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1 CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA 37 Editorial Franciscana BRAGA - 2009

CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · serve como ponto de referência para a divisão do texto em parágrafos e capítulos. Cf. outras edições: Cronica Fratris ... Parma, nasci

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CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA

37

Editorial Franciscana BRAGA - 2009

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Ficha Técnica

Coordenador:

Fr. José António Correia Pereira, ofm

Editorial Franciscana

Apt. 1217

4711-856 BRAGA

Tel. 253 253 490 / Fax 253 619 735

E-mail: [email protected]

Edição on-line no site:

www.editorialfranciscana.org

Capa:

Desenho de Fr. José Morais, ofm

Edição:

Editorial Franciscana

Propriedade:

Província Portuguesa da Ordem Franciscana

Depósito Legal: 14549/94

I. S. B. N.: 972-9190-46-1

Caderno 37- 2009

Cada número dos Cadernos é vendido avulso

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Índice

I — Estudos

1. Fr. Salimbene de Adam de Parma

— Crónica de Salimbene de Adam .................................................... 5

2. Fr. Martín Carbajo Núñez, ofm

— Actualidade de Duns Escoto na sociedade de informação .......... 53

II — Documentos

1. Discurso do Papa Bento XVI à Família Franciscana no Capítulo

Internacional das Esteiras ............................................................... 81

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I — Estudos

CRÓNICA DE SALIMBENE DE ADAM

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CRÓNICA DE SALIMBENE DE ADAM

INTRODUÇÃO

Fr. Salimbene de Adam escreveu a Crónica entre 1284-1288, já

próximo dos setenta anos. Os dados mais importantes da sua biografia,

ele mesmo os dá na sua obra: nasceu em 9 de Outubro de 1221; aos

quinze anos foi admitido por Fr. Elias à Ordem dos Frades Menores (1-

-2), no dia 4 de Fevereiro de 1238. Era conhecido por Omne Bonum

(tudo bem). Entrou para a ordem muito contra a vontade do pai, Guido

de Adam. O nome Salimbene (sobe bem) foi-lhe dado por um dos com-

panheiros de Francisco1.

A sua obra é muito extensa: uma colecção de notícias, anedotas,

reflexões morais e teológicas, muitas referências históricas e autobiográ-

ficas2. No parágrafo 5 da sua Crónica ele mesmo refere a grande quanti-

dade de crónicas que escreveu.

————— 1 Sobre os dados biográficos cf. FELD, H., Franziskus von Assisi und seine

Bewegung, Primus Verlag, Darmstadt, 1996, p. 47. 2 A tradução é feita a partir do texto publicado nas Fonti Francescane, nuova

edizione, Editrici Francescane, Pádua, 2004. O texto das Fonti segue o da Cronica

Nuova, edizione critica, a cura di Giuseppe Scalli, Bari, 1966. A edição de SCALIA

serve como ponto de referência para a divisão do texto em parágrafos e capítulos. Cf.

outras edições: Cronica Fratris Salimbene de Adam Ordinis Minorum, ed. O. HOLDER-

-EGGER (MGH SS 32), Hannover e Leipzig, 1905-1913; The Chronicle of Salimbene

de Adam, Joseph L. BAIRD, Giuseppe BAGLIRI e John Robert KANE (Medieval and

Renaissance Texts and Studies, 40),Binghamton, New York, 1986. Sobre a Crónica cf.

MARIANO D’ALATRI, La Cronaca di Salimbene. Personaggi e tematiche (Biblotheca

Seraphico-Capuccina, 35), Roma, 1988. A Crónica autografada de Salimbene conserva-

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O texto que agora é apresentado, é uma antologia dos textos mais

relacionados com história da Ordem dos Frades Menores e alguns

movimentos que marcaram a Igreja da segunda metade do século XIII3.

Embora afirme que conheceu alguns dos primeiros companheiros

de Francisco, sendo até ―íntimo amigo‖ de Fr. Bernardo de Quintavalle,

com quem viveu no convento de Siena e de quem terá ―aprendido muitas

coisas boas‖ (16), a visão que tem da fraternidade franciscana está longe

da primeira fraternidade de Francisco.

Enquanto em Giano e Eccleston, a personalidade de Francisco é

ponto de referência e presença do inconsciente colectivo, para Salimbene

a figura de Francisco é uma referência histórica que ele aborda com

alguma frieza. Mais importante que o fundador é a Ordem. A sua Cró-

nica fala duma Ordem bem estruturada e uma instituição poderosa. Dá a

ideia que os ―humildes começos‖ devem permanecer ocultos, para que se

tornem bem visíveis as ―pedras formosas e bem lavradas‖ (23) do edifí-

cio da Ordem. São muito escassas as referências a Francisco e aos pri-

meiros irmãos.

Esta visão faz com que manifeste muito pouca consideração pelos

irmãos não-clérigos e os tenha como inúteis para a Ordem4. É neste con-

texto que apresenta Fr. Elias como culpado de todos os males, sobretudo

o de ter admitido tantos irmãos leigos na Ordem, unicamente para se

servir deles como alavanca para dominar. Grande parte da sua Crónica é

um libelo acusatório contra Fr. Elias, a quem dedicou uma obra que

—————

-se na Biblioteca do Vaticano, Cod. 7260. O texto que agora publicamos não é mais

que um extracto da grande Crónica de Salimbene. 3A indicação de páginas que encontramos ao longo do texto, no fim dos

parágrafos ou nas notas, refere-se à edição de SCALIA, Bari, 1966. 4 A desvalorização dos irmãos leigos deu-se sobretudo a partir de 1247, com a

eleição de Fr. Haymon de Faversham para Ministro Geral. Formado nos Estudos de

Paris, tudo fez para dar mais visibilidade aos irmãos com formação científica. Ficou

célebre a frase do poeta franciscano Jacopone de Todi: ―Mal vedemo Parisi/che àne

destrutt’ Assisi (Laude XXXI (91), ed. F. Mancini, Bari, 1974, p. 293). Sobre o tema da

pregação e dos estudos na Ordem dos Frades Menores cf. MERLO, G. G., Francisco de

Asís – historia de los Hermanos Menores y del franciscanismo hasta los comienzos del

siglo XVI, Arantzazu, 2005, p. 169-190; VAUCHEZ, A., François d’ Assise, Fayard,

2009, p. 41.

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intitulou Liber de Prelato, onde o apresenta como exemplo de mau pre-

lado5.

A Crónica de Salimbene é um dos documentos mais importantes

do seu tempo, não só pelas informações que dá sobre a Ordem dos Fra-

des Menores, como pelos testemunhos que apresenta sobre alguns

movimentos populares e religiosos do seu tempo, nomeadamente o

movimento ―Aleluia‖.

Muitas vezes, nas abordagens anedóticas que faz dos personagens

e dos acontecimentos, ultrapassa a margem do tolerável. Apesar disso,

segundo Feld, ―ele é o historiador franciscano mais importante do século

XIII… Devemos-lhe o conhecimento de numerosas personalidades do

seu tempo. Se não tivéssemos a sua Crónica, a imagem que temos da

Idade Média seria muita mais redutora‖6.

————— 5 Partes deste livro da Crónica (Incipit Liber de prelate quem feci occasione

fratris Helye ) estão inseridas neste texto a partir do nº 21. As obras mais recentes de

investigação são mais objectivas em relação à figura e obra de Fr. Elias. Cf. FELD, op.

cit p. 353-384; MERLO op.cit., p. 153-169; VAUCHEZ, op.cit., p. 217-269 6 FELD H., op. cit, p. 476.

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TEXTO

A origem7

1. No ano do Senhor de 1221, a 6 de Agosto, morreu o bem-

-aventurado Domingos. E eu, frei Salimbene de Adam, da cidade de

Parma, nasci nesse mesmo ano, no mês de Outubro, no dia 9, festa de

São Dionísio e de São Donino8. O senhor Baliano de Sidónia, grande

barão de França, que viera do ultramar para se encontrar com o impera-

dor Frederico II, foi meu padrinho de baptismo, no baptistério de Parma,

que ficava perto da minha casa, como diziam os meus pais. Disso se

lembrava e mo confirmava também frei André, do ultramar, da cidade de

Acre, irmão menor, que estava com o dito senhor e vivia na sua casa e

era seu companheiro de viagem. (p. 47)9.

O ano do grande terramoto de Bréscia

2. Nesse mesmo ano (1222), no dia de Natal do Senhor, houve um

enormíssimo terramoto na cidade de Reggio, enquanto pregava na cate-

dral de Santa Maria o bispo Nicolau de Reggio. Este terramoto abrangeu

toda a Lombardia e Toscana, mas ficou a ser chamado de Bréscia por ter

sido aí o seu epicentro e os habitantes viverem em tendas fora da cidade

para evitar que os edifícios lhes caíssem em cima… Minha mãe costu-

mava lembrar-me que durante esse terramoto eu era ainda uma criança

de berço, e que tinha tomado nos braços as minhas duas irmãs (ainda

pequenas) e, abandonando-me no berço, se refugiou na casa dos pais. Na

realidade, temia que o baptistério lhe caísse em cima, uma vez que ficava

mesmo ao lado. Essa a razão porque eu não a amava bastantemente, pois

entendia que se devia ter preocupado mais comigo, que era homem. A

————— 7 Encontramos muitos dados autobiográficos no texto de Salimbene. Por ele

sabemos, por exemplo, que era parente de Inocêncio IV. 8 Por esta razão, como diz mais à frente, desejou chamar-se Fr. Dionisio (16).

9 A presença do Frades Menores na Terra Santa remonta ao tempo de S.

Francisco. Durante alguns séculos eles foram os únicos cristãos a viver na Terra Santa.

Fr. André era um dos frades que tinha pertencido à comunidade de Acre.

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isso respondia ela que era mais fácil transportar as minhas irmãs, que

eram maiorzinhas (pp. 47-48)10.

A sua entrada na Ordem11

3. O terceiro filho (de Guido de Adam) fui eu, frei Salimbene.

Quando cheguei à encruzilhada da virtude e do vício (psycthagoricae

litterae), ou seja, aos quinze anos, entrei na Ordem dos irmãos menores,

na qual vivi muitos anos como sacerdote e pregador, residi em muitas

províncias, vi muitas coisas e aprendi muitas outras. (p.53).

… Quem me recebeu à Ordem foi frei Elias, quando ia de viagem

para Cremona ao encontro do imperador, como enviado do papa Gregó-

rio IX, no ano de 1238.

… Então o meu pai dirigiu-se a Assis, onde estava frei Elias, e

entregou ao ministro geral a carta do imperador, que começava assim:

―Para mitigar as penas do senhor Guido de Adam…‖. Frei Iluminado12,

que era então secretário de frei Elias e transcrevia as cartas mais belas

que eram enviadas ao ministro geral pelos príncipes do mundo e as vol-

tava a colocar numa pasta sua, mostrou-ma mais tarde, quando passei a

viver com ele no convento de Sena. Frei Iluminado chegou a ser depois

ministro da província de São Francisco, e posteriormente bispo de Assis,

onde acabou os seus dias. (p. 54).

————— 10

Sobre o terramoto, cf. Eccleston (39). Segundo as Crónicas locais, o terramoto

foi em 25 de Novembro de 1222 e durou quarenta dias. A tradição recorda uma carta de

S. Francisco aos habitantes de Bolonha, anunciando este terramoto. A carta, se existiu,

perdeu-se. Cf. Escritos – Francisco e Clara, Ed. Franciscana, Braga, 2001, p.113. 11

É no tratado sobre o prelado (Liber Prelato) que descreve a sua entrada na

Ordem, desde o noviciado até se retirar para a província emiliana, onde escreveu a sua

Crónica. Ao longo da vida contactou com alguns dos primeiros companheiros de S.

Francisco, como Fr. Bernardo de Quintavalle e irmãos célebres, como Fr. João de

Parma, Fr. Hugo de Digne, Fr. Gerardo de Módena e muitos outros que são referidos no

texto completo. 12

Tudo indica que seja Fr. Iluminado de Rieti, que acompanhou S. Francisco à

Terra Santa e que Boaventura descreve como ―… um irmão de facto iluminado no

sentido de inteligente, e também corajoso… (LM 9. 8,1); Cf. TC 1; LM 13. 4,3). As

abreviaturas dos textos das Fontes Franciscanas, referem-se a Fontes Franciscanas I, S.

Francisco de Assis, Escritos, Biografias, Documentos, 3ª ed. Ed. Franciscana, Braga,

2005.

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O ofício da pregação

4. Um dia, quando o ministro geral, frei João de Parma13, se encon-

trava completamente só, abeirei-me dele. Mas, subitamente, chegou

também o meu companheiro, que era de Parma e se chamava frei Gio-

vannino de Ollis e disse ao ministro: ―Pai, faz com que eu e frei Salim-

bene tenhamos a auréola‖. Frei João de Parma, com um rosto alegre,

perguntou ao meu companheiro: ―E como posso fazer com que tenham a

auréola?‖. Frei Giovannino respondeu: ―Dando-nos o ofício de pregar‖.

Então disse frei João, ministro geral: ―Na verdade, mesmo que ambos

fossem meus irmãos carnais, de nenhum modo a conseguiríeis senão por

meio de um exame‖. Mas eu repliquei ao meu companheiro: ―Procura-a

tu, por tua conta, que eu já recebi o ano passado o ofício de pregar das

mãos do papa Inocêncio IV, em Lião. Porque havia de a ter agora da

parte de frei Giovannino de São Lázaro? Basta que me tenha sido conce-

dido uma vez por quem tinha poder‖ (pp.432-433).

… Então o meu companheiro, frei Giovannino de Ollis, respondeu-

-me: ―Preferia tê-la do ministro geral que da parte de qualquer Papa; e se

for necessário que passemos pela espada do exame, que nos examine frei

Hugo‖. Falava do grande frei Hugo14, provincial, que se encontrava então

em Arles por motivo da chegada do ministro geral, de quem era muitís-

simo amigo.

Respondeu frei João: ―Não quero que os examine frei Hugo, por-

que é amigo vosso e tratar-vos-ia com benevolência. Chamem o leitor e

o repetidor deste convento‖. Uma vez presentes, o ministro geral disse:

―Levem-nos separadamente aos dois e examinem-nos no respeitante

apenas ao ofício de pregadores, e se forem dignos de o exercer, digam-

-mo‖. E assim se fez. A mim foi-me conferido, mas não a ele, pois foi

achado incompetente. Então o geral disse-lhe: ―Quem é reprovado não é

aceite. Sê sábio, meu filho, e alegrarás o meu coração, e, assim, poderei

————— 13

Fr. João de Parma foi eleito Ministro Geral em 1247. 14

A figura de Fr. Hugo de Digne é apresentada mais á frente (45-47). Cf. 2C

120, nota 192.

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responder a quem me ultrajar” (Pr 27,11). Com efeito, diz o Eclesiás-

tico, 18,19 : Antes de falar, procura instruir-te”15.

O escritor16

5. Como escrevi nesta Crónica, e numa segunda, e numa terceira, e

numa quarta, e no tratado que redigi sobre Eliseu (p.427) … Como disse

na outra Crónica, em que exarei os doze delitos do imperador Frederico

(p. 294).

Ao escrever as várias crónicas usei um estilo simples e inteligível,

de maneira que a minha sobrinha, para quem escrevia, pudesse entender

o que lia. Não me preocupei sequer com o ornamento das palavras, mas

tão somente em escrever a história segundo a verdade (p.270).

Lê a outra Crónica que começa assim: ―Octavianus Caesar

Augustus, etc.‖, que escrevi no convento de Ferrara, no ano em que Luís,

rei de França, foi feito prisioneiro em terras do ultramar, isto é, em 1250

(p. 311). Estamos agora no ano de 1284 e ainda não deixei de trabalhar

em volta de muitas outras crónicas que, segundo julgo, são óptimas, e

nas quais suprimi coisas supérfluas ou falsas, ou contraditórias e certos

abusos (pp. 311-312).

…No ano de 1259, vivendo eu em Borgo San Donnino, compus e

escrevi um outro Livro dos tédios, à imitação de Patecchio (p. 674).

————— 15

Estas páginas sobre o seu exame para pregador dão-nos conta de um momento

importante na história da Ordem dos Frades Menores relacionada com os estudos e com

o compromisso cada vez mais relevante na evangelização. Cf. nota 4. 16

Temos aqui o índice bibliográfico das obras de Salimbene. De todas elas, só

conhecemos esta Crónica.

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II

SÃO FRANCISCO DE ASSIS17

Síntese litúrgica da vida de São Francisco

6. No ano de 1226, 4 de Outubro, sábado, ao entardecer18, o bem-

-aventurado Francisco, fundador e guia da Ordem dos irmãos menores,

passou deste mundo tenebroso para o reino celeste, e foi sepultado num

domingo, na cidade de Assis, adornado com as chagas de Jesus Cristo.

Tinham-se completado já 20 anos sobre a sua conversão. De facto, dera

início à sua nova vida em 1207, quando era papa Inocêncio III. Dele se

canta:

―Coepit sub Innocentio – cursumque sub Honorio

Perfecit gloriosum. – Succedens his Gregorius

Magnificavit amplius – miraculis famosum‖;

(Começou sob Inocêncio e chegou ao fim do seu glorioso caminho

sob Honório III. Sucedeu-lhe o papa Gregório IX, que o exaltou no

registo dos santos, agora famoso por tantos milagres) (p.49).

São Francisco e os animais

7. Vi na minha Ordem19 alguns irmãos doutos, letrados e de grande

santidade perderem-se atrás de coisas fúteis, a ponto de serem julgados

como homens levianos pelos demais; ou seja, entretinham-se com ligei-

reza a palrar com ratinhos, cachorrinhos e passarinhos; mas não da

maneira como o bem-aventurado Francisco falava e se entretinha com o

faisão e a cigarra, rejubilando no Senhor (p.213).

————— 17

Salimbene limita-se a alguns dados cronológicos sobre S. Francisco. A figura

carismática de Francisco fica na penumbra. Parece que mais importante que o fundador

é a Ordem por ele fundada. 18

Salimbene conta os dias de vésperas a vésperas. S. Francisco morreu no dia 3

de Outubro ao fim da tarde, depois de vésperas. Cf. 1C 109-110; 2C 217;TC 68, AP 46. 19

Partindo de um discurso moralizante, recorda um aspecto característico da

vida de S. Francisco. Cf. 1C 58-60.

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14

A função dos demónios

8. A este propósito lê-se que Francisco disse a seu companheiro, na

noite em que foi açoitado pelos demónios no palácio de um cardeal: ―Os

demónios são os verdugos de nosso Senhor, encarregados de castigar os

homens. Penso, na verdade, que Deus permitiu aos seus verdugos lança-

rem-se sobre nós, porque só o facto de permanecermos no palácio dos

grandes não constitui bom exemplo para ninguém‖20 (p. 381).

O Natal em Greccio

9. No convento de Greccio, onde o bem-aventurado Francisco, na

festa da Natividade do Senhor, cantou o Evangelho e fez a representação

ao vivo do menino em Belém, com o presépio, o feno e o menino21 (p.

442); o episódio é amplamente narrado na sua legenda (p. 451).

Um homem crucificado descido da cruz

10. Creio com plena certeza que, assim como o filho de Deus quis

ter um amigo muito especial para o poder fazer igual a si (e é o bem-

-aventurado Francisco), da mesma forma fez o diabo com Ezelino.

A propósito do bem-aventurado Francisco, diz-se que Deus deu a

um cinco talentos (Mt 25,15). De facto, não houve ninguém no mundo

comparável a Francisco, em quem Cristo imprimiu as cinco chagas para

que fosse em tudo semelhante a ele.

Contou-me frei Leão, que era seu companheiro e estava presente,

que quando estavam a lavar o seu corpo para a sepultura, parecia na ver-

dade um crucificado baixado da cruz22. Por isso se podem aplicar ao

bem-aventurado Francisco as palavras do Apocalipse,1: Vi alguém

semelhante a um filho de homem (Ap 1,13). Omito dizer aqui em que é

————— 20

O texto refere-se a 2C 119-120, embora com palavras um pouco diferentes. 21

Mais um episódio da vida de S. Francisco que Salimbene recorda sem

qualquer comentário. Cf. 1C 84-87; LM 10. 7. 22

Também a figura de Fr. Leão, um dos irmãos mais chegados a S. Francisco,

não lhe merece qualquer comentário. Cf. 1C 112, 9 sobre os sinais da Cruz impressos

no corpo de Francisco.

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15

que foi semelhante a Cristo, pois já o descrevi noutra parte (pp. 281-

-282)23.

Visita ao Alverne24

11. O ermitério do Alverne encontra-se na Toscana, na parte mon-

tanhosa da diocese de Arezzo. Foi aí que o bem-aventurado Francisco

teve a visão do Serafim que lhe imprimiu as chagas, à semelhança de

nosso Senhor Jesus Cristo. Passava eu outra vez por esse lugar, regres-

sando de Assis, onde tinha ido em peregrinação… Reparei que lá em

cima, quando os irmãos fazem a comemoração de São Francisco, rezam

sempre, em Matinas, a antífona ―O martyr desiderio‖ e, em Vésperas,

essa outra, ―Coelorum candor‖, porque nestas duas antífonas se men-

ciona a aparição do Serafim. Quer no começo, quer no fim destas duas

antífonas, os irmãos ajoelham-se sempre (pp. 808-809).

A canonização25

12. No ano de 1228, no dia 16 de Julho, o papa Gregório inscreveu

no catálogo dos Santos e canonizou o bem-aventurado Francisco. O

mesmo papa canonizou a bem-aventurada Isabel, filha do rei da Hungria

e esposa do conde da Turíngia, a qual, entre outros inúmeros milagres,

ressuscitou 16 mortos e deu vista a um cego de nascença. Ainda hoje se

vê brotar do seu corpo uma espécie de óleo. Esta santa, depois da morte

do marido, viveu sob a obediência dos irmãos menores e sempre lhes foi

muito dedicada (pp. 50-51)26.

————— 23

No nº 23 volta a fazer algumas referências a S. Francisco 24

Sobre os Estigmas cf. 1C 94-95; 2C 135-138; 3C 2; LM 13, 3-4. 25

Sobre a canonização de S. Francisco por Gregório IX Cf. 1C 125-126; 2C

220ª; LM 15. 1-6; Legenda da Úmbria (LU 9-10) em Cadernos de Espiritualidade

Franciscana nº 23; Vida de S. Francisco, Julião de Espira, 75 em Cadernos de

Espiritualidade Franciscana, nº 35. 26

Sobre Santa Isabel da Hungria, cf. Crónica de Jordão de Giano (JG 25) em

Cadernos de Espiritualidade Franciscana nº 34.

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16

Trasladação27

13. No ano do Senhor de 1230, os irmãos menores celebraram o

Capítulo geral em Assis. No dia 25 de Maio fez-se a trasladação do

corpo do bem-aventurado Francisco. Nesse dia, frei Jacob de Iseo obteve

a cura completa das chagas da virilha e dos genitais. E Deus, através do

seu servo e amigo Francisco, operou muitos milagres dignos de serem

recordados, mas que poderão ser lidos na sua legenda (p. 96).

