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CADERNOS ESPINOSANOS Estudos sobre o século XVII XVI São Paulo – 2007 ISSN 1413-6651 cadernos_16_ok.pmd 5/10/2007, 11:40 1

Cadernos Espinosanos nº 16

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CADERNOS ESPINOSANOS

Estudos sobre o século XVII

XVISão Paulo – 2007ISSN 1413-6651

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Cadernos Espinosanos /Estudos sobre o século XVIISão Paulo: Departamento de Filosofia da FFLCH-USP,

1996-2007.Periodicidade semestral. ISSN: 1413-6651.

Ficha Catalográfica

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Page 3: Cadernos Espinosanos nº 16

Editora Responsável InstitucionalMarilena de Souza Chaui

Editora ResponsávelTessa Moura Lacerda

Comissão EditorialEduardo Baioni, Henrique Xavier, Homero Santiago.

Conselho EditorialAtilano Domínguez (Univ. de Castilla-La Mancha), Bento Prado Júnior (UFSCar/USP), Diego Tatián (Univ. de Córdoba), Diogo PiresAurélio (Univ. Nova de Lisboa),Franklin Leopoldo e Silva (USP), Jacqueline Lagrée (Univ. de Rennes), Maria dasGraças de Souza (USP), Olgária Chain Féres Matos (USP), Paolo Cristofolini(Scuola Normale Superiore de Pisa) e Pierre-François Moreau (École NormaleSupérieure de Lyon).

Publicação do Grupo de Estudos Espinosanos e de Estudos sobre o Século XVII

CADERNOS ESPINOSANOSESTUDOS SOBRE O SÉCULOXVIIN. XVI, JAN-JUN DE2007 –ISSN1413-6651

Endereço para correspondência:Profa. Marilena de Souza ChauiA/C Grupo de Estudos EspinosanosDepartamento de Filosofia – USPAv. Prof. Luciano Gualberto, 31505508-900 – São Paulo-SP – BrasilTelefone: 0 xx 11 3091-3761 – Fax: 0 xx 11 3031-2431e-mail: [email protected]

Universidade de São PauloReitora: Suely VilelaVice-Reitor: Franco Maria Lajolo

FFLCH - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências HumanasDiretor: Gabriel CohnVice-Diretora: Sandra Margarida Nitrini

Departamento de FilosofiaChefe: Moacyr NovaesVice-Chefe: Caetano Ernesto PlastinoCoordenador do Programa de Pós-Graduação:Marco Antônio deÁvila Zingano

Capa: Camila MesquitaEditoração eletrônica: Pablo Enrique Abraham ZuninoTiragem: 1000 exemplares

AComissãoEditorial reserva-seodireitodeaceitar, recusarou reapresentarooriginalaoautorcomsugestõesdemudanças.

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O Grupo de Estudos Espinosanos do Departamento de Filosofiada Universidade de São Paulo, em 2004, completou 10 anos.Ao longodeste período, diversas atividades foram desenvolvidas e procurou-sefazer o registro delas para, como diz Espinosa, tentar contornar asforças do “tempo voraz que tudo abole da memória dos homens”. OsCadernos Espinosanosse inspiram nesse propósito.

Desde o número X, dedicado ao Professor Lívio Teixeira, osCadernosestão dedicados também aEstudos sobre o século XVII,seu subtítulo. O que, na verdade, expressa algo que já acontecia naprática, pois textos acerca de vários outros filósofos do período sempreestiveram presentes a cada edição.

O objetivo destesCadernoscontinua sendo publicarsemestralmente trabalhos sobre filósofos seiscentistas, constituindoum canal de expressão dos estudantes e pesquisadores deste e de outrosdepartamentos de Filosofia do país.

Porque destinados a auxiliar bibliograficamente aos queestudam o Seiscentos, tanto para os trabalhos de aproveitamento decursos, quanto para a elaboração de outros projetos de pesquisa, estesCadernostambém publicarão, regularmente, ensaios de autoresbrasileiros e traduções de textos estrangeiros, contribuindo com oacervo sobre o assunto.

Esperamos que esta iniciativa estimule os estudos sobre osfilósofos daquele período a que esta publicação é inteiramente dedicadae permita criar ou ampliar a comunicação entre os que estão envolvidoscom a pesquisa desses temas, incentivando, inclusive, outrosdepartamentos de Filosofia a colaborar conosco no desenvolvimentodeste trabalho.

Franklin Leopoldo e Silva

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SSSSSUMÁRIOUMÁRIOUMÁRIOUMÁRIOUMÁRIOSSSSSUMÁRIOUMÁRIOUMÁRIOUMÁRIOUMÁRIO

1. ANEGATIVIDADE INTERROGADA: ESPINOSA ENTREBAYLE E HEGEL

Mariana de Gainza 09

2. NEGAÇÃO E OBJETIVIDADE NACRÍTICA DARAZÃOPURA: UMA LEITURA

DA DIALÉTICATRANSCENDENTAL

Silvana de Souza Ramos 41

3. SABER, AÇÃO E AFETO: O PROBLEMA DA ACRASIAEM ARISTÓTELES E

ESPINOSA

Marcos Ferreira de Paula 61

4. FORMAÇÃO DA RAZÃO NA ÉTICA DE ESPINOSA, SEGUNDODELEUZE

André Menezes Rocha 89

5. CAUSALIDADE E REPRESENTAÇÃO EMBERKELEY: OS DADOS IMEDIATOS DA

SUBJETIVIDADE

Pablo Enrique Abraham Zunino 101

6. CARTA SOBREESPINOSA

Friedrich Nietzsche 131(Trad. Homero Santiago)

7. NOTÍCIAS 139

8. CONTENTS 143

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MARIANA DE GAINZA

A negatividade interrogada:Espinosa entre Bayle e Hegel

MARIANA DE GAINZA*

* Doutoranda do Departamento de Filosofia da USP e bolsista da Fapesp.

Resumo:Qual o lugar da negação no interior de uma filosofia daafirmação ética, como a espinosana? Neste artigo, a dialética hegelianaé retomada para exercitar uma crítica às simplificações queacompanham certas leituras contemporâneas defensoras de umnegativismoou, contrariamente, de umpositivismofilosófico. Mastambém questionamos a interpretação hegeliana de Espinosa — assimcomo a atualização que dela faz Lebrun — valendo-nos do polémicocomentário de Bayle sobre a substância única espinosana. O recursoaonegativonos serve, nesta primeira aproximação, para insistir sobrea necessidade de continuar abrindo os debates.

Palavras-chave:negatividade - afirmação - dialética - determinação- contradição - alteridade

Abstract:Which is the place of negativity within the frame of a phi-losophy of ethical affirmation, such as Spinoza’s? In this article, wereturn to Hegel’s dialectic in order to criticize the simplifications thatusually accompany some contemporary readings that support anega-tivism or, on the contrary, a philosophicalpositivism. But we alsoquestion the Hegelian interpretation of Spinoza — and Lebrun’s actu-alization of it — using Bayle’s polemic comment on Spinozian uniquesubstance. Our appeal to thenegativeis to insist upon the necessity tokeep on opening the debate.

Keywords: negativity - affirmation - dialectic - determination -

contradiction - alterity

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Pierre Macherey, no seu livroHegel ou Spinoza1 , dedica-se a

explorar as potencialidades teóricas de uma crítica daleitura hegeliana

de Espinosa- isto é, uma crítica do modo particular em que Espinosa

foi apresentado por Hegel à posteridade de leitores — realizada a

partir de umaleitura espinosista de Hegel. A hipótese de Macherey é

que a consideração dos pontos de cruzamento — de confrontação e

de encontro — entre ambos os sistemas filosóficos, quando deixa de

orientar-se segundo os termos colocados por Hegel, comprova a

subversão efetiva que uma perspectiva espinosana permite operar de

certos pressupostos e conceitos centrais do hegelianismo. Em

particular, seria justamente a alternativa espinosana a que permitiria

realizar uma crítica potente ao idealismo da dialética hegeliana, e ao

mesmo tempo, contribuir com os elementos necessários para uma

refundação da dialética sobre novas bases.

É fácil reconhecer nessa tentativa o programa que inspirou a

toda uma geração de filósofos franceses, que procuraram as chaves

para uma revitalização do marxismo em crise numa “volta a Espinosa”,

como plataforma ontológica que permitiria efetuar uma “saída de

Hegel”. Ou nas palavras com que o próprioAlthusser definiu a aventura

teórica que os congregou: tratou-se de realizar um rodeio ou desvio

através de Espinosa para tentar compreender o rodeio ou desvio

marxiano através de Hegel. Os ecos de tal debate persistem até hoje...

E havendo-se dissipado as condições da experiência que favoreceram

o entrecruzamento real das perspectivas de que nos fala Macherey, ou

seja, que favoreceram a possibilidade de situar-se naquele solo comum

que permitiria um verdadeiro diálogo entre ambas as tradições de

pensamento ou “pôr reciprocamente à prova” leituras verdadeiramente

impregnadas de uma simultânea inspiração hegeliana e espinosana, é

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MARIANA DE GAINZA

habitual reencontrar, atualmente, aquela alternativa na forma de uma

opção rígida por um dos pólos: Hegel ou Espinosa2 ?

A formulação mais expressamente política dessa alternativa

pode sintetizar-se da maneira seguinte. Por um lado, nos dizem: Se as

tentativas de um pensamento dialético da história viram-se coroadas

por um claro fracasso quanto à sua capacidade explicativa e ao alcance

de suas predições, esse malogro encontrava-se indicado desde o início

pela própria forma de um pensamento que não tinha sabido reconhecer

a caducidade dos seus pressupostos.Asubordinação das tentativas de

compreensão da práxis humana à abstração e formalidade de um

princípio explicativo único, válido para toda e qualquer realidade, traía

as exigências de seu objeto multiforme e vital, sempre exercitando

novas modalidades de autoconstituição. Ou como diz Antonio Negri

com uma fórmula concisa: “por que a dialética é falsa? Porque é

uma chave que abre todas as portas; então, é uma chave de ladrões” 3.

O que é “roubado”, no final, são as energias emancipatórias de um

pensamento que, em vez de acompanhar as práticas reais dos indivíduos

reais que coletivamente produzem o mundo, ou seja, que em vez de

articular-se — enquanto potência de pensar — com o movimento da

multidão, continua emprestando seus serviços, apesar de si mesmo, à

perpetuação do idealismo e das mistificações funcionais ao capitalismo.

Por outro lado, responde-se: A potência de atuar e de pensar,

a práxis coletiva, não pode ser concebida de maneira imediata como

uma força puramente positiva e constituinte. Pois nas condições de

um mundo onde impera a exploração e a injustiça, onde as relações

alienadas dominam os intercâmbios e o conjunto das atividades

humanas, sua forma de existência é a de umaforça negativa: representa

o negar-se a aceitar os horrores do mundo tal como existe. Se a potência

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ativa e transformadora existe de maneira essencialmente negativa, isto

implica não somente que ela atua contra um mundo desumanizador,

mas também contra si própria enquanto partícipe desse mundo. Não

existe o sujeito puro, inocente ou incontaminado que na espontaneidade

do seu atuar simplesmente criaria o novo. Como o expressa, desta

vez, John Holloway, “a única forma de ver através da névoa fetichista

é criticando, pois adotar uma posição positivo-realista é como se

uma pessoa perdida na névoa dissesse que pode ver claramente”4 .

Os pressupostos realistas devem ser criticados para poder vislumbrar,

para além deles, que a constituição deste mundo tal qual ele é não é

necessária e que, contra a ontologização ou naturalização desta

sociedade histórica, pode e deve ser assumida a exigência da

emancipação dofazer dos homens. Só essa ação negativa terá

possibilidades de vencer na luta contra oserfetichizado.

De um lado, então, ressalta-se a potência constitutiva e crítica

daafirmaçãoética e política, no contexto de uma ontologia positiva

que tem Espinosa como seu fundamental mentor. Do outro, entretanto,

sustenta-se que a verdadeira força construtiva e crítica provêm da

negação, e nesse caso é a tradição hegeliana aquela que se invoca

como referência privilegiada. Será possível realizar um exercício de

ênfase de matizes que nos permita escapar dessa alternativa? A

negatividade com que trabalha certa disposição especulativa deveria

considerar-se definitivamente estranha a todo pensamento que

legitimamente queira assumir-se tributário de uma inspiração

espinosana? Ou talvez seja possível sustentar, junto com Macherey,

que se o negativismo que Hegel quer ver em Espinosa é incompatível

com a letra do seu sistema, tampouco seria satisfatória a interpretação

contrária que o transforma em uma filosofia da afirmação pura?

Consideremos mais detidamente esta última questão.

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MARIANA DE GAINZA

Como bem sabemos, é Hegel quem canoniza uma frase

espinosana extraída de uma carta a Jarig Jelles: “Determinatio negatio

est”. E que graças à generalização de uma asserção que se referia

estritamente à concepção da figura como a determinação externa de

um corpo, reconhece Espinosa como um dialético quase completo

por ter sabido compreender o princípio fundamental que preside a

constituição de qualquer existência:toda determinação é uma negação.

Espinosa soube ver, então, que a negação tem uma função constitutiva.

Mas a negação tem também uma função crítica, dissolvente e produtiva

no interior do sistema, pois contradiz a inicial posição do Deus

espinosano como um ser substancial absolutamente positivo. Contra

seus próprios postulados, a filosofia de Espinosa acaba admitindo

alguma realidade ao não-ser, ao outro do ser, ao finito, ao negativo, e,

com isso, concede um espaço para o esboço de um movimento que

parecia definitivamente impedido pela definição abstrata da substância

única. E no entanto, esse movimento iminente vê-se obstaculizado:

seu prosseguimento se suspende, e os aspectos regressivos do sistema

triunfam sobre a promessa que tinha chegado a se desenhar. Pois o

positivo e o negativo permanecem separados, como duas ordens

diversas que só se rechaçam: toda determinação é uma negação e tão

somente uma negação, frente à substância como a única e absoluta

positividade existente, afirmação de uma essência infinita. O negativo

é o oposto do positivo, e não pode conciliar-se com ele, de tal maneira

que a negação espinosana revela-se abstrata, exterior; e a realidade

que determina, excluída do substancial, está por isso condenada a

desaparecer. O diagnóstico hegeliano é que a determinação como

simples negação não pode dar conta do ser essencial do individual.

Esse objetivo só será atingido pela “absoluta determinabilidade ou

negatividade, que é a forma absoluta (...), negação da negação e,

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portanto, uma verdadeira afirmação” 5 : a afirmação da contradição

que sabe acolher e dar conta da constituição ao mesmo tempo positiva

e negativa do ser do racional6 .

Eis aqui a interpretação “negativista” de Espinosa, que qualquer

leitor atento de sua filosofia não vacilará em considerar tergiversadora.

E, entretanto, a supostamente mais fiel versão “positivista” do

espinosismo, consegue expressar adequadamente seu espírito?Apartir

de bases textuais precisas, quais sejam, por exemplo, a proposição de

que “tudo o que existe expressa de certa e determinada maneira a

potência de Deus” (E,I, P36, dem.), ou aquela que diz que “a definição

de uma coisa qualquer afirma, e não nega, a essência dessa coisa” e,

por isso, “nada seremos capazes de achar nela que possa destruí-la”

(E,III P4, dem.), seria possível então inverter a interpretação hegeliana,

e concluir que “toda determinação é uma afirmação”7? Neste caso,

em vez de fazer o relato da dissolução do mundo e de toda realidade

pela ação corrosiva de uma infinidade de negações parciais que,

destruindo-se umas a outras, não teriam a força de penetração suficiente

para negar a totalidade abstrata e assim dar consistência substancial a

sua existência determinada, contaríamos, pelo contrário, a história da

infinidade de modos em que uma proliferação de auto-afirmações vitais

localizadas, articulando-se entre si e confluindo em sua atividade

produtiva e criadora, constituiriam uma realidade plena que seria então

homologável ao conjunto positivo de todas as afirmações.

Obviamente, é o próprio Hegel quem refuta sua versão do

negativismo de Espinosa. Como já dissemos, o ponto de vista da

substância como absoluto, enquanto dissolução de todas as

determinações e abismamento na negatividade, é criticado nos termos

do desenvolvimento da contradição que o espinosismo chegaria a

colocar, mas não a resolver. A substância absoluta é a verdade, mas

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não é a verdade inteira; para sê-lo, deveria conceber-se em si como

algo ativo, como algo vivo: não só como substância, mas também

como sujeito ou espírito, ou como efetivação do movimento da negação

da negação.

Mas também encontramos em Hegel a resposta para o

positivismo ingênuo, tal como o apresentamos. A “alma bela” é,

precisamente, a figura da consciência que vê no conjunto das diferenças

afirmando-se a possibilidade de uma confluência ou de uma articulação

que evita o requisito da contradição. Sendo cada afirmação em si

mesma diversa, não carecendo da referência a um outro ou do

espelhamento no oposto que lhe dite sua verdade e apresentando-se

então como autônoma na sua autoposição, poderia efetivamente reunir-

se com aquelas outras que igualmente afirmam a própria potência desde

perspectivas sempre únicas e irredutíveis. O próprio Deleuze antecipa

a objeção hegeliana no momento em que concebe o ser da diferença

como pura afirmação da essência.“A filosofia da diferença —nos diz

— não cai por acaso no risco de aparecer como uma nova figura da

alma bela? Com efeito, a alma bela é aquela que vê diferenças por

toda parte, a que apela a diferenças respeitáveis, conciliáveis,

associáveis, lá onde a história continua fazendo-se à força de

contradições sangrentas. A alma bela atua como um juiz de paz

lançado sobre um campo de batalha, que veria simples

‘discrepâncias’, talvez mal-entendidos, nas lutas inelutáveis” 8 . E

Hegel, na Ciência da Lógica, quando mostra a nulidade do princípio

da diversidade, assinala esse mesmo sentido da crítica: “A ternura

comum pelas coisas, que se preocupa somente com que elas não se

contradigam, esquece aqui, como sempre, que com isto a contradição

não se encontra solucionada, mas é só transferida para um outro

lugar.” 9

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Com efeito, se considerarmos alguma versão vulgar da filosofia

da diferença ou da multiplicidade, que faça um uso apressado do fácil

recurso a uma retórica da potência afirmativa de estilo espinosista,

veremos que a força dissolvente hegeliana pode atuar sobre ela com

igual facilidade. Odiverso, enquanto livre proliferação de diferenças

que se comportam como se a verdade de suas respectivas perspectivas

constituísse um dado derivado da incontestável pluralidade das coisas

e dos pontos de vista, representa — nos diz Hegel — aindiferença da

diferença. Os desiguais são todos iguais na afirmação do seu ser

distinto; colocam ao mesmo tempo sua própria identidade e sua própria

diferença, e essa auto-referencia os faz indiferentes entre si, e

equivalentes no seu diferenciar-se. Assim também, a pretendida

independência das diversas afirmações revela-se falsa quando tem-se

em conta que tanto sua igualdade quanto sua desigualdade são

estabelecidas por um terceiro não reconhecido, aquele que compara e

põe os critérios segundo os quais, o que é igual em certos aspectos,

diferencia-se em outros.Averdadeira atividade, então, não se localiza

nos atos particulares de afirmação, mas sim fora deles, na ação separada

de um outro que poderíamos chamar um “comparador universal”, do

qual aqueles atos dependem e a quem devem, na verdade, suas próprias

consistências relativas. Foi para lá que a contradição foi transferida,

às costas daqueles que compartilham “uma comum ternura pelas

coisas”.

Desta maneira, se o espinosismo na versão hegeliana não chega

a desdobrar a complexidade necessária para conceber o efetivo

desenvolvimento dacontradição, tampouco uma versão oposta a ele

chegaria a esse resultado. Em realidade, o positivo e o negativo

assumidos como princípios excludentes não fazem mais do que

transformar-se um no outro, sem que nada resulte dessa oposição

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externa e meramente especular. Nas palavras de Hegel, “quando algo

foi determinado como positivo, se se prosseguir a partir deste

fundamento, converte-se em negativo imediatamente, em nossas mãos,

e vice-versa, o que foi determinado como negativo converte-se em

positivo, de tal forma que o pensamento reflexivo enreda-se nestas

determinações e se contradiz a si mesmo.” 10 Nesse sentido, a

unilateralidade das posições contrapostas às quais nos referíamos no

começo deste artigo, as faria, provavelmente, vulneráveis a essa crítica.

Não poderíamos supor, com efeito, que é relativamente indiferente ou

indistinto dizer que o princípio constitutivo e crítico éafirmativo, ou

que énegativo— quando do que se trata, essencialmente, é de conceber

da maneira mais expressiva possível o processo deconstituiçãoda

realidade e asforças críticasassociadas a ele? E de igual maneira, não

seria mais apropriado focalizar os esforços de elucidação no problema

dadeterminaçãoligado à fundamental questão da causalidade, para

logo, a partir daí, tentar compreender em que sentidos pode falar-se

de determinação positiva ou de determinação negativa? O positivo e

o negativo, neste caso, não seriam efeitos associados às formas de

determinação que umamesmacasualidade complexa põe em jogo?

No entanto, a forma em que tem que ser concebida tal

coexistência de aspectos — já desontologizados, pois agora não

precisamos dizer que existe um princípio da realidade que seja em si

mesmo positivo ou negativo —, deverá ser necessariamente a

contradição? Esse é o centro da polêmica.

Gostaríamos de chamar aqui a atenção sobre uma

“continuidade” singular. A contradição foi o eixo de uma das críticas

mais furibundas a Espinosa feita por um dos seus contemporâneos, o

francês Pierre Bayle (1647-1706)11 , quem — além do mais e

significativamente — costuma ser considerado como o iniciador da

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larga tradição interpretativa do espinosismo12. Séculos depois, a

contradição foi parte fundamental dos debates que, procurando

revitalizar o marxismo, recorreram mais uma vez à obra espinosana

nas últimas décadas do século XX. O que fazer com a contradição?...

No contexto de uma produção teórica agitada e inovadora, pretendeu-

se reformulá-la, rechaçá-la, procurá-la para além de Hegel em Espinosa,

ou voltá-la em contra do próprio Hegel em nome de Espinosa.

“Só depois de ter sido levados ao extremo da contradição—

escreveu Hegel —os múltiplos tornam-se viventes e ativos um frente

ao outro, e conseguem na contradição a negatividade, que é a

pulsação imanente do auto-movimento e da vitalidade” 13. Esse é o

caminho organizado e sistemático da contradição que Espinosa,

segundo a interpretação hegeliana, não soube transitar, e que teria

revelado o aspecto positivo e construtivo da dialética como retorno à

essência da Idéia absoluta como fundamento de toda realidade. Mas,

no entanto, topamos com o fato chamativo de que o diagnóstico de

Bayle a respeito do espinosismo é precisamente o oposto! Espinosa

teria realizado o prodígio monstruoso de fazer da contradição o próprio

princípio da realidade. Pois se, tal como o espinosismo supõe, só existir

no universo uma única substância — Deus —, da qual não podem ser

distinguidas suas infinitas modificações, as mais perfeitas e as mais

abjetas, resulta disso que o ser mais sublime se transfigura numa

entidade amorfa que, acompanhando os movimentos adversos de cada

uma de suas infinitas configurações em mutação perpétua, subsiste

internamente dilacerada pelas tendências contrárias que inclui. A tal

ponto que — afirma ironicamente Bayle —, segundo a perspectiva do

sistema espinosista “aqueles que dizem queos alemães mataram dez

mil turcosexpressam-se mal e falsamente, ao menos que entendam

por isso queDeus modificado em alemães matou a Deus modificado

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em dez mil turcos.E assim, todas as frases com as que se expressa

aquilo que os homens fazem uns contra os outros, só tem este sentido:

Deus odeia-se a si mesmo; pede a si mesmo graças, e a si mesmo as

recusa; persegue-se a si mesmo, mata-se, come-se, calunia-se, envia-

se ao cadafalso, etc.” 14

A partir da constatação dessa oposição interpretativa, faremos

então a seguinte sugestão: essa contradição selvagem e caótica que

Bayle quer ler em Espinosa, não poderia servir-nos como primeira e

instigante confrontação daquela outra que Hegel faz trabalhar

sacrificadamente para a realização dos fins últimos de um espírito

civilizador?

