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1 CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA 34 Editorial Franciscana BRAGA 2008

CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Outubro foi enviado, provavelmente como guardião, para Estrasburgo com outros irmãos (24). No capítulo de Espira, na Primavera de 1222,

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CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA

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Editorial Franciscana BRAGA – 2008

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Ficha Técnica

Coordenador: Fr. José António Correia Pereira, ofm

Editorial Franciscana

Apt. 1217

4711-856 BRAGA

Tel. 253 253 490 / Fax 253 619 735

E-mail: [email protected]

Edição on-line no site:

www.editorialfranciscana.org

Capa: Desenho de Fr. José Morais, ofm

Edição: Editorial Franciscana

Propriedade: Província Portuguesa da Ordem Franciscana

Depósito Legal: 14549/94 I. S. B. N.: 972-9190-46-1 Caderno 34 – 2008 Cada número dos Cadernos é vendido avulso

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Índice

I — Estudos

1. Crónica de Jordão de Giano ..................................................................... 5

2. Fr. David de Azevedo ofm

— Identidade Franciscana - Porque canta o pássaro ....................... 45

3. Nicole Bériou

— António de Lisboa, o testemunho de uma palavra

nova no século XIII ........................................................................ 55

II — Documentos

João Duns Scotus: genialidade e audácia ............................................... 67

Conferência dos Ministros Gerais da Família Franciscana

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I – Estudos

CRÓNICA DE JORDÃO DE GIANO

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CRÓNICA DE JORDÃO DE GIANO

Introdução

Para conhecer a expansão que a Ordem dos Frades Menores teve na

Europa, na segunda metade do século XIII, é imprescindível conhecer as

Crónicas dessa época. A Crónica de Jordão de Giano, e o Tractatus de

adventu fratrum minorum in Anglia, de Tomás Eccleston e a Crónica de

Salimbene de Parma o de Adam, são os textos mais importantes. Jordão

de Giano conheceu S. Francisco, Eccleston e Salimbene entraram na

Ordem pouco depois da sua morte. São, por isso, testemunhas credíveis

para nos descreverem a forma como a Ordem cresceu e como se soube

adaptar a ambientes culturais diferentes da Itália do tempo de S. Fran-

cisco. Apresentamos agora a tradução portuguesa da Crónica de Jordano

Giano, prometendo para breve a publicação de Eccleston e de Salimbene.

As modernas traduções da Crónica de Jordão de Giano tomam

como base a edição crítica de Boehmer publicada em 1908, que é mais

completa que o texto da Analecta Franciscana1. As edições alemãs e

italianas são pontos de referência para os dados sobre Jordão de Giano,

para as notas e introdução2.

–––––––– 1 H. BOEHMER, Chronica fratris Jordani, Paris, 1908; Analecta Franciscana I, 1-19.

2 L. HARDICK, Nach Deutschland und England. Die Chroniken der Minderbrüder

Jordan von Giano und Thomas von Eccleston. Werl, 1957. Fonti Francescane, Nuova

edizione, Scritti e biografie di san Francesco d‟Assisi, Chronache e alter testimonianze

del primo secolo francescano (Fonti), EF, 2004, p 1524-1560. Cf. também Jordan de

Giano, Crónica, introducción, traducción y notas de José Vte. Ciurana, ofm cap, Selec-

ciones de Franciscanismo (SF), 25-26, 1980, p. 229-268.

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1 – Dados sobre Jordão de Giano

O testemunho mais importante, e quase único, que encontramos

sobre a pessoa de Jordão de Giano, aparece no princípio do século XVI e

vem do cronista alemão da Ordem Franciscana, Nicolás Glassberger, que

apresenta assim a Jordão de Giano: ―O irmão Jordão foi um dos primeiros

irmãos enviados por S. Francisco à Alemanha. Era um homem de tez

escura, pequeno de estatura, alegre de coração, bom e pronto para toda a

boa obra, homem de grande obediência, que não venerava no irmão

menor nenhum sinal de santidade, sem a obediência…‖3. Esta descrição

foi escrita passados 250 anos da morte de Fr. Jordão e dá a impressão de

ter vindo de alguém que o conheceu pessoalmente. Talvez venha de Fr.

Balduino de Brandenburgo, que é citado no Prólogo, e que teve parte

activa na sua redacção.

Era natural de Giano, pequena povoação do vale de Espoleto.

Segundo grande parte dos autores, deve ter nascido por volta de 11954.

Ele mesmo não se considerava um homem letrado. Para escrever a sua

Crónica precisou de um amanuense, Fr. Balduino, como ele mesmo diz

no Prólogo.

Conheceu pessoalmente os Mártires de Marrocos (n.18). Como

estes irmãos foram enviados para Marrocos em 1219, nessa altura já era

frade menor. A entrada deve ter acontecido antes de 1219, ano em que S.

Francisco partiu para o Oriente. Sendo ordenado sacerdote já na Alema-

nha, muito provavelmente seria diácono, quando entrou na Ordem. Entre

1218 e 1221 viveu em Assis, podendo relatar os acontecimentos vividos

na ausência de S. Francisco no Oriente (n.11-14). Assistiu ao Capítulo de

1221, do qual dá pormenores na sua Crónica (n. 16-18). A sua vida foi

decidida aí, ao ser escolhido, contra sua vontade, para a missão da Ale-

manha (n. 18). A viagem através dos Alpes deu-se em 1221 (19-23). Em

Outubro foi enviado, provavelmente como guardião, para Estrasburgo

com outros irmãos (24). No capítulo de Espira, na Primavera de 1222,

foram três os irmãos de Estrasburgo que estiveram presentes, o que dá a

imagem de uma comunidade em crescimento (27). Foi ordenado sacer-

dote em Espira, a 18 de Março de 1223, onde era guardião. Durante

algum tempo foi o único sacerdote nas residências de Espira, Worms e

–––––––– 3 Chronica fratris Nicolás Glassberger Ordinis Minorum Observantia, em Ana-

lecta Franciscana, II, 54. 4 Cf. SF, o.c. p. 230.

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Mogúncia (30). Em 1224 é mandado à Turíngia e em 1225 era ali custó-

dio (38-41). Provavelmente exerceu o cargo até 1239. Em 1230 foi

enviado à Itália, para pedir um novo provincial para a Saxónia, depois da

morte de Fr. Simão (58). No regresso, trouxe consigo as relíquias de S.

Francisco, que lhe foram entregues por Tomás de Celano (59). Regressa à

Itália em 1238, fazendo parte do grupo que apelou ao Papa contra Fr.

Elias.

A Crónica não dá informações sobre os anos de 1239 a 1242. São

conhecidas, no entanto, três cartas suas, que falam da invasão dos bárba-

ros e que nos informam que Fr. Jordão, em 1241, era vigário provincial da

província da Boémia e Polónia, onde os irmãos tinham chegado em

12385. Sabemos que a 29 de Setembro de 1242 se encontrava novamente

na Alemanha e tomou parte no capítulo de Altemburgo, onde foi nomeado

vigário da Província da Saxónia (71), permanecendo no cargo até ao ano

seguinte (71-72). Provavelmente estava em Erfurt em 1244. Nesse ano os

irmãos tiveram problemas com o bispo de Mogúncia, que ele relata (74).

Na sua Crónica não encontramos informações até 1262, ano em que

tomou parte no capítulo de Halberstadt, como diz no Prólogo da sua Cró-

nica. Ali ditou as suas memórias, e Fr. Balduino escreveu. Deve ter fale-

cido pouco tempo depois, com perto de 80 anos. Foi enterrado em

Magdeburgo6.

2 – A sua Obra

A Crónica de Jordão de Giano segue o esquema das crónicas,

sendo ele mesmo o protagonista principal. Ele narra os acontecimentos

em que pessoalmente esteve envolvido. A sua intenção é contar os tempos

do início da Ordem na Alemanha e outros acontecimentos relacionados

com os irmãos para ali enviados. A sua Crónica termina com o capítulo

de Halberstadt, onde ele ficou e ditou as suas memórias.

A Crónica abrange um largo período histórico, de 1209 a 1262,

com mais realce para os anos que vão de 1219-1239. Começa a descrição

dos acontecimentos relacionados com a fundação da Ordem, mas concen-

tra-se nos acontecimentos da Alemanha, para focar de maneira especial na

Província da Saxónia.

–––––––– 5 Cf. H. BOEHMER, o. C. p. LVII

6 Ibid. P. LXIIIs.

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A Crónica é um documento excepcional de quarenta anos das ori-

gens da vida franciscana. O valor histórico do documento está sobretudo

no facto de Jordão se deter sobretudo nos acontecimentos que conhece

bem. Daí que a sua cronologia seja bastante exacta. Por isso, a sua Cró-

nica, apesar das suas limitações, é uma fonte importante, por exemplo,

para conhecer a crise da Ordem durante a ausência de S. Francisco no

Oriente (11-15).

A sua memória reteve sobretudo os anos em que governou Fr. Elias

e as implicações negativas que a sua governação teve na Alemanha. É

desses anos que dá informações mais pormenorizadas, tanto à forma de

governar, como às reacções que causou o fim do seu governo. No entanto,

Jordão não faz considerações sobre o carácter de Fr. Elias, nem dos outros

gerais que conheceu. Limita-se aos factos e suas consequências.

Nota-se também que Jordão, com a sua Crónica, pretende edificar os

irmãos. Nesse contexto, sublinha a obediência como a virtude caracterís-

tica do Frade Menor, e a forma como era vivida na Alemanha. Para ele, o

êxito conseguido deve-se sobretudo ao exemplo duma vida simples e

pobre, e não a motivos de grandeza e poder. Olhando para trás, Jordão vê

um passado de certa maneira heróico, mas percebe que é a mão da provi-

dência que os conduz, como confessa no Prólogo: ―Quando considero a

humildade e a pequenez da minha condição e a dos que comigo foram

enviados à Alemanha, e observo o desenvolvimento actual da nossa

Ordem, fico confundido comigo mesmo e exalto de coração a divina cle-

mência, sentindo-me impelido a dirigir-me a vós com estas palavras do

apóstolo: ―Considerai, pois, irmãos, a vossa vocação: humanamente

falando, não há entre vós muitos sábios, nem muitos poderosos − que

desejassem formar a nossa Ordem com a própria sabedoria −, nem muitos

nobres” −, que a quisessem honrar com os seus privilégios. Sem moralis-

mos fáceis, Jordão narra situações difíceis que os irmãos enfrentaram, às

vezes com tons anedóticos (43.55). Os episódios mais belos são os que

narram situações difíceis, onde vem à tona o carácter evangélico dos

irmãos.

Ao escrever as suas memórias, Jordão de Giano está a mostrar como

o carisma franciscano se foi implantando em ambientes diferentes dos

italianos, e como se foram adaptando a novos contextos culturais, man-

tendo, no entanto, os seus traços originais e a sua referência à pessoa de

Francisco de Assis.

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PRÓLOGO

Aos irmãos da Ordem dos Menores estabelecidos na Alemanha, o

irmão Jordão de Giano7, do Vale de Espoleto, deseja a perseverança no

bem, e no futuro uma glória eterna com Cristo.

Quando eu contava episódios sobre a vida8 dos primeiros irmãos

enviados à Alemanha, muitos irmãos que os escutavam ficavam edifica-

dos. Muitas vezes me pediram que pusesse por escrito estas e outras

recordações jocosas, e que anotasse os anos em que foram enviados

irmãos à Alemanha e em que data se deu este ou aquele episódio. Como

diz a Escritura: ―A desobediência é tão culpável como a superstição, e a

insubmissão é como o pecado da idolatria‖ (1Sm 15, 23)9. Por isso,

resolvi anuir ao piedoso desejo dos irmãos, apoiado sobretudo pelo irmão

Baldovino de Brandenburg, que, a pedido do irmão Bartolomeu10

, então

Ministro da Saxónia, se ofereceu como escrivão.

No ano do Senhor de 1262, depois do capítulo de Halberstadt, cele-

brado no domingo ―Jubilate‖11

, estando eu presente no dito capítulo,

comecei, sem pretensões, como narrador e o irmão Bartolomeu como

escrivão, a satisfazer aquele pedido.

Se esta tarefa resultar, até eu mesmo ficarei satisfeito. Se não resul-

tar, devereis ter uma certa condescendência. Na verdade, como sabeis,

empreendi esta obra, porque a isso vós me obrigastes, apesar de ter cons-

ciência da minha pouca formação.

–––––––– 7 Pequena cidade do vale de Espoleto, tal como se dirá mais adiante. No tempo de

S. Francisco havia ali um pequeno convento. 8 No texto original aparece ―conversatione et vita‖, que é de difícil tradução.

Optamos por traduzir a forma como viviam os irmãos, que nos parece mais ajustada ao

carisma franciscano da ―forma de vida segundo o Evangelho‖. 9 A citação original é uma adaptação do texto de Samuel.

10 No nº 78 fala-se da sua eleição como Ministro.

11 Corresponde ao terceiro Domingo depois da Páscoa, o dia 30 de Abril de 1263.

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Em relação aos dados cronológicos é natural que haja alguma

confusão, o que é aliás bastante natural, tendo em conta que sou um

homem de idade avançada e cansado. Por isso, peço perdão ao leitor e

rogo-lhe que, com caridade, corrija e supra qualquer falha que encontre.

Da mesma forma, agradeço também a todo aquele que queira embe-

lezar com expressões mais elegantes o estilo do escritor e a rudeza da

frase. Para mim é suficiente que tenha posto este material à disposição de

escritores excelentes e peritos na arte da boa escrita.

Quando considero a humildade e a pequenez da minha condição e a

dos que comigo foram enviados à Alemanha, e observo o desenvolvi-

mento actual da nossa Ordem, fico confundido comigo mesmo e exalto de

coração a divina clemência, sentindo-me impelido a dirigir-me a vós com

estas palavras do apóstolo: ―Considerai, pois, irmãos, a vossa vocação:

humanamente falando, não há entre vós muitos sábios, nem muitos pode-

rosos − que desejassem formar a nossa Ordem com a própria sabedoria −,

nem muitos nobres − que a quisessem honrar com os seus privilégios.

Mas o que há de louco no mundo é que Deus escolheu para confundir os

sábios; e o que há de fraco no mundo é que Deus escolheu para confun-

dir o que é forte. O que o mundo considera vil e desprezível é que Deus

escolheu; escolheu os que nada são, para reduzir a nada aqueles que são

alguma coisa” (1Cor 1, 26-29).

Para que nos gloriemos, pois, em Deus, que com sua sabedoria fun-

dou esta Ordem e por meio do seu servo Francisco a colocou como exem-

plo para o mundo, e não a um só homem, vamos narrar com clareza nos

próximos capítulos, quando e de que forma e através de que pessoas esta

Ordem chegou até nós.

(Fim do Prólogo)

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1. No ano do Senhor de 120712

, Francisco, mercador de profissão,

de coração contrito e tocado pelo sopro do Espírito Santo, começou uma

vida de penitência, com o hábito de eremita13

. Mas uma vez que a

Legenda14

já explicou de forma suficiente como sucedeu a sua conversão,

damos o assunto como subentendido.

2. No ano do Senhor de 1209, terceiro ano da sua conversão, tendo

escutado no Evangelho o que Cristo disse aos seus discípulos, quando os

enviou a pregar, deitou fora o bastão, o alforge, as sandálias, mudou o

modo de vestir15

, adoptando a forma de vestir que agora usam os irmãos,

e fez-se imitador da pobreza evangélica e um pregador diligente do Evan-

gelho.

3. No ano do Senhor de 121916

, décimo ano da sua conversão, o

Irmão Francisco, no capítulo celebrado em Santa Maria da Porciúncula,

enviou irmãos à França, à Alemanha, à Hungria, à Espanha e a outras

províncias da Itália, aonde os irmãos ainda não tinham chegado.

4. Quando perguntavam aos irmãos que chegaram à França17

se

eram Albigenses18

, respondiam que sim, não compreendendo o signifi-

cado da palavra ―albigense‖, nem se dando conta que se tratava de here-

ges, a ponto de quase serem confundidos com eles. Mas o bispo e os

–––––––– 12

Os estudos recentes apresentam o ano de 1206 como ano da conversão. Cf.

MELRO, G.G. En el nombre de Francisco de Asís, Historia de los Hermanos Menores y

del franciscanismo hasta los comienzos del siglo XVI, ed. Arantzazu, 2005, Quadro Cro-

nológico, p. 537. 13

Cf. 1C 21,5; TC 21,2. 14

É de supor que Jordão conhecesse as duas Legendas de Celano e o Oficio Litúr-

gico de Julião de Espira (Cf. o número 53 desta Crónica). 15

Cf. 1C 22, 4-8. 16

Esta data não corresponde à verdade. O décimo ano da sua conversão só pode

ser 1217 ou, segundo opinião cada vez mais corrente, 1216. Hoje aceita-se que a pri-

meira missão à Alemanha tenha sido em 1217 e a segunda em 1219. Cf. Fonti Fran-

cescane, nuova edizione (Fonti), Editrici Francescane, Padova, 2004, p. 1529, nota 11. 17

A missão foi conduzida pelo Frei Pacífico, em nome de S. Francisco. Em EP

65,20; LM 4. 9,6-7 fala-se de Fr. Pacífico como primeiro ministro de França. 18

Os Cátaros (puros) desde 1500 que estavam espalhados pelo sul da França e na

zona de Albi (daí o nome de Albigenses). Defendiam uma doutrina dualista, que conde-

nava como mal as estruturas sociais e tudo quanto esteja relacionado com a matéria.

Inocêncio III convocou uma cruzada para os combater, que ficou conhecida como cru-

zada contra os albigenses.

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mestres,19

após uma leitura atenta da sua Regra, e achando-a evangélica e

católica, consultaram o senhor Papa Honório sobre este assunto20

. Este,

através das suas cartas21

, declarou que a sua Regra era autêntica, porque

tinha sido aprovada pela Sé Apostólica, e que os irmãos, filhos especiais

da Igreja Romana, eram verdadeiramente católicos. Isso os libertou da

suspeita de heresia.

5. Depois foram enviados à Alemanha os irmãos… e Fr. João de

Pena22

, com cerca de sessenta irmãos, ou talvez mais. À medida que iam

penetrando nas regiões da Alemanha, desconhecendo a língua, quando

lhes perguntavam se desejavam alojamento, respondiam ―ja‖, sendo,

assim, bem recebidos por alguns. Reparando que esta palavra ―ja‖ fazia

com que fossem tratados com humanidade, decidiram responder ―ja‖ a

todas as perguntas que lhes fizessem. Mas sucedeu que, quando lhes per-

guntaram se eram hereges e se tinham intenção de contaminar a Alemanha,

como já o haviam feito na Lombardia23

, voltaram a responder ―ja‖.

Alguns foram, então, encarcerados, e outros despojados e despidos,

foram apresentados à multidão num espectáculo público. Ao ver os

irmãos que na Alemanha não podiam produzir frutos, voltaram à Itália. A

partir de então, a Alemanha foi considerada pelos irmãos uma terra sem

humanidade, onde ninguém ousava voltar, a não ser por desejo de

martírio.

–––––––– 19

O bispo era Pedro de Nemours (1208-1219); cf. Fonti, p. 1529, nt. 14. Os mes-

tres eram os catedráticos de teologia. 20

Esta é uma informação preciosa. Ficamos a saber que em 1217 estes irmãos

levaram consigo a sua Regra. O Papa Honório III governou a Igreja de 1216-1227. 21

A carta Cum dilecti filii, de Honório III, provavelmente de 1219, é o primeiro

documento papal onde se recorda «o irmão Francisco e a seus companheiros de vida e

religião dos Irmãos Menores (Frater Franciscus et socii de vita et religione Minorum

fratrum)» e o seu «estilo de vida aprovado justamente pela Igreja Romana (vite viam a

Romana ecclesia merito approbatam)», cf. MELRO, op. cit. p. 83-84; Segundo DELORME

o documento é mesmo de 11 de Junho 1218: AFH, XII (1219), p. 591-593, cf, Fonti

p.1530, not.17. 22

Pena fica entre Macerata e Ascoli. A Florinha 45 fala de João de Pena. Consta

que morreu com muita idade em 1274. Cf. Fonti p.1530, not. 18. 23

A Lombardia, por onde os irmãos também andaram, (Cf. Tiago de Vitry, Fon-

tes Franciscanas I (Fontes), 3ª ed. Ed. Franciscana, Braga, 2005, p.1386), era conside-

rada pelos alemães terra de hereges.

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6. Os irmãos enviados à Hungria foram conduzidos por via marí-

tima, a pedido de um bispo húngaro. Enquanto penetravam, alegres,

naquelas planícies, os pastores acirravam-lhes os cães sem mais aquelas e,

sem lhes dirigir palavra, batiam-lhes com a parte não afiada das suas lan-

ças. Os irmãos interrogavam-se sobre as razões de tais maus tratos e um

deles considerou: ―Certamente querem o nosso hábito‖. Deram-lhes o

hábito, mas eles não desistiram de os incomodar. ―Talvez desejem as

túnicas interiores‖, considerou. Mas, mesmo depois de lhas darem, conti-

nuaram as bastonadas. Disseram então: ―Talvez queiram também os cal-

ções‖24

. E deram-nos também. Só então deixaram de lhes bater, e manda-

ram-nos partir nus. Um dos irmãos contou-me que se desfez dos calções

umas quinze vezes. E, como por causa do pudor e da vergonha lhe era

mais difícil desfazer-se dos calções, resolveu sujá-los com esterco de boi

e com outras porcarias, para que os pastores, sentindo o mau cheiro, não

lhes tirassem os calções. Depois de serem ofendidos desta e de outras

maneiras, regressaram à Itália.