O ofício litúrgico

14. Este papa, Gregório, compôs em honra do bem-aventurado

Francisco o hino ―proles de coelo prodiit‖, o responsório ―De pauperta-

tis horreo‖, a prosa ―Caput draconis ultimum”, uma outra prosa sobre a

paixão de Cristo, ―Flete fideles animae” e, a pedido dos irmãos, desig-

nou como cardeal protector o futuro Alexandre IV. Este papa Alexandre

canonizou santa Clara e compôs os hinos e orações para o seu ofício28.

Depois, o cardeal Tomás de Cápua compôs em honra do bem-aventurado

Francisco o hino ―In coelesti collegio‖, o outro ―Decus morum‖ e o res-

ponsório ―Carnis spicam‖; compôs também a sequência em honra da

bem-aventurada Virgem, que começa ―Virgo parens gaudeat‖, mas ape-

nas o texto, ao passo que o canto é obra de frei Henrique Pisano, a seu

pedido, e o contraponto fê-lo frei Vita de Lucca, frade menor, meu pri-

meiro custódio e mestre de canto, o segundo o meu mestre de música

(p.554)29.

Os hagiógrafos de São Francisco

15. No ano de 1244 morreu frei Haymon, inglês, ministro geral da

Ordem dos irmãos menores e foi eleito para lhe suceder frei Crescêncio,

————— 27

Sobre a Trasladação cf. LM 15. 8; LU 11; Louvores de S. Francisco de

Bernardo Besse (BB 8, 21.) em Cadernos de Espiritualidade Franciscana nº 32; Julião

de Espira, op. cit. Nº76. 28

Sobre a Canonização de Santa Clara cf. FF II, Bula de Canonização (BLC);

Legenda de Santa Clara (LC) 62. 29

Ao longo da Crónica, Salimbene faz muitas referências aos irmãos Henrique

Pisano e Vita de Lucca, cantores e compositores (p 262-267).

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da Marca de Ancona, que era já um velho. Este ordenou a frei Tomás de

Celano, autor da primeira Legenda de São Francisco, que escrevesse uma

segunda, porque estava de posse de muitas notícias que não tinham sido

recolhidas na primeira. E frei Tomás escreveu um belíssimo livro sobre

os milagres e a vida do bem-aventurado Francisco que titulou de

―Memoriale beati Francisci in desiderio animae”30.

Depois, frei Boaventura, ministro geral da Ordem, redigiu uma só

obra, esplendidamente ordenada31

. Mas faltam ainda muitas coisas que

ficaram por escrever. Na verdade, o Senhor continua a operar milagres

por meio do seu servo Francisco em várias partes do mundo.

Frei Crescêncio foi convocado pelo papa Inocêncio IV para o Con-

cílio que havia de depor Frederico, mediante letras especiais que eu pró-

prio vi; mas desculpou-se com a avançada idade e enviou em seu lugar

frei João de Parma, homem santo e culto, que lhe sucedeu depois no

governo da Ordem (p.254).

Os companheiros de São Francisco e os demais irmãos da pri-

meira geração

16. Enquanto eu atravessava Marca de Ancona para me dirigir à

Toscana, aonde fora destinado, ao passar por Città di Castello encontrei

num ermitério um irmão nobre, já frade há muito tempo, cheio de dias e

de méritos, que tivera no mundo quatro filhos cavaleiros. Este foi o

último irmão recebido na Ordem por São Francisco e por ele vestido,

como o próprio me confessou32. Ao saber que me chamava Ognibene,

surpreendeu-se e disse-me: ―Filho, ninguém é bom senão Deus. De hoje

em diante o teu nome será frei Salimbene, porque fizeste uma boa subida

————— 30

Foi uma decisão tomada no Capítulo geral de Génova de 1244. Assim

apareceu a Vita Secunda de Celano, composta com os dados recolhidos por vários

irmãos. 31

Trata-se da Legenda Maior de S. Boaventura, aprovada no Capítulo Geral de

Pisa em Maio de 1263. 32

Infelizmente, não se conhece o nome deste irmão.

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ao entrar numa religião santa33. E eu enchi-me de alegria, por saber das

boas razões que me tinha dado e por me ver assinalado com o nome de

um homem tão santo. No entanto, não me foi dado o nome que desejava:

na verdade, teria preferido chamar-me Dionísio, quer por reverência ao

grande doutor que foi discípulo do apóstolo Paulo, quer sobretudo por ter

nascido no dia da sua festa.

Desta maneira conheci o último irmão que Francisco recebera na

Ordem, depois do qual não recebeu nem deu o hábito a nenhum outro

mais.

Vi também o primeiro, a saber frei Bernardo de Quintaval34, com

quem vivi no convento de Sena durante todo um Inverno; e foi para mim

um amigo íntimo, além de me ter contado, a mim e aos demais jovens,

muitas e grandes obras de Francisco. E muitas outras coisas boas ouvi e

aprendi dele. (pp. 53-54).

No ano de 1231, dia 14 de Junho, sexta-feira, o beatíssimo padre

frei António, oriundo das Espanhas, morreu e passou felizmente às

moradas celestes. Aconteceu na cidade de Pádua, onde, por seu intermé-

dio, o Altíssimo tinha exaltado o seu nome, numa pequena cela do con-

vento dos irmãos. Era da Ordem dos irmãos menores e companheiro de

São Francisco. Escreverei sobre ele mais extensa e completamente, se

me sobrar tempo de vida35 (p.97)… Bem disse frei Gil36 perusino (assim

chamado não porque fosse de Perusa, mas porque aí viveu muito tempo

e aí morreu: homem de grandes êxtases e verdadeiramente santo, quarto

irmão da Ordem, contando também com frei Francisco). Dizia: ―Magna

gratia est non habere gratiam‖: é uma grande graça do céu não ter graça

nenhuma. Referia-se intencionalmente não às graças infusas, mas às

————— 33

Assim se explica etimologicamente o nome de Salimbene: salio (subir) in

bonum. 34

Fr. Bernardo foi o primeiro discípulo de Francisco, Cf. 1C 24; 2C 15; TC 27.

Salimbene recorda o primeiro discípulo de Francisco sem fazer nenhuma alusão aos

primeiros tempos da Ordem. Parece um assunto que não lhe interessa. Trata-se de

recordar momentos da sua própria vida. 35

Na realidade, não volta a escrever sobre Santo António, a não ser uma curta

anotação sobre a trasladação do seu corpo para a Basílica de Pádua (p.649). 36

Fr. Gil foi recebido na Ordem em 23 de Abril de 2008. Faleceu em 1262. Cf.

1C 25; TC 1, 4-5; 32; 33; AP 14. 15; LP 55. Cf. MERLO, op. cit., p. 278; VAUCHEZ, op.

cit., p.30-31.

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19

adquiridas, pois por causa delas não são poucos os que levam má vida

(p.266).

Deus não manifestou qualquer milagre na morte de frei Nicolau de

Montefeltro, porque este assim o havia pedido; o mesmo aconteceu com

o mui santo Gil de Perusa, que tinha pedido precisamente a Deus que

não realizasse nenhum milagre por seu intermédio… Este frei Gil, quarto

irmão… foi sepultado numa arca de pedra na igreja dos irmãos em

Perusa. Frei Leão, que foi um dos três companheiros particulares de São

Francisco, escreveu uma bela vida sobre ele (p. 810)37.

————— 37

Fr. Leão pertenceu ao grupo dos primeiros discípulos de Francisco. Foi ele

que Francisco escolheu para seu confidente e secretário. Com Fr. Ângelo, Fr. Rufino e

Fr. Bernardo, formavam os quatro pilares do edifício de S. Francisco. Cf. 1C 102, 3.

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20

III

A ORDEM DOS IRMÃOS MENORES

A - Prefigurações segundo o abade Joaquim

17. Nestes anos (do pontificado de Inocêncio III), apareceram duas

Ordens, uma dos irmãos menores, outra dos irmãos pregadores38.

Delas tinha já profetizado o abade Joaquim de Fiore39 interpretando

muitas figuras de grande relevo contidas tanto no Antigo como no Novo

Testamento: a do corvo e da pomba, porque um era completamente

negro e a outra de várias cores; a dos dois anjos enviados pela tardinha

para destruir Sodoma; a de Esaú e Jacob, Manassés e Efraim, Moisés e

Aarão, Caleb e Josué, os dois exploradores enviados por Josué a Jericó,

Elias e Eliseu, João Baptista e Jesus enquanto homem, os dois discípulos

de Emaús, Pedro e João, que correm juntos para o sepulcro e, juntos

também, sobem ao templo para a hora de Noa… (pp. 28-29).

18. O abade Joaquim, ao falar de Esaú e de Jacob, salientou que a

Ordem prefigurada em Esaú meteu-se com as filhas de Heth, ou seja,

————— 38

Salimbene vê a as duas Ordens mendicantes como a realização das profecias

de Joaquim de Fiore (+1202). Joaquim de Fiore professou na Ordem dos Cistercienses.

Mais tarde fundou a sua própria Ordem que foi aprovada por Clemente III em 1196.

Gregório IX, em 1234, chegou a classificar esta Ordem como um dos quatro pilares

sobre a qual descansa a Igreja. 39

A teologia da história de Joaquim de Fiore estava construída sobre a ideia da

divisão da história em três eras: a era do Pai (o Antigo testamento); a era do Filho (o

Novo Testamento); a era do Espírito que, segundo alguns adeptos, se inaugurava com

Francisco e seu movimento. A aplicação das profecias de Joaquim de Fiore à vida de S.

Francisco teve em Fr. João de Parma, Ministro geral de 1247 a 1257, um dos adeptos

mais fervorosos, como é aliás assinalado por Salimbene. Nos fins do século XIII a

visão de Jaquim de Fiore teve grande aceitação no ramo dos espirituais. As obras mais

representativas desta época são: Arbor vitae crucifixae Jesu de Ubertino de Casale

(1259-1325; Chronicon seu historia septem tribulationum Ordinis Minorum de Ângelo

Clareno (1260-1337. Também se nota a influência de Joaquim de Fiore na obra do

grande pensador e teólogo franciscano Pedro de Olivi (1248-1298). Cf. FELD, op. cit

p.48-49; 490-493; MERLO op. cit. p. 182-185. 261-308;VAUCHEZ, op. cit. p. 297.

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com as ciências mundanas, como as de Aristóteles e de outros filósofos.

E isto é, nem mais nem menos, a Ordem dos frades pregadores, também

prefigurada no corvo, pois são negros não tanto pelo pecado como pelo

hábito que vestem. Mas Jacob, homem simples, morava na tenda (Gn

25,27). Esta foi a Ordem dos irmãos menores que, no princípio, apenas

apareceu no mundo, logo se consagrou à oração e ao amor da contem-

plação40.

Não é também sem um significado misterioso tudo quanto se diz

em João (dos dois apóstolos que correm para o sepulcro): “Corriam

juntos…‖ (Jo 20,4). Isto é, as duas Ordens começaram ao mesmo tempo

e sob o mesmo papa Inocêncio III. De facto, no ano X do pontificado de

Inocêncio III, que corresponde ao ano de 1207, o bem-aventurado Fran-

cisco deu início à Ordem dos irmãos menores. E a frase que se segue:

―Corriam os dois juntamente, mas o outro discípulo antecipou-se e che-

gou primeiro ao sepulcro, mas não entrou” (Jo 20, 4,5), quer dizer que a

Ordem dos frades menores apareceu antes no mundo, no ano anterior-

mente indicado. O bem-aventurado Domingos fundou a Ordem dos

irmãos pregadores no ano 1216, no primeiro ano do pontificado de

Honório III, e viveu nela cinco anos e meio, mas a sua canonização fez-

-se esperar 12 anos; o seu corpo é tido em grande veneração em Bolonha,

onde repousa.

Por sua vez, o bem-aventurado Francisco viveu na sua Ordem 20

anos completos, e o seu corpo é tido em grande veneração em Assis,

onde está sepultado. Morreu no ano de 1226, a 4 de Outubro, num

sábado, ao entardecer, e foi sepultado num domingo. A canonização do

bem-aventurado Francisco foi levada a cabo pelo papa Gregório IX, no

dia 16 de Julho do ano de 1228, e a trasladação do seu corpo foi reali-

zada em 25 de Maio de 1230. O bem-aventurado Domingos morreu

antes, em 1221, a 6 de Agosto, sendo papa Honório III.

Diz ainda o abade Joaquim, a propósito destas duas Ordens, que

tinham sido prefiguradas em Bernabé e Paulo, como também nos dois

testemunhos do capítulo XI do Apocalipse. E muitas outras coisas pare-

cidas (pp. 29-30).

————— 40

Seguindo o mesmo esquema de Joaquim de Fiore, compara a Ordem dos

Frades Menores com Jacob, por isso mais dada à oração e contemplação, ao contrário

da Ordem dos Pregadores.

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19. Ambas as Ordens, a saber, a dos irmãos menores e a dos pre-

gadores, que levam uma vida santa e estão na posse da doutrina, estão

destinadas a transportar consigo a iniquidade que pesa sobre o santuário,

como diz o Senhor no livro dos Números, 18: Tu, os teus flihos e a casa

de teu pai, sereis responsáveis pelos delitos cometidos contra o santuá-

rio…(Nm 18, 1-3).

Como já aqui dissemos, é claro que ambas as Ordens devem ter

serventes que não se equiparem aos clérigos41. Se lermos atentamente os

versículos que se seguem (Nm 18, 4-7) depreenderemos que Gerardino

Segalello, com os seus Apóstolos, não se deve intrometer no ofício de

ambas as Ordens, porque são propriamente estas duas Ordens as prefigu-

radas por Jeremias com os nomes de pescadores e caçadores, como

luminosamente explicou o abade Joaquim42.

Com efeito, diz o Senhor pela boca de Jeremias, 16: Vou mandar

pescadores em grande número e eles os pescarão. Mandarei depois

numerosos caçadores, que os caçarão por montanhas e colinas… (Jr

16,16)

Deixando de lado a interpretação do abade Joaquim, que já não

leio há muitos anos43, parece-me que esta última frase, em que se fala dos

caçadores, é mais apropriada à Ordem de São Domingos que à de São

Francisco; não só porque essa Ordem foi prefigurada em Esaú, que foi

caçador e tomou por mulher a uma das filhas de Heth, ou seja, as ciên-

cias seculares – como diz Joaquim – mas também porque saiu mais para

o exterior (das cidades) à caça das almas, embora também a outra Ordem

————— 41

Esta frase mostra bem o conceito que Salimbene tinha da fraternidade. A sua

maneira de pensar estava longe do espírito de fraternidade dos tempos de S. Francisco e

do espírito da Regra. Para Salimbene os irmãos não-clérigos são serventes dos outros

irmãos, o que contraria o espírito genuíno de S. Francisco. 42

Gerardo de Segallelo foi o fundador da Ordem dos Apostólicos que Salimbene

critica asperamente, considerando que não têm alguma utilidade (non laborant ut

rustici, non pugnant ut milites, non evangelizant ut clerici), ao contrário dos Frades

Menores e dos Dominicanos (Salimbene p. 369-428). Cf. MERLO, op. cit., p. 206-208. 43

Alguém um dia apelidou Salimbene de joaquimita, como mais à frente se

refere, e ele respondeu: ―Dizes a verdade. Mas depois da morte de Frederico, que foi

imperador, já depois do ano de 1260 (o ano de 1260 seria na perspectiva escatológica

de joaquimita o início da terceira época histórica que começava depois de passar o anti-

-Cristo, que era o próprio imperador) abandonei totalmente aquela doutrina, e só

acredito no que vejo‖ (p. 441).

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tenha feito a mesma coisa, especialmente nas regiões ultramontanas. De

facto, em Itália, (os irmãos menores) desculparam-se de não saírem das

cidades dizendo que os cavaleiros, os poderosos e os nobres estão nas

cidades, ao passo que é nas regiões e nas aldeias que estão os ermitérios,

onde habitam os irmãos, e bastam para as necessidades dos seculares

(pp. 419-420).

20. Na sua exposição sobre o livro de Jeremias, o abade Joaquim

diz dos irmãos menores e dos pregadores: ―Ambas as Ordens nasceram

na Igreja com simplicidade e humildade, mas com o correr do tempo

censuraram com dureza e acusaram a prostituta de Babilónia‖… E diz

ainda, a seu respeito: ―Parece-me que uma delas apanha indistintamente

os cachos da terra, incorporando na Igreja clérigos e leigos, enquanto a

outra escolhe apenas as primícias dos clérigos‖ (p.933).

B - Origem e transformação institucional da Ordem

Abusos e desmandos imputados a Frei Elias.

21. Começa o Livro do prelado, que compus a propósito de frei

Elias, e contém muitas coisas boas e úteis44.

No ano de 1238, indicção XI, eu, frei Salimbene de Adam, da

cidade de Parma, entrei na Ordem dos irmãos menores. Era o dia 4 de

Fevereiro, festa de São Gilberto. Fui aceite na vigília da festa de santa

Ágata, na mesma cidade e pelo mesmo ministro geral, frei Elias.

Estava este de viagem para Cremona, como emissário do papa

Gregório IX junto do imperador, por ser amigo particular de ambos. Era

um embaixador deveras oportuno, muito embora, como diz São

Gregório, ― o ânimo de quem já está irado se torne pior quando lhe é

enviada uma pessoa que, ao discursar, desagrada aos demais‖. Estava

————— 44

Refere-se a um tratado inserido na Crónica, assim definido por Salimbene:

―Todo este tratado, que diz respeito a Fr. Elias, se pode intitular Liber Prelato. Nele são

enumeradas as culpas de Fr. Elias e dos maus prelados e do que ocorreu com os bons

prelados, uma vez que, postas umas ao lado das outras, as atitudes contrárias se

eliminam mutuamente‖ (p. 230). Na edição de Scalia, vai da página 136 a 239.

Recolhemos uma grande quantidade de extractos, uma vez que se trata de

acontecimentos marcantes da história da Ordem dos Frades Menores.

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também presente frei Gerardo de Módena45, que fez de intermediário

para que eu fosse recebido, e foi escutado.

O podestà de Parma, Gerardo de Correggio, chamado de Denti por

ter dentes grossos, veio em pessoa com alguns cavaleiros ao convento

dos irmãos para visitar frei Elias. Estava este na sala onde comem os

hóspedes, sentado num leito com almofadas, uma grande lareira à sua

frente e, na cabeça, um gorro arménio. Nem sequer se levantou ou se

mexeu quando o podestà entrou e o saudou, como vi com os meus

próprios olhos. Isto foi considerado por todos uma grande ofensa…

(p.136).

22. O pai de frei Elias era de Castel de’ Britti, diocese de Bolonha;

a mãe, de Assis. Antes de ser frade, chamava-se Bombarone; confeccio-

nava colchões e ensinava os meninos de Assis a ler o saltério. Ao entrar

na Ordem dos irmãos menores tomou o nome de Elias, e foi duas vezes

ministro geral. Gozava dos favores do imperador e do Papa. Mas depois

o Senhor humilhou-o, segundo a palavra da Escritura: A este ele abaixa,

a outro eleva (Sl 74,8). E isto aconteceu no ano seguinte, como diremos

adiante, quando foi dispensado do cargo no Capítulo geral celebrado na

presença do papa Gregório IX46. Bem o merecia, aliás, devido às muitas

faltas que cometeu. Mas comecemos pela vilania de que já falámos (pp.

136-139). É esta a primeira imputação.

… Frei Elias tinha o costume de falar por circunlóquios. Quando o

podestà lhe perguntou para onde se dirigia e que assuntos lá o levavam,

respondeu que se sentia atraído e impelido ao mesmo tempo: atraído

pelo imperador e impelido pelo Papa que o enviava47. O que equivalia a

————— 45

Fr. Gerardo de Módena foi guardião de Rieti. Cf. Lp 29; EP 111. Era um dos

animadores do movimento dos Aleluia e fez parte do grupo de irmãos que o Capítulo

Geral de 1230 de Assis mandou a Gregório IX, pedindo que se pronunciasse sobre a

validade jurídica do Testamento. A solução foi dada pelo Papa com a Bula Quo

elongati. Cf. MERLO, op. cit. P. 119. 132. 157; VAUCHEZ, op. cit., 272-273. 46

Foi no capítulo de Roma de 1239 que se elegeu Fr. Alberto de Pisa para

Ministro Geral. 47

Tratava-se do imperador Frederico II de Hohenstaufen, eleito imperador dos

alemães em 1211. Por herança da família, reinava também na Itália do norte e na

Sicília. Em 1228 invadiu os territórios pontifícios, obrigando Gregório IX a sair de

Roma e refugiar-se em Rieti. Só regressou a Roma em 1230. Cf. 1C 122. Ao fazer-se

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dizer que ia de um amigo a outro. A resposta foi considerada muito sábia

pelos ouvintes (p.140).

Aceitação de pessoas inúteis

23. A segunda imputação feita a frei Elias foi ter admitido à Ordem

muitas pessoas inúteis. Eu vivi dois anos no convento de Sena e havia ali

25 irmãos leigos; estive em Pisa 4 anos e havia lá uns 30. Mas talvez o

Senhor tenha querido isto por muitas razões48.

Antes de mais, porque quando se edificam palácios, igrejas ou

outras construções, colocam-se nos fundamentos pedras por polir;

depois, quando os fundamentos começam a aflorar da terra, dispõem-se

pedras talhadas e belas para dar esplendor ao edifício. Bem se aplica à

Ordem de São Francisco tudo o que o Senhor promete à sua Igreja mili-

tante e triunfante, segundo diz Isaías no capítulo 54: Infeliz, sacudida

pela tempestade, desconsolada: eis que te vou edificar sobre uma pedra

de jaspe, sobre alicerces de safira. Farei as tuas ameias de rubis, as

tuas portas de cristal e toda uma muralha de pedras preciosas. Todos os

teus filhos serão instruídos pelo Senhor e gozarão de uma grande paz.

Serás fundada sobre a justiça (Is 54,11-14).

A segunda razão é que o bem-aventurado Francisco quis imitar e

seguir até ao fim o Filho de Deus… E o Senhor quis escolher e chamar

os pobres para que não se pudesse atribuir aos nobres e poderosos, aos

sábios e aos ricos, aquilo que ele estava para cumprir.

A terceira razão é porque assim mesmo foi revelado numa visão ao

bem-aventurado Francisco. Diz-se, com efeito, no capítulo III da sua

Legenda49: ―Certo dia, na solidão, pôs-se a repassar pela mente e a deplo-

—————

coroar rei de Jerusalém e do Santo Sepulcro, o que foi visto como profanação, foi

excomungado por Gregório IX. Para os joaquimitas era a figuração da Besta do

Apocalipse, ao contrário de Francisco que era visto como ―o novo Enoc‖. Cf. VAUCHEZ

op. cit., p. 249-251. 48

Quando Salimbene escreve a sua Crónica, já a Ordem dos Frades Menores

tinha um rosto clerical. O autor aproveita este facto para acusar Fr. Elias de ter

admitido demasiados irmãos leigos, contrariando esta evolução e atribuindo-lhe

intenções de domínio. Esta visão de Salimbene contraria a realidade da primeira

comunidade de Francisco, que não era clerical. 49

Cf. LM 3. 6

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rar com amargura os anos passados. Mas logo se sentiu cheio da alegria

do Espírito Santo, com a certeza de que os seus pecados tinham sido

completamente perdoados…‖ (pp. 141-143).