“A mais monstruosa das hipóteses”

Tanto Bayle quanto Hegel identificaram o “problema

espinosano” (a concepção de uma substância única) e suas

conseqüências imediatas (o espinosismo não explica a essência e a

existência dos seres individuais). Porém, a partir daí é divergente o

juízo respeito da relação entre tal problema e o campo do verdadeiro

e do falso (“Espinosa é contrário às Máximas geralmente reconhecidas

como verdadeiras pelos outros filósofos”, diz Bayle. “Da conexão

em que é apresentado o sistema de Espinosa decorre seu verdadeiro

ponto de vista, e a resposta à pergunta sobre se esse sistema é

verdadeiro ou falso”,diz Hegel). E ainda mais: as conseqüências

últimas que, no plano lógico, desprendem-se da ontologia espinosana

são, conforme se considere a interpretação de Bayle ou a de Hegel,

exatamente opostas. Bayle aponta que Espinosa, por sustentar o

absurdo da existência de uma única substância, acaba com o princípio

de não contradição, a lei do pensamento mais firmemente assentada,

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o mais certo e incontestável entre os conhecimentos humanos. Hegel,

por sua vez, consideraria que é o respeito clássico de Espinosa, um

filósofo do Entendimento, pela não contradição o que impede o advento

do movimento efetivo — que só a contradição pode produzir — capaz

de orientar o sistema para um desenvolvimento verdadeiro.

Mas detenhamo-nos por um momento no verbete “Spinoza”.

Encontramos lá, novamente, o motivo central das inquietações que a

ontologia espinosana provocou em inúmeros leitores, filósofos ou

teólogos: a unicidade substancial, isto é, a concepção da existência de

uma única substância absolutamente infinita. A inaceitável anomalia

espinosana é assinalada por Bayle da maneira seguinte:

[Espinosa elaborou] la plus monstrueuse hypothèse ... la

plus diamétralement opposée aux notions les plus évidentes

de notre esprit. Il suppose qu’il n’y a qu’une substance

dans la nature, et que cette substance unique est douée

d’une infinité d’attributs, et entre autres de l’étendue et

de la pensée. En suite de quoi il assure que tous les corps

qui se trouvent dans l’univers sont des modifications de

cette substance, en tant qu’étendue; et que par exemple

les âmes des hommes sont des modifications de cette

substance, en tant que pensée: de sorte que Dieu l’être

nécessaire et infiniment parfait, est bien la cause de toutes

les choses qui existent, mais il ne diffère point d’elles. Il

n’y a qu’un être, et qu’une nature, et cette nature produit

en elle-même, et par une action immanente, tout ce qu’on

appelle créatures. Il est tout ensemble agent et patient,

cause efficiente; et sujet; il ne produit rien qui ne soit sa

propre modification. Voilà une hypothèse qui surpasse

l’entassement de toutes les extravagances qui se puissent

dire.15

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MARIANA DE GAINZA

Feito o diagnóstico, o objetivo declarado de Bayle é combater

de um modo efetivo o espinosismo, atacando o princípio que constitui

sua base. E para isso, deve demonstrar o absurdo de cada um dos

argumentos espinosanos que comporiam essa idéia monstruosa de

Deus. Em primeiro lugar, a consideração espinosana da extensão como

atributo divino faz com que, não havendo no universo senão uma

única substância, deva afirmar-se que Deus e a extensão são a mesma

coisa. Espinosa concebe então a extensão como um ser simples e tão

privada de composição como os pontos matemáticos... Mas isso não

só acaba com qualquer idéia razoável do mundo (“N’est-ce pas se

moquer du monde que de soutenir cela? N’est-ce point combattre

les idées les plus distinctes que nous ayons dans l’esprit?”), como

também com a própria noção de Deus. Atribuir extensão a Deus

implica acabar com sua simplicidade e concebê-lo composto de uma

infinidade de partes; e, pior ainda, implica identificá-lo com a matéria,

“ le plus vil de toutes les êtres”, “ le théâtre de toutes sortes de

changements, le champ de bataille des causes contraires, le sujet de

toutes les corruptions et de toutes les générations; en un mot l’être

dont la nature est la plus incompatible avec l’immutabilité de Dieu”16.

Afetado de corrupções, degenerações e mortes, o Deus espinosano

não é somente amorfo, mas sofre as baixezas e misérias associadas às

mudanças permanentes de estado, às lutas e destruições ligadas à

transformação perpétua da matéria. É a mesmasubstância divina a

que, segundo pretende Espinosa, atravessa todas essas mudanças pois,

sendo a essência de Deus idêntica a seus atributos, as mutações que

sofre não são acidentais ou superficiais mas estritamente interiores à

sua natureza: “le Dieu des spinozistes est une nature actuellement

changeante, et qui passe continuellement par divers états qui diffèrent

intérieurement et réellement les uns des autres. Il n’est donc point

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CADERNOSESPINOSANOSXVI - 2007

l’être souverainement parfait, dans lequel il n’y a ni ombre de

changement ni variation quelconque.” 17

Se somente a consideração da extensão como atributo de Deus

demonstra as contradições irremediáveis a que conduz a unicidade

substancial espinosana, “absurdos ainda mais monstruosos”

comprovam-se ao considerar que seu Deus é também o sujeito de

todas as modificações do pensamento. Em primeiro lugar, é

insustentável a pretensão de que a extensão e o pensamento sejam os

atributos de uma mesma substância pois, não se tratando de uma mera

justaposiçãode elementos (como acontece, por exemplo, quando se

mesclam a água e o vinho, ou como ocorre com a fusão dos metais),

o que está em jogo é o princípio daidentidade.Pela “regra fundamental

e essencial do raciocínio humano” que estabelece que duas coisas que

são idênticas a uma terceira são idênticas entre si, deve interpretar-se

que o pensamento e a extensão, por ser cada um deles idêntico à

substância, são idênticos entre si. Como pode Espinosa afirmar tal

absurdo? E neste ponto, Bayle é veemente: “considérez avec attention

ce que je vais dire. S’il y a quelque chose de certain et d’incontestable

dans les connaissances humaines, c’est cette proposition-ci,Opposita

sunt quae neque de se invicem, neque de eodem tertio secundum idem,

ad idem, eodem modo atque tempore vere affirmari possunt.”18 São

opostos os termos que não podem ser afirmados ao mesmo tempo,

sob a mesma relação e num mesmo sentido. É essa máxima evidente e

universal que os espinosistas destroem, acabando dessa maneira com

o fundamento de toda verdade. Se os homens forem modalidades de

Deus, como pretende Espinosa, então não pode dizer-se “Pedro nega

isto, afirma isso outro, quer tal coisa”, pois em seu sistema é Deus

quem nega, afirma, quer, rechaça... E sendo o sujeito dos pensamentos

e ações de todos os homens, a mais absoluta contradição encontra sua

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MARIANA DE GAINZA

consagração divina: o Deus espinosano, a única substância existente,

nega e afirma, ama e odeia, as mesmas coisas ao mesmo tempo e

segundo todas as condições. “On vérifie donc de lui deux termes

contradictoires, ce qui est le renversement des premiers principes de

la métaphysique.” 19 Espinosa, no final, falseia a máxima fundamental

de que duas proposições contraditórias não podem ser verdadeiras

juntas, e que de uma coisa qualquer é possível enunciar ou uma

afirmação ou uma negação. E assim, como a idéia de um círculo

quadrado constitui uma contradição, também é uma contradição uma

substância que ao mesmo tempo ama e odeia o mesmo objeto. O que

demonstra, pelo absurdo, que só pode ser válida a idéia oposta à

hipótese espinosana: que há no universo tantas substâncias como

sujeitos, que não podem receber, ao mesmo tempo e na mesma relação,

as mesmas denominações.

O combate filosófico

Sem dúvida, a estratégia de combate bayliana do espinosismo

seria censurada por Hegel: constituiria o protótipo daquilo que uma

tentativa de refutaçãonão deve serse quer ser efetiva. E muito

significativamente, é de Espinosa que fala Hegel quando apresenta

sua própria teoria do “combate filosófico” no mesmo início da Doutrina

do Conceito (Lógica, III). A mera oposição externa a uma filosofia,

que pretenda substituí-la integralmente por uma suposta verdade

alternativa, não pode confrontar verdadeiramente suas razões. Pois

uma posição que demonstra a necessidade do seu ponto de vista não

pode ser rejeitada como falsa em sua totalidade (e embora seja inegável

que Bayle, de maneira distinta de Hegel, não reconheceria a “parte de

verdade” do epinosismo, poderíamos no entanto considerar sua

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obsessão com o “caso Espinosa” como um certo índice de um

reconhecimento não assumido).Asubstância única espinosana só pode

ser efetivamente superada, segundo Hegel, se se compreender que “a

verdadeira refutação tem que penetrar na força do adversário e

colocar-se no âmbito de seu vigor”, pois “atacá-lo fora de si mesmo,

e sustentar suas próprias razões lá onde ele não está, não adianta

nada para o assunto. Por conseguinte, a única refutação do

espinosismo só pode consistir em que seu ponto de vista seja, primeiro,

reconhecido como essencial e necessário; para que, em segundo lugar,

este ponto de vista seja levado, a partir de si mesmo, até um ponto de

vista mais elevado” 20.

Nada mais afastado dessa recomendação que o que Bayle

realiza. “Penetrar na força do adversário” espinosista significa, para

Hegel, situar-se sem reparos em sua perspectiva para poder, a partir

daí, torcer essa força contra aquele que era seu detentor. Os conteúdos

de verdade devem ser reconhecidos, pois aformaimensamente flexível,

o conceito como uma arma dúctil, atuará sobre eles e dissolverá o que

até este momento era o vigor do adversário numa força ainda maior

do refutador, que sairá revitalizado por essas novas potências

incorporadas. Bayle, pelo contrário, pretende que a doutrina de

Espinosa é inadmissível na sua totalidade, pois atenta contra as noções

mais comuns e os princípios geralmente aceitos. Mas essa construção

falsa se assenta, qual um edifício, sobre uma pedra fundamental, base

que é ao mesmo tempo seu “calcanhar deAquiles” (“...il m’a dû suffire

d’étaler des observations générales qui attaquassent le spinozisme

par le fondament, et qui fissent voir que c’est un systhème qui porte

sur une supposition si étrange, qu’elle renverse la plupart des notions

communes qui servent de règle dans les discussions philosophiques”).

Frente a isso, Hegel — numa crítica que envolveria tanto Espinosa

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MARIANA DE GAINZA

quanto Bayle — objetaria que se a pretensão de construir um sistema

a partir da imediata afirmação de um princípio demonstra já uma

elementar insuficiência especulativa, a refutação filosófica que supõe

ser suficiente, para confrontar o princípio que presume-se falso, colocar

em seu lugar outro que se diz verdadeiro, nada mais faz do que duplicar

a falência inicial.

Podemos coincidir com Hegel neste ponto: a leitura de Espinosa

que Bayle realiza parece a mais afastada possível de uma “leitura

imanente” de seu sistema, isto é, de uma leitura que consiga situar-se

sob a perspectiva que uma filosofia propõe para, a partir daí,

acompanhando o movimento de suas razões, realizar uma apresentação

ou uma crítica verdadeiramente compreensivas. Diferentemente do

compromisso efetivo que tal modalidade de leitura estabelece com

seu objeto, a descrição bayliana do espinosismo se desenvolve na mais

pura e crua exterioridade. E no entanto, talvez seja precisamente essa

a razão pela qual a leitura bayliana nos interesse aqui: ohorror que a

filosofia de Espinosa provoca-lhe é testemunho de uma distância, de

uma barreira intransponível; e se como sugerimos, a interpretação

“selvagem” de Espinosa realizada por Bayle é, possivelmente, mais

iluminadora que a refutação “interna e sistemática” de Hegel, isto

estaria associado à insistência nessaestrangeiriceirredutível do

pensamento espinosano.

No mínimo, a existência de tão diversas e divergentes

interpretações do pensamento espinosano constituiria um índice dessa

impossibilidade de associá-lo a um “lugar comum” filosófico. E

concretamente, assinalamos um âmbito pontual de desacordo referido

à questão que estamos considerando: Espinosa respeita à maneira

clássica o princípio de não contradição ou, muito pelo contrário, acaba

com ele?

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Espinosa clássico

Espinosa, conforme se reconhece geralmente, subscreveria uma

compreensão clássica do princípio de não contradição, e nesse caso,

seria atingido pela crítica de Hegel à tradição filosófica; do mesmo

modo que, segundo as coordenadas de certo evolucionismo filosófico,

poderia pensar-se que Kant, no que respeita a esta questão, “supera”

Espinosa ao explicitar uma modalidade da oposição — a contrariedade

— que embora pudesse achar-se implícita no espinosismo, não

encontraria nele seu desenvolvimento efetivo. E, entretanto, conforme

vimos, Bayle sustenta uma interpretação exatamente contrária a esta:

Espinosa não só não respeita o princípio de não contradição, mas o

destrói. Em qualquer caso, a leitura bayliana do espinosismo há de

servir-nos para nos perguntar sobre a validez da interpretação que

resultou finalmente consagrada (a hegeliana), consagração cujo

testemunho é a amplitude com que foram aceitos seus argumentos.

Vejamos, em relação com isto, a leitura que Gerard Lebrun faz

de Espinosa em seu livroLa patience du Concept21 , sob uma

perspectiva hegeliana, e referindo-se exatamente ao mesmo problema

de que estamos tratando aqui.

Por que — se pergunta Lebrun — o horror de toda a tradição

filosófica frente à contradição? Como pode explicar-se a tendência

unânime — em cuja denúncia consiste o trabalho filosófico de Hegel

— para escapar da fragilidade ou instabilidade do estado de coisas

contraditório, pretendendo reduzi-lo a um puro nada? Enquanto essa

atitude pode ser reconhecida em toda a filosofia clássica (que constitui

sua identidade de conjunto através de uma condenação comum das

aporias de Heráclito), tem sentido interrogar-se sobre quais são os

prejuízos disfarçados de princípios que, estabilizados como

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“evidências”, são a base dessa decisão filosófica.Acontradição igualada

automaticamente com um nada,nihil negativum,teria por função, diz

Lebrun, garantir a claridade discursiva (“garantir que o discurso não

será insano”), servindo então para preservar clandestinamente as

seguranças que o entendimento não pode permitir-se pôr em risco.

Na verdade, o pensamento clássico repousa sobre certa

concepção da determinação das coisas finitas (a determinação

completa) que não deveria assumir-se como incondicionalmente válida.

Quando se afirma que os opostos são incompatíveis (quer dizer, que é

impossível sobrepor os diferentes ou harmonizar os exclusivos),

assume-se como pressupostocerta idéiada determinação de um sujeito

singular que consiste em pôr um predicado excluindo seu contraditório,

sem que seja possível conceber um sujeito que possua de uma vez

dois predicados contrários: a idéia do ser finito associada a tal

pressuposto é a de um serincompleto e exclusivo (a noção de um ser

finito excluias noções dos outros seres finitos, daí suaincompletude).

E entretanto, diz Lebrun, a determinação completa não é o único

horizonte que permite realizar uma descrição legítima da exclusão e a

união dos predicados; como Hegel mostrou, trata-se de uma idéia

parcial com respeito à incompatibilidade e a diferença, que mostra a

limitação do entendimento para pensá-las. As propriedades que se

predicam de um sujeito, verificadas ou enumeradas, encontram-se

justapostas mais do que unidas, o que significa que são diferentes só

sobre o fundo de sua comum indiferença. O conjunto das propriedades

empíricas não mostra verdadeiramente a oposição, só adiversidade

entendida como exclusão recíproca de conteúdos positivos

coexistentes. “Ainsi la détermination complète entraîne d’ores et déjà

avec elle une image bien déterminée de la communauté-prédicative

et même de lacommunautéen général. Communauté qui résulte de

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l’addition des déterminations, mais sans jamais constituer une

totalité” 22. Essa idéia de uma “comunidade por justaposição”, então,

associa-se a certo modelo dealteridadeque representa a forma

“espontânea” da filosofia clássica pensar a diferença, comodiversidade

dos indiferentes. E é oespinosismo, diz Lebrun, a doutrina filosófica

que mais claramente apresenta essa maneira tradicional de pensar a

alteridade23 (por isso, poderia ser considerado, então, como ocontra-

modelopara o pensamento que, a partir de outra concepção do

negativo, proponha-se descreversem restriçõesa diferença).

Como reconstrói Lebrun a idéia espinosana da alteridade? Em

Espinosa, a alteridade está indissociavelmente ligada à concepção dos

modosda substância. Os modos são essências positivas que, entretanto,

possuem uma existência determinada. Daí vem o problema relativo à

maneira de conceber uma coisa positiva que envolva uma negação.

Problema que, na filosofia espinosana, acharia a resposta seguinte: a

existência particular de um modo resulta de um atributo divino ou

tem Deus como sua causa, enquanto este é afetado poroutra

determinação finita; que por sua vez se explica porque Deus é afetado

poroutradeterminação, e assim sucessivamente. Conseqüentemente,

que um modo tenha uma existência determinada significa que, para

compreendê-lo, é necessário considerar as outras coisas exteriores,

de tal forma que adeterminatioespinosana remete necessariamente à

articulação das noções de alteridade e exterioridade; e para entender

a pluralidade modal é preciso “recourir au vocabulaire du Tout et des

Parties, même si ce vocabulaire est anthropomorphique et irrecevable

dans l’absolu” 24. Se um modo remeter necessariamente à totalidade

que o envolve, ao mesmo tempo pode ser abstraído dessa totalidade

mediante o pensamento. Enquanto as partes do todo convêm entre si,

então, são concebidas comopartes integrantes; mas ao considerá-las

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na sua mútua oposição, são contempladas comopartes totais. Nesse

caso, conclui Lebrun, a modalização pode ser descrita como uma

justaposição de totalidades parciais, de maneira tal que o pensamento

conseguiria dar conta da co-presença de realidades distintas, sem que

a mútua distinção perturbe a positividade de cada uma delas.

A negação (determinatio negatio) é compreendida, assim, só

como o limite entre realidades positivas; e como, segundo o

espinosismo, na natureza todas as partes estão articuladas de tal maneira

que não existe o vazio, o limite, em definitivo, nada é. Sem negações

nem limites efetivos ou reais, a oposição não é mais do que um produto

da mente humana, que imagina confrontações onde não há senão

concordância. “Il n’y a donc de groupement-plural, de ‘communauté’

qu’entre des réalités qui sont toutes pleinement positives, et

l’opposition, en dernière instance, n’est qu’une interprétation

imaginative greffée sur cette juxtaposition sans failles.” 25 A oposição,

o devir, todas as formas da diferença são tratadas como meros efeitos

de superfície da concordância, de forma que a ruptura, em realidade,

não é outra coisa que a reorganização do Mesmo. Pelo qual, sob uma

perspectiva espinosista, “il serait absurde d’imaginer une concordance

qui serait fondée sur la différence: jamais l’antagonisme, la

divergence, la tension ne peuvent être donnés pour principes d’un

accord, constituants d’un être-en-commun” 26

O dogma da indestrutibilidade intrínseca do positivo (“coisa

nenhuma pode ser destruída a não ser por uma causa exterior”, diz

Espinosa naÉtica, III, P4; e em E,III,P5: “as coisas são de natureza

contrária, quer dizer, não podem dar-se no mesmo sujeito, na medida

em que uma delas pode destruir à outra”) reserva, então, um papel

preciso a alteridade. A responsabilidade de toda supressão se expulsa

para a um Outro indeterminado (o conjunto das causas externas), e o

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negativo, desprovido de qualquer consistência, é conjurado e mantido

fora das fronteiras da essência exclusivamente afirmativa. Outra

maneira de compreender a finitude, pelo contrário, exigiria abandonar

a pretensão reparadora da indestrutibilidade. Mas nesse caso, já não

poderia conservar-se a ilusão da existência de uma comunidade de

puras positividades concordantes, sem negatividade interna alguma

que frature sua plenitude; seria necessário devolver ao negativo sua

consistência própria, diz Lebrun, consistência que todo o espinosismo

esforça-se em anular, e reconhecer nele não mais o simples limite

quantitativo e extrínseco de uma realidade, mas a marca de uma falta

no interior dessa realidade. “Hantée par ce qui la nie, l’essence

inclurait alors ce qui la mutile: cesserait d’être synonyme

d’indestructible par lui-même”27.

Eis aqui, em definitivo, a evidência não reconhecida que

sustenta o discurso do Entendimento e que associa a concepção de

uma comunidade de justaposição com o “bom sentido” metafísico

que faz da contradição um nada: “Cette communauté compacte où ne

coexistent à perte de vue que des positifs inaltérables, c’est le monde

par excellence où ‘ce qui ce contredit n’est rien’, où crises, ruptures,

déchirements seront imputés par principe à l’action d’agents externes

et ne seront jamais réinscrits dans la nature de cela même qu’ils

ébranlent.” 28

Por outra parte, se a primeira vista poderia parecer que a noção

kantiana de “grandeza negativa” permitiria subverter o princípio

clássico que reduzindo a “zero” o resultado de uma oposição tira toda

efetividade ao negativo (expulso assim do campodo que é), na verdade,

a oposição real não faz mais do que introduzir uma pseudo-negação

que deixa intocado o imperativo tradicional de não contradição. Em

relação a Espinosa, sem dúvidas, algo modificou-se, pois embora “Kant

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respecte toujours l’adage spinoziste ‘deux determinations différentes

ne peuvent ni se nuire ni s’aider’, il établit que deux determinations

de même naturepeuvent s’opposer dans le même sujet”29. Existe então

em Kant pelo menos um espaço em que certas realidades determinadas

podem confrontar-se e combater-se e, dessa maneira, o dogma da

indestrutibilidade intrínseca do positivo vê-se questionado. E

entretanto, como as realidades cuja oposição se reconhece são

realidades igualmente positivas, mais uma vez o papel do “negativo

em si” (fundamental para uma verdadeira concepção da alteridade) é

desconsiderado. Kant só dá conta de outra forma menor da

negatividade, mero efeito do encontro das realidades positivas: o

negativo como perda, redução ou subtração — já não como pura

ausência ou não ser. Enfim, sob uma perspectiva hegeliana, a inovação

kantiana não questiona o princípio clássico segundo o qual “o que se

contradiz não é nada”, mas simplesmente restringe o âmbito de sua

aplicação. “Le seul grief qu’adresse Kant aux classiques est d’avoir

méconnu que l’opposition est une des formes possibles de la

compositioet de l’avoir exclue indûment des relations entre réalités

positives” 30.

Agora, qual é o modo de pensar a negação que subverte

efetivamente a concepção da alteridade da metafísica positiva? Se a

filosofia clássica, diz Lebrun,evocaao mesmo tempo em que

escamoteiaa oposição, fala do negativo sem lhe conceder jamais uma

presença real — sustentando dessa maneira uma concepção indefinida

da alteridade —, trata-se de contrapor-lhe uma noção da alteridade

como relação originária, umaalteridade determinante,que só pode

surgir de outra forma de conceber o negativo: a negação já não é

indiferente ao que nega, mas o menciona necessariamente. Com a

negação determinada, com efeito, o outro deixa de sero outro de

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todos os outros,e se constitui comoo outro de um outro determinado.

Os exclusivos se determinam só na medida em que se apelam um ao

outro necessariamente, de tal maneira que nenhuma indiferença

subsiste: uma relação estritamente interna une o outro comseuoutro;

e a exclusão do outro determinado é a forma em que a coisa seexplicita:

da unidade dos contrários já não resulta, então, um nada abstrato, mas

algo concreto e determinado. A associação imediata entrenada e

contradiçãorevela, assim, sua falsidade: enquanto um nada não tem

nenhum conteúdo, “não diz nada”, a contradição contém aquilo do

que é a contradição, expressa ainda as determinações que se

contradizem, “ainda as diz”. Eis aqui o ponto chave da confrontação

que Lebrun estabelece entre o hegelianismo e a filosofia clássica: a

tradição decreta com soberbia quenão há nadaemboraalguma coisa

ainda se diga. Preso às fixações do sentido, o discurso filosófico se

torna dogmático (a impossibilidade de pensar a alteridade a não ser

como algo indefinido, aponta Lebrun, é uma das decisões parciais que

inaugura o dogmatismo), cativo de suas próprias evidências e

dedicando seus melhores esforços em conservá-las. Frente a essa

atitude filosófica, o hegelianismo deve ser entendido como o

acontecimento de uma revolução discursiva (“une mutation de la nature

même du Logos” 31) que nos previne contra qualquer suspensão

prematura do sentido, contra toda barreira que seja levantada para

pôr um término arbitrário a seu fluir. Constituindo-se como o

prosseguimento do encadeamento de mutações que constitui cada

significação, como a liberação do sentido das conveniências tradicionais

que o limitavam, a tarefa filosófica inédita de Hegel não pode ser

reduzida a um exercício de “prestidigitação dogmática”, como muitas

vezes tem-se sustentado:

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Hegel ne passe pour un prestidigitateur que si l’on ne

trouve rien à redire à ces brefs appels au bon sens qui

parcourent les textes classiques et marquent, chez

Descartes ou Spinoza, qu’à partir d’ici la porsuite de la

polémique deviendrait décidément superflue: ‘cela ne se

laisse pas penser’, ‘ce sont des mots auxquels ne

correspond nulle idée’, ‘auntant dire: cercle carré’. Dans

cette science-d’objets que croyait être la Métaphysique,

ces interdits n’étaient-ils pas motivés par des préjugés qui

coupaient l’écoute de ce qui se disait encore, lorsque la

poursuite du discours risquait de subvertir le code de la

vision claire et distincte – de la Représentation?32

Espinosa, então, sob esta perspectiva lebruniana-hegeliana,

aparece como um dogmático sustentador de verdades ou sentidos

estabelecidos; onde as regras e códigos fixos que pretendem organizar

o discurso, mostram em realidade uma mais profunda disposição

conservadora em relação à ordem existente. Obom sentidofilosófico

— do qual o espinosismo seria um representante privilegiado — que

insiste obstinadamente em declarar que as oposições são em última

instância impossíveis, que nenhum estatuto real tem que ser

reconhecido à contradição, revela e oculta a verdadeira motivação

que o suporta: tem que se colocar um freio à polêmica. Nesse sentido,

o dogmatismo e a afirmação acrítica de princípios supostamente

universais vão junto com a incapacidade efetiva de pensar a negação e

de conceber uma idéia radical de alteridade. O Outro é pensado segundo

os códigos fixos do Mesmo, a diferença é subsumida sob a identidade

imóvel que pretende preservar as “verdades” da tradição de qualquer

subversão. E as conseqüências disso, sugere Lebrun, não são puramente

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epistemológicas mas também políticas. Pois a impossibilidade de pensar

a contradição estaria associada a certa forma de conceber a comunidade

predicativa, ou a comunidade em geral: um grupamento cuja

positividade plena fundamenta uma inalterada concórdia, e que não

oferece nenhuma razão interna que explique as crises e as rupturas,

imputadas sempre à ação de agentes externos.