7. Dos irmãos que passaram à Espanha, cinco foram coroados do

martírio25

. Não posso afirmar com exactidão se estes irmãos foram envia-

dos pelo referido capítulo ou por um capítulo anterior, como Fr. Elias e

seus companheiros enviados aos territórios de além-mar26

.

8. Quando o bem-aventurado Francisco tomou conhecimento do

martírio, da vida e da Legenda27

dos referidos irmãos, e dando-se conta

que os irmãos se vangloriavam do seu martírio, como se desprezava a si

mesmo e detestava os louvores e as glórias dos homens, proibiu a

Legenda e sua leitura: ―Cada um glorie-se do seu próprio martírio e não

do dos outros‖28

.

–––––––– 24

Com estas peripécias se descreve o tipo de roupa que os irmãos usavam: o

hábito propriamente dito, a túnica interior até aos joelhos e os calções, que cobriam as

pernas. 25

São os cinco mártires de Marrocos: Berardo, Pedro, Adjuto, Acúrcio e Otão,

martirizados em Marrocos em 16 de Janeiro de 1220. 26

Os irmãos foram enviados a Marrocos no Capítulo de 1219. Sobre Fr. Elias,

cf. n. 9 desta Crónica. 27

Esta Legenda não chegou até nós. 28

Cf. Ex 6.

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Na realidade, esta primeira missão não produziu resultados, talvez

porque ainda não tinha chegado e momento certo, já que cada ―coisa tem

o seu tempo, determinado pelo céu‖29

.

9. Por sua vez, Fr. Elias foi nomeado pelo bem-aventurado Fran-

cisco ministro das terras do ultramar30

. Por intermédio da sua pregação,

um clérigo de nome Cesário, foi admitido na Ordem. Cesário, subdiácono,

alemão nascido em Espira, tinha sido discípulo de teologia do mestre

Conrado de Espira31

, pregador da cruzada e mais tarde bispo de Hilde-

sheim. Ainda como secular, foi um grande pregador e imitador da perfei-

ção evangélica. Uma vez que na sua cidade algumas senhoras, que acor-

riam à sua pregação, usavam vestidos simples e despojados de adornos, os

seus maridos, desagradados, quiseram mandá-lo para a fogueira, conside-

rando-o herege. Valeu-lhe a influência do mestre Conrado, que o libertou

das chamas, tendo regressado a Paris. Mais tarde atravessou o mar, acom-

panhando a solene travessia32

, converteu-se à Ordem através da pregação

de Fr. Elias, como já ficou dito, e chegou a ser um homem de grande

doutrina e exemplo.

10. Tendo em conta o que ficou dito, o bem-aventurado Pai dando-

-se conta que tinha mandado os seus filhos para o martírio e sofrimentos,

não quis dar a impressão de desejar para si próprio a tranquilidade,

enquanto os outros se afadigavam por Cristo. E como era homem de

grande coragem e não aceitasse que ninguém o superasse no seguimento

de Cristo, desejando antes a todos preceder, tendo enviado os seus filhos

ao encontro de perigos incertos e para o meio dos infiéis, ardendo de amor

pela paixão de Cristo, naquele mesmo ano em que enviou os outros

irmãos, isto é, no décimo terceiro ano da sua conversão, desafiando os

perigos inevitáveis do mar, foi ao encontro dos infiéis e apresentou-se ao

Sultão33

. Mas, antes de chegar até ele, foi muito injuriado e ofendido. Não

–––––––– 29

Cf, Ecl 8, 6. 30

Fr. Elias (1180-1253), de Assis ou de Cortona, ministro provincial da Síria, de

1217 a 1221. 31

Conrado de Speyer ensinou teologia em Paris e Mogúncia. Pregou a cruzada

contra os Albigenses e foi depois nomeado, em 1221, bispo de Hildesheim. Morreu em

1246, Cf. Fonti p.1531. 32

―Solemnia passagia‖ é a travessia dos Cruzados por mar. Jordão refere-se aqui

à quinta cruzada, de 1217. 33

Era o sultão Melek-el-Kamel (1217-1238).

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conhecendo a língua, gritava no meio dos golpes: ―Sultão, Sultão‖. Assim

foi conduzido até ele, recebido com muitas honras, e curado das feridas

com muita humanidade. Sentindo que entre eles não obteria grande fruto,

dispôs-se a partir. Por ordem do Sultão, foi acompanhado com escolta

armada até ao acampamento do exército cristão, que sitiava Damieta.

11. Antes de atravessar o mar em companhia de Pedro Catani34

,

especialista em direito e mestre de leis, designou o bem-aventurado Fran-

cisco dois vigários: Fr. Mateus de Narni35

e Fr. Gregório de Nápoles36

.

Estabeleceu que Mateus ficava em Santa Maria da Porciúncula, para que,

residindo ali, pudesse receber todos quantos desejassem entrar na Ordem.

Gregório ficava incumbido de viajar pela Itália, para confortar os irmãos.

Efectivamente, segundo a Regra primitiva37

, os irmãos jejuavam às

quartas e sextas-feiras e também às segundas-feiras e sábados, com auto-

rização do bem-aventurado Francisco, e comiam carne nos outros dias. Os

dois vigários e alguns irmãos mais anciãos de toda a Itália celebraram um

capítulo38

, onde estabeleceram que os irmãos não podiam comer carne

adquirida por eles nos dias permitidos, mas só aquela carne oferecida

espontaneamente pelos fiéis. Estabeleceram ainda que deviam jejuar às

segundas e nos dias seguintes, e que não deviam usar lacticínios às segun-

das e sábados, abstendo-se deles39

, excepto no caso de serem oferecidos

pelos fiéis.

12. Um irmão leigo, indignado com estas constituições, que tinham

a presunção de acrescentar algo à Regra do santo pai, tomou-as consigo e

atravessou os mares, sem autorização dos vigários. Tendo encontrado o

bem-aventurado Francisco, confessou primeiro a sua culpa, pedindo per-

–––––––– 34

Pedro Catani é considerado o segundo seguidor de Francisco. Foi vigário da

Ordem de 1220 a Março de 1221 (1C 25, 1). Faleceu em 1221 e está sepultado em Santa

Maria dos Anjos. 35

Não mais dados sobre este irmão. 36

É uma figura muito complexa dos primeiros tempos da Ordem. Fr. Elias saúda-

-o na sua Carta encíclica como Ministro dos irmãos da França. Como partidário de Fr.

Elias, no Capítulo do Pentecostes de 1239 foi destituído e condenado ao cárcere, onde

morreu. 37

Trata-se da ―forma de vida‖ aprovada oralmente em 1209 por Inocêncio III. Na

Regra não bulada, de 1221, já não constam estas prescrições. 38

No Pentecostes de 1220. 39

Estas disposições sobre o jejum e a abstinência vinham das antigas ordens

monásticas, sobretudo da tradição de Cluny.

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dão por ter vindo sem licença, embora obrigado por uma emergência: na

realidade, os vigários tiveram a presunção de acrescentar novas normas à

sua Regra; informou-o ainda que a Ordem vivia em grande agitação por

toda a Itália, tanto por causa dos vigários, como de outros irmãos que

reclamavam outras novidades.

Quando lia atentamente as constituições, o bem-aventurado Fran-

cisco, que estava sentado à mesa, tendo à frente um prato de carne para

comer, perguntou, então, ao irmão Pedro: ―Senhor Pedro, que fazemos

agora?‖ Ele respondeu: ―Ah! senhor Francisco, faz o que te pareça

melhor, porque tens a autoridade‖. Como o Fr. Pedro era culto e nobre, o

bem-aventurado Francisco, homem cortês, honrava-o tratando-o por

Senhor. Este respeito mútuo permaneceu entre eles, tanto no ultramar

como na Itália. Por fim, o bem-aventurado Francisco concluiu: ―Coma-

mos, pois, como diz o Evangelho, o que nos apresentaram40

.

13. Por aquela altura, vivia no ultramar uma ―pitonisa‖, que prog-

nosticava muitas coisas e, por isso, era conhecida naqueles sítios pela

―Verídica‖…‖41

. (Ela tinha dito aos irmãos que estavam com Francisco:)

―Voltem, voltem! Por causa da ausência do irmão Francisco, a Ordem

está confundida, divide-se e dispersa-se‖. Na realidade, era assim. Efecti-

vamente, o irmão Filipe 42

, que tinha o cuidado das damas Pobres contra a

vontade do irmão Francisco, que preferia vencer as adversidades com

humildade e não com a autoridade da lei, pediu e obteve da Santa Sé

Apostólica uma carta, que lhe dava autoridade para defender as Damas

Pobres e excomungar a quantos o molestassem. Do mesmo modo, o irmão

João Campello43

reuniu um grande número de leprosos, homens e mulhe-

res, saiu da Ordem e quis fundar uma nova Ordem; escreveu uma regra e

apresentou-se à Santa Sé com os seus seguidores, pedindo a aprovação.

–––––––– 40

Cf. Lc 10, 5-8. Esta passagem evangélica também é citada em 1R 3, 12. Este

parágrafo e o seguinte são a única fonte de todo este episódio. 41

O texto está truncado. A frase entre parêntesis foi acrescentada por Boehmer,

Cf. H. Boehmer, Chronica fratris Jordan, CED, Paris, 1908, p. 12. 42

Um dos primeiros companheiros de Francisco, o sexto, segundo 1C 25. Era

conhecido por Filipe Longo e foi o primeiro visitador das Damas Pobres de S. Damião

(cf. TC 1, 4). 43

O texto latino diz ―Conpello‖, mas talvez se trate da povoação Compello, pêro

de Clitunno. Também pode ser um apelido: João de Capella (do chapéu). A Crónica dos

XXIV Gerais diz que ele foi o primeiro a usar chapéu sobre o capuz. L. HARDICK, o. c.,

p. 49, nota 42, é desta opinião.

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Além de todos estes factos, houve ainda outros motivos de pertur-

bação na ausência do bem-aventurado Francisco, tal como tinha previsto a

―Verídica‖.

14. O bem-aventurado Francisco tomou consigo o irmão Elias, o

irmão Pedro Catani e o irmão Cesário – aquele que tinha sido recebido na

Ordem pelo irmão Elias, quando ministro da Síria, como já se disse – e

ainda outros irmãos, e regressou à Itália44

. Porém, quando se apercebeu da

gravidade das causas da desordem, dirigiu-se ao senhor Papa Honório45

e

não aos agitadores.

Estava, então, o pai com grande humildade no átrio do senhor Papa,

não se atrevendo a bater à porta de tão alto príncipe, esperando com

paciência que aparecesse espontaneamente. Quando apareceu, o bem-

-aventurado Francisco, inclinando-se, disse-lhe: ―Pai Papa, Deus te dê a

paz‖. Ele respondeu: ―Deus te bendiga, filho‖. E Francisco retorquiu:

―Senhor, como és grande, e muitas vezes estás ocupado com graves pro-

blemas, os pobres não se podem aproximar de ti com frequência, nem

podem falar-te sempre que precisam. Já me deste muitos papas46

; con-

cede-me um só, a quem eu possa falar quando tenha necessidade, e que

em teu nome me escute e resolva os meus problemas e os da minha

Ordem‖.

E o Papa, voltando-se para ele, disse-lhe: ―Quem desejas que te dê,

filho?‖ Ele respondeu: ―O senhor de Óstia‖47

. E se lho concedeu.

Tendo, pois, o bem-aventurado Francisco dado a conhecer ao

senhor de Óstia, seu papa48

, os motivos que o atormentavam, este revogou

de imediato as cartas do irmão Filipe e expulsou vergonhosamente da

Cúria o irmão João e seus seguidores.

15. Assim, com a graça de Deus, os perturbadores acalmaram-se

depressa, e o bem-aventurado Francisco reestruturou a Ordem, de acordo

com as suas disposições. Vendo depois que o irmão Cesário era especia-

lista na Sagrada Escritura, confiou-lhe a tarefa de adornar com palavras

–––––––– 44

No verão de 1220. 45

Honório III, que residia, então, em Orvieto. 46

Aqui tem o sentido de ―protectores‖. 47

Hugolino de Segni, cardeal e bispo de Óstia e Velletri de 1206 a 1227. Foi

nomeado Papa (1227-1241), tomando o nome de Gregório IX. 48

No original está: ―papae suo‖.

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do Evangelho o texto da Regra, que ele mesmo tinha escrito com palavras

simples49

. E ele assim fez50

.

E como muitos irmãos estivessem desorientados por causa dos

rumores que corriam acerca do bem-aventurado Francisco – uns diziam

que tinha morrido, outros que tinha sido assassinado, e outros que se tinha

afogado –, quando souberam que estava vivo e regressara, sentiram tanta

alegria, que era como se uma nova luz amanhecesse para eles.

Depois o bem-aventurado Francisco convocou sem demora o Capí-

tulo Geral para Santa Maria dos Anjos.

16. Assim, no ano do Senhor de 1221, no dia 23 de Maio, indicção

XIV, no dia santo do Pentecostes51

, o bem-aventurado Francisco celebrou

o Capítulo geral em Santa Maria da Porciúncula. Segundo o costume

vigente então na Ordem, assistiram ao Capítulo tanto os professos como

os noviços, estimando-se que se juntaram cerca de três mil irmãos52

. No

Capítulo estiveram também presentes o cardeal-diácono Rainero, e muitos

outros bispos e religiosos53

. Por ordem do Cardeal, a missa foi celebrada

por um bispo, e crê-se que então o bem-aventurado Francisco leu o evan-

gelho e outro irmão a epístola.

Como não havia espaço coberto para tantos irmãos, instalaram-se

debaixo da copa das árvores num campo espaçoso e cercado. Comiam e

dormiam divididos ordenada e comodamente em grupos de vinte e três

mesas. O povo do lugar serviu com muita prontidão a este Capítulo, pro-

vendo pão e vinho em abundância, e alegrando-se pela reunião de tantos

irmãos e pelo regresso do bem-aventurado Francisco.

Neste Capítulo, o bem-aventurado, escolhendo como tema a palavra

do salmista ―Bendito seja o Senhor, meu Deus, que adestra as minhas

mãos para o combate‖ (Sl 18, 35; 144, 1), pregou aos irmãos, ensinando-

–––––––– 49

Trata-se da Regra de 1221. 50

É um dos factos que P. Sabatier contraria na sua biografia de S. Francisco. Ali

afirma que foi S. Francisco que ampliou a Regra. A grande parte dos analistas reconhece

que, embora algumas citações façam parte do texto primitivo, outras são, contudo, um

acrescento, embora totalmente de acordo com o espírito de S. Francisco. Cf. P.

SABATIER, Vie de Saint François d‟Assise, Paris, 1918, p. XL. 51

A data está errada. O Pentecostes de 1221 celebrou-se em 30 de Maio, não na

indicção XIV, mas na IX. 52

Ep 68,1 e Eccleston 39 referem-se a 5000 irmãos reunidos em Capítulo. 53

Rainero Capocci, cisterciense. Foi bispo de Viterbo. Morreu em 1252. Cf. 1C

125,10, nota 205.

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-lhes as virtudes e exortando-os à paciência e a dar ao mundo bom exem-

plo. Do mesmo modo falou ao povo, e tanto o povo como os clérigos fica-

ram edificados.

Mas, quem poderia explicar quão grande era naquele tempo a cari-

dade e quanta era a paciência, a humildade, a obediência e a caridade fra-

terna entre os irmãos? Nunca vi na Ordem um Capítulo como este, tanto

pela multidão dos irmãos como pela solenidade das cerimónias. E, apesar

da grande multidão dos irmãos, reunidos, no entanto, o povo provia ale-

gremente, até ao ponto de, passados sete dias, os irmãos se verem obriga-

dos a fechar a porta e a não aceitar mais nada, ficando mais dois dias para

poderem consumir todas as ofertas recebidas54

.

17. No final deste Capítulo, quando estava quase a terminar, o bem-

-aventurado Francisco recordou-se que a Ordem ainda não estava

implantada na Alemanha. Como então estava doente55

, tudo o que dese-

java comunicar ao Capítulo, fazia-o através de Fr. Elias. Sentado aos pés

do irmão Elias, o bem-aventurado Francisco puxou-lhe pelo hábito, e este,

inclinando-se para ele e escutando-o, levantou-se e disse: ―Irmãos, o

Irmão – entendendo por tal o bem-aventurado Francisco, que, entre eles,

era tido como o Irmão por excelência – diz que existe um país, a Alema-

nha, onde vivem homens cristãos e devotos. Como sabeis, passam muitas

vezes pela nossa terra com os seus bastões compridos e grandes botas,

cantando e louvando a Deus e aos seus santos, e, empapados em suor, sob

o calor ardente, visitam os sepulcros dos santos. Como os irmãos do pri-

meiro grupo que para lá foi enviado regressaram muito mal tratados, o

Irmão não obriga ninguém a ir. Mas, se algum, inspirado pelo zelo de

Deus e das almas, quisesse ir, lhes dará a mesma obediência56

, e até uma

mais ampla que aquela que dá aos que vão para o ultramar. Se algum tem

intenção de ir, levante-se e coloque-se em grupo à parte‖. Inflamados pelo

desejo, levantaram-se cerca de 90 irmãos, dispostos a enfrentar a morte.

Sentados à parte, como lhes tinha sido pedido, esperavam para saber

quem, quantos, como e quando deviam partir.

–––––––– 54

Nas Florinhas 18, este ―capítulo das esteiras‖ entrou no reino da fantasia,

fazendo confluir nele acontecimentos de outros capítulos. 55

Sobre a doença, cf. 1C 98, 1º1, 105, 108; 2C 34, 44, 64, 92, 126, 215. 56

Obediência, na linguagem franciscana e no sentido que aqui é usado, significa

encargo, missão. Litterae oboedientiales (letras obdienciais) é o documento escrito desta

missão, que servia como credencial, quase como um passaporte eclesiástico.

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18. Estava presente naquele Capítulo um irmão, que pedia muito ao

Senhor que a sua fé não fosse corrompida pelos hereges da Lombardia,

nem posta à prova pela crueldade dos alemães, e que o Senhor, por sua

bondade, o livrasse destas provas. Este irmão, vendo levantar-se um

grupo tão numeroso de irmãos dispostos a ir à Alemanha, pensou que

seriam logo martirizados pelos alemães. Como sentia pena de não ter

conhecido pessoalmente os irmãos enviados à Espanha e já martirizados,

quis evitar que sucedesse o mesmo com estes. Levantou-se, então, do

meio da multidão e, dirigindo-se a cada um deles, perguntava ―Quem

eram e donde vinham?‖. Considerava uma grande honra poder dizer mais

tarde, caso fossem martirizados: ―Eu conheci este ou aquele‖.

Entre eles havia um irmão chamado Palmério, pessoa alegre e enge-

nhosa, oriundo do monte Gárgano, na Pulla, que mais tarde foi guardião

de Magdeburgo. Quando o tal irmão curioso se acercou dele para lhe per-

guntar quem era e como se chamava, este respondeu que se chamava

Palmério e, pegando-lhe pela mão, disse: ―Tu também és dos nossos e

vais connosco‖. Queria levá-lo consigo para entre os alemães, tendo o

outro pedido muitas vezes ao Senhor que o enviasse a qualquer lado,

menos para ali. Detestando tanto os alemães, replicou horrorizado: ―Eu

não sou do vosso grupo, só vos queria conhecer, não quero juntar-me a

vós.‖ Mas o outro, continuando com o seu bom humor, reteve-o, e, não

obstante se opusesse com palavras e gestos, obrigou-o a sentar-se com os

outros. Entretanto, enquanto o tal irmão curioso era retido entre o grupo,

foi designado a outra Província com a fórmula: ―Tal irmão vai para tal

Província…‖.

Enquanto os 90 irmãos aguardavam a decisão, o Irmão Cesário57

,

nascido em Espira, foi designado ministro da Alemanha, com faculdade

para escolher entre os 90 os que quisesse levar consigo. Tendo encontrado

o irmão curioso, alguém lhe sugeriu que o levasse. Mas este, que detestava

a ideia de ir para entre os alemães, não cessava de repetir: ―Não sou dos

vossos, nem me levantei com a intenção de ir convosco‖. Levaram-no

então a Fr. Elias58

. Os irmãos da Província para onde tinha sido destinado

o irmão, ao ouvirem isto, tudo fizeram para que ficasse com eles, até porque

se tratava de um irmão de saúde delicada, e o país para onde o queriam

–––––––– 57

Sobre Cesário, cf. nº9. 58

A ideia com que se fica neste relato, é que Fr. Elias não era só vigário de Fran-

cisco, o seu porta-voz (nº 17), mas que tinha poder de decidir.