A quarta razão é que isto mesmo tinha sido revelado ao abade Joa-

quim, o qual, falando das duas Ordens futuras, diz: ―Parece-me que a

Ordem mais humilde (minor) recolhe os cachos da terra, porque introdu-

zirá e incorporará na Igreja a clérigos e leigos; a outra Ordem arrolará

sobretudo os clérigos‖.

Se alguém perguntasse: que falta cometeu frei Elias ao aceitar

irmãos leigos, se, afinal, cumpria o que tinha sido estabelecido pelo

Senhor eu responderia: O que os homens fazem deve ser julgado pela

intenção que os anima. Na realidade, a paixão de Cristo foi uma obra

boa, óptima mesmo, porque por ela fomos salvos e libertos; mas foi algo

de ímpio para os judeus que a executaram e depois não quiseram crer em

Cristo morto. Da mesma maneira, se frei Elias acolhia os leigos em

grande número com a intenção de poder dominar mais facilmente por

seu intermédio, e para que, uma vez aceites, lhe enchessem as mãos

levando-lhe dinheiro, devemos dizer claramente que era justo que, por

estes motivos, fosse deposto de ministro geral… (pp.143-144).

Má governação

24. A terceira imputação assacada a frei Elias foi ter promovido

aos cargos da Ordem pessoas que não eram dignas. Estabeleceu como

guardiães, custódios e ministros a irmãos leigos, coisa verdadeiramente

absurda, tanto mais que havia na Ordem abundância de bons clérigos…

(p.144).

A quarta imputação foi nunca se terem feito constituições gerais na

Ordem durante todo o seu governo, quando, afinal, é por meio delas que

se incentiva a observância da Regra, se vive uniformemente e se reali-

zam tantas coisas boas. Por isso se aplica bem a este facto aquela obser-

vação que se repete três vezes no livro dos Juízes, no seu último capí-

tulo: Nesse tempo não havia rei (quer dizer, não havia lei) em Israel e

cada qual fazia o que lhe apetecia (Jz 21,25); porque no tempo de três

ministros gerais não houve constituições gerais, ou seja, sob o bem-

-aventurado Francisco, João Parente e Elias, que governou duas vezes e

duas vezes prejudicou a Ordem.

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De facto, governando eles, muitos irmãos leigos usavam a tonsura

quando nem sequer sabiam escrever; alguns moravam nas cidades com-

pletamente encerrados num ermitério próximo da igreja dos irmãos e

tinham uma janelinha na parede por onde conversavam com mulheres,

embora fossem leigos inaptos para ouvir confissões e dar conselhos; …

outros estavam sozinhos nos hospitais, ou seja, sem o irmão acompa-

nhante. Vi inclusivamente quem usava sempre uma longa barba como os

arménios e os gregos. Outros tinham como cíngulo não o cordão comum,

mas uma corda berrante, feita de fios de esparto retorcidos de maneira

caprichosa, dando-se por ditoso quem conseguisse ser mais inventivo…

Seria demasiado longo recordar todas as extravagâncias e abusos que vi

cometer; talvez me faltasse tempo ou não me chegasse o papel, ou aca-

baria por dar aos leitores ocasião de dissipação e não de edificação. (pp.

144-145).

Os irmãos leigos

25. Se algum irmão leigo via um jovem a falar latim, censurava-o,

dizendo consigo mesmo: ―Miserável que sou! Queres abandonar a santa

simplicidade trocando-a pela sabedoria que este tem das sagradas Escri-

turas?‖ E respondia eu próprio a mim mesmo, desta maneira: ―A santa

rusticidade apenas aproveita a si mesma, pois tanto edifica a Igreja de

Cristo pela sua vida, quanto a prejudica se não souber resistir aos que a

destroem!‖. Na verdade, um asno desejaria que todas as coisas que vê

fossem asnos!

… Naquele tempo, os leigos tinham a precedência sobre os sacer-

dotes, e nalguns ermitérios, onde todos eram leigos, excepto um sacer-

dote ou um estudante, queriam que o sacerdote também marcasse pre-

sença na cozinha. Ora aconteceu que o turno do sacerdote calhou a um

domingo. Entrando na cozinha, fechou a porta cuidadosamente e come-

çou a cozinhar as berças da maneira que sabia. Entretanto, porém, chega-

ram uns seculares franceses que pediram insistentemente a Missa e não

havia quem lha celebrasse. Correram os irmãos a toda a pressa a bater à

porta da cozinha, insistindo para que o sacerdote a fosse celebrar. Ele,

porém, respondeu: ―Ide vós e cantai a Missa, que eu faço a cozinha que

vós não quereis fazer!‖ Deste modo, foram cobertos de vergonha, por se

verem desacreditados… Assim, merecidamente, com o correr do tempo

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foram sendo reduzidos a bem pouca coisa, chegando quase a ser proibido

aceitá-los, pelo facto de não terem sabido compreender a honra que se

lhes tributava, e porque a Ordem dos irmãos menores não tinha necessi-

dade de tão grande número de irmãos leigos…Na realidade, andavam

sempre a maquinar insídias contra nós (clérigos). Recordo que, no con-

vento de Pisa, queriam apresentar ao Capítulo esta proposta: sempre que

se aceitasse um clérigo, se aceitasse também um leigo. Mas não foram

escutados e muito menos atendidos, por sumamente inconvenientes.

Devo dizer, no entanto, que no tempo em que fui aceite, encontrei

na Ordem muitos homens de grande santidade, oração, devoção, con-

templação e vasta cultura. Porque esta única coisa fez frei Elias bem

feita: promoveu o estudo da teologia na Ordem50. Quando nela entrei,

tinha eu trinta e um anos de vida; e vi o primeiro irmão depois do bem-

-aventurado Francisco, assim como outros da primeira geração…. (pp.

145-147).

Despotismo

26. A quinta imputação foi nunca ter querido visitar pessoalmente

a Ordem, residindo sempre em Assis ou em certo convento que mandara

construir na diocese de Arezzo, um convento belíssimo, ameno e agra-

dável, que ainda hoje se chama Celle di Cortona…

A sexta foi ter amargurado e desprezado os ministros provinciais

sempre que não satisfaziam os seus compromissos, deixando de lhe

enviar tributos e donativos… Mantinha-os tão duramente sob a sua vara,

que lhes inspirava um terror semelhante à do junco quando açoitado pela

água, ou da calhandra, que toda treme quando perseguida pelo gavião.

Nem é para estranhar, de resto, porque, como se diz no livro I dos Reis,

25, ele era filho de Belial, com quem ninguém consegue falar. Efectiva-

mente, ninguém ousava dizer-lhe a verdade ou censurar-lhe a vida e as

obras perversas, excepto frei Agostinho de Recanati e frei Boaventura de

Iseo. Essa a razão porque cobria levianamente de desprezo os ministros

que eram acusados de falsidade pelos cúmplices que tinha espalhados

————— 50

O autor como que se contradiz. Por um lado condena Fr. Elias por promover

os irmãos leigos, por outro, reconhece que foi ele, também irmão leigo, a promover os

estudos.

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por todas as províncias da Ordem. Refiro-me a certos irmãos leigos,

cheios de malícia, ronhosos e obstinados… Destituía-os do cargo sem

culpa alguma e privava-os dos livros e do direito de pregar e confessar.

A alguns chegou a enviar-lhes o capuz comprido (caparão) e a mandá-los

girar de um lado para outro… Resumindo, no tempo de frei Elias os

ministros eram submetidos a estas três desgraças: eram caluniados, sub-

metidos a julgamentos violentos e injustos, e viam perturbada a justiça

nas suas províncias…

Quanto à terceira desgraça, é coisa notória, e eu próprio o vi com

os meus olhos, que Elias colocava em cada província um visitador que aí

permanecia todo um ano e percorria a província como se fosse o minis-

tro, chegando mesmo a meter-se, a seu bel-prazer, em certos conventos

com o companheiro durante 25 dias ou mesmo um mês, ou pouco

menos. E não esqueçamos, de resto, que as províncias eram então mais

pequenas do que hoje. Quem apresentasse queixa contra o seu ministro

podia fazê-lo e era ouvido por estes visitadores. E aquilo que o ministro

ordenasse para a sua província, podia o visitador anulá-lo, pô-lo de lado

ou acrescentar o que entendesse… E o que é mais grave ainda: Elias

enviava visitadores que acabavam por ser mais cobradores do que cor-

rectores, pois pressionavam as províncias e seus ministros a desembolsa-

rem tributos e dons51

… Foi recorrendo a este processo que os ministros

provinciais mandaram fundir nessa altura, a expensas suas, perto de

Assis, um sino para a igreja de São Francisco, grande, belo e sonoro, que

eu próprio vi; o qual, juntamente com os outros cinco sinos enchiam

todo o vale de admiráveis harmonias…‖52 (pp. 147-151).

Destituição de frei Elias

27. Até que, por fim, a Ordem dos irmãos menores fez chegar a sua

voz ao papa Gregório IX, porque frei Elias, na sua perversidade, subme-

tia a todos a múltiplos vexames. Escutando este clamor da Ordem,

————— 51

Fr. Elias procurava por todas as formas recolher em todas as províncias da

Ordem o dinheiro suficiente para acabar as obras da Basílica de S. Francisco. Sobre os

visitadores cf. Crónica de Giano (61-63); Eccleston (47-52). 52

Nas pp. 151-1519), recorda o ―peixe precioso‖ trazido da Hungria e a ―taça de

ouro‖ oferecida pelo rei da Hungria para colocar junto da cabeça de S. Francisco.

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destituiu-o e quis que se procedesse prontamente a uma nova eleição…

O papa Gregório destituiu-o para que não fosse ministro geral, pois era

um grande demolidor da Ordem contra a vontade dos ministros e

custódios, a quem, segundo a Regra, compete fazer a eleição (pp. 157-

-159)53.

Uma vida de bispo e de príncipe

28. A sétima imputação que lhe fizeram foi a de querer viver mag-

nificamente, entre comodidades e luxos. Tinha palafréns anafados e

robustos e andava sempre a cavalo54, que mais não fosse para ir de uma

igreja a outra, situada apenas a meia milha, indo contra o preceito da

Regra… Tinha também jovens seculares como pajens, à maneira dos

bispos. Vestidos com roupas de cores berrantes, assistiam-no e serviam-

-no em tudo. Raras vezes comia no convento com os demais irmãos, mas

no quarto, sozinho. Tinha também cozinheiro particular… e uma família

especial de 12 ou 14 irmãos que tinha consigo no convento de Celle…

Do grupo de frei Elias era um tal João, chamado de Lodi55

, irmão leigo,

duro e violento, torcionário e verdugo da pior espécie, o qual, por ordem

de Elias, dava disciplina aos irmãos sem a mínima piedade… (pp. 231-

-232).

Tentativa extrema para evitar a destituição

29. A oitava imputação feita a frei Elias foi ter querido submeter a

Ordem pela violência. Para lograr este intento, recorreu a muitos ardis, o

primeiro das quais foi o de mudar frequentemente os ministros, não

sucedesse que, criando eles demasiadas raízes, se levantassem com

————— 53

Fr. Elias foi destituído no capítulo realizado em Roma em 1239, onde foi

eleito para Ministro geral Fr. Alberto de Pisa. Cf. Giano nº 65-66; Eccleston, nº 79-82. 54

Eccleston (79-80) refere que Elias se defendeu da acusação de andar a cavalo,

alegando que estava dispensado por razões de saúde, o que foi aliás reconhecido por Fr.

Haymon, que, no entanto, o acusava de ter um palafrém para se deslocar 55

Conhecido como João de Florença. Foi ministro em Florença (1C 48, 6).

Também era conhecido como pugilista de Florença, a quem se pedia para castigar

alguns frades (1C 182). Na descrição do frade perfeito, aparece como ―Fr. João dos

Louvores‖. Foi o maior atleta entre os homens do seu tempo (EP 85).

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maior força contra ele; o segundo foi escolher como ministros os irmãos

que tinha por seus amigos; a terceira a de não celebrar Capítulos gerais

senão em forma parcial, ou seja, só com irmãos de aquém dos Alpes e

não convocando nunca os ultramontanos, com medo de ser destituído.

Quando aprouve a Deus, de quem provém todo o bem, estes e

aqueles reuniram-se e depuseram-no, de modo que se podia aplicar neste

caso aquilo de Jeremias: Clamei pelos meus amantes e eles iludiram-me

( Lm 1,19). Para que se efectuasse esta reunião de todos os ministros no

Capítulo geral para depor frei Elias, muito se esmerou frei Arnolfo56,

inglês, zelador e promotor da Ordem, que nesse tempo era penitenciário

na cúria do papa Gregório IX.

A nona imputação foi esta: tendo frei Elias sabido que se projec-

tava esta reunião dos ministros para o deporem, expediu ―obedienciais‖ a

todos os irmãos leigos mais robustos e que considerava seus amigos, nas

quais lhes pedia que tudo fizessem para não faltar ao Capítulo. Esperava,

na realidade, ter uma boa defesa nos seus cacetes. Mas frei Arnolfo veio

a saber e ordenou, com a autoridade do papa Gregório, que só se apre-

sentassem ao Capítulo geral os irmãos que tivessem o direito e o dever

com base na Regra, com companheiros idóneos e prudentes, e mandou

anular todas as obediências dirigidas aos leigos por frei Elias.

O mesmo Papa interveio no Capítulo e ouviu o parecer dos irmãos

a respeito da destituição de Elias e a eleição de frei Alberto de Pisa como

seu sucessor no generalato.

Nesse Capítulo foi redigida também uma grande quantidade de

constituições, mas bastante desordenadamente. Mais tarde, foram orde-

nadas por frei Boaventura, ministro geral, pouco acrescentando ele da

sua parte, mas explicitou em alguns pontos as penitências a aplicar.

Nesse mesmo ano houve um enormíssimo eclipse de sol, como observei

com os meus próprios olhos. (pp. 232-233).

Obstinação de frei Elias

30. A décima imputação foi não ter aceitado com humildade e

paciência a sua situação de invalidez declarada, preferindo bandear-se

em tudo com o imperador Frederico, que fora excomungado por Gregó-

————— 56

Sobre Fr. Arnolfo cf. Eccleston nº 79.

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rio IX, e cavalgando e permanecendo a seu lado juntamente com alguns

irmãos do seu grupo, com o hábito da Ordem. Isto redundou em escân-

dalo para o Papa, para a Igreja e para a Ordem, sobretudo porque o impe-

rador já estava excomungado nessa altura e assediava as cidades de

Faença e Ravena57. O miserável estava sempre no meio do exército e

apoiava o imperador com o seu favor e os seus conselhos. Foi ocasião de

escândalo até para os incultos e demais seculares; e com efeito, a plebe,

os jovens e as jovens, quando encontravam os irmãos menores nos cami-

nhos da Toscana – como eu mesmo ouvi centenas de vezes –, caçoavam

deste modo:

Hora atorno fratt´Helya,

che pres´ha la mala via.

(De volta está frei Elias,

mas, ai, que tristes voltas

que mal andadas vias!...)

Os bons irmãos andavam cheios de mortal tristeza e revolta

quando ouviam tais coisas. Parecia, na verdade, que se tinha realizado

aquele dito do Senhor: Sois o sal da terra! Ora se o sal se corromper,

com que se há-de salgar? Não serve para nada, senão para ser lançado

fora e ser pisado pelos homens (Mt 5,13).

Reagindo à provocação, o papa Gregório lançou a excomunhão

contra Elias (pp. 234-235)58

.

————— 57

Não parece correcta a informação de Salimbene. O assédio a Ravena foi de 15

a 22 de Agosto de 1249 e o de Faenza de 26 de Agosto de 1240 a 14 de Abril de 1241.

O que parece é que, por esta altura, já Elias se devia ter juntado ao imperador Frederico

II que, entretanto, tinha sido excomungado pelo Papa em 29 de Março de 1239. Elias

tornou-se um homem de confiança do imperador. Em 1243 foi enviado em missão

diplomática ao Oriente, à corte de Balduino II, e de João Vatácio. Sobre Fr. Elias, cf.

FELD, op, cit., 353-400; MERLO, op. cit., 168-169. 58

A excomunhão aconteceu por duas razões. Primeiro por visitar conventos de

religiosas, mormente S. Damião, sem pedir licença ao Ministro geral. Cf. Eccleston

(83). Esta acusação revela que Fr. Elias, mesmo depois de ser deposto de Ministro

geral, continuou a ter a confiança de Santa Clara. Na segunda carta de Clara a Inês de

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33

A undécima imputação foi a prática da alquimia… (235).

A duodécima foi que, uma vez destituído e enquanto vagabun-

deava com o Imperador, se aproximou um dia de um convento de irmãos

menores e, reunindo-os em Capítulo, começou a querer provar a sua ino-

cência e a injustiça de quantos o tinham destituído… Mas alguém lhe

respondeu com muita firmeza… Então frei Elias perguntou-lhe: ―Quem

te recebeu à Ordem?‖. E o irmão respondeu: ―Não foste tu, que abando-

naste a tua religião e vagueias pelo mundo, e por isso o povo escarnece

de ti… Segue o teu caminho, irmã mosca!‖ Ao ouvir tais coisas, Elias

calou-se e retirou-se confuso. Quem respondeu a frei Elias com esta fir-

meza foi frei Boaventura de Forli, como eu próprio ouvi de seus lábios

(pp. 235-237)59.

Recusada a reconciliação

31. A décima terceira imputação foi nunca ter querido reconciliar-

-se com a sua Ordem, antes permaneceu na sua obstinação até ao fim.

Um dia, o ministro geral, frei João de Parma, enviou até junto dele frei

Gerardo de Módena, que era um irmão dos primeiros tempos e seu

amigo íntimo, para que lhe pedisse por amor de Deus e de São Francisco,

pelo bem de sua alma e para bom exemplo de todos, que voltasse à sua

religião; e ele o trataria com toda a delicadeza e misericórdia. Mas Elias

respondeu a frei Gerardo: ―Ouvi dizer tanto bem deste venerado padre

João de Parma, que não recusarei lançar-me a seus pés confessando a

minha culpa e confiando na sua bondade. Mas quem me preocupa são os

ministros provinciais, a quem ofendi, pois bem podem enganar-me ati-

rando-me preso para um cárcere e alimentando-me com pão duro e

—————

Praga, escrita entre 1235-1238, Elias era apresentado a Santa Inês de Praga como o

único conselheiro a quem devia seguir. A segunda razão que levou à excomunhão tinha

a ver com as suas relações com o Imperador. Esteve com o imperador durante 5 anos.

Seguia-o, como contam as crónicas, em seu cavalo, vestindo o hábito de frade menor.

Cf. MERLO, op. cit., p. 169. 59

A partir de 1245 encontramos Fr. Elias em Celle de Cortona empenhado na

construção de uma igreja em honra de S. Francisco, apesar de ter sido excomungado

duas vezes, em 1240 por Gregório IX e em 1244 por Inocência IV. Só este facto

demonstra como Fr. Elias era popular entre os seus e gozou até ao fim da vida de muito

boa reputação em vários sectores da sociedade, mormente na sua cidade natal.

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pouca água (cfr. Is. 30,20). Além disso, sabendo que ofendi a Cúria

romana, estou certo de que o cardeal protector da Ordem se meteria logo

no assunto para me dar a penitência. Tão-pouco quero perder as boas

graças do Imperador, de que desfruto neste momento. Frei Gerardo

demorou-se nas Celle um dia inteiro… e uma noite… mas tudo foi em

vão. Apenas amanheceu, despediu-se, partiu com o companheiro, e con-

tou ao geral tudo quanto tinha visto e ouvido (pp. 237-238)60.

Só a Deus o juízo

32. Frei Elias não tardou a morrer61. Tinha sido excomungado pelo

papa Gregório IX. Se foi absolvido e se porventura preparou bem a alma,

ele agora o saberá… (pp. 238).

O que deixo escrito sobre frei Elias talvez tenha bastado. Era nossa

intenção tratar dos ministros gerais da Ordem de São Francisco no seu

devido lugar, mas frei Elias, que foi um deles e por quem fui recebido na

Ordem, oferecia matéria histórica demasiado abundante. Por tal motivo

quis desembaraçar-me dela já, e assim, desonerado deste encargo, pros-

seguirei mais facilmente o resto da história… (p 239).

————— 60

Ao contrário do que Salimbene pretende insinuar, Fr. Elias morreu totalmente

reconciliado com a Igreja e com a Ordem, comungando pouco antes de morrer. Cf.

Eccleston 33, onde se diz que Elias, embora tarde, se arrependeu. Em Maio de 1253 foi

feito um inquérito por Fr. Valascus, a mandado de Inocêncio IV, sobre os últimos

acontecimentos referentes a Fr. Elias. Esse inquérito conservou-se até hoje e confirma

estes dados. Cf. LEMPP, E. Frère Élie de Cortone, Étude biographique, Paris, 1901

citado em FELD, op. cit., p. 398, nota 174; MERLO, op. cit. p. 169. 61

Fr. Elias faleceu em Abril de 1253 e foi sepultado por detrás do altar-mor da

Igreja de S. Francisco de Cortona. O túmulo foi aberto várias vezes ao longo dos

séculos. A última foi em Agosto de 1966. Sujeito a análises médicas e químicas,

concluiu-se que o esqueleto é de um homem de 70-80 anos, com 1,65 metros de altura.

Isto contraria as informações tendenciosas de Salimbene, que na sua crónica chega a

insinuar que o corpo de Fr. Elias foi exumado e lançado a uma lixeira. Cf. FELD, op.

cit., p. 398.

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35

C) Atitudes da Cúria romana e do Clero

A proibição de novas Ordens

33. Em 1215, décimo oitavo do seu pontificado, Inocêncio III cele-

brou um solene Concílio, a que acorreram prelados de todo o mundo. Eu

mesmo vi o texto do discurso que o Papa pronunciou naquela ocasião

sobre este tema: Desiderio desideravi hoc Pascha, etc (Lc 22,15). Dese-

jei ansiosamente comer esta Páscoa convosco; e li atentamente todos os

decretos que foram promulgados. Um deles estabelecia que, de futuro,

não voltaria a nascer nenhuma outra Ordem mendicante62. Mas, por

negligência dos prelados, esta constituição não foi observada. Pelo con-

trário, quem quer que se lembre de enfiar um capuz e se ponha a mendi-

gar, logo se gloria de ter fundado uma nova Ordem. Sobreveio então

uma grande confusão no mundo, porque os seculares vêem-se sobrecar-

regados e não há esmolas que cheguem não só para os que se afadigam

pela palavra e pelo estudo, como para aqueles a quem o Senhor esta-

beleceu que vivam do Evangelho (1Co 9,14)… (p.31)63

.