Mas Bayle, precisamente, encontra em Espinosa o problema

oposto. Seu sistema deve ser confrontado e neutralizado porque “se

opõe aos axiomas mais evidentes”, quer dizer, ao sentido comum do

conjunto da tradição metafísica. E o faz, além disso, transfigurando o

sentido das palavras... “Il a joint aux mots une signification toute

nouvelle sans avertir ses lecteurs”33.Assim, certos termos chave, como

o de “modificação”, em vez de ter “le sens qu’il doit avoir” e produzir

as conseqüências que “s’accordent juste avec les règles du

raisonnement”, são usados “dans un sens nouveau et inconnu aux

philosophes”. Um uso dos termos que não respeita seus sentidos

tradicionais, então, é capitalizado para construir “a mais monstruosa

hipótese, a mais diametralmente oposta às noções mais evidentes de

nosso espírito”, que “ultrapassa o conjunto de todas as extravagâncias

que se possam dizer”. As barreiras do quepode ser dito,os códigos

que organizam o bom sentido filosófico e fora dos quais, pretende-se,

não há discurso possível, seriam então sistematicamente violados por

Espinosa; pior ainda, violados sem sistema nenhum, pois sua filosofia

não passa de um conjunto de proposições mutuamente contraditórias34.

O espinosismo, segundo Bayle, arruína, falseia, destrói o que tem de

mais certo e incontestável nos conhecimentos humanos, aquilo que a

unanimidade filosófica sustentou ao longo dos séculos: subverte os

primeiros princípios da metafísica.A tal ponto que dificilmente possa

esperar-se algo de uma discussão com um espinosista (“on ne peut

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MARIANA DE GAINZA

donc rien se promettre d’une dispute avec eux; car s’ils sont capables

de nier cela[o princípio clássico de contradição], ils nieront toute

autre raison qu’on voudra leur alléguer” 35) — eis um modo de

argumentar contra Espinosa que “a polêmica é supérflua”, como diria

Lebrun. Pois não há possibilidade de sustentar um discurso onde,

arruinada a validez dos princípios de identidade e contradição, sustenta-

se, no final das contas, quenão há nada que seja impossível36.

Enfim, é possível neste caso usar a favor de Espinosa um

argumento de tipo similar àquele que Lebrun esgrime para defender

Hegel de seus críticos (supõe-se, diz Lebrun, que o fim último da

filosofia de Hegel é consagrar o triunfo do positivo, logo depois de

subsumir passo a passo todas as formas da diferença... Mas é legítimo

apresentar como unilateral à filosofia que persegue sem trégua à

unilateralidade em todas suas expressões?). Diríamos, então, em relação

a Espinosa: pode-se sustentar que uma filosofia que, por tentar

compreender os prejuízos dos homens e as “evidências” que atuam

favorecendo a perpetuação da servidão, foi persistentemente atacada

com a acusação de “heresia”, e que despertou sempre os mais

acalorados debates, pretendia, na verdade, assentar um dogma que

acabasse com toda polêmica?

Neste sentido, podemos dizer que a interpretação bayliana de

Espinosa teve o mérito de explicitar o desconcerto que sua filosofia

gerou em sua época, e que ainda continua gerando. “As ‘contradições’

e aporias do espinosismo, então, mais que produzir o nada de um

silêncio que condenasse definitivamente sua inconsistência,

produziram bem específicas e determinadas rejeições (entre as quais,

as negaçõesexternas —como a da tradição de refutações do

espinosismo que o próprio Bayle inaugura — e asnegaçõesinternas

— como a de Hegel).”

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Espinosa clássico?

“Espinosa — diz Pierre Macherey — toma posição frente à

razão clássica, da qual rejeita a ordem imutável e formal, fazendo um

uso aberrante, desviado, ou pelo menos diferente do princípio de

contradição”37. Esta constatação de umacorrupçãoespinosana das

formas tradicionais da lógica permitiria então realizar outro divisor de

águas no interior da história da filosofia, em virtude do qual, de maneira

diversa da que vimos em Lebrun, Hegel ficaria localizado dentro da

tradição, cujos pressupostos Espinosa permitiria subverter. O que Hegel

fundamentalmente conserva da razão clássica “c’est l’idée que la

contradiction est une relation qui ne peut être comprise et résolue

que dans un sujet, ou pour un sujet” 38. Desta maneira, assinala

Macherey, se em Descartes é a assimilação da substância ao sujeito de

uma proposição que permite aplicar-lhe o princípio de contradição

para garantir sua racionalidade, em Hegel é a apresentação do absoluto

como sujeito que retorna a si através dos momentos de um discurso

exaustivo, que permite desenvolver nele todas as contradições das

quais é capaz, para que o espírito logre assim realizar a totalidade

concreta de seu ser. “Dans les deux cas, la méthode qui conduit au

vrai c’est la résolution de contradictions en tant qu’elles appartiennent

à un sujet” 39. Frente à filosofia clássica, então — e Hegel insistiu

sobre este ponto — Espinosa pensou o absolutamente infinito como

uma substância que não é sujeito. E isto permite determinar com

mais precisão certo aspecto chave pelo qual sua filosofia resulta

revulsiva: “En même temps qu’il empêche l’intervention dans la

philosophie d’un sujet juridique — Dieu créateur des vérités éternelles

dont il se porte garant —, Spinoza invalide la fonction d’un sujet

logique qui sert d’assise à la proposition vraie et atteste son caractère

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Page 37: Cadernos Espinosanos nº 16

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MARIANA DE GAINZA

non contradictoire, ou lui permet d’expliciter, et donc de résoudre,

toutes les contradictions qu’elle porte en elle” 40. E que é, no final, a

mesma “falência espinosana” que Bayle denunciava com seu

comentário horrorizado: as coisas que são incompatíveis não podem

coincidir no mesmo sujeito; mas segundo Espinosa, todas as coisas

que existem no mundo são em Deus; quer dizer, Deus reúne nele todas

as contrariedades que cindem a existência múltipla das coisas finitas;

logo: Deus não pode ser um sujeito! Quer dizer, Espinosa destrói

nossa idéia de Deus... Que dimensão donegativose joga, então, nessa

atividade teórica “destrutiva” ou crítica?

Referências bibliográficas

1. BAYLE, P.: Écrits sur Spinoza, Paris, Berg International

Éditeurs, 1983.

2. CHAUI, M.: A nervura do real,São Paulo, Companhia das

Letras, 1999.

3. COLECTIVO SITUACIONES, “Entrevista a Toni Negri” e

“John Holloway. Por un enfoque negativo, dialéctico, anti-

ontológico”, emContrapoder. Una introducción,Ediciones

De mano en mano, Buenos Aires, 2001.

4. DELEUZE, G.:Diferencia y repetición, Buenos Aires,

Amorrortu, 2002.

5. HEGEL, G.W.F.:Ciencia de la lógica,trad. de R. Mondolfo,

Buenos Aires, Ediciones Solar, 1974.

6. HEGEL, G.W.F.:Lecciones sobre la historia de la filosofía,

trad. de W. Roces, México, Fondo de Cultura Económica,

1997.

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Page 38: Cadernos Espinosanos nº 16

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CADERNOSESPINOSANOSXVI - 2007

7. LEBRUN, G.: “La négation de la négation”, emLa patience

du Concept: essai sur le discours hegelien,Paris, Gallimard,

1972.

8. MACHEREY, P. :Hegel ou Spinoza,La Découverte, Paris,

1990.

Notas

1 Macherey, P.,Hegel ou Spinoza, A Découverte, París, 1990.2 Para uma versão deste debate, ver Bibliografia 3:Contrapoder. Una

introducción,Ediciones De mano en mano, Buenos Aires, 2001.3 Ibid., p. 112.4 Ibid., p. 136.5 Hegel,Lecciones sobre la historia de la filosofía III,México, Fondo

de Cultura Económica., p. 307.6 “A negação da negação não é outra coisa que a contradição, pois ao

negar a negação como simples determinabilidade, é por um lado

afirmação e, pelo outro, negação em geral; e esta contradição, que é

precisamente o racional, é o que falta em Espinosa. Falta nele a forma

infinita, a espiritualidade, a liberdade”.Ibid., p. 308.7 Macherey, P.,Hegel ou Spinoza,op.cit., p.176.8 Deleuze, G.,Diferencia y repetición, BuenosAires,Amorrortu, 2002,

p. 96.9 Hegel,Ciencia de la lógica,Libro II, La Doctrina de la esencia,

Buenos Aires, Ediciones Solar, 1974, p. 372.10 Ibid., p. 383.11 Ver oArticle SpinozadoDictionnaire historique et critique,em

Bayle, P.,Écrits sur Spinoza, Paris, Berg International Éditeurs,

1983.

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Page 39: Cadernos Espinosanos nº 16

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MARIANA DE GAINZA

12 Como diz Marilena Chaui, “Com Bayle, nasce propriamente a

tradição interpretativa do espinosismo. São dele idéias, imagens e

sugestões que iriam alimentar, durante os séculos vindouros, as

sucessivas leituras da obra e, mais freqüentemente, as substituiriam, o

verbete [Spinoza,do Dicionário histórico e crítico] sendo mais lido

do que Espinosa (...). Com seu verbete, institui um campo de

generalidades no qual ficou esculpida em baixo-relevo a imagem do

espinosismo que seria gravada como um selo nos comentários,

interpretações e retomadas que a obra espinosana iria suscitar na fieira

dos tempos.” Chaui, M,A nervura do real,São Paulo, Companhia

das Letras, 1999, p. 281.13 Hegel,Ciencia de la Lógica, op.cit., p. 388.14 Bayle, P.,Écrits sur Spinoza, op. cit., p. 69.15 Bayle, P.,Ibid., p. 60.16 Ibid., p.63.17 Ibid., p.64.18 Ibidem.19 Ibid., p.67.20 Hegel,Ciencia de la Lógica, op.cit., pp. 513-515.21 Lebrun, G, “La négation de la négation”, enLa patience du Concept:

essai sur le discours hegelien,Paris, Gallimard, 1972, pp. 267-324.22 Ibid., p.270.23 Ibid., p. 272.24 Ibid., p. 273.25 Ibid., p.274.26 Ibid., p.275.27 Ibidem.28 Ibid., p.277.29 Ibid., p.283.

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CADERNOSESPINOSANOSXVI - 2007

30 Ibid., p.284.31 Ibid., p. 301.32 Ibid., p. 281.33 Bayle, P.,Écrits sur Spinoza,op.cit., p.26.34 O espinosismo, diz Bayle, deve ser atacado “par les défauts absolus

de son ouvrage (les défauts qui ne viennent point de ce que Spinoza

est contraire aux Maximes généralement reconnues pour véritables

par les autres philosophes), et par les défauts relatifs de ses parties

comparées les unes avec les autres”. Bayle, P.,Écrits sur Spinoza,

op.cit., p.26.35 Ibid., p.66.36 “Selon Spinoza tous les sentiments de tous le hommes sont dans

une seule tête. Rapporter simplement de telles choses c’est les réfuter,

c’est en faire voir clairement les contradictions; car il est manifeste,

ou que rien n’est impossible, non pas même que deux et deux soient

douze, ou qu’il y a dans l’univers autant de substances que de sujets,

qui ne peuvent recevoir en même temps les mêmes dénominations”.

Ibid., p.68.37 Macherey, P.,Hegel ou Spinoza, op.cit., p. 208.38 Ibid., p.207.39 Ibid., p.208.40 Ibidem.

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SILVANA DE SOUZA RAMOS

Negação e objetividadena Crítica da Razão Pura:

Uma leitura daDialética Transcendental

SILVANA DE SOUZA RAMOS*

* Doutoranda do Departamento de Filosofia da USP e bolsista da Fapesp.

Resumo: O artigo analisa — a partir da leitura daDialéticaTranscendental— a relação entre a teoria kantiana da objetividade ea demarcação de um uso válido da negação na determinação de objetos.

Palavras-chave:Kant, negação, objeto, contradição, determinação.

Abstract: The article analyzes — based on a reading of theTranscen-dental Dialectics— the relation between Kant’s theory of the objec-tivity and a delineation of valid use of the negativity in the determina-tion of objects.

Key-words: Kant, negativity, object, contradiction, determination.

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CADERNOSESPINOSANOSXVI - 2007

Construir torres abstratasporém a luta é real. Sobre a luta

nossa visão se constrói. O realnos doerá para sempre.

Orides Fontela

Numa correspondência endereçada a Garbe, Kant sinaliza para

a origem do empreendimento crítico (Kant apud Lebrun, p. 95, grifo

nosso):

Meu ponto de partida não foi a investigação da

existência de Deus, da imortalidade, etc., mas aAntinomia

da razão pura... foi ela que me despertou pela primeira

vez do sono dogmático e me levou à crítica da própria

razão, para fazer cessar o escândalo de umaaparente

contradiçãoda razão consigo mesma.

Este trecho é comumente citado pelos comentadores e recebe

diferentes interpretações. Aos olhos de Lebrun, faltou aos leitores

especificar, a partir de tais afirmações, o papel que aAntinomia adquire

no interior daCrítica. Afinal, “Sem esse ‘estranho fenômeno’, como

se poderia algum dia surpreender a metafísica emflagrante delito de

erro, já que é impossível confrontar suas proposições com a

experiência?” (Lebrun, p. 96, grifo nosso). Nestes termos, as

antinomias têm um papel fundamental: elas “são, portanto, a única

ocasião dada ao entendimento de escapar daaparênciada qual ele é

naturalmente vítima” (idem, grifo nosso). Se Kant fora despertado

pela Antinomia, nada mais justo do que dar-lhe o devido relevo,

inclusive, mostrar o seu caráter pedagógico, na medida em que o

espetáculo da razão em luta consigo mesma só pode alertar para a

necessidade de se reconhecer o erro que naturalmente a incita a

engendrar a ilusão metafísica.

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Page 43: Cadernos Espinosanos nº 16

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SILVANA DE SOUZA RAMOS

David-Ménard, por sua vez, ainda que conceda relevância

central à Antinomia, encontra em sua análise a ocasião para dar

fundamentação a uma leitura engenhosa da obra de Kant. Trata-se,

para a autora, de salientar que a origem do empreendimento crítico

não pode ser verdadeiramente compreendida se não for levada em

consideração a leitura atenta que Kant fez da obra do visionário sueco

Swedenborg: “ainda que não se pronuncie o nome de Swedenborg,

Kant retoma com todas as letras a descrição do pensamento deste

último” (David-Ménard, p. 10). Quer dizer, ao lado do inimigo

explícito, a metafísica, representada sobretudo por Leibniz, há ainda

um outro personagem importante, ocultado naCrítica: o sábio

visionário. Deste modo, David-Ménard procura mostrar que o

pensamento de Kant se volta principalmente, não para as dificuldades

colocadas por Hume, mas para (David-Ménard, p. 10, grifo nosso):

essa recusa simultânea dodogmatismoe da

extravagância... de um lado, a categoria do possível tem

a função de reunir Swedenborg e Leibniz — estes, com

efeito, invocam conceitos sem objetoque, sem serem

impossíveis no sentido da contradição, não podem ser

contados entre os possíveis —; de outro, acategoria do

real afasta os dois autores: ao fazer da percepção um

critério necessário de toda representação que pretende

apreender um objeto real, Kant exclui o número

leibniziano, mas, para poder excluir as visões de

Swedenborg das experiências que dão acesso à realidade,

logo precisa acrescentar que só podem ser ditas realidades

as intuições e percepções que se encadeiem segundo os

princípiosa priori do entendimento puro.

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CADERNOSESPINOSANOSXVI - 2007

Neste sentido, Kant precisa limitar o conhecimento à

experiência, mas o procedimento crítico deve operar no intuito de ao

mesmo tempo garantir que as leis do entendimento se apliquem a

intuições. Lebrun, ao acentuar o fato de que o problema daCrítica é

o da possibilidade de juízos sintéticosa priori, mostra que a solução

de tal problema comanda o “destino” da metafísica inteira. Assim, “o

afrontamento sem fim das teses é o signo de que vale a pena parar

neste lugar — não medir os ‘progressos’, mas voltar ao ponto de

partida” (Lebrun, p. 26), quer dizer, ao mecanismo pseudo-racional

do qual nasce a ilusão metafísica, esse estranho conhecimento sem

objeto. O que nos interessa é o fato de que, tanto para Lebrun quanto

para David-Ménard, o problema para o qual aAntinomia nos desperta

é aquele que concerne à possibilidade de um conhecimento efetivo

advindo do esclarecimento crítico proporcionado pelo espetáculo da

Antinomia. Cabe, pois, à Crítica responder em que sentido podemos

afirmar que nossas investigações e conhecimentos de fato abarcam o

real, e quando e como elas podem apontar para oideal 1.

Neste sentido, podemos notar a importância daDialética

Transcendentalpara a compreensão do empreendimento crítico

kantiano no que diz respeito àdeterminação do âmbito da objetividade.

Afinal, para que se constitua realmente um objeto de conhecimento, é

necessário, por um lado, limitar o conhecimento à experiência (quer

dizer, circunscrever seu âmbito empírico), e, por outro, operar a crítica

no intuito de ao mesmo tempo garantir que as leis do entendimento se

apliquem a intuições e não a fantasmas (quer dizer, é preciso demarcar

a adequação na aplicação das leis do entendimento). É preciso, pois,

identificar o “tropeço da razão” que induz o entendimento à síntese, a

partir dos fenômenos, em direção a uma idéia — cosmológica e

fantasmagórica — que ultrapassa o âmbito fenomênico, a idéia de

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Page 45: Cadernos Espinosanos nº 16

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SILVANA DE SOUZA RAMOS

mundo (seja enquanto quantum matemático, 1ª e 2ª antinomias, seja

enquanto totalidade dinâmica, 3ª e 4ª antinomias). Tal idéia é

responsável pela produção e pela permanência das antinomias na

medida em que impossibilita sua resolução na experiência. Kant é

incisivo neste ponto:o mundo não existe, porquanto não é um objeto

possível, quer dizer, jamais teremos experiência da totalidade sintética

dos fenômenos capaz de nos colocar realmente diante do mundo.

Mas não é só isso, pois a investigação kantiana leva a um novo

problema que completa o movimento em direção à teoria da

objetividade. Trata-se de uma parte espinhosa da argumentação crítica

na medida em que a estratégia kantiana, que abrirá campo à resolução

das antinomias, envolve a apreciaçãodo poder ontológico do negativo.

Para entendermos este ponto, partiremos da formulação certeira de

David-Ménard (p. 32-33):

... como o estudo da aparência torna necessária

uma reflexão sobre o poder lógico e transcendental da

negação, a oposição entre o nada e o algo consiste na

maneira em que a negação intervém em nossos juízos:

quando o pensamento cai sub-repticiamente numa

oposição meramente dialética ou numa oposição que tem

a pretensão de ser a um só tempo analítica e ontológica,

ele disputa consigo mesmo a propósito de uma aparência

de mundo, de uma idéia de mundo que se revela um nada

do ponto de vista da existência a conhecer. Ao contrário,

o entendimento conhecerá algo quando a negação for posta

em jogo, à semelhança do que o juízo indefinido em lógica

e a oposição real do ponto de vista epistemológico tornam

possível.

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CADERNOSESPINOSANOSXVI - 2007

A análise das antinomias mostra que a querela é um mero

conflito na medida em que a idéia de mundo é um nada do ponto de

vista da existência. É preciso entender, contudo, a segunda parte da

argumentação de David-Ménard: que há de especial no uso da negação

que pode ser útil para desvelar a falácia do conflito antinômico? Ora,

o poder da negação é analisado pelo menos em dois momentos

decisivos daCRP. Primeiramente, na “Nota sobre a anfibolia dos

conceitos da reflexão”, e, posteriormente, na seção 7 da Dialética

Transcendental. Nos dois casos, o complexo quadro de conceitos

evocados por Kant — que circunscreve o poder da negação — será

capaz de enfim esclarecer os combatentes da metafísica de que sua

contenda é, em termos kantianos,por nada.

A falácia dos raciocínios cosmológicos

Kant inicia a sétima seção daDialética Transcendental

relembrando que as idéias cosmológicas nascem do seguinte raciocínio:

“quando o condicionado é dado, é dada tambémtoda a série de

condições do mesmo” (B 525, grifo nosso) e declara que antes de

explicitar o que há de sofístico neste argumento, é preciso afirmar que

ele é, em certa medida, válido e por isso irrepreensível, pois:

1) trata-se de uma proposição analítica, e nisto não

há nada que se refutar à sua validade. É um postulado lógico

(ligação de um conceito com suas condições) que ordena

perseguir, a partir do condicionado, a série das condições,

até o incondicionado (até onde for possível);

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SILVANA DE SOUZA RAMOS

2) quando o entendimento trabalha com ascoisas

em si, então é possível fazer a regressão em direção à

totalidade e ao incondicionado, porquerealmente, neste

caso, quando o condicionado é dado, a regressão à

condição “não só é proposta como tarefa, comorealmente

dada conjuntamente” (B 427, grifo nosso).Aqui, a síntese

se daria apenas no entendimento (claro, isso ocorreria se

tivéssemos acesso às coisas em si, por isso Kant formula o

raciocínio de maneira condicional).

Entretanto, quando aplicamos o mesmo raciocínio aos

fenômenos, porque estes só se dão na síntese empírica (temporal),

não obtemos o mesmo sucesso. Contudo, surge aqui a “tarefa” posta

ao entendimento de seguir regredindo na série até a totalidade.

Circunscreve-se então a primeira faceta do problema (B 528-9, grifo

nosso):

A síntese do condicionado e da condição e toda a

série das condições (na premissa maior) não implica

qualquer limitação pelo tempo nem qualquer conceito de

sucessão. Em contrapartida, a síntese empírica e a série

das condições no fenômeno (subsumida na premissa

menor) são necessariamente sucessivas e só dadas no

tempo uma após a outra. Por conseguinte, não posso

pressupor, nem no segundo caso nem no primeiro, a

totalidade absoluta da síntese e da série que ela representa;

porque, no primeiro, todos os termos da série são dados

em si (sem condição de tempo), mas aqui são unicamente

possíveispela regressão sucessiva, que só é dada na

medida em que realmente se efectua.

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CADERNOSESPINOSANOSXVI - 2007

A falácia consiste no fato de que a premissa maior se refere às

coisas em sienquanto a menor pressupõe a síntese empírica no

fenômeno. Isto impossibilita a completude da síntese, tanto numa

quanto noutra. Ora, é este o vício e o fundamento das afirmações

cosmológicas, o que justificaria a conclusão de que ambos os lados

(tese e antítese) são falsos e, portanto, incapazes de provar o que

pretendem.

