupational health demands: RSI/WRMSD, mental disorders; 6) limits and difficulties: bureaucracy, managers’replacements; 7) lack of protocol and planning: specific actions. Conclusion: need for expanding actions by aimingat public servants’ health and providing visibility for this need through measurable data and diffusion. Indication oflarger space for discussion within public Institutions.

Keywords: Public policies, Occupational health, Public servant.

Pré-reflexivo

ercorremos um caminho que nos conduziu a buscar a compreensão do fenômeno daspolíticas em saúde para o trabalhador do serviço público. O interesse pelo tema emergiu

com os estudos na disciplina Saúde do Trabalhador, oferecida na graduação em Psicologia. Aescolha do tema aconteceu também pela aproximação do assunto com a vida profissional dapesquisadora, que atua como servidora pública. A partir do contato com pessoas que trabalhamnessa área, foi possível observar a incidência de adoecimento físico e psíquico, além doadoecimento de muitas pessoas que nem sempre encontram tratamento adequado ou

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1 Psicóloga, Secretaria da Fazenda do Estado da Bahia.

2 Doutora em Psicologia pela FFCLRP/USP e Mestre em Ciências Médicas pela FMRP/USP. Pesquisadora do grupoSexualidadeVida – CNPq/USP.

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informações que permitam a compreensão do que sentem, de forma que possam lidar melhorcom o sofrimento relacionado ao trabalho.

A administração dos serviços públicos abrange uma extensa área de atividades e umavasta gama de formas de execução. O servidor público trabalha em benefício da coletividade, emuitos servidores exercem a função de fiscalizar as condições de trabalho de outras pessoas,visando à promoção e à proteção da saúde. Este estudo tem a intenção de conhecer mais sobrea saúde desse trabalhador, pois entendemos que o serviço público exige o cumprimento deregras definidas e formalidades expressas, com rigidez e alto grau de controle, que podemrefletir no indivíduo, repercutindo no processo saúde/doença. Adiciona-se a esses aspectos aexperiência de lidar com o público, que traz demandas diversas.

Reconhecemos que os trabalhadores privados também sofrem e que têm carência depolíticas em saúde, mas, diante do exposto e uma vez que são propostas políticas públicas parao setor público, quisemos averiguar como os trabalhadores percebem essas políticas e, nessesentido, como as ações e as produções sobre o tema da saúde do servidor alcançam servidoresdas esferas municipal, estadual e federal. Portanto, é o servidor público e os investimentos emsua saúde – por meio de políticas públicas – que compõem nossas indagações, tendo comoobjetivo específico o fenômeno investigado: como são percebidas as políticas em saúde dotrabalhador do serviço público por servidores públicos de uma região do sudoeste da Bahia.

Para permitir a compreensão desse fenômeno, traçaremos, neste artigo, o seguintetrajeto: inicialmente, apresentaremos uma exposição sobre o mundo do trabalho e, em especial,o do servidor público. Em seguida, discutiremos o conceito de saúde e as relações desta com otrabalho. Buscaremos contextualizar a área de saúde do trabalhador no Brasil e,especificamente, a do servidor público, expondo sobre as políticas existentes, sua história,organização e o funcionamento dos serviços correspondentes.

Na sequência, faremos a apresentação do método desta pesquisa. Em seguida,apresentaremos a análise compreensiva dos relatos, relacionando-se com as reflexões teóricas.Por fim, apresentaremos nossa conclusão, fazendo uma reflexão acerca das possibilidades deampliação dos cuidados com a saúde do trabalhador do serviço público.

Contextualização do fenômeno

O mundo do trabalho

A reestruturação produtiva, a internacionalização e abertura das economias e aintegração mundial dos mercados são conformações econômico-político-sociais que vêmcausando profundas transformações nas relações de trabalho, conforme Merlo e Lapis (2007).Segundo estes autores, tais mudanças se ampliam a partir dos anos 1970, quando teve início aTerceira Revolução Tecnológica, que ainda está em curso.

O trabalho ocupa grande parte da vida, permite o estabelecimento de relações e maiorou menor valorização social. Antunes (2005) afirma que, no capitalismo contemporâneo, otrabalho permanece com papel central nas relações sociais e na manutenção do capitalismo, eque as transformações que aconteceram, como as da tecnologia e as da informática, apenastrouxeram mudanças nas formas de exploração e acumulação do capital. Pesquisas sobre essasnovas relações de trabalho apontam para um agravamento do adoecimento do trabalhador: “Asprofundas transformações do modelo econômico vêm atingindo, de forma acelerada ediferenciada, sobretudo na última década, amplos setores da população trabalhadora” (Gomez& Thedim-Costa, 1999, p. 412).

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O mundo do trabalho atual preconiza uma noção de competência que traz em seu bojoo aumento da pressão e da competição, além da exploração da subjetividade do indivíduo. Deacordo com Machado (2007), “dos trabalhadores, além do encargo de alimentar as máquinas,passou-se a demandar a mobilização subjetiva de seus recursos pessoais – saberes, capacidades eatitudes – como condição de participação e integração na nova dinâmica produtiva” (p. 282).Sennett (1999) aborda a flexibilização das relações de trabalho, que traz consequências para otrabalhador – como a exigência de ser polivalente, a perda de direitos trabalhistas e o aumentoda jornada de trabalho –, que, muitas vezes, são estendidas ao espaço de fora do trabalho,gerando insegurança e influenciando suas relações.

Mendes e Araújo (2011) denunciam a perversão dos novos modelos de gestão e seusefeitos sobre a saúde dos trabalhadores, salientando o desamparo e a solidão, originados dasfalsas promessas da gestão pautada na qualidade total, na ideologia da excelência e na lógicaprodutivista: “Os modos de organização do trabalho, no contexto do capital flexível, têmconduzido à desestruturação dos coletivos de trabalho, a uma carência de solidariedade econfiança e a um enfraquecimento dos laços sociais” (Mendes & Araújo, 2011, pp. 15-18).

Antunes (2005) aponta que a precarização das relações de trabalho aliena e infelicita oser social e que é essencial o reconhecimento dessas relações para que o trabalho exerça seupotencial emancipador. Compreendemos que esses autores abordam a questão da captura dasubjetividade e da necessidade de compreensão dessas relações, de forma que articulam-se comDejours (1992), quando este analisa que a experiência no mundo do trabalho pode gerar o piore o melhor, mas que isso depende da capacidade de pensar as relações entre subjetividade,trabalho e ação.

O mundo do trabalho do servidor público

Objetivando conhecer as peculiaridades da administração pública e do mundo doservidor público, buscamos uma compreensão da estrutura organizacional do Estado.

Meirelles (2008) explica que a estrutura da administração pública compreende aadministração direta e a administração indireta; a primeira compõe-se de órgãos comsubordinação direta ao executivo, que são os Ministérios, as Secretarias de Estado e asSecretarias Municipais, respectivamente, das esferas federal, estadual e municipal. Aadministração indireta compreende a atividade administrativa dos serviços públicos do Estadotransferida para outra entidade por ele criada: são as autarquias, as fundações e as empresaspúblicas. Nestes espaços denominados “instituições públicas”, atuam os trabalhadores do setorpúblico ou servidores públicos. Para Dallari (1989), “servidor público é quem trabalha para aadministração pública em caráter profissional, não eventual, sob vínculo de subordinação edependência, recebendo remuneração paga diretamente pelos cofres públicos” (pp. 15-17). Oingresso desse servidor no serviço público acontece de maneira formal, por meio de regrasestabelecidas, mediante concurso público, como prescreve o artigo 37, inciso II, daConstituição da República Federativa do Brasil (Brasil, 2006).

No entanto, acompanhando as mudanças ocorridas com a reestruturação produtiva,depois da década de 1970, surgem novas formas de ingresso no serviço público, coexistindouma variedade de categorias e formas diversas de vínculo empregatício, como o concursado, oocupante de cargo de confiança e o prestador de serviço contratado por terceirização.

Saúde do trabalhador

Percebemos que o tema saúde do trabalhador tem sido objeto de estudos einvestimentos em setores que compreendem a necessidade de investir na promoção da saúdedos empregados, com o objetivo de obter melhoria no seu desempenho e no desempenho da

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organização. Conceitos como qualidade de vida, ergonomia e programas de promoção da saúdetêm sido introduzidos no cotidiano das organizações. Constata-se que vários fatores podem terinfluência na saúde do trabalhador. Em consequência, ampliam-se os desafios e as dificuldadescom relação a um programa nacional de segurança e saúde do trabalhador, seja este do setorprivado ou do setor público: “Há avanços na universalidade e na descentralização de saúde,especialmente com a municipalização das ações e dos serviços. Mas ainda estamos a passoslentos quanto ao acesso, em razão da imposição de obstáculos para utilizar os serviços” (Brasil,2011).

Saúde é um tema abrangente, que pode ser enfocado sob vários aspectos. Partimos doentendimento de saúde com uma visão que ressalta os recursos sociais e pessoais e ultrapassa oconceito de ausência de doença. Utilizamos, para fundamentar esse entendimento,contribuição de Christophe Dejours3, sobre a relação saúde e trabalho. Ao estudar comoalgumas pessoas conseguem não adoecer nas relações de trabalho, ele argumenta que existemalgumas qualidades psíquicas que permitem o desempenho de determinadas funções que evitamo adoecimento (Dejours, 1992). Ele amplia a compreensão sobre saúde e a relaciona aotrabalho, ao afirmar:

A saúde, então, não é um estado natural, mas uma construção intencional, na qual otrabalho ocupa lugar importante. A construção da saúde está ligada a uma série derelações. De um lado, as relações interindividuais, para a construção da saúde no registrodo amor; de outro, as relações intersubjetivas coletivas, no campo do trabalho. A saúde deuma pessoa depende muito de seus colegas, assim como suas doenças. Nossa capacidade deresistir ou de ficar doente está intimamente relacionada à qualidade das relações detrabalho (Dejours, 1999, p. 98).

Nosso estudo parte da compreensão do processo saúde-doença do homem em suarelação com o trabalho como um fenômeno que sofre influência da cultura, da política, daeconomia e dos processos sociais mais amplos, conforme visão de Dejours (1986), para quem asaúde compreendida como um estado é um equívoco. Sato, Lacaz, Bernardo (2006) e outrosautores abordam igualmente a questão da saúde/doença e qualidade de vida no trabalho comuma perspectiva ampliada, que ultrapassa visões consideradas como limitadas:

[...] a abordagem assistencialista e hegemônica não dá conta de enfrentar as causas reais emais profundas das fontes de mal-estar dos trabalhadores... o modo mais apropriado parase construir uma concepção, baseada na realidade das organizações contemporâneas, éperguntar aos próprios trabalhadores, a todos os que atuam numa dada organização(Ferreira, 2011, pp. 109-110).

Considerando o atual mundo do trabalho, com relação ao trabalhador do serviçopúblico, Domingues Júnior (2005) avalia: “possuímos hoje um Estado muito mais complexo,abrangendo um sem número de atividades econômicas, que oferecem uma ampla gama deriscos à saúde e à segurança do trabalhador no serviço público” (p. 55). Santos-Filho (2007)discute as adversidades inerentes a esse setor:

[...] a própria instabilidade e adversidades habituais no trabalho no setor público [...]mobilizam e desestabilizam os investimentos e interesses dos trabalhadores,incessantemente provocando e desafiando [...] mesclando-se perspectivas e saídas“criativas”, “inventivas”, e também desgastantes, geradoras de sofrimento (p. 2).

A argumentação apresentada por esse autor sobre “perspectivas e saídas criativas”,coexistindo com perspectivas e saídas “desgastantes”, articula-se com Dejours (1992), ao

3 Dejours é médico do trabalho, psiquiatra e psicanalista. Propôs a “psicodinâmica do trabalho”, a partir dos anos 1980 na França, eestuda com um olhar amplo e integrador a organização do trabalho e seus impactos sobre a saúde do trabalhador.

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referir-se à forma como os trabalhadores enfrentam situações de angústia e insatisfaçãodecorrentes do trabalho. Entendemos que a existência de espaços de discussão e busca decompreensão são saídas produtivas, enquanto algumas alternativas ampliam o sofrimento porserem produzidas defesas individuais, como a competição entre os trabalhadores ou até oprocesso de culpabilizar-se por não conseguir lidar com as situações e adoecer. Investigar juntoao servidor público a percepção que este tem sobre o tema da saúde do servidor coincide com aproposta de Dejours, ao permitir que aconteça o processo de busca da compreensão por meioda fala.

Para uma maior compreensão do fenômeno analisado, traçaremos um perfil da área desaúde do trabalhador no Brasil.

Políticas de saúde do trabalhador no Brasil

O conceito de saúde do trabalhador surgiu como uma prática instituinte, com aproposta de transformar e compreender o processo saúde-doença nos trabalhadores, na décadade 1980 (Sato et al., 2006), quando, segundo Lacaz (2005), aconteceu o processo da ReformaSanitária Brasileira4 e a sociedade debateu amplamente o conceito de saúde. A relação dotrabalho com a saúde foi reconhecida como uma questão de saúde pública, sendo incluída naConstituição de 1988 como responsabilidade do Sistema Único de Saúde (SUS), com adeterminação de integrar as ações de vigilância dos ambientes de trabalho às de atenção àsaúde dos trabalhadores. Desse processo também resultou a 1ª Conferência Nacional de Saúdedo Trabalhador (CNST) (1986), a Assembleia Nacional Constituinte e a Constituição Federalde 1988, a Lei Orgânica da Saúde, de 1990 e a 2ª e a 3ª CNST. Com a criação do SUS em1988, a partir de 1990, ocorreu a regulamentação da organização e do funcionamento dosserviços de saúde (Lacaz, 2005; Sato et al., 2006).

Toda essa construção trouxe grandes avanços para a área de saúde do trabalhador, porpermitir discussões e resultar em uma ampliação de conceitos e objetivos. Uma vez definidos oarcabouço e as intenções para a área, o processo encaminhou-se no sentido da estruturação daárea de atenção à saúde do trabalhador no SUS, sendo definida em 2002, pela Portaria1.679/GM, a composição da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador noSUS (RENAST), que responde pela execução de ações curativas, preventivas, de promoção ede reabilitação à saúde do trabalhador brasileiro. A RENAST é composta por 178 CentrosEstaduais e Regionais de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST)5 e por uma RedeSentinela de serviços médicos e ambulatoriais de média e alta complexidade responsáveis pordiagnosticar os acidentes e as doenças relacionados ao trabalho e por registrá-los no Sistema deInformação de Agravos de Notificação – SINAN-NET (Brasil, 2010a). Componenteimportante da área de atenção à saúde do trabalhador, a Vigilância em Saúde do Trabalhador(VISAT), vinculada ao Ministério da Saúde, dirige ações de prevenção de agravos e promoçãoda saúde do trabalhador.6

4 Paim (2007) diz que a conquista da democracia em 1985 é que possibilitou o reconhecimento da saúde como um direito de todose dever do Estado, recomendando-se a organização de um Sistema Único de Saúde descentralizado e democrático. Diz que esseprocesso de democratização de saúde, naquela época, denominou-se Reforma Sanitária.

5 Portaria 1.679/GM, 2002 define: São dois os tipos de CERESTs: estaduais e regionais. Cabe aos CEREST regionais capacitar arede de serviços de saúde, subsidiar a formulação de políticas públicas, apoiar a estruturação da assistência para atender aosacidentes de trabalho e agravos contidos na Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho e aos agravos de notificação compulsória.Os CERESTs estaduais elaboram e executam a Política Estadual de Saúde do Trabalhador, acompanham a definição da RedeSentinela e a contribuição para as ações de vigilância em saúde (Brasil, 2010b).

6 Tem como metas: 1) Mapear o parque produtivo do município, quantificando as atividades econômicas e seus trabalhadores; 2)Implantar a Notificação Compulsória dos Agravos de Saúde do Trabalhador de acordo com a Portaria GM 777/2004; 3) Investigaros óbitos notificados no SINAM com causa mortis “Acidente de Trabalho”; 4) Implantar a Vigilância em Saúde do Trabalhadoratravés das fiscalizações nos ambientes de trabalho normatizada pela Portaria GM 3.120/1998 (Brasil, 2010d).

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Integrando atividades e setores, em maio de 2005, a Portaria Interministerial nº 800publicou o texto-base da minuta da Política Nacional sobre Saúde e Segurança do Trabalho(PNSST). Esta política é desenvolvida em esfera interinstitucional pelo Ministério da Saúde,integrada com o Ministério do Trabalho e Emprego e com o Ministério da Previdência Social.Compreende a atenção integral à saúde, a articulação intra e intersetorial, a participaçãopopular, o apoio a estudos e a capacitação de recursos humanos (Brasil, 2010c).

A Política Nacional sobre Saúde e Segurança do Trabalho é descentralizada entreestados e municípios. Na Bahia, a Secretaria da Saúde do Estado (SESAB) mantém o Programade Atenção à Saúde do Trabalhador e as seguintes unidades a ela vinculadas: DiretoriasRegionais de Saúde (DIRES); Centro Estadual em Referência à Saúde do Trabalhador(CESAT), criado em 1988 para atender às necessidades de assistência e prevenção de doençasocupacionais e acidentes de trabalho no âmbito do estado; Núcleos de Saúde do Trabalhador(NUSAT), que existem em alguns municípios e representam o CESAT. Buscamos, dessa forma,contextualizar a área de Saúde do Trabalhador, para ampliar a visão sobre essa realidade,demarcando as políticas existentes e o funcionamento dos serviços (Bahia, 2010).

Políticas e discussões sobre a saúde do trabalhador do serviço público no Brasil

Buscando identificar novos referenciais sobre a saúde do trabalhador do serviçopúblico, identificamos ações que estão sendo desenvolvidas no âmbito do funcionalismopúblico federal. O Ministério de Planejamento lançou uma política que se expande entre osestados da federação: em 2009, foi instituído pelo Decreto nº 6833 o SIASS – SubsistemaIntegrado de Atenção à Saúde do Servidor, que reúne áreas de recursos humanos de órgãos doPoder Executivo, de órgãos federais dos estados e técnicos dos serviços de saúde, buscandoconstruir uma Política de Atenção à Saúde (Brasil, 2012a).

Para implementar a política, disseminar informações e capacitar os profissionais da redeSIASS, foram realizados Encontros Nacionais de Atenção à Saúde do Servidor – ENASS. Emoutubro de 2012 aconteceu o IV ENASS, abordando temas como a capacitação em Qualidadede Vida no Trabalho – QVT para a promoção da saúde dos servidores e o fortalecimento doSIASS (Brasil, 2012b). No estado da Bahia, existem unidades SIASS no Ministério da Fazendae na Universidade Federal da Bahia – UFBA, em Salvador (Brasil, 2012c).

Ao buscar aprofundar o conhecimento sobre o tema de saúde do servidor público,identificamos pesquisa da Universidade de Brasília (UNB), sobre gestão de qualidade de vidano trabalho (QVT) no serviço público federal, que investigou as práticas de QVT em dezórgãos públicos federais e apontou que permanecem pouco exploradas, sendo detectada umaabordagem de viés assistencialista, que tem no trabalhador a variável de ajuste (Ferreira, Alves& Tostes, 2009).

Foi criado no ano de 2007 o Laboratório de Psicodinâmica e Clínica do Trabalho(LPCT), na Universidade de Brasília. O LPCT realiza pesquisas e desenvolve a clínicapsicodinâmica do trabalho em empresas públicas e privadas, com base na clínica do trabalho eda ação conforme postulada por Dejours (1992). Mendes e Araújo (2011) apresentam atrajetória brasileira dessa prática e assinalam que as experiências em organizações privadas epúblicas encontraram diversas limitações, mas que abrem a possibilidade de o trabalhadorpensar nas relações de trabalho e de perceber que tem um papel a desempenhar nesse cenário.Outras produções realizadas no LPCT apontam que, no âmbito científico, a produçãobibliográfica sobre QVT, na ótica dos trabalhadores, é incipiente (Ferreira, Antloga, Ferreira &Bergamaschi, 2009).

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Objetivos

Conforme já explicitado, esta pesquisa objetiva perceber como as políticas propostassão percebidas por servidores públicos de uma região do sudoeste da Bahia e, nesse sentido,como ações desenvolvidas no âmbito do funcionalismo público federal e as produções sobre otema da saúde do servidor alcançam estes servidores das esferas municipal, estadual e federal.

Metodologia

Pesquisa fenomenológica

Em busca de um caminho que nos conduzisse até o fenômeno investigado – como sãopercebidas as políticas em saúde do trabalhador do serviço público –, elegemos a modalidadefenomenológica de pesquisa, por permitir acesso ao vivido, estando “voltada para o estudo darealidade social enquanto vivida na sua vida cotidiana”, conforme Capalbo (1980) citado porSimões e Souza (1997, p. 13). Essa modalidade possibilita a apreensão do fenômeno que semanifesta, se mostra à consciência do sujeito que o questiona, conforme explicam Oliveira eCunha (2006). Nesse sentido, nossa busca é a de perceber a realidade desvelada por cadaentrevistado.

Godoy (1995) aponta que “a abordagem qualitativa, enquanto exercício de pesquisa,não se apresenta como uma proposta rigidamente estruturada, ela permite que a imaginação e acriatividade levem os investigadores a propor trabalhos que explorem novos enfoques” (p. 23).

De acordo com Martins (1992), citado por Oliveira e Cunha (2006), na busca daessência do fenômeno, tem-se a redução fenomenológica ou epoché, que significa “suspender”,colocar “entre parênteses” os pressupostos, as crenças ou as teorias acerca do fenômeno queestá sendo interrogado. Essa postura do investigador possibilita que o fenômeno se mostre talcomo é e ocorra a análise compreensiva dos relatos.

Como estratégia de acesso ao fenômeno, utilizamos a entrevista aberta, que foiencaminhada por meio da seguinte questão norteadora: “Fale-me de sua experiência na área dasaúde do trabalhador e como você percebe essa política no município e no órgão no qual vocêestá inserido”.

A partir dessa questão, foram surgindo os relatos, sendo registrados por meio degravação e, posteriormente, transcritos. Em seguida, para a compreensão do fenômeno acessadoe eleição dos relatos, buscamos a análise compreensiva com base nos passos sugeridos porAmatuzzi (2001) e Bruns (2007), citados por Reis (2010):

- Leitura da descrição inteira (entrevista transcrita), com vistas a compreender o todo dofenômeno apresentado;

- Releitura da descrição, apreendendo e identificando unidades de significado;

- Expressão do sentido contido nas unidades de significado, em especial nas que melhordesvelam o fenômeno considerado;

- Síntese das unidades de significado, suas convergências e divergências, para chegar àcompreensão do fenômeno.

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Acesso aos entrevistados

Selecionamos um grupo de sete instituições públicas de um município do sudoeste daBahia, que estão sujeitas a políticas e regulamentações semelhantes. Os sujeitos da pesquisaforam membros da alta administração ou coordenadores de áreas voltadas para a saúde dotrabalhador.

A coleta de informações ocorreu no período de outubro a novembro de 2012; asentrevistas foram agendadas com antecedência e realizadas na própria instituição, depois de osentrevistados terem assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Anexo I daResolução CNS 196/96) e de terem recebido as informações necessárias, especialmente sobre osigilo da identidade e a liberdade caso quisessem desistir da entrevista. Visando manter oanonimato dos entrevistados, eles são mencionados neste artigo por E1, E2, E3, E4, E5, E6, eE7.

Eleição das categorias

Como resultado da busca de compreensão dos relatos, que fez surgir convergências edivergências, elegemos um conjunto de sete unidades de significado, as quais denominamoscategorias:

- Categoria 1 – Estruturação dos serviços: Analisamos o panorama da área de saúde dotrabalhador no estado da Bahia, especialmente na região sudoeste, e identificamos o querevelam os entrevistados com relação à estrutura dos serviços;

- Categoria 2 – Ações e diretrizes: Analisamos, a partir dos relatos dos entrevistados, odesenvolvimento das ações em saúde do trabalhador e quais diretrizes são consideradas maisimportantes;

- Categoria 3 – Equipes e serviços: Apresentamos as equipes e os serviços que são desempenhadosna região sudoeste, a partir da percepção dos entrevistados;

- Categoria 4 – Atenção à saúde do servidor público por meio de políticas públicas: Buscamosanalisar como os entrevistados percebem as políticas públicas em saúde do trabalhador;

- Categoria 5 – Principais demandas em saúde do trabalhador: Analisamos as carências e asdemandas percebidas como principais pelos entrevistados com relação à saúde do servidorpúblico;

- Categoria 6 – Limites e dificuldades: Expõem-se os limites e as dificuldades para a implantaçãode ações em saúde do trabalhador, apontados nas entrevistas. Há aqui uma subcategoria:burocracia;

- Categoria 7 – Ausência de protocolo e planejamento: São os depoimentos que evidenciam aausência de um planejamento ou de um protocolo para lidar com a saúde do trabalhador.

Análise compreensiva

Feita a definição das categorias, segue-se a análise compreensiva dos relatos derepresentantes de áreas voltadas para a saúde do trabalhador de sete instituições públicas deum município do sudoeste da Bahia, relacionando-se com as reflexões teóricas.

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Categoria 1: Estruturação dos serviços

Então é como se o sistema funcionasse assim: Ministério da Saúde, com a política nacional. NaBahia, a gente tem o CESAT, os CERESTs e as unidades sentinela, que são os municípios,também, que devem estar desenvolvendo suas ações relacionadas à proteção à saúde dotrabalhador [...] Porque, na realidade, eles não têm a vigilância de saúde do trabalhadorimplantada ainda, o Programa. [...] o que a gente quer é que esses profissionais tenham acapacidade de estar interferindo pra que esse problema vá para o plano municipal de saúde, porexemplo, que é o instrumento de gestão que vai nortear a política do município [...] pra queaquele município desenvolva ações para aquela área (E1).