A aprovação pontifícia

34. Estes são, pois, os pequenos de que fala o Evangelho no capí-

tulo 19 de Mateus: Foram apresentadas a Jesus umas criancinhas para

que lhes impusesse as mãos; mas os discípulos repreenderam-nas (Mt

19,13-15) (porque nos primeiros tempos alguns cardeais não viam com

————— 62

Quando se reporta ao Concílio de Lião de 1274, onde foram proibidas

algumas ordens religiosas, como os ―Saccati‖ e os Apóstolos, Salimbene recorda o

decreto de Inocêncio III: ―Para que não haja muita confusão na Igreja com a demasiada

diversidade de Ordens, proibimos firmemente a fundação de novas ordens. Por isso,

quem desejar abraçar a vida religiosa, escolha uma das Ordens já aprovadas… ― (p.

713). 63

Numa outra passagem da Crónica, defendendo Salimbene a Ordem dos Frades

Menores e a Ordem dos Pregadores, afirma que só têm direito a viver do Evangelho

aqueles que não se limitam a pedir esmola, mas se dedicam à pregação e ao estudo, tal

como acontece com os Frades Menores. Com estas palavras, Salimbene volta a mostrar

pouco apreço pelos irmãos leigos. Constatando a evolução da Ordem, não entende o

sentido da menoridade e da pobreza evangélica dos primeiros tempos da Ordem (cf.

p. 414).

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bons olhos que nascesse esta Ordem). Mas Jesus disse-lhes (pois foi

assim que o Sumo Pontífice, ou seja, Inocêncio III, falou aos cardeais:)

―Deixai as criancinhas e não as impeçais de vir a Mim, pois delas é o

reino dos céus”. Estas coisas disse o papa Inocêncio, depois de ter tido

uma visão do céu. Por graça divina, tinha visto a basílica de Latrão

prestes a cair pela sua excessiva antiguidade, e um homem pobrezinho e

desprezível tinha-a sustentado prodigiosamente para que não se desmo-

ronasse64.

O evangelista prossegue: Depois de lhes impor as mãos, foi-se

dali; porque naquela ocasião o papa Inocêncio III quis que o bem-

-aventurado Francisco e os doze companheiros que tinha levado consigo

para pedir a aprovação da sua Ordem, recebessem a tonsura, confirmou a

Regra e a Ordem e conferiu o ofício da pregação. Era o ano de 120765. A

partir de então, tanto os cardeais como os papas amaram com todas as

veras a Ordem do bem-aventurado Francisco, reconhecendo e

verificando com os próprios olhos que os irmãos menores são de grande

utilidade para a Igreja e enviados para a salvação (pp. 421-422).

Autorizados a confessar

35. Tenha-se em conta que os irmãos menores receberam do papa

Gregório IX o privilégio de poderem ouvir de confissão. Frei Boaven-

tura, quando ministro provincial, perguntou ao papa Alexandre IV se era

do parecer que os irmãos confessassem, e ele respondeu-lhe: ―Quero

mesmo que confessem. Vou contar-te o caso duma fraude horrível…

(p.591). Por isso quero firmemente que os irmãos menores, sob minha

responsabilidade e licença, ouçam as confissões dos seculares‖ (p.593)

… E muito louvavelmente agiu o papa Martinho IV quando concedeu

aos irmãos menores o óptimo privilégio de poderem pregar livremente e

ouvir as confissões, apesar de se dizer na sua Regra que ―os irmãos não

————— 64

Como Inocêncio III tinha dado aprovação oral à ―forma de vida segundo o

santo Evangelho‖ em 1209, a proibição de novas regras não se aplicava à Ordem dos

Frades Menores (1C 32-33; TC 48-49). O mesmo não aconteceu com Santa Clara que

só nas vésperas de sua morte, em 9 de Agosto de 1253, viu a sua Regra aprovada. A

visão que teve Inocêncio III (2C 16-17) conta-se a propósito da vida de S. Francisco e

de S. Domingos. Cf. Julião de Espira 21-22. 65

Não foi no ano de 1207, mas no ano de 1209. Cf. Jordão de Giano 2.

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37

preguem na diocese de um bispo quando este lho tiver proibido‖…

(pp.595-596)66.

Sobre Inocêncio IV, no começo do seu pontificado

36. O papa Inocêncio IV era um homem muito aberto, como ficou

bem patente na declaração que fez da Regra dos irmãos menores e em

tantas outras coisas67. Tinha sempre consigo um grande número de

irmãos menores e construiu para eles um convento e uma igreja de

grande beleza, em Lavagna, numa terra de sua propriedade. Queria que

ali vivessem 25 irmãos, deles cuidando no respeitante aos livros e a

todas as demais coisas necessárias. Mas os irmãos não quiseram aceitar a

oferta e o Papa entregou-a a outros religiosos (p.86).

O ofício da pregação. Disputas

37. Mas o clero continua a objectar que usurpámos o ofício da pre-

gação, cabendo-lhes a eles pregar, porque tinham obrigações para com os

súbditos e porque eram prelados. Respondendo, diremos que estavam

obrigados a fazê-lo quando não havia outros que pregassem melhor do

que eles. Mas como se tornassem indignos pela sua péssima vida e por

não possuírem a ciência necessária, o Senhor pôs nos seus lugares outros

melhores do que eles… (p.596)68.

…Mas não crêem nestas coisas aqueles cuja ambição lhes engros-

sou o coração… São os sacerdotes e os clérigos destes tempos, e não

querem que os irmãos menores e os pregadores vivam. E isto é uma

grande crueldade, sobretudo porque estes são mais úteis à Igreja do que

esses tais, que recebem as benesses e não fazem aquilo por que as rece-

bem… E nem sequer querem que vivamos das esmolas que recolhemos

com tanto esforço e rubor.

————— 66

Cf. Eccleston 72-76 67

Inocêncio IV foi papa de 1243 a 1254. Refere-se à declaração Ordinem

vestrum publicada em 14 de Novembro de 1245 para clarificar ―dúbia et obscura quae

in Regula continentur‖. 68

De maneira geral os Frades Menores eram bem aceites pelos bispos e clero.

Cf. Eccleston 30 ss.

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38

No entanto, há muitos na Ordem, entre os irmãos menores e os

pregadores, que, se fossem do clero secular, poderiam ter muito bem as

prebendas que eles têm, e bem maiores até, porque nobres, ricos, podero-

sos, letrados e sábios, poderiam perfeitamente ser presbíteros,

arciprestes, cónegos, arcediagos, bispos, arcebispos, porventura

patriarcas, cardeais e papas, como eles. Por isso deviam reconhecer que

lhes deixámos a eles todas estas coisas no mundo e andamos a mendigar

todos os dias, nem possuímos sequer as adegas e celeiros que eles têm

em abundância; e, todavia, aguentamos todas as suas fadigas: pregamos,

ouvimos as confissões, repartimos bons conselhos, úteis para a

salvação… (pp. 605-606).

As cartas de Inocêncio IV

38. Depois de os irmãos e dos pregadores terem chegado e reali-

zado tantas coisas boas, a todos manifestas, os sacerdotes e clérigos

seculares, movidos pela inveja e malevolência contra estes irmãos, apre-

sentaram queixa ao papa Inocêncio IV, pois já não podiam recolher

ofertas durante as suas missas, ―porque estas duas Ordens celebram tão

perfeitamente as suas missas, que toda a gente se volta para eles. Pelo

que pedimos que se faça justiça‖. O Papa respondeu: ―Visto que alguns

celebram de manhã cedo, outros à hora de Tércia, outros imediatamente

depois, não vejo a que hora poderiam estes celebrar as suas missas, caso

tivesse de vos atender, porque não podem celebrar depois de comer, à

hora nona ou quando têm de rezar vésperas; por isso me nego a ouvir-

-vos‖. Mas o Papa, querendo dar uma certa satisfação aos clérigos que

continuavam a molestá-lo com estas coisas e também porque, como já

ouvi, tinha concebido uma certa aversão aos frades pregadores e

esperava isentar depois os irmãos menores, escreveu cartas contra as

duas Ordens, ordenando que, pelo menos nos dias festivos, não abrissem

as suas igrejas senão depois da hora de Tércia, para não privar os

sacerdotes das paróquias das ofertas dos fiéis.

Imediatamente Deus o castigou e começou a sentir-se mal da

doença de que veio a morrer… (pp. 607-608).

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39

Junto de Inocêncio IV moribundo

39. Frei João de Parma, ministro geral, enviou para junto dele a

Hugo Capoldo de Placência, que era médico e leitor de teologia na

Ordem e vivia com o sobrinho do Papa, o senhor Ottobono, que veio a

ser o papa Adriano V, para que suplicasse ao Papa, por amor de Deus e

do bem-aventurado Francisco, por sua honra e salvação de todo o povo

cristão, que destruísse aquelas cartas. Mas não o escutou, porque Deus o

queria deixar morrer, como aconteceu. Inocêncio IV piorou a tal ponto

que não sabia dizer outra coisa senão o versículo do Salmo: O ímpeto da

tua mão destroça-me. Por causa das suas culpas, castigais o homem (Sl

11-12). E estas últimas palavras continuou a repetir até que morreu; e

ficou sobre a palha, nu e abandonado de todos, como é costume dos

Pontífices romanos quando lhes chega o último dia.

Estavam ali presentes dois irmãos alemães, que disseram ao Papa:

―Na verdade estávamos aqui nesta terra há uns quantos meses para falar

contigo sobre as nossas coisas, mas os teus porteiros tinham-nos impe-

dido de entrar para que te pudéssemos ver. Agora já não se preocupam

contigo, porque nada têm a esperar. No entanto, lavar-te-emos o corpo,

já que, como diz o Eclesiástico, no capítulo 7: ―Nem aos mortos recuses

a tua graça (Sir 7,33)

Poucos dias depois foi nomeado papa Alexandre IV69, que tinha

sido cardeal protector, governador e corrector dos irmãos menores; e

logo destruiu aquelas cartas. (pp. 608-609).

D) Algumas grandes personagens

O grande missionário

40. Quando cheguei ao primeiro convento dos irmãos depois do de

Lião, no mesmo dia (ano de 1247) chegou também frei João de Pian

Carpino, regressado dos Tártaros, para junto dos quais o tinha enviado o

papa Inocêncio IV. Frei João era um homem muito amável, espiritual,

————— 69

Foi Papa de 1254 a 1271.

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40

letrado e grande orador, perito em muitas coisas, e tinha sido ministro

provincial da Ordem70.

Mostrou-nos a taça de madeira que levava para o Papa, em cujo

fundo estava impressa, não por mão de pintores, mas por virtude dos

astros, a imagem de uma belíssima rainha. E mesmo que alguém a par-

tisse em cem bocados, em todos eles continuaria intacta a mesma ima-

gem (p. 297).

Contava ele que havia chegado até ao supremo senhor dos Tárta-

ros, após as fadigas de uma viagem interminável, entre perigos sem

número, sofrendo fome, frio, calor; e que os Tártaros se chamam verda-

deiramente ―Tattari‖, e comem carne de cavalo e bebem leite de burra.

Dizia também ter visto entre eles gentes de todas as nações, excepto

duas, e só pôde apresentar-se diante do imperador vestido de púrpura, e

que tinha sido recebido e tratado com grande cortesia e gentileza. O

imperador tinha querido saber quantos dominavam no Ocidente; e ao

saber que eram dois, o Papa e o imperador, e que todos recebiam poder

destes dois, quis saber quem era o maior. Respondeu que era o Papa, e

então apresentou-lhe as cartas do Papa. Imediatamente depois de as

mandar ler, disse que lhe entregaria cartas de resposta ao Papa.

O mesmo frei João escreveu um volumoso livro sobre os Tártaros

e sobre as maravilhas do mundo que ele mesmo tinha visto e dava a ler.

Muitas vezes o vi e escutei sempre que instavam com ele para que con-

tasse a história dos Tártaros; e quando os leitores não compreendiam

alguma coisa, ele a explicava e espraiava-se sobre ela (p. 298).

————— 70

Referindo-se a João de Pian Carpino, Giano (55-58) diz que ―era de grande

estatura e pesado‖ (55). Em 1228 foi eleito Ministro provincial da Província da Saxónia

e em 1230 foi Provincial em Espanha. Inocêncio IV enviou-o à corte de Gengis Kan.

Saiu de Lião a 16 de Abril de 1245 e no Verão de 1246 chega à corte do imperador

mongol. Esta viagem marca uma viragem na Ordem dos Frades Menores: a abertura às

missões da Ásia. Foi ele que criou as condições para o estabelecimento da primeira

diocese da Ásia, Pequim (Kambalik), em 1308, tendo como primeiro bispo Fr. João de

Montecorvino. Baseado nas observações desta viagem, escreveu a Historia

Mongolorum que constitui um documento excepcional sobre os povos da Ásia. Depois

da viagem foi nomeado arcebispo de Antivari, no Montenegro. Faleceu em 1 de Agosto

de 1252.

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41

Frei João de Parma71

41. Era de estatura mediana, a tender para o baixo, belo e bem

formado em todos os membros, são e resistente à fadiga, tanto das via-

gens como do estudo. Tinha feições angelicais, sempre gracioso e alegre.

Era generoso, cortês, caritativo, humilde, bondoso e paciente. Homem de

muita devoção e oração, clemente e compassivo, celebrava todos os dias

com tal devoção que os assistentes se sentiam cheios de graça. Pregava

com tal fervor ao clero e aos irmãos que arrancava lágrimas aos ouvintes,

como vi tantas vezes. Eloquentíssimo, jamais tropeçava nas palavras. Era

dotado de óptima ciência, pois fora antes um bom gramático e mestre de

lógica, e, na Ordem, um grande teólogo e investigador. Leu as Sentenças

em Paris e foi leitor durante muitos anos nos conventos de Bolonha e

Nápoles.

Quando passava por Roma os irmãos insistiam para que pregasse,

mesmo na presença dos cardeais, que o apreciavam como um grande

filósofo. Era um espelho e um exemplo para todos, porquanto a sua vida

era toda honestidade, santidade e pureza de costumes. Era querido por

Deus e pelos homens. Também sabia música e cantava muito bem.

Velocíssimo e muito claro ao escrever, ditava as suas cartas num estilo

elegante e sentencioso.

Foi o primeiro geral que se dedicou a visitar as províncias… (pp.

433-434).

42. Por isso, Vatácio, imperador dos gregos, tendo sabido da fama

de santidade de frei João de Parma, pediu ao papa Inocêncio IV que lhe

enviasse frei João, ministro geral, pois esperava que, por seu intermédio,

se pudesse levar os gregos à unidade com Roma. Quando o conheceu,

————— 71

Fr. João de Parma era homem de grande cultura. Antes de entrar para a Ordem

tinha leccionado lógica em Parma e mais tarde foi mestre em Paris e Bolonha. Foi

eleito Ministro geral em 13 de Junho de 1246, em Lião. Era grande adepto das ideias de

Joaquim de Fiore. Salimbene diz na sua Crónica, referindo-se a Fr. João de Parma, que

―maximus erat Joachita‖ (Cf. FELD, op. cit. p. 487, nota 117). Depois de dez anos como

Ministro geral, em 2 de Fevereiro de 1257 deu lugar a S. Boaventura, no capítulo de

Roma. A exaltação que dele faz Salimbene, mostra quão próximo o próprio estava do

joaquinismo. Em 1262 é condenado a um retiro num eremitério. Cf. MERLO, op. cit.,

p. 169-210.

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42

Vatácio dedicou-lhe tanto amor que desejou oferecer-lhe uma infinidade

de presentes. Mas frei João recusou-os, e isto serviu de grande exemplo

para Vatácio. Só conseguiu convencê-lo a aceitar uma espécie de látego

que levaria na mão quando atravessasse a Grécia com os companheiros.

Frei João tinha-o aceitado convencido de que se tratava dum chicote para

fustigar o cavalo… Mas os gregos, quando viam aquele sinal, que era um

símbolo imperial, ajoelhavam-se todos diante dele, como fazem os lati-

nos quando é elevado o corpo de Cristo durante a missa, e pagavam-lhe

todos os seus gastos e dos companheiros. Assim, frei João voltou para

junto do Papa, que o tinha enviado (pp.443-444)72.

43. Quando frei João de Parma era leitor em Nápoles, antes de ser

ministro geral, passando uma vez por Bolonha e encontrando-se na hos-

pedaria para comer com o companheiro e outros irmãos que estavam de

passagem, entraram alguns irmãos e levantaram-no à força da mesa para

o levar a comer na secção dos doentes. Mas ele, vendo que o compa-

nheiro se ficava ali e ninguém o convidava, voltou para junto dele e

disse: ―Não comerei em mais nenhum outro lado se não com o meu

companheiro‖. Este gesto foi tido pelos convidados como pouco deli-

cado, mas para João, pelo contrário, de extraordinária cortesia e total

fidelidade.

Noutra ocasião, sendo ele geral e querendo repousar um pouco, foi

ao convento de Ferrara, onde tinha vivido durante sete anos. Ao observar

que eram sempre os mesmos irmãos que se sentavam à mesa com ele,

tanto para o almoço como para a ceia, e isto todos os dias, reconheceu

que o guardião, frei Guilherme de Bocea, de Parma, fazia acepção de

pessoas. Isto incomodou-o muito, segundo aquele dito: ―O homem

imprudente desagrada naquilo em que quer agradar‖.

Certa tarde, enquanto frei João lavava as mãos para a ceia, o irmão

servente perguntou ao guardião: ―A quem devo convidar? O guardião

respondeu: ―Chama frei Tiago de Pavia, frei Avanzio, frei Fulano e frei

Sicrano‖.

Já estes tinham lavado as mãos e encontravam-se agora atrás do

geral, que já os tinha visto antes. Divinamente inspirado, cheio de ardor,

————— 72

Sente-se que Salimbene quer apresentar Fr. João de Parma como a antítese de

Fr. Elias.

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43

assim creio, começou ele a dizer em forma de parábola: ―Sim, sim…

Chama frei Tiago de Pavia, chama frei Avanzio, chama Fulano, chama

Sicrano. Toma para ti dez pedaçosI (1R 11,31). Sempre a mesma can-

tiga…‖.

Ficaram por isso confundidos e cheios de rubor ao ouvirem estas

coisas os que tinham sido convidados por Adonias (cfr. 1R 1,41), não

sendo menor a confusão do guardião, que disse ao ministro: ―Pai, convi-

dei a estes a acompanhar-te para te honrarem, pois me pareceram os mais

dignos‖. Mas o ministro respondeu: ―Porventura não diz a Escritura, em

louvor de Deus, que Ele criou o pequeno e o grande, e de todos cuida

por igual? (Sb 6,7). E o Senhor: “Deixai vir a mim as criancinhas? (Mt

19,14). São Tiago diz em seguida: Não escolheu Deus os pobres deste

mundo? (Tg 2,5); e finalmente o mesmo Senhor diz no capítulo XIV de

São Lucas: Quando deres um almoço ou um jantar, não convides os teus

amigos, nem os teus irmãos, nem os teus parentes, nem os teus vizinhos

ricos; não vão eles também convidar-te por sua vez, retribuindo-te

assim. Quando deres um banquete, convida os pobres, etc.” (Lc 14,12-

-13).

Escutei estas palavras porque estava a seu lado. Então o servente

perguntou ao superior: ―A quem devo chamar então?‖. Ele respondeu:

―Faz como o ministro te disser‖. E o ministro disse: ―Vai e chama os

irmãos pobres do convento, porque este é um ofício pelo qual todos se

podem juntar ao ministro‖. O irmão que estava de serviço foi, pois, ao

refeitório e disse aos irmãos mais debilitados e mais pobres, que rara-

mente comiam fora do refeitório: ―O ministro geral convida-vos a cear

com ele; por isso, da sua parte vos mando que vades imediatamente

acompanhá-lo‖. E assim foi feito.

Frei João de Parma, ministro geral, queria efectivamente que

quando, em ocasiões imprevistas, tivesse de ir a algum convento de

irmãos menores, fossem os irmãos mais pobres, todos juntamente, ou ora

uns, ora outros, a comer com ele no tempo que demorasse na hospedaria

(isto é, enquanto não se dirigisse ao refeitório comum para comer, o que,

aliás, sempre fazia após um breve descanso da viagem, no caso de se

deter algum tempo em algum lugar), a fim de que a sua vinda fosse para

eles motivo de consolação e de alegria…

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44

Frei João de Parma era uma pessoa acessível a todos, sem particu-

lar afeição por ninguém, e era cortês e generoso à mesa, a ponto, no caso

de ter vários vinhos bons à sua frente, os mandar servir por igual a todos,

ou os vertia num jarro para que todos bebessem dele. E isto era tido por

todos como uma cortesia e caridade muito grandes. (pp. 445-447).

44. Mais, frei João de Parma, enquanto ministro geral, mal ouvia a

sineta chamar os irmãos a mondar as hortaliças, apressava-se também a

trabalhar com os demais irmãos, como eu vi com os meus próprios

olhos… Da mesma forma participava no ofício diurno e nocturno, espe-

cialmente em vésperas, matinas e na missa; e alguma coisa que lhe pedia

o cantor, logo a fazia, quer começando as antífonas, os responsórios e as

leituras, quer dizendo a missa conventual.

Frei Hugo de Digne,“maximus Ioachita”73

45. Seguidamente, cheguei por mar a Marselha, e de Marselha

dirigi-me a Hyeres para ver frei Hugo de Bariola (também chamado de

Digne) e, em Itália, frei Hugo de Montpellier. Era um dos eclesiásticos

mais cultos do mundo e exímio pregador, querido pelo clero e pelo povo,

grandíssimo nas disputas e preparado em todos os campos. Superava a

todos, tinha a última palavra em todas as questões, era um brilhante ora-

dor e possuía uma voz poderosa, como o ressoar duma trombeta ou dos

grandes trovões ou de águas abundantes, como o estrondo duma cascata.

Jamais teve uma palavra descontrolada ou insegura. Tinha sempre pronta

uma resposta para tudo. Dizia coisas maravilhosas da cúria celestial, ou

seja, da glória do paraíso, e coisas terríveis das penas do Inferno.

————— 73

Inocêncio IV depois de ouvir Fr. Hugo de Digne, teria dito: ―Disseram-nos

que eras um grande clérigo e um bom homem. Mas também que eras seguidor do abade

Joaquim no profetizar e que eras um grande joaquimita‖ (cf. MERLO, op. cit., p. 184). A

condenação do joaquinismo só aconteceu depois da publicação da obra Liber

introductorius ad aevangelium aeternum, de Fr. Gerardo de Borgo San Donino, em

1254. Em 1255 Alexandre IV, com a Bula Libellum Quendam, tentou pôr freio à

expansão das ideias de Joaquim de Fiore (cf. ibidem p. 185). O Comentário à Regra de

Hugo de Digne fez com que se tornasse o pai do ramo dos espirituais. Cf. FLOOD, D.,

Hugh of Digne’s Rule Commentary, Grottaferrata, Roma, 1979.