Mas Kant tem de ir mais longe, já que esta constatação não

acaba com a querela. Com efeito, as alternativas colocadas pelas

antinomias não podem ser rejeitadas somente porque suas conclusões

não assentam em “nenhum título sólido” (B529). Os gladiadores

poderiam lançar mão de argumentos mais sólidos e assim decidir a

contenda: “nada parece mais claro do que isto: de duas afirmações,

uma que afirma que o mundo tem um começo e outra que sustenta

que o mundo não tem começo e existe desde a eternidade, uma delas

deverá ter razão” (idem). Noutros termos, todo o trajeto feito até

aqui para dar cabo ao conflito é insuficiente para fazer os inimigos

desistirem da luta. É preciso então dar um passo além e mostrar

definitivamente que os gladiadores “disputam por nada e que uma

certaaparência transcendental lhes representou uma realidade onde

não a há. É este o caminho pelo qual vamos tentar por fim a uma

contenda acerca da qual o tribunal não pode pronunciar-se” (B 529-

30, grifo nosso). Noutros termos, o tribunal da razão se cala acerca da

questão e não pode ir além de exigir também, por parte dos rivais, o

silêncio. Entretanto, estes insistem na luta, porquanto não estão

realmente convencidos da impossibilidade de defender suas posições.

O que poderá detê-los? A estratégia kantiana, que abrirá campo à

resolução das antinomias, envolverá então a apreciação do poder

ontológico do negativo.

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SILVANA DE SOUZA RAMOS

A arte de Zenão

Zenão era o sofista atacado por Platão pelo fato de exercer a

arte de “demonstrar qualquer proposição por meio de argumentos

aparentes para, logo a seguir, derrubá-la por intermédio de outros

igualmente fortes” (B 530). Por exemplo, demonstrava que Deus (o

mundo) não era finito, nem infinito, que não estava em repouso, nem

em movimento etc. Ora, diz Kant, “Quem o julgasse a este propósito

era levado a crer que ele pretendia negar duas proposições

contraditórias, o que é absurdo.Não me parece todavia que seja justa

essa censura” (B 530, grifo nosso). Quer dizer, Kant defende a

estratégia de Zenão na medida em que a maneira pela qual este

desmonta as pretensões dogmáticas se assemelha à forma pela qual o

filósofo alemão repreende a argumentação dos metafísicos: basta

encenar ou “provocar” umadisputapara mostrar que nenhum dos

lados é capaz de sustentar sua posição frente ao oponente. Zenão não

deve ser censurado pois soube mostrar que há ocasiões em que dois

lados em luta são igualmente falaciosos. Kant deixa de discutir

imediatamente a alternativa finito ou infinito (vai tratá-la adiante), mas,

para explicitar a justiça na argumentação de Zenão, afirma, por

exemplo, que “se pela palavraDeusentendia o universo, tinha que

dizer, sem dúvida, que este não está constantemente no mesmo lugar

(em repouso), nem muda de lugar (não se move), porque todos os

lugares estão no universo e este, por conseguinte, não estáem nenhum

lugar” (B 530). Note-se que o problema consiste no modo como se

compreende o sujeito da proposição: o que, afinal, podemos afirmar

sobre o universo? Que tipo de asserções podemos admitir a respeito

deste pretenso objeto? Ora, a aparição de Zenão no início da seção 7

é bastante sugestiva e deixa evidente que a argumentação kantiana se

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CADERNOSESPINOSANOSXVI - 2007

desenvolverá no sentido de esclarecer os argüidores dos perigos que

rondam os debates quando não se sabe muito bemdo que se está

falando. Surge aqui o primeiro dado que permite compreender o

pretenso poder ontológico da contradição: “Se dois juízos opostos

um ao outro pressupõem uma condição inadmissível, ambos se anulam,

não obstante a oposição (que contudo não é uma autêntica

contradição), porque fica suprimida a condição única que conferia

valor a cada uma delas” (B 531, grifo nosso). Se se tratasse de uma

autêntica contradição, uma afirmação deveria de anular a outra, e, ao

mesmo tempo, demarcar sua própria validade. Haveria, portanto, como

decidir entre elas. Por isso, Kant pode afirmar sem delongas que uma

oposição não é sempre uma contradição autêntica, porquanto dois

juízos opostos podem ser ambos falsos, desde que seja suprimida a

condição que lhes confere valor.

O segundo exemplo dado por Kant é curioso, pois se trata de

uma proposição empírica. “Se alguém disser: Todos os corpos cheiram

bem ou não cheiram bem, verifica-se ainda uma terceira possibilidade,

que é a denenhum deles cheirar a nada (não ter cheiro) e então ambas

as proposições contrárias podem ser falsas” (B 531). Analisemos o

exemplo disjuntivo:

Ou todo corpo cheira bem.

Ou todo corpo não cheira bem.

Na verdade, não há aqui contradição porque a determinação

introduzida pelos dois juízos aparentemente contrários não cobre todos

os casos possíveis. Em outras palavras, se digo que todos os corpos

cheiram bem ou cheiram mal, ambas as proposições podem ser falsas

porque não abarcam toda a extensão do sujeito: os corpos que não

têm cheiroficam de forae desmascaram a falácia dos oponentes. O

que poderia ser exemplificado assim:

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SILVANA DE SOUZA RAMOS

Todos os corpos são odoríferos (cheiram bem ou não cheiram bem).

Alguns corpos não cheiram absolutamente nada.

Conseqüentemente, o conflito cheiroso-malcheiroso não tem

poder sobre o conceito de corpo em toda a sua extensão e por isso

não pode provar nada.

Segue-se um outro exemplo, também empírico: “se eu disser

que todos os corpos são odoríferos ou não são odoríferos (vel

suaveolens vel non suaveolens), os dois juízos são contraditórios entre

si e só o primeiro é falso, mas o seu oposto contraditório, ou seja,

alguns corpos não são odoríferos inclui os corpos que não cheiram

absolutamente nada” (B 531). Vejamos:

Ou todo corpo é odorífero.

Ou todo corpo não é odorífero.

Ao contrário do exemplo anterior, os juízos, neste caso, são

exaustivos e cobrem toda a extensão do sujeito (porque os corpos,

quanto à condição acidental odorífera, ou são odoríferos ou não são

odoríferos). Vejamos como opera a contradição entre eles (Kant diz

que só o primeiro é falso):

Todo corpo é odorífero.

Algum corpo não é odorífero.

O oposto contraditório de “Todo corpo é odorífero” é “Algum

corpo não é odorífero”. Ora, o segundo inclui os corpos que não são

odoríferos (excluídos no exemplo anterior). Aqui, a contradição é

perfeita na medida em que é exaustiva, o que não ocorre com o conflito,

no primeiro caso, entre cheiroso e malcheiroso.

Estes exemplos nos induzem a concluir que Kant defende a

perfeição lógica da contradição (2º exemplo) frente à falácia abarcada

pelo conflito (1º exemplo). Entretanto, como salienta David-Ménard,

ao relacionar sujeito e predicado, o conflito deixa de fora de si mesmo

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CADERNOSESPINOSANOSXVI - 2007

uma certa ligação do sujeito e do predicado. Isto que ficade forado

conflito lógico é, surpreendentemente, o transcendental, isto é, o lógico

em sentido redefinido, que pode apreender uma existência em lugar

de ser apenas formal (tema tratado na discussão sobre a “anfibolia”2).

Por isso, o conflito ocupa o mesmo lugar que o juízo indefinido em

lógica, pois, segundo Lebrun, “o juízo indefinido é o instrumento da

determinação completa” e, “se entendermos no sentido estrito o

princípio ‘omnis determinatio negatio’ — ela [negação] é ao mesmo

tempo qualificação para o ser finito, quer dizer, para o positivo

enquanto ele écomparadoa outros positivos” (Lebrun, p. 259, grifo

nosso). Desse modo, ainda que a exclusão seja uma negação, a

restrição — limitação — do conceito é um ato positivo. Assim, se

digo que x é não-a, mostro que x pertence à esferafora de A.

Evidentemente, isto só poderá ser compreendido depois de superado

problema da antinomia, o que veremos adiante.

O exemplo posterior ao do corpo odorífero produzirá uma

sutil modificação na marcha do argumento de modo a explicitar o que

acabamos de dizer. Vimos que a existência é aquilo que o conflito

lógico, no juízo indefinido, deixade forade si mesmo, ao fixar essa

exterioridade através de um limite, o que é maneira mais rigorosa

possível de determiná-la. Ora, nos raciocínios sobre o mundo, o uso

da negação nasAntinomias deixa de fora de sua jurisdição a existência

do mundo (como coisa em si). Por isso, o juízo indefinido põe em

jogo a existência. Vejamos o exemplo (B 531-2):

Quando digo, pois: o mundo, quanto ao espaço, é

infinito ou não é infinito (non est infinitus), se a primeira

proposição é falsa, deve ser verdadeiro o seu oposto

contraditório, a saber, o mundo não é infinito. Deste modo

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SILVANA DE SOUZA RAMOS

só suprimiria um mundo infinito mas não poria outro, ou

seja, o finito. Porém, se disser que o mundo é ou infinito

ou finito (não-infinito)poderiam ambas ser falsas. Com

efeito, vejo então o mundo determinado em si próprio,

quanto à grandeza, porque na proposição oposta não só

suprimo simplesmente a infinitudee, conjuntamente,

talvez, toda a sua existência própria, mas também

acrescento uma determinação ao mundo como a uma

coisa real em si mesma, o que pode ser igualmente falso,

se na verdade o mundo não devesse de modo algum ser

dado enquanto coisa em si e, por conseguinte, nem como

infinito nem como finito quanto à grandeza.

Em primeiro lugar, notamos que há uma inversão em relação

aos exemplos anteriores (além do fato de que aqui não se trata de

juízo empírico, mas de raciocínios cosmológicos). Primeiramente surge

a negação contraditória: entre infinito e não infinito, um deve

prevalecer. Entretanto, diferentemente dos juízos empíricos anteriores

(odorífero e não-odorífero),a supressão de um não põe a existência

do outro. Em outros termos, neste caso, a contradição é puramente

formal, quer dizer, tem um poder supressivo, mas nenhum poder

posicional. Ela aparenta ter, em relação ao mero conflito, o privilégio

do rigor lógico, mas sob a condição de se mostrarsem efeito sobre a

existência dos sujeitos lógicos aos quais concernem as proposições

em que ela ocorre. Mas por que isso? Ora, exatamente porque o sujeito

da proposição é o mundo, ou seja, algo que não pode ser subsumido

como objeto a qualquer conceito. Em outras palavras, a contradição

funciona formalmente, mas, como salienta Kant na “anfibolia”: “Um

uso puro das categorias — e édisso que se trata no exemplo — é, na

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CADERNOSESPINOSANOSXVI - 2007

verdade, possível, isto é, sem contradição,mas não possui nenhuma

validade objetiva, pois não se refere a intuição alguma” (A253, grifo

nosso). Se a oposição contraditória (analítica) que acabamos de ver

não ultrapassa o formalismo, ou seja, não tem nenhum poder ontológico

ou posicional, que dizer da “oposição dialética”?

No exemplo citado acima, se digo que o mundo é ou infinito

ou finito (não infinito), então “as duas proposições podem ser falsas”.

Ora, isto acontece, explica Kant, porque pressuponho um mundo

“determinado”, ou seja, o mundo como totalidade apreensível.Assim,

se este pressuposto for negado, as duas proposições podem ser falsas:

o mundo não é então nem finito nem infinito. Diferentemente do que

ocorria na oposição analítica, o resultado da oposição dialética traz

um saldo inesperado: ela mostra que há algo que o juízodeixa de

fora, a saber, a própria existência do mundo. Este saldo é possível

porque a reflexão revela a “aparência transcendental” que sustenta a

oposição. Por conseqüência (B 532-3),

Se, porém, retirar este pressuposto ou esta

aparência transcendental e negar que o mundo seja uma

coisa em si, a oposição contraditória entre ambas as

proposições transforma-se numa oposição simplesmente

dialética e, como o mundo não existe em si

(independentemente da série regressiva das minhas

representações), não existe nem como umtodo infinito

em si, nem como umtodo finito em si.

Tais observações podem nos ajudar a compreender a frase

enigmática que antecipa essas conclusões: “Assim, dois juízos,

dialecticamente opostos entre si, podem ser ambos falsos porque não

só se contradizem, mas um delesdiz maisdo que é necessário para a

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SILVANA DE SOUZA RAMOS

contradição” (B 532, grifo nosso). No conflito concernente à finidade

ou infinidade do mundo, a contradição deve se limitar à sua validade

formal, e não pretender por e depor o ser das coisas, ou seja, não deve

pretender dizer “mais” do que lhe cabe. Entrementes, esta operação,

expressa na negação conflitual, forma lógica do que é

transcendentalmente uma oposição dialética, põe em jogo

subrepticiamente— para falar com David-Ménard — a existência do

sujeito pela mediação de uma determinação efetiva que lhe é imputada

(“o mundo é determinado quanto à sua grandeza” implica a existência

do mundo que se poderia caracterizar pela quantidade). Pois bem, o

que permanecefora do alcance da negação no conflito não é uma

condição acidental do sujeito — ser odorífero ou não odorífero, por

exemplo — mas a existência do sujeito lógico sobre o qual raciocina

o pensamento antinômico. Entretanto, justamente enquanto ilusão, a

oposição dialética permite compreender as relações entre a negação e

a posição de existência: pois ela dizalgo maisdo que se requer para a

contradição. Nela, os juízos em conflito podem ser ambos falsos,

porque incidem sobre um ser ao qual erroneamente atribuem existência.

Esta reflexão sobre a idéia cosmológica de grandeza do mundo

pode ser aplicada a todas as outras idéias cosmológicas, pois, ao

raciocinar sobre o mundo, o pensamento se refere sucessivamente a

uma existência possível, e em seguida a uma existência constituída

conforme as regras da experiência. A antinomia consiste no emprego

de uma categoria, quer transcendental, quer empírica, de existência

do mundo, por intermédio da suposição de sua determinação (quanto

à grandeza, à simplicidade, à causalidade, à necessidade). A ilusão

presente no raciocínio cosmológico só pode ser desmascarada pela

análise transcendental, pois esta identifica que os juízos em conflito

admitem uma condição inaceitável, o que lhes condena à falácia.

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CADERNOSESPINOSANOSXVI - 2007

O papel objetivo da negação

Haveria, entretanto, um bom uso da negação? Para responder

a esta questão é preciso levar em conta os problemas enfrentados por

Kant para orquestrar sua teoria da objetividade. Neste sentido, é preciso

explicitar como podemos ter acesso à realidade, quer dizer, como

podemos determinar uma existência singular ao invés de polemizar

sobre o nada — ou seja, sobre a idéia de mundo. Este tema nos leva à

oitava seção daDialética Transcendentale ao tratamento que ela

confere à noção delimite.

A seção 7 serviu para mostrar que pelo conceito cosmológico

de totalidade não é “dadonenhum máximo à série de condições num

mundo dos sentidos, considerado como coisa em si, e que este máximo

apenas podeser proposto como tarefana regressão desta série” (B

536). Esta tarefa, ou este princípio, conserva sua validade, não como

axiomapara pensar como real a totalidade no objeto, mas como

problemapara o entendimento. Que isso quer dizer? Ora, a realidade

dos objetos — no fenômeno — não pode ser alcançada mediante a

regressãototal na série empírica. Pois todo condicionado sugere a

regressão à condição precedente, mas nunca ao incondicionado. A

regra posta ao entendimento é, portanto, “um princípio que permite

prosseguir e alargar a experiência o mais possível e segundo o qual

nenhum limite empírico deverá considerar-se com o valor de limite

absoluto” (B 537, grifo nosso). Por isso, tal princípio postula o que

devemos fazer — como regra — na regressão, “masnão antecipao

que é dado em sino objetoantes de qualquer regressão” (idem).

Noutros termos, ele não diz o que é o objeto antes da regressão, apenas

sugere como essa regressão — sempre empírica — deve proceder de

modo a “atingir o conceito completo de objeto” (B 538). Mas como

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SILVANA DE SOUZA RAMOS

atingir o conceito completo do objeto? Neste ponto interfere uma

distinção importante, surgida durante a análise, por Kant, da

decomposição em partes (B 542):

Se o todo for dadoempiricamente, é possível

remontar até ao infinito na série das suas condições

internas. Porém, se não for dado, ou se for dado

unicamente pela regressão empírica só posso dizer: é

possível,até ao infinito, ascender a condições cada vez

mais altas da série. No primeiro caso poderia dizer que há

sempre mais membros, e membros empiricamente dados,

do que os que atinjo pela regressão (da decomposição);

no segundo, porém, que posso avançar cada vez mais na

regressão, porque nenhum membro é dado empiricamente

como absolutamente incondicionado e admite, por

conseguinte, sempre a possibilidade de um membro mais

elevado e portanto a sua investigação como necessária.

Quer dizer, a determinação dosobjetos reaissomente é possível

mediante a regressão empírica, e não necessita pressupor o mundo

como objeto, ou seja, como totalidade dada em si. Simultaneamente,

a regra limita o alcance fenomênico do objeto porque esclarece que

sua determinação reside nas condições da sensibilidade, e não numa

realidade — inacessível para nós — alheia à síntese temporal.

Conseqüentemente, o objeto é aquilo que, modificando as condições

da síntese que produz a idéia de mundo, torna possível a sua solução,

de maneira deslocada. Em outros termos, o conhecimento do objeto

por limitação ou restrição das condições nas quais é pensado o

problema do mundo resolve essa idéia enquanto problema e propõe a

tarefa da síntese empírica. Conseqüentemente, a crítica transcendental

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CADERNOSESPINOSANOSXVI - 2007

das antinomias nos leva à necessidade da idealidade transcendental

dos fenômenos ou à compreensão de que só conhecemos aquilo que

nos aparece, tal como nos aparece, segundo as regras de nossa

sensibilidade.

Ora, que papel o negativo pode jogar aqui? Responder a tal

pergunta exigiria alongar demais a discussão, porém, vale a pena situar

a noção capital que serve para compreender este ponto: a idéia de

oposição real. É ela que nos tira do embaraço da razão ao apontar um

caminho preciso para o conhecimento: “construir objetos de

conhecimento ao modo da oposição real em lugar de sonhar o mundo

ao modo da oposição analítica ou da oposição dialética” (David-

Ménard, p. 52). Segundo Lebrun, Kant opera uma cisão radical entre

finito e infinito. A condição necessária da oposição real é a deoperar

entre dois conteúdos positivos, cuja conseqüência é zero (como no

caso em que o repouso aparece como o resultado da destruição

recíproca de duas forças motrizes). Noutros termos, os membros da

oposição real são positivos e sua resultante (o repouso) é algo. Mas a

oposição real é o lugar da determinação das coisas finitas: toda

determinação é uma negação — a negação é a qualificação para o ser

finito, quer dizer, para o positivo enquanto ele écomparadoa outros

positivos e não enquanto ele se refere ao infinito (por definição,

indeterminado, o que no caso de Kant só pode significar vazio de

conteúdo, porque não pode ser objeto de uma experiência). Isto nos

permite terminar nossas reflexões indicando a distância desta

formulação em relação às pretensões da filosofia do XVII.

Kant toma o conceito de infinito no mesmo sentido

que Espinosa [infinito como indeterminado], mas renuncia

a um de seus princípios: ‘dois positivos não podem excluir-

se’, e apenas tira as conseqüências dessa recusa.Aoposição

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SILVANA DE SOUZA RAMOS

simétrica entre os dois pensadores inscreve-se portanto

em uma estrutura comum, e o abismo que separa um e

outro do criacionismo é o signodessa comunidade. Com

efeito, tanto para Espinosa quanto para Kant a criação

surge como um mistério que aquele recusa e este

neutraliza. ‘A criação concerne apenas à existência

inteligível e não à existência sensível; assim, ela não pode

ser considerada como princípio de determinação dos

fenômenos’ (Lebrun, p. 279).

A admissão da comparação entre as grandezas finitas como

forma de determiná-las circunscreve uma formulação que seria

inaceitável para Espinosa: admitir que algo no mundo sustente uma

privação (como no caso em que o filósofo analisa o exemplo do cego).

Entretanto, isto é perfeitamente aceitável para Kant, uma vez que o

finito tem de ser determinado unicamente por referência ao finito (já

que o fenômeno — como mostra a oposição real entre as coisas reais

e a determinação completa — não se sustenta naexistênciado ser

infinito).

Bibliografia

David-Ménard, M.A Loucura na Razão Pura. Kant leitor de

Swedenborg. Trad. de H. B. S. Rocha. São Paulo: Editora 34, 1996.

Kant, I. Crítica da Razão Pura. Trad. de Manuela P. dos Santos e

Alexandre F. Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

______.Essai pour Introduire en Philosophie le Concept de Grandeur

Négative.Trad. par R. Kempf. Paris: Vrin, 1991.

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Page 60: Cadernos Espinosanos nº 16

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CADERNOSESPINOSANOSXVI - 2007

Lebrun, G.Kant e o fim da metafísica. Trad. de Carlos A. R. e Moura.

São Paulo: Martins Fontes, 1993 (Coleção Tópicos).

________.A Paciência do Conceito. Ensaio sobre o Discurso

Hegeliano.Trad. de Silvio Rosa Filho. São Paulo: Ed. da UNESP,

2006.

Torres Filho, R. R.Ensaios de Filosofia Ilustrada.São Paulo:

Brasiliense, 1987.

Notas

1 Não discutiremos este aspecto, mas é importante sinalizar que,

diferentemente do “tropeço da razão” que produz “idéias

cosmológicas” sem qualquer validade empírica, “a totalidade absoluta

na síntese das condições de todas as coisas possíveis em geral produzirá,

ao contrário, umideal da razão pura, que é totalmente distinto do

conceito cósmico, conquanto se encontre em relação com ele” (B

435, grifo nosso).

2 “Mediante uma categoria pura, na qual se abstraiu de toda a condição

da intuição sensível, única que nos é possível, não se determina nenhum

objeto, apenas se exprime o pensamento de um objeto em geral,

segundo diversos modos. Ora, para fazer uso de um conceito, é

necessária ainda uma função da faculdade de julgar pela qual um objeto

é subsumido no conceito, por conseguinte a condição pelo menos

formal, pela qual algo pode ser dado na intuição. Se faltar esta condição

da faculdade de julgar (o esquema), falta a subsunção, pois nada é

dado que possa ser subsumido ao conceito” (B 304).

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MARCOSFERREIRA DEPAULA

Saber, ação e afeto:O problema daacrasiaem

Aristóteles e Espinosa

MARCOSFERREIRA DEPAULA*

* Doutorando do Departamento de Filosofia da USP.

Resumo:Uma passagem do Livro VII daÉtica a Nicômacoe umaoutra doDe AnimadeAristóteles nos permitem mostrar que o Filósofoestá muito próximo da “solução” que Espinosa oferece ao problemadaacrasia(incontinência ou fraqueza da vontade). Ao circunscrevertal problema no campo do apetite e do prazer (epithymia), introduzindoa noção dedesejo(oréxis) como motor da ação prática, Aristótelesaponta para uma idéia de conhecimento afetivo, que no entanto sóserá plenamente desenvolvida bem mais tarde, pela teoria dos afetospresente naÉticade Espinosa. Veremos que nesta última o problemadaacrasiaganha outro estatuto e uma “solução”. Mas se a soluçãodo problema não foi formulada plenamente porAristóteles, tentaremosmostrar que, embrionária, ela já estava lá, eAristóteles pode então servisto como um precursor da teoria do conhecimento de Espinosa.

Abstract: A passage from Book VII of theNicomachean Ethicsandanother fromDe Animaby Aristotle allow us to demonstrate that thePhilosopher is very near to the “solution” that Spinoza offers to theproblem ofakrasia(incontinence or weakness of the will). Circum-scribing such problem into the field of appetite and pleasure (epithymia),introducing the notion of desire (oréxis) as the motor of practical ac-tion, Aristotle points to an idea of an affective knowledge that, how-ever, will only be completely developed much later, by the theory ofaffections present in Spinoza’sEthics. We shall see that in the latterthe problem ofakrasiaacquires another statute and “solution”. But ifthe solution of the problem was not completely formulated byAristotle,we shall try to show that, embryonically, it was already there, and soAristotle can be seen as a precursor of Spinoza’s theory of knowledge.

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CADERNOSESPINOSANOSXVI - 2007

...o raciocínio não é em nós o mais excelso,mas como uma escada, através da qual ascendemosao lugar desejado, ou como um bom espírito que,longe de toda falsidade ou engano, nos anuncia obem supremo, a fim de incitar-nos a buscá-lo e aunirmos-nos a ele. E essa união é nossa supremasalvação e beatitude.

Espinosa,Breve Tratado, II, 26, §6.