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levar era demasiado frio. Sem embargo, o irmão Cesário tentava de todas

as formas levá-lo com ele.

Fr. Elias pôs fim à questão dizendo: ―Ordeno-te, irmão, por santa

obediência, que decidas de uma vez por todas, se queres ir ou ficar‖. Mas

ele, sujeito à obediência e não sabendo o que fazer, tinha dificuldade em

optar segundo a sua consciência. Não queria dar a impressão, ao escolher,

de querer fazer a própria vontade. Devido à crueldade dos alemães, temia

pôr em perigo a sua alma, caso não aguentasse os tormentos. Assim, inde-

ciso entre as duas alternativas e não encontrando a solução por ele

mesmo, dirigiu-se a um irmão que já havia passado por muitas tribula-

ções. Era aquele irmão que na Hungria ficou sem os calções por 15

vezes59

. A ele pediu conselho desta forma: ―Irmão caríssimo, recebi esta

ordem, mas tenho medo de escolher e não sei o que fazer‖. O outro res-

pondeu-lhe: ―Vai ter com Fr. Elias e diz-lhe: ‗Irmão, não quero ir nem

ficar, farei o que mandares‘. Assim te livrarás de tal indecisão‖. E Assim

fez. Quando Fr. Elias ouviu isto, mandou, por santa obediência, que se

juntasse a Fr. Cesário e fosse depressa para a Alemanha.

Este irmão, sou eu, Fr. Jordão de Giano, o mesmo que agora vos

escreve, e que nestas circunstâncias chegou à Alemanha. Livrando-se da

fúria dos alemães que tanto temia, com Fr. Cesário e outros irmãos,

implantou pela primeira vez na Alemanha a Ordem dos Menores60

.

19. Fr. Cesário foi o primeiro ministro da Alemanha. Preocupado

por cumprir eficazmente a obediência que recebeu, tomou consigo os

irmãos João de Piano Carpine61

, pregador em latim e lombardo, o alemão

–––––––– 59

Cf. nº 6 60

Esta é uma das melhores páginas desta crónica. Jordão mostra as suas qualida-

des de narrador, atento a uma análise psicológica de um acontecimento que viveu pes-

soalmente. Para a história da Ordem, é interessante a descrição da atmosfera que reinou

neste capítulo. Pena é que a sua curiosidade não o tenha levado a escrever mais sobre

este capítulo e os problemas lá tratados, como por exemplo, a aprovação da Regra não

Bulada. 61

Sobre este irmão cf. nº 23, 34-37, 54-56, 61. Nasceu em Cárpine, actual

Magione, perto de Perúsia. Foi custódio da Saxónia entre 1222-1224. Em 1224 foi

enviado a Colónia e em 1228 foi nomeado provincial da Alemanha, tomando parte no

Capítulo geral, em Assis. Neste capítulo foi enviado à Espanha. Entre 1232-1239 foi

provincial da Saxónia, levando a Ordem para a Boémia, Polónia, Hungria, Dinamarca e

Noruega. Em 1245 foi enviado por Inocência III como seu delegado a Gengis Khan, rei

dos Tártaros. São conhecidas as memórias desta viagem, onde escreve sobre este povo

(Ystoria Mongolorum, quos nos Tartaros apellamus, editada por A. VAN WINGAERT, em

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Barnabé62

, óptimo pregador em lombardo e alemão, Tomás de Celano63

,

que depois escreveu a primeira e a segunda Legenda de S. Francisco, José

de Treviso64

, o húngaro Abraão65

, o toscano Simão66

, filho da condessa de

Collozone, o clérigo alemão Conrado, o sacerdote Pedro de Camarino, os

sacerdotes Santiago e Gualter, o diácono Palmério67

, Fr. Jordão de Giano,

diácono, e mais alguns irmãos leigos, nomeadamente o alemão Benedito

de Soest68

, o suevo Henrique, e outros que já não me recordo. Ao todo

eram 12 clérigos e 13 leigos.

Depois de ter escolhido estes irmãos, Fr. Cesário, homem piedoso, e

que se afastava com desgosto do bem-aventurado Francisco e dos outros

santos irmãos, com autorização do bem-aventurado Francisco, distribuiu

os companheiros escolhidos pelas várias casas da Lombardia, enquanto

aguardavam as suas instruções. Ele mesmo manteve-se pelo vale de

Espoleto durante três meses. Quando decidiu empreender a viagem para a

Alemanha, chamou os irmãos e enviou à frente Fr. João de Piano Carpine

e a Fr. Barnabé e mais alguns, com o encargo de prepararem alojamento

em Trento para eles e para os outros irmãos, que os seguiram de imediato,

em grupos de três e quatro.

20. Foi assim que os irmãos se reuniram e chegaram a Trento, antes

da festa de S. Miguel69

. Foram acolhidos com benevolência pelo bispo da

cidade70

, durante os seis dias em que todos ali se reuniram. No dia de S.

Miguel, Fr. Cesário pregou ao clero e Fr. Barnabé ao povo. Como fruto

das suas pregações, um cidadão de Trento, chamado Pellegrino, rico e

–––––––– Sinica Franciscana I, Quarachi, 1929, 3-332). Regressou à Europa em 1247, tendo sido

enviado à corte de Luís IX de França, como delegado pontifício, com a incumbência de

conseguir que Luís IX organizasse uma cruzada. Morreu em Itália em 1 de Agosto de

1252. 62

Cf, nº 23. 63

Sobre Tomás de Celano, cf. FF I. 64

Cf. nº 24. 65

Cf. nº 24 e 28. 66

Também conhecido como Simão de Comitissa. Colozzone era um castelo perto

de Todi. Sua mãe era amiga do Imperador Otão IV e da imperatriz Beatriz. Fez-se clé-

rigo contra a vontade da família. O ministro geral João de Parma nomeou-o provincial de

Espoleto. Morreu em Espoleto em 1250. 67

Cf. nº 18 e 28. 68

Cf. nº 34. 69

A 29 de Setembro. 70

Adalberto de Ravenstein (1219-1223).

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conhecedor das línguas alemã e lombarda, depois de oferecer aos irmãos

novos hábitos e novas túnicas, e ter vendido os seus bens, os distribuiu

aos pobres e foi acolhido na Ordem.

21. Fr. Cesário convocou, depois, os irmãos em Trento, e exor-

tando-os a conservar a humildade e a paciência, (deixou alguns irmãos

para a edificação do povo, e aos outros)71

mandou-os adiante de si a Bol-

zano em grupos de três, encarregando um das coisas temporais e outro das

coisas espirituais. O senhor bispo de Trento continuou a dar assistência

durante vários dias aos irmãos que iam chegando, concedendo-lhes facul-

dades para pregar na sua diocese. Chegados a Brixen por Bolzano, foram

recebidos pelo bispo do lugar72

.

De Brixen penetraram pelas regiões montanhosas e chegaram a

Sterzing, já depois da hora da comida. E, como aquela gente não tinha pão

ao alcance da mão e os irmãos não sabiam pedir-lho73

, prosseguiram via-

gem, esperando chegar a algum lugar antes do entardecer, onde pudessem

ser socorridos pela caridade de seus habitantes. Assim chegaram a Mit-

tenwald74

. Aqui, devido à grande escassez de comida, procuraram enganar

a fome com dois pedaços de pão e sete nabos, e a sede com a alegria do

coração, o que mais não fez que lhes aumentar o apetite. Conversando

entre eles sobre a forma de encher o estômago, para poder gozar o des-

canso nocturno depois de tão longa caminhada, decidiram beber da água

límpida de um rio, para enganar o estômago vazio.

Ao amanhecer, levantaram-se, famintos e em jejum, e retomaram o

caminho. Percorrida meia milha, a vista começou a enovelar-se-lhes, as

pernas fraquejavam, os joelhos dobravam-se por causa do jejum, e per-

diam as forças em todo o corpo. Dobrados pelas cãibras que a fome lhes

causava, arrancavam frutos dos arbustos e das árvores e ervas que encon-

–––––––– 71

O texto entre parêntesis é da edição crítica de H. BOEHMER (p. 24), que segue

Glassberger. 72

Bertoldo (1216-1224). 73

Dá a impressão que, embora alguns irmãos falassem alemão, havia grupos onde

nenhum dos irmãos o falava. Certamente que Jordão de Giano fazia parte de um desses

grupos. 74

Segundo H. Boehmer (o.c., p. 25, nota 5), Jordão confunde Mittenwald com

Grossensass ou Gries ou S. Jodock, aldeias situadas entre Matrei e Sterzing.

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travam pelo caminho. Mas, como era uma sexta-feira75

, tinham medo de

romper o jejum. Até o simples facto de levar consigo os frutos das árvores

e arbustos lhes dava a impressão de satisfação, porque, em caso de

extrema necessidade, tinham que comer. Assim, detendo-se umas vezes,

ou caminhando com lentidão, chegaram com dificuldade a Matrei. E eis

que Deus, “a quem se abandona confiadamente o pobre”(Sl 10, 14), solí-

cito com seus pobres, fez com que encontrassem, ao entrar na cidade, dois

homens hospitaleiros, que lhes compraram um pão de dois denários. Mas,

que era isto para tantos! (cf. Jo 6, 9). Como era tempo de nabos, não tive-

ram outro remédio que pedi-los para suprir a falta de pão.

22. Resolvido assim o problema da comida, mais fartos que ali-

mentados, prosseguiram o caminho através de aldeias, castelos, mosteiros,

até chegar a Augsburgo76

. Ali, o senhor bispo do lugar e seu vigário, seu

sobrinho e cónego da catedral, acolheram-nos com muita benevolência. O

próprio bispo de Augsburgo acolheu os irmãos com tal carinho, que os

recebeu com um beijo a cada um, e da mesma forma os despediu. Tam-

bém o vigário os recebeu com igual afecto, ao ponto de lhes dar a sua

própria cúria, para ali se estabelecerem os irmãos77

. Do mesmo modo,

foram recebidos cordialmente pelo clero e o povo, que os saudaram com

reverência.

23. No ano do Senhor de 1221, pela festa de S. Galo78

, Fr. Cesário,

primeiro ministro da Alemanha, convocou para Augsburgo os irmãos, em

número de 31. E, celebrado o primeiro Capítulo depois de entrar na Ale-

manha, enviou-os para as diversas províncias. Mandou adiante a Fr. João

de Pian del Carpine e Fr. Barnabé, para que pregassem em Würzburg.

Passaram depois a Mogúncia, Worms, Espira, Estrasburgo e Colónia.

Apresentavam-se ao povo em todos os lugares, pregavam a penitência e

preparavam alojamento para os irmãos que vinham a seguir.

–––––––– 75

Como a 29 de Setembro os irmãos estavam em Trento (n.º 20), e como em 16

de Outubro Fr. Cesário reuniu os irmãos em Augsburgo (n.º 23), esta sexta-feira era o

dia 8 de Outubro de 1221. 76

H. BOEHMER (o.c. p. 26, nota 4) dá relevo à exactidão da descrição do trajecto,

através da velha calçada romana de Wilten-Innsbruck-Augsburgo. 77

Esta foi a primeira habitação dos irmãos na Alemanha. 78

16 de Outubro.

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24. Neste mesmo Capítulo, Fr. Cesário enviou Fr. Jordão de Giano

com dois companheiros, Abraão e Constantino, a Salzburg. Foram muito

bem recebidos pelo bispo do lugar79

. Enviou também a Ratisbona outros

três irmãos com Fr. José80

. Depois, Fr. Cesário, seguindo os caminhos que

os irmãos tinham percorrido, confirmava-os no bem, com a palavra e o

exemplo.

25. No mesmo ano, Fr. Cesário, chegado a Würzburg, recebeu na

Ordem um jovem hábil e culto chamado Hartmuth, a quem os italianos,

pela dificuldade de pronunciar o nome, chamavam André, por ter entrado

na Ordem no dia de santo André. Passado algum tempo, foi ordenado

sacerdote e pregador, e pouco depois foi constituído custódio da Saxónia.

Também recebeu na Ordem um leigo chamado Rüdiger, que foi depois

guardião de Halberstadt e mestre de vida espiritual de santa Isabel81

, ensi-

nando-lhe a guardar a castidade, a humildade e a paciência, a passar vigí-

lias de oração e a dedicar-se assiduamente às obras de caridade. Também

recebeu um certo leigo, chamado Rodolfo.

26. No ano do Senhor de 1222, Fr. Cesário recebeu na Ordem um

número tão grande de irmãos, clérigos e leigos, que os convocou das

cidades vizinhas e celebrou em Worms o primeiro Capítulo provincial.

Como o lugar onde se hospedavam os irmãos era muito limitado e pouco

adequado para celebrar missa e pregar, devido ao grande número de

irmãos, aconselhados pelo bispo e pelos cónegos, reuniram-se na catedral

para a celebração e pregação. Os cónegos ocuparam um coro e deixaram

o outro para os irmãos. Celebrou a missa um irmão da Ordem, e, cantando

a dois coros, recitaram o ofício divino com grande solenidade82

.

27. Durante o Capítulo, Fr. Cesário enviou dois irmãos para entre-

gar uma carta aos irmãos de Salzburgo, que não tinham vindo ao Capí-

tulo, convidando-os a uma visita fraterna, caso o desejassem. Mas eles,

como se entregaram a uma obediência inteira, a ponto de nada quererem

fazer por sua própria vontade, perturbados com a condição da carta, ―caso

–––––––– 79

Eberhard II de Truchsess (1200-1246). 80

De Treviso; cf. nº.9. 81

Santa Isabel da Hungria (ou da Turíngia), esposa do conde da Turíngia (1207-

-1231), canonizada por Gregório IX. 82

Isto foi possível, porque a catedral de Worms, construída em 1180, tem duas

ábsides.

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o desejassem‖, pensaram: ―Vamos perguntar-lhe, porque nos pôs esta

condição a nós, que não queremos mais que fazer a sua vontade‖. Puse-

ram-se então a caminho, e chegaram a uma povoação com intenção de

comer; mendigando, dois a dois, ouviam o modo como lhes respondiam

em alemão: ―God berad‖83

, que em vernáculo significa: ―Deus vos ajude‖,

ou ainda melhor, ―Deus vos proteja‖.

Um deles, reparando que com esta expressão nada lhes davam, pen-

sou e disse: ―Este ‗God berad‘ vai-nos matar de fome‖. Tomando a dian-

teira ao irmão que mendigava em alemão, passou a fazê-lo em latim. Mas

os alemães respondiam: ―Nós não entendemos o latim, falamos em ale-

mão‖. Ao que o irmão lhes respondeu com um alemão macarrónico:

―Nicht diudisch‖, que significa em latim ―nada de alemão, só o

entendo‖84

. E acrescentou em alemão: ―Brot durch Gott‖85

. ―É curioso −

disseram as pessoas − que, falando em alemão, digas que não sabes ale-

mão‖, e acrescentaram : ―God berad‖. Então, o irmão, alegrando-se inte-

riormente, sorrindo e fingindo nada compreender, sentou-se em um

banco. Um casal, olhando um para o outro, sorrindo perante tanta inge-

nuidade, deu-lhe pão, ovos e leite. Percebendo que este estratagema lhes

dava bons resultados, e que assim podiam prover às necessidades próprias

e à dos outros irmãos, passou a usar este sistema em mais doze casas, e

assim recolheu o necessário para sete irmãos.

Continuando o caminho, chegaram a uma povoação no dia de

Pentecostes, antes da missa86

. Participaram na missa, e um deles comun-

gou. Ao ver a simplicidade e a humildade dos irmãos, as gentes daquela

povoação ficaram tão sensibilizadas, que se ajoelharam diante deles,

venerando até as suas pegadas. Partiram dali e, passando por Würzburgo,

Mogúncia e Worms, chegaram a Espira. Encontraram todos os irmãos

reunidos com Fr. Cesário e, como de costume, foram bem acolhidos e

hospedados, muito satisfeitos com a sua chegada. Fr. Cesário, repreendido

pelos irmãos por os ter convocado daquela maneira, desculpou-se, expli-

cando melhor a sua intenção, e deu-lhes a devida satisfação.

–––––––– 83

É a fórmula antiga de ―Gott berate euch‖: Deus vos proteja. 84

(Quod latine dicitur nihil theutonici, subaudi scio). Não é necessário outra

explicação, como fez a edição de Quaracchi, que propõe que se leia ―Nicht judisch‖

(Não judeu). 85

Pão por Deus 86

22 de Maio de 1222.

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28. Nesse mesmo ano, o segundo ano da chegada à Alemanha, Fr.

Cesário, ministro da Alemanha, depois de ter colocado os irmãos em

Colónia e em outras cidades já mencionadas, viu-se confrontado com um

escasso número de sacerdotes, de tal forma que em Espira e Worms só um

sacerdote noviço celebrava e confessava os irmãos nas grandes solenida-

des. Nesse mesmo ano promoveu três irmãos ao sacerdócio: Fr. Palmério,

de quem já falamos87

, o húngaro Abraão e o alemão André, que antes se

chamava Hartmuth.

29. No ano do Senhor de 1223, no dia 29 de Novembro, o senhor

papa Honório confirmou a Regra dos Frades Menores.

30. A 18 de Março desse mesmo ano, Fr. Cesário pediu a ordenação

para um quarto sacerdote na Ordem. Tratou-se de Fr. Jordão de Giano, do

vale de Espoleto, que durante todo o Verão foi o único sacerdote que

celebrou alternadamente em Worms, Mogúncia e Espira. Nesse mesmo

ano, Fr. Cesário institui Fr. Tomás de Celano como custódio de Mogún-

cia, Worms, Colónia e Espira.

31. Nesse mesmo ano, Fr. Cesário, homem entregue totalmente à

contemplação do Evangelho e grande amante da pobreza – de tal maneira

aceite pelos irmãos, que o veneravam como o maior dos santos, depois de

S. Francisco – sentindo-se já cansado e desejando ver de novo o bem-

-aventurado Francisco e os irmãos do vale de Espoleto e, uma vez que a

Ordem já estava bem implantada na Alemanha, nomeou como seu vigário

a Fr. Tomás de Celano, então o único custódio, e tomando consigo a Fr.

Simão – que goza agora em Espoleto de fama de santidade88

− e alguns

outros irmãos, também virtuosos e devotos, e dirigiu-se para onde estava

o bem-aventurado Francisco ou Fr. Elias, sendo acolhido com muita bene-

volência por eles e pelos outros irmãos. No capítulo, que naquele mesmo

ano se celebrou em Santa Maria da Porciúncula, Fr. Cesário foi dispen-

sado do cargo de ministro, que desempenhou durante anos, sendo substi-

tuído por Fr. Alberto de Pisa89

.

–––––––– 87

Cf. nº. 18. 88

Trata-se do beato Simão de Colazzone. Cf. Nº 19. 89

Não se conhece a data da sua entrada na Ordem. Já tinha sido ministro na Hun-

gria, e será mais tarde das províncias de Bolonha, Marca de Ancona, Marca de Treviso,

Toscana e Inglaterra. Em 1239 foi eleito ministro Geral, em substituição de Fr. Elias.

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32. Juntamente com Fr. Alberto de Pisa, foram enviados da Itália

irmãos virtuosos e instruídos, nomeadamente Fr. Márcio de Milão90

, Fr.

Santiago de Treviso91

, um irmão inglês especialista em direito, e ainda

mais alguns.

33. Logo que chegou à Alemanha, Fr. Alberto de Pisa, segundo

ministro da Alemanha, convocou os irmãos mais antigos na Alemanha,

nomeadamente Fr. João de Pian del Carpino, Fr. Tomás, vigário e único

custódio e outros irmãos, e celebrou um Capítulo em Espira, no dia da

Natividade da Virgem, junto ao lazareto que havia fora das portas da

cidade. Por essa altura, Fr. Jordão era o guardião local, e cantou a missa

solene. Depois de prolongada reflexão sobre o estado e o crescimento da

Ordem, nomearam a Fr. Márcio custódio da Francónia; a Fr. Ângelo de

Worms custódio da Baviera e da Suábia; a Fr. Santiago custódio da Alsá-

cia e a Fr. João de Piano Carpine custódio da Saxónia.

34. Juntamente com Fr. João de Piano del Carpine, entraram na

Saxónia os irmãos ingleses Fr. João e Fr. Guilherme; o clérigo lombardo

Fr. Gil; Fr. Palmério, sacerdote, Fr. Reinaldo de Espoleto, sacerdote; Fr.

Rüdiger, alemão, leigo; Fr. Titmaro, leigo; Fr. Manuel de Verona,

alfaiate.

35. Ao chegar a Hildesheim, todos eles foram primeiramente rece-

bidos e bem recompostos de suas forças pelo cónego Henrique da Tos-

sum. Foram depois apresentados ao senhor bispo Conrado92

, grande

pregador e teólogo, que os recebeu com grande solenidade. O bispo con-

vocou o clero da cidade e mandou que Fr. João de Pian del Carpine, pri-

meiro vigário da Saxónia, pregasse à multidão do clero. Terminado o

sermão, o senhor bispo, recomendando Fr. João e os outros irmãos de sua

Ordem ao clero e ao povo, concedeu-lhes faculdade de pregar e de ouvir a

confissão em toda a diocese. Muitos, estimulados pela penitência, pela

pregação e pelo exemplo dos irmãos, entraram na Ordem. Um deles foi

Bernardo, filho do conde de Poppenburg e cónego da catedral; outro foi

Alberto, mestre de crianças e homem de letras; e um tal Ladulfo e um

soldado.