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45

Era natural da província da Provença, de estatura média e pele um

tanto escura. Era um homem espiritual em sumo grau, tanto que imagi-

naríamos ver nele um outro Paulo ou um outro Eliseu. O que o Eclesiás-

tico diz de Eliseu no capítulo 48, podemos repetir a seu respeito: Nunca

em seus dias temeu príncipe algum, nem ninguém foi mais poderoso do

que ele. Nada houve que o pudesse dominar. (Sir 48,12-13). Com efeito,

falava com a mesma desenvoltura tanto no consistório diante do Papa e

dos cardeais, como com as crianças entretidas em seus jogos, e isto tanto

em Lião, como antes, quando a cúria estava em Roma. Todos tremiam

quando o escutavam, como o junco na água… (pp. 324-335)

Recordo que, quando era jovem e vivia no convento de Sena, na

Toscana, frei Hugo, de volta da cúria romana, dizia coisas maravilhosas

da glória do paraíso e do desprezo do mundo diante dos irmãos menores

e dos pregadores que tinham vindo ao seu encontro para o ver. A qual-

quer pergunta que lhe fizessem, respondia prontamente. Todos os que o

ouviam ficavam pasmados com a sua prudência e as suas respostas

(p.336).

47. Frei Hugo preferia viver, e vivia frequentemente, nesta cidade

de Hyères. Havia aqui muitos notários e juízes, médicos e outros letra-

dos; nos dias de festa reuniam-se no quarto de frei Hugo para o ouvirem

enquanto falava da doutrina do abade Joaquim e ensinava e expunha os

mistérios da Escritura e predizia as coisas futuras. Era, na realidade, um

notável joaquimita e possuía todas as obras do abade Joaquim escritas

em grandes caracteres. Eu mesmo me interessei por esta doutrina, ao

ouvir frei Hugo. Na realidade, já a conhecia antes, pois já a tinha ouvido

expor, quando vivia em Pisa, a um certo abade da Ordem de Fiore, um

velho e santo homem que tinha posto a bom recato todos os seus livros

editados por Joaquim no convento de Pisa, com medo de que o impera-

dor Frederico mandasse destruir o seu mosteiro, situado entre Lucca e

Pisa, no caminho para a cidade de Luni. Considerava, em verdade, que

tinha sido precisamente em Frederico que naquele tempo se tinham

cumprido todos os mistérios, pois estava então em aberta rotura com a

Igreja. (p.339).

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46

São Luís de França74

48. Era o rei de França mui senhoril, alto e esbelto, de rosto angeli-

cal e gracioso. Acudia à igreja dos irmãos (para o Capítulo) sem fausto

real, com hábito de peregrino, de saco ao ombro e bastão em vez dos

atavios reais. Não a cavalo, mas a pé; e seguiam-no os seus três irmãos,

com porte igualmente humilde… Dir-se-ia um monge, pela devoção, ou

um guerreiro valoroso, pelas armas de guerra.

Ao entrar na igreja dos irmãos, ajoelhou-se diante do altar, demo-

rando em oração… Depois, em voz alta e clara, disse que ninguém devia

entrar na sala capitular senão os cavaleiros com os irmãos, pois lhes que-

ria falar. E quando estávamos reunidos em capítulo, começou o rei a

informar-nos sobre as suas necessidades e as do reino, encomendou-se a

si mesmo, a sua mãe e a todo o reino, e, ajoelhando-se, implorou as ora-

ções e súplicas dos irmãos…

Escutadas as palavras de frei João de Parma, o rei agradeceu ao

ministro geral e alegrou-se tanto com a sua resposta que quis possuí-la

por escrito, em cartas autenticadas com o selo da Ordem. E assim se fez.

Nesse dia o rei encarregou-se de todos os gastos, e comeu com os

irmãos no seu refeitório… (pp. 319-321).

Os irmãos menores, gente desesperada

49. Não queremos passar por alto o seguinte: que os Florentinos

não se escandalizam pelo facto de um irmão deixar a Ordem, antes o

desculpam, dizendo: ―Espanta-nos que tenha aguentado tanto tempo,

porque os irmãos menores levam uma vida desesperada e atormentam-se

de muitas maneiras‖ (p. 117)75.

————— 74

São Luís IX, rei de França, nasceu em 25 de Abril de 1215. Começou a reinar

em 1226, com onze anos. Sonhou em libertar a Terra Santa. Mas saiu derrotado em

todas as tentativas. Professou na Ordem Terceira de S. Francisco e foi modelo de

caridade cristã. Faleceu em 25 de Agosto de 1270. Foi canonizado em 1297. É

padroeiro da Ordem Terceira Franciscana. 75

Depois das personagens célebres, Salimbene apresenta um retrato simplificado

do frade franciscano ―normal‖.

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47

IV

MOVIMENTOS RELIGIOSOS DA ÉPOCA

A - O “Aleluia‖76

O tempo do “Aleluia”

50. ―Aleluia‖ – assim se veio a chamar depois a um tempo de

tranquilidade e de paz, durante o qual se depuseram todas as armas de

guerra: um tempo, em suma, de jovialidade e de alegria, de louvores e de

júbilo.

Cânticos e divinos louvores eram cantados por nobres e plebeus,

cidadãos e aldeões, jovens e donzelas, velhos e crianças (Sl 148,12).

Esta devoção espalhou-se por toda a Itália. Vi com os meus próprios

olhos que, na minha cidade de Parma, cada comarca queria ter um estan-

darte próprio para as procissões que se faziam, com a representação do

martírio do seu santo. Assim, por exemplo, no estandarte da comarca

onde estava a igreja de São Bartolomeu, estava representado o suplício

do esfolamento, e o mesmo para as restantes.

E assim vinham também das aldeias para as cidades, com seus

estandartes, grupos de homens e mulheres, rapazes e raparigas para ouvi-

rem as prédicas e louvar o Senhor. Cantavam palavras divinas e não de

homens (Cfr. Act 12,22), e a gente caminhava para a salvação. Parecia,

na verdade, estar-se a cumprir aquele dito profético: Lembrar-se-ão e

converter-se-ão ao Senhor todas as extremidades da terra. Prostrar-se-

————— 76

Este movimento surgiu sete anos depois da morte de S. Francisco, 1233. O seu

aparecimento foi favorecido por Gregório IX. Na carta Fons sapientiae publicada para

anunciar a canonização de S. Domingos, Gregório IX, partindo de Zacarias (6,1-2), que

fala dos quatro cavalos que aparecem nos montes, apresenta o quarto cavalo como

símbolo das ―tropas dos Irmãos Pregadores e Menores como comandantes eleitos‖.

Pretendia-se criar uma milícia cristã que levasse a cabo uma campanha de pacificação e

moralização, mesmo que para isso se tivesse de recorrer à fogueira para apaziguar as

heresias. Assim nasceu o movimento Aleluia, que teve no franciscano Gerardo de

Módena um dos mais activos mentores. Com o objectivo de moralizar a sociedade,

estavam dispostos a assumir cargos políticos, como aconteceu com Gerardo de Módena

que foi podestà de Parma, o que contrariava o genuíno espírito evangélico-franciscano.

Cf. MERLO, op. cit., p. 117-121. Sobre Gerardo de Módena cf. nota 45.

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48

-ão diante dele todas as raças das nações. (Sl 21,28). Levavam nas

mãos ramos de árvores e círios acesos.

Havia pregações de tarde, de manhã e ao meio-dia, segundo o dito

profético: Pela tarde, de manhã e ao meio-dia lamento-me e suspiro; ele

ouvirá a minha voz. Resgata em paz a minha alma de quantos me

movem guerra, embora sejam muitos contra mim (Sl 54,18-19).

51. Faziam-se paragens nas igrejas e nas praças e todos erguiam as

mãos para Deus, a fim de o louvar e bendizer por todos os séculos. Não

se cansavam de louvar o Senhor, tão ébrios estavam do amor divino e era

grande a emulação na prática do bem e no louvor a Deus. Não havia

qualquer animosidade entre eles, nenhuma discórdia, nenhuma contenda,

nenhum rancor. Tinham a alma tão pacificada e disposta a tudo que bem

podiam repetir o dito de Isaías: Serão esquecidas as angústias de

outrora, e até da minha vista desaparecerão (Is 65,16).

Nada de espantar. Tinham bebido o vinho da doçura do Espírito

de Deus, e quando é provado perde sabor toda a carne. Por isso está

prescrito aos pregadores: Dai bebida forte àqueles que desfalecem, e

vinho aos que têm o coração amargurado, para que eles bebam e se

esqueçam da sua miséria e não se lembrem mais das suas mágoas (Pr

31,6-7). Voltam aqui com toda a propriedade as palavras de Jeremias nas

Lamentações: Examinemos os nossos caminhos, perscrutemo-los e con-

vertamo-nos ao Senhor. Elevemos o nosso coração e as nossas mãos

para Deus que está no céu (Lm 3,40-41). E assim o faziam, como eu vi

com os meus próprios olhos. Cumpriam os mandamentos dos apóstolos:

Quero, pois, que os homens orem em todo o lugar, levantando as mãos

puras sem ressentimento e sem contenda (1Tm 2,8).

Mas para que não julgues que toda aquela gente estava sem guia,

no momento em que o sábio declara: Por falta de governo se arruína um

povo (Pr 11,14), falaremos agora dos condutores destes grupos (pp. 99-

-100).

Os pregadores do “Aleluia”

52. Em primeiro lugar veio a Parma frei Benedito, chamado o

irmão da Corneta, homem simples e sem cultura, mas verdadeiramente

inocente e de grande honestidade de vida. Eu o vi e com ele tratei fami-

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49

liarmente em Parma, e depois em Pisa. Era oriundo de vale de Espoleto,

ou da região de Roma. Não pertencia a nenhuma Religião, se entender-

mos por religião qualquer congregação religiosa, antes vivia por sua

conta, empenhando-se em agradar somente a Deus; era muito amigo dos

irmãos menores…

Do alto do muro do palácio episcopal, que então se estava a cons-

truir, vi-o eu muitas vezes a pregar e a louvar a Deus. Começava desta

maneira os seus louvores, exprimindo-se em língua vulgar: ―Bendito,

louvado e glorificado seja o Pai‖. E os jovens repetiam em alta voz essa

invocação. Depois, repetia as mesmas palavras acrescentando: ―seja o

Filho‖. Eles recomeçavam e cantavam as mesmas palavras. Repetia pela

terceira vez, acrescentando: ―seja o Espírito Santo‖. E depois, ‖Aleluia,

Aleluia, Aleluia‖. Por fim, tocava a trombeta e pregava dizendo algumas

boas palavras em louvor de Deus. Terminada a prédica, saudava a Vir-

gem com estes versos: ―Ave Maria, clemens et pia, etc.‖ (pp. 100-101).

Frei Gerardo de Módena

53. Pertenceu também aos pregadores dessa grande devoção frei

Gerardo de Módena, da Ordem dos irmãos menores; realizou grandes

prodígios e fez muitas coisas excelentes, como eu vi com os meus pró-

prios olhos. Quando ainda era secular, chamava-se Gerardo Maletta, da

família nobre e rica dos Boccabadati. Tinha sido um dos primeiros

irmãos menores, mas não dos doze companheiros; amigo íntimo do bem-

-aventurado Francisco, e seu companheiro durante certo tempo. Homem

de grande cortesia, liberal e generoso, religioso, honesto e muito condes-

cendente, moderado nas palavras e em todas as suas obras. Embora de

pouca literatura, tinha uma óptima dicção e foi um excelente pregador.

Foi ele quem pediu a frei Elias, ministro geral, para que me aceitasse na

Ordem, e frei Elias aceitou-me em Parma, no ano de 1238. Fui seu com-

panheiro de viagem por algum tempo. (p.106).

Durante esta devoção, os habitantes de Parma ofereceram a frei

Gerardo o governo total da cidade, para que fosse seu podestà e redu-

zisse à paz quantos andavam em guerra entre si. E assim o fez, porque a

muitos que eram inimigos os levou à concórdia (p.106).

Quando penso em frei Gerardo de Módena, lembro-me sempre

daquela passagem do Eclesiástico: Vale mais o homem que tem pouca

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50

sabedoria, porém, timorato, do que o homem que possui grande inteli-

gência, mas que transgride a Lei (Sir 19,24). Estava também eu doente

em Ferrara com frei Gerardo, quando ele se lastimava da enfermidade de

que veio a morrer; e voltando a Módena no ano seguinte, aí fechou os

olhos pp. 107-108).

B - Os flagelantes77

O movimento dos”flagelantes”

54. No ano de 1260, indição III, espalharam-se pelo mundo os

“flagelantes. Todos os homens, pequenos e grandes, nobres cavaleiros e

plebeus, andavam processionalmente pela cidade desnudando-se e fla-

gelando-se, precedidos por bispos e religiosos.

Restabelecia-se a paz, e os homens restituíam os bens mal adquiri-

dos e confessavam os seus pecados, com tal afluência que os sacerdotes

mal encontravam tempo para tomar alguma comida. Em suas bocas res-

soavam palavras divinas e não de homens (cfr. Act 12,22), e a sua voz

era como a voz de multidões. O mundo caminhava para a salvação.

Compunham louvores divinos em honra de Deus e da bem-aventurada

Virgem e cantavam-nos enquanto caminhavam e se flagelavam.

Na segunda-feira, festa de Todos os Santos, todo o povo de

Módena se dirigiu para Reggio, pequenos e grandes, todo o condado de

Módena, com o podestà, o bispo e todos os seus estandartes, e atravessa-

ram a cidade flagelando-se; o grosso da multidão passou depois a Parma.

Foi isso na terça-feira a seguir à festa de Todos os Santos.

No dia seguinte, todos os cidadãos de Reggio tomaram os estan-

dartes de todas as suas comarcas e fizeram uma procissão em redor da

cidade. Também o podestà, Hubertino Bobaconti de Mandello, cidadão

milanês, participou nessa procissão flagelando-se.

Quando esta devoção estava ainda nos seus começos, os cidadãos

de Sassuolo, que me eram particularmente queridos, vieram retirar-me de

Módena, com licença dos superiores e levaram-me a Sassuolo, e depois a

Reggio e a Parma. Quando chegámos a Parma, já lá se fazia esta devo-

————— 77

Este movimento iniciou-se em Perusa pelo eremita Rainerio Fasani e difundiu-

-se a toda a Europa. Foi muito apoiado pelas ideias joaquimitas.

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51

ção. Com efeito, voava como águia que corre para a presa, e durava

alguns dias em cada uma das cidades. Não havia ninguém, por mais cir-

cunspecto ou velho que fosse, que não se flagelasse de boa vontade. Se

alguém o não fazia, era considerado pior que o diabo, e era apontado a

dedo como desprezível e diabólico. Mas o que mais importa é que, em

poucos dias, esse tal acabava por cair nalguma desgraça, ou morria ou

adoecia gravemente.

Só Pellavicino, que governava em Cremona, não quis, juntamente

com os seus concidadãos, aceitar aquela grande bênção e devoção… (pp.

675-676).

Nesse mesmo ano devia começar a cumprir-se a doutrina do abade

Joaquim, que divide o mundo em três idades. Na primeira, tinha actuado

o Pai entre os patriarcas e os filhos dos profetas, conquanto a acção da

Trindade seja indivisível. Na segunda idade, obrou o Filho entre os

apóstolos e os homens apostólicos. Na terceira idade, actuará o Espírito

Santo nos religiosos. Esta é a doutrina do abade Joaquim de Fiore.

Dizem que esta terceira idade começou com este movimento dos flage-

lantes, no ano 1260, quando se flagelavam proferindo palavras divinas e

não de homens (cf. Act 12,22) (p. 677).

C - Novas Ordens religiosas

A Ordem dos “Saccati”78

55. Terminado esse discurso, um homem da mesma região (ou

seja, de Area, Hyères), que eu vi e conheci sendo ainda secular, pediu a

frei Hugo que, por amor de Deus, o aceitasse na Ordem. Com efeito,

Hugo tinha licença do ministro para aceitar os postulantes na Ordem,

porque era uma pessoa venerável, clérigo distinto, muito espiritual e

havia sido também ministro provincial.

Ora esse homem, que pedia para ser admitido na Ordem dos

irmãos menores, foi o iniciador da Ordem dos Saccati; tinha consigo um

————— 78

Os Saccati, ou Irmãos da penitência de Jesus Cristo, apareceram em meados

do século XIII, por iniciativa de dois leigos, ex-noviços dos Frades Menores, que

mantiveram sempre boas relações com a Ordem. Viviam uma vida de rigoroso

ascetismo. Espalharam-se pela Itália e identificavam-se como mendicantes. Cf. MERLO,

op. cit., p. 205-206.

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52

companheiro, que também pedia para ser admitido entre os irmãos

menores. Tinham-se sentido inspirados pelo Senhor durante o sermão de

frei Hugo.

Mas frei Hugo respondeu-lhes: ―Vão até aos bosques e aprendam a

comer raízes, porque se aproxima a tribulação‖. Eles partiram, cobriram-

-se de mantas variegadas, parecidas com as que usavam antigamente as

irmãs rodeiras da Ordem de Santa Clara, e começaram a mendigar o pão

naquela mesma terra onde viviam os irmãos menores. Eram socorridos

abundantemente, porque nós e os irmãos pregadores ensinamos todos os

homens a mendigar; e qualquer um enfia um capuz e faz uma nova

Regra, como religioso mendicante. Prontamente se multiplicaram, e

eram chamados com ironia e malícia: ―boscaioli‖ (lenhadores…). Pas-

sado tempo, fizeram hábitos não já de lã crua, mas de linho, tendo por

baixo túnicas esplêndidas e sobre os ombros um manto de saco ou esta-

menha, e por isso ficaram a chamar-se Saccati. Fizeram sandálias como

as dos irmãos menores, já que todos aqueles que queriam inventar uma

nova Ordem e uma nova Regra, sempre mendigam alguma coisa da

Ordem do bem-aventurado Francisco, quer sandálias, quer a corda ou

também o hábito. Agora, porém, a Ordem dos irmãos menores obteve

um privilégio papal que proíbe a quem quer que seja trazer um hábito

pelo qual possa ser considerado um irmão menor… (pp. 366-367)79.

————— 79

Salimbene recorda também a ordem dos Apostólicos fundada por Gerardo

Segarelli. Cf. nota 42.

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53

ACTUALIDADE DE DUNS ESCOTO

NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO*

Martín Carbajo Núñez, OFM

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54

ACTUALIDADE DE DUNS ESCOTO

NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO*

Sete séculos depois da morte, o beato João Duns Escoto é um

modelo atraente na sociedade da informação1, tanto pelo seu pensamento

como pela sua atitude vital. De facto, apesar das limitações que impõem

a distância e a diversidade da época em que viveu2, Duns Escoto oferece

bases seguras para estabelecer relações pacíficas num mundo cada vez

mais interdependente.

Para aprofundar esta ideia, indicaremos a necessidade de diálogo

no nosso mundo mediático, para mostrar depois como a doutrina de

Escoto pode impulsionar a abertura dialogal com o Outro e com os

outros na sociedade actual.

—————

* O presente artigo, aqui reproduzido e revisto pelo autor, foi publicado em

Giovanni Duns Scoto. Studi e ricerche nel VII Centenario della sua morte. In onore di

P. César-Saco Alarcón. A cura di Martín Carbajo Nuñez (Medioevo, 15). Roma,

Edizioni Antonianum, 2008, vol. II, 471-506. 1 A expressão ―sociedade de informação‖ designa o tipo de colectividade que

está emergindo nas últimas décadas com o patrocínio das tecnologias de informação

como elemento fundamental nas actividades sócio-económicas. Sobre o advento da

sociedade de informação e sobre as causas que a provocam veja-se: R. WHITAKER, The

end of pricavy. How total surveillance is becoming a reality, New York 1999, 48. 2 Cf. C. KOSER, ―El carácter práctico de la teología según Juan Duns Escoto‖,

Carta del Vicario general OFM en el VII centenario del nacimiento de Juan Duns

Escoto, 15-08-1966, in Verdad y vida 24 (1966) 15-25.

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55

I. Duns Escoto e a necessidade de diálogo hoje

A nossa sociedade oferece inumeráveis possibilidades de comuni-

cação à distância (Internet, MCS3) e de encontro interpessoal (migrações,

turismo, viagens), mas cria também particularismos e discriminações.

A) DUNS ESCOTO, MODELO DE DIÁLOGO

Neste contexto ambivalente, Duns Escoto pode servir de modelo e

de base teórica para potenciar o diálogo e a abertura gozosa a Deus, aos

demais e à criação. Não é em vão que o doutor Subtil foi posto, pelo

Magistério recente, como exemplo de diálogo interreligioso e intercultu-

ral.

―Na nossa época, rica em imensos recursos humanos,

técnicos e científicos […], o beato Duns Escoto apre-

senta-se […] mestre de pensamento e de vida para a

Igreja e para toda a humanidade.‖4

Paulo VI propôs Duns Escoto como modelo do espírito dialogante

que o Concílio Vaticano II tinha impulsionado e que ele mesmo havia

adoptado como objectivo do seu pontificado5. O Papa recorda as pala-

vras de João de Gerson, que afirma que Escoto sempre se guiou ―não

pelo afã singular de vencer, mas pela humildade de encontrar um

acordo‖6. Escoto, de facto, demonstra um ânimo sincero na busca da ver-

dade, analisa com atenção e espírito construtivo as posições contrárias ao

seu pensamento e evita desclassificações gratuitas ou pouco fundamen-

tadas.

————— 3 Meios de Comunicação Social.

4 JOÃO PAULO II, ―Homilia na cerimónia de reconhecimento do culto litúrgico a

Duns Escoto (20.03.1993) ‖, in Selecciones de Franciscanismo 65 (1993) 164, n. 4. 5 PAULO VI, Carta encíclica Ecclesia suam, 6.08.164, in AAS 56 (1964) 609-

-659, n. 38-39: ―A Igreja deve entrar em diálogo com o mundo em que vive. A Igreja

faz-se palavra, faz-se mensagem, faz-se colóquio (…) o diálogo deve caracterizar o

nosso cargo apostólico.‖ 6 JOÃO DE GERSON, Lectiones duae «Poenitemini» lect. alt., consid. 5, citado em

PAULO VI, Carta Apostólica Alma parens, in AAS (1966) 164.

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A doutrina e a personalidade do Doutor Subtil condizem com essa

atitude que Paulo VI propõe para o diálogo ecuménico7 e interreligioso,

assim como para o encontro com o mundo contemporâneo e com o

ateísmo8. Mais concretamente, o Papa espera que a figura de Escoto

ajude a impulsionar o desejado diálogo com os anglicanos, sobre as

bases das antigas tradições comuns. Neste sentido, Escoto surge como

uma figura muito significativa. Por um lado, foi sempre fiel ao Magisté-

rio eclesiástico9, por outro lado, ele é também um personagem ilustre da

Grã-bretanha. Além disso, a sua doutrina foi matéria comum, durante

três séculos, nas escolas daquele país.10

Também João Paulo II evidencia a exemplaridade de Escoto para

―um diálogo na procura de unidade‖11

e confirma que ―continua a ser

ainda hoje um pilar da teologia católica, um mestre original e rico em

impulsos e estímulos‖12

.