I

No Protágorasde Platão, Sócrates nos diz o que ele pensa ser

a opinião comum sobre o conhecimento. Para o povo, a ciência não

seria “nem forte, nem capaz de guiar e comandar”, e em vão estaria

presente no homem, já que não é ela que governa, “mas alguma outra

coisa, seja a cólera, seja o prazer, seja a dor, às vezes o amor, muitas

vezes o medo”. Além disso, o povo veria de bom grado a ciência

como um escravo que pode ser arrastado por todas as outras coisas.

“Tu fazes disso a mesma idéia”, pergunta Sócrates a Protágoras, “ou

julgas que ela é uma coisa bela, capaz de comandar o homem; que

enquanto um homem tem o conhecimento do bem e do mal, nada o

pode vencer e o forçar a fazer outra coisa que o que a ciência lhe

ordena, e que a inteligência é para o homem uma fonte que a tudo

basta?” Na resposta de Protágoras surge então a visão de Platão (talvez

mais do que a de Sócrates) sobre o conhecimento: “Eu penso da ciência

tudo o que tu dizes dela, Sócrates, e seria vergonhoso a mim mais do

que a qualquer outro não reconhecer que a sabedoria e a ciência são o

que há de mais forte entre todas as coisas humanas” (Protágoras,

352b)1 .

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MARCOSFERREIRA DEPAULA

Se esta opinião socrático-platônica estiver certa, não pode haver

o fenômeno daacrasia, isto é, afraqueza da vontadeouincontinência,

como se costuma traduzir2 , tal como o propõe Aristóteles. De fato, se

o conhecimento é o que há de mais forte e não pode ser arrastado

como um escravo, então, uma vez presente, e seu conteúdo afirmando

uma ordem do tipo “faz isto” ou “deves portanto fazer isto”, a ação

defazer istodeverá ser cumprida e nada poderá levar o sujeito a agir

de outra maneira ou de maneira contrária. Conseqüentemente, só seria

possível agir mal por ignorância do bem, do correto ou do melhor.

Aristóteles, porém, trata justamente desse fenômeno, em que o agente

sabe que deve fazer algo (isto é, seu conhecimento lhe dá boas razões

para agir de certo modo) e, no entanto, ele faz outra coisa diferente,

age de outro modo. Que haja casos assim na realidade, Aristóteles dá

por evidente: “Realmente, esta noção [a opinião de Sócrates] contradiz

manifestamente os fatos como eles nos aparecem (...)” (EN, VII 2,

1146a11)3 .

Aristóteles certamente reputava importante a opinião de

Sócrates. Mas diante dos “fenômenos” empíricos, diante das evidências

da experiência, decide enfrentar o problema e problematizar a questão.

É o que ele faz na suaÉtica a Nicômaco, sobretudo no Livro VII. E o

tratamento do tema, aí, talvez seja principalmente, como quer Michael

Woods, uma resposta ao Sócrates doProtágoras4 . Mas qual é a real

divergência entre a visão socrática e a deAristóteles sobre a

incontinência? É certo que diante dos fatos Sócrates não poderia negar

a existência do “fenômeno”. Sócrates, como argumenta Woods, não

negaria a existência da acrasia, mas antes sua descrição, que não levaria

em conta o fato de que o fenômeno envolve sempre algum grau de

ignorância5 . Assim, não é a existência empírica da acrasia, o motivo

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da discordância entre os filósofos. O problema maior estaria antes na

própria divergência entre as opiniões a respeito do que é a acrasia.

Segundo Woods, seria este de fato o problema queAristóteles tentaria

resolver no Livro VII daÉtica nicomaquéia(principalmente porque

se trataria, aí, de salvar a opinião de Sócrates)6 .

Se é assim, se trata-se, sobretudo, de dar uma resposta à forte

e importante opinião de Sócrates sobre a potência e supremacia do

conhecimento, então o que estaria no cerne da análise aristotélica da

acrasia seria antes de tudo a própria relação entre conhecimento e

ação. Com efeito, o problema da incontinência, como nos lembra

Woods, só faz realmente sentido se considerarmos o argumento

socrático do poder do conhecimento no controle e desempenho de

nossas ações: “(...) pode-se considerar agir contra a própria crença

um problema, se ou não se concorda com Sócrates que o conhecimento

é supremo”7 . Ou seja, a questão da acrasia só é de fato um problema

se ela envolve conhecimento ou crença, e se o que está em questão é

se esse conhecimento tem ou não o poder de guiar nossas ações. Como

é possível que alguém, sabendo,no momento mesmo da ação, que

não devia praticarx, no entanto praticax? É por isso que a análise

Aristóteles tem que passar pela consideração filosófica do tipo de

conhecimento envolvido na acrasia (e é o que ele faz, sobretudo no

capítulo 3 do Livro VII).Assim, numa análise da acrasia, duas questões

precisam ser respondidas: 1) há, de fato,conhecimentona ação

acrática? 2) Se há, em quesentidose pode dizer que o acrático conhece

o “mal” que no entanto faz?

A primeira questão é importante, pois parece que a

incontinência deve necessariamente envolver algum tipo de

conhecimento, sob pena de deixar de ser o que é. Ou bem ela envolve

conhecimento, ou bem não se pode dizer que ela é incontinência. O

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MARCOSFERREIRA DEPAULA

incontinente é justamente aquele que sabe que deve fazerAe no entanto

faz não-A. Se ele não sabia, não se pode dizer que seja acrático. Não

pode haver inconsciência ou ignorância na ação acrática, pois isso a

tornaria uma ação involuntária: tal como Édipo, o sujeito não sabe o

que faz; e, sendo involuntária, ela deixa de ser acrática. É que, além

do conhecimento, é preciso que haja voluntariedade para que uma

ação possa ser dita acrática. Mas o que é uma ação voluntária?

Aristóteles define os atos voluntário e involuntário no capítulo 1 do

Livro III da Ética nicomaquéia: “Sendo involuntária uma ação

executada sob compulsão ou por ignorância, um ato voluntário é

presumivelmente aquelecuja origem está no próprio agente, quando

esteconhece as circunstâncias particularesem que está agindo” (EN

1111a18-21, grifos nossos). Na ação voluntária, portanto, a causa do

ato encontra-se no próprio agente, que conhece as circunstâncias

específicas do momento da ação. No caso da ação acrática, entre estas

circunstâncias conhecidas deve encontrar-se uma que diz respeito ao

próprio agente no momento da ação: o conhecimento de que algo

deveria ou não ser feito.Aacrasia, portanto, envolve necessariamente

conhecimento atual de algo importante, no momento da ação:

justamente aquilo que se deveria ou não fazer.

Quanto à segunda questão, Aristóteles, no final do capítulo 2

do livro VII, questiona se de fato o acrático tem conhecimento do

mau ou do bom no momento da ação e, se o tem, em que sentido.

Essa discussão perpassa o início do capítulo 3. Aí ele considera a

possibilidade de o conhecimento envolvido na acrasia ser apenas uma

“crença”. Parece uma tentativa de salvar a opinião de Sócrates, como

diz Woods8 . Se o que o acrático tem é uma crença, Sócrates

concordaria com a existência do fenômeno da acrasia, pois uma crença,

na sua visão, não é forte o suficiente para governar a vida de alguém.

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CADERNOSESPINOSANOSXVI - 2007

No entanto, Sócrates engana-se; pois o que se passa se a crença for

correta, ao menos para mim? Se eu realmente apenasacredito(embora

nãosaiba) que não fazer isso é o melhor, tal crença pode ter uma

força tão grande quantosaberque é melhor não fazer isso. Uma crença

pode ser forte o suficiente para não ser, como o real conhecimento

socrático, arrastada como uma escrava. Quantos cristãos se mantêm

firmes (continentes) em não cobiçar a mulher do vizinho, porque

acreditam que isso seria ceder à tentação de um diabo realmente

existente? Nesse caso estaríamos diante de uma meracrença(e não

conhecimento) que não se deixa “arrastar”, tanto quanto não seria

arrastado um conhecimento certo sobre o caso. Assim, se o que o

acrático tem é realmente uma crença ou um conhecimento, não é o

que mais importa: o que de fato importa é como é possível que ele

possa agir contra a sua própria crença ou contra o seu próprio

conhecimento. Porque uma crença pode mover ou demover tanto

quanto um conhecimento, não resolve saber se o acrático tem

conhecimento verdadeiro ou distinguir entre “sentidos” de

conhecimento:

A idéia de que as pessoas incontinentes agem

contra a opinião verdadeira e não contra o conhecimento

é irrelevante para a nossa argumentação, pois algumas

pessoas sustentam suas opiniões sem hesitação e pensam

que elas são conhecimento exato. Então, se a fraqueza de

convicção for o critério para decidirmos se devemos dizer

que as pessoas que agem contra a sua concepção do que é

correto apenas opinam, sem ter o conhecimento do que é

correto, não haverá realmente qualquer diferença a este

respeito entre opinião e conhecimento, já que algumas

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MARCOSFERREIRA DEPAULA

pessoas se mostram tão convencidas a propósito daquilo

sobre o que opinam quanto outras a propósito daquilo

que elas conhecem (...) (EN1146b20-30).

II

Se, contudo, Aristóteles permanecesse apenas no campo da

lógica, do conhecimento e da cognição, dificilmente conseguiria refutar

a tese Socrática.AlbertoAlonso Muñoz, emLiberdade e Causalidade,

nos lembra que o núcleo da posição socrática quanto à acrasia está em

que esta só é possível se há algum erro epistemológico: desconhece-

se o que é de fato o “bem” (daí a necessidade de uma “Paidéia” para o

sujeito: seria preciso formar seu caráter para que ele então conhecesse

o bem e o pusesse em prática). Sócrates, segundo Munõz, coloca,

assim, mais ênfase sobre o aspecto epistemológico e moral da ação,

enquanto Aristóteles enfatiza o aspectopsicológicoda ação: e é por

isso queAristóteles seria capaz de conceber um agente que conhece o

“mal” que no entanto faz. Para Aristóteles, portanto, a resposta ao

problema da acrasia se encontraria no campo psicológico, e não

epistemológico, da ação9.

Esse deslocamento de terreno é talvez um movimento

necessário, na análise da incontinência. Trata-se, de fato, de um “objeto

de estudo” que concerne ao universo do desejo e dos prazeres. O

campo da acrasia é o campo daoréxis(desejo) e daepithymia(apetite,

prazer)10. O acrático é aquele tem um conhecimento de que A não

deve ser feito, mas, diante do fato de que A é percebido como

prazeroso, cede ao desejo e faz A. Incontinência é ser levado por um

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desejo, não obstante o conhecimento, mas um desejo que diz respeito

a objetos de prazer físico: a incontinência se refere, em geral, ao

universo do tato e do sexo, do gosto e da gula, numa palavra, ao

mundo daepitimia. É por isso que, se o problema do acrático, como

vimos, certamente envolve elementos cognitivos, a solução do

problema, porém, não depende inteira e exclusivamente de aspectos

cognitivos. Assim, a solução talvez esteja, não no campo da análise

do tipo de conhecimento envolvido, mas no do grau de intensidade de

desejos contrários...

No contexto do Livro VII daÉtica nicomaquéia, Aristóteles

não deixa de apontar os elementos psicológicos do problema; por

exemplo, quando diz que “(...) a pessoa incontinente, sabendo que

age mal, age em decorrência de suasemoções...” (EN, VII 1, 1145b30,

grifo nosso). Entretanto, o tratamento do tema, aí, parece ainda

bastante preocupado com os aspectos lógicos e epistemológicos da

acrasia. Não por acaso a solução inicial deAristóteles para o problema

da incontinência enquanto ação dotada de conhecimento recai

principalmente sobre dois pontos: 1) o acrático tem conhecimento,

mas não o está usando no momento da ação; 2) o conhecimento que

não está em ato é o dapremissa maior de um silogismo prático.

Ter potencialmente o conhecimento, mas não o estar

mobilizando no momento da ação: trata-se de uma velha distinção

aristotélica entre potência e ato. Esta solução, porém, de algum modo

envolve ignorância, e, como foi dito, não pode haver ignorância ou

inconsciência, na acrasia, sob pena de ela deixar de ser o que é. A

distinção entre potência e ato, no entanto, é refinada com os exemplos

do bêbado, do louco e do adormecido (EN, VII 3, 1147a15-20). Eles

têm um conhecimento que não estaria em ato no momento da ação,

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embora muitas vezes pareçam estar mobilizando tal conhecimento; o

conhecimento que eles têm, no entanto, eles não o têm na mesma

condição que teriam se estivessem despertos, sãos ou sóbrios; digamos

que se trata de um conhecimento fraco,abstrato, no sentido de que

está momentaneamente separado de tudo aquilo que poderia lhe dar

sentido, a moral, a vida lá fora, as conseqüências etc. Mas seus atos

ainda continuam de algum modo referidos à inconsciência ou à

irracionalidade.Asolução aristotélica, por isso, não é ainda plenamente

satisfatória.

A segunda parte da solução parece mais consistente. Ela

considera a lógica do raciocínio prático, evoca a percepção e introduz

o desejo. NoTratado do movimento dos animais(701a5-30),

Aristóteles já aproximara o mecanismo da ação prática ao raciocínio

dedutivo: a conclusão necessária das premissas maior e menor seria a

própria ação realizada:

Parece que há uma analogia com o que se produz

quando se aplica o raciocínio e o silogismo aos seres

imutáveis. Mas nesse último caso, o fim é um conhecimento

teórico (pois desde que se conceba as duas proposições,

concebe-se e acrescenta-se a conclusão), enquanto no

outro, a conclusão das duas proposições é a ação

cumprida: assim, quando se pensa que todo homem deve

andar e se é homem, anda-se imediatamente; quando, ao

contrário, considera-se que as circunstâncias exigem que

nenhum homem ande e se é homem, a consequência

imediata é que se permanece sem se mexer: e nos dois

casos o homem age, a menos que alguma coisa o impeça

ou o constranja (MA, 7, 701a5-20).

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A mesma idéia aparece naÉtica a Nicômaco: “(...) dadas

as premissas ‘tudo que é doce deve ser provado’ e ‘aquilo é doce’

(...), a pessoa capaz de agir e que não é impedida de fazê-lo deve

provar imediatamente a coisa doce” (EN, VII 3, 1147a27-28). O que

Aristóteles está dizendo é que, em um silogismo prático, a conclusão

deve ser necessariamente uma ação. Mas a acrasia caracteriza-se

justamente pelo fato de que uma outra ação é executada, em vez

daquela que se esperaria como conclusão das duas premissas. Como

Aristóteles resolve o problema?Afirmando que o desejo introduz uma

outra premissa maior e modifica o resultado do silogismo.

Se a premissa maior (P1) e a menor (P2) estão em ato, então

deve-sepraticar a ação (C). Isso porém não constitui um ato de acrasia;

por exemplo:

P1: Todo X não deve ser provado

P2: Isso é um X______________________________________________

C: Não provo isso

Aqui não há acrasia; não há conflito. No entanto, pode ocorrer

o seguinte (e aqui sim há acrasia):

P1: Todo X não deve ser provado / P1´: Todo X é prazeroso

P2: Isso é X_______________________________________________________________________________________

[C1: Não provo isso – continência] / C1´: provo isso – incontinência

É importante frisar que P1 e P1’ são conhecimentos que

constituem, aqui, conceitos universais (são as premissas maiores),

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enquanto P2 é, aqui, uma percepção que constitui um conceito

particular (é a premissa menor). Para que o ato acrático ocorra, é

preciso que P2 esteja acompanhada ao mesmo tempo do desejo de X.

A solução aristotélica tem no mínimo o mérito de não assimilar

completamente o fenômeno da acrasia a estados irracionais ou

inconscientes: o acrático “silogiza”; contudo, o desejo gera, por assim

dizer, um outro silogismo, que altera seu estado de conhecimento.

Além disso, ela elimina a possibilidade de uma contradição no interior

do raciocínio prático. Pois quando o desejo introduz P1’, esta premissa

não contradiz P1: é antes odesejo, diz Aristóteles, que lhe é contrário

(EN, VII 3, 1147b5). Por isso mesmo, a incontinência não é, como diz

Solange Vergnières, a “experiência da contradição interna”11: não é

que o acrático quer A e não quer A (isso seria contraditório); ele quer

A e quer não-A. Em todo caso, Aristóteles, aqui, tenta dar conta de

um conflito que é epistêmico: o sujeito não consegue pôr em ato um

certo conhecimento (P1), no momento da ação, devido à entrada em

cena de um desejo que introduz P1’. Ou seja, um conhecimento prático-

moral universal é alterado na medida em que um objeto particular

acompanhado de um desejo mais forte altera minha condição

epistêmico-moral a tal ponto que eu já não posso conectar plenamente

o conhecimento geral expresso em P1 com uma situação particular

em que me encontro (P2, a presença do objeto desejado), devido a

entrada de P1’.

O problema dessa explicação, porém, não é tanto que ela

implica, como diz D. S. Hutschinson, a suspensão de certas peças do

silogismo moral prático e, portanto, envolve algum grau de

“inconsciência” no momento da ação – momento no qual está aberto

o caminho para que “a paixão seja temporariamente vencedora no

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campo” 12. Pois Aristóteles não parece afirmar que P1 é suspensa,

mas sim que o desejo vem introduzir P1’ ao lado e ao mesmo tempo

que P1. Mas, se é assim, o problema maior, agora, talvez seja que o

que permanece incompreensível é justamente a entrada do desejo em

cena. Como isso é possível, não obstante o conhecimento ou crença

que se tem?

III

É preciso sempre considerar os casos de incontinência como

atos de sujeitos imersos em situações concretas. Do contrário não se

entende a entrada do desejo em jogo, sem que ao mesmo tempo

tenhamos, na acrasia, uma situação de pura irracionalidade. É preciso

perguntar-se o que está em jogo numa situação determinada, no

momento mesmo em que se exerce o silogismo prático. O mérito de

Aristóteles está em se perguntar qual é a lógica da acrasia, não obstante

toda a aparência de irracionalidade. Com isso, ele consegue demonstrar

que o acrático não deixa , como vimos, de obedecer às regras do

silogismo prático: ao agir, ele “silogiza” tanto quanto o continente.

Porém, como foi dito, é preciso explicar a entrada do desejo em campo.

E isso permanece inexplicável, se não levamos em conta a relação

entre conhecimento e ação, num silogismo prático e em situações de

ações concretas. A resposta, no entanto, escapa ao âmbito do Livro

VII da Ética nicomaquéia. Vamos encontrá-la em algumas passagens

do De Anima.

No De AnimaIII 9 (432b26-33a7), Aristóteles afirma que o

intelecto não pode ser causa do movimento. O intelecto não determina

o que se deve buscar ou evitar. Mesmo quando ele indica ou demonstra

o objeto que se deve buscar ou evitar, ele ainda assim não tem a força

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capaz de mover o sujeito na direção contrária ou a favor do objeto.

Penso em algo que me causa pavor ou desejo e nem por isso sou

necessariamente levado a fugir disso ou buscar isso; e quando o sou

por uma determinação sua, isto é, quando considero razoável fazê-lo,

ele não é suficiente para mover: necessita, acompanhado da idéia, de

um apetite. Ora, o intelecto está mais presente em P1, na premissa

maior, que expressa sempre um conhecimento universal. Portanto, é

P2 que move, isto é, o objeto desejado presente, mas acompanhado

de uma representação sobre ele, desencadeada justamente pelo desejo.

Mais adiante, noDe AnimaIII 10 (433a13-b11), Aristóteles

continua a tratar dessa relação entre intelecto e desejo na determinação

do movimento. Pode-se dizer que o intelecto move, desde que se

considere a imaginação como um tipo de intelecção. Intelecto é, para

Aristóteles, a capacidade de raciocínio com vista a um fim. Mas há

fins práticos e fins teóricos: há portanto intelecto prático e intelecto

teórico. É o primeiro, acompanhado de um desejo com relação ao fim

determinado por ele, que constitui o princípio da ação nos animais

racionais. Nestes o desejo é necessário, mas nem sempre suficiente.

Assim, tanto o intelecto quanto a imaginação necessitam do desejo

para mover, o que significa que tanto intelecto quanto imaginação só

são capazes de mover se estão voltados para algum objeto de desejo

que, por ser desejado, é capaz de levar à ação. É por isso queAristóteles

conclui que o princípio motor da ação é o objeto desejado, que pode

ser tomado como um bem verdadeiro com acerto pelo intelecto, e

com acerto ou erro pela imaginação. É preciso observar, enfim, que,

dado um objeto de desejo, pode-se agir ou não com vistas a obtê-lo.

Mas, se agirmos, será sempre por causa dele, mais a representação

que o acompanha (devida ao próprio desejo), isto é, o conhecimento

ou opinião que temos em relação a ele. É importante frisar que, para

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Aristóteles, se um objeto externo me move, é porqueeuo concebo

comobom(portanto eu sou a causa de minha ação). Mas só isso não

é suficiente; é preciso ainda que o objeto esteja presente às minhas

sensações, e, portanto, é preciso que P2 esteja em ato. Pois só o

julgamento (P1 ou P1’) não move, nem só o objeto move. O objeto

não move sem a representação, mas esta também não move sem aquele.

Assim, somenteepithymiaenoûsprático juntos é que movem, dão a

ação. Portanto, não só onoûs teórico não move, como também o

noûsprático não move sozinho. Se aepithymiamovesse sozinha, não

haveria a continência: seríamos sempre, na presença de um desejo,

levados à ação, qualquer que ela fosse. Mas se o conhecimento prático

movesse sozinho, não haveria justamente o caso do incontinente, que

tem um certo conhecimento prático de que deve fazer algo e acaba

por fazer outra coisa: e o faz justamente pela presença de uma

epithymiamais forte. O objeto fora move, mas somente sob uma certa

representação interna. Portanto, não é que o que move é apenas o

objeto desejado, nem apenas a faculdade do desejo. O que move é

uma situação em que há um objeto desejado presente que, por estar

presente (ainda que em imaginação), torna minha faculdade de desejar

tal como ela está em ato.A faculdade de desejar, dizAristóteles, “não

é independente da representação, e toda representação é racional ou

sensível” (DA III 10 433b30).

Estas passagens doDe Animapermitem ver de que forma o

desejo entra em cena numa situação acrática e muda o resultado do

silogismo prático e portanto da própria ação. O acrático está numa

situação concreta em que a presença de um objeto desencadeia um

desejo e, assim, uma representação do tipo “x é bom porque prazeroso”.

Ele não esquece nem deixa de pôr em ato o conhecimento de que x

não deve ser provado; apenas sua representação é mais capaz de movê-

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lo na direção do objeto desejado do que o conhecimento universal

impedindo-o de experimentá-lo. E por que isso se dá? Porque o que

move, diz Aristóteles, não é o conhecimento universal, mas um

conhecimento particular, desde que ele esteja acompanhado de um

desejo desencadeado pela presença de um determinado objeto. Além

disso, oDe Animanos permite ver que não se trata simplesmente de

um conflito entrenoûsteórico enoûsprático. Tudo se passa no interior

mesmo donoûsprático: é aí queAristóteles distingue entre a premissa

universal (P1:Não devo comer chocolate) e a premissa particular (P2:

Isso é chocolate); esta estando em ato, e havendo um desejo, isso

pode ser capaz de mobilizar uma outra premissa universal, que não

passa de uma representação do meu desejo:Chocolate é prazeroso

(P1’). Embora universal, está última é menos universal que P1, pois

liga-se mais imediatamente ao que está ocorrendo no momento em

que o agente está “silogizando”: ela é o corolário da sensação-

percepção que tenho diante de uma suculenta barra de chocolate.

IV

A presença de um objeto que me dá prazer, mais a minha

faculdade desiderativa, mudam minha condição epistêmica no momento

da ação. Mudam, não sentido de que eu esqueça meu conhecimento

ou deixe de colocá-lo em ato, mas no sentido de que, com a entrada

do desejo e do objeto de desejo em cena, a situação coloca novas

premissas em jogo. O acrático “silogiza”, ele exerce seu raciocínio

prático; mas ele o faz sob as condições impostas por seu próprio desejo,

numa situação concreta em que o objeto desperta seu desejo e este,

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conseqüentemente, desencadeia uma representação sobre o próprio

objeto. Mas se isso resolve o problema de afastar qualquer possibilidade

de irracionalidade na incontinência, demonstrando assim a lógica da

ação acrática, contudo, dizer que o que move não é o conhecimento

universal, mas sim o conhecimento desencadeado pelo desejo e pelo

objeto de desejo numa dada situação, ainda não resolve o dilema da

acrasia. Pois pode-se sempre perguntar: por que, afinal, alguns não

são vencidos pelo desejo,mesmo quando este está presenteem

determinadas situações? Por que seu conhecimento prático universal

não é “arrastado como a um escravo”? Em outras palavras, por que

há pessoascontinentes?