–––––––– 90

Cf. nº 33. 91

Cf, nº 33, 37 e 48. 92

Conrado II (1221-1246). Tinha sido mestre de Cesário de Espira, cf. nº. 9.

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Aconteceu que a saída da Ordem de alguns irmãos causou na cidade

uma certa perturbação, e esfriando muito o fervor em relação aos irmãos,

a tal ponto que a esmola lhes era dada com certo desprezo, e quando

mendigavam davam-lhes esmola sem os olhar. Mas passado pouco tempo,

com a ajuda da providência, renascia o fervor perdido, e o povo voltou a

amar os irmãos como dantes.

36. No ano do Senhor de 1224, Fr. João de Pian del Carpine, que-

rendo difundir a sua Ordem, enviou muitos irmãos escolhidos a Hilde-

sheim, Brunswich, Goslar, Magdeburg e Halberstadt.

37. No ano do Senhor de 1224, convocados os custódios, os guar-

diães e os pregadores, celebrou-se o Capítulo provincial em Würzburg, no

dia da Assunção da Virgem. Fr. João de Pian del Carpine foi dispensado

do cargo e transferido para Colónia, e Fr. Santiago, homem amável, bon-

doso, modesto e piedoso, até então custódio da Alsácia, foi eleito como

segundo custódio da Saxónia. Com ele foram enviados alguns dos irmãos

mais antigos na Ordem, clérigos e leigos, os quais, com a humildade e

exemplo de vida, conseguiram em pouco tempo ganhar a simpatia do

clero e do povo.

38. Nesse mesmo ano, Fr. Alberto de Pisa, ministro da Alemanha,

atendendo ao crescimento na Saxónia, dado que tinha de passar a Reihn

pela Turíngia, enviou a Fr. Jordão, guardião de Turíngia, com mais sete

irmãos, para que cuidassem de encontrar ali casas, onde se pudessem

alojar convenientemente os irmãos.

39. Fr. João pôs-se a caminho com seus irmãos, para ir de Mogún-

cia à Turíngia, a 27 de Outubro. Chegou a Erfurt no dia de S. Martinho93

.

Mas, como era Inverno e não era época oportuna para construir casas, os

irmãos ficaram alojados em casa do capelão dos leprosos, que fica fora

das muralhas, esperando que os habitantes da cidade providenciassem

melhor alojamento para os irmãos.

40. Foram estes os irmãos enviados com Fr. Jordão: Fr. Hermano de

Weissensee, sacerdote e noviço, pregador; Fr. Conrado de Würzburg,

subdiácono e noviço; Fr. Henrique de Würzburg; Fr. Arnoldo, clérigo e

–––––––– 93

A viagem durou 15 dias.

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noviço; e os leigos Fr. Henrique de Colónia, Fr. Gernoto de Worms e o

suábio Fr. Conrado. Mais tarde juntaram-se Fr. João de Colónia e Fr.

Henrique de Hildesheim.

41. No ano do Senhor de 1225, Fr. Jordão enviou irmãos leigos pela

Turíngia para observarem as condições das várias cidades. Seguia-os, e às

vezes precedia-os, Fr. Hermano, sacerdote e noviço, pregador. Quando

este chegou a Eisenach, onde tinha sido capelão e onde tinha entrado na

Ordem Teutónica, pregou várias vezes ao povo. A pregação e sua vida

exemplar − tinha abandonado a vida cómoda da Ordem Teutónica e

optado pela vida humilde de uma Ordem tão humilde e austera − foram de

grande edificação para o povo. Quando se anunciava a sua pregação para

algum lugar, todo o povo ali se concentrava.

Por essa razão, os dois párocos da cidade, temendo que os irmãos se

inclinassem por um deles, deixando o outro sem fregueses, um ofereceu-

-lhes duas igrejas e outro ofereceu-lhes uma, para que escolhessem uma

delas para sede própria. Como Fr. Hermano não quis tomar a decisão, sem

antes consultar os irmãos, pediu a Fr. Jordão que escolhesse um compa-

nheiro sensato e viesse a Eisenach, para escolher como lhe parecesse

melhor. Depois de chegar, examinou atentamente o assunto e escolheu o

local, onde ainda hoje vivem os irmãos.

42. No mesmo ano, no começo da Quaresma – no 2º Domingo da

Septuagésima – receberam os irmãos uma residência em Gotha, onde

permaneceram durante 25 anos. Ali praticaram com toda a generosidade,

e muitas vezes muito para além das suas possibilidades, todas as obras de

caridade e de hospitalidade em favor, tanto dos irmãos da nossa Ordem,

como dos irmãos Pregadores e de outros religiosos.

43. Nesse mesmo ano, aconselhados pelo senhor Henrique, pároco

de S. Bartolomeu, e pelo senhor Günther, seu vigário, e por outros cida-

dãos de Erfurt, os irmãos transferiram-se para a igreja do Espírito Santo,

então abandonada, que tinha sido ocupada em tempos por religiosos da

Ordem de Santo Agostinho. Permaneceram ali durante seis anos comple-

tos. Depois, o procurador dos irmãos, escolhido pelos habitantes, per-

guntou a Fr. Jordão se queria que lhes construísse um edifício em forma

de claustro. Como nunca tinha visto um claustro na Ordem, este respon-

deu: ―Não sei o que é um claustro. Edifiquem-nos simplesmente uma casa

perto do rio, para que possamos lá ir e lavar os pés‖. E assim se fez.

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44. Na festa dos Apóstolos Pedro e Paulo desse mesmo ano (1225),

foram enviados irmãos a Nordhausen. Também aqui foram acolhidos com

toda a afabilidade e alojados de maneira conveniente em uma horta.

Pagavam quatro soldos de aluguer por ano, e havia uma casa cómoda para

frequentar a igreja. Mas, como os irmãos eram todos leigos, e o custódio

se cansou das viagens que fazia para os confessar, depois de uma perma-

nência de três anos, chamou-os e transferiu-os para outras casas, o que

lhes causou grande contentamento. Regressaram a Nordhausen no ano do

Senhor de 1230, quando uma virgem fez doação de um solar aos irmãos.

45. Nesse mesmo ano, por solicitação do conde Ernesto94

, foram

enviados a Mühlhausen quatro irmãos leigos. Disponibilizou-lhes uma

casa nova, ainda que sem teto, e uma pequena horta adjacente. Enquanto

aguardava que terminassem a casa e cercassem a horta, alojou-os num

celeiro do castelo. Ali, os ditos irmãos rezavam, comiam, recebiam as

visitas e dormiam. Satisfeitos com o dito celeiro, os irmãos leigos não

cuidaram de terminar a casa, nem de cercar a horta. Vendo o conde que as

obras não avançavam, retirou-lhes o apoio. E os irmãos, sem meios para

colocar um teto na casa e fazer o muro, levados pela necessidade, foram

transferidos e destinados a outras casas.

Mas, no ano do Senhor de 1231, regressaram os irmãos ao mesmo

lugar e, com autorização do rei Henrique95

, foram acolhidos no hospital.

No entanto, o reitor do hospital, com medo que lhe fizesse falta o que

davam os irmãos, começou a comportar-se de forma molesta e capciosa

para com eles. Estes, não aguentando tal situação, logo que um cavaleiro

lhes ofereceu um terreno, começaram a construir, e ali vivem até aos dias

de hoje.

46. Nesse mesmo ano (1225), os irmãos que se tinham instalado

fora das muralhas de Erfurt entraram na cidade96

.

47. No mesmo ano (1225), Fr. Alberto de Pisa, ministro da Alema-

nha, enviou a Fr. Jordão, então custódio da Turíngia, como consolo e

ajuda, Fr. Nicolau de Reihn, sacerdote e jurista, a quem chamavam

–––––––– 94

Ernesto II de Velsekke-Gleichen. 95

Henrique Raspe, conde de Turíngia, eleito rei da Alemanha em 1246, contra

Frederico II. 96

Cf. nº 43.

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―humilde‖. Esta virtude destacava-se nele de maneira exemplar. Faleceu

em Bolonha, deixando inúmeros testemunhos de santidade. Foi entre

Gotha e Eisenach que Fr. Jordão saiu ao seu encontro, onde se beijaram

com reverência e amor fraterno e se sentaram. Mas, Fr. Nicolau, homem

humilde e simples como uma pomba, permanecia em silêncio, sentado

frente a Fr. Jordão. Então, Fr. Pedro de Eisenach, companheiro de Fr.

Nicolau, disse-lhe: ―Fr. Nicolau, não reconheces a nosso rei e senhor?‖

Ele, juntando as mãos, respondeu humildemente: ―De boa vontade reco-

nheço e sirvo o meu senhor‖. Fr. Pedro acrescentou: ―Mas este é o nosso

custódio‖. Ao ouvir isto, levantou-se e pediu desculpa com profundo

arrependimento, por o ter recebido com tanta irreverência. Depois, de

joelhos, com toda a humildade apresentou a Fr. Jordão as obediências.

Fr. Jordão destinou-o à casa de Erfurt, para ali aguardar o seu des-

tino. Três semanas depois, Fr. Jordão enviou-lhe uma carta nomeando-o

guardião do lugar. Recebendo-a reverentemente, exclamou: ―Mas o que

me fez o nosso padre?‖. Fr. Jordão sentiu-se tão confuso com a humildade

de Fr. Nicolau, que com dificuldade o suportava, de forma que só passa-

das seis semanas se decidiu a ir a Erfurt. No entanto, Fr. Nicolau unica-

mente com a sua presença, fazia observar a disciplina aos irmãos, melhor

do que outros com reprimendas e castigos.

48. Sendo ainda custódio da Saxónia, Fr. Santiago fundou a igreja

dos Frades Menores na cidade velha de Magdeburgo, que foi consagrada

pelo senhor Alberto97

, bispo local, no dia da Exaltação da Santa Cruz.

Depois da consagração, o senhor bispo ofereceu generosamente aos

irmãos todos os ornamentos do altar. Aconteceu, que o dito Fr. Santiago

ao terminar de celebrar a missa em um dia da oitava da dedicação, come-

çou a perder forças, até ao ponto de ter de ser conduzido ao hospício, que

os irmãos mantinham na cidade velha, junto à igreja de S. Pedro. Os

irmãos, além da igreja, ainda não tinham casa na cidade nova. E ali, a 20

de Setembro, vigília de S. Mateus, expirou no Senhor,

Nessa altura, os irmãos possuíam um lugar para a sepultura, mas

não tinham direito de enterramento. Depois de deliberarem sobre o que

fazer, tendo sobretudo em consideração a abertura iminente do concílio,

que se devia celebrar no dia de S. Maurício, para o qual já tinham acudido

muitos bispos. Dirigiram-se, por fim, ao senhor bispo de Hildesheim98

,

–––––––– 97

Foi arcebispo de 1205 a 1232. 98

Conrado de Espira, de quem se falou no nº 9.

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que venerava a Fr. Santiago como um pai. Efectivamente, tinha dito aos

seus que se algum dos irmãos o chamasse que o avisassem, mesmo que

estivesse a dormir ou ocupado com outra coisa. Quando já dormia, foi

acordado para receber a notícia da morte de Fr. Santiago. Perturbado com

tal notícia, chorou e disse: ―Efectivamente foi este o sonho que tive‖. E

acrescentou: ―Irei a enterrá-lo‖. Na realidade, tinha-lhe aparecido em

sonhos um morto vestido de branco, e uma voz que lhe dizia: ―Vai libertá-

-lo‖. Os seus restos mortais foram levados para a igreja, que o mesmo Fr.

Santiago tinha construído e mandado consagrar na cidade nova. Ali se

enterrou com toda a honra. Mas, no ano do Senhor de 1238, os seus restos

mortais e os de Fr. Simão Inglês99

, primeiro leitor de Magdeburgo e ter-

ceiro ministro, foram transladados e enterrados na cidade velha, para onde

os irmãos se tinham transferido e onde ainda hoje vivem.

49. Depois da morte de Fr. Santiago, de boa memória, os irmãos da

Saxónia, ficando um pouco perturbados, suplicaram a Fr. Alberto de Pisa,

ministro da Alemanha, que se dignasse por misericórdia, prover às suas

necessidades, designando um novo custódio. O ministro decidiu, então,

mandar-lhes como custódio a Fr. Nicolau, guardião de Erfurt. Mas,

conhecendo a sua humildade, não quis enviar-lhe a carta, temendo que,

devido à sua humildade, recusasse o cargo ou recorresse a ele. Decidiu,

por isso, visitá-lo pessoalmente, para ver se conseguia convencê-lo a

aceitar o cargo com uma conversa amigável. Uma vez chegado a Erfurt, e

convocando também a Fr. Jordão para tal efeito, começou a falar com Fr.

Nicolau da necessidade de aceitar o cargo da custódia da Saxónia. Mas

ele recusava humildemente, declarando de todas as maneiras que era

inapto e que nem sabia contar ou calcular e, muito menos era capaz de ser

senhor ou prelado. Então o ministro, pegando-lhe a palavra, já algo indig-

nado, disse-lhe: ―Então não sabes fazer de senhor! Por acaso os que têm

cargos na Ordem são senhores? Reconhece já a tua culpa, irmão, porque

consideraste senhorios e prelaturas os cargos da Ordem que, antes, devem

ser considerados cargos e serviços‖. Dita a culpa com humildade, o

ministro deu-lhe como penitência a custódia da Saxónia, e ele, como de

costume, pondo-se de joelhos, obedeceu. E os irmãos, contentíssimos por

ter aceitado o cargo, celebraram o acontecimento com solenidade na

igreja do Espírito Santo, onde se encontravam então, enquanto Fr. Nico-

lau cantava a missa em tom ferial e com ânimo triste.

–––––––– 99

Cf. nº 52-54. Também se chamava Simão de Sandwich.

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Nomeado, pois, terceiro custódio da Saxónia, não abandonou a

humildade que o caracterizava antes da nomeação, continuando o pri-

meiro a lavar as escudelas e os pés aos irmãos. Se alguma vez aconte-

cesse, por qualquer culpa, ter de impor a um irmão a penitência de o man-

dar sentar por terra, ou outro tipo de castigo, cumpria com ele humilde-

mente a mesma penitência. Mesmo que observasse em qualquer circuns-

tância a humildade e a obediência, perseguiu, contudo, e censurou de tal

forma a desobediência obstinada, que dificilmente dava confiança ao

irmão obstinadamente desobediente, mesmo depois do castigo. Conside-

rava a desobediência dos irmãos um tão grande mal, e um tão grande bem

a obediência, que não duvidou mostrar na prática e com o exemplo que os

irmãos deviam obedecer em qualquer situação com simplicidade.

50. No ano do Senhor de 1226, no dia 4 de Outubro100

, o primeiro

fundador da Ordem dos Frades Menores, o ditoso pai Francisco, voou

para o Senhor em Santa Maria da Porciúncula. Era vontade do ditoso e

bem-aventurado pai Francisco ser sepultado nesta igreja. No entanto, a

gente do lugar e os habitantes de Assis, com medo que os de Perúsia o

levassem à força, por causa dos milagres que Deus realizou por meio dele,

tanto em vida como depois da morte101

, transladaram-no e sepultaram-no

com honra junto às muralhas de Assis, na igreja de S. Jorge, onde apren-

deu as primeiras letras e mais tarde começou a pregar102

.

Depois da morte do bem-aventurado Francisco, Fr. Elias, vigário do

Santo, enviou por toda a Ordem uma carta de conforto a todos os irmãos,

perturbados pelo desaparecimento de um tão grande Pai, anunciando a

todos e a cada um que, tal como o bem-aventurado Francisco havia man-

dado, os abençoava da sua parte, absolvendo-os de toda a culpa. Além

disso, dava a notícia das chagas e de outros milagres que o Altíssimo se

dignou realizar pelo bem-aventurado Francisco depois de sua morte,

recomendando também aos ministros e custódios da Ordem, que se reu-

nissem para eleger um novo Geral103

.

–––––––– 100

Francisco faleceu na tarde de 3 de Outubro. Mas como então os dias se conta-

vam a partir das vésperas, o dia 4 passou a ser o dia da sua morte. Cf. 1C 109-118; 2C

217-220. 101

Na Idade Média havia muito exagero no culto das relíquias dos santos. Assim

se entendem os receios indicados no texto. 102

Cf. 1C 23. 103

Pelo que escreve Jordão, deduz-se que a carta encíclica de Fr. Elias refere os

milagres e a convocação do Capítulo para a eleição do novo Geral, sendo nisto diferente

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51. No ano do Senhor de 1227, a 2 de Fevereiro, depois da morte de

S. Francisco, Fr. Alberto de Pisa, ministro da Alemanha, antes de partir

para o Capítulo geral, que havia de eleger o primeiro geral da Ordem,

convocou todos os custódios, pregadores e guardiães da Alemanha para

um Capítulo em Mogúncia. (Neste Capítulo, Fr. Nicolau, dispensado da

custódia da Saxónia, foi nomeado vigário provincial, e em seu lugar ficou

Fr. Leonardo104

. Assim, deixando tudo organizado, partiu Fr. Alberto para

o Capítulo geral, juntamente com os irmãos que escolheu.

Neste Capítulo)105

Fr. João Parente, cidadão romano e juiz, nascido

em Civitá Castellana, foi eleito primeiro geral da Ordem.

52. Este, aconselhado pelo ministro da França106

, retirou Fr. Alberto

de Pisa da administração da Alemanha, nomeando para o seu lugar o

inglês Fr. Simão107

, custódio da Normandia, varão de muita cultura e

grande teólogo.

53. Fr. Simão, que chegou à Alemanha ao mesmo tempo que Fr.

Julião108

, o que mais tarde compôs em bom estilo e melodia formosa a

história de S. Francisco e Santo António, anunciou de seguida a celebra-

ção em Colónia do Capítulo provincial para o dia dos Apóstolos Simão e

Judas. (Mas, por uma razão urgente, só se celebrou no ano seguinte).

54. No ano do Senhor de 1228, foi canonizado o bem-aventurado

Francisco109

. Nesse mesmo ano, Fr. Simão, ministro da Alemanha, cele-

brou em Colónia o Capítulo provincial, entre a Páscoa e o Pentecostes.

–––––––– de uma outra carta conhecida de Fr. Elias, redigida pela mesma ocasião e dirigida a Fr.

Gregório de Nápoles (Anal. Franc. X, 525-528), onde não há referência nem aos mila-

gres, nem à convocação do Capítulo, Cf. CE, FF1, p. 218-222. 104

Cf. nº 58 e 61. 105

O texto entre parêntesis foi tirado de Boehmer, da crónica de Nicolás

Glassberger. Na realidade, João Parente nasceu em Carmignano, perto de Pystoia. Na

Civitá Castellana exerceu o ofício de juiz, entrando na Ordem, juntamente com seu filho. 106

Fr. Gregório de Nápoles. Cf. nº. 11. 107

Cf. nº 40, 54, 57. 108

Trata-se de Fr. Julião de Espira. Faz-se aqui referência ao Officium rhythmi-

cum S. Francisci (Anal. Franc. X, 375-388), composto por Julião de Espira, provavel-

mente entre 1231-1232, antes da sua Vita S. Francisci, de 1232-1233 (ibid. 335-371). 109

Cf. 1C 119-126. Francisco foi canonizado em 16 de Julho de 1228, ainda que a

bula da canonização de Gregório IX, Mira circa nos (BF I, 42-43), tenha a data de 19 de

Julho.

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Foi também nesse ano que Fr. João Parente, ministro geral, ao saber que

na Alemanha faltava um leitor em teologia, retirou Fr. Simão do cargo de

ministro da Alemanha e nomeou-o leitor, nomeando Fr. João de Pian

Carpine para o substituir. Este convocou um Capítulo para Worms, assi-

nou aí a carta de exoneração de Fr. Simão e a sua própria designação.

Nesse mesmo Capítulo foi anunciada aos irmãos a canonização do bem-

-aventurado Francisco. Fr. João de Pian Carpine, querendo honrar e exal-

tar a Saxónia, mandou Fr. Simão como primeiro leitor de Magdeburgo, e

com ele a outros homens íntegros, honestos e instruídos: Fr. Macardo o

Grande de Aschgenburgo, Fr. Macardo o Pequeno de Mogúncia, Fr. Con-

rado de Worms e vários outros.

55. Como Fr. João de Pian Carpine era de grande estatura e pesado,

costumava deslocar-se em cima de um burro. As pessoas daquele tempo,

pela novidade da Ordem, e pela humildade da cavalgadura, acolhiam com

mais devoção ao asno – até pelo exemplo de Jesus, que usou mais o asno

que o cavalo – do que acolhem agora as pessoas dos ministros, uma vez

que os irmãos costumam usar mais o cavalo. Ele fez muito pela propaga-

ção da Ordem. Quando o fizeram ministro (pela segunda vez), enviou

irmãos à Boémia, Polónia, Dácia e Noruega110

. Recebeu uma casa em

Metz e implantou a Ordem na Lotríngia. Soube defender a sua Ordem

perante bispos e príncipes. Tal como uma mãe de filhos e como galinha

aos pintos, protegia e governava a todos os irmãos com paz, caridade e

com toda a espécie de consolações.