B) O DIÁLOGO, NECESSIDADE URGENTE

Se no período pós conciliar se propunha o diálogo como atitude

fundamental no encontro da Igreja Católica com os demais crentes e com

o mundo secularizado, actualmente continua a ser considerado como

uma condição indispensável para a convivência pacífica numa sociedade

————— 7 Alma parens 14: ―O tesouro teológico das suas obras pode oferecer reflexões

valiosas para «serenos colóquios» entre a Igreja Católica e as demais confissões cristãs‖ 8 Alma parens 11: Da sua doutrina ―podem-se extrair armas poderosas para

combater e afastar a nuvem negra do ateísmo que obscurece os nossos tempos‖. 9 Alma parens 16. De facto, o rei Henrique VIII de Inglaterra, quando rompe a

comunhão com a Igreja de Roma, ordena que se queimem os escritos de Escoto, pois

considerava-o um dos mais notáveis papistas. 10

Alma parens 13-14. 11

JOÃO PAULO II, ―Confirmação do Beato João Duns Escoto e proclamação da

beata Dina Bélanger‖, n. 4. 12

JOÃO PAULO II, ―Discurso à Comissão Escotista‖, 16.02.2002. De Escoto o

Papa sublinha ―a sua esplêndida doutrina sobre o primado de Cristo, sobre a Imaculada

Conceição, sobre o valor primário da Revelação e do Magistério da Igreja, sobre a

autoridade do Papa, sobre a possibilidade de a razão humana tornar acessíveis, pelo

menos em parte, as grandes verdades da fé, de demonstrar a não contraditoriedade,

permanece ainda hoje um pilar da teologia católica, um Mestre original e rico de ideias

e solicitações para um conhecimento cada vez mais completo das verdades da Fé‖ (n.2).

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cada vez mais relacionada. Bauman afirma que o dilema actual da

humanidade consiste em ―falar juntos ou morrer juntos‖13

.

Hoje o próximo não é só quem vive ao lado, no espaço e no tempo.

Qualquer acção do indivíduo, por pequena ou localizada que seja, pode

ter consequências imprevisíveis para o resto da humanidade e para a

própria criação. Sucessos que, noutras épocas, ficavam circunscritas a

uma região, fazem hoje sentir a sua influência imediata até nos lugares

mais distantes do planeta. ―O bater de asas de uma mariposa no Brasil

pode desencadear um tornado no Texas‖ (E. Lorenz, 1979).

A queda das barreiras espaço-temporais abre enormes possibilida-

des, mas cria também inquietantes questões14

. Jonas afirma que a ética

tem que ser profundamente reformulada, para responder aos novos desa-

fios15

. Tratar-se-ia de traduzir, em termos éticos, o consenso que já

existe sobre a defesa dos direitos humanos. Desta forma, se evitaria que

muitos procurem refúgio em novos tipos de fundamentalismo religioso,

nacionalista ou étnico16

.

O risco do pensamento único e do colonialismo cultural provoca

reacções defensivas, com frequência incontroláveis. Huntington prevenia

face ao perigo de um crescente conflito entre civilizações17

. Para evitá-

-lo, a Assembleia Geral da ONU proclamou o ano de 2001 como ―Ano

das Nações Unidas do diálogo entre Civilizações‖18

. As propostas de

diálogo intercultural foram-se sucedendo até aos nossos dias.19

————— 13

BAUMAN, Z., ―Parlare insieme o morire insieme: dilemma di tutto il planeta‖,

in Vita nostra 11(2003)2. 14

JOÃO PAULO II, Mensagem para a jornada mundial da migração 2001,

2.02.2001, n. 2. 15

JONAS, H., Das Prinzip Verantwortung. Versuch einer Ethik für die

technologische Zivilisation, Frankfurt am Main 1984, 15. 16

Sobre as propostas éticas para dar um rosto humano ao processo de

globalização: MANCINI, R., Etiche della mondialità, Assis 1996, 15-198; Cf. BOFF, L.,

Ethos mondiale. Alla ricerca di un’etica comune nell’era della globalizzazione, Torino

2000, 31-59. 17

HUNTINGTON, S. P., The clash of civilizations and the remarking of the world

order, New York 1997. 18

Nações Unidas, 16.11.1998. 19

A 21.09.2004, na 59ª Assembleia Geral da ONU, o presidente espanhol, José

Luis Rodríguez Zapatero, retomava essa ideia para propor uma «Aliança de

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58

C) MUITA INFORMAÇÃO MAS POUCA COMUNICAÇÃO

Se o diálogo é imprescindível a nível político e cultural, não o é

menos a nível pessoal. A ―Sociedade de Rede‖20

permite-nos navegar

num imenso oceano de informações, facilita uma comunicação global e

instantânea, dá-nos a possibilidade de nos encontrarmos num mundo

virtual que não conhece distâncias nem barreiras temporais. Podemos ter

a sensação que o mundo inteiro põe-se ao alcance das nossas mãos, na

nossa própria casa, sem ter de correr riscos nem de ter de responder

diante de ninguém. Sem quase nos darmos conta, podemos ficar ―enre-

dados‖ nesse espaço virtual agradável, domesticado, e acabar fugindo

instintivamente da dura realidade de cada dia e do exigente encontro cara

a cara com o outro.

A comunicação virtual empobrece-se ao deixar de lado a lingua-

gem corporal, os gestos, o olhar, a proximidade, o tacto. Diz-nos Platão

que já Sócrates havia percebido alguns destes problemas na escrita.

Recusava-se a usá-la porque a considerava algo material (ou seja, de

inferior categoria), algo morto, sem um interlocutor definido que possa

responder às possíveis objecções, um meio que não pode levar-nos à

verdadeira compreensão das ideias. Mas tampouco a comunicação oral,

em si mesma, será suficiente. A procura da verdade – segundo Sócrates –

exige diálogo e certa simpatia entre um reduzido número de interlocuto-

res capacitados. Por isso rejeita também as ―charlatanices‖ que os sofis-

tas dirigiam a grupos numerosos de pessoas.21

Podemos informar-nos sem comunicar, receber muitos dados sem

chegar a estruturar o nosso pensamento. Um dilúvio de informações

pode criar-nos confusões em vez de aumentar o nosso conhecimento; e

não é por falar muito que nos comunicamos mais. Dizia Platão que um

ser humano necessita de sete anos de busca silenciosa para conhecer a

verdade, e ao menos catorze para aprender a comunicá-la aos seus

—————

civilizações» centrando-a especificamente nas relações entre o Ocidente e o mundo

islâmico. 20

CASTELLS, M., ―Materials for an exploratory theory of the Network society‖,

in British Journal of Sociology 51/1(2000)9-10. Ainda que a informação e o conheci-

mento tenham sido fundamentais na organização social, é agora que o salto tecnológico

permite obter, processar, generalizar e difundir a informação de maneira rápida e efi-

caz, aplicando-a inclusive à engenharia genética. 21

PLATÃO, Fedro, 275.

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59

semelhantes… Por outro lado, Séneca perguntava ironicamente a Luci-

lio, que lhe proporcionava inúmeras sentenças: Haec sciam? Et quid

ignorem?22

O diálogo respeitoso ajuda-nos a ser reflexivos e a superar tanto a

homogenização, que anula a riqueza das diversidades, como o relati-

vismo, que nega os valores.23

É necessário desenvolver a capacidade de

acolhimento gratuito, gozoso, responsável para podermos caminhar jun-

tos até uma humanidade reconciliada.

II. Bases escotistas para um dialogo de autenticidade

A escola franciscana tem em Duns Escoto o representante mais

qualificado, tal como afirmou Paulo VI24

. Esta linha de pensamento ela-

bora o voluntarismo, que se contrapõe ao frio intelectualismo da filosofia

moderna.25

Acentuando a liberdade divina e o seu amor incondicionado

ao homem concreto, o voluntarismo rebate o dualismo cartesiano, que

contrapõe corporeidade a pensamento, matéria a espírito.26

Opõe-se tam-

————— 22

Cf. P. PISARRA, ―Laberinti dell'informazione‖, in P. CARETTI - A. PIERETTI -

P. PISARRA, Informazione, manipolazione e potere, Cinisello Balsamo 1998, 31. 23

JOÃO PAULO II, Discurso aos membros da Pontifícia academia das ciências

sociais, 27.04.2002. O diálogo intercultural será mais eficiente se os indivíduos

partilharem a sua própria experiência vital. A. TOURAINE, ―Faux et vrais problèmes‖, in

M. Wieviorka, Ed., Une société fragmentée? Le multiculturalisme en débat, Paris

1997, 206. 24

Alma parens 6. Ele é ―mestre e guia da escola franciscana‖. BENTO XVI,

―Carta apostólica por ocasião do VII centenário da morte do beato João Duns Escoto‖. 25

Cf. J. DUNS SCOTO, Reportatio Parisienses, (Rep.), IV d. 49 n. 11, in L.

Vivès, ed., Opera omnia, vol. 1-26, Paris 1891-1895 (Vivès), XXIV 625: ―Capacitas

voluntatis perfectior est in via quam capacitas intellectus; igitur similiter et in patria,

quia non est alia capacitas hic et ibi.‖ Cf. J. DUNS SCOTO, Ordinatio (Ord.), III d. 33 q.

un. n. 58, Commissione Scotista, ed., Opera omnia, Città del Vaticano 1950ss, X 168-

-169: ―Simpliciter nobilior erit electio recta quam dictamen rectum.‖ 26

Descartes (1596-1650) considera que a essência do ser humano consiste na

sua capacidade de pensar (res cogitans), enquanto que o seu corpo pertence a outra

categoria de substâncias (res extensa). A ênfase num ou noutro desses dois elementos

dará origem a duas tendências contrapostas na compreensão do humano (idealismo e

materialismo), mas ambas caracterizadas por um forte dualismo. O idealismo centra-se

na racionalidade, no pensamento subjectivo, passando ao lado da dimensão corpórea.

Por outro lado, o materialismo reduzirá o homem à materialidade do seu corpo, como

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60

bém a qualquer tipo de gnosticismo que reduza o mais específico

humano à sua dimensão espiritual ou racional, como se tudo tivesse que

ser subjugado e orientado a favor de um desenvolvimento primitivo do

pensamento27

.

Frente às filosofias que interpretam a realidade como algo necessá-

rio e inevitável, porque lógico, Escoto defende a liberdade como para-

digma interpretativo do tudo o que existe. A verdade sobre a realidade

humana e cósmica não é reduzível à pura racionalidade. No princípio

não era a lógica nem a necessidade, mas a vontade amorosa, livre e gra-

tuita de Deus; portanto, a verdade é inseparável da bondade.28

Se o

mundo existe não é porque seja racionalmente necessário, mas por amor.

Tudo é radicalmente contingente29

, mas ao mesmo tempo valioso, por-

que querido.

A) ―DEUS CARITAS EST‖

Escoto proclama que Deus é amor30

e, portanto, um ser totalmente

livre, criativo e desinteressado.31

Actuando de um modo ordenado,32

Deus ama-se a si mesmo, já que Ele é o Sumo Bem33

; em segundo lugar,

—————

se fosse mais uma peça da engrenagem cósmica. Para compreender o homem, bastará o

método experimental e a análise do físico (comportamentalismo). O corpo é

interpretado biologicamente em vez de biograficamente. 27

Escoto afirma a prioridade da vontade para poder alcançar a beatitude a que

estamos destinados. Rep. IV d. 49 q. 2 n. 20 (Vivès XXIV 630). 28

A verdade não pode reduzir-se à pura racionalidade. JOÃO PAULO II, Carta

encíclica Fides el ratio (FR), 14.09.1998, n. 38: ―As vias para chegar à verdade

continuam a ser muitas; mas, dado que a verdade cristã tem valor salvífico, cada uma

delas só pode ser percorrida se conduzir à meta final, ou seja, à revelação de Jesus

Cristo.‖ 29

J. DUNS SCOTO, Quaestiones super libros Metaphysicorum Aristotelis

(QQMetaph.), IX q. 15 n. 12, in Ed., Opera philosophica, The Franciscan Institute, St.

Bonaventure, N.Y., 1997ss. (Oph), IV 678. 30

1Jo 4,8; Ord. I d. 17 q. 2 n. 173 (V 222): ―Deus sit formaliter caritas et

dilectio‖. 31

Deus não cria por interesse senão por bondade: Ord. III d. 27 q. un. n. 18-20

(X 53-55). 32

Amar ordenadamente significa que primeiramente se deseja o fim e depois,

gradualmente, tudo o mais segundo a sua aproximação a esse fim. Cf. Rep. III d. 7 q. 4

n. 4 (Vivès XXIII 303); Ord. III d. 32 q. un. n. 21 (X 136). 33

Rep. III d. 27 q. un. n. 7 (Vivès XXIII 481).

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ama-se a si mesmo como a nós. Ele não é um ―motor imóvel‖, distante e

inacessível, mas um ser apaixonado, abrasado de sentimentos, que cria

porque ama.34

Face à impassibilidade da potência divina na filosofia grega e no

deísmo, Escoto mostra um Deus que é amor, e portanto, não pode per-

manecer indiferente frente à humanidade35

. O Sumo Bem é também uma

suma comunicabilidade, de uma maneira totalmente livre.36

Assim, Deus

torna possível e garante o diálogo que leva à fruição comunicativa.

1. Amor em absoluta liberdade

O ser e o actuar de Deus não está determinado pela lógica nem

pela necessidade, não está sujeito a nenhum condicionalismo ou inte-

resse.37

A liberdade faz parte do seu modo de ser.38

Deus ama-se a si

mesmo de modo ordenado e, amando ordenadamente, cria a diversidade

de quanto existe. A sua actividade ad extra não é emanação necessita-

rista do seu ser, mas fruto absolutamente livre e gratuito da sua vontade

amorosa. O seu actuar não é caprichoso, porque nada do que faz contra-

diz o seu próprio ser.39

Antes de mais, Deus é.40

Afirmando a total liberdade divina, Escoto nega que Deus deva

escolher necessariamente o que, segundo os nossos parâmetros racionais,

seria a opção mais adequada. Deus actua ordenadamente, realizando o

que é digno da sua própria bondade, mas sem estar condicionada por

outros factores externos a si mesmo. Deus é subsistente, independente-

————— 34

Cf. Rep. II d. 27 q. un n. 3 (Vivès XXIII 135). 35

Cf. Ex 3,7; 6,5: Deus escuta o grito dos oprimidos. 36

J. DUNS SCOTO, Tractatus De primo principio, c. 3 conclusio 22. 37

Cf. Ord. III d. 1 p. 1 q. 1 n. 49 (IX 21-22). Em Duns Escoto, «o primado da

vontade põe claro que Deus é, antes de mais, caridade». BENTO XVI, ―Carta apostólica

por ocasião do VII centenário da morte do beato João Duns Escoto‖. 38

De primo principio, c. 3 conclusio 22. 39

Deus pode fazer tudo o que não seja contraditório com a sua própria essência,

Ord. I d. 7 q. 1 n. 52 (IV 129); Rep. IV d. 46, q. 4 n. 8 (Vivès XXIV 584). 40

O decisivo em Deus não é o querer ou o entender, mas a sua essência,

manifesta na coerência consigo mesmo. Só nela se dão todas as perfeições. Ord. IV d.

13 q. 1 n. 32 (Vivès XVII 689); Rep. I d. 8 q. 1 n.l (Vivès XXII 153).

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62

mente de qualquer outro ente41

e totalmente livre para comunicar-se.

Não é a coerência lógica o que determina o actuar de Deus, mas o amor.

Ao pôr a liberdade divina acima da racionalidade do ser, Escoto

afirma que o que existe poderia ter sido criado de um modo diverso e

nem por isso perderia a sua coerência interna.42

No princípio de tudo está

a vontade livre de Deus, o qual não impede a racionalidade subsequente

de tudo o que Ele chama à existência. O único ser necessário é Deus,

tudo o mais é contingente, porque tudo é fruto da sua bondade e liber-

dade.

A absoluta liberdade de Deus, Sumo Bem, implica que nada se lhe

impõe como necessário e universal. O bem não é bem pela sua perfeita

lógica interna, mas porque Deus o quis assim, quando poderia tê-lo con-

figurado de outro modo.43

Deus não só é livre de criar, mas também de

eleger a constituição lógica interna de cada uma das criaturas.

A liberdade divina reflecte-se nos seres humanos, criados à ima-

gem de Cristo e, portanto, livres e criativos44

, capazes de responder

positivamente ao amor divino (―condiligentes‖), dentro dos limites da

própria criaturidade.45

O pecado obscureceu a nossa semelhança com o

Deus trinitário, mas não anulou a natureza humana, criada para a glorifi-

cação de Deus, ou seja, para o diálogo e a doação de si mesmo por amor.

Supera-se assim o pessimismo antropológico daqueles que consideram o

homem incapaz de altruísmo.

2. Amor gratuito, que cria diálogo e comunicação

Escoto sublinha a absoluta liberdade de Deus e o seu amor gra-

tuito, sem limites. Tudo o que existe é fruto do seu amor desinteressado

————— 41

Ord. I d. 19 q. 2n. 54 (V 290): ―Subsistere autem, id est «incommunicabiliter

per se esse», convenit personae primo.‖ 42

O. TODISCO, Il dono dell'essere. Sentieri inesplorati del medioevo

francescano, Padova 2006, 47: ―Le creature [sono] state volute non perché in sé le

migliori – più vere di altre, più razionali, più armoniche di altre... ma migliori perché

volute‖. Na obra de Todisco o leitor encontrará uma exposição ampla e articulada da

linha de pensamento que aqui expressamos sobre Escoto. 43

Ord. II d. 1 q. 2 n. 91 (VII 48). 44

Rep. IV d. 15 q. 4 n. 38 (Vivès XXIV 246): ―Libertas est pretiossima res, et

nobilissima quae est in anima, et per consequens in homine.‖ 45

Rep. I d. 17 q. 2 n. 7 (Vivès XXII 211).

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63

e tem como finalidade o amor, independentemente de qualquer mérito ou

qualidade46

. Nem sequer a alma de Cristo mereceu a sua glória. Tudo é

dom.

O homem existe porque Deus (Sumo Bem) amou-o gratuitamente.

Não fomos criados porque essa tenha sido uma opção razoável e lógica,

mas porque Deus, na sua imensa bondade, assim o quis, quando poderia

ter optado por outras inumeráveis possibilidades. No início de tudo está

a vontade livre e gratuita de Deus, o qual não impede que, uma vez

criado, cada ser criado tenha uma própria coerência lógica.

Se existimos não é porque tenhamos direito a isso (argumento

racionalista), mas por puro dom, porque Alguém quis que assim fosse

(voluntarismo).47

Antes de recebermos o dom da vida não éramos nada;

portanto, todo o nosso ser é fruto da vontade divina, que quis chamar à

existência, quando poderia ter elegido outras infinitas possibilidades.

Assim pois, tudo quanto existe é ontologicamente contingente, fruto da

vontade amorosa, livre e gratuita de Deus, nascemos como dom e à doa-

ção estamos chamados.

A actividade divina ad extra é sempre fruto do amor e orientada ao

amor. Criando, Deus manifesta a sua bondade infinita, dá espaço ao

diverso de si, renuncia a ser o único existente. Cria porque ama, e além

disso, predispõe para que todos possam amá-lo livremente. A Kenosis de

Deus manifestará posteriormente esta dinâmica de amor infinito, que

respeita o fim de cada ser. Deste modo, Deus torna possível o diálogo

pessoal, algo muito distinto dos monólogos dos tipos de religiosidade

consumista. Todos os seres são fruto do amor trinitário que, gratuita-

mente, cria e gera relações de comunhão e diálogo.

O ser humano foi criado à imagem e semelhança do Criador, mas é

ontologicamente dependente e, portanto, nunca poderia dialogar com o

Deus transcendente se não fosse gratuitamente elevado à dignidade de

interlocutor. Encontramo-nos aqui na complexa questão filosófica do

encontro entre absoluto e contingente, entre infinito e finito. A união

hipostática em Cristo realiza este enlace de forma eminente. N’Ele e por

Ele, também nós recebemos a capacidade de amar livremente o nosso

Criador com um amor puro e ordenado. O conhecimento e a especulação

————— 46

A criação é fruto da vontade divina. Ord. II d. 1 q. 2 n. 91 (VII 48). 47

Ord. I d. 8 p. 2 q. un. n. 300 (IV 325).

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intelectual só podem servir de preparação a essa comunhão beatífica48

que o amor de amizade pode proporcionar.49

3. Jesus Cristo, o perfeito interlocutor de Deus

A actividade ad extra de Deus-Amor é expressão coerente e orde-

nada do seu ser. O Deus trinitário, comunidade de pessoas, decide criar,

livre e gratuitamente, algo que é distinto de si mesmo, com a finalidade

de compartilhar com Ele o seu amor.50

Entre todos os possíveis co-

-amadores, Deus gera Cristo como interlocutor perfeito, Aquele que

pode responder com um amor infinito como é próprio de si.51

A união

hipostática das naturezas, humana e divina, na pessoa de Cristo significa

que Ele é o mais próximo do amor com que Deus se ama, o que melhor

pode responder, o mais próximo à sua finalidade essencial.52

Assim,

pois, a alma de Cristo é a primeira a ser predestinada à mais alta comu-

nhão amorosa com a Trindade, independentemente dos homens serem

criados ou não.53

A predestinação de Deus e, n’Ele, a de todos os seres racionais,

tem como fim primário a glória de Deus.54

Isso não impede, mas

exige a liberdade para amar,55

pois o que é fruto do amor tende ao

————— 48

Ord. prol. p. 5 q. 2 n. 353 (I 229). 49

Cf. Ord. IV d. 49 q. 2 n. 27-32 (Vivès XXI 52-55). Escoto distingue entre o

amor de desejo (concupiscência) e o amor de amizade (caridade). O segundo é o mais

perfeito, pois move-nos a amar a Deus por Ele mesmo e ao próximo por Deus. Ord. I d

1 p. 3 q. 5 n 183 (II 121). Rep. III d. 7 q. 4 n. 5 (Vivès XXIII 303): ―[Deus] diligit se

aliis, et iste est amor castus‖. 50

Deus quer criar uma familia de co-amadores. Rep. III d. 7 q. 4 n. 5 (Vivès

XXIII 303). 51

Ord. III d. 7 q. 3 n. 61 (IX 287). 52

Rep. III d. 7 q. 4 (Vivès XXIII 303). 53

Rep. III d. 7 q. 4 (Vivès XXIII 303). 54

Ord. I d. 40 q. un n. 4 (VI 310). Ord. III d. 32 q. un n. 21 (X 136-137):

―[Deus] vult alios habere condiligentes, et hoc est velle alios habere amorem suum in

se, - et hoc est praedestinare eos.‖ 55

Deus deseja a salvação de todos e concede os dons necessários para que

possam acolhê-la em liberdade. Ord. I d. 46 q. un. n. 7 (VI 379). De facto, a morte de

Jesus Cristo será meritória porque Ele a acolhe voluntariamente. Ord. III d. 16 q. 2

n. 56 (IX 559): ―ut volita et acceptata a voluntate, fuit meritoria et non violenta‖.