A macro e a micro de Vitória da Conquista possuem apenas o CEREST de Vitória da Conquista(E7).

O entrevistado refere-se à falta de implantação do Programa de Vigilância em Saúdedo Trabalhador, das unidades sentinela e da necessidade de que as ações sejaminstitucionalizadas nas prefeituras municipais. Compreendemos que a proposta de que aAtenção à Saúde do Trabalhador funcione como uma rede nacional torna-se prejudicada se osmembros que integram esta rede não assumem a sua parte.

Com a publicação da Resolução CIB 84/2011 da Secretaria de Saúde do Estado, todos osmunicípios da Bahia devem se responsabilizar por desenvolver ações de saúde do trabalhador emseus territórios, ainda que sejam ações simples. Contudo, os municípios ainda não estãorealizando estas ações (E7).

Lacaz (2000) aponta uma proposta nesse sentido, em artigo do DIESAT7, sugerindomudanças na proposta do SUS, em relação ao modelo de centros de referência. Segundo oautor, ações em saúde do trabalhador devem fazer parte da prática diária na rede municipal:

[...] pensar a proposta de saúde do trabalhador no SUS sob a ótica de se envolver a redebásica de saúde. Também vejo a urgência de revisão do modelo de centros de referência[...] a rede municipal deve incorporar na sua prática diária (Lacaz, 2000, p. 2).

Com relação à região sudoeste, é evidenciada preocupação pela constatação de que aestrutura está bem aquém da necessária. Os depoimentos revelam que, em toda a Bahia, asequipes trabalham nas prioridades. É assinalada a urgência da implantação de mais CERESTspara atender às graves demandas existentes na região sudoeste:

Então realmente tem uma equipe mínima para a região sudoeste [...]. Então já caberiam maisdois CERESTs. Pelo menos, acho que um em Brumado ou em Guanambi, não sei, mas é umanecessidade urgente, porque o CEREST [...] não tem como, ele tem que dar conta [...] e comuma equipe mínima (E1).

O CEREST é um centro de referência, e essa referência na área de abrangência nossa é muitogrande. Nós temos 73 municípios que atendemos, e realmente tá sendo complicado (E7).

O entrevistado informa não ser possível precisar a quantidade e os tipos deatendimentos a trabalhadores nos CERESTs da região sudoeste. Relata propostas de ações:

O CEREST realiza ações de assistência, formação e educação permanente, informação emsaúde, controle social e vigilância em saúde do trabalhador. Atende trabalhadores do setor públicoe privado, mas não tem como precisar esse número no momento (E7).

7 O DIESAT (Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde e dos Ambientes de Trabalho) foi criado em 1980 poriniciativa e necessidade de uma série de entidades sindicais em compreender a importância da luta pela saúde dos trabalhadores(Lacaz, 2000).

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Sobre onde esses trabalhadores são atendidos quando adoecem, o entrevistado relataque:

Quando adoecem, os trabalhadores do setor público são atendidos no CEREST, e os servidoresmunicipais têm também o médico do trabalho da prefeitura. Os exames complementares sãorealizados na rede SUS. Os trabalhadores do setor privado têm o CEREST e o médico dotrabalho da empresa, nos casos em que esta disponibiliza (E7).

Nas instituições públicas estaduais e federais investigadas, foi evidenciadodesconhecimento sobre a atenção à saúde do trabalhador. No que diz respeito à efetivação daestruturação prevista na legislação, os relatos colhidos evidenciam que há um movimento embusca da integração das ações de saúde do trabalhador e um desejo do aumento da capacidadede intervenção. Em 2009, a Portaria 2.728/MS normatizou a ampliação da RENAST, dofortalecimento das equipes dos CERESTs, das ações de saúde do trabalhador na atenção básica(Brasil, 2010e). No entanto, as falas mostram que as mudanças necessárias, de fato, ainda nãoaconteceram na região.

Categoria 2: Ações e diretrizes

A assistência especializada em saúde do trabalhador continua sendo responsabilidade doCEREST para os 73 municípios da macrorregião. Para as demais ações, como educação emsaúde, vigilância em saúde do trabalhador, controle social e informação em saúde, o CERESTpresta apoio técnico para os 19 municípios da microrregião (E7).

Um dos papéis do Centro também é esse: tá difundindo pra Secretaria de Saúde dos municípios,pra tá valorizando isso, implementando unidades sentinela, implementando ações dentro daSecretaria de Saúde. [...] O CEREST, esse ano, desenvolveu um trabalho muito interessante dedivulgar, de tá divulgando o CEREST, divulgando a temática, que é a saúde do trabalhador, queé uma temática que é pouco conhecida, pouco discutida (E1).

Os relatos reafirmam que a área de abrangência do CEREST da região sudoeste daBahia é extensa e que a expansão da política de saúde do trabalhador na região está em faseinicial, pois as ações estão ainda voltadas para divulgação e sensibilização visando aoreconhecimento da importância dessa política.

Sobre essa questão, Domingues Júnior (2005) afirma que não é necessário umtratamento especial para o serviço público, basta que a política de saúde do trabalhador sejainstitucionalizada e capilarizada no âmbito da administração pública.

No comentário seguinte, o entrevistado relata o trabalho de sensibilização dos gestorese funcionários dos municípios e se refere à capacitação que está sendo feita com o objetivo deformar unidades sentinela.

A DIRES tem apoiado o CEREST na formação dessas unidades sentinelas nos municípios [...]A gente chamou, capacitou sobre a formação dessas unidades (E1).

[...] a gente sensibiliza mais essas unidades porque essas unidades estão com o termo de adesãoassinado pelo gestor [...] Então ele está com o compromisso [...] (E7).

A capacitação e a sensibilização são ações fundamentais para o desenvolvimento deuma política eficiente, pois preparam os profissionais para uma atuação comprometida. Noentanto, entendemos que esse comprometimento diminui se não houver estrutura adequada.

Para Sato et al. (2006), o campo da saúde do trabalhador abre espaço para odesenvolvimento da ciência psicológica na intersecção entre trabalho, organizações e saúde, deforma a facilitar o reconhecimento, por parte dos profissionais de saúde, de que o trabalho pode

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causar adoecimento e para incluir essa visão na sua prática profissional. Os autores tambémapontam outras formas de atuação do psicólogo nas atividades de educação em saúde, taiscomo: grupos de formação de profissionais de saúde, grupos com trabalhadores que buscamassistência nos CERESTs ou em atividades para a população em geral.

Categoria 3: Equipes e serviços

[...] aqui no CEREST [...] a gente tem cinco focos: trabalha com assistência, que é quando otrabalhador tem um acidente de trabalho ou agravo ocupacional [...] aí vai ser fechado um nexocom o médico e tem a educação em saúde [...] e temos a vigilância, que é o nosso foco maior [...]É uma equipe multiprofissional, aqui nós temos psicóloga, enfermeira, fisioterapeuta, doisassistentes sociais, médico do trabalho, técnico de segurança do trabalho, técnico de enfermagem eo pessoal de apoio administrativo [...] a gente emite relatórios para as delegacias regionais dotrabalho, para o Ministério do Trabalho e para o Ministério Público, e a gente também orienta[...] (E7).

Ficou evidenciado que a equipe existente mostra-se mínima para atender aos serviços,conforme já apontado em relatos anteriores, o que confirma a indicação de que a política desaúde do trabalhador deve ser capilarizada no âmbito da administração pública, com a atuaçãodos profissionais de outras unidades de saúde para dar suporte ao CEREST.

Foi apontado que um serviço fundamental e que deve ser desenvolvido por todas asequipes de trabalho é o registro de adoecimentos e acidentes relacionados ao trabalho, sendosugerido pelo entrevistado que seja compulsório:

Unidade sentinela é um hospital ou uma unidade básica de saúde que vai tá notificando asdoenças relacionadas ao trabalho ou os acidentes de trabalho pra registrar. [...] Deve ser hospitalpúblico, privado. Eles deveriam estar com a obrigação de notificar. Como, para doençasrelacionadas ao trabalho, tem que ter a comprovação, o nexo, e às vezes é difícil o profissionalestar capacitado para fazer esse nexo, precisa de capacitação, aí o Ministério da Saúdedesenvolveu essa política da unidade sentinela, mas, na realidade, qualquer profissional equalquer unidade pode tá notificando (E1).

[...] o profissional, principalmente o profissional médico, não tem esse hábito de estar notificando,[...] a gente trabalha o ano inteiro sensibilizando o profissional de saúde para não esquecer denotificar, só que atende [...], mas na hora de notificar, não faz. E a gente fica sem saber. Por issoque os dados estão baixos (E7).

As unidades sentinela são fundamentais, pois constituem a parte da Rede que mantémcontato direto com o problema dos agravos à saúde do trabalhador e dos acidentes de trabalho.Ao identificá-los, devem ser feitos o nexo causal e o registro. Sobre esse aspecto, a PortariaMS/GM nº 3.120/98, que trata da Vigilância em Saúde do Trabalhador (VISAT), orienta sobreo funcionamento dos sistemas de informação em saúde e sua importância, pois eles permitemdetectar e analisar os fatores determinantes e condicionantes dos agravos à saúde relacionadosaos processos e ambientes de trabalho e, em consequência, possibilitam planejar, executar eavaliar as intervenções necessárias (Brasil, 2010b).

[...] a gente precisa sensibilizar desde a recepção até o profissional médico, pra que ele coloque oCID, que vai estar identificando esse acidente, pra que posteriormente seja feita a notificação noSINAN [...] porque, se num município tá acontecendo muito acidente, em determinada área, táacontecendo um elevado número de adoecimento, isso já pode tá pontuando uma necessidade deuma política de saúde naquela área [...] (E1).

Aponta-se a necessidade dos registros para se produzirem dados mensuráveis e deestudos mais amplos para que se conheçam as peculiaridades do trabalho que afetam o

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trabalhador, possibilitando o adoecimento, sendo necessário o envolvimento responsável detodos com relação ao funcionamento dos sistemas de informação.

Categoria 4: Atenção à saúde do servidor público por meio de políticas públicas

Eu tava até brincando aqui quando eu cheguei [...] não, a gente não tem desenvolvido, porque opapel da saúde do trabalhador aqui na DIRES não é esse papel interno. Aí teria que ter umapolítica de recursos humanos. A gente não tem. A CESAT também não tem, faz pra fora [...](E1).

Os depoimentos evidenciam que existe carência de ações em saúde para os servidorespúblicos, inclusive para os que trabalham na própria área. Nessa mesma direção, DominguesJúnior (2005) comenta que, ao servidor público que tem o Estado como patrão cabe a máxima:“Faça o que te digo, não faça o que eu faço”. E complementa, dizendo que “o servidor públicoalijado de proteção no seu ambiente de trabalho, supervisiona a aplicação das regras deproteção e prevenção, na iniciativa privada” (Domingues Júnior, 2005, p. 54).

Quando solicitados a falar de sua experiência na área e como percebem essa política nomunicípio e no órgão no qual trabalham, os depoimentos dos entrevistados que não trabalhamna área de saúde do trabalhador evidenciam que têm pouco conhecimento das políticaspúblicas voltadas para esse fim. Alguns se referem ao CEREST, porém demonstram poucoconhecimento:

Não sei [...] Não me lembro [...] Faz tanto tempo isso, que me parece que eles pediram umespaço aqui pra poder divulgar. Salvo engano foi isso. Então a gente tomou conhecimento, eutomei conhecimento da existência do CEREST nessa ocasião, que já tem um bom tempo (E5).

Alguns entrevistados demonstraram desconhecer que o CEREST também atende aoservidor público: “O CEREST é exatamente para o trabalhador privado. [...] mas ele, o CEREST,não trabalha com o servidor público” (E4).

Essas informações coincidem com o que relatam os entrevistados que atuam na área desaúde do trabalhador, ao afirmarem que essa é uma temática que precisa ser divulgada ediscutida. Domingues Júnior (2005) salienta a necessidade de mais atenção à saúde do servidorpúblico:

[...] não se avaliam as condições de trabalho do servidor, com a desculpa de que, para oservidor, não há perda de salário, pois o Estado continuará pagando, mesmo com o seuafastamento. Assim, com essa desculpa instalada, promoveu-se o definhamento daestrutura destinada a cuidar da manutenção da saúde do servidor [...] Tal situação écomprovada indiretamente pelo elevado índice de aposentadorias por invalidez no serviçopúblico que atingiu seu auge em 2004, com 27,3% (p. 118).

Entendemos que utilizar-se da desculpa de que o servidor não sofre perda de salárioquando adoece configura falta de responsabilidade e zelo com o servidor e com o bem público.O depoimento a seguir aborda o aspecto do gasto em dobro, que ocorre quando se faz asubstituição do profissional. No entanto, mesmo que não haja substituição, existem custos, poiso servidor fica afastado e recebe salário sem dar uma contrapartida em serviços.

Está pagando duas vezes o salário desse profissional. Quando devia cuidar da saúde pra não teresse desgaste, esses dois custos, não é? O custo do professor substituto e o custo do profissionalque está encostado. Por falta de assistência, porque se nós tivéssemos assistência a estesprofissionais com certeza eles voltariam (E2).

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Este custo poderia ser revertido para investimentos na área de saúde. Como analisaDomingues Júnior (2005), a não implantação de ações em saúde do trabalhador no serviçopúblico é um preço que todos pagam:

Tal situação atinge diretamente todos os atores envolvidos nesta história de saúde/doençado trabalhador no serviço público [...] Para o servidor, tem-se a redução direta da suaexpectativa de vida, ou na melhor das hipóteses uma redução significativa da suaqualidade de vida, tornando-se impedido de realizar tarefas antes desenvolvidas [...] Noâmbito da sociedade, temos a redução da eficiência do serviço público, pois o afastamentosobrecarrega os servidores remanescentes, diminuindo ou a qualidade do serviço prestado,ou a quantidade de atendimentos realizados (p. 55).

Dessa forma, apresenta-se uma configuração do adoecimento do servidor que poderefletir para o governo e a sociedade, produzindo, além de perda na qualidade do atendimento,retrabalho, absenteísmo e rotatividade dos servidores. Mas atinge principalmente o servidor:

Que a gente tá aqui, estamos envelhecendo aqui, e a hora que os problemas surgem, nós nãotemos essa política [...] Uma coisa que às vezes a gente fica [...] A gente ressente. Por exemplo,esse colega que perdeu uma visão, ele tá afastado [...] (E5).

Neste relato, o entrevistado evidencia o sofrimento decorrente de vivenciar com seuspares a falta de atenção e cuidados com a saúde, o que ressalta para nós a necessidade dereconhecimento desse indivíduo que está por trás da máquina pública e que sofre.

Categoria 5: Principais demandas em saúde do trabalhador

[...] a dificuldade da equipe mínima que tem o CEREST pra atender a 73 municípios, então agente fica trabalhando, eles ficam, e a Bahia toda, na prioridade da prioridade da prioridade. [...](E7).

Em 2012 foram concluídos projetos para os fatores de risco que trabalham no setor calçadista eos fatores de risco para trabalhadores com amianto, agrotóxicos, com sílica e com urânio. Tem aquestão do ramo calçadista, da construção civil, que acidenta muito. Está na programação para2013 um projeto com os postos de combustíveis (E7).

Estes depoimentos mostram a necessidade de atenção para diversos setores, e emnenhum momento foi feita referência a demandas do servidor público. O entrevistado enfatizaque a “equipe mínima” do CEREST da região não tem como atender às demandas e citasituações graves. A partir dessa perspectiva, refletimos sobre as condições de outros setores,como o serviço público, que não têm sua necessidade tão exposta, de tal forma que não emergepara o entrevistado.

Abaixo, relato de trabalhador do setor público que não trabalha na área de saúde dotrabalhador:

Aqui nós temos casos diversos de adoecimento: o que mais vemos são as “LER/DORT” [...] Temtambém diversos casos de depressão, de dependência ao álcool e alguns de câncer. Mas nunca sefalou que pode ter algo a ver com o trabalho (E3).

O depoimento acima apresenta uma diversidade de tipos de adoecimento. Asnotificações estaduais por agravo, no estado da Bahia, registradas no Sistema de Informação deAgravos de Notificação (SINAN-NET), indicam como principais demandas em saúde dotrabalhador as Lesões por Esforços Repetitivos (LER), também denominadas Distúrbios

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Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (DORT). Excluindo-se os acidentes de trabalho,em segundo lugar, aparecem os transtornos mentais (Brasil, 2010a).

Nas entrevistas, há relatos de problemas que têm maior propensão de existir emdeterminado setor, como problemas de voz para os professores. Observamos que, em mais deuma instituição, foram verificados casos de depressão, mas é necessário entender que aorganização do trabalho é diferente em cada área pública, por isso merece um olhardiferenciado. O mesmo ocorre com LER/DORT, que vai atingir o trabalhador de acordo com aatividade desempenhada por ele.

A gente tem casos de professores que têm problema de LER [...] Nós temos muitos professorescom problemas sérios nas cordas vocais. Nós temos alguns casos de professores que perderam avoz [...] o problema mais sério é a questão da depressão [...] (E2).

No serviço público, você tem um trabalho excessivo, uma falta de pessoal, você tem o seuequipamento defasado, algum mobiliário defasado, aí, sim, eu acho que esses problemas podemafetar o psíquico das pessoas, [...] mas é o desgaste físico. [...] tem doença ocupacional, que é oque a gente chama de LER. Então são pessoas que já estão lesionadas e aí, sim, foi por causa dotrabalho [...] (E6).

Percebemos com esses depoimentos que se evidencia a necessidade de ampliar apercepção sobre o adoecimento e o que está no campo do cuidado com a saúde do trabalhador,pois nem sempre se reconhece a inter-relação física e psíquica. Ao pesquisar as relações entresaúde mental e trabalho, Dejours (1999) focaliza dinâmicas que conduzem ora ao prazer, ora aosofrimento, e constata que as consequências desses sentimentos podem seguir diferentesdesdobramentos, inclusive culminar em patologia mental ou psicossomática.

Diz ainda que: “Por organização do trabalho designamos a divisão do trabalho, oconteúdo da tarefa (na medida em que ele dela deriva), o sistema hierárquico, as modalidadesde comando, as relações de poder, as questões de responsabilidade etc.” (Dejours, 1992, p. 25).A organização do trabalho exerce sobre o homem uma ação específica, cujo impacto maior é oaparelho psíquico.

Os relatos dos entrevistados mostram que as pessoas não aderem às ações propostas,como a prática de atividades que previnam a LER/DORT, o que nos leva a inferir que taispropostas não têm significado para esses trabalhadores, conforme percebemos nesta fala: “Aquitentamos desenvolver atividades de prevenção, como alongamento, “ginástica laboral”, mas as pessoascomeçam e não continuam [...]”(E3).

Configura-se para nós a compreensão de que a realização de discussões no espaço dotrabalho visando ao reconhecimento do que produz o adoecimento e à ampliação dacompreensão sobre políticas em saúde do trabalhador pode fazer que o indivíduo acredite noque foi construído, pois fará sentido para ele, por ter participado do processo. Algunsentrevistados falam da necessidade de contratação de profissionais que tenham um olhardiferenciado e que possam ajudar a perceber o que a pessoa sente.

[...] temos tentado contratar profissionais, como um psicólogo, um assistente social, paraorganizar atividades de discussão sobre saúde, mas parece utopia [...] (E3).

Se pudéssemos ter alguém, uma seção, uma contratação pra que a pessoa ficasse aqui durante umano e a gente buscasse, ou ela fizesse um trabalho de levantamento, de pesquisa aqui dentro praver qual a nossa real situação [...] desejo que a gente tivesse aqui, que a nossa área de gestão depessoas tivesse esse olhar pra o servidor, não como servidor, mas como pessoa (E5).

Santos-Filho aponta que a discussão sobre saúde do trabalhador deve abranger temascomo: noção de desgaste e carga de trabalho; organização do trabalho; o conceito desofrimento e estratégias de defesa (Santos-Filho, 2007). Os depoimentos demonstram o desejo

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de compreender as causas e as consequências do adoecimento. Muitas vezes, o própriotrabalhador é culpabilizado.

Categoria 6: Limites e dificuldades

A unidade sentinela não onera nada para o município, é só ele sensibilizar os profissionaisdaquela unidade pra tá atento pra aquele trabalhador, ou seja, basta um médico, uma enfermeira,fazer a pergunta, você trabalha em quê? [...] pra que, quando encaminhar ao médico, que a gentesabe que prontos-socorros, hospitais, a demanda é grande, é acelerada. Então provavelmentepassa pelo médico, ele não vai fazer essa pergunta (E1).

Os relatos reafirmam a necessidade de aumento da participação da rede municipal eapontam a falta de um olhar para a saúde do trabalhador por parte dos profissionais. Nesterelato observa-se a dificuldade de o médico ter esse olhar nos hospitais, em razão da grandedemanda que tem que atender.

Outra situação apresentada que dificulta os cuidados com a saúde do servidor é a faltade verba para essa finalidade: “Pra se ampliar as ações, precisa ampliar as equipes, financiamento”(E1).

Os entrevistados que não trabalham na área de saúde do trabalhador relatam que nãohá verba para essa atividade no orçamento, já que não se trata da atividade-fim da instituição:“Existe uma dificuldade de dar andamento aos processos de compra de material ou serviços quebeneficiem o servidor [...] porque não é a atividade-fim, então não está no orçamento” (E3).

Este é um aspecto específico do setor público. Nesse sentido, Valente fala sobre acentralização do planejamento e decisões na administração pública, observando que, no serviçopúblico, principalmente nas prefeituras e nos municípios, há situações absolutamenteimprevistas e que requerem improvisos, mas que seus regulamentos são feitos de forma distanteem gabinetes de órgãos de planejamento e dificilmente se prestam a ajudar na hora do contatopessoal e em situações específicas. Afirma que é preciso conceder às pessoas que estão na pontao direito de ter ideias, de decidir e principalmente de agir. Mas que a situação real é a desempre estabelecerem-se regras de longe (Valente, 2001).

Outra dificuldade apontada refere-se às constantes mudanças dos gestores, aocontrário do que ocorre no setor privado. Essa falta de continuidade na gestão do serviçopúblico gera a possibilidade do abandono de projeto e ações:

[...] mas nós tínhamos um plano ano passado com o coordenador [...] que saiu. Antes de sair eletava assim, sonhando um bocado de coisa boa para trabalhar e falar sobre a saúde dotrabalhador, mas aí ele mudou para outro setor e houve também a mudança da direção [...] ehouve muita mudança e a gente acabou desestruturando o que nós começamos a fazer... (E2).

Compreendemos que este é outro fator característico do setor público e que seu efeitoserá mais ou menos sentido, de acordo com a afinidade entre o novo gestor e o antecessor.

Outro fator ainda é a burocracia:

A gente tem vontade de fazer, mas esbarra na burocracia [...] (E1).

[...] as coisas aqui são bem mais complicadas do que no setor privado. [...] Então, tudo isso, essadificuldade, esse negócio de você tá demorando pra se atualizar, isso acarreta, também, a maiorincidência de doenças ocupacionais dentro do serviço público (E6).

Uma grande dificuldade que é agravada no setor público refere-se à rigidez de normas,como atestam os depoimentos dos entrevistados E1 e E6 e que evidenciam que o engessamento

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inerente ao setor público dificulta o estabelecimento de ações com maior rapidez, conformeanálise de Domingues Júnior (2005):

(...) diferentemente da iniciativa privada, o poder público só pode realizar ou executarações que estiverem respaldadas em algum ato normativo (princípio da legalidade), assimos princípios universais de proteção e de segurança no trabalho não têm aplicabilidade naesfera da administração pública se não forem recepcionados (2005, p. 55).

Ainda com relação à centralização e à burocracia, os entrevistados relataram sobre aconcentração na capital das instituições que realizam a perícia médica no trabalhador adoecido,o que causa grande dificuldade.

Esta pessoa dá entrada aqui, mas a perícia é em Salvador, infelizmente, porque a gente já deviater pelo menos no estado da Bahia uns cinco polos de perícia médica [...] A coisa é muitoburocrática e muito demorada (E2).

Nós temos casos de trabalhadores doentes que estão aqui e que não têm condições de se dirigir aSalvador para passar por perícia médica. Tem casos de pessoas que estão em cidades ainda maisdistantes da capital e nem vão. E aí não tem como justificar a falta (E3).

A dificuldade apontada pelos entrevistados E2 e E3 revela-se como aumento dosofrimento para o servidor já adoecido, e, além disso, quando este não comparece à perícia, oagravo à saúde não é registrado nos bancos de dados existentes para tal finalidade.

Categoria 7: Ausência de protocolo e planejamento

[...] a gente procurou contratar um profissional pra que a gente fizesse a ginástica laboral. Entãonós tivemos esse programa aí durante uns três anos [...] Só que, por uma questão burocrática[...] tivemos que suspender esse ano e, com fé em Deus, pretendemos, no próximo ano, já colocarisso aí novamente (E5).

Não temos. Às vezes acontece [...] alguns encontros, alguns cursos que vão de certa formaajudar, e são convidados alguns gestores e alguns coordenadores para participar desses encontros erepassarem essas informações, mas não é nada de concreto, de palpável, que o resultado é assimimediato (E2).