56. No ano do Senhor de 1229, Fr. João Inglês foi enviado à Ale-

manha como primeiro visitador.

57. No ano do Senhor de 1230, Fr. João, ministro da Alemanha,

celebrou em Colónia o último Capítulo provincial da Alemanha. Dei-

xando Fr. Simão como vigário, partiu para o Capítulo geral. Neste Capí-

tulo, Fr. João de Pian Carpine foi removido do cargo que tinha na Ale-

manh e nomeado ministro em Espanha, sendo substituído por Fr. Simão,

primeiro leitor da Alemanha. Mas, antes que chegassem as cartas de

nomeação, faleceu na vigília de S. Vito, sendo sepultado em Magdeburgo.

Nesse mesmo Capítulo decidiu-se dividir a administração da Alemanha

–––––––– 110

Os Frades Menores chegaram à Dinamarca em 1232, à Suécia em 1233 e à

*Polónia em 1237 Em 1237, foi constituída a província da Boémia.

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em duas províncias: a de Reihn e a da Saxónia. Fr. Otão, perito em

direito, lombardo, foi nomeado ministro de Reihn; para a Saxónia foi

nomeado Fr. Simão, como já se disse.

Nesse mesmo Capítulo foram distribuídos os breviários e antifoná-

rios pelas diversas províncias111

.

58. Depois da morte de Fr. Simão, primeiro leitor e primeiro minis-

tro da Saxónia, Fr. Leonardo, custódio da Saxónia, e Fr. Jordão, custódio

da Turíngia, os dois únicos custódios da província da Saxónia, dirigiram-

-se ao Capítulo de Reihn, em Worms. Ambos foram admitidos como

irmãos no corpo capitular, uma vez que a administração da Alemanha

tinha sido única e só recentemente dividida. Aliás, uma vez que Fr. Simão

tinha falecido inesperadamente, não tendo ocasião de exercer o cargo,

consideraram que a divisão ainda não se tinha realizado.

Fr. Jordão, aconselhado pelo ministro, pelo vigário e por outros

irmãos, e confiando a sua custódia da Turíngia ao custódio da Saxónia,

partiu com um companheiro e a obediência do ministro de Reihn, e foi

pedir ao ministro geral um ministro e um leitor.

Reflectindo sobre quem havia de mandar, sob proposta de Fr. Jor-

dão, o ministro geral nomeou Fr. João Inglês, que tinha sido visitador da

Alemanha. Escreveu, pois, ao ministro da França, para que enviasse Fr.

João Inglês à Saxónia como ministro e Fr. Bartolomeu, também inglês,

como leitor.

59. Antes de regressar à Alemanha, Fr. Jordão foi visitar Fr. Tomás

de Celano112

, que, alegre pela visita, lhe deu algumas relíquias do bem-

-aventurado Francisco.

Quando chegou a Würzburgo, Fr. Jordão avisou os irmãos da custó-

dia que, caso tivessem necessidade de falar-lhe, o visitassem em Eise-

nach, onde havia de passar. Alegres, os irmãos deslocaram-se ao lugar

combinado e deram ordem ao porteiro para não deixar entrar Fr. Jordão,

antes de os avisar. Quando Fr. Jordão chegou e bateu à porta, o porteiro

não o deixou passar, antes correu a avisar os irmãos da sua chegada. Estes

–––––––– 111

Sobre a questão dos livros litúrgicos da Ordem, cf. S.J.P. VAN DIJK: Some

manuscripts of the earliest franciscan liturgy, em Franciscan Studies 14 (1954), 225-

-264. 112

Tomás de Celano encontrava-se em Assis e dedicava-se a escrever a Primeira

Legenda de S. Francisco (1C).

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não permitiram que entrasse pela portaria, mas pela igreja. Entretanto, os

irmãos entraram no coro e, tomando turíbulos, ramos de palma e círios

acesos, entraram em procissão dois a dois na igreja. Colocados frente a

frente, abriram as portas da igreja e, deixando passar Fr. Jordão, recebe-

ram-no com alvoroço e alegria cantando o responsório: ―Hic est fratrum

amator‖. Atónito com esta forma de acolhimento, o irmão Jordão man-

dava que se calassem, mas eles continuaram, até terminar o que tinham

começado. Maravilhado, Fr. Jordão só então se recordou que levava con-

sigo as relíquias do bem-aventurado Francisco, coisa que tinha esquecido,

de tão estupefacto que ficou. Com muita alegria espiritual, falou-lhes

depois de terminar o canto: ―Alegrai-vos, irmãos. Compreendo que os

louvores não são dirigidos a mim, mas em mim a nosso bem-aventurado

pai Francisco que, enquanto eu fazia silêncio, arrebatou o vosso espírito

com sua presença, porque tenho comigo as suas relíquias‖. E tirando-as

do seio, colocou-as sobre o altar. Desde aquele momento Fr. Jordão, que

conheceu o bem-aventurado Francisco em vida, e que o via numa pers-

pectiva humana, começou a ter por ele maior veneração e honra, pois viu

que Deus, inflamando os corações dos irmãos com o Espírito Santo, não

consentiu que se mantivessem ocultas as relíquias do Santo.

60. No ano do Senhor de 1231, Fr. Jordão, custódio da Turíngia,

regressado à Saxónia mandou Fr. João da Pena e Fr. Adeodato a Paris,

para que conduzissem e acompanhassem com todas as honras à Saxónia

a Fr. João Inglês e Fr. Bartolomeu.

61. No ano do Senhor de 1232, no Capítulo geral celebrado em

Roma113

, Fr. João Parente foi substituído por Fr. Elias, como ministro

geral. O mesmo aconteceu com o inglês Fr. João Reading, que foi substi-

tuído por Fr. João de Pian del Cármine, como ministro da Saxónia. Fr.

Leonardo, custódio da Saxónia, faleceu em Cremona, sua cidade natal,

quando regressava do Capítulo. Foi substituído por Fr. Berthold de

Höster.

Fr. Elias, ministro geral, desejando terminar a igreja começada em

Assis em honra de S. Francisco, fez colectas em toda a Ordem, para poder

completar as obras. Tinha a Ordem toda sob o seu poder, tal como a teve

o bem-aventurado Francisco e Fr. João Parente, seu sucessor. Por isso,

–––––––– 113

Uma vez que Gregório IX à data residia em Rieti, o Capítulo deve-se ter reali-

zado ali. A informação que se dá deve ser um erro de transcrição.

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tomou muitas iniciativas, nem sempre convenientes à Ordem. Contra-

riando a Regra, não convocou nenhum Capítulo durante sete anos, e dis-

persava os irmãos que a ele se opunham114

. Por isso, os irmãos reuniram-

-se e decidiram comunitariamente levar a cabo o que fosse necessário,

para o bem da Ordem. Nesta decisão tomaram parte activa Fr. Alexandre

de Hales115

e Fr. João de Rochelle116

, mestres de Paris.

62. No ano do Senhor de 1238, Fr. Elias enviou às províncias visi-

tadores, que concordavam com os seus propósitos. Mas, devido às irregu-

laridades que cometiam durante as visitas, os irmãos ainda ficaram mais

desesperados com Fr. Elias.

63. No ano do Senhor de 1238, os irmãos da Saxónia apelaram ao

ministro geral contra o visitador. Mandaram-lhe mensageiros, mas nada

conseguiram. Por isso, viram-se na obrigação de apelar ao Papa117

.

Quando Fr. Jordão o visitou na sua residência, recebeu ordem de

marcha. Mas Fr. Jordão não quis sair. Correu alegremente à cama do

senhor Papa, pegou-lhe num pé, beijou-o e gritou para o companheiro:

―Na realidade não temos estas relíquias na Saxónia‖. Insistindo o Papa em

fazê-lo sair, disse-lhe Fr. Jordão: ―Não, Senhor, não queremos pedir-te

nada. Estamos contentes com o que temos. Vós sois o padre da nossa

Ordem, seu protector e reformador. Nós viemos unicamente para vos

ver‖. Finalmente, o senhor Papa, divertido, sentou-se na cama e pergun-

tou-lhes pelo motivo da visita, acrescentando: ―Sei que apelastes. No

entanto, Fr. Elias queixou-se que apelastes para mim, passando por cima

dele. Nós dissemos-lhe que a apelação dirigida a mim anula qualquer

outra apelação‖. Quando Fr. Jordão expôs as razões da apelação, ele res-

pondeu que os irmãos tinham feito bem.

–––––––– 114

Cf. ÂNGELO CLARENO, Chronicon seu historia septem tribulationum Ordinis

Minorum, ed. A. Ghinato, Roma, 1959, II Trib, 75. 115

Nasceu em Inglaterra, antes de 1170. Morreu em Paris no dia 21 de Agosto de

1245. Provavelmente em 1222 era já mestre em Paris. Entrou na Ordem em 1231. Foi

mestre de S. Boaventura e de João de la Rochelle. Com este e mais dois irmãos escreveu

a Expositio Quattuor Magistrorum super Regulam Fratrum Minorum (ed. L. Oliger,

Roma 1950). 116

Foi aluno e sucessor de Alexandre de Hales na cátedra de teologia dos Frades

Menores em Paris. Morreu em 1245. 117

Gregório IX (1227-1241), que continuava a ser o protector da Ordem, tal como

quando era cardeal.

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Reunindo, pois, com diversos irmãos na cúria, para levar adiante a

apelação interposta, e depois de longa discussão, a maioria chegou à con-

clusão de que nada resultaria, se não se atacasse o mal pela raiz, isto é, se

não se actuasse directamente contra Elias.

64. Tendo-se reunido, fizeram um escrutínio entre os irmãos pre-

sentes, e puseram por escrito tudo o que sabiam e podiam provar por

experiência própria ou por notícias públicas, contra Elias. Apresentadas as

acusações perante o Papa, logo ali se iniciou o debate. Mas o Papa inter-

rompeu, dizendo: ―Ide discutir entre vós, apresentai-me depois por escrito

as objecções e as respostas, e eu decidirei‖. Assim se fez.

Então, o senhor Papa, ouvidas e examinadas as objecções e as res-

postas, decidiu que os irmãos ali reunidos regressassem às províncias, e

que das províncias, sobretudo daquelas que tinha levantado a questão da

reforma da Ordem, fossem enviados 20 irmãos idóneos e inteligentes, que

se reunissem em Roma durante quatro semanas antes do Capítulo, e deci-

dissem tudo o que concernia ao estado e reforma da Ordem.

65. No ano do Senhor de 1239, tal como se havia dito, chegaram a

Roma os irmãos eleitos pelas diversas províncias e estabeleceram,

segundo o conselho e a vontade do senhor Papa e com a aprovação do

Capítulo geral, que se fizessem eleições dos ministros, custódios e guar-

diães, e outras disposições que ainda hoje vigoram. Decidiram, além

disso, que os ministros tivessem um só Capítulo nas suas províncias e os

súbditos dois.

66. Nesse mesmo Capítulo, Fr. Elias, que governou a Ordem

durante sete anos, foi destituído e substituído por Fr. Alberto de Pisa, que

foi confirmado pelo senhor Papa.

67. No mesmo Capítulo foram reorganizadas as províncias118

.

68. No mesmo Capítulo, Fr. João de Pian Carpine foi substituído no

cargo de ministro da Saxónia por Fr. Conrado de Worms. Mas este, como

não recebeu a nomeação, não aceitou o cargo. Ao tomar conhecimento

–––––––– 118

Fr. Elias aumentou o número de províncias para 72, como símbolo dos

discípulos do Senhor. As províncias foram reduzidas a 32, 16 em cada lado dos Alpes.

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disto, a irmã Inês de Praga119

informou o senhor Papa, e a nomeação foi

revogada.

69. Nesse mesmo ano, depois do Capítulo de Roma, realizou-se o

Capítulo provincial dos irmãos da Saxónia em Magdeburgo, no dia da

Natividade da bem-aventurada Virgem Maria, onde foi eleito como

ministro Fr. Marcardo Pequeno. Uma vez eleito ministro, mostrou muita

preocupação pela Ordem, e era um homem de vida austera. Foi bom para

com os bons, duro para com os maus, e severo para com os incorrigíveis.

Trabalhando nos assuntos da Ordem contra Fr. Elias, contraiu uma enfer-

midade crónica, o que não impediu a sua eleição para ministro. Por causa

desta doença não podia dar aquele exemplo de austeridade que exigia dos

outros, pelo que pareceu mais conveniente dispensá-lo do cargo. (Mas

antes de ser exonerado, ainda realizou três Capítulos: em Erfurt, Hilde-

sheim e Altenburgo, onde foi exonerado)120

.

70. No ano do Senhor de 1240, 23 de Janeiro, Fr. Alberto, terceiro

ministro geral, faleceu, depois de ter governado a Ordem durante oito

meses e alguns dias. Sucedeu-lhe FR. Haymon, inglês121

.

71. No ano do Senhor de 1242, Fr. Haymon celebrou um capítulo

em Altenburgo, no dia de S. Miguel, onde exonerou do cargo a Fr. Mar-

cardo. O capítulo confiou ao ministro geral a nomeação do ministro pro-

vincial. Pouco antes de sair, nomeou vigário a Fr. Jordão, e designou

como ministro a Fr. Goffredo.

72. No ano do Senhor de 1243, Goffredo fez a sua entrada na Pro-

víncia. Foi uma homem muito sóbrio no comer e no beber, amante da

comunidade, adverso de toda a espécie de singularidades. Foi bom para

com os bons e severo para com os maus. Continuou o caminho iniciado

–––––––– 119

Trata-se de santa Inês de Praga (1205-1280), clarissa, filha do rei Ottokar I da

Boémia e de Constança da Hungria. Entrou no mosteiro de S. Salvador em Praga que ela

mesmo tinha fundado, e onde já viviam cinco irmãs enviadas por santa Clara. Manteve

uma relação epistolar com santa Clara e com Gregório IX. 120

O texto entre aspas foi tomado de H. Boehmer da Crónica de Nicolás

Glassberger.

121 Haymon de Faversham foi o primeiro ministro geral não italiano. Estudou na

Universidade de Paris. Foi custódio em Inglaterra, Tours, Boémia, Pádua e Paris. Con-

tribui de forma decisiva para o afastamento de Fr. Elias. Encaminhou a Ordem para os

estudos e assinou umas constituições inspiradas nas dos frades dominocanos.

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por Fr. Marcardo, e governou a Província durante três anos e poucos

meses.

73. No ano do Senhor de 1243, faleceu Fr. Haymon, sucedendo-lhe

nesse mesmo ano Fr. Crescêncio122

. Chamou ao convento de Roma dois

irmãos de cada província, para que os irmãos das várias nações que pas-

savam pela cúria tivessem quem os aconselhasse. Mas como a cúria se

deteve em Lião durante muito tempo123

, os irmãos a quem foi confiada tal

missão voltaram às respectivas províncias.

Naquele tempo, os irmãos sofreram muitos vexames da parte do

imperador Frederico, deposto por um decreto do Concílio de Lião124

. Em

várias províncias muitos foram expulsos, causando por isso grande confu-

são. Alguns foram encarcerados, e alguns assassinados, por serem obe-

dientes e terem defendido virilmente a sua mãe a santa Igreja, coisa que,

exceptuando os frades menores, mais ninguém fez.

74. Por essa altura, Sigfredo, arcebispo de Mogúncia, mostrou-se

hostil para com os irmãos125

.

75. No ano do Senhor de 1247, Fr. Goffredo, ministro da Saxónia,

após ter governado durante três anos e vários meses, foi exonerado do

cargo no Capítulo de Lião. Fr. Conrado de Brunswich, leitor em Hilde-

sheim, foi nomeado vigário. No mesmo ano foi eleito ministro da Saxónia,

no Capítulo de Halle, celebrado na Natividade da bem-aventurada Virgem

Maria. No dia de S. Martinho confirmou a eleição.

Governou a província na paz, tal como a haviam deixado os seus

antecessores, com sabedoria e austeridade, com grande maturidade e

observância da Regra da Ordem. Tendo governado durante quase dezas-

seis anos, cansado do trabalho e esgotado, depois de grande insistência da

–––––––– 122

Trata-de de Crescêncio Grizzi de Jesi. Foi médico e jurista, ministro provincial

da Marca de Ancona. Continuou na linha de Haymon, abrindo a Ordem aos estudos. Foi

ele que convidou todos os antigos companheiros de Francisco a escreverem as suas

memórias sobre o Santo, para que, a partir delas se compusesse uma nova vida de Fran-

cisco. Cf. TC prol. 2C 1. 123

Inocêncio IV permaneceu em Lião entre 29 de Novembro de 1244 e 19 de

Abril de 1251. 124

A deposição do imperador Frederico II deu-se a 17 de Julho de 1245. 125

Sigfredo II de Eppenstein (1230-1249). Jordão não dá mais explicações sobre

esta notícia. Talvez se refira ao interdito lançado pelo arcebispo em 1244 sobre a cidade

de Erfurt, obrigando a que todo o clero, incluindo os religiosos, abandonasse a cidade.

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sua parte e com grande pena de muitos irmãos, foi dispensado do seu

ofício.

76. No ano do Senhor de 1248, no Capítulo de Lião, Fr. Crescêncio

foi exonerado do cargo, depois de ter governado, junto com Fr. Haymon,

durante sete anos. Nesse mesmo ano foi substituído por Fr. João de

Parma.

77. No ano do Senhor de 1258, no Capítulo de Roma, celebrado no

dia da Purificação126

, foi exonerado Fr. João de Parma, ministro geral, que

governou durante dez anos, sendo substituído por Fr. Boaventura, minis-

tro de Paris127

.

78. No ano do Senhor de 1262, Fr. Conrado de Brunswich, ministro

da Saxónia, foi exonerado do seu ofício no Capítulo de Halberstadt128

.

Nesse mesmo Capítulo, a 29 de Abril, foi eleito ministro da Saxónia por

unanimidade e no primeiro escrutínio Fr. Bartolomeu, então ministro da

Áustria. A sua eleição foi logo ratificada por Fr. Conrado, com a autori-

dade do ministro geral129

. Uma vez que foi eleito, estando ausente, foi

chamado, acedendo aos rogos dos irmãos. Não obstante a sua dor pela

eleição, presidiu ao Capítulo e encerrou-o, com grande satisfação dos

irmãos.

Tradução, Introdução e notas de Fr. José António Correia Pereira

–––––––– 126

Na realidade o capítulo celebrou-se a 2 de Fevereiro de 1257. 127

S. Boaventura de Bagnoregio (1217-1274). 128

Sobre este capítulo veja-se o que diz Jordão no Prólogo desta Crónica. 129

S. Boaventura era, então, ministro geral.

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IDENTIDADE FRANCISCANA

Porque canta o pássaro

Fr. David de Azevedo, ofm

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IDENTIDADE FRANCISCANA

PORQUE CANTA O PÁSSARO

Uma das exortações deixadas às ordens e congregações religiosas

pelo Concílio Vaticano II foi a de reencontrarem a sua identidade especí-

fica. A multiplicidade dos carismas seria uma riqueza para a vida cristã e

para a Igreja. O modo de o conseguirem seria o ―regresso às origens‖: ao

Evangelho e à experiência religiosa vivida pelos fundadores. O tesouro

redescoberto, porém, deveria ser emoldurado e vivido no contexto

humano em que nos encontramos.

I – FUNÇÃO OU ENCONTRO PESSOAL?

No Capítulo Geral extraordinário, celebrado em 1971 na cidade de

Medellin, na Colômbia, pouco depois da primeira tentativa de redescobrir

e reformular a identidade franciscana feita no Capítulo Geral ordinário de

Assis, em 1966, concretizada nas Constituições Gerais então redigidas, no

Capítulo Geral de Medellin, digo, alguns capitulares mais jovens, dei-

xando de lado o programa de trabalho previamente estabelecido, levanta-

ram o problema da identidade franciscana, com a pergunta: ―Qual a razão

de ser da Ordem nos nossos dias‖. O Corpo Moderador não aceitou alte-

rar o programa proposto, mas o Capítulo decidiu se constituísse uma

comissão que, escolhida sim no Capítulo, trabalharia o problema fora

dele. O resultado desse trabalho foi o documento apresentado ao Capítulo

Geral celebrado em Madrid, de 1 de Junho a 8 de Julho de 1973, que o

promulgou com o título “Declaração sobre a vocação da Ordem nos dias

de hoje”.

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É significativo que um dos primeiros actos do actual Governo Geral

da Ordem, para iniciar a celebração dos 800 Anos da existência desta,

tenha sido a reedição desse documento, com o título: “A CAMINHO rumo

ao Capítulo Geral extraordinário – a Vocação da Ordem Hoje”.