No capítulo 1 do Livro VII daÉtica nicomaquéia, Aristóteles

diz: “(...) a pessoa incontinente, sabendo que age mal, age em

decorrência de suas emoções, enquanto a pessoa dotada de continência,

se sabe que seus desejos são maus, recusa-se a segui-losgraças à

razão” (EN 1146b18, grifo nosso). Isso não contradiz o que foi dito

até aqui? Pois o continente, que é o oposto do incontinente, diante de

uma situação concreta em que deseja um certo objeto de prazer

presente (por exemplo, a bela mulher do vizinho), não cede ao desejo,

se sua razão lhe diz que “não deves cobiçar a mulher do próximo”:

ora, neste caso, teríamos justamente a situação em que a premissa

universal é que move (o continente age no sentido de não praticar a

ação de cobiçar a mulher do vizinho). Como isso é possível?

Mas será que o que move, no caso do continente, é a razão e

seu conhecimento universal? Talvez os mesmos raciocínios que

aplicamos ao incontinente possam ser aplicados ao caso do continente.

Realmente, no caso do acrático nós tínhamos em jogo a premissa

universal P1 (Toda nudez não deve ser vista) acompanhada de uma

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também universal, mas já desencadeada por uma representação do

objeto de prazer e pelo desejo: P1’ (toda nudez é prazerosa); além

disso havia a premissa menor, P2 (Esta mulher está nua), própria da

esfera da percepção. No caso do continente, teríamos quase o mesmo,

mas uma outra premissa maior vem juntar-se a P1 e P1’; teríamos,

então, nesse caso:

P1: Toda nudez não deve ser vista/ P1´: Toda nudez é prazerosa/

P1’’: “Toda nudez será castigada”

P2: Essa mulher está nua_________________________________________________________________________________________________________________________

C1: Não olho para essa mulher – continência /

[C1´: Olho para a mulher – incontinência]

Por que, no caso do continente, vence C1? Não é, pelo que

vimos, por causa de P1, um conhecimento universal que não move;

não poderia ser, também, por causa de P1’: nesse caso teríamos

justamente o caso do incontinente, e C1’venceria. Resta P1’’. Ocorre

que também no caso do continente um desejo entra em cena: o desejo

de evitar a dor do castigo, da punição; também no seu caso vence um

desejo particular concreto; não é o mandamento moral universal

(conhecimento) propriamente dito que vence, mas aquilo que é

percebido como conseqüência imediata da sua infração. Em outras

palavras, o continente não age corretamente porque é moderado ou

prudente e, assim, não tem desejos “maus”, mas porque teme a punição,

evita a dor do castigo, o que também é uma busca negativa do prazer.

Contudo, para que o caso ganhe mais inteligibilidade, é preciso

introduzir uma condição: a punição há que ser percebida como mais

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certa e mais forte que o prazer proporcionado pelo ato de contemplar

a mulher nua. Do contrário, porque há um desejo e um objeto desejado,

venceria P1’ e teríamos a acrasia.

Se, todavia, é assim, podemos nos perguntar se o mesmo não

ocorre no caso da acrasia, mas num sentido inverso, em que P1’’ é

percebida como menos certa e mais fraca do que o prazer

proporcionado pela realização da ação acrática. De fato, se o

incontinente sabe que todo alimento ácido não deve ser provado (P1),

e se isso faz para ele algum sentido, é porque está implícita alguma

idéia de punição: todo alimento ácido causará gastrite (P1’’), por

exemplo,e é por isso que não deve ser provado. Mas, no seu caso,

vence C1’, porque P1’ (todo alimento ácido é prazeroso) é percebida

como mais forte e mais certa (o prazer, nesse caso, é imediato) que

P1’’, a punição, a gastrite (que só virá como conseqüência futura). A

respeito disso, e aqui já introduzindo Espinosa em nossa discussão,

lembremos o enunciado da proposição 16 da Parte IV daÉtica: “O

desejo que nasce do conhecimento do bem e do mal, enquanto este

conhecimento diz respeito ao futuro, pode ser refreado ou extinto

muito facilmente pelo desejo das coisas que são presentemente

agradáveis”.

V

A comparação entre o caso da incontinência e o dacontinência

permite ver que o que está em jogo, no caso da acrasia (mas também

no da continência), não é um conflito entre um conhecimento racional

e um desejo emocional; muito menos é só um conflito entre premissas

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lógicas, como também não é só um conflito entre desejos. Ela é antes

um conflito entreconhecimentos práticos sob a condição do desejo e

desencadeados pelo desejo. É preciso lembrarmos que o desejo gera

representações sobre o objeto desejado. Mas, como diz Espinosa, não

é porque julgo que um objeto é bom que o desejo; é porque o desejo

que o julgo bom13. O desejo vem antes e é ele que desencadeia a

representação, que irá compor uma das premissas maiores. Dizer que

há conflito de desejos é o mesmo que dizer que há conflitos de

representações: no caso do acrático, mas também no do continente,

vence a representação que o afeta mais forte e imediatamente.

A acrasia, vimos acima, diz respeito a certos prazeres como o

sexo, a bebida e a comida. Portanto, dir-se-ia que é ocorpodo acrático,

mais do que seu intelecto, o que está em jogo na ação acrática. Mas

não sejamos demasiado cartesianos. A ênfase no corpo nos levaria a

uma abordagem psicologista (as emoções etc.), assim como a ênfase

na alma nos conduziria a um intelectualismo do qual estamos tentando

escapar desde o início. É sem dúvida o corpo que está em jogo na

incontinência, mas um corpo gerador de representações ou idéias

daquilo que lhe ocorre. Quando o incontinente está diante de certos

objetos de prazer, é afetado por tais objetos. O que significa isso?

Significa que seu corpo sofre afecções. As idéias que ele

necessariamente tem das afecções de seu corpo são o que Espinosa

chama deafetos14. Nossas paixões, portanto, sãoidéias do que se

passa no nosso corpo: são, assim, formas de conhecimento. Tais idéias,

porém, não são formadas pela só potência do intelecto, mas envolvem

os corpos exteriores, o próprio corpo e dependem do que nele ocorre.

O problema, diz Espinosa na proposição 14 da Parte IV daÉtica, é

que o conteúdo da idéia-afeto “nada tem de positivo que possa ser

suprimido pela presença da verdade”15. No escólio da proposição 1

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dessa mesma Parte, ao tratar do conteúdo da idéia falsa e portanto da

imaginação (o afeto passivo é uma idéia imaginativa ou uma imagem

do corpo), Espinosa nos dá um exemplo:

...quando olhamos para o Sol, imaginamos que ele

está afastado de nós cerca de duzentos pés, no que nos

enganamos por tanto tempo quanto ignoramos a sua

verdadeira distância. Mas, conhecida a verdadeira

distância, suprime-se o erro, mas não a imaginação, isto

é, a idéia do Sol, a qual só explica a sua natureza na medida

em que o corpo é afetado por ele, e assim, embora

conheçamos a sua verdadeira distância, continuaremos,

não obstante, a imaginar que ele está perto de nós16.

Contudo, na continuação da citada proposição 14, Espinosa

nos diz em que condições a verdade pode vencer uma paixão: “Mas,

na medida em que é um afeto, se é mais forteque o afeto a refrear,

somente então poderá refrearo afeto”17 (grifos nossos); somente nesta

medida, porque, como já demonstrara Espinosa na proposição 7 da

parte IV, um afeto só pode ser refreado ou suprimidopor um outro

afeto mais forte e contrário a ele.

Quando agimos na incontinência, portanto, não sofremos um

conflito entre um conhecimento ou uma crença, de um lado, e um

desejo, de outro. Sofremos um conflito entre conhecimentos ou crenças

que me afetam mais e conhecimentos ou crenças que me afetam menos.

O incontinente não agiria assim seo conhecimentoque ele tem fosse

para eleum afeto mais forte e contrárioaos seus “maus” desejos de

prazer. É nesse sentido que se pode dizer que, de fato, o problema da

acrasia é, para Espinosa, um falso problema. Por tudo isso, o remédio

para o acrático não é bem algumas boas doses de conhecimento racional

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sobre o que fazer ou não fazer. Sua cura depende do quanto esse

conhecimento o afeta e o leva adesejar, antes de tudo, aquilo que,

por desejar, ele julgará como bom.

Talvez um dos erros da posição socrático-platônica seja o de

depositar a força do conhecimento verdadeiro apenas no que ele tem

de lógico e racional, desconsiderando a sua cargaafetiva. Assim, se

ele é fraco e não vence um desejo, é porque não é verdadeiro, tratando-

se apenas de mera crença. Os elementos da teoria dos afetos daÉtica

de Espinosa que evocamos acima nos ajudam a compreender, porém,

que não importa tanto se o conhecimento é verdadeiro (racional) ou

se é mera crença (imaginação, paixão); o que de fato importa é o grau

de afetividade com que conhecimentos certos ou crenças corretas nos

afetam. É assim que, muitas vezes, somos “acráticos” porque os

conhecimentos expressos em mandamentos morais não têm certo grau

de afetividade capaz de nos fazer evitar o “mau”, e não o têm justamente

quando nossa relação com eles é uma relação extrínseca, isto é, quando

eles nos vêm de fora, às vezes como imposições, e muitas vezes

acompanhados de abstratas noções de bem e mal18. Se Aristóteles

pôde problematizar a acrasia e avançar sua análise, foi justamente

porque introduziu, nos raciocínios práticos, o próprio desejo,

aproximando-se, nesse sentido, da visão espinosana do problema.

Na análise aristotélica, contudo, permanece ainda uma certa

separação entre o desejo, ou vontade, o afeto e o próprioconhecimento.

É isso que levava Aristóteles a conceber a liberdade como escolha

entre possíveis contrários. Entre dois conhecimentos, isto é, entre duas

ações possíveis e contrárias, viria se situar a faculdade da vontade,

para escolher livremente entre os possíveis19. E é essa separação entre

vontade, afeto e intelecto que já não existe em Espinosa20, cuja “teoria

do conhecimento” e dos afetos permite, por isso mesmo, considerar

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que todo afetoéuma forma de conhecimento e que todo conhecimento

pode ser afetivo. Se, porém, todo conhecimento (seja racional ou

imaginativo)pode serafetivo, é porque ele não o é sempre. De fato,

há coisas, imagens e idéias que, por assim dizer, nos são neutras, não

mobilizam, ou o fazem num grau ínfimo, quase imperceptível, o

exercício de nossa potência de agir e de pensar. Mas quando o

conhecimento é afetivo, ele não o é sempre num mesmo sentido. Há,

no homem, um conhecimento-afeto que épassivoe um outro que é

ativo.

Um conhecimento épassivoquando ele é a mera idéia ou

percepção do que ocorre nocorpoa partir de suas relações com as

coisas exteriores; neste caso, o conhecimento é uma operação cognitiva

da mente que Espinosa chama deimaginação. Ora, nesta, o

encadeamento das percepções depende primeiramente das relações

com os objetos exteriores, sobre os quais temos pouco ou nenhum

controle.Assim, nessas relações, o aumento ou a diminuição de nossa

potência de agir e pensar encontram-se determinados antes de tudo

pelo acaso dos bons ou maus encontros entre o nosso corpo e os

corpos exteriores. A esse aumento ou a diminuição de nossa potência

de agir e pensar, Espinosa chamaalegriaoutristeza21. É por isso que

o conhecimento imaginativo é passivo, depende do mundo exterior, e

afetivo, isto é, realiza-se enquanto alegria ou tristeza. São esses

conhecimentos-afetos que estão presentes na chamada situação acrática

— e não um puro conteúdo lógico do saber, acompanhado ou não de

um desejo, e mediado pela faculdade da vontade. E aqui podemos

compreender o que Espinosa quer dizer, quando afirma, no prefácio à

Parte IV daÉtica, que, na servidão, o homem “submetido aos afetos

não está sob a autoridade de si, mas da fortuna, sob cujo poder ele de

tal maneira se encontra, que freqüentemente é coagido a seguir o pior,

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MARCOSFERREIRA DEPAULA

ainda que veja o melhor”. Numa perspectiva espinosana, portanto, o

problema da acrasia não é uma falha cognitiva do ato de conhecimento

e não é fraqueza da vontade, numa situação de escolha entre possíveis

contrários. Ele remete, de certa maneira, à presença de um desejo

responsável pelo desencadeamento da ação, e neste aspecto a “teoria

da ação” espinosana está de acordo com a aristotélica. Desse modo, o

problema se configura a partir da posição do agente numa dada situação

afetiva: não se trata de pôr ou não em prática um certo conhecimento

(isso sempre fazemos, posto que estamos sempre no exercício de nosso

conatuse de nosso desejo), mas de ser ou não levado pelas idéias das

afecções exteriores, isto é, pelos afetos passivos, caso no qual não

nos conduzimos, mas somos conduzidos pelo poder do acaso.

Algo muito diferente ocorre no caso doconhecimento ativo.

Um conhecimento éativoquando ele é produzido pela só potência do

intelecto(e não da imaginação), sendo este, assim, causa adequada

(isto é, não parcial) da idéia produzida22. Ele éafetivo, primeiro, porque

a própria mente não pode deixar de experimentar essaprodução, isto

é, não pode deixar de perceber o que se passa nela (e portanto no

corpo), sendo que nela e para ela tal produção é umacréscimo(ela

conhece mais do que antes) e, portanto, um aumento de suapotência

de agir (ela pode agora encadear, por si mesma, novas idéias). Esse

aumento da potência de pensar da mente sendo, como vimos, uma

alegria, é também, nesse caso, umaalegria ativa.

O que nos leva a fazer o que julgamos “bom” ou a evitar aquilo

que julgamos “mau” para nós não é, assim, o conteúdo lógico do

conhecimento, nem tampouco uma vontade separada do próprio ato

de conhecer: é antes o afeto gerado simultaneamente ao ato de

conhecimento. Não é, portanto, uma escolha entre possíveis contrários,

mas a realização concreta de determinado afeto, no exercício de nossa

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CADERNOSESPINOSANOSXVI - 2007

potência, ou seja, de nossa própria essência enquanto determinada —

sempre e necessariamente — a fazer algo, isto é, a ser e agir. Quando

é autônomo, tal afeto é ativo; e quando o conhecimento é ativo, isto é,

um produto certo de nossa própria potência, nós o experimentamos

como afeto mais forte e contrário aos bens incertos da fortuna. Sob

esse estado afetivo de conhecimento, não somos mais passivos, mas

agimos, exercendo plenamente a nossa liberdade.

Bibliografia:

ARISTÓTELES.Ética a Nicômacos. Tradução, introdução e

notas de Mário da Gama Kury. Brasília: Editora UnB, 2001.

ARISTOTE.De l’Ame. Trad. De a. Jannone. Paris: Societé

d’Édition “Les Belles Lettres”, 1980.

ARISTOTE.Marche des animaux. Mouvement des animaux.

Index. Traités Biologiques. Trad. de Pierre Louis. Paris: Société

D’Édition “Les Belles Lettres”, 1973.

CHAUI, M. A Nervura do Real. São Paulo: Companhia das

Letras, 1999.

ESPINOSA, B. de.Ética demonstrada à maneira dos

geômetras. Tradução não concluída, realizada pelo Grupo de Estudos

Espinosanos da FFLCH-USP.

ESPINOSA, B. de.Ética demonstrada à maneira dos

geômetras. In: Espinosa. Vários tradutores. São Paulo: Editora Abril

Cultural, 1ª ed., 1973.

HUTCHINSON, D. S. “Ethics”. In: BARNES, Jonathan.

Aristotle. New York: Cambridge University Press, 1995, (col. The

Cambridge Companion to).

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Page 85: Cadernos Espinosanos nº 16

85

MARCOSFERREIRA DEPAULA

MUÑOZ, A. Alonso. Liberdade e causalidade: ação,

responsabilidade e metafísica em Aristóteles.São Paulo: Discurso

editorial/Fapesp, 2002.

OGIEN, Ruwen.La faiblesse de la volonté.Paris: Presses

Universitaires de France, 1993.

PLATON - Œuvres Completes – Tome Deuxième. Paris:

Librairie Garnier Frères, 1948.

VERGNIÈRES, Solange.Ética e Política em Aristóteles:

physis, ethos, nomos. São Paulo: Paulus, 1998.

WOODS, Michael.Aristotle onakrasia. In: Four Prague Lec-

tures and Other Texts. Rezek, 2001.

Notas

1 PLATON. Protagoras. In:Œuvres Completes – Tome Deuxième.

Paris: Librairie Garnier Frères, 1948, p. 68-69.2 Usaremos, aqui,incontinência. Mas a tradução de acrasia por

“fraqueza da vontade” ou “fraqueza moral” não deixa de fazer sentido;

tudo se passa como se o acrático não fosse forte o suficiente para se

conter e se comportasse como aquele sujeito da frase de Oscar Wilde:

“Eu resisto a tudo, menos a uma tentação”...3 As obras deAristóteles serão citadas no corpo do texto, obedecendo

às seguintes abreviações:EN: Ética a Nicômaco;MA: O Movimento

dos animais;DA: De Anima. A edição daÉtica nicomaquéiaque

utilizaremos aqui é a de Gama Kury: ARISTÓTELES.Ética a

Nicômacos. Tradução, introdução e notas de Mário da Gama Kury.

Brasília: Editora UnB, 2001.Anumeração Becker é apenas aproximada

(isso vale para as outras obras aristotélicas).

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CADERNOSESPINOSANOSXVI - 2007

4 WOODS, Michael. Aristotle onakrasia. In: Four Prague Lectures

and Other Texts. Rezek, 2001, p. 65.5 Woods, op. cit., p. 72.6 Woods, op. cit., p. 67-68.7 Ibid., p. 718 Woods, op. cit., p.69-70.9 MUÑOZ, A. Alonso. Liberdade e causalidade: ação,

responsabilidade e metafísica em Aristóteles.São Paulo: Discurso

editorial/Fapesp, 2002, p. 198-9.10 Talvez seja mesmo devido à centralidade do desejo no problema da

acrasia que Aristóteles ofereça dois tratados do prazer naÉtica

nicomaquéia, um ao final do Livro VII e outro no Livro X.11 VERGNIÈRES, Solange.Ética e Política em Aristóteles: physis,

ethos, nomos. São Paulo: Paulus, 1998, p.121.12 Cf. HUTCHINSON, D. S. “Ethics”. In: BARNES, Jonathan.

Aristotle. New York: Cambridge University Press, 1995, (col. The

Cambridge Companion to), p. 217. Vale lembrar que, para este autor,

o problema talvez se resolva em termos de “desajustes emocionais”:

nossas emoções, no caso da incontinência, estariam desajustadas, o

que nos levaria a fazer a coisa errada; e isso porque, mesmo conscientes

do erro que estamos praticando, “...nosso lado racional e moral é mais

fraco do que o emocional” (ibidem, p. 215). Soluções desse tipo,

contudo, parecem privilegiar o lado psicológico do problema, em

detrimento dos aspectos cognitivos, lógicos e filosóficos do problema.13 ESPINOSA, B. de.Ética demonstrada à maneira dos geômetras.

Tradução não concluída, realizada pelo Grupo de Estudos Espinosanos

da FFLCH-USP. Cf. escólio da proposição 9 da Parte III.14 Cf. Espinosa, op. cit., Parte III, definição 3: “Por Afeto entendo as

afecções do Corpo pelas quais a potência de agir do próprio Corpo é

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MARCOSFERREIRA DEPAULA

aumentada ou diminuída, favorecida ou coibida, e simultaneamente as

idéias destas afecções”.15 ESPINOSA, B. de.Ética demonstrada à maneira dos geômetras.

In: Espinosa. Vários tradutores. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1ª

ed., 1973. (Os Pensadores, vol. XVII ), p. 242.16 Ibidem, p. 236.17 Ibidem, 242. A tradução que estamos utilizando traz, contudo,

afecçãono lugar deafeto, o que não procede, já que o original traz

affectuse nãoaffectio.18 Ruwen Ogien, emLa faiblesse de la volonté, sugere que, em vez da

pergunta “em que condições pode-se agir mal julgando razoavelmente

(sainement)”, deveríamos perguntar-nos como é possível (se possível

é) que alguém possa identificar uma linha de conduta que traz o útil e

mesmo assim seguir outra linha de conduta que traz o menos útil; para

o autor, a questão assim posta, se não resolve todos os problemas da

acrasia, pelo menos tem o mérito de eliminar as obscuridades contidas

nas noções de “mal” e “agir razoavekmente” (Cf. OGIEN, Ruwen.La

faiblesse de la volonté.Paris: Presses Universitaires de France, 1993,

p. 307). No entanto, em parte essa advertência talvez seja mais válida

para Platão do que paraAristóteles: ora, este inicia aÉtica a Nicômaco

justamente combatendo a idéia platônica de Bem e Mal em si, abrindo

caminho para as noções de bom e mau, útil, nocivo ou inútil (EN, I 6,

7 1096a17- 98a35).19 Cf. CHAUI, M. A Nervura do Real. São Paulo: Companhia das

Letras, 1999, pp. 868-869.20 Cf. Ética, Parte II, proposições 48 escólio e 49 corolário e escólio.21 Cf. Ética, Parte III, Definição dos Afetos II e III.22 Cf. Ética, Parte III, def. I e II.

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ANDRÉMENEZESROCHA

Formação da razão naÉtica de Espinosa,segundo Deleuze

ANDRÉ MENEZESROCHA*

* Doutorando do Departamento de Filosofia da FFLCH – USP.

Resumo:Este artigo é parte de um estudo mais amplo que tem comoeixo a formação das noções comuns e a definição da razão naÉticadeEspinosa. Neste artigo, examino a questão a partir da leitura de GillesDeleuze emEspinosa e o problema da expressão.

Palavras-chave:alegria, paixão, ação, noções comuns, razão.

Abstract: This article is part of a larger study that has it’s centralpoint in the formation of the common notions and the definition ofreason present in Spinoza’sEthics. In the article, I shall exam thesubject regarding Deleuze’sSpinoza et le problème de l´expression.

Key-words: joy, passion, action, common notions, reason.

* * *

I – Os dois momentos da gênese da potência racional.

A questão deste trabalho é a seguinte: como é a passagem da

paixão à ação naÉticade Espinosa, de acordo com a interpretação de

Deleuze? Examinarei apenas o comentário emEspinosa e o problema

da expressão.

Nossa potência racional se produz em meio às paixões, na

prática dos encontros. Decerto, é preciso muita paixão alegre para

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fazer nascer atividade, ou seja, ação alegre. Entretanto, o caminho à

gênese dos afetos ativos não se esgota na repetição dos encontros das

paixões.

“Não é suficiente que nossa potência de agir

aumente. Poderia aumentar indefinidamente, as paixões

alegres poderiam se concatenar com paixões alegres

indefinidamente sem que conseguíssemos a posse formal

de nossa potência de agir. Uma somatória de paixões não

faz uma ação. Não é suficiente, portanto, que as paixões

alegres se acumulem, mas é preciso que, em favor desta

acumulação, encontremos um meio de conquistar nossa

potência de agir para experimentar enfim as afecções ativas

de que seremos a causa adequada.”1

A potência racional se produz para ajudar as paixões alegres

contra as tristes, exercendo uma tarefa prática que, segundo Deleuze,

não cessará nunca de exercer, qual seja, selecionar para evitar os maus

e aumentar a intensidade dos bons encontros.

“Em sua gênese, a razão é esforço de organizar os

encontros em função de conveniências e inconveniências

percebidas. A razão em sua atividade é o esforço de

conceber as noções comuns, portanto, de compreender

intelectualmente as conveniências e inconveniências.”2

Na medida em que se estabelece, a potência racional, além de

selecionar os encontros que geram paixões alegres e evitar os que

geram tristezas, inicia uma formação de idéias adequadas que persevera

sem cessar e que inclui o conhecimento do que agrada aos corpos que

se fortalecem conosco, assim favorecendo, por sua atividade teorética,

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ANDRÉMENEZESROCHA

os bons encontros. Estabelecida, a potência racional de cada um não

deixa de exercer a tarefa prática que a originou, qual seja, aderir às

paixões alegres e evitar as tristes, em cada encontro ou desencontro

com que cada um de nós se deparar. Com a ressalva de que,

estabelecido na atividade, nosso esforço [conatus] é por selecionar os

encontros não apenas em função de paixões alegres quaisquer, mas

precisamente em função daquelas que convém às alegrias ativas e que

nos conduzem a raciocinar e intuir juntos.

Deleuze defende que a potência racional de cada um de nós

nasce naturalmente de acordo com estes dois grandes momentos que

constituem um só esforço. O primeiro momento é o esforço por se

deixar afetar com paixões alegres, ou seja, por procurar, na prática,

favorecer os bons encontros e evitar os maus encontros. O segundo

momento é o esforço por produzir idéias adequadas e alegrias ativas:

nasce para fortalecer as alegrias passivas, para garantir que prevaleçam

sobre as tristezas e, por isto, os desejos racionais não surgem por

ruptura com as paixões alegres, mas por continuidade para secundá-

las.