Os depoimentos evidenciam ausência de um planejamento ou de protocolo para lidarcom a saúde do trabalhador. Essa situação é encontrada em todas as instituições pesquisadas.Um dos entrevistados relata que fica à espera de algo que ele não sabe se virá e aborda asituação na perspectiva da fé em Deus.

Visando à organização de ações em saúde do trabalhador, a Portaria/MS nº 3.120/1998,já citada, propõe que, além da incorporação de saberes técnicos e de práticas de diferentes áreasdo conhecimento, seja reconhecido o saber dos trabalhadores, considerando-o essencial para odesenvolvimento das ações (Brasil, 2010c). Nessa mesma direção de pensamento, estão autorescomo Sato et al. (2006) e Santos-Filho (2007). Entendemos que a participação dos servidorespúblicos no processo de ampliação das políticas de saúde do trabalhador é fundamental, poissão eles que vivenciam as experiências e podem dizer o que sentem e o que os afeta.

[...] ano passado, a gente montou um projeto que teve muito sucesso, foi quando a professora [...]que é coordenadora de educação especial trabalhou com um projeto, o “Cuide bem da sua voz”(E2).

[...] aqui a gente já conseguiu, por exemplo, ter a política de melhorar a posição do trabalhadoratravés de relaxamento e exercício físico e outros tipos de exercício, isso com convênio que nósfizemos com uma faculdade [...] (E4).

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A análise dos relatos dos entrevistados demonstra que a saúde do trabalhador nasinstituições tem sido tratada com algumas ações pontuais. Essas ações colaboram para umapercepção errônea da saúde do trabalhador, já que elas se restringem à realização de feiras desaúde, aplicação de vacinas, massagem e outras ações individualizantes:

A gente tenta fazer algo diferente, mas o que o pessoal gosta mesmo é de feira de saúde, comvacinação [...] (E3).

[...] nós estamos tendo uma semana de comemoração do dia do servidor. Aí nós já fizemos váriasatividades, e hoje nós temos aí a massagem e nós temos uma pessoa aferindo pressão [...] (E5).

Em algumas instituições, os entrevistados apresentaram projetos internos de atenção àsaúde do trabalhador. Segundo Sato et al. (2006), ações em saúde do trabalhador têm maiorgarantia de serem implementadas se houver a participação dos trabalhadores, por permitemmaior possibilidade de se conhecer a situação real e, quando os trabalhadores participam daelaboração, eles se tornam fiscais permanentes delas.

Conclusão

Este estudo buscou compreender como são percebidas as políticas em saúde dotrabalhador do serviço público em um município da região sudoeste da Bahia, a partir da óticados servidores. Nossa proposta de pesquisa não se estende ao tema da saúde do trabalhador dosetor privado, uma vez que nosso objetivo é o servidor público e os investimentos em sua saúde.Para isso, buscamos aprofundar o conhecimento sobre o tema, a partir de pesquisa bibliográficae de campo, realizada em instituições públicas de um município do sudoeste da Bahia.

Foi constatada a existência de ações no âmbito do funcionalismo público federal, comoo Subsistema Integrado de Atenção à Saúde do Servidor (SIASS) e as pesquisas realizadas naUniversidade de Brasília (UNB). No entanto, os dados coletados demonstram que essasiniciativas não alcançam os servidores pesquisados.

A investigação permitiu aumentar a percepção sobre a implantação da política desaúde do trabalhador na região, ficando evidenciada a necessidade de ampliação das ações. Foirelatado que a equipe do CEREST da região sudoeste não tem como atender às demandas eque estão trabalhando com as maiores prioridades, sendo citadas demandas do setor privado.Foi sugerida a implantação de pelo menos mais dois CERESTs e o envolvimento da rede desaúde municipal, com incorporação de ações em saúde do trabalhador na prática diária, e nãoapenas concentradas nos CERESTs.

Nas instituições que desenvolvem atividades voltadas para essa área, nota-se que ofoco principal é a prevenção nos ambientes de trabalho, e não se observa nessas instituições aexistência de políticas específicas para o servidor público, inclusive da própria instituição. Emconsonância com esses dados, nas instituições públicas que não são da área de saúde, foramconstatados pouco conhecimento sobre as políticas públicas existentes e carência de ações emsaúde do trabalhador.

Entendemos que, para a ampliação das ações, é indispensável dar visibilidade àdemanda de políticas em saúde do trabalhador, com a apresentação de dados mensuráveis. Estamedida permite conhecer que tipo de adoecimento acomete uma população, o que possibilita oadequado planejamento de estratégias de prevenção e controle dos agravos. Nesse sentido, umfator limitante é a falta de notificação das doenças e acidentes de trabalho por parte dehospitais e clínicas.

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Entre o atender e o ser atendido: políticas em saúde para o trabalhador do serviço público

Foram evidenciadas outras limitações inerentes à estrutura da administração pública,tais como a burocracia, a centralização de planejamento, a mudança de gestores e adescontinuidade das ações. A maior dificuldade assinalada nas instituições que não atuam naárea de saúde do trabalhador refere-se à ausência de protocolo e planejamento para as açõesem saúde para o servidor público. A saúde do trabalhador nessas instituições tem sido tratadacom algumas ações pontuais e individualizantes, que colaboram para uma percepção errônea daquestão.

Constatamos que a política interna em saúde do trabalhador não existe nas instituiçõespúblicas ou está em estado embrionário. Para a construção dessa política interna,compreendemos que é fundamental a existência de um espaço para discussão sobre o tema,com participação de gestores e servidores, reconhecendo a necessidade de inserir os servidoresno espaço de discussão e deliberação, entendendo ser uma forma produtiva de proteger-se dosofrimento. Dessa forma, os trabalhadores podem pensar sua realidade e buscar a ampliação daspolíticas em saúde. Por isso, é importante a atuação de profissionais que tenham “o olhar” deatenção à saúde do trabalhador, um campo para atuação de psicólogos.

Como caminhos para superar os obstáculos, ressaltamos a divulgação e a discussãosobre o tema nas instituições públicas, possibilitando o reconhecimento do sofrimento e acriação de ações para lidar com esse fenômeno. Esta proposta é importante para todas asinstituições e especialmente para as que podem desenvolver ações para seus servidores etambém para trabalhadores externos, a exemplo das prefeituras. Refletimos que, com adivulgação das políticas públicas, haverá aumento de demandas. Por outro lado, é exatamente oreconhecimento das demandas, somado à participação dos servidores nas discussões, que podepressionar para que as políticas públicas sejam ampliadas e para que seja assegurada suamanutenção.

Compreendemos que o atual conceito de saúde do trabalhador representa um avançoao trazer uma política com visão diferenciada sobre saúde/doença para além da assistência. Asinstituições e profissionais de saúde também devem se considerar como objeto de análise,repensando continuamente sua prática, de forma a alcançar e fazer sentido para todos osenvolvidos: gestores públicos, profissionais de saúde e trabalhadores. Portanto, sãofundamentais a divulgação e a discussão com participação de todos os responsáveis einteressados em políticas de atenção à saúde deste que trabalha servindo ao público.

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Endereço para correspondê[email protected], [email protected]

Recebido em: 15/05/2012Revisado em: 31/12/2012

Aprovado em: 31/01/2013

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Aproximações entre o conceito de uso de si e ateoria da mais-valia de João Bernardo1

Moacir Fernando Viegas2

Universidade de Universidade de Santa Cruz do Sul (Santa Cruz do Sul, RS)

As investigações baseadas no conhecimento ergológico demonstram que a atividade desenvolvida pelostrabalhadores não se reduz a uma perspectiva heterônoma, constituindo, diferentemente, iniciativas que configurampráticas e representações sociais originais. Conceitos como debate de normas e uso de si expressam como as relaçõessociais vividas no trabalho são perpassadas por embates de práticas e ideias numa permanente negociação do sersocial. Porém, em que pese essa discussão revele que a experiência do trabalho vai além do econômico, ela nãodispensa a consideração do mesmo, na medida em que é nesse contexto que ocorrem a disputa pelo uso de si e osdebates de normas. Nosso propósito neste artigo é discutir as aproximações entre, de um lado, a categoria da mais-valia na teoria de João Bernardo, entendida como relação social contraditória em que os trabalhadores lutam porapropriar-se do produto do seu trabalho e os capitalistas buscam apropriar-se da produção dos primeiros, e, de outro,os conceitos de debate de normas e valores e de uso de si. De certa forma, nos propomos um questionamento da teoriaergológica no sentido de trazer contribuições à mesma, com vistas a uma abordagem interdisciplinar e omnilateraldas práticas sociais educativas experienciadas nas relações de produção.

Palavras-chave: Uso de si, Debate de normas, Mais-valia, Ergologia.

Approximations between the concept of use of self and the theory of value of João Bernardo

The investigations based on the ergologic knowledge show that the activity developed by workers is not reduced to aheterogeneous perspective, building, differently, initiatives which set practices and original social representations.Concepts as debate of rules and the use of self express how the social relations lived at work are pervaded by conflictsof practices and ideas in a permanent negotiation of the social being. However, regarding this discussion, it showsthat the experience at work goes beyond the economic issue, it does not exclude it, as it is in this context thathappens the argument for the use of self and also the debate of rules. Our intention in this article is to discuss theapproximations between, in one hand, the category of value which is understood as a contradictory social relation, inwhich the workers fight to take ownership of the product of their own work and the capitalists fight to take theadvantage over what they make, and, in the other hand, the debate of rules and values and use of self concepts. Insome way, we propose ourselves a question about the ergologic theory on bringing contributions to it, focusing on aninterdisciplinary and omnilateral approach of the experienced social practices in the relations with the product.

Keywords: The use of self, Debate of rules, Value, Ergology.

Introdução: como e por que os homens fazem história na atividade de trabalho

Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; nãoa fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontamdiretamente, legadas e transmitidas pelo passado. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte (Marx, 1978, p. 17).

mbora essas palavras de Marx tenham sido mais comumente utilizadas para ressaltar o pesodas determinações sociais da ação humana, ou seja, a força da estrutura econômica, como

algo que heterodetermina as práticas sociais, elas podem ser entendidas também ressaltando opolo oposto, ou seja, são os homens que fazem a sua própria história. História que não é feita

E1 Este artigo constitui resultado dos estudos realizados no Estágio Pós-Doutoral, cujo projeto teve como título “A educação nasrelações de produção: aspectos subjetivos da formação dos trabalhadores na economia informacional” (2011-2012), noDepartamento de Psicologia da Universidad Autónoma de Barcelona (Espanha), com bolsa da Capes, sob supervisão de Josep M.Blanch. Parte dos estudos foi realizada no Instituto de Ergologia da Universidade de Provence, sob orientação de Yves Schwartz.

2 Doutor em Educação. Professor do Departamento de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidadede Universidade de Santa Cruz do Sul. Linha de pesquisa: Educação, Trabalho e Emancipação.

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Aproximações entre o conceito de uso de si e a teoria da mais-valia de João Bernardo

num momento e num lugar determinado às expensas de outros lugares e tempos nos quais ahistória estaria ausente. Posto que é a ação humana que faz história e essa ação ocorre em todosos lugares, tempos e instituições, a história, a transformação da natureza e dos próprios homens,não tem um lugar e um tempo privilegiado para ocorrer.

Do ponto de vista do marxismo,3 a transformação da natureza e dos próprios homensocorre pelo trabalho, que ocupa, assim, um lugar central nesse fazer história. Mas como ahistória é feita na atividade de trabalho? Na Ideologia Alemã, Marx e Engels afirmam que énecessário partir da consideração das bases materiais e de sua modificação pelos homens aolongo do tempo. A primeira necessidade humana é a necessidade de sobrevivência, para o queos homens devem organizar-se entre si e com a natureza e então produzir. Essa “determinadaatividade”, ao produzir as condições de sobrevivência, é uma forma dos seres humanosexprimirem a sua vida: “como exprimem a sua vida, assim os indivíduos são. Aquilo que elessão coincide, portanto, com a sua produção, com o que produzem e também com o comoproduzem. Aquilo que os indivíduos são depende, portanto, das condições materiais da suaprodução” (Marx & Engels, 1984, p. 15). Desse modo, é na atividade de trabalho, por meio datransformação da natureza e de si próprios, que os homens fazem história.

Na ergologia, a compreensão de que a ação humana possui um caráter histórico passapelo entendimento do conceito de experiência (ou atividade, como mais recentemente oconceito vem sendo denominando). Para Schwartz, o trabalho é uma experiência dehumanização. A permanente modificação das condições materiais de produção está relacionadacom a própria natureza humana, que busca sempre, e independentemente das condiçõesencontradas, uma ação que realize de algum modo a totalidade do ser. Para desenvolver esseconceito, o autor apoia-se em Canguilhem, para quem, nas palavras de Schwartz, “a vida podeser definida através da atividade que está em luta permanente com ‘a inércia e a indiferença’.Não somente o contrário da inércia, mas uma luta contra a inércia” (2007, p. 122).

Seguindo o pensamento de Canguilhem, o autor afirma que a tendência do trabalhadorde confrontar sua história com o ambiente natural e social “pode ser vista como uma expressãoda vida humana enquanto tal, na sua manifestação global, unificada e ‘sintética’... Ela é umaatividade que se enraíza no esforço espontâneo vivente para dominar o meio e organizá-losegundo seus valores” (Schwartz, 2007, p. 128). A experiência no trabalho é, assim, para aergologia, um locus onde o trabalhador tenta reintegrar, a partir das condições em que seencontra, a unidade do seu ser, o que lhe confere, por consequência, um caráter enigmáticoadvindo das numerosas formas como pode desenvolver sua experiência e das escolhas do uso desi que venha a fazer (Schwartz, 2011). Para o autor,

Toda forma de atividade em qualquer circunstância requer sempre variáveis para seremgeridas, em situações históricas sempre em parte singulares, portanto escolhas a seremfeitas, arbitragens – às vezes quase inconscientes – portanto, o que eu chamo de “usos desi”, “usos dramáticos de si” (Schwartz, 1996, p. 151, grifo do autor).

Desse modo, o trabalhador não é passivo diante das normas que antecedem arealização do trabalho expressas, por exemplo, nos protocolos. A total heterodeterminação dasnormas de ação, seja qual for o paradigma produtivo, é “invivível”, pois resultaria na ausênciade vida e de atividade: “o meio é sempre em algum grau infiel, inantecipável” (Schwartz, 2011,p. 59). Como afirma Cunha (2007), esse fato implica que a atividade de trabalho seja uma“situação histórica sempre singular” (p. 5).

3 Há certamente muitos marxismos. Para resumir nosso pensamento, o que buscamos seguir aqui é o marxismo heterodoxo. Essaconcepção costuma dar maior valor às práticas sociais dos trabalhadores do que o marxismo ortodoxo, em que o que conta para atransformação social são as práticas dos dirigentes intelectuais e políticos. Tragtemberg (1981) define o marxismo heterodoxo como“uma leitura de Marx não regida pelos moldes ‘ortodoxos’ definidos pelo chamado ‘marxismo-leninismo’ ou ‘marxismo-leninismo-trotskismo’” (p. 7).

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Esse impulso para a realização da totalidade do ser em todas as atividades humanas,Sennett (2008) busca no trabalho do artífice: o “artesanato designa um impulso humanoduradouro e básico, o desejo de realizar bem uma tarefa” por si só, sem outras motivações, jáque isso constitui sua recompensa: “em sua mente, os detalhes do trabalho cotidiano seconectam com o produto final; o trabalhador controla suas ações no trabalho; o trabalho serelaciona com a liberdade de experimentar” (p. 22). O autor apresenta as diversas formas comoos trabalhadores, mesmo os que realizam as atividades mais simples, procuram deixar marcas desi próprios nos trabalhos que realizam. Para ele, esse impulso não pertence apenas ao trabalhoqualificado do artífice medieval e sim, “faz parte da realização de qualquer trabalho humano,como o do programador de computador, do médico ou do artista” (Sennet, 2008).4

O sonho taylorista era retirar do trabalhador qualquer iniciativa e possibilidade de açãoautônoma na produção econômica, isso que Schwartz (2010) chama de tentativa de“neutralização do histórico”, num sentido, inclusive, de interdição da ação operária. Mas éimpossível não haver essa ação, assim como separar humanização e ação. Portanto, é impossívelnão haver história na atividade humana.

O objetivo do presente trabalho é estabelecer aproximações entre a teoria da relaçãosocial de mais-valia, conforme apresentada por João Bernardo, e a ergologia, especialmentepelos escritos de Yves Schwartz, fundador dessa abordagem. Consideramos que, dada acomplexidade dessas teorias e o estágio inicial em que se encontram nossos estudos, trata-se deuma primeira tentativa de aproximação. Pensamos que a validade desse esforço estárelacionada à necessidade de pensar uma teoria que permita ver as possibilidadesemancipatórias das lutas dos trabalhadores que ocorrem nos locais de produção, a nosso verfrequentemente ignoradas na produção intelectual. Acreditamos também que a discussão podecontribuir para subsidiar as teorias empenhadas na compreensão desse fenômeno no que serefere ao entendimento das relações entre o econômico, o político e o cultural.

Da teoria da mais-valia, destacamos, além do conceito central formulado por Bernardo,outros aspectos dele decorrentes, como as formas de lutas dos trabalhadores. Da parte daergologia, trabalhamos principalmente com os conceitos de atividade, debate de normas e uso desi. O eixo principal para estabelecermos as aproximações é o fato de ambas as teoriasconceberem as práticas dos trabalhadores nos locais de produção como relações sociais entrepráticas e concepções de mundo contraditórias e, por isso, caracterizadas pela abertura àspossibilidades de realização humanas.

A teoria social da mais-valia como capacidade de ação

A relação social econômica e conflito essencial do capitalismo é a mais-valia, assimformulada por Bernardo (1991): “o tempo de trabalho incorporado na força de trabalho émenor do que o tempo de trabalho que a força de trabalho é capaz de despender no processo deprodução” (p. 15). A mais-valia está não apenas no fulcro da vida social econômica, masexpressa também a contradição essencial do sistema, por meio da qual podemos definir as

4 De diferentes maneiras, outras teorias têm ressaltado o caráter criativo e transformador da ação humana. Alcover de La Hera (LaHera, Íñigo, Mazo & Bilbao, 2004), por exemplo, discutindo o que para ele constituem os referenciais básicos da Psicologia doTrabalho, comenta que “entender a conduta humana como mera resposta a uma situação estimular é empobrecê-la radicalmente.As pessoas elaboram a informação contida na situação estimular, interpretam essa situação, o fazem, além disso, com referências einterpretações prévias compartilhadas com outras pessoas, influídas por concepções globais da realidade – culturais, ideológicas – eemitem uma resposta que, por sua vez, vai ser interpretada por si mesmos e por outros. (...) A forma de abordar o pensamento estáem analisar como as pessoas captam essa informação, como armazenam, a processam e a recuperam, e como a utilizam” (p. 214).Na psicodinâmica do trabalho, Gernet e Dejours (2009) afirmam que “o exercício do trabalho é acompanhado inevitavelmente daconfrontação ao real, quer dizer, a isso que se faz conhecer àquele que trabalha por sua resistência à dominação, e impulsiona osujeito a pensar e agir de outra forma que a organização do trabalho previu” (p. 27).

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Aproximações entre o conceito de uso de si e a teoria da mais-valia de João Bernardo

classes sociais, que ocupam na relação os polos opostos da relação social. No centro da relaçãoencontra-se o movimento que articula os dois polos e que lhes dá vida, “a ação da força detrabalho, a sua capacidade de trabalhar” (Bernardo, 1991, p. 15). É a ação da força de trabalhoque dá vida ao capital morto, que vivifica o acúmulo de capital estagnado nos bens jáproduzidos:

Os elementos representativos do capital constante são trabalho morto enquantopermanecerem exteriores ao elemento ativo das relações sociais, enquanto a força detrabalho em ação não os inserir de novo no processo de produção da mais-valia. Omecanismo da exploração, sinônimo do trabalho vivo no seu processo, mantém comocapital toda a sociedade e todos os elementos materiais que a corporalizam... Assim, nocentro do capitalismo, sustentando-o como relação social em reprodução, encontra-se aforça de trabalho entendida enquanto capacidade de ação (Bernardo, 1991, p. 19).

Marx entendia a ação como uma prática material, algo inédito na época, quandopredominava a ideia de ação como processo mental. Para Bernardo, essa última compreensãoescamoteia a ação enquanto processo prático de produção material. Segundo o autor, essatendência é ainda predominante nas concepções acadêmicas a nas ideologias imperantes navida cotidiana. Isso acarreta e, ao mesmo tempo, expressa a desvalorização social que sofre aprática material: “não se reconhece a força de trabalho em qualquer ação como categoriaconceitual, porque os trabalhadores não assumem nenhuma posição de poder na sociedade”(Bernardo, 1991, p. 51). E quando a prática material é vista na esfera ideológica como umacategoria própria, reflete a tentativa dos trabalhadores apoderarem-se da totalidade domovimento social.

A ação da força de trabalho é eminentemente coletiva. Por uma parte, isso tem a vercom a interdependência entre as várias etapas da produção, de modo que os processosprodutivos não podem ser vistos em seu isolamento. Por outra, nessa interdependência, umdado processo de trabalho só se realiza como capital no momento em que for vivificado pelosprocessos seguintes. Assim, podem-se apresentar os casos de trabalhadores individuais, oumesmo grupos, somente na medida em que dependentes da ação coletiva dos trabalhadores.

Uma das características essenciais desse movimento dos trabalhadores é odesapossamento. São eles que dão vida à produção, mas, ao mesmo tempo, são desprovidos docontrole sobre o processo e da “possibilidade de se formar e se reproduzir independentemente”(Bernardo, 1991, p. 15). Esse controle e essa possibilidade pertencem ao capitalista, a partir domomento em que ele adquiriu o direito de uso da força de trabalho. O que expressa o quãoconflitante é essa relação é o fato de que “são os trabalhadores os que executam os raciocínios eos gestos necessários à produção, mas a todo o momento os capitalistas lhes retiram o controlesobre essa ação, integrando-a no processo produtivo em geral e subordinando-a aos seusrequisitos” (Bernardo, 1991, p. 16), um processo de desapossamento que se renova dia após dia.Ao mesmo tempo, existe a luta pela reapropriação desse controle. Para Bernardo (1991), aíreside “o âmago da problemática da mais-valia” (p. 16).

As lutas pelo controle da ação, por parte dos trabalhadores, podem ser entendidas, naperspectiva ergológica, como a luta pelo uso de si, conceito que passamos a expor a seguir.

As (re)normalizações e o conceito de uso de si

Pensamos que o conceito de uso de si é, em grande parte, decorrência da compreensãode que a atividade de trabalho é, para o trabalhador, um lugar de expressão de sua humanidade,de modo que é impossível o trabalho ser apenas execução e, desse modo, não haver história

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nessa ação. Há um impulso para a realização daquilo que é humano, um desejo de expressar-seenquanto ser social inerente à ação. Assim, há sempre uma distância (écart) entre aquilo quefoi produzido e aquilo que é realizado em ato no trabalho, uma característica universal daprodução econômica. Além disso, apesar da possibilidade de certa antecipação da atividade, essaantecipação é parcial, pois a atividade demanda do trabalhador certo grau de iniciativa para queo trabalho seja realizado. E, ao ter de agir, é impossível que o trabalhador não entre com o seuser.

Conceitos que no nosso entender são essenciais para a compreensão do uso de si são osde normalizações e renormalizações, e o debate de normas daí decorrente, mais amplos do quetrabalho prescrito e trabalho real, desenvolvidos pela ergonomia francesa. Esses últimos sãoconceitos mais “fixados”, pois a qualidade essencial da prescrição é justamente suaimutabilidade, enquanto o realizado refere-se apenas ao que realmente foi feito. Tais conceitos,a nosso ver, em que pese sua inequívoca pertinência, excluem o movimento inerente àatividade, assim como a ergologia propõe.

As normalizações são as normas e os regulamentos anteriores à realização do trabalho ecompreendem também as normas instituídas pelo coletivo dos próprios trabalhadores.Constituem uma espécie de sedimentação provisória daquele conhecimento anterior àrealização do trabalho, em parte sistematizado nas normalizações administrativas, em parte nãosistematizado nas normas instituídas pelos trabalhadores. As renormalizações são uma condiçãosine qua non para que o trabalho aconteça. Para que haja a iniciativa do trabalhador, para queele realize o desejo, de algum modo, de deixar a sua marca, o que é também uma forma deresistir à domesticação, ele precisa expressar-se, o que ocorre por meio tanto do corpo quantoda mente, na medida em que “a história da pessoa está profundamente engajada no que ocorre”na atividade (Schwartz & Mencacci, 2008, p. 10). As renormalizações ocorrem num debate comas normas antecedentes (o que remete às condições materiais encontradas), e isso, para osautores, envolve uma dimensão bem maior do que o trabalho prescrito, insuficiente para oenquadramento da ação.

É por isso que essas duas dimensões, normalizações e renormalizações do trabalho,ocorrem de maneira inseparável. A primeira está ligada mais à necessidade de corresponder àsnormas antecedentes, o que configura uma “anulação” ou tentativa de anulação do histórico,mais sedimentada (as condições materiais encontradas) do que em movimento, mas da qualnão se consegue escapar, e que corresponde ao que Schwartz chama de uso de si pelos outros. Asegunda diz respeito à impossibilidade de anulação do histórico, à inevitável “infiltração dohistórico no protocolo prescrito” (Cunha, 2007, p. 5), na medida em que, quando age, o corpo-mente expressa, seja pelo desejo ou pela necessidade da própria concretização da ação, todo umpatrimônio cultural, um processo de hominização que o autor chama de uso de si por si mesmo.Nele, “é a pessoa que reinventa certa maneira de fazer, de viver, de sobreviver com os outros”(Schwartz & Mencacci, 2008, p. 11).