A forma como o problema surgiu, a interrogação que o dominou –

―Qual a razão de ser da Ordem nos dias de hoje‖ – o próprio título: ―A

Vocação da Ordem Hoje”, e as perguntas formuladas logo na primeira

página do documento, parecem ver o franciscanismo numa orientação

funcional. O franciscanismo estaria em função de alguma coisa. S. Fran-

cisco teria inventado o franciscanismo para ocorrer a alguma necessidade.

Segundo alguns, a Igreja teria confiado a S. Domingos e aos seus ―prega-

dores” a missão de combater a heresia dos cátaros; e a S. Francisco e aos

seus frades a missão de santificar os cristãos: ―mandatum poenitentiae prae-

dicandae”. Esta dupla missão explicaria os perfis diferentes das duas

ordens: a sua forma de vida, a sua filosofia, a sua teologia, os valores pre-

feridos, o apostolado, etc. O lema que definiria os dominicanos seria a

palavra ―veritas”. O que definiria os franciscanos seria a palavra

―charitas”.

A função pode ser referida a muitas finalidades: a salvação eterna, a

santificação pessoal, o serviço da Igreja, a evangelização do mundo… e

muitas outras. É este problema que constitui o ponto crucial da crise da

Ordem em 1220-1223. Os ministros provinciais, os letrados e os membros

da cúria romana pensavam numa ordem, que fosse uma poderosa institui-

ção ao serviço da Igreja. Os ―primeiros companheiros‖ viam-na como

meio de sua santificação pessoal. Qual seria o sentir de S. Francisco?

Parece-nos que os esforços actuais da Ordem na sua actualização – pro-

moção vocacional, formação dos frades e apostolado – se fixa mais nas

condições exteriores da cultura actual ou regional – aggiornamento – do

que no relacionamento com Jesus – enamoramento. Repetimos: seria este

o sentir de Francisco?

Não obstante a preocupação funcional que esteve na sua origem,

surpreendentemente o Documento de Medellin tem, logo no princípio,

depois da introdução, uma afirmação que vai noutro sentido, e informa

toda a vida franciscana. Diz assim: ―No coração da vida franciscana

encontra-se a experiência de fé em Deus, no encontro pessoal com Jesus

Cristo (o sublinhado é nosso). É o que atestam os escritos de Francisco e

outros textos. Sob qualquer aspecto que se aborde: oração, fraternidade,

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pobreza, presença no meio dos homens todo o projecto evangélico nos

remete continuamente para a fé‖ (n. 5).

Encontro pessoal com Jesus Cristo – O franciscanismo, primaria-

mente, não é uma função, mas um encontro pessoal. Não um instrumento,

mas uma relação pessoal. Primeiro que tudo, está o enamoramento. O

próprio seguimento não é uma função, mas amor: configurar-se com

Jesus… não por interesse, mas por amor, para ser parecido com o Amado.

Por isso, Francisco sentia que mesmo os primeiros companheiros não o

tinham compreendido. A vida de pobreza dos primeiros tempos não era

um meio, mas um traço de amor. A prioridade do enamoramento é essen-

cial, quer para a vida de cada um, quer para a compreensão do apostolado

franciscano. O apostolado franciscano não é um meio, mas um fruto.

Mesmo que não houvesse mundo nenhum a converter ou a santificar,

Francisco seria sempre apóstolo. A boca fala do que vai no coração. Vem

a propósito a historinha que ANTHONY DE MELLO oferece no seu livro

“El Canto del Pajaro”. Depois de o mestre afirmar que Deus é Incognos-

cível, os discípulos perguntaram: ―Então, porque falas tanto sobre Ele?‖ O

Mestre respondeu: ―E porque canta o pássaro? O pássaro não canta, por-

que tenha qualquer afirmação para fazer. Canta, porque tem um canto no

coração‖. A acção de Francisco não foi idealizada em função das necessi-

dades exteriores, mas brotou espontânea da música que tinha no coração.

Este enraizamento de tudo em Jesus – e não em coisas fora d‘Ele –

tem uma importância decisiva para a missão franciscana. Uma das

expressões mais autênticas dela é o “sermão às avezinhas”. Ouçamos a

“Florinha XVI”:

(Indo a caminho para uma pregação, vendo um bando de pássaros,

Francisco disse aos companheiros): ―Esperai aqui por mim, que eu vou

pregar aos meus irmãozinhos pássaros.

Entrou no campo e começou a pregar aos pássaros, que estavam no

chão… E imediatamente os que estavam pelas árvores vieram onde a ele,

e todos juntos permaneceram quietos. Até que Francisco acabou a prega-

ção, e só depois que lhes lançou a bênção é que partiram (…) A substân-

cia da prática de S. Francisco foi esta:

―Avezinhas, minhas irmãs, mui gratas deveis estar a Deus, e sempre

e em todos os lugares o deveis louvar, porque vos concedeu um vestido

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dobrado e tresdobrado, e porque conservou vossos pais na arca de Noé, a

fim de que não acabasse no mundo a vossa espécie. E demais lhe deveis

estar obrigadas pelo ar, que vos destinou; além disso, vós não semeais

nem recolheis, mas Deus vos nutre e vos dá os rios e as fontes para beber-

des, e vos dá os montes e os vales para refúgio, e as altas árvores para

fazerdes ninhos; e conhecendo que vós não sabeis fiar nem coser, vos

veste a vós e a vossos filhos. Grande é, pois, o amor que vos tem o Cria-

dor, que tantos benefícios vos faz; por isso, minhas irmãzinhas, guardai-

-vos do pecado da ingratidão, e esforçai-vos sempre por louvar a Deus.

Tendo o santo dito estas palavras, todas aquelas aves começaram a

abrir o bico, a estender o pescoço, a alargar as asas, e a inclinar com reve-

rência a cabeça até ao chão, mostrando, com sinais e cantos, o muito pra-

zer que lhes davam as palavras do Santo Padre. (…) Finalmente, con-

cluída a pregação, fez sobre elas o sinal da cruz e deu-lhes licença para se

irem embora. E todos aqueles pássaros se levantaram no ar, soltando

maravilhosos cantos, e se dividiram em quatro grupos segundo a cruz que

S. Francisco tinha feito: um grupo voou para o Oriente, outro para o Oci-

dente, o terceiro para o Meio-Dia, e o quarto para as partes do Aquilão, e

cada bando seguia cantando maravilhosamente, com isto significando

que, assim como S. Francisco, porta-bandeira da cruz de Cristo, lhes tinha

pregado e tinha sobre eles formado o sinal da cruz, segundo a qual se

repartiram cantando pelas quatro partes do mundo, assim também a pre-

gação da Cruz de Cristo, renovada por S. Francisco, se devia estender por

meio dele e de seus frades a todo o mundo. E estes frades, à semelhança

das aves, nada possuindo como coisa própria, deviam confiar a sua vida

somente da Providência de Deus.

Ao louvor de Cristo Ámen. ―Fontes Franciscanas” p.1177.

Pregação da Cruz, Renovada por S. Francisco. Estamos no Ano

Paulino. S. Paulo foi um enamorado de Jesus. Tal como S. Francisco. Um

e outro, dois apaixonados. Mas parece haver uma certa diferença.

Enquanto Paulo vive a doutrina da graça, a loucura de amor que realizou

o perdão, Francisco vive a filiação: Jesus como filho de Deus e, conse-

quentemente, Jesus como nosso irmão.

É indispensável passar toda a vida franciscana por este conceito de

filho: a pobreza, a menoridade, a fraternidade, a paz, o respeito pelo outro,

a liberdade, etc., tudo. O episódio do julgamento no tribunal do bispo de

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Assis é tão importante para a identidade franciscana como o encontro com

o Crucificado em S. Damião. O encanto de Francisco por Jesus não se

fica na superfície, isto é, na história que Jesus viveu na Palestina há dois

mil anos, mas, seguindo as linhas reveladas nessa história, sobe até ao

mistério donde procedem; e é isso que dá perpetuidade ao franciscanismo;

e o torna mensagem viva nos dias de hoje.

II – NOS DIAS DE HOJE

Como viver hoje a identidade franciscana?… Não é fácil desenhar

os traços que caracterizam o nosso mundo. Não é fácil penetrar na alma

do mundo actual. Quando pomos estes problemas, estamos a pensar no

mundo ocidental; mas os traços são tão profundos, que, sem ofensa,

podem imaginar-se nos homens de todos os continentes. Com matizes

diferentes, naturalmente. No domínio da religiosidade, a característica

mais generalizada é a indiferença, mas esta brota de forças que partem do

fundo do ser humano. Vamos mencionar só três: a emancipação, o con-

sumismo e o individualismo.

1. Emancipação

O desejo de emancipação, de liberdade, de autonomia e de indepen-

dência vem de muito longe: do protestantismo, do racionalismo, do ilu-

minismo, da revolução francesa, e por aí fora. Como liberdade de pensar,

como liberdade de agir, como liberdade em relação à lei. Libertação,

autonomia, independência. Orgulho de existir por si mesmo, de se cons-

truir por si mesmo… de viver por si mesmo. Uma palavra breve sobre três

pontos de referência:

1.1 – Emancipação da ciência em relação à fé – A ciência quer

investigar o segredo do mundo, sem limite nenhum. Esta independência,

no domínio da vida, pode tornar-se uma vaga terrível: Haverá algum

limite para a engenharia genética? E onde irá parar?

1.2 – Emancipação do Estado em relação à Igreja – Chamam-lhe

laicismo. À primeira vista parece ser a pretensão de varrer o clero da

política, mas a vaga vai muito mais além… eliminar Deus da governação,

eliminar o nome de Deus das constituições, tirar os crucifixos das escolas,

dificultar o ensino da religião, dificultar a assistência religiosa nos hospi-

tais, nos serviços prisionais, etc.

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1.3 – Emancipação do homem em relação a Deus – As palavras

fazem pensar na tentação original de Adão e Eva. Deus apresentado como

rival do homem. ―O que Deus tem é medo de que vos torneis semelhantes

a Ele‖. Como se o homem dissesse: ―Eu não preciso de Deus para nada‖.

―Eu não tenho de dar contas a ninguém‖. Não há valores absolutos. Não

há leis universais. E o pior é que toda esta teofobia não é mera conclusão

filosófica, mas reacção sentimental de antipatia, que faz lembrar a palavra

de Volaire: ―Écrasez l‘infame‖.

2. Consumismo

Na segunda metade do séc. XIX e ao longo do século XX, dá-se no

mundo da economia uma revolução tão grave, como a que se dera no

mundo do pensamento com o iluminismo; e que conduz também à indife-

rença religiosa. Os economistas distinguem quatro ciclos:

2.1 – Ciclo da produção – Com a invenção e a generalização da

máquina no mundo da produção, o que se fazia um-a-um começa a ser

produzido em série. Rapidamente a produção torna-se excessiva. O pro-

blema não é produzir, mas consumir.

2.2 – Ciclo da comercialização – A preocupação dos empresários

passa a ser dar saída aos produtos, que se amontoam nos armazéns. Surge

a publicidade, as embalagens atraentes, a importância da marca, as gran-

des superfícies, etc.

2.3 – Ciclo das novas necessidades – Não tardou que as necessida-

des naturais fossem satisfeitas. A preocupação, então, não foi diminuir a

produção, mas inventar novas necessidades: na habitação, nos transportes,

na estética, na saúde, etc.

2.4 – Ciclo da exploração do lazer – Outra área que o comércio

procura explorar é a do lazer: exploração do turismo: férias em países

exóticos, paquetes de cruzeiro, requintes nos automóveis, requintes na

estética, requintes na saúde, exploração do sexo, etc. Assim surgem novas

necessidades e novas seduções baseados no prazer.

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3. Tendência para o individualismo.

A satisfação imediata e rápida das necessidades – ―usa e deita fora‖

– habituou o homem ao imediato. O hedonismo habituou o homem ao

prazer. Estas forças deram origem ao individualismo. A cada um não inte-

ressa o futuro, mas o presente, e o presente de satisfação individual. No

campo religioso, o que é institucional: a Igreja, as instituições religiosas,

as práticas religiosas institucionais, como os sacramentos e os manda-

mentos, perderam consideração e apreço. Cada um exprime a sua religio-

sidade como entende, se é que ainda lhe interessa alguma coisa.

Estamos, pois, perante uma nova antropologia, que não é mera-

mente a que se ensina na escola, mas a que se vai modelando na vida pela

força das vagas de fundo que movem o mundo:

- homem autónomo, auto-suficiente, orgulhoso… que perdeu o sen-

tido da gratidão;

- homem sem verdades absolutas e valores universais… mas que os

determina ele, nos referendos ou nos parlamentos;

- homem centrado no imediato, sem passado nem futuro, e, por isso,

sem Deus. Indiferente.

III – ANTROPLOGIA FRANCISCANA

Nos antípodas desta antropologia está a antropologia franciscana,

brotante da relação de Francisco com Jesus. Esta relação não a devemos

contemplar só na superfície, ou seja, na história de Jesus na terra, mas no

mistério de Jesus na eternidade. Nesta, na eternidade, deparamos com os

conceitos de Pai, de Filho e de Amor. A Pregação da Cruz Renovada por

S. Francisco… Essa renovação brota daqueles três conceitos. A Cruz

deixa de ser vista como um mistério de justiça, de expiação e de sofri-

mento, para ser um mistério de amor. De amor entre o Pai e o Filho, e de

entrega do Filho ao Pai e ao homem, na Encarnação.

Desta experiência de S. Francisco, no fundo do Mistério de Jesus,

brotam três linhas de vida radicalmente revolucionárias e decisivas para a

vida do homem: a gratidão – a alegria – e a gratuidade. Retomemos o

texto da ―Florinha”.

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1. A gratidão

Fixemos a sensibilidade encantadora com que S. Francisco descobre

e enumera os motivos de gratidão na vida dos passarinhos. Fala do ves-

tido dobrado e tresdobrado, isto é, de três ordens de roupa: por fora, uma,

feita de penas coloridas para alardearem sua beleza; depois, outra, de

penas mais fortes, para os proteger do frio; e ainda uma terceira, de penu-

gem fina, como camisola interior, para que as penas grossas não lhes

magoem a pele. Fala dos cuidados de Deus, por ocasião do dilúvio, para

que não desaparecesse a sua espécie; e dos rios e das fontes, onde podem

beber; e das cearas, onde podem comer; e das árvores frondosas para

esconderem os ninhos; e de todo o céu azul para voarem. E, a concluir,

adverte: ―Minhas irmãzinhas, guardai-vos do pecado da ingratidão e

esforçai-vos por sempre louvar a Deus‖. ―Bem-aventurados os pobres em

espírito, porque deles é o reino dos céus‖. O pobre em espírito é o homem

agradecido, que não se considera construído por si mesmo, mas criado e

sustentado pelo Pai. Que diferente seria a vida humana!… O cristão deve-

ria ser assim. Iluminado de gratidão, para depois a irradiar à sua volta.

2. Alegria que voa

―E todos aqueles pássaros se levantaram… cantando maravilhosa-

mente‖. O enamoramento por Jesus e a gratidão para com o Pai produ-

ziam no coração de Francisco uma incontível capacidade de encanto, que

o fazia ver beleza em todas as coisas. Admirável a frequência com que

Francisco vê Jesus nas criaturas e objectos, mesmo nos mais distantes de

tal simbolismo.

Essa alegria torna os passarinhos comunicativos. Alegria vem do

adjectivo “alacris”, alegre, e “alacris” vem do substantivo “ala”, que

significa “asa”. Alegria é um sentimento que faz voar. Os pássaros voa-

ram para os quatro pontos cardeais. Também os franciscanos deveriam

voar. Também os homens deveriam voar, não para explorar os recursos

económicos de cada continente, mas para levar a todos os povos e raças a

felicidade de serem amados. Que linda globalização!…

3. Fraternidade

Ser filho encerra uma riqueza afectiva incalculável; e, no mistério

trinitário, essa riqueza é duma grandeza infinita: gratidão, encanto, ter-

nura, confiança, gratuidade, retribuição… tudo isso elevado à potência

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infinita. Com a encarnação, a filiação adquire uma vertente nova: a frater-

nidade. Deus torna-se nosso irmão: ―Rodeava de um amor indizível a

Mãe de Jesus, por ter feito nosso irmão o Senhor de toda a majestade‖

(2 C 198). Mais. Em S. Francisco a fraternidade tem um matiz maternal.

Diz na Regra Bulada: ―Pois, se a mãe ama e nutre com tanto amor a seu

filho carnal, com quanto mais amor e solicitude não deve cada um amar e

ajudar seu irmão espiritual‖ (2 R 6, 8). Isto revela algo que confirma de

novo o nosso pensamento: a primazia do enamoramento sobre a função.

A dinâmica da fraternidade não é funcional e utilitarista, mas essencial-

mente relação interpessoal… de matiz amoroso. E esta forma de relacio-

namento não é reservada aos irmãos entre si, mas deve estender-se às

outras pessoas e aos quatro cantos do mundo. É uma característica da

missão franciscana.

Esta visão das coisas, ou seja, o primado do enamoramento sobre a

eficácia apostólica da Ordem, deve estar presente em todo o processo de

formação – inicial e permanente –, e bem assim em toda a actividade de

―refundação‖ da Ordem, que se tenta realizar no seu 8º Centenário. A

pastoral vocacional, igualmente, não é dinamizada pela aflição da carên-

cia de vocações, mas sim pela alegria de cantar a música que se tem no

coração. Sem dúvida, há que ter em conta a salvação dos homens e a

diversidade de culturas; mas o centro de referência é sempre Jesus. E o

primeiro passo, a minha relação com Ele.

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ANTÓNIO DE LISBOA

o testemunho de uma palavra nova

no século XIII

Nicole Bériou1

–––––––– 1 NICOLE BÉRIOU, Antoine de Padoue, le témoin d‟une parole nouvelle au XIII siè-

cle, en Il Santo, XLII, 2007, fasc. 1-2, p. 273-282. O artigo foi escrito a propósito da tradu-

ção francesa dos Sermões de Santo António.

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ANTÓNIO DE LISBOA,

O TESTEMUNHO DE UMA PALAVRA NOVA NO SÉCULO XIII

Será possível, a oito séculos de distância, pretender encontrar os tra-

ços de palavras que nunca escutámos? Não nos sendo naturalmente trans-

mitidos pela alta-fidelidade, como restaurar os contornos das performan-

ces oratórias? Por outro lado, como perceber e sentir as experiências vivi-

das naquele tempo, em que a palavra, o gesto, o ritual e o espectáculo

inerentes ao quotidiano da gente simples, expressões dos melhores modos

de comunicação no seio da sociedade? São estas as questões com que os

historiadores se vêem confrontados, quando se interessam pelos traços da

pregação duma determinada época. E não se podem esquivar, sempre que

se dão conta de certos momentos da história, onde todos os sinais conver-

gem no sentido de se reconhecer que certas formas de discurso mais não

são, que espaços estratégicos de comunicação duma mensagem religiosa,

e naturalmente da sua aceitação.

Assim se apresentavam as coisas pelos anos de 1220, no tempo em

que a pregação de António de Lisboa é testemunhada em Itália e em

França, durante uma dezena de anos, até à sua morte, em 1231. Na reali-

dade, muito antes dessa época, o eco dos discursos de outros grandes pre-

gadores já tinha ressoado decénios antes, em diversos lugares do espaço

europeu. Por exemplo, um século antes, na Alemanha e Flandres através

das peregrinações de Norberto de Xanten, nos anos que precederam a fun-

dação dos Premonstratenses2; em meados do século XII, no vale do Reno,

é a vez de Hildegarda von Bingen pregar contra os maus clérigos e convi-

dar a sociedade para uma reforma3; no último terço do século XII,

–––––––– 2 Cf. DAUZET, D.M., Petit vie de saint Norbert (1080-1134), Paris, 1995.

3 De Hildegarda von Bingen temos os comentários ao Evangelho, que nos dão os

traços da sua actividade homilética (Expositiones evangeliorum, ed. J. B., Pitra,

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encontramos um pouco por todo o lado a voz dos leigos, quer sejam

membros de comunidades dos Pobres da Lombardia, dos Humiliatas, ou

discípulos de Valdo de Lião, ou simples ―bons homens‖, contestatários da

Igreja estabelecida nas cidades italianas e nas regiões do sudoeste francês.

Foi, aliás, na confrontação com alguns destes discursos, que surgiu o

movimento apostólico de Domingos de Gusmão e de seus primeiros com-

panheiros em Langdoc, a partir de 1206, e, ao mesmo tempo que, na

Úmbria, crescia a vaga de fundo extraordinariamente poderosa, à sombra

da figura de Francisco de Assis4. Dele, que se diz explicitamente que não

falava como os outros pregadores. Ele preferia os recursos dum discurso

mais elegante, cheio da força e da convicção imediata da mímica, ao jeito

dos jograis. Pondo de lado as construções sábias dos sermões clericais

aprendidos nas escolas, seguia mais a eloquência dos homens públicos,

que se apresentavam aos seus concidadãos nas praças, proclamando a paz

ou convocando para a guerra, dando-se a conhecer, reanimando assim as

energias de toda a população, ao serviço das causas que defendiam5.