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65

amor.56

Deus não tem necessidade de nós, ama-nos e deseja o nosso

amor.57

Enquanto obra prima de Deus, Cristo é também o sumo bem de

todos os demais seres,58

o mediador universal, o centro de toda a activi-

dade amorosa de Deus ad extra, o ponto de encontro entre o divino e o

humano. N’Ele, por Ele e para Ele são pensados e criados os anjos, os

homens e todas as coisas.59

Tanto na ordem natural como na sobrenatural

encontram o seu sentido. Maria Imaculada será a primeira beneficiada da

sua mediação e, com ela, todos fomos feitos filhos no Filho.

Este plano eterno, amoroso, de Deus não poderia estar condicio-

nado pela actuação posterior da criatura humana, pois entre outras

razões, esta nem sequer estava prevista na mente de Deus.60

Cristo é pre-

destinado a ser glorificador de Deus antes que o mundo existisse e antes

que fosse previsível a queda de Adão.61

Deus, que ama de um modo

ordenado, quer a glória de Cristo antes de qualquer outra actividade que

possa conduzir a essa meta.62

Por isso, a redenção não é contemplada

nesse primeiro momento e tampouco é o motivo primário da encarna-

ção.63

Tudo é eleição livre do amor de Deus, em conformidade com o seu

eterno plano amoroso. Deus poderia ter escolhido outros modos de nos

redimir,64

mas escolheu o que melhor expressa o seu amor incondicional

para connosco.65

Se Cristo aceita livremente a morte de cruz não é para

aplacar a ira divina e reparar a justiça burlada, mas antes como expressão

suprema do amor infinito de um Deus que nos quer para Si.

————— 56

Ord. III d. 32 q. un. n. 21 (X 136-137). 57

Rep. III d. 32 q. un n. 10 (Vivès XXIII508). 58

Ord. III d. 7 q. 3 n. 63-66 (IX 288). 59

Rep. III d. 32 q. un n. 11 (Vivès XXIII 508). 60

Ao falar do plano de Deus não se assinalam momentos de sucessão temporal,

mas somente lógica, pois em Deus não há antes nem depois. 61

Ord. III d. 19 n. 6 (Vivès XIV 714); J. DUNS SCOTO, Lectura (Lect.), III d. 19

q. un. n. 20 (XXI 32). 62

Ord. I d. 41 q. un. n. 41 (VI 332-333). 63

Rep. I d. 41 q. un. n. 8 (XXII 482). 64

A Encarnação é uma eleição livre e gratuita de Deus. Ord. IV d. 2 q. 1 n. 11

(Vivès XVI248). Cf. Ord. III d. 20 q. un. n. 10 (Vivès XIV 737). 65

O Amor de Deus fica evidenciado no modo de nos redimir. Ord. III d. 20 q.

un. n. 10 (Vivès XIV 738).

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66

A comunicação amorosa é o primeiro objectivo da actuação de

Deus ad extra. Esse objectivo é, pois, prioritário e ascendente à ruptura

do diálogo que a queda de Adão provocara. A queda do homem não

pode ter destruído o plano primogénito de Deus, reduzindo a história a

um retorno fastidioso ao paraíso perdido e, alem disso, exigindo o paga-

mento da morte na cruz. Essa concepção subordinaria Cristo ao homem,

o que seria absurdo.66

Cristo tem o primado absoluto sobre tudo o criado

e, no final dos tempos, o apresentará ao Pai como oferenda de amor.

Assim, pois, o melhor está ainda para chegar.

Frente ao relativismo religioso e à religiosidade desencarnada e

impessoal, Escoto proclama que todo o humano encontra em Cristo o

seu sentido, incluindo a dor e a fragilidade. O Crucificado, que sofre

connosco, é o único rosto que Deus nos deu. Em Cristo, Deus experi-

mentou a tragédia do homem e fez-se seu companheiro de caminho. Ele

restabelece o diálogo amoroso que o pecado tinha rompido e fá-lo acei-

tando livremente a doação de si mesmo na cruz.

B) DIGNOS PORQUE AMADOS

O único ser necessário é o próprio Deus; todos os demais são con-

tingentes, ou seja, existem porque Ele o quis, sem que existam razões

suficientes para isso67

. A criação é um acto de amor gratuito, imerecido,

completamente livre de Deus.

1. O valor incondicional da pessoa humana

O homem não é um ser pensante (res cogitans), dominador, mas

um ser pensado (res cogitata), infinitamente amado. Se existo é porque

Deus me amou e pensou em mim, sem que existisse nenhuma razão para

ter-me escolhido. É uma questão de gratuidade, de amor desinteressado,

de vontade.68

O dito cartesiano ―penso, logo existo‖ muda-se em ―sou

amado, logo existo‖.

————— 66

Ord. III d. 7 q. 3 n. 64-66 (IX 288). 67

Rep. II d. 1 q. 3 n. 3 (Vivès XXII 531). 68

Deus amou-nos porque quis, pois pode fazer livremente tudo o que não seja

contraditório. Ord. I d. 44 q. un. n. 3 (VI 363-364): Ord. I d. 8 p. 2 q. un. n. 283 (IV

314).

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67

O valor humano não reside na sua substância (―eu pensante‖,

―racional‖, dominador), mas na bondade de Deus. O homem existe por-

que Deus (Sumo Bem) o amou gratuitamente e, em consequência, é um

ser bom, chamado à doação de si mesmo por amor. O importante não é a

sua capacidade mental, mas o facto de ter sido amado gratuitamente,

eleito entre outros muitos possíveis, hospedado sem merecê-lo.

A dignidade do homem não depende do êxito das suas acções, mas

da relação gratuita que Deus estabeleceu com ele mesmo antes da cria-

ção. A sua identidade não resulta do que tem, mas da sua capacidade de

doar-se e de construir relações significativas. Com a ajuda da graça

divina, podemos dialogar, fiar-nos do outro, pois o homem não é um

lobo para o homem. A capacidade de amar é mais forte que o egoísmo e

que as tendências pecaminosas, ainda que a prudência seja necessária. A

natureza humana não foi mudada radicalmente pelo pecado original.69

2. Reconhecer-se criatura

Frente à pretensão ingénua do homem actual, que quer obter tudo

rapidamente e sem esforço, Escoto convida a reconhecer-se criatura

dependente e limitada, mas infinitamente amada por Deus. O ser humano

é contingente, ontologicamente dependente, e deve reconhecer-se como

tal, obedecendo humildemente ao seu criador.70

Isto não significa renun-

ciar à própria dignidade e às próprias potencialidades, mas reconhecer

que a verdade sobre si mesmo reside na liberdade bondosa e gratuita de

Deus.

Enquanto que os filósofos tendem a afirmar a perfeição autossufi-

ciente da natureza, Escoto insiste na necessidade da graça.71

Tudo o que

somos e temos é puro dom. Não somos amados porque sejamos dignos,

mas somos dignos porque somos amados.72

Ainda que seja pequeno

(minoridade), sou querido.

————— 69

Cf. Lect. II d. 20 q. 2 n. 21-29 (XIX 195 197). 70

QQMelapli. IX q. 12 u. 3 (IV 611-612). 71

Os filósofos pagãos tentaram explicar tudo racionalmente, desde a

autossuficiência da natureza. Ord. prol. p. 1 q. un. n. 5 (I 4). 72

Todos os seres criados são bons porque queridos, não pela sua utilidade: Ord.

III d. 19 q. un. n. 7 (Vivès XIV 718); Rep. I d. 48 q. un. (Vivès XXII 512).

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68

O ideal humano não é o do super-homem impassível, sempre ven-

cedor. Tudo o que o homem é, e tudo o que o rodeia, é querido e amado

por Deus, sem que existam razões suficientes para que assim seja. Nada

do que acontece ao homem é indiferente a Deus,73

que quis manifestar-se

na debilidade. Portanto, é possível uma relação harmónica, hospitaleira,

respeitosa com os outros, com a natureza e com o próprio corpo, pois a

sua dignidade deriva da livre vontade de Deus. Não se trata de dominar

ou subordinar o que sou e o que me rodeia, mas de coordenar tudo, res-

peitando a riqueza da diversidade.

3. Livres para amar

Nesta perspectiva, a matéria e o próprio corpo deixam de ser algo

alheio ou perigoso. Todo o nosso ser, corpore et anima unus,74

é fruto do

amor divino e, portanto, digno. Sendo fruto do amor livre e gratuito de

Deus, estamos chamados a amar a todos na liberdade e gratuidade. Maria

é também o nosso exemplo, com o seu modo de colaborar livremente na

obra de Deus.75

Assim também de nada serviria a mortificação do corpo se não

fosse expressão da minoridade e da pobreza interior. Não se trata de

subordinar o corpo à alma, mas de coordenar tudo o que somos, para que

nada nos desvie da resposta agradecida a quem nos amou. Estar orde-

nado é muito distinto de estar subordinado. No mundo clássico propu-

nha-se subordinar o corpo, subjugá-lo mediante a mortificação, para

poder assim libertar a dimensão espiritual e racional que nele está amar-

rada, ou seja, para poder pensar sem que as paixões o impeçam.

No pensamento de Escoto, todavia, o corpo não é inimigo da alma,

mas o seu necessário e harmonioso complemento, a corporeidade de

cada homem tem uma entidade e um valor ontológico em si mesmo.76

Por isso, a mortificação tem como objectivo preparar-se para responder

————— 73

Os 11, 8-9: ―Como poderia abandonar-te, ó Efraim? (…) comovem-se as

minhas entranhas.‖ 74

CONCILIO VATICANO II, Constituição Pastoral Gaudium et Spes (GS),

7.12.1965, n. 4. Escoto defende que a substância do ser humano só se dá na unidade de

alma e corpo. Ord. IV d. 45 q. 2 n. 14 (Vivès XX 306). 75

Na sociedade que acentuava a passividade da mulher, Escoto sublinha o papel

activo de Maria na sua maternidade virginal: Ord. III d. 4 q. un. n. 47 (IX 216). 76

Ord. IV d. 11 q. 3 n. 55 (Vivès XVII 436)

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69

livremente, com todo o nosso ser, a Deus que livremente nos criou. A

mortificação permite-nos ―conservar a paz da alma e do corpo‖,77

ou

seja, faz-nos livres para amar. Tudo o que o homem é e realiza deve ser

expressão da sua resposta amorosa a Deus. Ama-l’O é o único acto bom

em si mesmo, e portanto, irrenunciável.78

4. O pecado, ruptura do diálogo amistoso

Deus criou o ser humano sem que existisse nenhum motivo para

isso e destinou-o, em Cristo, a participar da vida trinitária. O pecado ori-

ginal não destruiu a natureza que Deus lhe deu à imagem do Filho.79

Se

somos fruto do amor e a Ele estamos destinados, o pecado é ir contra a

nossa própria natureza, renunciando conscientemente à amizade que

Deus nos oferece.

Escoto rejeita o gnosticismo daqueles que identificam o pecado

com o erro, de modo que só o iluminado seria capaz de resistir às

sugestões do mal. Antes da verdade e da lógica, Escoto acentua a liber-

dade e o amor.

Mais que a ruptura de uma ordem justa, Escoto entende o pecado

como uma infidelidade, Assim também, Escoto nega que o pecado origi-

nal seja um contágio transmitido através da carne contaminada; pertence

à ordem moral, não ao físico.80

Rejeita assim qualquer semelhança do

pecado original e pessoal com um mecanismo mágico ou automático,

enquanto que afirma o seu carácter moral e relacional.81

O pecado pessoal é ruptura do diálogo, renúncia consciente a amar

o Amor.82

Desta maneira a criatura contradiz o juízo da recta razão83

e

dirige-se para a morte do isolamento egoísta.

A Encarnação não está determinada pelo pecado, pois isso signifi-

caria que o actuar divino estaria condicionado necessariamente pelo erro

————— 77

S. Francisco de Assis, Admonições, 15, 1-2, in FF 1, 78

Rep. IV d. 28 q. un. n. 6 (Vivès XXIV 377). 79

Lect. II d. 29 q. un. n. 22 (XIX 289). 80

Ord. II d. 30 q. 2 n. 14 (VIII 322). 81

Ord. III d. 33 q. un. n. 76 (X 175). 82

Desse modo a criatura renuncia ao primeiro princípio prático que é ―Deus est

diligendus‖. Ord. IV d. 46 q. 1 n. 10 (Vivès XX 426). 83

Um acto é moralmente bom quando há harmonia entre a vontade e a recta

razão. Rep. II d. 35 q. un. n. 10 (Vivès XXIII 182); Ord. III d. 23 n. 74 (X 249).

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70

do homem. Deus não se sente obrigado a reparar a ruína que o pecado

provoca na ordem da justiça. Ele actua sempre livremente e na lógica do

amor, porque quer que alcancemos o nosso verdadeiro fim. O amor pre-

valece sobre a justiça.84

Não obstante, o amor de Deus não poderia

permanecer indiferente ante a cegueira humana que, na sua infidelidade,

se encaminha para a morte. Daí a redenção, a doação de Deus até à morte

na cruz.

C) RELAÇÕES BASEADAS NA LIBERDADE E NA GRATUIDADE

―O homem é o lobo do homem‖85

repetem aqueles que olham com

suspeita para o ser humano e que defendem a via do armamento como

único modo de manter a paz (Si vis pacem, para bellum). O cristianismo

contradiz esta lógica. Frente à guerra de interesses e às relações compe-

titivas do eu dominador, a concepção antropológica de Escoto assenta as

bases para as relações na liberdade e gratuidade.

1. Todo o ser humano é um interlocutor válido

Em Cristo, todos os seres racionais, começando por Maria, foram

predestinados a um eterno diálogo amoroso com Deus.86

Essa

predestinação à visão beatífica não é condicionamento escravizante, mas

liberdade para amar.87

Na sua infinita bondade, Deus quer que as criatu-

ras racionais alcancem em Cristo a sua meta final, ou seja, a comunhão

com Deus.88

Alcançando essa beatitude a pessoa realiza plenamente a

sua própria natureza,89

que foi criada para o amor. A reprovação, pelo

contrário, é fruto do mau uso da liberdade.90

————— 84

Ord. III d. 20 q. un. n. 10 (Vivès 738). 85

―Homo hornini lupus‖. Esta afirmação de Plauto (Asinaria, acto II),

largamente repetida, reflecte uma concepção antropológica pessimista. Tomás de

Aquino preferia afirmar: ―Homo homini naturaliter amicus‖. S.Th II-II q. 114 a. 1 ad. 2. 86

Lect. III d. 19 q. un. n. 31 (XXI 36-37). 87

O homem pode rejeitar o destino beatífico que Deus lhe preparou. Ord. I d. 41

q. un. n. 40 (VI 332). Cf. Ord. I d. 41 q. un. n. 42 (VI 333): ―Reprobado ergo habet ex

parte obiecti rationem, scilicet peccatum finale praevisum‖. 88

Só Deus pode satisfazer plenamente o desejo profundo das criaturas. Rep. II d.

23 q. un. n. 6 (Vivès XXIII109). Cf. Ord. prol. p. 1 q. un. n. 32 (I 19). 89

Deus quer a realização plena do ser humano, ainda que este possa opor-se e

fazer malograr o plano de Deus. Ord. II d. 33 q. un. n. 18 (VIII 368). 90

Ord. Id. 41 q. un. n. 46 (VI 334).

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71

O facto do ser humano ser imago Dei não deve ser entendido no

sentido estático – por ter uma comum natureza racional (res cogitans) –,

mas antes de mais no sentido relacional: pela capacidade de amar e doar-

-se em liberdade. Também as pessoas divinas são dinâmicas, em contí-

nua relação.91

Criado à imagem do Verbo encarnado, o homem está feito

para o diálogo livre e afectuoso, com tudo o que o rodeia e com o pró-

prio Deus.92

A bondade do ser – de todos os seres – leva à gratuidade do

dom.

Em contraste com a bondade e gratuidade que está na base da teo-

logia escotista, hoje predomina uma concepção antropológica negativa,

que leva a relações ferozmente competitivas, ao eficientismo (do ut des)

e ao ―usa e deita fora‖ do consumismo mais desenfreado. O eu autossufi-

ciente e individualista procura conhecer e dominar; usa a informação em

termos de poder, em vez de buscar com ela a comunhão;93

procura

conhecer tudo sobre os outros para os dominar; é incapaz de re-conhecer

que o valor dos outros seres não depende dele mesmo. Deste modo, a

pessoa é arrastada à ―guerra de interesses‖ (capitalismo) ou é reduzida a

uma peça anónima na engrenagem colectiva (colectivismo). Em ambos

os casos o sujeito não é respeitado nem respeita o outro, não se sente

movido ao altruísmo nem a comunicar-se para criar comunhão.94

O ideal liberal de um indivíduo completamente autónomo e auto-

suficiente, que entra em sociedade por pura conveniência utilitarista, cor-

responderia ao deus único, monólitico e soberano de algumas filosofias.

Esse deus não interviria necessariamente no mundo, pois tê-lo-ia feito

como um mecanismo autárquico.

————— 91

J. DUNS SCOTO, Quodlibet (Quodl), q. 12 n. 6 (Vivès XXV 476). 92

Ord. IV d. 49 q. 10 n. 2 (Vivès XXI 318-319). 93

Face ao positivismo lógico, que define a informação como uma descrição e

predicação objectiva do mundo, alguns autores procuram recuperar o aspecto

subjectivo, através da distinção entre informação e comunicação. A comunicação

plenamente humana não pode reduzir-se a uma simples transmissão de informação

(como acontece entre duas máquinas), mas implica fenómenos de interpretação e de

compreensão. Comunicar é relacionar-se, partilhar com alguém um significado em

vistas a uma maior comunhão. Cf. F. MARTÍNEZ DÍEZ, Teología de la comunicación,

Madrid 1994, 28. 94

Comunicação e comunidade são termos afines, que se implicam e exigem

mutuamente. W. SCHRAMM - W. E. PORTER, Men, women, messages, and media;

understanding human communication, Harper & Kow, New York 19822, 2-3.

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72

Para o cristianismo, por outro lado, a pessoa é intrinsecamente

social, pois foi criada à imagem e semelhança do Deus trinitário, que é

comunicação na pluralidade, fonte de toda a unidade e de toda a dife-

rença. O homem nasce já como ser livre e social.95

A sua dignidade e

sociabilidade são anteriores à evolução e à história. O seu valor não

depende do meu pensamento, mas só de Deus, sumo bem, que o pensou

e amou desde toda a eternidade. Mais que conhecer, o sujeito tem de re-

-conhecer o outro. Ele é um tu muito antes de relacionar-se com os

semelhantes, porque, desde sempre, Deus o tratou e amou como tal.96

Conhecer é amar, contemplar o mistério do outro e sentir-se movido a

admirá-lo e amá-lo. Portanto, a verdade é inseparável da bondade.

A dignidade e a razão da existência de todos os seres não depende

da mente do sujeito pensante, mas da absoluta liberdade e gratuidade de

Deus que é Amor. O pecado dividiu o homem por dentro, mas não anu-

lou a sua capacidade de amar, de transcender o próprio egoísmo com a

ajuda da graça.97

Em consequência, o domínio déspota do eu pensante,

que configura toda a realidade a partir de si mesmo, transforma-se em

acolhimento afectuoso de cada ser que, em si mesmo, é um dom divino.

2. Relações gratuitas, desinteressadas

Desde o paradigma escotista da liberdade, conclui-se a urgência da

resposta de gratidão, gratuita, ao Deus que nos ama, e o encontro respei-

tador, desinteressado, com o outro e com toda a criação. A hospitalidade

absoluta face a todos os seres não é pelo benefício que proporcionam,

mas porque todos são fruto do amor divino, e, portanto, bons em si

mesmos. Quanto mais débil e frágil se mostre a vida (embrião, enfermo,

idoso), mais apela à nossa responsabilidade, pois Deus quis mostrar a

sua grandeza na debilidade.

O ser humano é sempre um mistério para mim, porque a sua exis-

tência não depende de leis intrínsecas à sua pessoa, mas da vontade de

Alguém que me transcende. Portanto, sinto-me movido a sair ao seu

encontro e a respeitar a sua alteridade, sem prepotência, sem a ânsia de o

————— 95

Cf. GS, 24. 96

J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios. Antropología teológica fundamental,

Santander 1988, 181-182. O amor ao outro faz parte da resposta amorosa a Deus. 97

Cf. Lect. II d. 34-37 q. 4 n. 5 (XIX 337).

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73

dominar, porque a sua existência não se deve a mim. Ele é um tu desde

muito antes de me relacionar com ele, porque, desde sempre, Deus o

tratou e amou como tal. Por isso, o ser humano tem uma dignidade pes-

soal que é prévia a qualquer contacto com o seu semelhante. Deus outor-

gou-lhe esse estatuto de pessoa que tornará possível esse autêntico

encontro igualitário com os demais.98

A resposta ética não será superficial, voluntarista, típica de um

sujeito dominador que ―quer‖ amar o outro, que ―quer‖ imitar a kenosis

de Cristo, mas antes uma ética de alteridade e de compaixão. Desco-

brindo que todos somos fruto do amor gratuito, imerecido, de Deus, o

sujeito sente-se radicalmente movido ao amor gratuito e à hospitalidade

incondicional.99

D) DIALOGANDO COM TODOS OS SERES NO JARDIM DO COSMOS

Na perspectiva de Escoto, as coisas são irmãs, dignas de serem

amadas por si mesmas, porque são fruto do amor divino que cria e sus-

tenta. O louvor, a admiração e o agradecimento substituem qualquer

intento de apropriação ou domínio. Isto não significa que não se possa

tocar ou melhorar. A criação não é algo estático, imutável, mas projecto,

abertura, reino da liberdade. O homem está chamado a desenvolver as

potencialidades de tudo o que existe, mas sempre em conformidade com

o plano divino.

1. O mundo, expressão de bondade

Deus cria gratuitamente e alegra-se com a criação. O acto criador

não é fruto da necessidade, pois Deus sempre age livremente. O mundo

não é expressão de potência, mas expressão de bondade, é um dom.

Cada criatura é uma manifestação do amor divino que supera a nossa

capacidade de raciocínio, sem deixar por isso de ser compreensível e

lógica em si mesma. Deus poderia ter criado coisas melhores em si

mesmas, mas desde o momento em que, livremente, decide criar algo,

————— 98

Portanto o amor ao outro faz parte da resposta amorosa a Deus. Ord. III d. 28

q. un. n. 25 (X 91). 99

Imitando o amor gratuito e desinteressado de Deus, o homem está chamado a

amar os seus semelhantes sem procurar possuí-los, pois neles encontra o próprio Deus.

Ord. III d. 28 q. un. n. 15 (X 28).

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isso converte-se objectivamente no melhor possível, pelo facto de ter

sido escolhido e querido gratuitamente por Deus. De facto, Deus não

deixará de querer o que criou.100

Esta explicação do acto criador não vai contra a razão, não apela a

um comportamento caprichoso, não impede a formulação racional, mas

aponta a uma liberdade divina que supera a nossa capacidade de com-

preensão.101

Todos os seres são expressão do amor gratuito, livre, inco-

mensurável do Criador.