Para Schwartz, ao adentrar num lugar de trabalho, vemos que existe uma série denormas que antecedem a realização do trabalho pelos trabalhadores, pertencentes ao âmbito daorganização, do organograma, dos procedimentos etc., que são fixadas. Há também normasantecedentes instituídas pelos próprios trabalhadores, normas do grupo, ou seja,“renormalizações coletivas estabilizadas”. Estas se diferenciam daquelas geradas pelaadministração, porque não são escritas “e são criadas a partir da atividade de trabalho”, dosproblemas surgidos nesse âmbito. Há continuidades e descontinuidades entre esses tipos denormas. Já a renormalização “é tudo que eu faço no momento em que, eu, pessoa singular, commeus próprios antecedentes, minhas próprias relações com esse universo de normasantecedentes, eu entro num lugar de trabalho e eu trabalho, é isso que eu chamo de uso de sipor si” (Schwartz & Mancacci, 2008, p. 13).

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Aproximações entre o conceito de uso de si e a teoria da mais-valia de João Bernardo

Quando, requisitado pela atividade de trabalho, esse patrimônio histórico entra emação, recursos muito mais amplos do que os que são demandados e explicitados de formaimediata entram em funcionamento, pois é o indivíduo como ser social que é chamado a agir.Para o autor, isso faz que os processos produtivos e os conflitos sociais a ele inerentes sejamincompreensíveis sem a consideração do que ele chama de uma “espécie de ambiguidade entreuso de si por si e uso de si por outros” (Schwartz, 2000, p. 11).

Sem o conceito de uso de si, não se pode compreender também o recuo do taylorismo.Para o autor, em um determinado momento, tornou-se difícil gerir essa presença ambígua douso de si por si mesmo e do uso de si pelos outros em cada ação do trabalhador (Schwartz &Echternacht, 2007, p. 11), ou seja, a inevitável penetração do histórico frente à tentativa deenquadramento da atividade nas normas antecedentes.

É importante mencionarmos aqui o fato de que o recuo do taylorismo ocorreacompanhado justamente da incorporação de parte dessa dimensão mais criativa dostrabalhadores na produção. Como demonstram Womack, Jones e Roos (1992) numa ótimadescrição do desenvolvimento do toyotismo, as transformações originadas nesse paradigmaprodutivo advêm da incorporação de conhecimentos historicamente escondidos pelostrabalhadores nas fábricas de produção em massa. É o que Gorz chama de “inversão parcial” dadesqualificação da força de trabalho, que consiste na descoberta, pelos gestores capitalistas, deque a organização opressiva do trabalho, em função da resistência criada e expressa porindolência e hostilidade difusa, priva a empresa da inventividade e criatividade operárias, tendocomo consequência enormes prejuízos (Gorz, 1984).

É necessário destacar, no entanto, que as formas como ocorre a incorporação dashabilidades dos trabalhadores são testemunhas do conflito inerente a sua existência. Asempresas não toleram que os trabalhadores tomem a iniciativa de reorganizar o processoprodutivo. A expressão do ser do trabalhador é objeto de permanente tentativa de controlepelos capitalistas, mesmo que em sua totalidade isso seja impossível.

Usos de si, mais-valia e lutas dos trabalhadores

A partir daqui, devemos considerar que o trabalho não pode resumir-se à domesticaçãoou à alienação. É certo que o trabalhador nada dispõe a não ser de sua força de trabalho. Paratrabalhar e sobreviver, ele precisa ceder o controle de sua força de trabalho ao capitalista, o queconstitui uma separação entre ele e sua força de trabalho. Havendo a separação entre oindivíduo e seu trabalho, há, também, uma separação entre o indivíduo e tudo o que se refere aseu trabalho: o processo de trabalho, os produtos, sua natureza humana e os outros homens. Aatividade de alienação é, assim, sobretudo, alienação de si mesmo: “se o produto do trabalho éalienação, a própria produção deve ser alienação ativa – a alienação da atividade da alienação”(Marx, 1979, p. 93).

O que afirmamos, no entanto, com apoio nas teorias que trazemos nesse estudo, é queesse processo não é isento de contradições. Para a ergologia, se a atividade é a relação entre usode si pelos outros e uso de si por si mesmo, os quais carregam concepções de mundo e históriasdiferentes, uma mais fixada, outra em movimento, está claro que a relação entre essas duasdimensões do trabalho não pode ser, em absoluto, convergente. Como consequência, aatividade de trabalho é o lugar de uma “tensão problemática, de um espaço de possíveis semprea negociar” (Schwartz, 2000; Rosa, 1999, p. 3). Há duas ideias a destacar nessa frase. Umarefere-se à impossibilidade de antecipação total da atividade em decorrência das constantescontingências que atingem o ambiente de trabalho, que, por sua vez, demonstra a

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“‘infidelidade’ do meio”. A outra é que, como já afirmado, esse espaço da produção econômicaé um lugar de conflito, logo, também de negociação.

Tal conflito, a nosso ver, expressa as contradições da produção econômica capitalista,que tem a mais-valia como base das relações sociais. A contradição, como dissemos, está nocerne dessa relação social em que a força de trabalho articula os termos opostos, quais sejam,tempo de trabalho incorporado e tempo de trabalho despendido. A questão que permite ver essarelação como essencialmente aberta é o fato de a força de trabalho ser capaz de despenderdeterminado tempo de trabalho na produção, mas este capaz de, como diz a expressão, serindefinido. Como diz Bernardo (1991), “não implica nunca o grau exato em que [ela, força detrabalho] pode fazê-lo” (p. 71).

E isso na medida em que, como forma de valorização da sua força de trabalho, ostrabalhadores lutam para incorporar o menor tempo possível à produção. Das formas de lutaque Bernardo chama de passivas e individuais, como o desinteresse, o absenteísmo, oalcoolismo ou a dependência de entorpecentes, às ativas, como a sabotagem e

as várias gradações da ação coletiva, desde a diminuição em conjunto do ritmo de trabalhoaté a ruptura radical da disciplina de fábrica e a organização do processo produtivoconsoante outros moldes e critérios [...] Por isso, os resultados do processo de exploraçãosão irregulares, em grande parte imprevisíveis, fluidos (Bernardo, 1991, p. 71).

A luta central que ocorre no âmago no sistema produtivo é, assim, para Bernardo, umaluta pelo controle do tempo de trabalho.5

Schwartz (2000) concorda com a ideia de que, para o trabalho ser efetivamenterealizado, os próprios prescritores não esperam que os trabalhadores ajam como autômatos oumortos-vivos: “os ergonomistas sabem, hoje, perfeitamente que a estrita aplicação deprescrições conduziria ao desperdício, à insuficiência, senão à não valorização do trabalhomorto” (p. 41).

Como dissemos, o impulso para a hominização, no qual é inerente a tentativa derealização, de expressão de si próprio, faz que o trabalho seja sempre um terreno de lutas sociaisindividuais e de classe. Para Schwartz, a atividade de trabalho é um espaço em que os interessessão negociados. Uma negociação entre o “ambiente histórico, social, gerencial, técnico”, ouseja, as normas antecedentes, e “obrigações absolutas para se dar aqui e agora normasreprocessadas de trabalho e de vida” expressas no conceito de renormalizações (Schwartz, 2011,p. 58).

Ao renormalizar o que é protocolado, ao dar vida ao trabalho, os trabalhadores entramcom seus valores no sentido de tentar criar um meio mais conforme a si mesmos. Para Cunha(2007), essas escolhas envolvem questões como qualidade versus rapidez, economia de si versusfacilitar a vida coletiva e uma infinidade de outras, que resultam na necessidade de realizar“arbitragens, ponderações, critérios, engajamento” que se convertem, na prática, em “dramasdo uso de si” (p. 10). Como diz Canguilhem (1947), “todo homem quer ser sujeito de suasnormas” (citado por Schwartz, 2000, p. 48). Para Schwartz, tal negociação está na base de um“equilíbrio dinâmico”, de modo que pode se perceber aí que, para a própria atividade produtivaacontecer, exige-se certo equilíbrio entre as forças antagônicas que lhe dão sustentação, emque, segundo o autor, “nenhum fim pode aniquilar totalmente o outro” (2000, p. 37).

Difícil não ver nessa compreensão a contradição inerente à luta de classes, visto que no“equilíbrio dinâmico”, que pressupõe a existência do sistema, as classes sociais não podem viveruma sem a outra, o que implica uma permanente negociação entre práticas e representaçõessociais antagônicas. O fato de a atividade de trabalhar implicar práticas de renormalizações, umprocesso de humanização no qual os trabalhadores devem colocar sua vida no objeto de

5 Acrescentamos que, para o autor, os atuais métodos toyotistas não convencem os trabalhadores da identidade de interesses entreeles e os capitalistas, seguindo, portanto, a luta pelo controle do tempo.

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trabalho, significa que eles devem fazer escolhas (dramática do uso de si por si mesmo e do uso desi pelos outros): “gerir o aspecto encontro de encontros é gerir aquilo que os outros não geriramantes de nós, e, se você faz escolhas, forçosamente tem critérios a partir dos quais você faz essasescolhas. Trabalhar sobre essas escolhas é trabalhar sobre você mesmo” (2010, p. 44).

Questionando as clássicas divisões do trabalho, Schwartz afirma que as esferas manuale intelectual nunca se separam. Mesmo os trabalhos manuais mobilizam, por meio do corpo dotrabalhador, o “suporte de uma história pessoal”, uma massa de microapreciações, demicroescolhas, de microjulgamentos, o que é especialmente claro no ramo dos serviços. Aquestão importante para nós são os critérios para essas escolhas. Em que medida esses podemser considerados critérios individuais, humanizantes, e em que medida eles podem serconsiderados também critérios de classe? Retomando a relação social de mais-valia e as váriasformas de resistência dos trabalhadores, podemos considerar que os critérios estão relacionados,em maior ou menor grau, com os valores e concepções de mundo de classes sociais. Assimcomo um corpo é “suporte de uma história pessoal, uma ‘massa’ de microapreciações, demicroescolhas, de microjulgamentos” (Schwartz, 2004, p. 59), esse corpo está ligado a critérioscomuns de uma classe. Não queremos dizer aqui que o individual e o coletivo (a classe) seconfundam a ponto de o último anular o primeiro. O que afirmamos é que ao menos parte doscritérios para essas escolhas, assim como dos valores, das concepções de mundo que subjazemas mesmas, são critérios de classe, e isso possui um fundamento econômico na relação social demais-valia, nos conflitos entre tempo incorporado e tempo despendido.

Há uma politicidade no caráter do uso de si por si mesmo. Na medida em que implicarenormalizações, e essas não estão dadas a priori, resulta em algo de imprevisível, o que faz quetanto as formas quanto a expressão do conteúdo dessas renormalizações tenham um carátersubversivo.

Os debates de normas não são apenas individuais, mas, sobretudo, coletivos:

Através deles, os protagonistas do trabalho não cessam de desfazer [...] os limites doexercício deles mesmos, dos horizontes de vida que essas divisões propõem ou impõem.Esses germes de transgressão instabilizam toda a divisão do trabalho, qualquer que seja ela.Toda a divisão do trabalho é sempre um resultado, mais ou menos instável, provisório,conflitual (Schwartz, 2004, p. 68).

O trecho citado é particularmente importante para discutir a subversão inerente àatividade de trabalho, e que remete à politicidade dos usos de si. O debate de normas expressa aoposição de concepções de mundo presentes, de um lado, na tentativa do capital de fazer um“uso dos outros” (os trabalhadores), convertido, do ponto de vista do trabalhador, no uso de sipor outros e, de outro, no uso de si por si mesmo.

As lutas coletivas e ativas são, segundo Bernardo, a forma organizativa mais elevadaque podem assumir as lutas dos trabalhadores. Nelas, eles atuam como um corpo único, e aação de cada trabalhador repercute no comportamento de outro trabalhador. Nas formas deorganização que expressam esse tipo de luta, os operários enfrentam a disciplina capitalistaimpondo ritmos próprios de trabalho, o que exige desde o princípio um conhecimento daprodução e aponta ao mesmo tempo a tentativa de controle da mesma:

Ao organizarem-se, por iniciativa própria, em violação às normas, os trabalhadores estão aafirmar a vontade de decidirem o seu inter-relacionamento durante o trabalho e, portanto,manifestam uma tendência prática ao controle dos processos econômicos. É neste sentidoque se trata de uma forma de luta. E é uma forma coletiva, pois um dado trabalhadordificilmente poderá modificar seu comportamento de trabalho sem o conjugar com aremodelação do dos colegas. É, portanto, uma forma ativa, pressupondo a iniciativa e aparticipação interessadas de todos os que colaboram (Bernardo, 1991, p. 50).

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Os trabalhadores, ao imporem formas de relacionamento coletivas e ativas,demonstram um conhecimento profundo das forças produtivas e da tecnologia capitalista, aomesmo tempo que o decorrer do processo exige uma apropriação, cada vez maior, pelosmesmos, desse conhecimento, assim como a modificação dos próprios padrões de produçãosegundo as relações criadas no processo. Analisando essa questão a partir da ergologia,podemos afirmar que esse processo resultaria numa ruptura com a tentativa de enquadramentoda atividade pelos gestores capitalistas, com as normas antecedentes assim como estãoconstituídas, ao mesmo tempo que abre a possibilidade de um mais amplo uso de si por si mesmo.

Para aumentar a produtividade, é necessário submeter os trabalhadores a cada vez maiscomplexas normalizações que visam enquadrar a atividade nos padrões exigidos pela gestão daprodução. A essas tentativas de normalização os trabalhadores responderão com iniciativasnecessárias à realização do trabalho, que implicam valores, concepções de mundo e desejos,distintos dos previstos nas normalizações. Ou seja, no aumento da produtividade, logo, daintensidade do trabalho, convergem o crescimento da mais-valia e a tentativa deinstrumentalização do uso de si.

Para concluir, é importante dizermos que existe uma distinção entre os conceitos demais-valia e o uso de si no que se refere à especificidade histórica de cada uma deles. A mais-valia expressa a relação social de exploração do trabalho realizado no sistema capitalista deprodução, enquanto o uso de si é um conceito que remete ao trabalho como atividadeindustriosa na generalidade dos trabalhos no decorrer da história humana. O próprio Schwartzchama a atenção para uma distinção, em Marx, entre o conceito de trabalho como produção devalor em nossa época atual e o “trabalho em geral”, ou seja, “movimento do trabalho útil emgeral, abstração feita de toda marca particular que lhe pode imprimir uma ou outra fase doprogresso econômico da sociedade” (Marx citado por Schwartz, 2011, p. 53). Para ele, mesmono capitalismo, o trabalho segue tendo essa característica genérica, na medida em que,enquanto atividade industriosa, “jamais é puro encadeamento de normas, de procedimentos,pensados anteriormente e sem a pessoa que vai trabalhar, porque isso é simplesmenteimpossível e ao mesmo tempo muito difícil de ser vivido” (Schwartz, 2011, p. 64).

Considerações finais: obstáculos a uma ampliação do uso de si por si mesmo

Pensamos que a discussão aqui abordada insere-se no contexto da tensão entreadaptação e autonomia a que se refere Adorno. Afirma ele que, no projeto de formação doiluminismo, “havia um duplo propósito: obter a domesticação do animal homem mediante suaadaptação interpares e resguardar o que lhe vinha da natureza, que se submete à pressão dadecrépita ordem criada pelo homem” (Adorno, 1996, p. 390). Essa tensão é, portanto, inerenteà existência humana, necessária ao processo de socialização e dela não se pode fugir. Ocorreque, “nos casos em que a cultura foi entendida como conformar-se à vida real, ela destacouunilateralmente o momento da adaptação, e impediu assim que os homens se educassem unsaos outros” (Adorno, 1996, p. 390). Na história da formação, o peso sempre caiu mais para olado da adaptação, o que leva à acomodação e ao conformismo. É o que ocorre também notrabalho.

Sennet (2008) afirma que o trabalho do artífice resulta em recompensa emocional, namedida em que ele trabalha com apoio numa “realidade tangível” que lhe permite orgulhar-sedo que faz. Ocorre que a sociedade tem historicamente interditado a possibilidade dessasrecompensas:

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em diferentes momentos da história ocidental, a atividade prática foi degradada, foidivorciada de objetivos supostamente superiores. A habilidade técnica foi desterrada daimaginação: a realidade tangível, questionada pela religião, e o orgulho do trabalho próprioconsiderado como um luxo (Sennett, 2008, p. 18).

Para o autor, em que pese o trabalho realizado na “nova economia” seja maisqualificado e exigente, “segue sendo uma tarefa dissociada”. Em pesquisa que realizou, destacaque foram encontrados poucos técnicos “que acreditavam que seriam recompensados pelo fatode fazerem bem um trabalho, sem outra finalidade. O artesão moderno pode cultivar em seufórum íntimo este ideal, mas, dado o sistema de retribuições, esse esforço será invisível”(Sennett, 2008, p. 29). Para ele, ao mesmo tempo que a nova economia incrementou aeficiência dos trabalhadores, os “descoraçonou”.

Na compreensão de Oddone (1984), “ultrapassar a divisão do trabalho significa para osoperários reapropriar-se do saber (pela reapropriação dos espaços de gestão, de poder, dedecisão, de informação, etc.) dos quais eles têm sido privados pela divisão do trabalho” (p. 31).Ele afirma que não é possível separar as lutas políticas da competência profissional, ou seja, daexperiência das capacidades de realização da atividade pelos trabalhadores.

Pensamos que uma maior amplitude da ação dos trabalhadores no que se refere àrealização de suas vontades depende de uma ação coletiva. Ambas as teorias aqui analisadasvalorizam, de diferentes maneiras, a ação individual de cada trabalhador. E ambas concordamque é uma forma de resistência, de opor-se à inércia, de vivificar práticas sedimentadas emprocessos de produção anteriores. Acreditamos que as ações individuais são também uma formade “infiltração do histórico” no que é protocolado, e que, portanto, trata-se de um processo dehumanização. Mas, como afirma Bernardo, as ações individuais podem ser assimiladas pelocapitalismo, que inclusive delas depende para que o trabalho ocorra.

É importante lembrar aqui a atitude dos capitalistas em relação às tentativasautônomas dos trabalhadores de assumirem o controle da produção. Gorz (1984) observa que,embora a nova economia dependa de maior iniciativa dos trabalhadores expressa na maiorparticipação intelectual, as empresas só validam tais iniciativas quando as têm sob controle. Emações em que são os trabalhadores quem tomam a iniciativa de realizar mudanças, colocandoem cheque a disciplina e a hierarquia, as empresas costumam responder com repressão.

Nesse sentido, pensamos que é necessário que as lutas individuais, as formas deresistência, o uso de si por si mesmo, devem ultrapassar o âmbito individual para realizar todo seupotencial. Como afirma Oddone, uma transformação da situação atual é possível, desde que seacredite na possibilidade de ultrapassar a divisão do trabalho: a “condição de reconhecer, emsuma, que a classe operária tem capacidade de operar dialeticamente a reapropriação daquilode que ela foi despossuída pela divisão do trabalho” (1984, p. 30). Ao ultrapassar o âmbitoindividual, a tendência é que os critérios de escolhas feitas pelos trabalhadores sejamexpandidos para o conjunto da produção. Os critérios individuais e um patrimônio históricotambém individual continuariam existindo, mas aquilo que é comum nessas escolhas só poderealizar-se se puder ser efetivado coletivamente.

Referências

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Endereço para correspondê[email protected]

Recebido em: 28/05/2012Revisado em: 03/01/2013

Aprovado em: 27/02/2013

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Vivências de trabalhadores com diferentesvínculos empregatícios em um laboratório público1

Marcia Hespanhol Bernardo2, Fábio Frazatto Verde3 e Johanna Garrido Pinzón4

Pontifícia Universidade Católica de Campinas (Campinas, SP)

Este artigo refere-se a uma pesquisa que teve como objetivo analisar a vivência de profissionais com diferentesvínculos empregatícios inseridos em um mesmo serviço público de saúde, tomando como pressuposto que, assimcomo o setor privado, o setor público também tem sido afetado pelas mudanças no contexto capitalista atual. O focod a investigação foi um laboratório público, que foi submetido a uma condição de cogestão entre a administraçãopública e uma entidade sem fins lucrativos, no qual convivem trabalhadores que, apesar de exercerem as mesmasfunções, possuem diferentes vínculos empregatícios. Serão discutidas comparativamente as entrevistas realizadas em2011 com dois profissionais de análises clínicas: um funcionário admitido por concurso público há mais de vinteanos, que foi “militante” do SUS, e outra trabalhadora com vínculo de trabalho terceirizado há três anos, que sóatuou no setor privado anteriormente. Observou-se que as vivências de trabalho de ambos são permeadas porcaracterísticas típicas das empresas capitalistas, que se traduzem em precariedade objetiva (baixo salário e vínculoinstável), no caso da funcionária terceirizada, e em precariedade subjetiva (sensação de mal-estar com relação aotrabalho), do funcionário público. Apesar dessas diferenças, ambos os trabalhadores, cada um a sua maneira, sofremcom a situação imposta pela ideologia neoliberal que busca terceirizar o serviço público de saúde.

Palavras-chave: Saúde mental relacionada ao trabalho, Saúde do trabalhador, Saúde pública, Precarização dotrabalho, Desgaste mental no trabalho.

Experiences of workers with different employment relationships in a public laboratory

This research aimed at analyzing the experience of professionals with different employment contracts in the samepublic health service, assuming that the public sector – similarly to the private sector – has also been affected bychanges in the current capitalist context. The focus of the investigation was a public clinical laboratory, which wasco-managed by the government and a non-profit organization. There were workers that, despite performing similarfunctions, had different types of employment contracts. The interviews, conducted in 2011, with two professionals ofa laboratory of clinical analysis will be discussed comparatively. The interviewees were a public servant, hiredthrough official examination, who had been employed for more than twenty years, which was an activist for theUnified Health System (SUS), and the other a contract worker, accepted three years prior to the research, who hadonly worked in the private sector. According to observations, the working experiences of both technicians werepermeated by typical features of capitalist enterprises, which are translated into objective precariousness (low salariesand unstable employment), in the case of the contract worker, and subjective precariousness (discontentment inrelation to work), in the case of the public servant. Despite these differences, the two workers, each in his/her ownmanner, were not happy with the situation imposed by the neoliberal ideology that seeks to outsource the publichealth service.

Keywords: Mental health related to work, Worker’s health, Public health, Work precarization, Mental wear down atwork.

As novas características da organização do trabalho no setor público

presente artigo surge de uma pesquisa que estudou a vivência de trabalhadores inseridosem um serviço público de saúde, tomando como pressuposto que, assim como o setor

privado, o setor público também tem sofrido com as mudanças do contexto capitalista atual. O1 Essa pesquisa fez parte de um projeto multicêntrico de âmbito internacional denominado KOFARIPS (o capitalismoorganizacional como fator de risco psicossocial), coordenado por Josep Maria Blanch Ribas, da Universidade Autônoma deBarcelona, cujo objetivo foi compreender as repercussões psicossociais do capitalismo organizacional na saúde pública e nauniversidade pública.

2 Docente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia da PUC-Campinas.

3 Aluno do curso de graduação em Psicologia da PUC-Campinas.

4 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia da PUC-Campinas.

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Vivências de trabalhadores com diferentes vínculos empregatícios em um laboratório público

Antunes (2005) afirma que a grave crise enfrentada pelo capitalismo a partir da décadade 1970 levou a sua reorganização com vistas à retomada do patamar de acumulação e àdominação global. Como consequência, houve a intensificação dos processos de trabalhoexistentes e a criação de novas formas de relações do trabalho. Ainda que essas transformaçõestenham se iniciado nas indústrias, elas vêm se expandindo para todos os setores da sociedade,incluindo serviços públicos voltados para as necessidades básicas da população, como os deeducação e saúde (Blanch-Ribas & Cantera, 2011).

Desse modo, cabe mencionar que a divulgação do atual “espírito do capitalismo”(Boltanski & Chiapello, 1999) foi tão eficiente na afirmação de uma economia de mercadoglobalizado, que já colonizou quase todos os âmbitos da vida humana individual e coletiva(Blanch-Ribas, 2007). Uma das principais características que marcam o espírito “flexível” docapitalismo atual – presente em praticamente todo o mundo ocidental e, portanto, também noBrasil – diz respeito à reformulação do papel do Estado, que deve estar cada vez mais “enxuto”,deixando para o “mercado” o controle e a regulação dos diversos setores que envolvem asociedade.

Nesse sentido, os estudos dos processos de reforma das instituições da rede pública sãoparticularmente interessantes, já que permitem vislumbrar as tensões, contradições ecomplementaridades com relação às organizações incluídas na “cultura do novo capitalismo”(Sennett, 2006). Tradicionalmente, as modalidades de especialização do trabalho, os critériosde permanência e mobilidade dos funcionários, assim como o caráter da tradição cultural,refletem a solidez e a estabilidade dos vínculos de trabalho nos serviços de saúde pública, osquais têm se caracterizado por conter disciplinas e profissões vocacionais baseadas em critérioséticos e de valor social. Esses espaços conferiam ao trabalho um estilo de independência eliberdade de exercício das atividades, sem as pressões e a ingerência do “mercado”, que sãoprecisamente as diretrizes do new management (Blanch-Ribas, 2007), segundo novos princípiosempresariais.