Os cronistas ajudam-nos a perceber como as formas mais variadas

da eloquência, tais como as que então faziam parte do discurso, eram, nos

primeiros anos do século XIII, moeda corrente em diversas cidades. O

que eles não dizem, mas que podemos deduzir através dum paciente tra-

balho de investigação nos depósitos dos arquivos e das bibliotecas, é

sobre a corrente paralela que se desenvolve na mesma época, não só no

seio das comunidades de monges e cónegos regrantes, mas também nas

escolas teológicas: a promoção de uma leitura actualizada da Bíblia, até

mesmo entre os clérigos dedicados à escrita, e mais familiarizados com a

Escritura. Encontrando aí as fontes da sua intervenção, esforçavam-se, ao

mesmo tempo, por assimilar a linguagem e a cultura do povo, para melhor

se fazer entender.

–––––––– ―Analecta sacra‖, 8 (1882). Sobre a sua pregação itinerante, consulte-se B. NEWMAN,

Sister of Wisdom, Berkley-Los Angeles, 1997, 11-12. 4 Uma visão de conjunto deste movimento pastoral é-nos apresentado por André

Vauchez na Histoire du christianisme dès origines à nos jours (dir. J. M. Mayer – Ch. Et

L. Pietri – A. Vauchez – M. Vénard), 5; Apogeé de la papauté et expansion de la chré-

tienté (1054-1274), Paris, 1993, 737-766; confere também, do mesmo autor, La

spiritualité du Moyen Âge occidental (VIIIe-XIIIe siècle), Paris, 1994. 5 A sua eloquência foi estudada por E. ARTIFON, L‟éloquence politique dans les

cités communales (XIIIe siècle), em Cultures italiennes (XIIe-XVe s.), dir. I. Heullant-

-Donat, Paris, 2000, 269-296.

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Desta leitura actualizada tiravam a matéria dos seus ensinamentos

sobre a fé e sobre a educação dos costumes, dando assim aos homens, que

―não se alimentam só de pão, mas de toda a palavra que sai da boca de

Deus‖ (Mt 4, 4), a substância necessária para o seu alimento espiritual.

Em Limoges e Catalunha, na Alemanha e na Itália, não faltam indícios

deste renovamento, bem presente nos escritos em língua vernácula, que

começavam a aparecer a partir do século XII6. Também Paris é um dos

lugares privilegiados deste renovamento. O seu bispo, Maurice de Sully,

uns cinquenta anos antes de António de Lisboa ter composto os seus ser-

mões, publicou um primeiro modelo de recolha de pregações ordinárias

para os padres da sua diocese, que tinham a cura de almas a seu cargo

(aqueles que mais tarde se chamarão os ―curas‖)7.

Foi também em Paris, nos últimos anos do século XII, que as esco-

las de teologia se impuseram como particularmente vivas e atraentes no

espaço europeu, então percorrido por estudantes ávidos de novos saberes,

que se repercutiam nos discursos musculados de um Estêvão Langton e de

um Pedro de Chantre, um e outro expoentes da ideia duma necessária

reforma da sociedade e da Igreja, que se devia enraizar no esforço duma

leitura fundada na Escritura8. Por todo o lado, os clérigos que formarão os

quadros da Igreja seguiram estes ensinamentos. De entre eles, destaca-se a

figura de Lotário de Segni, o futuro Papa Inocência III. Sem dúvida que aí

bebeu muitas das convicções mais importantes, que tomarão corpo

durante o seu pontificado, e que serão vigorosamente afirmadas pelo

quarto Concílio de Latrão, em 1215. Foi então – convém recordá-lo – que

aí se afirmou o dever de pregar, como uma exigência prioritária entre os

deveres confiados aos bispos, e que lhes é instantemente pedido que, caso

não possam cumprir com este dever, se devam fazer substituir por homens

―poderosos em actos e em palavras‖, segundo os termos do Evangelho de

Lucas, a fim de que possam pregar e confessar em seu lugar…, o que fez

–––––––– 6 Seja-me permitido lembrar aqui a N. BÉRIOU, Aux sources d‟une nouvelle pasto-

ral. Les expériences de prédication du XIIe siècle, em La pastorale della Chiesa in Occi-

dente dall‟età ottonian al concilio lateranense IV. Atti della quindicesima Setimana

internazionale di studio, Mendola, 27-31, Agosto 2001, Milão, 2004, 325-361. 7 A recolha de Maurice de Sully, na versão francesa, foi editada por C.A.

ROBSON, Maurice of Sully and the Medieval Vernaculos Homily, Oxford, 1952. 8 Cf. L‟ Occident médiéval lecteur de l‟Ecriture, dir. G. Dahan, ―Supplément aux

Cahiers Evangile‖, 116 (Junho 2001).

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de facto, nos meados do século XIII, o enorme grupo de mendicantes da

segunda geração, discípulos de Francisco e Domingos.

António de Lisboa é um frades mendicantes, vindo mais tarde e de

longe para este trabalho, que absorveu o essencial das suas forças nos últi-

mos dez anos de sua vida. O fascínio que exerceu no cumprimento do ofí-

cio de pregador e, sem dúvida, também a forma como viveu o ideal evan-

gélico de S. Francisco no dia-a-dia é tal, que, menos de um ano depois de

sua morte, já era objecto de um culto popular extraordinário em Pádua;

culto, que o reconhecimento precoce da santidade por Gregório IX veio

acentuar.

Através, por exemplo, do testemunho que nos dá o relato do autor

anónimo da primeira Vita (Legenda Assídua), redigida logo a seguir à

canonização, sabemos do entusiasmo que suscitavam as suas pregações, a

propósito da quaresma pregada em Pádua em 1231, alguns meses antes da

sua morte.

Pela primeira vez na história, estamos perante aquilo que podemos

designar por uma missão penitencial, organizada ao ritmo de pregações

diárias perante milhares de pessoas, que nenhuma igreja podia conter.

Para escutar a palavra ardente e inspirada do pregador, enchiam-se as pra-

ças, ou de preferência os campos, num silêncio tal, que se ouvia uma

mosca a voar. Da cidade e dos castelos e aldeias em redor, cada um tra-

tava de garantir de noite um lugar para a pregação do dia seguinte, e o

comércio fechava, até que António acabasse de pregar. As mulheres usa-

vam as tesouras para cortar pequenos pedaços da túnica, que conservavam

como relíquia. O próprio bispo de Pádua, diz o hagiógrafo, vem escutá-lo

com todo o seu clero, como para dar o exemplo e caucionar a pregação…

e, durante quarenta dias, a sua palavra faz maravilhas. Ele reconcilia as

facções que se digladiam, obtém a libertação dos pobres endividados, que

eram perseguidos pelos seus credores, obriga a restituir os bens roubados,

e converte grandes ladrões e prostitutas… O hagiógrafo talvez se deixe

entusiasmar com os lugares comuns dos elogios, mas as leis promulgadas

pela comuna de Pádua em favor dos devedores atestam pela sua parte a

autenticidade, ao menos em certos pontos, deste testemunho entusiástico,

aliás único no seu género9.

–––––––– 9 Cf. Legenda Assídua, XII, em Fontes Franciscanas III, Santo António de

Lisboa, vol I, II, III, Editorial Franciscana, Braga, 1998. Citaremos FFIII e o respectivo

volume. Sobre audiência dos pregadores da época, cf. A. THOMPSON, O.P., Revival

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Com efeito, que sabemos nós da bravura da pregação de António?

Alguns pedaços de informação sobreviveram aqui e acolá. Por exemplo, o

cronista anónimo de S. Marcial de Limoges refere, pelo ano de 1223, na

passagem em Limoges, a pregação em um cemitério e no mosteiro de S.

Martinho, e mesmo, como se tratasse de uma maneira inédita de pregar,

os versículos da Escritura, sobre os quais ele construiu os seus sermões10

.

Em outra ocasião, é o hagiógrafo que nos informa, a propósito do episó-

dio muitas vezes representado, sobre a pregação perante o capítulo dos

irmãos em Arles, em 1224: tomando como ponto de partida a inscrição

sobre a Cruz de Cristo, suscitou em um dos irmãos, Fr. Monaldo, a visão

de Francisco, retirado então num eremitério, que se apresentou a seus

olhos como a imagem viva de Cristo crucificado11

. A propósito de uma

pregação em Toulose, conta-se a história, talvez adaptada do rico reportó-

rio de anedotas exemplares que circulavam, graças precisamente aos seus

sermões, da mula que, indiferente ao molho de aveia que se lhe apresen-

tava ao mesmo tempo que a sagrada Hóstia, manifestou a veneração que

deve ser prestada às sagradas espécies, ajoelhando-se perante elas12

. Foi

também através de uma história maravilhosa, que se descobriu o dom

excepcional da oratória de António. Um dia, em Forli, por ocasião de uma

cerimónia de ordenação, onde, não se encontrando mais nenhum clérigo

disposto a tomar a palavra, lhe pediram para fazer o sermão. Fê-lo com tal

inteligência e com tal persuasão, que lhe incumbiram, a partir de então,

–––––––– Preachers and Politics in Thirteenth-Century Italy. The Great Devotion of 1233, Oxford,

1992. 10

Este relatado vem também referido em Dom J. BECQUET, Pierre Coral et la

chronique de Saint-Marcial de Limoges au XIIIe siècle, em Bulletin de la Société

archéologique et historique du Limousin, 118, (1990), 31-51, p. 41. 11

Cf. Vida Segunda, V, 12, em FF III, 1 vol; Legenda Rigaldina, VIII, 10, em FF

III, 3 vol. Sobre a representação deste episódio, e mais genericamente sobre António

como pregador, cf. R. RUSCONI, Trasse la storia per farne la tavola: immagini di

predicatori degli ordini mendicanti nei secoli XIII e XIV, em La predicazione dei frati

dalla meta del „200 alla fine del „300. Atti dell XXII Convegno Internazionale, Assisi,

13-15 de Outubro de 1994, Espoleto, 1995, 407-450, p. 420-428. 12

Cf. Florinhas de Santo António III, em FFIII, 3. op. cit. O mesmo episódio,

referido a um herético albigense que pretendia que a sua mula comesse a hóstia

consagrada com aveia, e foi confundido, quando viu que a mula se ajoelhava

devotamente, reconhecendo assim o seu Senhor, é analisado em E. DUMOUTET, Corpus

Christi. Aux sources de la piété eucharistique médiévale, Paris, 1942, 118-119.

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sem qualquer dúvida, a missão de pregador itinerante, que ele assumiu

nos dez anos seguintes, até à sua morte13

.

Tudo o que sabemos dos primeiros anos de sua vida, exceptuando

os conhecimentos da Escritura, que ele adquiriu nos anos de estudo feitos

em Portugal, em S. Vicente de Lisboa, e sobretudo em Santa Cruz de

Coimbra, e de seu carácter íntegro, generoso, ávido do absoluto, aprofun-

dando cada vez mais o seu compromisso religioso, transferindo-se de uma

comunidade de cónegos a outra e, finalmente, juntando-se aos Frades

Menores, nos convida a acolher sem discussão o relato que fala da desco-

berta dos seus dons como pregador inspirado, admitindo que se tenha

manifestado ocasionalmente naquele momento da sua estadia em Forli, na

Itália. Mas antes? Integrado na vida mista dos cónegos regulares de

Coimbra, que viviam sob a inspiração de S. Rufo de Avinhão e de S.

Vítor de Paris, nunca teria António exercido os seus talentos de orador,

sendo ainda conhecido como Fernando, não teria tido a oportunidade de o

fazer, aquando da sua entrada para os Frades Menores, ainda antes de

embarcar para Marrocos, onde, segundo a tradição se queria identificar

com os primeiros mártires de Marrocos, cujos restos mortais tinham pas-

sado pela sua comunidade? Se a pregação em Portugal existiu, as fontes

mantêm sobre isso um misterioso silêncio.

Uma outra questão merece ser colocada: como pode o historiador

hodierno, e seus contemporâneos com ele, penetrar cada vez mais no

conhecimento íntimo da pregação de António, da sua forma e dos seus

efeitos? A chave da sua eloquência e da sua audiência podemos encontrá-

-la naquele conjunto manuscrito, que António compilou para os diversos

momentos litúrgicos, a que se convencionou designar de seus ―Ser-

mões‖.14

Um dos seus hagiógrafos dá a entender, nos fins do século XIII,

que um tal projecto de compilação do seu ―Sermões‖ estaria infalivel-

mente votado ao fracasso: as palavras vertidas sobre os pergaminhos não

exprimem toda a dimensão da palavra viva de António, que foi como que

–––––––– 13

Cf. Legenda Assídua, VII, em FF III, 1. 14

Os Sermões de Santo António estão publicados em português. Cf. Santo

António de Lisboa, Doutor Evangélico, Obras Completas, Sermões dominicais e festivos

(ed. Bilingue – Latim e Português), Vol. I e II. Introdução, tradução e notas de Henrique

Pinto Rema, Lello & Irmão – Editores, 1987, Porto. É esta a tradução que é usada nas FF

III.

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o cálamo do Espírito Santo, que grava a sua mensagem sobe as tábuas do

coração15

.

Nas notas tomadas pelos ouvintes dos sermões parisienses, dos fins

do século XIII, por exemplo, e ainda com maior evidência nas

extraordinárias notas taquigrafadas tomadas à pressa durante os sermões

de Bernardino de Sena, no século XIV16

, não encontramos as vibrações da

palavra persuasiva, excepto em pequenos extractos de eloquência exorta-

tiva na parte final do ―Sermões‖17

. Convém, no entanto, recordar, que não

se trata de autênticos sermões condensados, para dizer no tempo litúrgico

correspondente, mas de materiais colocados à disposição dos pregadores,

para os auxiliar nas pregações. O que aí encontramos não é mais do que a

aplicação concreta de certos princípios da doutrina cristã, que António

considera fundamentais.

Em primeiro lugar, o alimento bíblico: aquele que o papa Gregório

IX denominou ―Arca do Testamento‖ movia-se com uma agilidade

impressionante em todo o texto da Bíblia18

. Ele, que partilhava com todos

os mestres da exegese do seu tempo a convicção comum de que todo o

texto bíblico está em correspondência, não se dispensava de evidenciar

essa correspondência, ou melhor essa ―concordância‖ das palavras e do

sentido, nas passagens bíblicas de difícil compreensão. Além disso, tendo

em conta a sua experiência de sacerdote, habituado a celebrar a missa e a

rezar o breviário, valorizava o espaço concedido à meditação litúrgica,

privilegiando as concordâncias entre os quatro textos da Escritura rela-

cionados com uma determinada festa litúrgica, como que as quatro rodas

do carro de Elias: leituras do Ofício, tiradas do Antigo testamento; o cân-

–––––––– 15

Cf. Legenda Rigaldina, VIII, em FF III, 3 vol. Cf. C. DELCORNO, I „sermones‟

antoniani nella predicazione del Duecento, em Il Liber naturae nella Lectio antoniana.

Atti del Congresso internazionale per l‟VIII Centenario della nascita di sant‟Antonio di

Padova (1195-1995). Pontificio Ateneo Antonianum di Roma, Roma 20-22 de

novembre 1995, Roma, 1996, 45-84, p. 66. 16

Sobre estas notas relacionadas com o século XIII, cf. N. BÉRIOU, L‟avènament

des maîtres de la Parole. La prédication à Paris au XIIIe siècle, 2 vol., Paris, 1998;

Sobre Bernardino de Sena, cf. C. DELCORNO (a cura), Bernardino da Siena. Prediche

volgari sul Campo di Siena (1427), 2 vol., Milão, 1989. 17

Cf., por exemplo, o Sermão do Domingo de Páscoa, FF III, 2. vol. 18

Sobre este ponto, cf. G. DAHN, Saint Antoine et l‟exégèse de son temps, em

Congresso Internacional Pensamento e Testemunho, 8º Centenário do nascimento de

santo António. Actas I-II, Universidade Católica Portuguesa – Família Franciscana

Portuguesa, Faculdade de Teologia, Braga, 1996, 147-177.

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tico do Intróito; as leituras das Epístolas e as leituras dos Evangelhos, do

Novo testamento. Por fim, o terceiro degrau. A Escritura, o livro portador

da palavra de Deus, mediatizado pela construção litúrgica, dá sentido ao

livro mais imediato e acessível a todos e a cada um de nós, o livro da

natureza, que importa decifrar sob a luz da revelação, apropriando-se

também da sabedoria dos antigos. No caso de António, há que ter em

conta a tradução recente da obra De animalibus, de Aristótelos, traduzido

por Michel Scot, a partir do árabe, que tornou possível que os estudiosos

mais atentos renovassem os seus conhecimentos19

.

Servindo-se deste saber correlacionado, António procura sem cessar

pôr em prática aquilo que a seus olhos é fundamental, isto é, aceder ao

conhecimento pela transferência de sentido. Por isso, serve-se do universo

das criaturas sensíveis, que mais não são que figuras de realidades espiri-

tuais: assim, as paradas amorosas das rãs e das aranhas, descritas com pre-

cisão, são a figura dos comportamentos luxuriosos20

. Do mesmo modo se

apoia na linguagem significante das Escrituras, que descreve a partir da

etimologia das palavras. Segue o caminho aberto por S. Jerónimo para a

interpretação dos nomes bíblicos, e por Santo Isidro de Sevilha na

exploração sistemática da origem dos nomes comuns, a fim de encontrar a

força neles inerente, que ele maneja com uma familiaridade, sentida em

cada página dos sermões. Será toda esta cultura totalmente controlável

num discurso em linguagem vernácula? É uma questão que se pode colo-

car. Deve-se pelo menos perguntar, em que medida esta presença insis-

tente da etimologia não induz a uma presença simultânea de uma língua

macarrónica de cariz oral, ou se não haverá justaposição entre o latim e a

língua vernácula, talvez ao serviço da afirmação do mistério da palavra de

Deus, e sobre o modo da transmissão teatralizada desta palavra sagrada.

O enorme trabalho de estandardização dos métodos de comunicação

usados pelos irmãos mendicantes ao longo do século XIII fizeram com

que produzissem uma quantidade enorme de instrumentos de trabalho,

que rapidamente encheram as suas bibliotecas. A recolha de modelos de

sermões prontos concorreu rapidamente com a recolha dos sermões de

–––––––– 19

Sobre o contexto intelectual paduano do seu tempo, cf. sobretudo P.

MARANGON, Ad cognitionem scientiae festinare. Gli studi nell‟Università e nei conventi

di Padova nei secoli XIII XIV, (a cura di T. Pesenti), Padova, (Contributi alla storia

dell‘Università di Padova, 31). 20

Cf. Sermão do sexto Domingo depois da Páscoa 4, FF III, 1 vol.

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António de Lisboa, uma obra pioneira, mas de difícil uso, dado o seu

volume e complexidade.

Algumas das metáforas presentes nos sermões de António, foram

usadas na pregação dos Frades Menores: por exemplo, a imagem do orgu-

lhoso, que a picada do aguilhão da morte faz rebentar como uma bexiga,

manifestando, assim, o pouco que é21

.

E S. Boaventura, que assistiu à abertura do caixão de António, em

1263, e que recolheu num relicário a língua ainda intacta do santo, como

para marcar na memória a força da sua palavra nova, deve ter lido os ser-

mões de António, onde foi buscar aquela outra imagem forte que lhe é

atribuída, a dos usurários ávidos do sangue dos pobres22

.

A questão que se nos coloca é saber se o texto dos Sermões de

António, cuja tradução nos dá a possibilidade de contactar com o seu pen-

samento, tem algum valor para nós, hoje. Certamente que sim. Sem

dúvida que não podemos confirmar a performance da sua oratória, a efi-

cácia da sua palavra, a aceitação e apropriação que dela fizeram os

ouvintes de António. Por outro lado, parece-nos que seria um anacro-

nismo, se os pregadores de hoje colhessem inspiração, como fez Boaven-

tura, das palavras de António…

Mas o que podemos aí procurar é uma forma de ler a vida, o mundo,

a história e a Palavra de Deus, que nós devemos aprender a descobrir, sem

nos persuadirmos apressadamente de que compreendemos, sem esforço,

os homens deste outro tempo, que foi o século XIII. Penetrar na tradução

ajuda a perceber, na sequência duma linguagem, que faz imergir tanto

mais quanto mais nos é familiar, os pontos de resistência e as singularida-

–––––––– 21

Cf. Sermão do XII Domingo depois do Pentecostes, 5. Como recorda Carlo

Delcorno (Op. cit), esta imagem, que encontramos no Domingo XII depois do

Pentecostes, é tomada por Servasano da Faenza (Liber exemplaris, III, 78, De superbia,

por Tiago de Todi nas suas Laudi, e por Bernardino de Sena num sermão no Campo de

Siena, em 1427. 22

Cf. Sermão do Segundo Domingo da Oitava da Epifania, 7. Num sermão de

Ranulfo de Houblonière, pregado em Paris em 1273, esta imagem é atribuída a S. Boa-

ventura. Seria tirada dum comentário ao Evangelho de Lucas sobre a Apresentação de

Jesus no Templo, onde Maria leva duas pombas para oferecer: ―per duos turtures signifi-

catur nobis duplex castitas et mundicia cordis et corporis, vel prout dicit frater Bonaven-

tura, mundicia carnis et alieni cruoris, contra luxuriam et avariciam vel rapinam‖.