A natureza não é inóspita ou hostil, algo que o homem tenha de

submeter, mas um lar, uma habitação acolhedora. A dignidade e beleza

global do universo só a captam o contemplativo.102

Duns Escoto defende

a univocidade do ser,103

estabelecendo assim uma conexão fundamental

(não só análoga) entre os seres deste mundo e o próprio Deus.104

Ao mesmo tempo, Escoto afirma a singularidade única e irrepetí-

vel de cada ser, porque o Criador deu-lhe esse estatuto ao elegê-lo e

individualizá-lo entre todos os possíveis. A diferença não é nem defi-

ciência nem imperfeição, o individual prevalece sobre o universal e,

portanto, é mais perfeito o conhecimento do concreto. O entendimento

humano está predisposto para receber intuitivamente essa singularidade,

ainda que na situação actual o faça normalmente a partir do conheci-

mento universal. Escoto contradiz assim a filosofia grega, que sustenta a

superioridade do conhecimento abstracto e a sua necessidade para chegar

a compreender o individual.

Esta concepção filosófica de Escoto reforça a autonomia das cria-

turas. Nada é superficial ou acessório, pois Deus tudo conhece e tudo

————— 100

Ord. I d. 41 q. un. n. 54 (VI 338): ―Nullum enim aliud bonum, quia bonum,

ideo amatum ab illa voluntate‖. 101

Escoto insiste que Deus actua de modo ordenado e racional. Cf. Ord. III d. 32

q. un. n. 21 (X 136). Não têm, pois, nenhum fundamento aqueles que o acusaram

injustamente de defender um voluntarismo caprichoso, mais próximo ao fideísmo que à

formulação racional. 102

Ord. prol. p. 5 q. 2 n. 355 (I 231). 103

Ord. I d. 3 p. 1 q. 2 n. 26 (III18). Cf. Ord. I d. 3 p. 1 q. 3 n. 137 (III85);

Escoto define a univocidade como ―unitate rationis eius quod predicatur‖. (Ord. I d. 8

p. 1 q. 3 n. 89 (IV 195)) e distingue três tipos: física, metafísica e lógica. Cf. De anima,

q. 1 n. 6 (Vivès III 477). 104

Lect. I d. 3 p. 1 q. 2 n. 113 (XVI 266).

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ama na sua singularidade.105

Isto pode aplicar-se ao diálogo como atitude

fundamental do ser humano. Dialogar é reconhecer a riqueza da diversi-

dade, respeitá-la e, ao mesmo tempo, buscar pontos de encontro e de

entendimento.

Desde a perspectiva escotista pode-se afirmar que a perfeição não

se consegue alheando-nos da matéria e do próprio corpo, para conseguir

o pensamento puro e o espírito imperturbável, mas assumindo e coorde-

nando tudo o que somos. A profissão do voto de pobreza não deve ser

entendida como afastamento maniqueísta da realidade, mas como liber-

dade interior para amar as pessoas e as coisas, sem a ganância de

dominá-las ou possuí-las. O único absoluto é Deus, por isso o homem

não pode deixar-se atrapalhar pelas coisas, nem tão pouco pode deprecia-

-las, nem utiliza-las arbitrariamente.

O tempo messiânico, já presente, mas ainda não em plenitude,

obriga a ser peregrino (homo viator), que não pára para escutar o cântico

das sereias, mas continua a caminhar, com os olhos fixos no seu fim

último que é Deus.

2. Dignidade e valor de cada uma das criaturas

Na visão de Escoto, a contemplação e a escuta substituem o domí-

nio déspota. A criação tem um valor em si mesma, que é prévio e inde-

pendente da utilidade que se lhe possa dar. Se o ser humano é digno por-

que é amado, também os demais seres encontram em Deus o valor que

por si mesmos não merecem. A contingência de todos os seres criados

não impede a sua dignidade, pois ela fundamenta-se na bondade de

Deus. Também eles são fruto do amor divino e, portanto, merecem res-

peito, independentemente da utilidade que possam ter para o homem.

Cada uma das criaturas foi chamada por Deus à existência, orde-

nada num ―cosmos‖ e orientada para a nova criação. O homem é

convidado a colaborar nesse plano divino, pois a natureza precisa dele

para desenvolver as suas potencialidades,106

mas deve fazê-lo com

————— 105

Escoto defende a dignidade e a liberdade metafísica do indivíduo, que é

único, irrepetível. Ord. II d. 3 p. 1 q. 6 n. 183 (VII 481): ―Omnis entitas individualis est

primo diversa a quocumque alio‖. 106

Em Cristo o homem é o fim particular da criação: De rerum princ. q. 9 a. 2

sec. 4 (Vivès IV 435-436).

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responsabilidade.107

Amar é querer que o outro seja ele mesmo, segundo

a lógica do seu próprio ser,108

portanto, o ser humano deve respeitar a

entidade de tudo o que existe, independentemente do benefício que lhe

advenha.109

Põe-se, assim, de lado o eu autossuficiente da filosofia ocidental,

que reduz a criação à pura matéria neutra, que o homem tenha de con-

verter em algo útil e positivo. A Bíblia, pelo contrário, afirma que a natu-

reza é rica em si mesma, uma bênção cheia de potencialidades e de vida:

―Deus vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa.‖110

Escoto defende a dignidade e a liberdade metafísica do indivíduo,

que é único e irrepetível. A diferença individual ou haecceidade (haec-

ceitas)111

é uma característica ontológica positiva, que imita a infinita

individualidade divina. Graças a ela, cada um dos seres é único, irrepetí-

vel, independentemente da natureza que compartilhe com o seu género

ou espécie. Realça-se assim a bondade e singularidade de todos os seres,

pois todos são fruto da vontade livre e amorosa de Deus.

Todos estamos intimamente relacionados na caridade, pois forma-

mos parte de um único projecto de amor, cada um com a sua própria

dignidade e com os seus objectivos específicos. A alteridade é parte

intrínseca do ser humano. Estamos chamados a contemplar, maravilha-

dos, o mistério do mundo e a administrar responsavelmente o que Deus

nos confiou.

A mentalidade utilitarista deixa para trás o diálogo e a escuta. As

coisas não são meros objectos que podemos usar a nosso bel-prazer,

segundo as necessidades do momento. Nem sequer são degraus para nos

aproximarmos de Deus, deixando-as debaixo dos nossos pés. O cristão

não utiliza a natureza como um senhor déspota, nem tão pouco se deixa

————— 107

J. DUNS SCOTO, De rerum princ. q. 13 a. 1 sec. 6 (Vivès IV 497-498):

―Homo ordinatur ad finem suum per bonum usum creaturarum, et deordinatur per

abusum earum‖. 108

O. TODISCO, «Dall'io pensó tomista all'io voglio scotista», in Miscellanea

francescana 3-4 (2004) 521. 109

Ord. III d. 27 q. un. n. 16 (X 53). 110

Gn 1, 31. ―Todas as criaturas têm em si a salvação, não há nelas veneno de

morte.‖ Sb 1, 14. 111

Ord. III d. 1 p. 1 q. 3 n. 132 (IX 59): ―Singularitas praecedit rationem

suppositi‖.

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agarrar por ela. Situando-se no meio dos seres, o franciscano descobre-se

irmão, afectuosamente, pois em tudo descobre a presença de Deus

encarnado. Mais do que projectar sobre a natureza os seus sentimentos,

escuta, acolhe e une-se à sinfonia de todo o cosmos.

3. Até que, em Cristo, todos sejamos um no Amor

O diálogo amoroso de Deus com a criação encontra em Cristo a

base adequada e definitiva. A criação inteira gravita em volta d’Ele e

n’Ele encontra a unidade e o sentido. Todos os seres tendem a Deus em

Cristo, o Verbo feito carne. Como se se tratasse de uma pirâmide per-

feita, Cristo é vértice, o ponto focal de tudo o criado e o encarregado de

recapitular em si todas as coisas para as apresentar a Deus como ofe-

renda de amor. Esse ponto ómega da criação não será o fim da história

amorosa que, desde antes dos séculos, Deus iniciou com a humanidade

em Cristo.

O valor que Escoto dá ao singular deveria ajudar-nos a apreciar a

diversidade das raças, culturas e religiões como uma riqueza com que

Deus no prendou para que juntos, em absoluta hospitalidade, façamos o

mais belo mosaico em sua honra. Deveria também mover-nos a um

maior apreço pela natureza. Todos os seres, até ao mais pequeno, reflec-

tem a Trindade e, por isso, têm uma dignidade que deve ser respeitada.

Eles necessitam do homem para expressar o seu louvor ao Criador e

poderem desenvolver as suas potencialidades. Unidos a eles, fazemos o

itinerário até Deus. Por isso, enquanto caminhamos unidos a eles, espe-

rando a salvação definitiva, empenhamo-nos em antecipar a chegada dos

novos céus e nova terra.

A felicidade dos bem-aventurados não se reduzirá a ―ver a Deus‖,

ou seja, a um acto do entendimento sujeito-objecto, mas será uma ―frui-

ção do Sumo Bem‖, será unir-se a Ele com um acto de vontade.112

O

amor jamais passará. Quando Cristo apresentar todas as coisas ao Pai,

descobriremos a plenitude do sentido desse diálogo amoroso já iniciado

no tempo e que jamais terá fim.

————— 112

Ord. IV d. 49 q. ex latere, n. 2 (Vivès XXI 163).

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CONCLUSÃO

Ao início deste artigo recordávamos que Paulo VI tinha proposto

Duns Escoto como modelo do diálogo para o período pós conciliar, tanto

pela sua atitude como pela sua doutrina. O Papa assinalava o influxo

positivo que Escoto poderia ter para o diálogo ecuménico e para o

encontro com a cultura contemporânea, marcada pelo ateísmo prático.

Ao longo destas páginas, procurou-se mostrar que essas afirmações do

Papa, mais tarde ratificadas por João Paulo II, continuam a ser válidas na

sociedade da informação.

A superabundância de meios técnicos e as crescentes oportunida-

des de encontro pessoal não bastam por si só para garantir um mundo

sereno, pacífico e solidário. É certo que aumentaram as possibilidades de

comunicação entre os povos e culturas, mas também continua presente o

fechar-se ao Outro e aos outros, a luta de interesses, a recolhimento inti-

mista. A isto devem acrescentar-se os perigos da destruição massiva, o

terrorismo e a contaminação do meio ambiente.

Reeditando o dito ―vícios privados, públicas virtudes‖, o libera-

lismo afirma que a mão invisível do mercado converte automaticamente

em utilidade social o que, na verdade, é uma procura descarada do

próprio interesse. Em vez da colaboração, o eu autossuficiente procura

utilizar tudo a seu capricho, procura a submissão dos demais, exclui a

transcendência e trata o próprio corpo como se fosse um objecto apro-

priado.

A mesma natureza converte-se em objecto passivo do domínio

déspota do homo faber, que procura submetê-la segundo o capricho do

momento, sem sentir-se implicado nela.

Esta mentalidade competitiva bloqueia o diálogo e impede o

altruísmo. Reflecte também uma concepção negativa da natureza

humana, que é vista como algo que facilmente leva ao egoísmo e à inso-

lidariedade. Para evitar males maiores, procura-se justificar a ―inevitá-

vel‖ guerra de interesses, o individualismo feroz e a lei do mais forte.

Neste contexto de desconfiança mútua, propõem-se o homo aeconomicus

e a idolatria do mercado como único horizonte ―viável‖ da actividade

humana.

Face a esta visão negativa da natureza humana, Escoto propõe uma

antropologia baseada na gratuidade e aberta à transcendência. Somos

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dignos porque amados. O nosso valor não depende da nossa eficácia ou

utilidade. Também a criação tem um valor que é independente do

homem.

O ser humano é imagem perene do Deus que é amor e, portanto,

está chamado ao altruísmo e à solidariedade. Se o egoísmo não é

inevitável, então não há necessidade de construir um sistema social

excessivamente centrado no confronto de interesses individualistas. Em

vez de levantar barreiras, podemos potenciar as nossas capacidades

inatas para o diálogo e auto-doação.

Com esta premissa, o sujeito pode reconhecer-se criatura amada

por Deus, aceitar serenamente os próprios limites e iniciar com os outros

um diálogo sincero e enriquecedor, entre iguais. Se o ser é um dom, as

realidades meramente comerciais e utilitaristas do homo aeconomicus

têm de ser subordinadas à gratuidade, à contemplação, à hospitalidade, à

festa, ao sentido lúdico, à arte, ao estar juntos, à partilha gozosa e desin-

teressada.

Trad. GONÇALO FIGUEIREDO OFM

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II — Documentos

DISCURSO DO PAPA BENTO XVI

À FAMÍLIA FRANCISCANA NO

CAPÍTULO INTERNACIONAL DAS ESTEIRAS

Amados irmãos e irmãs

da Família Franciscana!

Com grande alegria dou a todos vós as boas-vindas, nesta feliz e histó-

rica circunstância que vos reuniu a todos: o oitavo centenário da aprovação da

"protoregra" de São Francisco por parte do Papa Inocêncio III. Transcorreram

oitocentos anos, e aquela dúzia de Frades tornou-se uma multidão, espalhada

em todas as partes do mundo e hoje aqui, por vós, dignamente representada.

Nos últimos dias marcastes encontro em Assis para aquele que quisestes cha-

mar "Capítulo das Esteiras", para reevocar as vossas origens. E no final desta

extraordinária experiência viestes juntos encontrar o "Senhor Papa", como

diria o vosso seráfico Fundador. Saúdo-vos a todos com afecto: os Frades

Menores das três obediências, guiados pelos respectivos Ministros-Gerais,

entre os quais agradeço ao Padre José Rodríguez Carballo as suas gentis pala-

vras; os membros da Terceira Ordem, com o seu Ministro-Geral; as religiosas

Franciscanas e os membros dos Institutos seculares franciscanos; e, sabendo

que estão espiritualmente presentes, as Irmãs Clarissas, que constituem a

"segunda Ordem". Sinto-me feliz por receber alguns Bispos franciscanos; e em

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particular saúdo o Bispo de Assis, D. Domenico Sorrentino, que representa a

Igreja de Assis, pátria de Francisco e de Clara e, espiritualmente, de todos os

franciscanos. Sabemos quanto foi importante para Francisco o vínculo com o

Bispo de Assis da sua época, Guido, o qual reconheceu o seu carisma e o

apoiou. Foi Guido quem apresentou Francisco ao Cardeal Giovanni di San

Paolo, o qual o introduziu depois à presença do Papa favorecendo a aprovação

da Regra. Carisma e Instituição são sempre complementares para a edificação

da Igreja.

O que dizer, queridos amigos? Antes de tudo desejo unir-me a vós na

acção de graças a Deus por todo o caminho que vos permitiu percorrer,

enchendo-vos dos seus benefícios. E como Pastor de toda a Igreja, desejo

agradecer-Lhe o dom precioso que sois para todo o povo cristão. Do pequeno

regato que brotou aos pés do Monte Subásio, formou-se um grande rio, que

deu uma contribuição notável à difusão universal do Evangelho. Tudo teve iní-

cio com a conversão de Francisco, o qual, a exemplo de Jesus, "se despojou a

si mesmo" (cf. Fl 2, 7) e, desposando a Dama Pobreza, tornou-se testemunha e

arauto do Pai que está nos céus. Ao Pobrezinho podem ser literalmente aplica-

das algumas expressões que o apóstolo Paulo refere a si mesmo e que me apraz

recordar neste Ano Paulino: "Estou crucificado com Cristo! Já não sou eu que

vivo, é Cristo que vive em mim; e a vida que agora vivo na carne. vivo-a na fé

do Filho de Deus, que me amou e Se entregou a Si mesmo por mim" (Gl 2, 19-

-20). E ainda: "Daqui em diante, ninguém me moleste, pois trago no meu corpo

as marcas do Senhor Jesus" (Gl 6, 17). Francisco recalca perfeitamente estas

pegadas de Paulo e na realidade pode dizer com Ele: "Para mim o viver é

Cristo" (Fl 1, 21). Experimentou o poder da graça divina e está como que

morto e ressuscitado. Todas as suas riquezas anteriores, qualquer motivo de

orgulho e de segurança, tudo se torna uma "perda" a partir do momento do

encontro com Jesus crucificado (cf. Fl 3, 7-11). O deixar tudo torna-se aquele

ponto quase necessário, para expressar a superabundância do dom recebido.

Isto é tão grande, que exige um despojamento total, que contudo não é sufi-

ciente; merece uma vida inteira vivida "segundo a forma do santo Evangelho"

(T 14; Fontes Franciscanas, 116).

Aqui chegamos ao ponto que certamente está no centro deste nosso

encontro. Resumi-lo-ia assim: o Evangelho como regra de vida. "A Regra e a

vida dos frades menores é esta, ou seja, observar o santo Evangelho de nosso

Senhor Jesus Cristo": assim escreve Francisco no início da Regra bulada. Ele

compreendeu-se a si mesmo totalmente à luz do Evangelho. É este o seu fascí-

nio. É esta a sua perene actualidade. Tomás de Celano refere que o Pobrezinho

"levava sempre Jesus no coração. Jesus nos lábios, Jesus nos ouvidos, Jesus

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nos olhos, Jesus nas mãos, Jesus em todos os outros membros... Aliás, encon-

trando-se muitas vezes em viagem e meditando ou cantando Jesus, esquecia-se

de estar em viagem e detinha-se a convidar todas as criaturas a louvar Jesus"

(1C I 9, 115). Assim o Pobrezinho tornou-se um evangelho vivo, capaz de

atrair para Cristo homens e mulheres de todos os tempos, sobretudo os jovens,

que preferem a radicalidade e não as meias-medidas. O Bispo de Assis, Guido,

e depois o Papa Inocêncio III reconheceram no propósito de Francisco e dos

seus companheiros a autenticidade evangélica, e souberam encorajar o seu

compromisso em vista também do bem da Igreja.

Vem aqui espontânea uma reflexão: Francisco teria podido não se

encontrar com o Papa. Muitos grupos e movimentos religiosos se iam for-

mando naquela época, e alguns deles contrapunham-se à Igreja como institui-

ção, ou pelo menos não procuravam a sua aprovação. Certamente uma atitude

polémica em relação à Hierarquia teria conquistado para Francisco não poucos

seguidores. Ao contrário, ele pensou imediatamente em entregar o seu caminho

e o dos seus companheiros nas mãos do Bispo de Roma, o Sucessor de Pedro.

Este facto revela o seu autêntico espírito eclesial. O pequeno "nós" da Igreja

una e universal. E o Papa reconheceu isto e apreciou-o. Também o Papa, de

facto, por seu lado, teria podido não aprovar o projecto de vida de Francisco.

Aliás, podemos imaginar que, entre os colaboradores de Inocêncio III, tenha

havido quem o aconselhasse neste sentido, talvez precisamente temendo que

aquele pequeno grupo de frades se assemelhasse com outras agregações heréti-

cas e pauperistas do tempo. Ao contrário o Romano Pontífice, bem informado

pelo Bispo de Assis e pelo Cardeal Giovanni di San Paolo, soube discernir a

iniciativa do Espírito Santo e acolheu, abençoou e encorajou a comunidade

nascente dos "frades menores".

Queridos irmãos e irmãs, transcorreram oito séculos, e hoje quisestes

renovar o gesto do vosso Fundador. Todos vós sois filhos e herdeiros daquelas

origens. Daquela "boa semente" que foi Francisco, conformado por sua vez

com o "grão de mostarda" que é o Senhor Jesus, morto e ressuscitado para dar

muito fruto (cf. Jo 12, 24). Os Santos repropõem a fecundidade de Cristo.

Como Francisco e Clara de Assis, também vós comprometei-vos a seguir sem-

pre esta mesma lógica: perder a própria vida por causa de Jesus e do Evange-

lho, para a salvar e tornar fecunda de frutos abundantes. Enquanto louvais e

agradeceis ao Senhor, que vos chamou para fazerdes parte de uma "família"

tão grande e tão bela, permanecei à escuta do que o Espírito hoje lhe diz, em

cada uma das suas componentes, para continuar a anunciar com paixão o Reino

de Deus, nas pegadas do seráfico Padre. Cada irmão e cada irmã conserve

sempre um ânimo contemplativo, simples e alegre: voltai sempre a partir de

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Cristo, como Francisco partiu do olhar do Crucifixo de São Damião e do

encontro com o leproso, para ver o rosto de Cristo nos irmãos que sofrem e

levar a todos a sua paz. Sede testemunhas da "beleza" de Deus, que Francisco

soube cantar contemplando as maravilhas da criação, e que lhe fizeram excla-

mar dirigido para o Altíssimo: "Tu és beleza!" (Louvores a Deus 4.6).

Caríssimos, a última palavra que vos desejo dizer é a mesma que Jesus

ressuscitado entregou aos seus discípulos: "Ide!" (cf. Mt 28, 19; Mc 16, 15).

Ide e continuai a "consertar a casa" do Senhor Jesus Cristo, a sua Igreja. Nos

últimos dias, o terramoto que atingiu os Abruzos danificou gravemente muitas

igrejas, e vós de Assis sabeis bem o que isto significa. Mas há outras "ruínas"

muito mais graves: as das pessoas e das comunidades! Como Francisco, come-

çai sempre por vós mesmos. Nós somos as primeiras casas que Deus quer res-

taurar. Se fordes sempre capazes de vos renovar no Espírito do Evangelho,

continuareis a ajudar os Pastores no espírito do Evangelho, continuareis a aju-

dar os Pastores da Igreja a tornar cada vez mais belo o seu rosto de esposa de

Cristo. É isto que o Papa, hoje como na origem, espera de vós. Obrigado por

terdes vindo! Agora ide e levai a todos a paz e o amor de Cristo Salvador.

Maria Imaculada, "Virgem feita Igreja" (cf. Saudação à Bem-Aventurada Vir-

gem Maria, 1), vos acompanhe sempre. E ampare-vos também a Bênção

Apostólica, que concedo de coração a todos vós, aqui presentes, e a toda a

Família Franciscana.

Sinto-me feliz por receber de modo especial o Ministro-Geral junta-

mente com os Frades, irmãs e irmãos de toda a comunidade franciscana espa-

lhados em todo o mundo, presentes nesta audiência. Na celebração do

octingentésimo aniversário da aprovação da Regra de São Francisco, rezo para

que através da intercessão do Pobrezinho, os franciscanos continuem em toda a

parte a doar-se totalmente a si mesmos ao serviço dos outros, especialmente

dos pobres. O Senhor vos abençoe nos vossos apostolados e encha as vossas

comunidades de abundantes vocações.

No octingentésimo aniversário da aprovação da "proto-regra", junta-

mente convosco agradeço a Deus por todo o bem que a Ordem deu à vida e ao

desenvolvimento da Igreja. Agradeço-vos de modo particular o empenho mis-

sionário nos diversos continentes. A exemplo do vosso Fundador perseverai no

amor de Cristo pobre e levai a alegria evangélica a todos os homens. Ampare-

-vos a bênção de Deus.

Sábado, 18 de Abril de 2009