A modificação desse contexto nas últimas décadas em países que tinham sistemas desaúde pública bastante organizados produz a coexistência de lutas e tensões, que envolvem, deum lado, os valores, as identidades, os discursos e as práticas das tradições profissionais dofuncionário público e, de outro, as novas formas de gerenciamento flexível (Bauman, 1999;Blanch & Stecher, 2009; Sennett, 2006).

Mas pode-se indagar quais são as razões para essa mudança e quais suas consequênciaspara a organização do trabalho. Como resposta, Blanch-Ribas e Cantera (2007) afirmam queessa é uma reação ao fato de, nesse início do século XXI, o setor público de numerosos paísesdesenvolvidos ter enfrentado uma crise financeira, agravada pela minimização do papel doEstado na manutenção e na gestão de suas instituições. Procurando sua sustentabilidade, asinstituições de saúde pública são, gradualmente, forçadas a fazer parte da lei de oferta eprocura, com a adoção da privatização e a tendência a ter de competir com empresas privadaspor meio da comercialização de seus respectivos produtos e serviços (Blanch-Ribas & Cantera,2011).

Na América Latina, a inserção da lógica capitalista nas instituições públicas serelaciona intimamente com o modelo neoliberal de reforma do Estado desenvolvido pelo BancoMundial, o qual tem sido implementado desde fins da década de 1980 em diferentes países daregião. Especificamente com relação ao setor de saúde, de acordo com Homedes e Ugalde(2005, citado por Blanch-Ribas & Stecher, 2009), esse modelo se organiza em torno dosseguintes princípios:

- A necessidade de cortar o gasto social, por parte dos países latino-americanos, com vistas a um processode ajuste estrutural promovidos pelo Consenso de Washington5 no final da década de 1980;

5 O nome “Consenso de Washington” foi utilizado pelo economista John Williamson em 1989 e refere-se a uma série de políticaseconômicas que fizeram parte dos programas do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento, dentre outras

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- A prioridade dos princípios econômicos de lucro, competitividade e benefício próprio sobre osprincípios de solidariedade e universalidade no acesso aos serviços de saúde;

- A promoção de uma forte transformação cultural que supõe entender a saúde não como umdireito social, mas como um bem. Isso implica estabelecer o consenso de que o lucro no setor desaúde é legítimo e necessário, deixando, assim, que a mercantilização dos serviços de saúde sejaa única via para atrair capitais dispostos a desenvolver sistemas de atenção com maiorqualidade e eficiência;

- A ideia de que o setor privado sempre será mais eficiente que o público e que, portanto , oEstado não deve se dedicar à criação nem à administração de bens ou serviços, devendo atuarde forma a garantir o livre funcionamento de um mercado no qual distintas empresasconcorrem entre si para oferecer um serviço melhor e atrair os consumidores;

- A crença de que a concorrência entre provedores privados leva a um aprimoramento daqualidade e eficiência dos serviços e, consequentemente, a uma maior satisfação dos usuários;

- A descentralização da administração e da gestão dos serviços de saúde;

- A premissa de que a modernização dos serviços públicos exige flexibilização e desregulaçãodas relações de trabalho nesses âmbitos.

Esse fenômeno tem como consequência a implantação de novas formas de organizaçãodo trabalho e de vínculos empregatícios no setor público. Observa-se, nesse contexto, apriorização do trabalho individualizado, a subcontratação por meio de empresas terceirizadase/ou trabalho temporário, novas normas na jornada de trabalho, entre outras formas deexploração do trabalho (Antunes, 2005). Assim, Blanch-Ribas e Cantera (2011) afirmam que onovo tipo de gestão pública...

...reduz instituição de saúde ou universitária, seja qual for sua titularidade (pública, mistaou privada) nas áreas de educação e de saúde ao status de empresa mercantil que competeem igualdade de condições com outras, tratando de vender sua mercadoria de saúde ou deeducação em escala local ou global, de acordo com as regras do livre comércio (p. 526).

Nesse contexto, a gerência também assume o papel de cobrar produtividade dosempregados. É assim que se origina a implantação progressiva de um modelo organizacional nosetor público, denominado por Blanch-Ribas (2007) como “capitalismo organizacional”, o qualtoma como base alguns dos princípios que governam o mundo capitalista na atualidade. Essemodelo seria:

desenhado e gerenciado segundo a lógica da economia de mercado, no qual se destacam aretórica da produtividade, eficiência e competitividade; o axioma relativo ao lucro, oindividualismo e livre concorrência; a estratégia minimax (maximização dos benefícios docapital e minimização dos custos com pessoal); a política da desregulação das relações detrabalho; a tática de avaliação por resultados em curto prazo (Blanch-Ribas, 2007, p. 15).

O capitalismo organizacional é, assim, um modo específico de gestão “flexível” dosdispositivos de regulação social das relações de trabalho. Tais características não levam emconsideração a qualidade dos serviços prestados, e muito menos a qualidade de vida dostrabalhadores, que passam a ser submetidos a um modelo de organização do trabalho muitosimilar ao do setor privado, com aumento da carga e do ritmo de trabalho, que é medido pelaquantidade de serviços prestados. Essa intensificação da pressão por produção e oredirecionamento do sentido do trabalho no setor público evidenciam tensões psicossociais comconsequências no nível individual e institucional (Gaulejac, 2007). Nesse contexto, não édifícil concluir que aumenta a relevância das suas consequências psicossociais.

instituições, na época da reorientação econômica da década de 1980. Originalmente, esse pacote de medidas econômicas foipensado para impulsionar o crescimento dos países da América Latina, mas com os anos se converteu em um programa geral(Moreno, Pérez & Ruiz, 2004).

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Ainda que a saúde pública no Brasil tenha suas peculiaridades – que serão discutidasmais adiante –, identifica-se, em diversos municípios e estados, que esse processo também estápresente. A compreensão dessas dinâmicas nos proporciona uma oportunidade para explorar,no nível psicossocial, as transformações atuais do mundo do trabalho, em particular no âmbitoque envolve os servidores públicos.

Considerando essas características, antes de discutir a vivência de trabalhadores nocontexto da saúde pública em nosso país, é importante compreender um pouco do histórico doSistema Único de Saúde (SUS) brasileiro e sua configuração atual.

Capitalismo organizacional no SUS?

É importante iniciar a apresentação desse tópico lembrando que o SUS brasileiro érelativamente recente, tendo sido criado na Constituição Federal de 1988 e que, antes de suaimplementação, a saúde era um direito social restrito aos contribuintes, não disponível a todos.A criação desse sistema foi ambiciosa, ao ponto de abranger desde os atendimentos básicos atéos transplantes de órgãos. Além disso, o SUS também está embasado em um conceito ampliadode saúde, segundo o qual o sistema deve abranger, além da atenção ambulatorial e hospitalar,também atividades de prevenção de doenças e de promoção da saúde (Brasil, 1990).

Desde sua criação, o SUS já possuía algumas características marcantes, como oimperativo de que “é dever do Estado garantir saúde” (Brasil, 1988) e o conceito de “seguridadesocial”. O primeiro diz respeito à ideia de contar com políticas sociais e econômicas que visem àredução de risco e outros agravos na relação saúde-doença. Já o segundo conceito tem comoobjetivo assegurar os direitos relativos à previdência social e à saúde e garantir o atendimento acontribuintes e não contribuintes (Cordeiro, 2004).

Apesar de ter características de um modelo de saúde nacional prioritariamente público,Campos (2006) lembra que a implementação do SUS foi, desde o início, uma reformaincompleta e pouco continuada, pois sempre possuiu problemas marcantes de financiamento egestão, bem como não conseguiu colocar em prática todos os seus princípios fundamentais,especialmente os que se referem à integralidade, à universalidade e à equidade.

Durante esses mais de vinte anos de existência, o modelo de gerenciamento do SUS foisendo modificado conforme a conjuntura e o jogo de forças de cada momento histórico. Noentanto, um aspecto que deve ser ressaltado é que ele já nasce com a proposta de ser umsistema público que permite a participação “complementar” da iniciativa privada. No parágrafo1º do artigo 199 da Constituição Federal de 1988, lê-se que “as instituições privadas poderãoparticipar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste,mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicase as sem fins lucrativos” (Brasil, 1988).

Desse modo, Santos (2008) afirma que existe “uma tendência histórica do SUS de seconciliar com interesses privados – financeiros, patrimonialistas ou corporativos –, que, se porum lado nos permitiu criar o SUS, por outro lado, tem impedido a cabal construção de umsistema nacional e público de saúde” (p. 1). Campos (2006) também aponta que um dosproblemas nacionais está no fato de que defensores do pensamento liberal-privatista exercemconstante pressão para a abertura do SUS à iniciativa privada desde sua criação. E, com aexpansão da lógica neoliberal descrita acima, intensificou-se essa tendência de incorporação dosetor privado no sistema de saúde pública.

Assim, tem-se observado que, cada vez mais, na atualidade, o gerenciamento do SUS,em diversos municípios e estados, está sendo repassado para as chamadas “OrganizaçõesSociais” (OS), que, segundo a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo (2011), seriamentidades privadas que possuem a finalidade de formar parcerias com os governos, assumindo a

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gestão de unidades de saúde. Ou seja, a administração dessas unidades deixa de ser deresponsabilidade dos governos e passa para a iniciativa privada.

Nesse contexto, observa-se que vem ocorrendo uma ampla terceirização dogerenciamento dos serviços de saúde em muitos municípios brasileiros. Naqueles em que aindapredomina o gerenciamento público direto, também se observa, muitas vezes, a substituição deuma lógica voltada para a finalidade social por um modelo organizacional capitalista, queprioriza a competição e a produtividade em detrimento da qualidade do serviço realizado,juntamente com a precarização dos vínculos empregatícios.

Podemos compreender que esse processo de privatização é estratégico, pois, nopensamento neoliberal, seria adequado transferir responsabilidades sociais para o setor privado,transformando direitos em produtos e livrando o governo da responsabilidade por esses serviços(Amadigi, Albuquerque, Gonçalves & Erdmann, 2007). Afinal, de acordo com esses preceitos,garantir os direitos sociais como responsabilidade do Estado é uma forma burocrática deadministrar, além de impedir a entrada de capital externo para uma possível modernização(Amadigi et al., 2007). O principal argumento apresentado para defender essa posição évisivelmente alinhado aos preceitos do já citado Consenso de Washington, uma vez que ébaseado em dados numéricos que demonstrariam como o SUS é mal administrado pelo Estado(Campos, 2006).

O ex-ministro Luiz Carlos Bresser Pereira, por exemplo, defende que a única forma degarantir qualidade nos serviços de saúde seria por meio de uma saúde privatizada comsupervisão pública (Pereira, 1997). Para fazer essa afirmação, apoia-se em ideias frágeis comofalta de dinheiro e alta demanda, fundamentadas em uma ideologia cada vez mais fortalecida,de que este seria o único caminho para a modernização da saúde. Entretanto, destrói um valorfundamental conquistado com a implantação do SUS: o direito de todos de ter acesso aosistema de saúde, conforme assegura a própria Constituição Federal (Brasil, 1988, art. 196).

Essa proposta tem sido alvo de muitas críticas e mobilizações contrárias, que têm obtidoalgumas vitórias pontuais, mas não têm sido suficientes para impedir que a lógica mercantilistaavance e se afirme. Desse modo, tem-se observado que, cada vez mais, governos municipais eestaduais optam por uma administração dividida entre setor público e privado, sendo também acaracterística do município focalizado na pesquisa apresentada aqui. Esse métodoadministrativo pode criar uma divisão de “classes” dentro no ambiente de trabalho, a partir doestabelecimento de grupos de trabalho marcadamente desiguais (Couto, 2009), como, porexemplo, entre concursados e contratados por empresas/instituições terceirizadas. Vale lembrarque essa estratégia também pode ter a função de impedir a união de trabalhadores parareivindicações de melhorias nas condições de trabalho.

Tais circunstâncias têm impactos tanto na qualidade dos serviços prestados como nasaúde e bem-estar dos profissionais envolvidos. Considerando este cenário, indaga-se se avivência de diferentes tipos de relação de trabalho (concursado ou contratado por meio deterceirização da gestão) pode ter consequências para o bem-estar e para a saúde dostrabalhadores da saúde pública.

Tendo em vista o que foi apresentado até aqui, o presente artigo visa a expor osresultados de uma pesquisa na qual se buscou estudar a vivência de profissionais com diferentesvínculos empregatícios inseridos em um mesmo serviço público de saúde, tomando comopressuposto que, assim como o setor privado, o setor público também tem sido afetado pelasmudanças no contexto capitalista atual.

Para a pesquisa, utilizou-se como referencial teórico a concepção de precariedadesubjetiva proposta por Linhart (2009) e a ideia de desgaste mental sugerida por Seligmann-Silva (2011), que serão apresentadas sucintamente a seguir.

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As formas de precariedade no trabalho no contexto atual e o desgaste mental

Pode-se dizer que a principal característica da forma de organização do trabalhocontemporâneo é a “flexibilidade” (Bernardo, 2009). Essa noção abrange um conjunto decaracterísticas, entre as quais pode-se destacar a necessidade de os trabalhadores serem capazesde exercer uma variedade maior de tarefas; a desregulamentação das jornadas de trabalho, combanco de horas, por exemplo; a busca de um maior envolvimento do trabalhador com a“missão” da empresa; a individualização das relações de trabalho por meio de avaliaçõesindividuais etc. Assim, cabe mencionar que a transformação do contexto capitalista modificatambém o tipo de trabalhador requerido na atualidade e cria novas condições subjetivas detrabalho.

Entre as características mais influentes e categóricas do contexto contemporâneo está ocontrole subjetivo sobre o trabalhador, tal como define Linhart:

Trata-se de uma evolução central e determinante. A empresa moderna pretende ser umaempresa de indivíduos com os quais ela pode estabelecer relações de confiança. Elareivindica a confiança dos assalariados e quer também poder confiar neles. Todas aspolíticas empresariais de modernização têm por objetivo uma empresa constituída,sobretudo, por indivíduos cujas relações com a hierarquia e os colegas sejam claramenteestabelecidas em função das necessidades da organização e da eficácia das atividades, que,por sua natureza, escapam ao controle e não são passíveis de condução pela hierarquia(2000, p. 27).

Assim, observa-se que, ainda que grande parte dos trabalhadores atuais estejasubmetida a condições de trabalho objetivamente precárias, que envolvem, por exemplo, otrabalho terceirizado, temporário ou informal (Franco, Druck & Seligmann-Silva, 2010),também existe aquilo que Linhart (2009) chama de “precariedade subjetiva”. Essa noção dizrespeito a um “sentimento de precariedade que podem ter assalariados estáveis confrontadoscom exigências cada vez maiores em seu trabalho e que estão permanentemente preocupadoscom a ideia de nem sempre estarem em condições de responder a elas” (Linhart, 2009, p. 1). Aprecariedade subjetiva se caracteriza, assim, pelo “sentimento de isolamento e abandono” e, deacordo com a autora, “não é estranha ao sofrimento que se inscreve cada vez mais na relaçãocom o trabalho moderno; seria, inclusive, uma de suas características” (p. 3).

Esse conceito está intimamente relacionado com as diversas estratégias e imposiçõestrazidas pelas novas formas de organização do trabalho que têm como objetivo manter ostrabalhadores em suspense, propiciando-lhes uma tensão que, nessa concepção, seria altamenteprodutiva. Tal como o assinala Linhart (2009), o segredo para tornar os trabalhadores maisadaptáveis nestes tempos do trabalho “flexível” está em mantê-los, permanentemente, em umestado de insegurança, obrigando-os a trabalhar no limite de suas possibilidades, sempre naprocura de se superar:

Vislumbra-se então a virtude da desestabilização, da precarização no trabalho que impõeao assalariado demonstrar o tempo todo suas capacidades e ser validadopermanentemente. A mobilidade, a avaliação sistemática e o isolamento constituem (aolado da tensão permanente entre objetivos difíceis de conciliar) fatores de vulnerabilidade,de fragilização, fontes também de sofrimento. São as formas que adquire a precarização dosassalariados “estáveis” (Linhart, 2009, p. 12).

Considerando essas características, o que se pode dizer das consequências para a saúdemental dos trabalhadores? Sato e Bernardo (2005) fazem referência ao vínculo existente entreesse aspecto e a organização do trabalho, assinalando que a pressão pela produção, a falta deautonomia pelo controle excessivo no trabalho, o ritmo acelerado, a sobrecarga de

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responsabilidades, a ameaça do desemprego e o aumento da competitividade estãoestreitamente relacionados com os sintomas de ordem psíquica.

Por sua parte, Gaulejac (2007) afirma que a reestruturação produtiva traz a retórica daexcelência como um imperativo exigido no desempenho dos empregados, a qual gerou “aneurose de excelência” e outras consequências psicopatológicas distintas resultantes daintensificação do trabalho, como a depressão, o esgotamento profissional (Burnout), o estressee a adição ao trabalho (work addicts).

Da mesma forma, Franco, Druck e Seligmann-Silva (2010) mencionam a identificaçãode um conjunto de transtornos mentais relacionados ao desgaste pelo trabalho, entre os quaisse encontram: estresse, depressão, esgotamento profissional (Burnout), estresse pós-traumático(TEPT) e a dependência de bebidas alcoólicas e outras substâncias psicoativas.

Seligmann-Silva (2011) afirma que os processos no trabalho podem gerar um “desgastemental”, que pode iniciar-se com uma vivência de sofrimento psíquico, atingindo, depois, tantoaspectos psicoafetivos como cognitivos e orgânicos. A noção de desgaste foi apresentadainicialmente por Laurell e Noriega (1989), que, partindo de uma compreensão marxista doprocesso saúde-doença, defendem que a relação saúde-doença no trabalho deve sercompreendida no interior das relações de produção capitalistas. Mantendo a coerência comesses pressupostos, Seligmann-Silva (2011) defende que o desgaste mental no trabalho se dá naforma de um processo constituído de “experiências que se constroem, diacronicamente, aolongo das experiências de vida laboral e extralaboral dos indivíduos” (Seligmann-Silva, 2011, p.142). Trata-se, assim, de uma perspectiva teórica de caráter integrador, que parte da ideia deque, para compreender a relação saúde-trabalho, deve-se sempre considerar o contexto sócio-histórico que a determina.

Dessa forma, é possível verificar como os conceitos de “precariedade subjetiva”,desenvolvido por Linhart (2009), e o de “desgaste mental”, proposto por Seligmann-Silva(2011), podem ser complementares, ajudando a compreender a vivência de trabalhadores dosserviços públicos submetidos à lógica do capitalismo organizacional, conforme será apresentadoa seguir.

Abordando o problema

O tipo de delineamento adotado nesta pesquisa teve caráter qualitativo, com arealização de entrevistas em profundidade, que ocorreram no final de 2010. Apesar de se contarcom um roteiro norteador, as entrevistas foram conduzidas da maneira mais informal possível ,de modo a deixar os entrevistados à vontade e buscando não induzir respostas ou vocabulárioespecífico.

Buscaram-se possíveis sujeitos da pesquisa em um hospital público de um município dointerior paulista, que funcionava em sistema de cogestão com o setor privado. Os trabalhadoresdesse hospital eram divididos em dois diferentes tipos de contratos de trabalho: os estatutários,que ingressaram por meio de concursos públicos, e os contratados por uma entidade privada,que admite funcionários pelas normas da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)6 paradiversos serviços públicos de saúde no município. Apesar de exercerem a s mesmas funções,esses trabalhadores estão submetidos a relações de trabalho bastante contrastantes, queenvolvem, entre outras coisas, estabilidade no emprego, diferentes carreiras, salários ebenefícios.

6 A CLT rege os contratos de trabalho no setor privado.

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Inicialmente, pretendia-se entrevistar trabalhadores do setor de enfermagem dohospital, por estarem diretamente envolvidos no atendimento ao público. No entanto, noperíodo em que a pesquisa foi realizada, não havia mais funcionários públicos nesse setor (todostinham sido transferidos para outras unidades de saúde), restando apenas profissionaiscontratados pela entidade privada. O mesmo ocorria em diversos outros setores.

Sendo assim, buscou-se algum setor do hospital em que se encontrassem profissionaisdas duas categorias empregatícias e verificou-se que o laboratório de análises clínicas atendia aessa condição, contando com profissionais com os dois tipos de vínculos trabalhando nasmesmas equipes e com idênticas atribuições. Nesse laboratório, também chamou a atenção ofato de todos os trabalhadores, independentemente do vínculo empregatício, estarem sujeitos ametas de produção, que eram estabelecidas para a equipe, e não individualmente.

Este artigo focaliza especificamente as entrevistas de dois analistas clínicos, tendo emvista o contraste observado entre elas: um funcionário público concursado, que será referidocomo Edu, e outra com vínculo CLT, contratada pela entidade privada parceira na gestão dohospital, que será denominada aqui como Bia. O primeiro é um homem de 42 anos de idade,com formação de técnico de laboratório, que trabalhava como servidor público havia vinteanos, sendo nove no município onde está o hospital. Durante boa parte desse tempo, foimilitante político e participava ativamente de ações sociais em defesa do SUS.

A outra analista clínica participante da pesquisa era uma bióloga de 40 anos , com trêsanos de trabalho com vínculo terceirizado no laboratório focalizado na pesquisa. Na ocasião daentrevista, ela acumulava treze anos de experiência na área de análise clínica, sendo que seusvínculos anteriores foram com laboratórios exclusivamente privados.

As entrevistas foram gravadas, transcritas e submetidas a análise de conteúdo (Bardin,1977), que possibilitou destacar as duas categorias que serão discutidas a seguir.

Implicações do processo de terceirização na vivência de trabalhadores da saúde pública

Ao analisar as entrevistas realizadas, duas categorias se destacaram: a) aspectos doprocesso de terceirização; e b) precariedade, desgaste e o adoecimento do trabalhador.Entretanto, deve-se lembrar que, por dizerem respeito ao mesmo contexto de trabalho, essascategorias estão intimamente relacionadas e, muitas vezes, se sobrepõem. Antes de discutircada uma delas, porém, é importante descrever algumas características da organização dotrabalho no laboratório.

Algumas características da organização do trabalho dos entrevistados

O laboratório de análises clínicas onde trabalhavam os dois entrevistados é responsávelpela realização de todos os exames laboratoriais (sangue, fezes, urina, patologias específicas)solicitados pelas unidades de saúde pública do município. A tarefa dos profissionais que aliatuam é, fundamentalmente, analisar e liberar resultados de exames realizados emequipamentos automáticos, mas há alguns que devem ser conduzidos manualmente. As falasdos entrevistados indicam que o processo de trabalho é organizado em diversos setores deacordo com os tipos de exames realizados. Nesses setores, trabalham equipes de oito a novefuncionários de ambos os vínculos contratuais (funcionário público ou CLT).

Cada setor também possui um funcionário, geralmente um técnico de laboratório,responsável pela sala e pela supervisão da equipe de trabalho. Segundo ambos os entrevistados,

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o tipo de vínculo empregatício não influencia essa escolha. Além disso, o responsável por cadasala não possui um poder direto sobre os colegas e também não recebe nenhum adicionalsalarial para exercer essa função. Suas atribuições se limitam a relatar o que não estáfuncionando na equipe ou pedir materiais extras.

Os tipos de vínculos empregatícios também não têm nenhuma influência sobre adefinição das atribuições dos analistas clínicos do laboratório. Assim, dois funcionários comdiferentes contratos fazem exatamente as mesmas coisas. Entretanto, do ponto de vistatrabalhista, os funcionários públicos possuem alguns benefícios que os outros não têm,conforme será discutido mais adiante.

A terceirização como uma forma de precarização do trabalho público

Como foi discutido na introdução, vivenciamos um momento histórico no qual éperceptível a influência da ideologia neoliberal no contexto do trabalho público (Blanch-Ribas& Cantera, 2011). E foi justamente esse pressuposto um dos pontos mais marcados nasentrevistas. Nas falas dos dois entrevistados, pode-se notar como o processo de terceirizaçãopelo qual o laboratório estava passando se reflete diretamente nas condições e relações dotrabalho.

A própria convivência de pessoas com diferentes contratos de trabalho e,consequentemente, com diferentes direitos e condições salariais é uma demonstração dessalógica. Segundo Bia, enquanto o funcionário terceirizado trabalha 40 horas semanais e sórecebe cesta básica simples além de seu salário, o colega com vínculo público, que trabalha aoseu lado e exerce exatamente nas mesmas funções, possui estabilidade de emprego, trabalha 36horas semanais, recebe vale-alimentação e tem um salário que é quase o dobro dos colegas comvínculo terceirizado. Podemos notar alguns desses aspectos no seguinte recorte da fala de Bia:

Então eles [funcionários concursados] ganham quase o dobro, e a gente faz exatamente amesma coisa, sentada na mesma bancada. Eu sento aqui e libero exame, eles liberam osmesmo exames do meu lado, a gente faz exatamente as mesmas coisas, só que tem saláriodiferente ou, por exemplo, eu ganho a cesta básica, ela é boa, mas é simplesinha, e elesganham vale de quinhentos e poucos reais pra fazer compra.