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des desconcertantes das situações marcantes do discurso, mais que sabe-

doria cristã universal.

O peso das palavras, a força poética das metáforas, o extraordinário

livro da natureza que António compilou para os seus leitores e para os

ouvintes dos seus leitores, são, apesar de tudo, uma oportunidade que nos

convida a descobrir e a consultar, mais que a uma leitura contínua – como

aliás seria desejo de António, habituado à leitura selectiva, que as gentes

das escolas praticavam no seu tempo.

As ―Florinhas de Santo António‖ relatam que em Rimini, nas mar-

gens do Adriático, os peixes escutaram, atentos e ávidos, a palavra de

Santo António, tal como os pássaros escutaram a pregação de Francisco

de Assis23

. Como não nos é possível escutar as suas palavras, aqui fica o

convite para uma leitura dos Sermões de Santo António.

Tradução da responsabilidade dos Cadernos de Franciscanismo

–––––––– 23

Cf. Florinhas de Santo António, 40.

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II – Documentos

JOÃO DUNS SCOTUS:

GENIALIDADE E AUDÁCIA

Conferência dos Ministros Gerais da Família Franciscana

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JOÃO DUNS SCOTUS: GENIALIDADE E AUDÁCIA

A todos os franciscanos e franciscanas,por ocasião do encerramento do

VII Centenárioda morte do Beato João Duns Scotus

Por ocasião da conclusão da celebração do VII Centenário da morte

do Beato João Duns Scotus (1308-2008), após tantas celebrações culturais

e científicas, que se sucederam em todo o mundo, também nós, Ministros

Gerais da Primeira Ordem e da TOR, achamos oportuno endereçar-lhes

esta carta. Com ela desejamos unicamente dirigir-lhes algumas palavras

para suscitar em todos os franciscanos e os simpatizantes do francisca-

nismo o desejo de fazer memória da eminente personalidade do Doutor

Sutil e Mariano e de aprofundar o conhecimento do seu fecundo pensa-

mento filosófico-teológico. Franciscano santo e mestre audaz, original e

criador de cultura em resposta aos desafios do seu tempo, filho fiel de São

Francisco, conseguiu encarnar o Evangelho e estar atento às realidades

sócio-culturais da sua época, às quais jamais se eximiu e pelas quais ofe-

receu a sua contribuição a partir das propostas filosófico-teológicas de

então.

Graças às pesquisas e aos sérios estudos dos últimos tempos, foram

eliminados os prejuízos de pouca clareza que havia na linguagem esco-

tista e a idéia de uma sutileza de pensamento que tende à abstração

extrema. Como tem demonstrado Pe. E. Longpré1, a sutileza escotista é

exigência de rigor intelectual, posta a serviço do primado da caridade, a

virtude sublime na prática cristã e quotidiana. Toda a força e a penetração

especulativa escotista estão a serviço de uma intenção prática: Deus, Jesus

Cristo, o homem, a Igreja, a criação, orientar o ser humano e evitar que

desvie no amor: errar amando.

–––––––– 1 Longpré, E., La philosophie du B. Duns Scot (Firmin-Didot, Paris 1924).

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Scotus é a favor de uma práxis, mas não de um evangelismo impa-

ciente e superficial, alérgico às especulações e à reflexão profunda e

meditativa. ―Neste tempo – segundo P. Vignaux – no qual muitos crentes

exigem uma Igreja profética, a subtilitas convida a recordar uma grande

afirmação de Karl Barth, no primeiro volume da sua Dogmática: ‗o temor

diante da Escolástica é a característica dos falsos profetas. O verdadeiro

profeta aceita submeter a sua mensagem a esta prova como às outras‘‖ 2.

Do rico e fecundo patrimônio escotista nos limitamos a indicar aqui

algumas pistas para tentar responder aos problemas mais urgentes do

nosso tempo.

Deus segundo Scotus e o ateísmo contemporâneo

Na elaboração de sua teologia natural, Scotus parte de dois princí-

pios bíblicos: ―Eu sou aquele que sou‖ (Ex 3,14) e ―Deus é amor‖ (1ª Jo

4,16), para chegar Àquele que é ―Verdade infinita e bondade infinita‖3. A

existência e a essência de Deus são esclarecidas pela teologia mas, ao

mesmo tempo, a metafísica as considera como o próprio objeto mais ele-

vado. Dois saberes se correspondem: a ordem humana do divino (teologia

metafísica) e a ordem divina do humano (teologia revelada), como afirma

no início do Primeiro Principio: ―Tu, sabendo o que de ti a mente

humana pode conhecer, respondeste revelando o teu santo nome: Eu sou

aquele que sou‖ 4.

Entre todos os nomes divinos, o mais apropriado é o Aquele que é,

pois ele exprime ―um certo oceano de substância infinita‖5, ―o oceano de

toda perfeição‖6 e ―o amor por essência‖

7. No último ser infinito se

encontram três primícias: a primeira causa eficiente, o primeiro fim de

tudo e o mais eminente grau na perfeição, que Scotus procura evidenciar

com as suas profundas e incomparáveis provas da existência de Deus.

–––––––– 2 Vignaux, P., ―Lire Duns Scot aujourd‘hui‖, in Regnum hominis et regnum Dei

(Congr. scot., vol. VI, Roma 1978) 34. 3 Ordinatio I, d. 3, n. 59 (ed. Vat. III, 41).

4 Tratado acerca del primer principio (BAC, Madrid 1960), 595.

5 Ordinatio I, d. 8, n. 198 (IV, 264).

6 Ordinatio I, d. 2, n.57-59 (II, 149-167).

7 Ordinatio I, d. 17, n. 171 (V, 220-221).

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Scotus apresenta a infinitude como a característica mais própria e

configuradora de Deus. A infinitude é um modo de ser de Deus que o

diferencia radicalmente de todos os outros seres. O Doutor Sutil acentua

bastante a infinitude de Deus. É o conceito mais simples de qualquer atri-

buto divino e o mais perfeito, pois o ser infinito inclui virtualmente o

amor infinito, a verdade infinita e todas a outras perfeições que são com-

patíveis com a infinitude. Embora toda a perfeição de Deus seja infinita,

sem dúvida, ―existe a sua perfeição formal na infinitude da essência como

na sua raiz e no seu fundamento‖ 8.

A exaltação do infinito se une necessariamente à exaltação do

homem sob todas as criaturas finitas, que constitui uma das expressões

mais características do humanismo cristão. A reflexão escotista ressalta a

espiritualidade do infinito e implica a crítica do panteísmo e do materia-

lismo, em qualquer das suas expressões manifestas ou confusas.

Scotus propõe a necessidade intelectual de aprofundar o conceito de

experiência. Porém, não numa experiência qualquer (sensível, científica,

intelectual), mas na experiência do necessário, porque somente este tipo

de experiência nos leva à experiência da possibilidade do ser absoluto.

O Deus de Scotus, manifestado no exercício intelectual da idéia da

possibilidade dos seres, personaliza em cada homem a idéia de Deus.

Deus é para cada homem tudo o que o mesmo homem lhe permite ser e

segundo as próprias exigências de busca e de encontro. Scotus conhece e

reconhece o ocultamento e o silêncio de Deus no homem, porém, não

porque Deus se retira, mas porque o homem mesmo se subtrai às exigên-

cias do absoluto e aos imperativos de aprofundamento no próprio inte-

lecto. A compreensão de Deus depende da vontade que move ou não o

intelecto para que indague em si mesmo a na realidade da vida.

Deus não está apenas lá, mas mais aqui, como fundamento de todo

o real enquanto possível. Deus se faz incompreensível quando se abdica

ao intelecto. O ateísmo não é efeito da acuidade do intelecto, nem o

resultado da profunda penetração intelectual no mundo, mas exatamente o

contrário: é uma não reflexão, uma desatenção intelectual da realidade.

Scotus convida ao pensar radical, apresentando Deus não como realidade-

–––––––– 8 Opus oxoniense IV, d. 13, q. 1, n.32 (ed. Vivès XVII, 689).

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-objeto de conhecimento, mas como realidade-fundamento da existência.

Deus é a solução da problemática da existência humana e secular.

O ocultamento ou o silêncio de Deus, responsável ou irresponsável,

consciente ou inconsciente, é uma consequência do fato de que não ousa-

mos pensar em Deus e que existe esta falta de fundamento intelectual em

ver Deus como problema. Ao final da história da metafísica parece que

Deus esteja chegando a ser impensável. Paulo VI, na sua Carta Apostólica

Alma parens (14.07.1966), diz que ―poderão ser encontradas no tesouro

intelectual de João Duns Scotus lúcidas armas para combater e afastar a

nuvem negra do ateísmo que ofusca a nossa idade‖.

O cristocentrismo como visão mística do universo

O beato João Duns Scotus fazia teologia por exigências espirituais e

científicas, não por simples prurido ou curiosidade intelectual. Fiel discí-

pulo de São Francisco de Assis concentrou-se de modo especial sobre

Jesus histórico, sobre seu nascimento, vida, paixão, morte e ressurreição,

que ele assume na sua vida de fé e no seu compromisso religioso. Desta

experiência vivida ele faz teologia e procura oferecer a visão de Cristo

dentro do plano salvífico de Deus. A vida real e histórica de Jesus de

Nazaré era a sua meditação existencial que movia o seu pensamento na

grande visão do cristocentrismo como postulado teológico para uma com-

preensão harmônica e sinfônica do mundo, da vida e da história.

O Doutor Sutil, muito atento à realidade e à história, destaca a

humanidade e radical criaturalidade de Jesus Cristo, o seu ser homem, os

seus limites humanos, a sua realidade histórica, os seus progressos e a

graduação no conhecimento. ―Diz-se que, deste modo, Cristo, através da

experiência, compreendeu muitas coisas, por conhecimento intuitivo, ou

seja, dos objetos conhecidos quanto à sua experiência e pelas lembranças

deixadas por elas‖9. Se o mistério trinitário representa a suprema unidade

na vida intradivina, no mundo extra divino a máxima unidade é consti-

tuída pela união hipostática das duas naturezas entrelaçadas em Cristo e

qualificada pelo mestre como ―a maior união depois da união da Santís-

sima Trindade‖10

.

–––––––– 9 Ordinatio III, d.14, q.3, n. 121 (IX, 472).

10 Ordinatio III, d.6, q.1, n.45 (IX, 247).

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Se Deus é amor infinito, pede para ser amado livremente por

alguém que possa corresponder a estas exigências de infinito. Por isto

previu quem possa fazê-lo, ou seja, Cristo, o Verbo, que assume a natu-

reza humana e, nela, todos os homens para que possam participar da sua

glória no céu. E porque este homem especial reassume em si toda a cria-

ção, ela termina em Deus através de Cristo11

. Fazendo de Cristo a razão

de todo o criado, Scotus se alinha perfeitamente na perspectiva de São

Paulo (Col 1,15-17).

O Doutor Sutil destaca que Cristo é o centro primordial e de inte-

resse da manifestação da glória divina ad extra. O cristocentrismo esco-

tista sustenta e defende que Cristo é o arquétipo e o paradigma de toda a

criação. Ele é a obra suprema da criação na qual Deus pode espelhar-se

adequadamente e receber a glorificação e a honra que merece. Cristo é o

topo da pirâmide cósmica como síntese conclusiva e que aperfeiçoa todo

o criado.

O cristocentrismo escotista oferece uma visão mística do universo.

O mundo se apresenta como um diáfano sacramento da divindade, um

grande altar no qual se celebra a liturgia da Eucaristia, pois entre ambos

está a grande presença de Cristo. São Francisco de Assis viveu esta

comunhão e união entre a liturgia cósmica e a Eucaristia em perfeita har-

monia, transformada em canto. Mas o Doutor Sutil conseguiu transcrever

este mistério crístico numa maravilhosa página de teologia mística. O

cosmo inteiro é uma grande imagem da divindade, porque nele todo está a

presencialidade do seu autor e linguagem evocadora. Todo o universo

glorifica Deus pois tende para Ele, causa eficiente e certamente final, mas,

sobretudo porque é dotado de um impulso intrínseco que o coloca a cami-

nho rumo à meta convergente, o Cristo ômega.

A pessoa humana como interiorização e alteridade

A clássica definição de Boécio sobre a pessoa humana ―substância

individual de natureza racional‖ não satisfaz Scotus que prefere a de

Ricardo de São Vítor, o qual apresenta a pessoa como ―existência

incomunicável de natureza intelectual‖12

. Para o Doutor Sutil a pessoa se

caracteriza como última solidão. ―A personalidade exige a última solidão,

–––––––– 11

Reportata parisiensia III, d.7, q.4, n.4 (ed. Vivès XXIII, 303). 12

Ordinatio I, d.23,n.15 (V, 355-356).

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ser livre de qualquer dependência real ou derivada do ser com respeito a

outra pessoa‖13

. Uma certa incomunicabilidade está ligada à existência

humana. A independência pessoal é ―a mais‖ 14

que pode atingir para si

no seu estado existencial e itinerante. Deste modo a solidão é o mais pro-

fundo encontro consigo mesmo. A solidão não é vazio, mas plenitude.

Na profundidade mais íntima a pessoa experimenta e vive o misté-

rio de todo homem, de todos os homens e, com eles comunica. Por isto se

pode afirmar que quem é verdadeiramente solitário é solidal, que a soli-

dão é solidariedade. O eu, na sua profunda solidão, é sempre solidarie-

dade com um tu, um nós. Por isto Scotus não se contenta em pôr em

relevo a categoria aparentemente negativa, isto é, a incomunicabilidade,

mas acentua o outro aspecto, claramente positivo, consistente num dina-

mismo de transcendência numa relação vinculante, pois ―a essência e a

relação constituem a pessoa ―15

. Portanto, a pessoa é estruturalmente rela-

cional e criadora de laços, pois é constitutivamente referida e aberta a

Deus, aos homens e ao mundo.

O homem escotista não se fecha num solipsismo metafísico, tenta-

ção permanente das filosofias idealistas, mas aparece claramente como

abertura e relação, como ser indigente e criador de laços. O homem esco-

tista traz em si um grande impulso e dinamismo que se exprime como

insatisfeito desejo ou como razão de desejo e, por isso, em atitude sempre

aberta.

A pessoa tem necessidade de descobrir a própria subjetividade e de

aprofundá-la. Não pode, porém, fechar-se na sua subjetividade, mas deve

abrir-se à alteridade. Pertinência e referência são duas categorias existen-

ciais que pressupõem a última solidão e a relação transcendental. Scotus,

com intuição genial, antecipou a filosofia dialógica que tanta importância

reveste hoje nas antropologias contemporâneas.

O saber para viver bem

O pensamento escotista está muito distante de ser um todo artificial

de audaciosas sutilezas, como o acusaram os adversários, ao contrário é

–––––––– 13

Opus oxoniense III, d.1, q.1, n. 17 (ed. Vivè XIV, 45); Reportata parisiensia

III, d.1, q.1, n.4 (ed. Vivès XXIII, 236). 14

Opus oxoniense III, d.1, q. 1, n.5 (ed. Vivès XIV, 16-17). 15

Quodlibet, q. 3, n.4 (ed. Vivès XXV, 120).

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eminentemente prático, enquanto busca conhecer e esclarecer o fim

último do homem e de proporcionar-lhe os instrumentos aptos para con-

segui-lo. Toda a sua especulação filosófico-teológica desemboca numa

atitude existencial e de ordem prática: uma ética da ação. Trata-se de uma

moral do encontro e da existência comunicativa.

Scotus parte do princípio teológico de que o amor divino transcen-

deu o infinito para vincular-se ao finito. Em contrapartida, somente o

amor humano da vontade livre poderá transcender o finito para unir-se ao

infinito. Trata-se, definitivamente, de uma ética do amor. O Doutor Sutil

pensou profundamente porque amou em profundidade, mas com um amor

concreto, como ele mesmo diz: ―Provou-se que o amor é verdadeiramente

práxis‖16

. Desta práxis se compreende e se explica como o homem deve

agir e viver no seu ser e estar no mundo e na sociedade.

É prático todo ato que provém do desejo da vontade, mas em condi-

ção de conformar-se à reta razão. Isto implica claramente a conformidade

da vontade a uma lei, dando-se assim uma identidade entre o prático e o

normativo17

. A vontade é uma potência indeterminada que se autodeter-

mina por si mesma. Sem dúvida a liberdade não é arbitrária nem irracio-

nal. De fato, a vontade é o vértice do intelecto racional. A liberdade se

realiza na autodeterminação da vontade natural e racionalmente orientada

ao bem. A ação boa é aquela que corresponde a um ato da vontade con-

forme a reta razão.

A vontade escotista é capaz de determinar-se acima de qualquer

interesse e de valorizar-se numa ética do desinteresse. Scotus apresenta

uma filosofia da liberdade dentro de uma teologia que admite a possibili-

dade natural de amar Deus por si mesmo e fora de qualquer interesse

egoísta.

O Doutor Sutil nos oferece a esplêndida articulação de um huma-

nismo cristão no qual o saber está a serviço do bem viver e do bom convi-

ver, ou seja, de uma sociedade justa, pacífica e fraterna.

–––––––– 16

Ordinatio, Prol. n.303 (I, 200). 17

Cf. Ordinatio, Prol. n. 353 (I, 228).

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Conclusão

João Duns Scotus, filho fiel e coerente seguidor de São Francisco,

apresenta profundos, iluminados e vitais pressupostos doutrinais para uma

autêntica e robusta espiritualidade franciscana, como se apresenta evi-

dente no seu bonito e ao mesmo tempo útil tratado sobre as virtudes teo-

logais que ele soube encarnar na vida quotidiana com simplicidade e

grande humanidade.

Deste modo, o Doutor Sutil e Mariano passa a fazer plenamente

parte da rica corrente da espiritualidade franciscana, dentro da qual ele

vive, se inspira e concebe o seu pensamento filosófico-teológico. Como o

fundador da Família Franciscana, o beato João Duns Scotus conseguiu

sincronizar harmonicamente vida e pensamento, mística e trabalho, con-

templação e ação, pessoa e comunidade, ser e fazer.

Scotus chegou, com grande humildade e audácia, a colocar a suti-

leza do seu pensamento a serviço da causa de Deus, do homem e da vida.

A sua grandiosa visão da história da salvação, com o seu dinamismo de

perfeição e de consumação no Cristo ômega, pode ser o fundamento filo-

sófico-teológico para elaborar uma mística cósmica, uma ecologia plane-

tária e uma teologia do futuro.

As suas amplas perspectivas antropológicas e cristológicas ofere-

cem ao homem de hoje novos horizontes de pensamento e de ação, crité-

rios válidos para orientar-se rumo a um futuro de esperança e

comportamentos fraternos para um humanismo integral do rosto humano

e civilizado.

Filósofo e teólogo, audaz e comprometido, que pensa, raciocina e

age a partir do concreto contexto da sua época; mas, transcendendo do seu

contexto cultural, é ainda atual para encarar com lucidez e sem complexos

a permanente problemática humana.

O pensamento escotista é expresso numa chave de esperança. Olha

o passado para aprender, analisar o presente para agir, mas espera num

futuro por esclarecer. Com uma expressão lapidária e fecunda diz que ―no

desenvolvimento da história humana cresce sempre o conhecimento da

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verdade‖18

. É todo um postulado para a interpretação de uma filosofia da

cultura como realidade do porvir.

Se São Boaventura foi definido como ―o segundo príncipe da Esco-

lástica‖, Duns Scotus é considerado como o seu aperfeiçoador e o repre-

sentante mais qualificado da escola franciscana19

. Esperemos que este

VIII Centenário da morte do Doutor Sutil e Mariano constitua um forte

impulso aos centros franciscanos de estudo, para que a sua mensagem seja

ainda válida para o futuro. Se João Paulo II, em 1980, em seu discurso na

catedral de Colônia o definiu ―torre espiritual da fé‖, isto deve constituir

para os franciscanos um convite a descobrir em Scotus um pensamento

fecundo para o diálogo com a cultura do nosso tempo.

Roma, 8 de novembro de 2008

Festa do Beato João Duns Scotus

CONFERÊNCIA DOS MINISTROS GERAIS

DA PRIMEIRA ORDEM FRANCISCANA E DA TOR

Fr. José Rodríguez Carballo, OFM

Fr. Marco Tasca, OFMConv

Fr. Mauro Jöhri, OFMCap

Fr. Michael Higgins, TOR

–––––––– 18

Ordinatio IV, d. 1, q.3, n.8 (ed. Vivès XVI, 136). 19

Cf. Paolo VI in Alma parens; cf. Balic, K. ―San Bonaventura alter

scholasticorum princeps e G. Duns Scoto eius perfector‖, em São Boaventura, mestre de

vida franciscana e sabedoria cristã. Atos do Congresso Internacional para o VII

Centenário de São Boaventura de Bagnoregio, Roma, 19-26 set. 1974 (Pontifícia

Faculdade São Boaventura, Roma 1976 I, 429-446).