Outro aspecto destacado pelos entrevistados, que corrobora a afirmação de Blanch-Ribas e Cantera (2011) de que o setor público vem cada vez mais incorporando uma ideologiade gestão empresarial diz respeito à valorização da produtividade, que, de acordo com Edu,transforma o laboratório em fábrica. Observa-se no relato desse entrevistado como esse fatoafeta diretamente o ambiente de trabalho:

Bem, quando você transforma uma unidade de saúde em fábrica, as relações passam adiminuir e até a inexistir. Você não tem tempo pra olhar pro seu colega, você tem umaprodução, no final do dia tem que entregar aquela produção. Então, você tem menostempo pra socializar, né? E isso é péssimo, e isso aqui é o grande “tcham”. [pesquisador: e oque pode estar melhorando nesse tipo de relação?...] (silêncio).. . Difícil, viu, encontraruma melhora, porque as pessoas se estressam mais... elas adoecem mais e... existe umacobrança constante de produção. Então, eu não vejo melhora, eu vejo só piora.

Interessante observar que referir-se às características geradas pelo processo deterceirização como “o grande tcham” administrativo, como faz Edu, cria a ideia de algorealmente planejado, como se a intenção fosse diminuir as relações sociais no ambiente detrabalho.

Além desse aspecto, ambos os entrevistados pontuam como tal contexto de diferençasde vínculos (cogestão) e até diferenças hierárquicas possibilitam um velado “assédio moral”(Edu) ou “muitas fofocas” (Bia), que seria “um dos piores problemas no ambiente de trabalho”

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(Bia). Mas, ao falar das fofocas, Bia focaliza o problema no plano individual, como se podeobservar no seguinte trecho de sua fala:

Então esse negócio de ficar fazendo fofoca do tipo: “eu fiz isso, o outro não fez” sabe? “Eu litantos tubos hoje, o outro não leu”,”ai porque eu faço mais que o outro”. Então esse tipode coisa “a o outro tem mais regalia que eu”, parece criança, esse tipo de coisa eu nãogosto não. Mas é dos dois lados, depende de cada um. Então, fica muito complicado, àsvezes, até a própria convivência, né? Então tem pessoas que pedem pra mudar de setor, naPrefeitura isso é muito comum (Bia).

Edu, por outro lado, identifica a fonte do problema na gestão:

E a gestão como um todo [é a responsável]. Então, como a instituição passou a ser umainstituição produtora, fabriqueta, e o serviço público também está com essa visãoparticular, aqui, muitas vezes, tem [também] essa visão de laboratório particular, né? Entãofica um certo assédio, “olha, fulano não produziu tanto quanto sicrano”.

Apesar de, inicialmente, nenhum dos entrevistados associar a existência dessas fofocase assédios com o tipo de vínculo empregatício, ao serem indagados diretamente sobre isso, asrespostas são diferentes. Para Bia, realmente não há ligação com os tipos de vínculo e existe dos“dois lados”. Enquanto Edu respondeu que esse problema “existe de pessoa pra pessoa e existetambém de vínculo pra vínculo. Por exemplo, um diz assim: ‘Ah! Você é funcionárioterceirizado, você nem tem vínculo, amanhã você tá na rua...’”.

A maior queixa dos entrevistados foi justamente a presença, no contexto de trabalho,de características que indicam que o “capitalismo organizacional” (Blanch-Ribas, 2007) já fazparte do cotidiano no laboratório. Segundo Edu, o ambiente de trabalho no laboratório setransformou em “uma fabriqueta de alta produção”, na qual cada um realiza mais de mil examespor dia. Nas falas desse mesmo trabalhador, nota-se como a necessidade contínua de produçãomodificou negativamente as relações interpessoais no ambiente de trabalho de uma formasimilar à destacada por Linhart (2009). Ele ressalta que, atualmente, todos trabalham de formacada vez mais individualizada. Ainda, segundo Edu, com a atenção toda voltada para a cota deexames diários que precisam ser realizados e liberados, não há tempo para conhecer de formamais profunda o colega que trabalha na mesma equipe e, às vezes, bem ao seu lado na mesmabancada.

Já Bia, apesar de também criticar o modelo de cogestão, destaca o fato de estar em umasituação melhor do que nos laboratórios privados em que trabalhou anteriormente. Diz ela: “Emesmo assim [na situação desfavorável relativa aos funcionários concursados] aqui dentro, euganho muito melhor do que se eu trabalhasse em um trabalho particular. Eu ganharia menos dametade, pra fazer exatamente o que eu faço aqui ou mais”.

Portanto, fica evidente o fato de Bia sentir um progresso na sua carreira profissional,pois, apesar da diferença com relação aos colegas concursados, está melhor do que se estivesseem uma instituição totalmente privada. No entanto, apesar dessas diferenças, observa-se que ahistória de cada um dos entrevistados é marcada por um processo de precarização específico,que tem consequências para seu bem-estar e para sua saúde, conforme será discutido a seguir.

Precariedade, desgaste e o adoecimento do trabalhador

A terceirização da contratação de trabalhadores nos serviços públicos, em geral, estáassociada à precarização das relações (e, às vezes, também das condições) de trabalho, que podeser observada de formas diferentes no caso de Bia e de Edu. Apesar de Bia realizar exatamenteo mesmo trabalho de Edu, ela não tem os benefícios nem a estabilidade no emprego que elepossui. Contudo, isso não quer dizer que Edu também não vivencie uma situação de

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precariedade. No seu caso, ela se dá menos no plano objetivo e mais no subjetivo, pois envolvea própria relação de Edu com anos de serviço público.

Nesse sentido, a noção de “precariedade subjetiva” apresentada por Linhart (2009) ébastante interessante para compreender a vivência de Edu. O caso dele evidencia como essetipo de precariedade está diretamente associada ao modelo administrativo do trabalho e temcomo característica o desgaste mental (Seligmann-Silva, 2011). Assim, ao narrar sua históriana saúde pública e sua vivência atual, Edu denuncia também o sofrimento decorrente:

Esse processo me faz assim: como é um processo que me incomoda bastante, eu acabotendo que fingir que ele não existe, então muitas das coisas que é e que acabam sendoacarretadas por causa disso, eu finjo que não existe. Entendeu? Eu finjo que não tô vendo,e acaba que eu me sinto irresponsável às vezes. É lógico que eu, no final das contas, falo:não... Não tô sendo irresponsável... Mas me dá esse sentimento, né? E acaba mexendo naminha saúde. Acaba mexendo... e como eu sou hipertenso, acaba afetando, né? (Edu).

O sentimento de ser “irresponsável” pode ser compreendido pelo fato de Edu ter sidomilitante pela construção do SUS em boa parte dos vinte anos de trabalho na saúde pública e,hoje, buscar se afastar dessas lutas para preservar a própria saúde:

Olha... Já fui muito político, já participei de conselho, de grupo, de CIPA [ComissãoInterna de Prevenção de Acidentes], de biossegurança... Hoje, neste momento, estouexaurido, estou exausto psicologicamente, né? Estou exausto de tudo isso e tô fugindoloucamente de tudo isso. Toda vez que falam assim: “tem uma movimentação, tem umaluta, tem uma reunião...”. Eu passo do outro lado da calçada, de tão exausto que estou.

Sua vivência atual também parece roubar-lhe a possibilidade de exercer seu trabalhocom o prazer de quem faz algo pelo outro. Apesar de ainda reconhecer a importância da suaatividade, Edu fala da crescente dificuldade para fazer um trabalho de boa qualidade, namedida em que o que importa cada vez mais é a “produtividade”. Queixa-se que, mesmoquando se fala em qualidade, o que está em jogo é apenas a busca de uma certificação de umaentidade privada, que implica mais burocracia do que a melhora da atividade-fim. Assim,afirma ele:

A transformação do laboratório em fabriqueta acaba afetando, porque assim o meutrabalho não pode ser desenvolvido... e cada tarefa que eu executo eu tenho que fazer dezmil papéis, dez mil ações antes de executar o meu trabalho. E isso é estressante, isso éirritante e, muitas vezes, desnecessário. E com a proposta final que eu discordoplenamente, porque eu entendo que o poder público tá na ponta, e não no meio. Então,isso é estressante e acaba, às vezes, atrapalhando a rotina.

Além de ter o trabalho prejudicado pelo processo burocrático, Edu também sofre porter de colaborar com um modelo de trabalho que, para ele, não tem sentido e com o qual nãoconcorda. Para entender melhor todo esse processo passado por Edu, podemos nos apoiar naideia de desgaste mental, apresentada por Seligmann-Silva (2011), segundo a qual “é possívelreconhecer, nas trajetórias humanas de vida e de trabalho, muitas vezes, um outro consumo:aquele que corrói a identidade, ao atingir valores e crenças, podendo inclusive ferir a dignidade e aesperança” (p. 143). A partir dessa definição, a autora destaca que a abordagem psicossomáticajá demonstrou que afetos e emoções são vivenciados e experenciados corporalmente. Edutambém descreve como começou a sentir no próprio corpo as consequências de ter se chocadocom a gestão do ambiente de trabalho e com a própria gestão municipal:

É porque é assim, aqui especialmente eu comecei muito engajado, né? Em melhoriaspolíticas, e acabei me... como que chama... me chocando com a gestão daqui, pesado, aponto de interferir na minha casa, de eu adoecer, pressão alta, tendinite [...] Eu tenteiuma, tentei duas, tentei três e vi que eu ia me danar, né? [...] Aí eu adoeci. E adoeci assim,primeiro eu adoeci psicologicamente e aí isso refletiu fisicamente. Comecei a ter a pressão

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alta, comecei a ter uma relação familiar péssima, e fiquei doente. E [ouvia de] amigos, deprofissional: “Não cara, você não é assim, vai lá, você não era assim”. Aí, eu fui ao médicoe o doutor disse: “Não, você não tem nada de verdade. De verdade, o que você tem é:você precisa mudar sua cabeça que você melhora. O que você está tendo no físico é o queno, seu psicológico, está abalado”. Então, isso durou dois anos e pouco [...] e ainda estoume curando. E, aí, eu decidi virar as costas pra tudo isso e continuar trabalhando.

Observa-se como essa fala de Edu descreve o processo de desgaste mental (Seligmann-Silva, 2011) pelo qual ele vinha passando. Parece que ele realmente perde parte de si comoresultado do atrito de suas ideias com as da gestão que se baseia na ideia de terceirização doserviço público.

Por outro lado, se Edu sofre com esse processo de precariedade subjetiva no espaço detrabalho e no contexto de mudanças de gestão, Bia sofre uma precariedade objetiva relativa aoseu vínculo de trabalho. Todavia, curiosamente, essa vivência não parece afetá-la tãofortemente como ocorre com Edu. Tal constatação parece se explicar pelo fato de Bia nãopossuir a mesma ligação ideológica com a saúde pública. Para ela, esse é apenas mais umtrabalho:

...porque meu objetivo sempre foi chegar, realizar meu trabalho e ir embora. Porque, nomeu ponto de vista, eu gosto do que eu faço, mas minha vida não é só o que eu façoprofissionalmente, eu tenho uma outra vida lá fora também. Então, eu tento partir doprincípio prático de qual é a função? É essa a função? Eu gosto de fazer isso aqui. Eu façoda melhor maneira possível, da melhor maneira que eu posso mesmo, eu faço. Cumprominha obrigação e vou embora. Quando chego na minha casa, eu não fico pensando noque tá aqui, porque, se eu fiz bem feito, não tem por que eu ficar pensando. E eu tenhominha vida pessoal. Tem umas pessoas que vivem o trabalho, entendeu?

Todavia, sua fala indica que a situação precária com relação aos colegas concursadostambém gera uma insatisfação que pode se configurar como um processo desgaste, ainda quemenos intenso do que aquele referido por Edu. Esse desgaste pode ocorrer em decorrência dasdiferenças claras de seu contrato de trabalho com relação aos dos colegas de equipe comvínculo público. Por exemplo, ao falar das cargas de trabalho, nota-se uma nítida comparaçãode si com os colegas:

Eles fazem... são 6 dias e 6 horas, são 36 horas. A gente é 40 horas. É pouca diferença, mastem. Então, na realidade, eles trabalham 6 horas por dia, e tem um dia que eles dobram pranão vir no sábado, porque o laboratório não tá funcionando no sábado. Eles têm quecumprir aquela carga horária, eles fazem doze horas um dia na semana e é tudo bemorganizado por setor. Enfim, eles têm as férias e, depois, eles têm licença-prêmio7 quandonão faltam.

Em outro momento, Bia fala sobre a diferença de pressão sofrida pelas pessoas comvínculos distintos, que evidencia a precariedade dos trabalhadores terceirizados:

Esse funcionário (vínculo CLT) não tem nenhum tipo de estabilidade, ele ganha menosque funcionário da Prefeitura pra fazer o mesmo serviço dentro da sala. É o mesmo cargo, omesmo serviço, mas ganha menos porque o contrato é diferente. Ele tem que tomar maiscuidado com algumas coisas, ele tem que estar sempre atento aos horários dele e àsobrigações, porque, se as coisas não ocorrem como eles esperam, eles mandam a pessoaembora. Então, tem um tratamento diferente, sim, de um pro outro.

Outra situação descrita por Bia diz respeito às formas diferentes de advertirfuncionários que não estão cumprindo suas obrigações:

7 Trata-se de um benefício do servidor público de algumas administrações que confere àqueles que não atingirem um númeromáximo de faltas o direito de ter três meses de folga a cada cinco anos.

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É, na realidade, por exemplo, se você está ali em uma equipe e aquele funcionário daPrefeitura saiu, por exemplo, aí tem uma reclamação na sala. A reclamação é levada até achefia, “pô, o cara some o dia inteiro... não sei o quê...”. Aí, chama atenção, conversa como funcionário, entendeu? Às vezes, emenda, às vezes não, mas é por conta dele. Agora,quando é o funcionário contratado [terceirizado], ele vai falar assim: “olha, você seemenda, eu vou te dar uma advertência por escrito e, depois, eu vou mandar umcomunicado, do tipo assim, gostaria de afastá-lo...” (risos).

Com experiência no setor privado, Bia sempre conviveu com essa necessidade deadaptar-se ao trabalho. E é importante notar que a constante adaptação à precariedade objetivado mundo do trabalho, vivenciada pela funcionária terceirizada, também tem efeitos sobre suasubjetividade. Esse aspecto é abordado por ela no momento em que compara os objetivosidealizados na época de recém-formada com a vivência real das relações no trabalho:

Porque é assim: quando você sai da faculdade, você fala assim: “vou virar esse mundo, voufazer esse negócio girar de outro jeito”, mas, aí, você começa a olhar... entendeu? É...porque você começa a levar umas bordoadas também. É assim: “não tá bom pra você?Próximo!” (risos) Entendeu? E você também precisa sobreviver nesse mundo todo, nessadoidera.

Bia também se manifestou conformada com o atual contrato de emprego e com adiferença em relação aos colegas concursados, pois está em condição melhor do que no serviçoprivado, no qual trabalhava anteriormente:

Mas veja bem, eles são concursados, e no contrato deles já regia tudo isso, entendeu? Equando eu fui contratada [...], no meu contrato, já regia também tudo o que eu ganho,tudo certinho. E mesmo assim [...], eu ganho muito melhor do que se eu trabalhasse emum trabalho particular. Eu ganharia menos da metade, pra fazer exatamente o que eu façoaqui ou mais.

Nota-se, assim, que ela parece ter adotado uma postura pragmática e fatalista8 (Martín-Baró, 2006), como que admitindo sua impossibilidade de lutar contra um sistema mais forte.

Observa-se, portanto, que as vivências de trabalho de ambos os entrevistados sãopermeadas por características típicas das empresas capitalistas, demonstrando como ocapitalismo organizacional (Blanch-Ribas, 2007) está presente no contexto pesquisado. Talsituação se traduz em precariedade objetiva para Bia e subjetiva para Edu. As cargas detrabalho inerentes a esse contexto, seja na vivência de um ou de outro, parecem levar aodesgaste mental (Seligmann-Silva, 2011). Dessa forma, poderíamos indagar até que ponto podea lógica capitalista ingressar na saúde pública? O que pode ocorrer, em curto e longo prazo, comtrabalhadores que apresentam um desgaste mental que se relaciona diretamente a esse tipo decontexto de trabalho?

Para responder a essas questões, não é necessário muito esforço, pois, ao pensar queesses trabalhadores vivenciam uma situação de sofrimento psicológico, o próximo passo é oaparecimento de adoecimento físico e/ou mental. E esse adoecimento é resultado justamentedo fato de a precarização passar a ser atributo central nas novas formas de relação de trabalho(Franco et al., 2010).

O caminho do sofrimento psicológico ao adoecimento físico pode ser exemplificadopelo caso de Edu, que relaciona seus problemas de saúde diretamente a sua situação detrabalho. Depois de falar de sua decepção com o atual contexto de trabalho, ele relata os efeitosdessa vivência sobre sua saúde:

8 Fatalismo, aqui, seria uma ideologização da realidade e que resulta no processo de considerar natural uma situação construída edeterminada por uma ideologia dominante.

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Vivências de trabalhadores com diferentes vínculos empregatícios em um laboratório público

Primeiro, eu estava me enxergando como um mal profissional, e isso me adoeceu. Quandoeu comecei a enxergar que sou um mal profissional? Será que eu sou um mal profissional?Será que eu sou? Aí,eu adoeci. E adoeci assim, primeiro eu adoeci psicologicamente e issorefletiu fisicamente.

Considerações Finais

Embora as referências ao adoecimento tenham surgido claramente na fala de Edu, aentrevistada Bia não explicitou essa vivência, referindo-se a uma postura pragmática com suasituação de precariedade com relação aos colegas concursados. Edu teve um grandeenvolvimento ideológico com o projeto do SUS como um sistema de saúde verdadeiramentepúblico e, por isso, sofre ao ver tal projeto sendo corroído pelo ideário neoliberal. Já Bia percebea injustiça das diferenças de vínculos empregatícios e até a lógica da produtividade, mas parecever essa situação como algo natural, não passível de modificação e, assim, busca adotar umcomportamento adaptativo, distanciando-se afetivamente do trabalho.

Interessante observar que essa constatação contraria as expectativas iniciais dapesquisa de que a vivência dos trabalhadores terceirizados fosse permeada por desgaste mentalmaior do que a dos funcionários concursados. Entretanto, apesar dessas diferenças deenvolvimento e/ou sofrimento no trabalho, as entrevistas indicam que ambos os trabalhadores,cada um a sua maneira, sofrem com a situação imposta pela ideologia neoliberal que buscaterceirizar o serviço público de saúde do município.

Apesar da evidente limitação da possibilidade de generalização dos resultados destadiscussão, que considerou apenas dois casos, ela permite evidenciar diferentes aspectos dalógica que vem cada vez mais ocupando a saúde pública e que afetam diretamente a vida e asaúde dos trabalhadores e, possivelmente, também da população atendida.

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Endereço para correspondê[email protected], [email protected], [email protected]

Recebido em: 18/06/2012Revisado em: 15/12/2012

Aprovado em: 27/02/2012

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“Todos são iguais”, “todos são responsáveis”e “todos estão no mesmo barco”:

os (des)entendimentos da autogestão cooperativa

Egeu Gómez EstevesUniversidade Federal do Rio Grande,

Instituto de Ciências Humanas e da Informação, Curso de Psicologia (Rio Grande, RS)

Este estudo de caso investigou como cooperados de uma cooperativa industrial negociam interesses e constroementendimentos no cotidiano da autogestão de sua cooperativa. Com este objeto, conduzimos uma observaçãoetnográfica do dia a dia de trabalho dos cooperados, o que incluiu longas conversas ao lado das máquinas, bem comoseis entrevistas semiestruturadas. Obtivemos que os cooperados formularam ao menos três importantes regras tácitassobre o funcionamento coletivo na cooperativa: “todos são iguais”; “todos são responsáveis”; e “todos estão nomesmo barco”. Os cooperados utilizam tais regras para manter a simetria de poder na cooperativa, para cobraratitudes uns dos outros e para manter a coesão do grupo. Cada regra corresponde a uma característica psicossocialdesses cooperados: eles se preocupam com a cooperativa; eles controlam os demais cooperados; e eles se sentemparte da cooperativa. Concluímos que os cooperados alternam, simbolicamente, posições e interesses: ora seposicionam como “sócios favoráveis à cooperativa”, ora como “trabalhadores em prol dos cooperados” e ora como“pessoas em busca de uma vida melhor”.

Palavras-chave: Trabalho, Interação, Autogestão, Empresas recuperadas, Economia solidária, Psicologia social.

“Everybody is equal”, “everybody is responsible” and “everybody is in the same boat”: the (mis)understandings ofcooperative self-management

This case study investigates how members of an industrial cooperative bargain interests and build understandings ineveryday self-management of their cooperative. With this object, we conducted an ethnographic observation of dailywork of the members, which included long conversations by the machines, and six semi-structured interviews. Weobserved that the members drew up at least three important tacit rules about the collective functioning of thecooperative: “everybody is equal”, “everybody is responsible” and “everybody is in the same boat”. The members usesuch rules to maintain the symmetry of power in the cooperative, to demand attitudes from each other and tomaintain group cohesion. Each rule corresponds to a psychosocial characteristic of these members: they areconcerned about the cooperative, they control other members and they feel to be part of the cooperative. Weconcluded that members alternate, symbolically, positions and interests, sometimes as “partners favorable to thecooperative”, sometimes as “workers in favor of members” and sometimes as “people seeking a better life”.

Keywords: Work, Interaction, Self-management, Recovered factories, Social economics, Social psychology.

ste trabalho é fruto tardio de pesquisa de mestrado, realizada entre 2001 e 2004,1 e advémdo contato cotidiano com a autogestão na condição de formador e assessor de

trabalhadores da Economia Solidária. Deste contato emergiu o objeto-problema estudado: osinteresses e entendimentos que são discursivamente construídos e negociados na dinâmica, coletiva ecotidiana, da autogestão de uma fábrica recuperada. É disso que tratará este artigo.

E

A reinvenção do cooperativismo e do trabalho associado no Brasil

O surgimento do trabalho associado2 no Brasil acompanhou a reinvenção doassociativismo e do cooperativismo no país, processo iniciado nas atividades rurais (Abramovay,

1 Pesquisa realizada no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade de São Paulo, sob aorientação de Leny Sato.

2 Trabalho associado refere-se ao vínculo de trabalho coletivo, de adesão voluntária, em que as relações entre os trabalhadores sãomarcadas por simetria política, econômica e técnica.

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“Todos são iguais”, “todos são responsáveis” e “todos estão no mesmo barco”: os (des)entendimentos da autogestão cooperativa

2003) durante os anos 1980, seguida das atividades urbanas tradicionalmente autônomas e, emum terceiro momento, também das atividades urbanas assalariadas e industriais (Singer, 2002).Essa reinvenção foi possibilitada pela Constituição de 1988, que garantiu a livre associação noBrasil, ao afirmar, no artigo 5º, que “é plena a liberdade de associação para fins lícitos” e que “acriação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendovedada a interferência estatal em seu funcionamento” (Brasil, 1988).

Antes de 1988, a “lei do cooperativismo” condicionava o funcionamento dascooperativas à autorização do órgão de regulação estadual, as OCEs (Organização dasCooperativas) do respectivo estado (Lei nº 5.764/1971). Foi a livre associação que possibilitouo surgimento de uma enorme gama de experiências alternativas, paralelas e concorrentes aocooperativismo dito “oficial”. Tal aparecimento foi compreendido por muitos como umaresposta popular ao desemprego dos anos 1990 (Mattoso, 1999; Singer, 2003; Senaes, 2006).

Os anos 1990 também marcaram o surgimento do cooperativismo industrial no Brasil,especialmente sob a forma de “fábricas recuperadas” por seus trabalhadores (Faria & Cunha,2011). Esse tipo de cooperativismo tem alguns poucos registros no Brasil dos anos 1970(Storch, 1987) e 1980 (Holzmann, 2001), tendo nos anos 1900 seu momento de expansão,devido sobremaneira à falência de muitas indústrias no processo de abertura e integraçãocomercial do Brasil. De acordo com Averbug (1999):

entre 1988 e 1993, realizou-se amplo processo de liberalização comercial, no qual seconcedeu maior transparência à estrutura de proteção, eliminaram-se as principaisbarreiras não tarifárias e reduziram-se gradativamente o nível e o grau de proteção daindústria local (p. 46).

A maioria das cooperativas industriais surgiu nesse contexto e possui história similar àda cooperativa aqui apresentada, como é possível notar em diversos trabalhos (Holzmann,2001; Oda, 2001; Parra, 2002; Juvenal, 2006; Azevedo & Gitahy, 2007; Domingues, 2009;Meira, 2009; Esteves, 2010; Faria & Cunha, 2011; Pires, 2011). Após uma longa decadência deuma empresa privada, muitas vezes falimentar, segue-se um período de trabalho em condiçõesprecárias e outro de impedimento ao trabalho, frequentemente com o fechamento judicial daempresa. Depois ocorre o retorno, tomada ou ocupação da fábrica e, por fim, a recuperação daempresa pelos trabalhadores, geralmente por meio da constituição de uma cooperativa, a qual,por sua vez, aluga a massa falida ou arrenda a antiga empresa.

A inauguração desse campo das cooperativas industriais e/ou fábricas recuperadaslevou à constituição de organizações de representação dessas cooperativas, tais como a Anteag,Associação Nacional de Trabalhadores de Empresas Autogeridas e de Participação Acionária(Nakano, 2000), e a Unisol-Brasil, Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidários(Azevedo & Gitahy, 2007).

Caracterizando o processo organizativo autogestionário

Na Psicologia Social, a opção pela noção de processo organizativo, delineada por Spink(1996), deveu-se à compreensão de que, pelas interações sociais cotidianas, são negociados,discursivamente, os diversos interesses humanos. Ainda que tais negociações sejam permeadaspor aspectos técnicos e econômicos, muitas vezes alheios aos trabalhadores, delas resulta aconstituição dos diversos tipos de empreendimentos associativos, de caráter político, social,artístico, econômico etc., e, dentre elas, a ampla variedade de empreendimentos econômicos e,mais especificamente, a autogestão. Entendem-se, portanto, os empreendimentos comofenômenos psicossociais caracterizados pela existência dinâmica de um agrupamento humanocuja ação coletiva está orientada à realização de determinado conjunto de interesses. E mais,

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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, 2013, vol. 16, n. 1, p. 135-148

esta ação conjunta produz não somente os objetivos (interesses) do coletivo, mas também ahistória e a materialidade do empreendimento e de seus protagonistas.

Essa concepção psicossocial do fenômeno organizacional apresenta as realizaçõeshumanas não como coisas prontas ou acabadas, mas como processos em curso resultantes daatividade humana, resgatando, assim, a noção grega de empresa como um projeto ao qual umcoletivo humano se lança em busca de sua realização, o que se opõe à reificação de taisrealizações (Arendt, 2000). Os empreendimentos humanos são mais ou menos estruturados deacordo com a necessidade percebida pelos sujeitos e com as normatizações que a sociedadeimpõe à parcela que empreende.

A autogestão e o trabalho cotidiano em uma cooperativa industrial autogestionária sãodiferentes de outros processos organizativos, visto que possuem como característica peculiar ocontrole dos trabalhadores sobre a empresa. Esse controle se expressa de diversas maneiras: nocontrole do processo de trabalho pelos trabalhadores, no controle coletivo da gestão daempresa e na necessidade de negociações entre todos para a tomada de decisões. Sato &Esteves (2002) afirmam que, na autogestão,

as pessoas influenciam as decisões, tomam decisões, refletem sobre a sua realidade,socializam informações, emitem seus pontos de vista, debatem ideias, negociam, resolvemproblemas, reavaliam decisões domadas em assembleias – enfim, se apropriam da gestãopropriamente (p. 6).

Situado e responsivo aos condicionantes do espaço social, o processo organizativoautogestionário fundamenta-se na negociação discursiva de significados entre os sócios-trabalhadores dos empreendimentos autogestionários. Para Sato (1999), negociar é umprocesso de argumentação e contra-argumentação, no qual diversos racionais são postos à mesapara serem avaliados e preteridos ou eleitos. Busca-se, com isso, conduzir a escolhasorganizacionais. Daí porque pensar-se o planejamento organizacional como atividade dialógico-discursiva (p. 222).

Tal processo é a via para a tomada de decisões (escolhas organizacionais) queconformam estratégias coletivas para a reprodução econômica e social do empreendimento e,com este, a manutenção econômica dos cooperados e de seus familiares. Nessa negociação designificados, os sócios-trabalhadores chegam a entendimentos acerca do trabalho nacooperativa, da própria cooperativa, do coletivo do qual são parte, do mercado em que estãoinseridos etc. Esses entendimentos possíveis, por outro lado, alimentam e orientam novasnegociações de significados no cotidiano do empreendimento.

Nesse cotidiano de intercursos materiais, econômicos e simbólicos, os sócios-trabalhadores, ao trabalhar e ao conversar, produzem as mercadorias da cooperativa, a própriacooperativa da qual fazem parte e a compreensão que eles têm de todo esse processo do qualsão parte e partícipe. A percepção de que essa negociação de significados entre os sócios-trabalhadores produz efeitos práticos no cotidiano de trabalho e de gestão da cooperativaexplica o porquê de estudar como tais sócios-trabalhadores negociam em seu cotidiano detrabalho os diversos significados acerca da cooperativa e do trabalho na cooperativa.

Sobre a pesquisa

O trabalho de campo foi iniciado em agosto de 2002, com a realização de umaprospecção que teve por objetivo a escolha da cooperativa industrial que seria estudada. Oscritérios para a escolha foram três: que ela se categorizasse autogestionária; que tivesse um númerode sócios-trabalhadores inferior a cem pessoas; e um tempo de existência superior a dois anos.

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“Todos são iguais”, “todos são responsáveis” e “todos estão no mesmo barco”: os (des)entendimentos da autogestão cooperativa

O primeiro critério era uma condição necessária, já que esta pesquisa não deveriaatribuir o significado de autogestionário a um empreendimento que assim não se reconhecesse.Já o segundo e terceiro critérios foram desejáveis, isto é, ambos tentaram assegurar que ostrabalhadores estivessem juntos em condições de se reconhecerem mutuamente como “oscooperados da cooperativa tal”. Foram visitadas três cooperativas industriais, uma do ramotêxtil em Santo André, outra do ramo químico (plástico) em São Bernardo e outra do ramometalúrgico em Mauá. A cooperativa escolhida foi a terceira, pois contemplou devidamente oscritérios.

A abordagem do problema estudado foi primordialmente etnográfica. A etnografiapossibilitou uma descrição densa (Geertz, 1978) do encontro entre pesquisador e trabalhadoresda cooperativa e, ao mesmo tempo, uma descrição do campo psicossocial (Andrada, 2012)constituído pelo grupo da cooperativa. Entre os processos psicossociais observados, foi dadaespecial atenção às interações simbolicamente mediadas, ou seja, à conversação e à negociaçãoentre os cooperados no cotidiano de trabalho. A escolha da etnografia deveu-se a que “osprocessos de negociação são sustentados em argumentos e contra-argumentos, [pondo] alinguagem no centro da cena” (Sato, 1999), o que condiz com a antropologia semiótica,segundo a qual, na pesquisa de campo, quer-se entender o que os interlocutores estão dizendo,e, embora os cooperados e o pesquisador sejam igualmente lusófonos, “existe uma diferençasignificativa entre os dois universos simbólicos capaz de jogar areia no diálogo” (Fonseca, 1999,p. 59).

A etnografia possibilitou uma interação solta com os cooperados no dia a dia detrabalho, incluindo longas conversas ao lado das máquinas, contudo exigiu um grande esforçode deslocamento subjetivo em direção a eles (Andrada, 2010). Ao conhecer pessoas e deixar-me estar entre elas, ouvi recusas e senti desconfianças, mas também fui entendido quanto àsminhas intenções enquanto pesquisador (“quem paga seu trabalho?”) e quanto às da pesquisa, epude finalmente perceber (ou sentir) que eles me deixaram entender o que se passava ali,concedendo-me acesso ao seu universo simbólico. Neste momento, senti-me em meio aparceiros de trabalho, também pesquisadores dessa realidade socialmente compartilhada.

Entre novembro de 2002 e maio de 2003, foram realizadas várias visitas esporádicas àcooperativa (de um dia inteiro) e a “imersão” durante uma semana em seu cotidiano. As visitase a imersão foram documentadas em um diário de campo, com anotações posteriores a cada diade visita, onde foram registradas informações de diversas naturezas: dados obtidos na leitura doslivros da cooperativa (Livro de Matrículas e o Livro de Atas das Assembleias), relatos desituações presenciadas pelo pesquisador, transcrições de conversas com trabalhadores etc.

Também foram realizadas, de fevereiro a abril de 2004, seis entrevistas individuaissemiestruturadas com trabalhadores envolvidos na produção e na administração dacooperativa. Depois de transcritas, as entrevistas foram reunidas em um caderno de entrevistas.O roteiro contava com os seguintes tópicos orientadores: Autogestão – que indagou sobre oprocesso de negociações envolvido nas tomadas de decisões; Organização do trabalho – queverificou as possibilidades de mudanças advindas do controle sobre o trabalho; e Condição desócio-trabalhador – que investigou as representações de um trabalhador cooperado ao indagarsobre as vantagens, as desvantagens, os riscos e os motivos envolvidos nessa condição.

O diário de campo e o caderno de entrevistas (somados aos livros da cooperativa e adiversas reportagens de jornais e revistas) foram tomados como fontes primárias deinformações. A análise qualitativa de tais fontes resultou na reorganização das informações emcinco itens, que podem ser considerados os “resultados da pesquisa”: “a fábrica e acooperativa”; “o percurso dos cooperados”; “o trabalho na cooperativa”; “as negociações entreos cooperados”; e “interesses e entendimentos dos cooperados”. Cada item contou, ainda, comseis a nove subitens, que correspondem propriamente às categorias de análise da pesquisa.Quanto às conclusões da pesquisa, foram obtidas pela confrontação dos resultados empíricos

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com a revisão da literatura sobre: processos organizativos e sócio-técnica (Spink, 1991, 1996,2003; Biazzi Jr., 1993, 1994; Sato, 2012); interações, negociações de significados e semiótica(Blumer, 1969; Sato, 1999; Sato & Esteves, 2002; Mead, 1973; Bakhtin, 2002; Berger &Luckmann, 2007).

Pessoas e lugares, histórias e conversas

A fábrica e os cooperados

Criada em março de 2000, a Cooperativa3 fabrica ferramentas de precisão comcomponentes de metal duro, o que compreende a sinterização desses elementos de ferramentasde precisão geralmente usinados em aço. Sinterização, conforme definição do dicionário Aulete(2011), é o processo de produção de peças metálicas a partir de pós, pela “aglutinação departículas sólidas sob temperatura inferior à de fusão”. Estes dois processos, a sinterização dometal duro e a usinagem do aço, funcionam como duas fábricas semi-independentes, umafornecendo peças e/ou serviços à outra. A fábrica encontra-se em um grande galpão, com doisandares, o inferior dividido em duas metades: de um lado, a “ferramentaria”, e, do outro, o“metal duro”; entre os dois, estão os fornos da pré-sinterização e da sinterização, o controle dequalidade e a expedição.

Todos os fundadores da Cooperativa eram ex-funcionários da antiga empresa, a maioriacom mais de dez anos na companhia antes da falência. Eles passaram juntos pela transiçãoentre as duas empresas, possuindo o mesmo percurso. Todos foram, também, selecionados pelaantiga empresa, daí que a maioria seja formada por homens, com segundo grau completo,algum curso técnico (em atividades fabris ou de administração) e moradores das proximidadesda empresa, o que forma um grupo bastante homogêneo.

A Cooperativa foi constituída com 45 cooperados. Ao término do trabalho de campo(maio de 2004), contava com 36 cooperados, sendo 4 mulheres e 32 homens. Os 36 cooperadosestavam distribuídos pelas atividades da cooperativa da seguinte forma: sete trabalhavam naadministração, três nos fornos (pré-sinterização e sinterização), um na manutenção, dois noscontroles de qualidade, oito no Metal Duro e quinze na Ferramentaria.

O percurso dos cooperados

“Esta história teve começo, tem meio, mas ainda não tem fim. O fim vai ser quando a gentefor dono disto aqui. Daí começa a história gloriosa, quando a gente estiver no nosso teto, no nossoterritório” (J.C., cooperado). Esta é a história do fim de uma empresa privada e do início de umasociedade cooperativa, de propriedade e controle dos trabalhadores, embora locatária da massafalida da antiga empresa.4 A antiga empresa passou por duas concordatas, uma entre 1982 e1983 e outra que começou entre 1995 e 1997. Foram períodos difíceis da história dessestrabalhadores, quando viram seus direitos esvaírem, as condições de trabalho deteriorarem e aremuneração decair até desaparecer. Viram também companheiros serem demitidos. Ad. contaque “era assim: o ramal 209 era do DP, Departamento de Pessoal. Quando alguém recebia ligação do209 na sexta-feira, já sabia que era facão” . No processo de falência, a empresa foi demitindotrabalhadores. Em 1995, eram 130 trabalhadores; e, em 1999, somente 85. Destes, apenas 45decidiram “aventurar-se” na cooperativa.

3 Para manter o anonimato desta cooperativa, optamos por tratá-la simplesmente por Cooperativa.

4 Houve aqui uma importante contribuição do trabalho de Parra (2002), que pesquisou esta cooperativa ainda em 2000, ou seja,tão logo os cooperados iniciaram as atividades da cooperativa.

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Em 1998, os administradores propuseram aos trabalhadores uma cogestão, que foi logoencerrada com o não pagamento da segunda concordata, resultando na falência, já em 1999.Este foi um momento de “confusão”, em que não eram nem empresa nem cooperativa. F. contaque, “sem o registro da cooperativa, que a Junta Comercial não dava porque não aceita duas empresasno mesmo local, a gente ficava sempre no improviso, a gente não conseguia o CNPJ5. Ia na Junta, eeles reclamavam de qualquer coisa. Aí, no dia em que a empresa fechou, liberaram o registro”.

Foi neste momento que os trabalhadores buscaram apoio do Sindicato dos Metalúrgicosdo ABC, fundamental no processo de legalização da cooperativa e de transferência da gestão daempresa para os trabalhadores. Com apoio do sindicato, visitaram a empresa, ainda em vias defalir, Mario Covas, então Governador do Estado de São Paulo, e Luiz Inácio Lula da Silva,então presidente de honra do Partido dos Trabalhadores e pré-candidato à presidência darepública.

O processo de legalização da cooperativa coincidiu com a decisão do Fórum de Mauáde lacrar a massa falida. E. conta que, “no dia 7 de janeiro [de 2000], lacraram a empresa, e, em 2de março, entramos como cooperativa”. Ou seja, os cooperados passaram quase dois mesesparados, impedidos de trabalhar. Ela continua:

Eles [a polícia] entraram aqui, e foi uma humilhação: o oficial de justiça falando para a genteparar tudo e ir saindo... até parecia que a gente era bandido. Dizia para deixar tudo como estavae ir saindo. A gente já tinha o registro da cooperativa e queria arrendar isto aqui... aí foi aquelaluta. Eles diziam que não existia isso de cooperativa dentro de massa falida. Ficamos 55 dias nosrevezando no fórum: a gente entrava e saía pela prefeitura, quiseram tirar o carro de som, tirar agente de lá, e não cederam, tivemos de apelar para São Paulo [segunda instância]. Lá elesderam a vitória para a gente, e aqui ainda levaram uns vinte dias para cumprir a decisão.

Além do plantão no fórum, os cooperados também se revezaram na portaria da fábricapara atender aos telefonemas de clientes e fornecedores. Nos primeiros dias, diziam que logoiram entregar as peças, que estavam apenas atrasadas, mas, logo que a notícia da falênciacorreu, a atitude de clientes e fornecedores passou a ser outra: de cobrança e, em alguns casos,de desespero.

Esse período teve como consequência a definição do quadro social da cooperativa, vistoque a maioria dos funcionários buscou outras opções de trabalho. Segundo E., aqueles queficaram na cooperativa foram, em geral, os que tinham mais tempo de serviço na empresa e,consequentemente, também os maiores ativos trabalhistas – eram também os mais velhos e queteriam maior dificuldade de reinserção no mercado de trabalho. No fórum ou na portaria, esses55 dias constituíram o período de lona6 dos trabalhadores, fundamental para a formação dogrupo de cooperados, da sensação de pertencimento à cooperativa e da identidade decooperado.

As negociações de interesses e entendimentos

Dr. M. fala assim, que lá na máquina a gente tem de ser o melhor operador e que, quando vocêestá aqui na frente, tem de ser o melhor administrador, não pode ser como numa empresa comum– um só trabalhador, e o outro, só administrador. Você tem de trabalhar muito bem e fazer o seumelhor aqui na administração (Al., coordenador da Ferramentaria).

5 CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica), documento que atesta a existência e/ou atividade empresarial de determinadapessoa jurídica constituída e/ou operante em território nacional.

6 Diz-se que estão na lona os trabalhadores rurais sem-terra que estão acampados, à espera do longo processo de desapropriação eassentamento. Esse é um período muito difícil, no qual os trabalhadores e seus familiares estão expostos a ações de reintegração deposse e passam por privações e ameaças.

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Para autoadministrarem a cooperativa, os sócios-trabalhadores adaptaram a suasnecessidades o sistema de democracia formal que a legislação cooperativista prevê. Tal sistemaimplica uma política formal que ocorre no Conselho de Administração, no Conselho Fiscal e,também, nas assembleias. Contudo, há também na cooperativa uma política informal, invisívele imersa no cotidiano, frequentemente denominada de “fofoca”, “panelinha”, “falar por debaixodo pano” etc. Entretanto, é nesta política do cotidiano, por meio da palavra e do gesto, em umaatividade dialógico-discursiva, em que são apresentados argumentos e contra-argumentos, quesão negociados muitos dos interesses e entendimentos dos cooperados. Ou seja, “nessaconcepção, a ênfase no planejamento organizacional repousa na atividade interativa entre aspessoas, sustentada pelo diálogo, pela comunicação” (Sato & Esteves, 2002, p. 23).

Entre as negociações formais, realizadas nos conselhos e nas assembleias, e as informais,na conversação cotidiana na cooperativa, há uma ponte, um caminho instituído por decisãodos cooperados, as reuniões da coordenação, realizadas entre os coordenadores dos setores e osmembros da administração. Trata-se da arena política daquilo que importa realmente àcooperativa, em que quase tudo é “definido” para, depois, ser “decidido” pela assembleia.

Por estarem imersos no cotidiano fabril ou administrativo, os coordenadores de setorlevam para as reuniões da coordenação os “temas do momento” do “burburinho” da fábrica,tornando-os formais e legítimos. Nessas reuniões, são considerados e discutidos os interessesdiversos dos cooperados, bem como seus entendimentos acerca dos temas do “burburinho”;também são conversadas e acordadas propostas “da administração” para tais temas, de onde seseguem ações e/ou proposições que informam as decisões posteriormente tomadas emassembleia. Esse é o método informal-formal de tomada de decisões na cooperativa.

No cotidiano da cooperativa no momento da pesquisa, destacaram-se alguns processosde negociação de interesses e entendimentos que foram fundamentais para a compreensão doobjeto-problema da pesquisa, todos descritos detalhadamente na dissertação que dá origem aeste artigo. Aqui, apresentarei apenas uma compilação breve desses achados de campo.

A reativação do refeitório tornou-se “assunto da vez” durante alguns meses de 2003,criando um burburinho que obrigou a administração a negociar com os cooperados apossibilidade de instalar o refeitório. F. demonstra o poder dos cooperados para negociar com aadministração; diz que o restaurante poderia ter sido implantado mesmo à revelia daadministração. “A gente vota também para ter um benefício, como foi com a cesta básica, o plano desaúde, o abono. Se a gente quiser colocar um restaurante aqui no futuro [aponta para o refeitórioainda desativado], se a maioria quiser, vai ter de colocar, a gente sente que tem mais poder.”

O burburinho dos cooperados na fábrica, em prol do restaurante, causou umaindisposição geral com a “administração”, pressionando-a a realizar orçamentos da reformanecessária e da própria compra dos alimentos. A. fala sobre a necessidade de gastar na reforma,pois “nosso restaurante estava desativado. Então tinha um monte de coisa [para fazer]: parte deencanamento, pintura, não estava um aspecto muito legal. Então tivemos de fazer toda aquela... gastarpara reformar”. Tais orçamentos foram levados para negociação em uma assembleia, queresultou na contratação de um restaurante próximo dali para servir o almoço no refeitório. A.conta como entendeu o processo para a instalação do restaurante, que também é subsidiado em50% pela cooperativa: “Fomos atrás, fizemos os orçamentos, levamos para o pessoal, propusemos eacabou sendo fechado [...], passamos uma lista para saber quem ia querer almoçar aqui na empresa[...] é que em cima daquele número é de tinha de negociar. Fechamos, beleza”.

O processo de conquista desse benefício revela um dilema da autogestão. Como osrecursos para remuneração e benefícios advêm dos resultados econômicos do empreendimento,os cooperados e conselheiros estão sempre em um conflito de interesses. De um lado, osinteresses “da cooperativa” e, de outro, “dos cooperados”. Uma maneira de compreender essedilema central é que os interesses “da cooperativa”, defendidos pelo conselho de administração,representam os objetivos dos cooperados enquanto sócios da cooperativa. E os interesses “dos

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cooperados”, defendidos na informalidade do burburinho na fábrica e na maioria de votos nasassembleias, representam os objetivos dos cooperados enquanto trabalhadores da cooperativa.

Outra maneira de compreender tal dilema, complementar à primeira, é que ambas asopções estão orientadas pelo bem-estar dos cooperados, porém em tempos distintos. Assim, osinteresses “dos cooperados” seriam orientados pelas necessidades presentes de melhoria nascondições de trabalho e de vida deles e de suas famílias, enquanto os interesses “dacooperativa” estariam orientados por suas necessidades futuras. A., que lida diariamente com anecessidade de manter a rentabilidade da cooperativa, ao falar sobre fazer a comida norestaurante, ao invés de comprá-la pronta, apresenta a segunda maneira de compreender odilema:

E, para fazer a comida aqui dentro, o nosso restaurante não estaria apropriado para isso –questão de higiene... essa questão de vigilância sanitária, tem de fazer uma série de coisas. Querdizer, vai ter gastos. E hoje, a gente vai investir em um negócio que ainda não é nosso? Nós nãotemos garantia de que isso aqui vai ser nosso! Então acho que tem coisas que são essenciais, quenão adianta. Mesmo não sendo nosso, nós vamos ter de fazer; agora tem coisa que dá para agente esperar. A partir do momento que for nosso, aí vamos gastar naquilo que é nosso mesmo!

Gastar na reforma do refeitório, que faz parte da massa falida, traria um benefício“hoje” aos cooperados, porém retiraria recursos da reserva que a Cooperativa mantinha parapreparar-se para o leilão de “amanhã”. Eis o dilema: reinvestir hoje acreditando no retornodesse investimento amanhã, ou dividir hoje, garantindo benefícios aos cooperados?

O mesmo dilema aplica-se à distribuição das sobras da cooperativa, como explica ecomenta D.: “Das sobras da cooperativa, 35% reinveste, 35% vai para as quotas-partes e 30%divide, ou seja, fica 70% com a cooperativa e 30% com o cooperado. Não dava para ficar mais para ocooperado? O futuro, a gente nunca sabe o que vai ser; precisa é garantir o nosso hoje, comprar umacasa, melhorar”. As proporções entre distribuição e reinvestimento apresentadas demonstram osistema de distribuição de sobras (líquidas) que a Cooperativa adota. A preocupação de D. équanto à justiça entre a proporção das sobras reinvestidas na cooperativa e aquelas distribuídasentre os cooperados. J. C. apresenta sua opinião acerca dessas proporções: “Hoje, é 70% para acooperativa e 30% para o cooperado. Quando isto aqui for nosso, vai ser 50% a 50%”.

Tais opiniões gravitam em torno do binômio que obriga os cooperados a realizarem umcálculo econômico relativo ao risco e à perspectiva temporal. Um lado do binômio é pautadopelas necessidades atuais dos cooperados, e o outro, pelas necessidades futuras. Garantir hoje adivisão do que possuímos para dividir? Ou reinvestir na cooperativa para garantir quetenhamos algo para dividir no futuro? Ambas as opções envolvem riscos: na primeira, o de nãoter o que dividir amanhã; e, na segunda, o de perder a oportunidade de dividir o que se temhoje.

A perspectiva em relação ao futuro orienta as ações presentes, por exemplo, sobrecomprar ou não novas máquinas. Entendimentos díspares, advindos de diferentes visões sobre ofuturo da cooperativa, conformam posições distintas, que são, por vezes, compreendidos comodivisões na cooperativa. Ad. nos fala de um grupo de cooperados que desejava dividir oresultado atual e outro que almejava investir na cooperativa: “Há uma indefinição sobre nossofuturo aqui dentro. Nós almejamos comprar o equipamento e o patrimônio, e eles querem tudo hoje. E,se for a leilão, o que nós faremos?”. A divisão do grupo aparece em situações em que sãonecessários investimentos no patrimônio da cooperativa. A perspectiva sobre o futuro potencialda Cooperativa, colocado em contraposição a um alegado descompromisso com o mesmofuturo, fica clara no caminho que Ad. fez nesta fala:

Hoje, a gente precisa mandar fazer fora as pequenas medidas, de precisão. Nós pensamos queprecisamos comprar máquinas novas, compramos o tridimensional e queríamos comprar umaretífica nova, mas o pessoal não quer comprar nada, acha que tem de dividir. Isso ficou da épocada empresa. Eles não investiram nada aqui dentro. [...] E agora o pessoal segue pensando assim.

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O nosso pensamento é que a gente precisa comprar as máquinas, ou até mesmo o patrimônio,senão a gente vai sair daqui de mãos abanando, sem nada.

Apesar de alguns entenderem que aqueles que não queriam investir não estariampensando no futuro, algumas falas demonstram que, de fato, o faziam, só que com outroscritérios. Os argumentos desses “dois grupos” sempre consideravam uma perspectiva temporal,seja ao desejarem investir no futuro da cooperativa, seja ao desejarem viver melhor hoje. É issoque nos diz D.:

Eles acham que tem de ter sacrifício para o cooperado: pegar o empréstimo para comprar issoaqui e pagar em dez anos. Para isto aqui ser de quem? Acho que não podia ter tanto sacrifícioassim; trabalho, sim, que ninguém consegue nada sem trabalho, mas não sacrifício. Dar duropara daqui a dez anos ficar sem nada? Não é possível fazer as duas coisas? Um pouco para acooperativa e um pouco para o cooperado? Para comprar um carro, uma casa, fazer o que quiser,não pode? O futuro, a gente nunca sabe o que vai ser, precisa é garantir o nosso hoje, compraruma casa, melhorar.

Nessa equação de interesses, a dimensão pessoal participa como uma mediadora dasescolhas e dos compromissos temporais. Assim, a condição de aposentado, o tempo de trabalhopor vir, a idade de cada um, a situação financeira da família etc., mediam a escolha sobreinvestir ou dividir, pensar no hoje ou no amanhã.

Resultados

As regras de funcionamento “da cooperativa”

Na dinâmica social cotidiana da Cooperativa, revelaram-se alguns entendimentos aosquais os cooperados recorrem para, em um só tempo, justificar e manter a simetria de poder, ocomprometimento de todos com a cooperativa e a unidade do grupo social. Essesentendimentos são utilizados sob a forma de argumentos, quando os cooperados percebem quea ideia coletiva sobre o que é uma cooperativa, ou como ela deve ser, está ameaçada. A opçãoaqui foi apresentá-los sob a forma de regras do funcionamento coletivo da cooperativa, poisregras possuem esse duplo aspecto: ao mesmo tempo descrevem como deveria ser uma situaçãoe servem de argumento quando esse entendimento está sob ameaça. São elas:

- “Todos são iguais” – afirmada na condição do voto pessoal unitário. É utilizada peloscooperados para manter a simetria de poder entre todos, independentemente de característicaspolíticas ou técnicas. A igualdade que essa regra impõe é possibilitar a liberdade de circulaçãopela cooperativa, a liberdade de fala entre todos, bem como a segurança com que exigemtransparência dos conselhos e cobram atitudes uns dos outros. A igualdade também possibilitaque haja conflito entre os cooperados, um demonstrativo da democracia presente e dapossibilidade de construção de novos entendimentos coletivos;

- “Todos são responsáveis” – regra apoiada na condição da participação econômica doscooperados nos resultados da cooperativa. É utilizada para cobrar atitudes e comprometimentouns dos outros. É identificada na preocupação cotidiana dos cooperados com as condiçõeseconômicas e sociais da cooperativa, pois é a responsabilidade que possibilita (e ao mesmotempo obriga) ao cooperado ter controle sobre seu trabalho de fabricação ou de gestão e,simultaneamente, ter controle sobre toda a dinâmica social em acontecimento na cooperativa;

- “Todos estão no mesmo barco” – embasada na condição de sociedade de pessoas (não decapitais), essa regra é entendida como adesão ao projeto da cooperativa e é utilizada paramanter a coesão e a unidade do grupo. “Estar no mesmo barco” significa que “todos vão chegarao mesmo lugar”, ou seja, os riscos – e os benefícios – são compartilhados. Essa regra ainda

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define que é com essas pessoas que a cooperativa deve contar para realizar seus objetivos, e,portanto, ninguém pode ser expulso dela sem motivo grave.

As características psicossociais dos cooperados

Existe alguma similaridade entre a dinâmica social da cooperativa e as característicaspsicossociais da condição de cooperado, já que ambos, “cooperativa” e “cooperado”, sãoresultados da mesma situação social em acontecimento. Se os entendimentos acimaapresentados sob a forma de regras foram criados no cotidiano desse grupo social é porque ostrabalhadores precisam dessas regras para manter a condição de “cooperados”. Da mesmaforma, “a cooperativa” necessita desses entendimentos para continuar sendo uma cooperativa,visto que eles preservam a condição desta. Esses entendimentos (acordos e significados)equilibram a cooperativa, e, quando algum deles é ameaçado, os cooperados atuam paradefendê-los, de forma a também defender a cooperativa.

Nesse mesmo processo, as características psicossociais dos cooperados são internalizadasquando eles passam a compartilhar esses entendimentos com o grupo. Quando o cooperadoentende a necessidade dessas regras no cotidiano da cooperativa, é porque ele “sente na pele” oque é “ser cooperado”, ou seja, ele vive a identidade psicossocial de cooperado.

Cada regra de funcionamento do grupo social que perfaz “a cooperativa” corresponde auma das características psicossociais da condição de cooperado que serão aqui apresentadas:

- Os cooperados se preocupam com a cooperativa. Diante de uma máquina ou em contato com umcliente, numa reunião ou até em casa à noite, os cooperados estão boa parte do tempo com “acooperativa” em mente, ocupados e pré-ocupados com ela. Estar ocupado com a cooperativa épensar na situação econômica dela, em seu futuro e no do grupo, nos conflitos de interessepresentes e em negociação, nos assuntos do momento, na atuação da administração ou dosvendedores, na satisfação dos clientes, no valor do dólar, no faturamento do mês etc.;

- Os cooperados controlam a cooperativa. Por estarem ocupados com o presente e o futuro dacooperativa, e por serem responsáveis pelo sucesso desta, os cooperados controlam a cooperativade uma forma peculiar, atentando para o próprio trabalho, para o trabalho dos demaiscooperados e para tudo o que ocorre no dia a dia da cooperativa. Um efeito dessa atenção econtrole sobre tudo o que acontece é, contudo, um “clima psicossocial” tenso no cotidiano detrabalho da cooperativa;

- Os cooperados se sentem membros da cooperativa. Embora sejam sócios na cooperativa e donosde suas quotas-partes, os cooperados não se sentem propriamente donos da cooperativa, mas“partes” desta. Esse sentimento é próprio da condição de pertencimento a um coletivo, do qual apessoa se sente parte e partícipe. Essa condição de membro da cooperativa justifica apreocupação que sentem e também possibilita o controle que exercem. Essa condição estávinculada à adesão simbólica entre cooperado e cooperativa, contida nas expressões pela qualdizem que estão “todos no mesmo barco” e “vão todos chegar ao mesmo lugar”.

Da empiria à compreensão de alguns processos psicossociais

Alternância de posições como uma condição simbólica dos cooperados

Do conjunto de entendimentos dos cooperados, incluindo as regras de funcionamentoda cooperativa, postos em prática no dia a dia de trabalho e de autogestão da cooperativa,resulta a construção de “um jeito de ser cooperado”. No cotidiano, os trabalhadores aprendemcomo a cooperativa funciona na prática, aprendem a se colocar e a negociar para alcançar seus

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objetivos, descobrem os limites de negociação em função das condições gerais da cooperativa ed o ambiente econômico, social e institucional em que ela está inserida. Ou seja, ostrabalhadores tornam-se cooperados durante a vivência diária na cooperativa.

Entretanto, eles somente se sentem cooperados quando conseguem atuar efetivamentecomo membros participantes dessa coletividade. Quando alcançam essa condição socializadade membros plenos da cooperativa, é porque desenvolveram os recursos psicossociais queconformaram as condições simbólicas necessárias para ser um cooperado.

Esta pesquisa evidenciou a “alternância de posições” como uma das condições simbólicasdos cooperados. É uma condição necessária para que um trabalhador seja cooperado pleno,capaz de viver o cotidiano da cooperativa e nele negociar seus interesses pessoais e coletivos. Asíntese possível da alternância de posições é a capacidade que o cooperado constrói dereconhecer na cooperativa diversas posições de interesses e, a partir desse reconhecimento,alternar entre as posições de modo a compreendê-las, num processo em que ocupasimbolicamente a posição e os interesses do outro. É por meio da condição simbólica dealternância de posições que os cooperados reconhecem, durante as negociações, a existênciasempre presente de duas posições nítidas – uma referente aos interesses gerais “da cooperativa”e outra, aos interesses gerais “dos cooperados” – e podem alternar entre elas.

É por meio desse processo também que os cooperados entendem que os conselheiros ecoordenadores defendem e devem defender os interesses gerais “da cooperativa”, geralmenteassociados a reservar recursos ou adquirir novas máquinas e equipamentos. Exemplos desseprocesso são as situações de negociação para a compra de novas máquinas e para a reserva derecursos oriundos das sobras para a ocasião do leilão da massa falida.

De outro lado, também entendem que os cooperados em posições fabris defendem edevem defender os interesses gerais “dos cooperados”, geralmente associados a melhorias naremuneração e a conquistas de novos benefícios. Exemplos desse processo na Cooperativaforam as situações de reativação do refeitório, distribuições de sobras e promoções.

A identificação dessa condição simbólica dos cooperados é também relevante por revelarque não existe um antagonismo inevitável entre os interesses “da cooperativa” e os “doscooperados”, mas que os interesses de uma ou de outra posição ora se aproximam, ora seafastam. É por meio dessa condição simbólica que os cooperados reconhecem como legítimos osinteresses de ambas as posições e compreendem os impactos que decisões tomadas a partir deuma ou outra posição trarão para a cooperativa e para eles. Nesse processo de negociação, amaioria dos cooperados ora tende para um lado, ora para outro, a depender basicamente dasrelações de comparação que estabelecem entre a cooperativa e a vida pessoal.

Essa comparação traz à luz uma terceira posição, que diz respeito aos interesses pessoaisdos cooperados, que é igualmente fundamental e está sempre presente no cotidiano dacooperativa. Entretanto, essa posição não está evidente no cotidiano da cooperativa como asoutras duas, mas encoberta e, geralmente, invisível. Apesar disso, os cooperados geralmenteconsideram os interesses dessa posição como legítimos, o que possibilita que a levem em contano processo de alternância de posições. Assim, entre os interesses “da cooperativa” (querepresentam os interesses dos cooperados enquanto sócios) e os interesses “dos cooperados”(que representam os interesses deles como trabalhadores) se interpõem os interesses doscooperados como pessoas.

A pesquisa identificou duas maneiras pelas quais a posição “da pessoa” se interpõe nasnegociações entre as posições “da cooperativa” e “do cooperado”. A primeira diz respeito à jáapresentada comparação entre vida pessoal e cooperativa, e a segunda, à perspectiva de futuro doscooperados. Na primeira, a distância entre os interesses “da cooperativa” e “dos cooperados”depende da comparação que o cooperado estabelece entre a situação da cooperativa(principalmente à condição econômica dela) e a situação de suas vidas pessoais (prioritariamente

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“Todos são iguais”, “todos são responsáveis” e “todos estão no mesmo barco”: os (des)entendimentos da autogestão cooperativa

às necessidades de suas famílias). Dito de outro modo, em geral, quanto maior for a distânciajulgada entre as condições da vida pessoal e da cooperativa, maior será a distância entre osinteresses de sócio e de trabalhador, e vice-versa. Assim, se ambas condições estão mal, ouestão bem, há proximidade de interesses, mas, se uma condição se distancia da outra, o mesmoocorre com tais interesses. Isso acontece porque, para um cooperado, simplesmente não fazsentido que a cooperativa esteja bem enquanto ele e sua família estão mal. Quando umasituação assim se estabelece, é muito difícil que os cooperados cheguem a um entendimentosatisfatório.

Na segunda maneira, a distância entre os interesses “da cooperativa” e “doscooperados” depende da perspectiva de futuro dos cooperados, ou seja, de suas necessidadespessoais vistas através da perspectiva temporal do cooperado. Isso conforma, entre outras coisas,as decisões pessoais quanto ao seu investimento na cooperativa, em termos de tempo, decapital, de envolvimento etc. Em geral, tanto maior será o investimento na cooperativa quantomaior for a percepção do período de retorno desse investimento. Ou seja, os cooperados maisjovens e com mais anos de trabalho vindouros na cooperativa geralmente têm maiorpossibilidade e interesse de investir na cooperativa. Isso ocorre porque as necessidades pessoaisse alteram com o passar dos anos, daí a angústia dos cooperados mais velhos com “uma vida quedesabou nas nossas costas” e a euforia dos cooperados mais jovens com a cooperativa “que estádando certo” e na qual “ainda vamos ganhar dinheiro”.

A vivência cotidiana dessas negociações, que exige alternância de posições, não é algotranquilo para os cooperados, em virtude da dificuldade do processo, que envolve exposiçãopessoal, atritos, conflitos de interesses que resultam em divisões do grupo, pressões sobre aadministração etc. A vivência dessas dificuldades cria nos cooperados uma esperança e umadesesperança. A esperança se dá pela vontade de que os interesses coincidamespontaneamente, pela simples noção de que “a cooperativa é o grupo de cooperados”; entretanto,como essa coincidência espontânea quase nunca ocorre, muitos cooperados se “desiludem com acooperativa”, daí a desesperança. É um processo ambíguo, ditado pelo momento pelo qual acooperativa passa.

A produção de entendimentos no cotidiano dos cooperados

A opção pela utilização da palavra “entendimento” deve-se a dois motivos: àidentificação desta entre as mais utilizadas pelos cooperados; e à percepção de que ela preservaa tensão presente nas negociações pelas quais os cooperados chegam a determinadosentendimentos. Ademais, a palavra “entendimento” possui simultaneamente caráter social ecognitivo, o que a torna excepcionalmente adequada à compreensão da conversa como o métodotácito pelo qual os cooperados “negociam e produzem” novos entendimentos, nos dois sentidosdo termo – novas compreensões e novos acordos.

A conversa, pois, coloca as negociações no centro da cena social. Durante a conversa, a“produção” de entendimentos ocorre por meio de uma “negociação” em que os entendimentossão investidos de interesses e em que a construção de novos acordos depende e é acompanhadada construção de novos significados, o que confere uma natureza dupla aos entendimentos,posto que são, simultaneamente, cognitivos e sociais, ou seja, psicossociais.

Os entendimentos dos cooperados foram construídos coletivamente por eles no dia adia de trabalho na cooperativa e foram compartilhados, circulando entre eles. Nessa circulação,os entendimentos foram postos à prova, isto é, foram testados nas situações em que se aplicam,foram modificados, transformados e reconstruídos de acordo com as situações e com as novaspossibilidades de entendimento entre os cooperados. Ou seja, os cooperados compreendem(entendem) as questões acerca da cooperativa de determinada forma porque chegaram a um

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acordo coletivo (entendimento) entre eles por meio de uma negociação de interesses ecompreensões diversas.

Nesse processo de negociação, os cooperados demonstraram entender muito bem osinteresses e os significados das diversas posições em negociação, bem como compreendem quetodas essas posições são necessárias, pois, na Cooperativa, cabe ao Conselho de Administraçãopensar “na cooperativa”, assim como cabe à “maioria” pensar “nos cooperados”. Eles mostraramque, para um cooperado, é fundamental conseguir alternar posições, observando a situação dacooperativa ora como sócio, ora como trabalhador, ora como pessoa.

Referências

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Endereço para correspondê[email protected]

Recebido em: 20/07/2012Revisado em: 17/03/2013

Aprovado em: 22/03/2013

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Instruções para colaboradores dos Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

1. Serão aceitos para apreciação e posterior publicação, manuscritos monográficos contendorelatos de pesquisas ou ensaios abordando temáticas da psicologia social do trabalho e dosprocessos organizativos.

2. Para que um manuscrito seja apreciado pelo conselho editorial, o proponente deverá dargarantias de que se trata de um trabalho ainda não publicado, de que não foi enviado paraqualquer outra revista e de que todos os autores e as fontes de comunicações pessoais aprovamsua publicação por meios impressos e digitais.

3. Os autores deverão informar se há conflitos de interesse que possam comprometer osresultados do trabalho apresentados.

4. Os autores deverão informar, no caso de relato de pesquisa, se o estudo que originou o artigofoi avaliado por um comitê de ética ou não.

5. Os autores deverão informar, quando for caso, as fontes de financiamento dos trabalhadossubmetidos.

6. Os autores deverão concordar, em caso de aprovação para publicação, com a transferênciapara a revista dos direitos da primeira publicação do texto.

7. O manuscrito, em português ou espanhol, deverá ser encaminhado para [email protected]. Oarquivo deverá ter a seguinte formatação: formato de papel A4, fonte Times New Roman,corpo 12, estilo normal em todos os parágrafos, espaçamento 1,5 e margens de 2 centímetros,sem quebras de páginas ou de seções. Títulos e subtítulos deverão estar em negrito e ter apenasa primeira letra maiúscula (não utilizar caixa alta no texto). O manuscrito completo (incluindonotas de rodapé e referências) não poderá ultrapassar 55 mil caracteres (contando-se tambémos espaços). Ele deverá estar em um único arquivo, em formato compatível com os editores detextos Word ou OpenOffice/LibreOffice, de preferência em .doc ou .odt.

8. O arquivo deverá conter título na língua original e em inglês, nomes completos por extensode todos os autores, afiliações institucionais completas de todos os autores, endereçoseletrônicos de todos os autores, resumo, abstract, palavras-chave e keywords.

9. As informações sobre a afiliação institucional de cada autor compreendem: nome dainstituição (universidade, por exemplo), nome da unidade (faculdade ou instituto, porexemplo), nome do departamento (quando for o caso).

10. O resumo, com até 1200 caracteres (contando-se também os espaços), será apresentado emum único parágrafo e informará: objetivos, metodologia (quando for o caso), resultados econclusões. O mesmo vale para o abstract.

11. O conjunto das palavras-chave deverá refletir o conteúdo do texto e reunir de três a seisexpressões. O mesmo vale para as keywords.

12. As referências seguirão o padrão da American Psychological Association (APA).1

13. As notas apontadas no corpo do texto deverão ser indicadas com números sequenciais,imediatamente depois da frase a que digam respeito. As notas deverão ser apresentadas norodapé da mesma página.

1 American Psychological Association (2001). Publication manual of the American Psychological Association. Washington, DC: APA.Os editores entendem que para a maioria dos casos as orientações aqui constantes são suficientes. Recomendamos, no entanto, aconsulta à adaptação para o português elaborada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Psicologia da USP:http://www.ip.usp.br/biblioteca/pdf/

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14. O manuscrito será enviado para avaliação a consultores ad hoc, escolhidos pelos editoresentre pesquisadores de reconhecida competência na área. Os consultores não terão acesso aosnomes dos autores. Serão dois os consultores a darem pareceres e um terceiro, em caso dediscordância entre os primeiros, será convocado. Os autores serão avisados da aceitação, darecusa ou da necessidade de modificações no texto.

15. Pequenas correções poderão ser feitas pelos editores, desde que não alterem o conteúdo domanuscrito e as intenções dos autores. No entanto, a responsabilidade pela revisão do texto esua correção do ponto de vista ortográfico e gramatical estará a cargo dos autores, sob o riscode a publicação ser recusada até que as devidas correções sejam feitas.

Normas para citações

1. Os Cadernos de Psicologia Social do Trabalho adotam as normas da APA na apresentação das citaçõesno texto e das referências. As referências dos autores citados devem ser apresentadas no final do texto enão em notas de rodapé. Constarão apenas as obras a que são feitas alusões ao longo do texto.

2. Os autores devem ser apresentados pelo sobrenome e seguidos pelo ano da publicação. Nas citaçõescom dois autores os sobrenomes quando citados entre parênteses devem ser ligados por “&”; quandocitados no texto devem ser ligados por “e”: (Lima & Oliveira, 1995) ou Lima e Oliveira (1993).

3. No caso de citações com três a cinco autores, a primeira vez em que aparecem no texto são citadostodos os autores; nas citações seguintes cita-se o sobrenome do primeiro autor seguido da expressãolatina “et al.”.. Já em citações com seis ou mais autores, cita-se sempre o sobrenome do primeiro autorseguido da expressão “et al.”. (nas referências, ao final do texto, devem aparecer os nomes de todos osautores, sejam quantos forem): (Silva, Santos & Gomes, 1997) ou Silva, Santos e Gomes, 1997; Nascitações seguintes: (Silva et al., 1997) ou Silva et al. (1997).

4. Em citações de vários autores e uma mesma idéia, deve-se obedecer à ordem alfabética de seussobrenomes e não à ordem cronológica: (Lacaz, 1997; Minayo-Gomez, 1997; Rego, 1993) ou Lacaz(1997), Minayo-Gomez (1997), Rego (1993).

5. No caso de citações de autores com mesmo sobrenome indicar as iniciais dos prenomes abreviados:(A. M. Rodrigues, 1992; L. M. Rodrigues, 1990) ou A. M. Rodrigues (1992) e L. M. Rodrigues (1990).

6. No caso de documentos com diferentes datas de publicação e um mesmo autor, citam-se o sobrenomedo autor e os anos de publicação em ordem cronológica. Quando se tratam de publicações diferentescom a mesma data, acrescentam-se letras minúsculas após o ano de publicação: (Gergen, 1973, 1985a,1985b, 1985c, 1989) ou Gergen (1973, 1985a, 1985b, 1985c, 1989).

7. Documentos cujo autor é uma entidade coletiva, devem ser citados pelo nome da entidade porextenso, seguido do ano de publicação: (Associação Brasileira de Psicologia Social, 1995) ou AssociaçãoBrasileira de Psicologia Social (1995).

8. Para citações de informações obtidas através de canais informais (aula, conferência, comunicaçãopessoal, e-mail etc.), acrescenta-se a informação entre parênteses após a citação: (Comunicação pessoal,1 o de maio de 1999).

9. Obras antigas e reeditadas: citar a data da publicação original seguida da data da edição consultadaquando isso for importante de ser informado ao leitor: Goffman (1959/1985) ou (Goffman, 1959/1985).

10. No caso de transcrição literal de um trecho de um texto, esta deve ser delimitada por aspas duplas,seguida do sobrenome do autor, data e página citada: (Ibáñez, 1992, p. 22) ou Billig (1994, pp. 12-13).No caso de citação de trecho com 40 ou mais palavras, este deve ser apresentado em parágrafo própriosem aspas, iniciando com a linha avançada (equivalente a cinco toques de máquina) e terminando com amargem direita igualmente recuada.

11. Na citação indireta, ou seja, aquela cuja idéia é extraída de outra fonte, utilizar a expressão “citadopor”: Vico (1965, citado por Shotter, 1993) ou Vico (1965) citado por Shotter (1993). Nas referênciasmencionar apenas a obra consultada, no caso: Shotter, J. (1993).

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Normas para referências

1. As referências deverão ser apresentadas no final do artigo. Sua disposição deve ser em ordemalfabética do último sobrenome do autor. No caso de mais de uma obra de um mesmo autor, asreferências deverão ser dispostas em ordem cronológica de publicação. Para cada referência, mencionartodos os autores, independentemente de quantos sejam, na ordem em que aparecem na publicaçãooriginal.

2. Livros com um ou mais autores:

Mello, S. L. M. (1988). Cotidiano e sobrevivência: mulheres do campo e da periferia de São Paulo. SãoPaulo: Ática.

Henriques, J., Holloway, W., Urwin, C., Venn, C. & Walkerdine, V. (1984). Changing the subject:psychology, social regulation and subjectivity . London : Methuen.

3. Com autoria institucional:

Grupo Krisis (1999). Manifesto contra o trabalho (H. D. Heidemann, trad.). São Paulo: Labur.

4. Com entrada pelo título sem autoria específica:

Consolidação das Leis do Trabalho (1977). (46 a ed. atualizada). São Paulo: Atlas.

5. Com indicação de edição ou tradutor:

Bosi, E. (1994). Memória e sociedade: lembranças de velhos (4 a ed.). São Paulo: Companhia das Letras.

Orstman, O. (1984). Mudar o trabalho: as experiências, os métodos, as condições de experimentaçãosocial (H. Domingos, trad.). Lisboa, Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian.

6. Com indicação de data ou título da edição original ou título traduzido:

Lafargue, P. (1999). O direito à preguiça. São Paulo: Hucitec-Unesp. (Originalmente publicado em 1880)

Marx, K. & Engels, F. (1993). A ideologia alemã (9 a ed.). São Paulo: Hucitec. (Originalmente publicadoem 1932. Título original: Die deutsche ideologie)

Oddone, I., Re, A. & Briante, G. (1977). Esperienza operaia, coscienza di classe e psicologia del lavoro[Experiência operária, consciência de classe e psicologia do trabalho]. Turim, Itália: Giulio Einaudi.

7. Capítulo de livro:

Sato, L. (1993). A representação social do trabalho penoso. In M. J. P. Spink (Org.), O conhecimento nocotidiano: as representações sociais na perspectiva da psicologia social (pp. 188-211). São Paulo :Brasiliense.

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8. Artigo de revista científica:

Spink, P. K. (1996). A organização como fenômeno psicossocial: notas para uma redefinição dapsicologia do trabalho. Psicologia e Sociedade, 8 (1), 174-192.

9. Artigo de jornal:

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10. Trabalho de evento publicado em resumos ou anais:

Seligmann-Silva, E. (1999). Desemprego: a dimensão psicossocial. In La psicología al fin del siglo:conferencias magistrales del XVII Congreso Interamericano de Psicología (pp. 337-359). Caracas,Venezuela: Sociedad Interamericana de Psicología.

Neves, T. F. S., Ortega, C. A., Kim, C., Müller, E., Costa, F. B., Massola, G. M. M., Dadico, L., Barros, L.H., Lopes, P. S., Amêndola, M. F., Barreto, R. A. & Pires, T. A. A. (1998). Desemprego e ideologia:explicações das causas do desemprego utilizadas por trabalhadores metalúrgicos. In Anais do VIIEncontro Regional da Associação Brasileira de Psicologia Social: neoliberalismo e os desafios para apsicologia social (p. 139). Bauru, SP: Associação Brasileira de Psicologia Social.

11. Dissertação ou tese:

Carvalho, M. C. R. G. (1981). Fábrica: aspectos psicológicos do trabalho na linha de montagem.Dissertação de Mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.

Heloani, J. R. (1991). Modernidade e identidade: os bastidores das novas formas de exercício do podersobre os trabalhadores. Tese de Doutorado, Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social,Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

12. Texto da internet:

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13. Trabalho em vias de publicação:

Salvitti, A., Viégas, L. S., Mortada, S. P. & Tavares, D. S. (no prelo). O trabalho do camelô: trajetóriaprofissional e cotidiano. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho.

14. Texto não publicado (mimeografado, datilografado, digitado etc.):

Oliveira, F. (1999). Desemprego e psicologia. São Paulo. [digitado]

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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

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