A razão é essencialmente prática e a prática ativa éracional.

Prática racional porque nascida da intercorporeidade e da

intersubjetividade cujo laço é uma paixão alegre produzida no bom

encontro. Razão prática porque é conhecimento teorético do que é

comum a nós e aos outros corpos, do que permite e do que não permite

que se estabeleçam os bons encontros entre nós. Além disso, este

conhecimento teorético na prática é produção de afetos ativos que

auxiliam e fortalecem nossas paixões alegres, na medida mesma em

que inteligimos as conveniências e inconveniências entre nossos corpos

e mentes, isto é, descobrindo que entre nós existem as noções comuns.

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II – O segundo momento: formação das noções comuns.

As noções comuns têm graus de generalidade diversos. De

acordo com a interpretação deleuziana, apoiada, sobretudo, em

EIIP40S e TTP7, há dois tipos de noções comuns: as físicas (mais

gerais) e as biológicas (menos gerais).3

As noções comuns mais gerais são idéias adequadas de

propriedades físicas encontradas em todo e qualquer corpo, incluindo

o humano. As noções comuns menos gerais são idéias adequadas de

propriedades biológicas encontradas nos corpos humanos.

A formação das noções comuns constitui o segundo momento

da gênese da potência racional. O primeiro momento é o esforço por

afetar e ser afetado por paixões alegres. Como é a transição do primeiro

ao segundo momento?

“Como chegaremos a nossa potência de agir?

Enquanto permanecermos de um ponto de vista

especulativo, esta questão fica insolúvel. Dois erros de

interpretação nos parecem perigosos para a teoria das

noções comuns: negligenciar seu sentido biológico ao

privilegiar seu sentido matemático; mas, sobretudo,

negligenciar sua função prática ao privilegiar sua função

especulativa.”4

A dedução das noções comuns, no segundo livro daÉtica,

segue uma ordem demonstrativa que Deleuze chama “especulativa”

por ser passagem gradual das noções comuns mais gerais às menos

gerais, ou seja, das físicas às biológicas. Porém, argumenta Deleuze,

na vida prática nós iniciamos formando as idéias adequadas das

propriedades biológicas de nosso corpo e de outros corpos humanos

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ANDRÉMENEZESROCHA

e só depois de pensá-las adequadamente é que somos capazes de passar

às noções comuns mais gerais. Em resumo, nas proposições e

demonstrações daÉtica as noções comuns são formadas por via

dedutiva ou, de acordo com o vocabulário dos seiscentos, pela via da

síntese, ao passo que, no capítulo sétimo doTTP, texto da política

espinosana, a história da natureza [historia naturae] permite formar

as noções comuns pela via indutiva ou, de acordo com o vocabulário

seiscentista, pela via da análise. Não obstante existir reversão entre

análise e síntese uma vez que já tenham sido formadas as noções

comuns, em seu processo de formação inicial, em seufiat lux, há uma

precedência da análise, isto é, iniciamos na vida quotidiana com a

formação das noções comuns menos gerais.

As noções comuns que primeiramente formamos são de

propriedades biológicas comuns ao nosso corpo e aos outros corpos

humanos. Como a mente forma estas noções comuns biológicas? A

mente as forma partindo das idéias das afecções de seu corpo. O bom

encontro, primeiro momento na gênese da razão, constitui uma relação

de nosso corpo com outro corpo humano em que somos passivos,

mas são as idéias das afecções passivas alegres de nosso corpo que

nos permitirão formar as noções comuns. Precisamente a partir das

idéias destas afecções passivas e alegres que a mente podeinduzir a

noção comum da propriedade comum entre nosso corpo e o corpo

exterior na relação de bom encontro com o nosso.

“Em que sentido empregamos ‘induzir’? Trata-se

de uma espécie decausa ocasional. (...) Quando

encontramos um corpo que convém com o nosso, quando

experimentamos uma afecção passiva alegrante, somos

induzidos a formar uma idéia do que é comum a este corpo

e ao nosso.”5

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CADERNOSESPINOSANOSXVI - 2007

A mente é uma idéia, mais precisamente, a mente é a idéia do

corpo.Amente, sendo idéia do corpo, percebe suas afecções, percebe

as operações, ou seja, as propriedades de seu corpo. Mas a mente

forma idéias adequadas das operações do corpo de que é idéia, ou

seja, forma idéias adequadas das propriedades comuns de seu corpo,

apenas enquanto percebe que são propriedades não apenas de seu

corpo, mas, sobretudo, de todos os corpos humanos que afetam o

seu. A mente, assim, forma idéias adequadas não da essência de seu

corpo, mas de propriedades comuns a seu corpo e aos corpos humanos

que afeta. Há uma certa proporcionalidade entre as propriedades

comuns (que são intercorporais) e as noções comuns (que são

intersubjetivas ou inter-mentais).

Se nossa intercorporeidade nos mostra que existem

propriedades e operações comuns a nossos corpos, as noções comuns

nos permitem pensar estas propriedades e operações e são, as noções

comuns elas mesmas, propriedades e operações comuns a nossas

mentes. Elas estão para as mentes no pensamento como as propriedades

e operações para os corpos na extensão.

“‘Comum’, sem dúvida, não significa somente

alguma coisa comum a dois ou muitos corpos, mas também

às mentes capazes de formar sua idéia.”6

Com efeito, as outras mentes em intersubjetividade conosco

não são espíritos vagando nas nuvens ou em qualquer além, pois são

também idéias de seus respectivos corpos, idéias necessariamente

formadas pela potência do atributo pensamento. Todas as mentes

humanas têm percepções das operações materiais dos corpos de que

são respectivamente as idéias, mas isto não significa que em cada uma

delas prevaleçam as idéias adequadas. Pelo contrário, como observa

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ANDRÉMENEZESROCHA

Deleuze, formar as idéias adequadas exige um longo e difícil exercício

que implica no esforço prático para favorecer os bons encontros e no

esforço teórico que cada mente faz diante de cada afecção que nasce

dos bons e maus encontros em que somos envolvidos.

“Tendo conquistado nossa atividade em certos

pontos, nos tornamos capazes de formar noções comuns,

mesmo nos casos menos favoráveis. Há toda uma

aprendizagem das noções comuns, há umse-fazer-ativo

[devenir-actif]: não se deve negligenciar a importância de

um processo de formação no espinosismo, processo de

formação cujo sentido é partir das noções comuns menos

universais, as primeiras que tivermos ocasião de formar.”7

Qual a diferença entre esta racionalidade concreta e a

racionalidade abstrata da tradição? Deleuze distingue dois aspectos

que, dos universais abstratos, “testemunham sua impotência”: (1) os

universais abstratos nos fazem reter apenas, sob uma identidade

abstrata, as semelhanças entre imagens que fazemos das coisas e nos

fazem negligenciar as diferenças; (2) quanto a esta identidade abstrata,

ela é tão variável quanto as disposições do corpo dos que arbitram

com ela (um assenta que o “homem é animal racional”, outro que é

“animal que ri”, outro ainda que é “bípede sem plumas”.8

A impotência dos universais abstratos é impedir que nosso

pensamento alcance a gênese tanto de suas idéias como das coisas de

que são idéias. No fundo, os universais abstratos nos encerram nas

idiossincrasias de uma imaginação abstrata, ou seja, fragmentada.

Superar filosoficamente esta tradição da abstração não é cair no

irracionalismo, mas é demonstrar qual é nosso verdadeiro poder de

raciocinar e a verdade em que nos faz pensar.

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CADERNOSESPINOSANOSXVI - 2007

III – A proporcionalidade entre noções e propriedades comuns.

A proporcionalidade entre as noções comuns no atributo

pensamento e as propriedades ou operações comuns no atributo

extensão não é um privilégio da razão. Há proporcionalidade nos três

gêneros de conhecimento.

“O primeiro gênero de conhecimento tem como

objeto somente os encontros entre as partes, segundo suas

determinações extrínsecas. O segundo gênero se eleva até

à composição das relações características [rapports]. Mas

somente o terceiro gênero concerne às essências eternas:

conhecimento da essência de Deus e das essências

particulares tais quais são em Deus e são concebidas por

Deus. Assim, nos três gêneros de conhecimento,

encontramos os três aspectos da ordem da Natureza:

ordem das paixões, ordem de composição das relações,

ordem das essências elas mesmas.”9

Se consultarmos o décimo quinto capítulo, em que Deleuze

apresenta as três ordens da Natureza (que são a estrutura triádica de

expressão ontológica dos atributos), notaremos que as noções comuns

são proporcionais a modos infinitos da extensão. Mais precisamente,

as noções comuns mais gerais ou físicas são noções do movimento e

repouso, isto é, modos infinitos mediatos do atributo extensão.10

Na medida em que nossoconatusdevém ativo, isto é, nossa

potência se torna racional ou raciocinante, participamos da inteligência

infinita, sabemos ter parte11 no modo infinito mediato do atributo

pensamento. Não significa isto, porém, que o modo finito deixe de ser

finito, que nossa natureza humana se transforme, que nos

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ANDRÉMENEZESROCHA

transformemos em titãs, semi-deuses ou super-homens. Nem significa

que nos transformemos numa razão absoluta que constitui tudo o que

pensa, à maneira do idealismo.

Passar da passividade à atividade é justamente vencer a

abstração, a ilusão de um sujeito separado dos outros. O modo finito

raciocina na medida em que conhece sua própria finitude como parte

imanente da atividade do modo infinito mediato. Conhecendo sua

finitude pelas propriedades que tem em comum com os outros, o modo

finito passa a saber que os outros modos finitos também participam da

razão (modo infinito mediato do pensamento), mesmo quando tenham

sobretudo idéias inadequadas acerca de si mesmos.

O exemplo da gramática pode nos ajudar. Os escritos hebraicos

nada significarão para nós se nosso corpo não tiver, previamente, o

conhecimento da língua hebraica. Havia algo de comum entre os

códices hebraicos da Bíblia e o corpo de Espinosa (educado desde

menino no estudo da língua hebraica): este algo comum entre o corpo

de Espinosa e os códices hebraicos da Bíblia era a língua hebraica. O

corpo de um homem que não foi educado na língua hebraica nada

decifrará ao passar os olhos pelos escritos hebraicos, pois não terá a

língua hebraica como propriedade comum a seu corpo e ao corpo do

texto hebraico. O mesmo se pode pensar acerca de códices do

mandarim, do sânscrito ou do persa antigo. As noções que formamos

acerca das línguas são de uma terceira ordem de generalidade, menos

comuns que as biológicas e remetem, como outras instituições nos

textos políticos de Espinosa, à experiência histórica de povos

particulares. Deleuze não as considera em seu trabalho, mas o leitor

pode aprofundar seu estudo na tese de doutoramento de Homero

Santiago, sobretudo através do conceito degeometria do instituído.

Voltemos ao estudo de Deleuze, após o exemplo da língua.

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CADERNOSESPINOSANOSXVI - 2007

Um homem que vive na passividade só percebe fragmentos do

sensível e desta maneira abstrata é que interpreta a si e aos outros.

Facilmente pensa a si e aos outros como substâncias, isto é, como

substratos últimos de acidentes.

Um homem que vive na atividade, que se formou para as noções

comuns, conhece a si e aos outros como expressões singulares de um

mesmo e único estofo substancial. Conhecendo as propriedades comuns

a si e aos outros, conhece a “gramática” das relações entre os modos

finitos e por isto pode “escrever” sua existência dando sentido ativo

às paixões alegres, dando razão aos bons encontros.

As noções comuns, elas mesmas, são propriedades ou

operações comuns às mentes dos que conhecem a “gramática” e dos

que a desconhecem, embora “falando” a mesma “língua”. Ora, as

noções comuns não são coisas, representações e nem noções à maneira

dos princípios da analítica de Aristóteles. Não são comuns à nossa

mente e à mente dos outros porque sejam representações ou cópias

idênticas no interior de mônadas sem janelas. As noções comuns são

relações entre nossas mentes, porquanto são o modo infinito mediato

do pensamento que é proporcional à ordem das relações [rapports]

de movimento e repouso que é o modo infinito mediato do atributo

extensão.

As noções comuns são o nexo intrínseco que explica a

intersubjetividade originária entre as nossas mentes. O conhecimento

da essência singular de cada um, a partir deste nexo, se faz com a

atividade intuitiva.

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Page 99: Cadernos Espinosanos nº 16

99

ANDRÉMENEZESROCHA

Bibliografia

DELEUZE, Gilles.Spinoza et le problème de l´expression. Les Editions

de Minuit, Paris: 1968. Página 253.

CHAUI, Marilena de Souza.Ser parte e Ter parte: Servidão e Liberdade

na Ética IV (Prefácio, definições, axiomas).Apud: Discurso, n 22, p.

63-122. São Paulo, 1993.

SANTIAGO, Homero Silveira.O uso e a regra: ensaio sobre a gramática

espinosana. Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da USP

para a obtenção do título de doutor. No prelo.

Notas

1 Deleuze, Gilles.Spinoza et le problème de l´expression. Les Editions

de Minuit, Paris: 1968. Página 253.

2 Deleuze, Gilles.Idem. Página: 259.

3Sobre esta divisão das noções comuns. Deleuze, Gilles.Idem,p.254

e 255.

4 Deleuze, Gilles.IdemP. 260.

5 Deleuze, Gilles.IdemP.261.

6 Deleuze, Gilles.Idem. P.259.

7 Deleuze, Gilles.Idem. P.267

8 Para a crítica dos universais abstratos. Deleuze, Gilles.Idem.p.256

e 257.

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9 Idem. P.282.

10 Vide páginas 214 e 215.

11 Para aprofundar o estudo da diferença entre a participação

imaginativa, a participação racional e a participação intuitiva. Chaui,

Marilena de Souza.Ser parte e Ter parte: Servidão e Liberdade na

Ética IV (Prefácio, definições, axioma).Apud: Discurso, n 22, p. 63-

122. São Paulo, 1993. Entretanto, o leitor deve saber que a leitura de

Marilena Chaui supera a leitura de Deleuze e que a diferença se

estabelece já na interpretação das definições do primeiro livro daÉtica.

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PABLO ENRIQUEABRAHAM ZUNINO

Causalidade e representação em Berkeley:Os dados imediatos da subjetividade

PABLO ENRIQUEABRAHAM ZUNINO*

* Doutorando do Departamento de Filosofia da USP e bolsista do CNPq.

Resumo:O objetivo deste artigo é examinar a relação entreser epercebera partir da análise do princípio central da filosofia de GeorgeBerkeley —esse est percipi1—, conforme é apresentado na obraAtreatise concerning the principles of human knowledge(1710). Paradesenvolver essa análise e seguindo o tratamento dado por Grayling2

à fundamentação desse princípio, pretendemos mostrar que osargumentos de Berkeley se dispõem em três níveis: o estritamenteempírico (sense data); o fenomênico (mundo da experiência ordinária);e o metafísico que, em última instância, explica os dois anteriores.

Palavras chave:Berkeley, percepção, idéia, espírito, realidade,aparência.

Abstract: The paper aims to examine the relation betweento beandto perceivestarting from the analysis of George Berkeley´s centralprinciple —esse est percipi—, as it is introduced by the author inAtreatise concerning the principles of human knowledge(1710). Todevelop our analysis we will follow the treatment Grayling offers onthe fundamentation of this principle and we intend to show thatBerkeley´s arguments are organized in three levels: the strictly empiricallevel (sense data); the phenomenal level (the world of ordinaryexperience); and the metaphysical level that explains the two formercases.

Keywords:Berkeley, perception, idea, spirit, reality, appearance.

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“Nihil est in intellectu

quod non prius fuit in sensu.”3

I – Identificação entre idéia e objeto sensível.

Nos primeiros parágrafos dosPrinciples(§§ 1-7), Berkeley

apresenta sucintamente sua filosofia, deixando o leitor emestado de

choque4 ao constatar que:

“Algumas verdades são tão próximas e óbvias

para a mente, que um homem só precisaria abrir seus

olhos para vê-las. Assim me parece que é esta, a saber,

que todo o coro do firmamento e a mobília da terra, numa

palavra, todos esses corpos que compõem a poderosa

estrutura do mundo, não têm nenhuma existência sem

uma mente, pois seu ser é ser percebido ou conhecido”.5

Não obstante, quando refletimos sobre essa passagem,

facilmente a interpretamos de maneira equivocada. Para evitar isso,

devemos distinguir os dois elementos que compõem a teoria da

percepção de Berkeley, isto é, espírito e idéia. Desse modo, o problema

lembra a formulação cartesiana da relação entre sujeito e objeto, mas

a chave para resolvê-lo está no sentido peculiar que Berkeley confere

ao termo “idéia”, tomando como ponto de partida a definição de idéia

de Locke: “Seja lá o que a mente percebe em si mesma, ou é o objeto

imediato da percepção, pensamento, ou entendimento, a isso eu chamo

de idéia”.6 Nesse sentido, a classificação de idéias com a qual Berkeley

inaugura sua obra pretende dar conta de tudo aquilo que possa ser

considerado como objeto do conhecimento humano:

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PABLO ENRIQUEABRAHAM ZUNINO

“É evidente a quem investiga o objeto do

conhecimento humano haver idéias (1) atualmente

impressas nos sentidos, ou (2) percebidas considerando

as paixões e operações do espírito, ou finalmente (3)

formadas com o auxílio da memória e da imaginação,

compondo, dividindo, ou simplesmente representando as

originariamente apreendidas pelo modo acima referido”.7

Uma via de interpretação errada dessa classificação de idéias

poderia sugerir que, para Berkeley, não há como distinguir as idéias

reais das idéias da imaginação.8 A dor que sentimos ao queimar-nos

com fogo, por exemplo, não tem a mesma intensidade que a lembrança

dessa dor. Obviamente, podemos imaginar a dor de uma queimadura,

mas isso ocorre necessariamente em virtude da idéia original de dor

que percebemos através do sentido do tato. Em vista disso, observa

Winkler9, as idéias impressas nos sentidos diferem das idéias excitadas

pela imaginação por serem mais fortes, mais ordenadas e mais

coerentes. “Mas mesmo assim, são idéias”, diz Berkeley, adotando

um uso restrito do termo “idéia” que se aplica exclusivamente no caso

das idéias da imaginação:

“As idéias impressas nos sentidos pelo Autor da

Natureza são chamadas coisas reais; e aquelas excitadas

na imaginação, por ser menos regulares, vivas e

constantes, são denominadas mais apropriadamente de

idéias, ou imagens das coisas, que copiam e

representam”.10

A partir dessa restrição, podemos compreender a distinção entre

apresentaçãoerepresentaçãode idéias que Smith11destaca no contexto

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do cartesianismo. Segundo ele, a reviravolta metafísica do sistema de

Berkeley é uma questão de pura consistência, levando-se em conta

que a noção central derepresentaçãofoi completamente alterada. Vale

lembrar que a essência da representação era a distinção ontológica

entre o representante (representans)e o representado (representatum).

Todavia, quando procuramos as características materiais das

representações mentais (representantia), o que encontramos são as

sensações, e ao aprofundar ainda mais a investigação, identificamos

as características próprias do que é representado (representata) também

nas sensações. Eis por que Berkeley pretende abolir a maneira clássica

de se entender a noção de representação. Os estados mentais não são

mais intrinsecamente representações, mas apresentações. Falar em

apresentação de idéias, portanto, significa que as idéias se apresentam

à mente, independentemente da nossa vontade: abrimos os olhos e,

simplesmente, as idéias são percebidas. Arepresentaçãode idéias,

por sua vez, supõe uma re-apresentação daquelas idéias que, em algum

momento anterior, foramimediatamente percebidaspelos sentidos.

As quimeras, por exemplo, sãoimagensformadas em nossa mente

com o auxílio da memória e da imaginação; elas apenas re-apresentam

idéias primitivas ou suas partes, combinadas entre si:

“Acho que tenho a faculdade de imaginar,

conceber ou representar-me para mim mesmo as idéias

dessas coisas particulares que já percebi, compondo-as

e dividindo-as de vários modos. Posso imaginar um

homem com duas cabeças, ou a parte superior de um

homem unida com o corpo de um cavalo”.12

Tanto para o senso comum como para os filósofos, Berkeley

está certo quando diz que esse tipo de idéias (centauro, sereia) existe

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PABLO ENRIQUEABRAHAM ZUNINO

apenas na mente que as percebe, precisamente porque se trata do fruto

da nossa imaginação. Porém, a condição ontológica deser somente

enquanto objeto percebidoé negada ao grupo de idéiasatualmente

impressas nos sentidos, alegando-se que, nesse caso, tratar-se-ia de

“objetos materiais” que existemforada mente, ou seja, em um suposto

espaço exterior. Berkeley, por sua vez, vai mostrar que osobjetos

sensíveissão percebidos comocoleções de idéiasou feixes de

percepções, de modo que não precisamos supor uma materialidade

ou exterioridade subjacente. Essa é uma tese contrária à duplicação

do mundo como realidade e como aparência, pois dissolve a bipartição

que estabelece, de um lado, a realidade das coisas materiais e exteriores

e, de outro, o caráter aparente das idéias enquanto imagens ou cópias

das coisas reais. Com esta redução dos objetos acoleções de idéias,

Berkeley visa superar odualismo espírito-matériae a ilusão de que

haveria umasubstância materialunificando diferentes qualidades

sensíveis (sensações), que pertencem a um mesmo objeto. Em vista

disso, a crítica daidéia geral abstrataconstitui o principal argumento

de Berkeley contra os que defendem a existência da matéria,

assimilando a substância material à idéia do ser em geral:

“Se interrogarmos sobre isto os melhores filósofos,

veremos que estão de acordo em atribuir à substância

material apenas o sentido do ser em geral, juntamente

com a noção relativa de suporte de acidentes. A idéia

geral do Ser parece-me a mais abstrata e incompreensível

de todas”.13

Não vamos aprofundar essa crítica aqui14, entretanto, devemos

nos deter num ponto que certamente proporcionará uma compreensão

mais nítida da teoria das idéias que pretendemos esclarecer neste

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CADERNOSESPINOSANOSXVI - 2007

trabalho, a saber, a recusa berkeleyana dadistinção entre qualidades

primárias e secundárias. Essa distinção, na verdade, deriva da filosofia

corpuscular e parte da aceitação de que “o mundo é constituído por

uma inumerável multidão de corpúsculos singulares insensíveis

providos com seus próprios tamanhos, formas e movimentos”. Se o

universo fosse aniquilado, excetuando-se completamente todos esses

corpúsculos indivisíveis e, portanto, não houvesse mais consciência

das coisas materiais, restaria somente “matéria, movimento (ou

repouso), volume e forma”. Deus criou o mundo e comunicou o

movimento aos componentes materiais, de maneira que “para explicar

fenômenos particulares” precisamos considerar apenas “o tamanho,

a forma, o movimento (ou a intenção de), a textura e as qualidades

resultantes das pequenas partículas de matéria”. As qualidades

secundárias, entretanto, são dependentes das “mais simples e primitivas

afecções da matéria”, ao passo que a sensação é o efeito dos

corpúsculos impressionando (strike on) os órgãos dos sentidos e

excitando movimentos que são comunicados ao cérebro, onde dão

lugar à percepção.15

Essa teoria, que articula as concepções fundamentais da ciência

moderna, era amplamente aceitada por Locke, que distingue as

qualidades primáriasde solidez, extensão, figura, movimento ou

repouso e número tendo em vista a sua impenetrabilidade, isto é, a

ocupação exclusiva de um certo lugar. Locke afirma que essas

qualidades são inseparáveis dos corpos, ao passo que asqualidades

secundárias(cores, sons, cheiros e sabores), não são “nada nos

próprios objetos, mas poderes para produzir várias sensações em

nós por suas qualidades primárias”.16Além disso, devemos levar em

conta a maneira como conhecemos essas qualidades (primárias e

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secundárias) e a descrição do nosso contato com os corpos, conforme

a explicação que Locke herdou de Boyle:

“(...) percebemos essas qualidades originais em

tais [objetos exteriores], impressionando separadamente

nossos sentidos, [pois] algum movimento deve ser

transmitido pelos nossos nervos (...) até o cérebro ou sede

da sensação, para produzir em nossa mente as idéias

particulares que temos deles”.17

Em relação à percepção sensível, Locke afirma que as idéias

sãocausadaspor objetos exteriores, que de certa formarepresentam

para nós esses objetos.18 Desse modo, nossas idéias correspondem

(agree) e assemelham-se (resemble) aos objetos em suasqualidades

primárias, que causam em nós a percepção dasqualidades

secundárias.19 Poderíamos dizer que existe uma diferença de valor

objetivo entre as percepções que representam as qualidades primárias

e as que representam as qualidades secundárias, visto que as primeiras

representam efetivamente os objetos e, portanto, nos conduzem à

realidade exterior, enquanto as outras não:

“As idéias das qualidades primárias dos corpos

são imagens (resemblances) deles e seus padrões

(patterns) existem de fato nos próprios corpos, mas as

idéias produzidas em nós por essas qualidades

secundárias não têm nenhuma semelhança com eles. Não

há nada como nossas idéias existindo nos próprios

corpos”.20

Em nenhum caso nós temos acesso direto aos objetos, dado

que nossas idéias são efeitos do término de cadeias causais. Isso

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demonstra que percepção, para Locke, é sempre uma mediação ou

representação. Entretanto, a distinção entre qualidades primárias e

secundárias estabelece um limite entre a parte objetiva da percepção e

a parte subjetiva. Ainda que nossas idéias, enquanto percepções, não

estejam nos próprios objetos, existe uma parte delas (as qualidades

primárias de solidez, extensão, figura, movimento e número), cuja

causa está no objeto exterior, isto é, nasubstância materiale constitui

o componente objetivo da percepção. Em contrapartida, as qualidades

secundárias são o componente subjetivo da percepção, já que existem

apenas na mente e não são causadas diretamente pelos objetos, mas

por certospoderesque eles possuem. Zaterka21 descreve esses poderes

como “mudanças que os corpos podem produzir em outros corpos”

ou “efeitos que os corpos produzem em nós”. De qualquer modo,

vimos que Berkeley concebe os corpos como ‘coleções de idéias’,

sendo incompreensível que estas se invistam de algum poder:

“Um pouco de atenção nos mostrará que o ser de

uma idéia implica a sua passividade e inércia, tal que é

impossível a idéia fazer seja o que for, ou, estritamente

falando, ser causa de alguma coisa; nem pode ser

semelhança (resemblance) ou modelo (pattern) de um ser

ativo (...). De onde não poderem extensão, figura e

movimento ser causa de sensações nossas. Dizer, portanto,

que elas são efeito de forças resultantes de configuração,

número, movimento e forma de corpúsculos é decerto

falso.”22

Berkeley pretende dissolver a distinção entre qualidades

primárias e secundárias por meio de dois argumentos: o primeiro —a

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PABLO ENRIQUEABRAHAM ZUNINO

passividade das idéias— consiste em mostrar que não podemos

estabelecer relações decausalidadeentre idéias, porque nenhuma delas

têm o poder de alterar outra. As idéias são todas inertes, de sorte que

não podemos atribuir-lhes atividade nem encontrar nelas qualquer tipo

de força. A relação que podemos estabelecer entre as idéias é sempre

mediada pelo espírito, isto é, pela significação que as percepções

adquirem para nós enquanto símbolos de conjunções constantes

observadas com certa regularidade no curso da Natureza:

“(...) a conexão das idéias não implica a relação

de causa e efeito, mas somente a de um sinal da coisa

significada. O fogo que vejo não é causa da dor sentida

se me aproximar, mas o sinal para me acautelar dele. O

ruído que ouço não é efeito do movimento ou colisão de

corpos externos, mas o sinal disso”.23

O segundo argumento —a semelhança entre idéias— visa

refutar ateoria da representação, isto é, a suposição de que nossas

idéias representam coisas exteriores semelhantes a elas, que existem

numa substância material imperceptível, independentemente do

espírito. Berkeley sustenta que uma idéia só pode ser semelhante a

outra idéia, ou seja, uma cor pode assemelhar-se a outra cor, uma

forma a outra, etc. Ora, como poderia uma idéia ser semelhante a

outra coisadiferente dela? Se é possível perceber os supostos

‘originais’, alega ele, deve ser porque também são idéias. Porém, se

não podemos percebê-los, não teria sentido afirmar que uma cor é

semelhante a uma coisa invisível, ou que o áspero se assemelha a uma

coisa intangível?24 Logo, as qualidades primárias (extensão, figura,

movimento, etc.) não podem ser acausadas qualidades secundárias

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(nossas sensações), nem podem existir como corpúsculos

imperceptíveis, pois isso em nada se assemelha às nossas idéias:

“Eu vejo evidentemente que não está em meu

poder formar uma idéia de um corpo extenso e em

movimento, sem dar-lhe alguma cor ou outra qualidade

sensível das que se reconhece existirem apenas na mente.

Em resumo, extensão, figura, e movimento, abstraídos

de todas as outras qualidades, são inconcebíveis. Onde

existam portanto as outras qualidades sensíveis, essas

devem existir também, a saber, na mente e em nenhuma

outra parte”.25

A passagem acima mostra que todas as qualidades, primárias e

secundárias, dependem em última instância do espírito, na medida em

que todas elas são idéias e, portanto, só existem enquanto objetos

percebidos pela mente. Sendo assim, podemos enumerar três

características principais da argumentação de Berkeley: (1)

inseparabilidadeentre as qualidades primárias e secundárias: uma

figura aparece sempre junto com alguma cor; (2)relatividadedas

qualidades primárias: o tamanho dos objetos e a velocidade dos seus

movimentos mudam conforme a posição do sujeito; (3) as qualidades

primárias não podem ser encontradas no mundo da experiência sensível.

Quando vemos objetos à distância, por exemplo, pensamos que

realmente percebemos pela visão sua forma e o espaço exterior, mas

Berkeley vai mostrar que não é assim que acontece.26

Diferentemente de Locke, cuja análise dasubstância material

e dadistinção entre qualidades primárias e secundáriassugere que o

autor aceita um tipo deteoria causal da percepção, Berkeley, por sua

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vez, julga que os conteúdos dos nossos estados de consciência não

são terminações de cadeias causais iniciadas pelas propriedades dos

objetos exteriores27 Examinemos brevemente uma teoria causal desse

tipo, tomando como exemplo o sentido da visão. A teoria afirma que

a luz é absorvida pela superfície dos objetos, que logo a refletem com

um comprimento de onda determinado. Depois, a luz percorre o “meio

de intervenção” até a superfície do olho e passa através da lente, onde

é focalizada sobre a retina, estimulando vários receptores em padrões

codificados e transmitidos pelo nervo óptico aos centros visuais do

córtex, situado na parte posterior do cérebro. O rápido estímulo das

células corticais finalmente produz — de alguma forma ainda

desconhecida — a idéia sensorial de uma figura colorida.28O argumento

de Berkeley é que nós só temos consciência daidéia sensívelque

aparece no final dessa descrição; não temos acesso aos elos

intermediários da cadeia causal nem a sua origem. E muito menos a

qualquer coisa que escape e nos permita detectar, além das nossas

idéias sensíveis, os demais eventos envolvidos na produção dessas

idéias. Esta teoria, evidentemente, constitui um modelo que pretende

dar conta da percepção, justificando a crença de que por meio desse

processo nós temos acesso aos objetos exteriores.

Ora, tudo o que nós temos são apenas dados, que provêm das

nossas idéias sensíveis (sense data). E mesmo quando não há nenhum

término nas cadeias causais, como ocorre nos sonhos, nós ainda assim

podemos ter essas idéias. Portanto, não temos nenhuma justificativa

para usar as “premissas realistas” que a teoria causal exige a fim de

estabelecer-se a si mesma.

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II – Os dados dos sentidos (sense data)

A teoria berkeleyana das idéias pretende definir, em primeiro

lugar, o que é um “objeto imediato da percepção”, examinando a

maneira como ele é percebido, isto é,atualmente, imediatamente e

propriamente. Tipton29 observa que essa formulação pode estar

associada ao conceito aristotélico de “sensível próprio”30, porém o

queAristóteles chama de “sensível comum”, segundo Berkeley, não é

um objetopropriamentepercebido pelos sentidos, mas construído pela

experiência, que estabelece associações entre “idéias” percebidas por

diferentes sentidos. Em vista disso, Grayling faz uma analogia entre

os conceitos aristotélicos e a distinção entre qualidades primárias e

secundárias:

“As qualidades primárias podem ser pensadas

como sendo os ‘sensíveis comuns’ no sentido aristotélico,

ou seja, aquilo que está disponível para mais de uma

modalidade sensorial, enquanto as qualidades

secundárias são os ‘sensíveis próprios’, disponíveis

apenas para uma modalidade só”.31

Aristóteles afirma que o objeto temem atocertas qualidades e

que a sensibilidade temem potênciaessas propriedades. Quando ocorre

o contato entre o objeto e a alma, a sensibilidadeatualiza essa

potencialidade, determinando para cada sentido o objeto que lhe é

próprio, ou seja, aquele objeto que cada sentido é capaz de perceber.

Em Berkeley, a estrutura da percepção é diferente porque não há

distinção entre objeto e idéia. A idéia já é a própria atualização e a

potencialidade provém do espírito, que tem capacidade de perceber.

Portanto, não se trata de objetos prontos e acabados, como em

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PABLO ENRIQUEABRAHAM ZUNINO

Aristóteles, mas de “objetos sensíveis”, visto que o sujeito atualiza a

idéia quando ocorre a percepção.

Berkeley supõe que as idéias são “impressas” no espírito

humano pelo Espírito Divino — Deus, que éAto Puro. Por conseguinte,

quando o espírito humano percebe idéias, estas sãoimediatamente

percebidas.Aoriginalidade de Berkeley consiste em reconhecer o valor

objetivo da percepção sensível:

“Pela vista tenho idéias de luzes e cores, e

respectivos tons e variantes. Pelo tato percebo o áspero e

o macio, quente e frio, movimento e resistência, e de todos

estes a maior ou menor quantidade ou grau. O olfato

fornece-me aromas, o paladar sabores, e o ouvido traz

ao espírito os sons na variedade de tom e composição. E,

como vários deles se observam em conjunto, indicam-se

por um nome e consideram-se uma coisa. Por exemplo,

um certo sabor, cheiro, cor, forma e consistência

observados juntamente são tidos como uma coisa,

significada pelo nome ‘maçã’. Outras coleções de idéias

constituem uma pedra, uma árvore, um livro, etc., e, como

são agradáveis ou desagradáveis, excitam as paixões de

amor, alegria, repugnância, tristeza e assim por diante”.32

O conceito singular de “idéia” e a concepção de “coleções de

idéias”, em Berkeley, obedece à escolha de uma argumentação que

permita dar conta do existente, acentuando o caráter central da

percepção, com o firme propósito de superar as tendências céticas da

filosofia moderna. Todavia, há quem diga:“se o preço para refutar o

ceticismo é jogar o mundo exterior para dentro da mente; é um preço

caro” 33, alegando que se trata de uma transformação das coisas em

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idéias ou, como interpretara Kant34, de uma degradação dos corpos à

mera ilusão. Entretanto, Gueroult vai mostrar que esse é apenas o

primeiro passo, já que a compreensão completa da filosofia de Berkeley

envolve dois caminhos ou momentos inseparáveis: (1) atransformação

de objetos em idéias, que deu lugar às críticas mais habituais entre

filósofos e comentadores; e (2) atransformação de idéias em objetos,

que devolve a transcendência aos objetos e, freqüentemente, é ignorada

pelos críticos.35 De qualquer forma, o termo “transformação” não nos

parece o mais apropriado, visto que não se trata de coisas heterogêneas,

pelo contrário, o que Berkeley quer mostrar é que o sentido do termo

“idéia”, uma vez assimilado à percepção, é incompatível com a

existência de objetos independentes da mente, ou seja, “insensíveis”

ou “imperceptíveis”. Nesse sentido, a identificação entre “idéia” e

“objeto sensível” é o que nos leva a atribuir realidade às nossas próprias

percepções:

“Por objeto sensível entendo aquilo que é

propriamente percebido pelos sentidos. Coisas

propriamente percebidas pelos sentidos são

imediatamente percebidas. (...) Os objetos dos sentidos,

sendo coisas imediatamente percebidas são, entretanto,

chamados de idéias”.36

Do ponto de vista estritamente fenomênico, as idéias que

correspondem a cada sentido são diferentes, tanto qualitativamente

quanto quantitativamente.Asensação que eu tenho quando vejo a cor

vermelha de uma maçã é completamente diferente da sensação que eu

experimento na boca ao mordê-la — o gosto. Nesse sentido, trata-se

de duas idéias e, portanto, de dois objetos diferentes. A sensação que

eu tenho ao olhar a maçã desde um ângulo diferente não é a mesma

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PABLO ENRIQUEABRAHAM ZUNINO

que eu tive numa experiência visual anterior, portanto, a primeira idéia

é distinta da segunda. O que acontece é que essas idéias aparecem

constantemente unidas e, portanto, podemos legitimamente referir-

nos a elas comouma e a mesma coisa. Caberia um último exemplo,

no sentido de elucidar o que Berkeley entende por “objeto imediato”,

independentemente do “objeto físico” ou do “nome” ao qual tenha

sido vinculado no curso ordinário da experiência. Não é relevante se a

idéia que eu perceboatualmenteé alguma coisa além do que se

apresenta a minha mente. O fato de ser uma idéia percebida é suficiente.

Por exemplo, quando viajamos de dia por uma estrada asfaltada e

vemos um trecho resplandecente na pista, sempre alguns quilômetros

à frente. Podemos duvidar daquilo que vemos — é uma miragem ou

uma poça de água? —, mas não podemos negar que vemos o

resplendor. Isso é umobjeto imediato da percepção.37

As idéias do grupo (2) —percebidas considerando as paixões

e operações do espírito— não são enumeradas por Berkeley. Essa

denominação, no entanto, corresponde à distinção lockeana entreidéias

de sensação, que são as qualidades sensíveis eidéias de reflexão, que

são aquelas operações que:

“(...) suprem o entendimento com outra série de

idéias que não poderia ser obtida das coisas externas,

tais como a percepção, o pensamento, o duvidar, o crer, o

raciocinar, o conhecer, o querer e todos os diferentes atos

de nossas próprias mentes. (...) O termo operações é usado

aqui em sentido lato, compreendendo não apenas as ações

da mente sobre suas idéias, mas também certos tipos de

paixões que às vezes nascem delas, tais como a satisfação

ou inquietude que nascem de qualquer pensamento”.38

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CADERNOSESPINOSANOSXVI - 2007

Alguns comentadores (Tipton e Luce) julgam que Berkeley

tenha incluídodiplomaticamenteesse grupo (2) de idéias para adaptar-

se ao leitor lockeano39, que encontra, logo no parágrafo inaugural da

obra, uma classificação de idéias familiar. Grayling, no entanto, enfatiza

que o sentido berkeleyano do termo “idéia” é incompatível com a

expressão “operações do espírito”, visto que essa última noção supõe

umaatividadeque só pode ser atribuída à mente e não às idéias em si

mesmas. Com efeito, Berkeley introduz um segundo componente da

teoria da percepção, no § 2 dosPrinciples:

“Mas ao lado da infinita variedade de idéias ou

objetos do conhecimento há alguma coisa que os conhece

ou percebe, e realiza diversas operações como querer,

imaginar, recordar, a respeito deles. Este percipiente

(perceiving) ser ativo, é o que chamo de mente, espírito,

alma ou eu (my self). Por estas palavras não designo

alguma de minhas idéias, mas alguma coisa distinta delas

e onde elas existem, ou o que é o mesmo, por que são

percebidas; porque a existência de uma idéia consiste

em ser percebida”.40

A teoria da percepção de Berkeley tem ainda um alcance

metafísico, já que para o autor o conhecimento do ser se dá por meio

da identificação entresereperceber. Berkeley define a existência com

duas modalidades de ser, radicalmente opostas entre si, que articulam

a relação sujeito-objeto: o “ser percebido” (percipi), que tem caráter

passivo e define às idéias enquanto objeto do conhecimento humano;

e o “perceber” (percipere41), que tem caráter ativo e designa ao espírito

ou sujeito.

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III – Objetividade e Causalidade

Ao afirmar essas duas modalidades de ser, Berkeley nega a

existência absoluta de “coisas fora do espírito” ou “não-percebidas”

por nenhuma mente. Dizer que “houve um som”, por exemplo, significa

que alguém o ouviu, pois como poderia existir de outro modo?42 Os

dados dos sentidos (sense data) são idéias inertes percebidas por um

elemento ativo — a mente —, portanto não devemos pensar que o

sujeito está apreendendo dados que estão fora dele. A idéia de objeto

sensível “exterior” não faz sentido para Berkeley, visto que “objeto

sensível” é aquilo que se assimila no “interior” do sujeito. Isso não

significa que haja uma redução ontológica à dimensão subjetiva do

ser, mas a necessidade de pensar a relação sujeito-objeto circunscrita

ao sujeito. O espírito, que é o modo subjetivo do ser, não pode perceber-

se a si mesmo; apenas perceber idéias, que constituem o modo objetivo

do ser:

“(...) as palavras vontade, alma, espírito não

significam idéias diferentes nem, na verdade, idéia

alguma, senão algo diferente das idéias e que, sendo

agente, não pode ser semelhante a ou representado por

uma idéia qualquer”.43

Devido à irredutibilidade entre “objeto percebido” e “sujeito

percipiente”, não podemos conhecer diretamente o espírito, pois isso

seria “ter uma idéia” do ser ativo. Para referir-se ao espírito, Berkeley

adota o termo “noção”44, evitando a ambigüidade entre “espírito” e

“idéia”. Além disso, o conceito de “Espírito” é atribuído sobretudo a

Deus. Nesse sentido, Grayling destaca que as “noções”:

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“(...) são conceitos focalizados do eu (self),

espírito ou mente, e de Deus, que não têm origem na

experiência sensível e, portanto, não são idéias, mas

conseguimos ter uma compreensão deles por meio de uma

intuição imediata, no caso da nossa própria mente, ou

por ‘reflexão e raciocínio’, no caso de Deus”.45

Na teoria do conhecimento de Berkeley, o sujeito não pode

“ser percebido”, pois se assim fosse, tornar-se-ia “objeto”. Como

vimos, Berkeley estabelece uma relação metafísica entre dois

elementos: o elemento ativo, que é a mente; e o elemento passivo, que

é a “sucessão de idéias” cuja existência consiste em ser percebida —

esse est percipi. Trata-se de umaobjetividade inerente ao sujeitocom

a qual Berkeley pretende superar o dualismo cartesiano (res cogitans

– res extensa). O que isso quer dizer? Quer dizer que o sujeito não

pode ser objeto, visto que não podemos ter uma idéia do nosso próprio

espírito nem de qualquer outro espírito humano, ou mesmo divino.

Por isso, Berkeley adota o termo “noção” para referir-se à mente,

porque nós podemos ter uma noção do espírito, mas não uma idéia

em sentido pleno. Entretanto, o sujeito só pode conceber-se como

objeto no ato da percepção. Esse é o alicerce da singularidade da

auto-consciência que distingue qualitativamente a percepção que tem

o espírito de si mesmo, da percepção que tem sempre uma referência

objetiva, ou seja, um conteúdo objetivo. Todavia, as idéias que

constituem a realidade não dependem da nossa vontade. Elas surgem

de um modo próprio, o que denota a independência docurso da

natureza. Essas idéias são criadas por Deus dentro do sujeito como

modificações do espírito. Por conseguinte, o valor objetivo das idéias

é imanente a elas. Tendo em vista que as idéias não dependem daquilo

que representam, a objetividade é intrínseca ao espírito. O que garante

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essa objetividade é a concepção de umacausalidade metafísica, isto

é, a Criação Divina de idéias, que estabelece uma ordem de percepções

para cada mente humana, portanto, o que muda é a perspectiva de

cada espírito. Assim, a existência de qualquer idéia consiste em “ser

percebida” poralgumamente, mas não necessariamente aminha:

“Dizer que os corpos não têm existência fora do

espírito (without the mind), não quer dizer neste ou

naquele espírito particular, mas em todos. Não se segue,

portanto, desses princípios que os corpos sejam

aniquilados em cada instante ou não existam no intervalo

das nossas percepções”.46

A nossa própria consciência interna da percepção de idéias e a

ordem, independente da nossa vontade, com a qual elas estão

“conectadas”, nos permite compreender a existência do espírito como

uma “noção”. Quando levantamos um braço, por exemplo, somos

conscientes de que por um ato da nossa vontade realizamos essa ação.

De maneira análoga,intuímosa presença divina como uma “Vontade

Universal”:

“Ao passo que um conjunto de idéias denota um

espírito humano particular, para qualquer lado que

olhemos vemos sempre e em toda parte indícios da

divindade. Tudo quanto vemos, ouvimos, sentimos ou

percebemos de qualquer modo pelos sentidos é sinal ou

efeito do poder de Deus; como é a nossa percepção dos

movimentos produzidos pelo homem”.47

Todo o esforço intelectual de Berkeley visa manifestar a

“imanência” da divindade, pois a afirmação de que os objetos sensíveis

dependem da mente completa-se quando a existência de Deus é

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provada. Não se trata de demonstrar geometricamente sua existência,

mas de compreender intuitivamente que o mundo percebido, em termos

de idéias, implica uma concepção de Deus, não apenas como criador

do mundo natural, mas como um Ser vitalmente envolvido com tudo

o que acontece no mundo48:

“Parece, pois, evidente a uma simples reflexão a

existência de Deus ou um Espírito intimamente presente

ao nosso, onde produz toda a variedade de idéias ou

sensações experimentadas, e de quem dependemos

absolutamente, em suma, em quem vivemos, nos movemos

e somos”.49

O percurso de Berkeley, que começa com uma análise da

percepção, culmina também na percepção, pois o mundo real é o mundo

da experiência. A forma sensível do mundo é dada pela nossa própria

estrutura perceptiva, mas não pode sobreviver sem o espírito que, por

sua vez, depende de umprincípio vital, isto é, Deus.

Considerações Finais

Uma das preocupações deste artigo foi mostrar que, apesar de

ser considerado um autor dogmático, Berkeley leva a sério o projeto

de não duplicar o ser, combatendo o ceticismo em defesa do senso

comum. O problema pode ser formulado com a seguinte pergunta:

“Será que o que eu vejo é real?” Berkeley responde a essa pergunta de

maneira contundente: não há nenhuma realidade por trás do que nos

aparece, porém essa afirmação pode ser recusada como pura

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subjetividade. No entanto, uma compreensão adequada das teses de

Berkeley reconheceria uma alternativa para essa leitura precipitada.

De maneira análoga a Descartes, Berkeley concebe um Deus que

garante a objetividade, devolvendo a realidade das coisas ao mundo

espiritual.

Por meio do conceito de “idéia”, Berkeley pretende superar o

problema da oposição entre realidade e aparência, identificando a

percepção ao seu conteúdo, ou seja, as idéias percebidas pelos sentidos

(visão, tato, olfato, etc.) aos objetos sensíveis (cores, sons, cheiros,

etc.). Desse modo, o autor distingue as construções imaginativas (plano

do senso comum) das construções instrumentais (plano da ciência

matematizada). Ao assumir essa distinção, nos deparamos com outro

problema, que consiste em determinar o estatuto do “corpo físico”,

tendo em vista que os conceitos utilizados pela ciência para descrever

a realidade são qualitativamente diferentes da sua aparência sensível.

Os corpos físicos, segundo Berkeley, têm existência enquanto “coleções

de idéias” ou conjuntos de percepções. Mas o que isso significa?

Significa que, imaginativamente, concebemos objetos construídos

(mesas, livros, etc.), aos quais podemos atribuir-lhes realidade, isto é,

construções mentais (idéias) baseadas em dados dos sentidos —sense

data. Portanto, Berkeley afirma que a percepção é real, ao passo que

os conceitos matemáticos são palavras adotadas pela ciência para

descrever a realidade, em vista de suautilidade instrumental. O nome

é o que nos dá a ilusão da unidade, pois aquilo que chamamos de

“objeto” não é mais do que as percepções sensíveis associadas pela

experiência e unificadas sob um mesmo nome. Considerando que uma

boa análise da experiência deveria valorizar os objetos sensíveis,

percebidos independentemente uns dos outros, enquanto objetos

heterogêneos, podemos caracterizar a estratégia argumentativa de

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Berkeley como uma escolha, no sentido de começar pelo fim do

processo, isto é, pelo nome — ou, para usar a metáfora sugerida pelo

Prof. Taranto, fazendo um“streap teasedas idéias”.50

O conceito derepresentação, em Berkeley, não supõe uma

duplicação do mundo, ou seja, uma bipartição da realidade entre mundo

exterior e interior, material e espiritual, real e aparente, etc. Entretanto,

a linguagem pode ser compreendida como uma mediação, que supõe

certas etapas no processo de cognição, onde subsiste a tensão entre

aparência e realidade. O modelo da linguagem, em Berkeley, permite

opor à relação de causa e efeito uma conjunção de experiências que se

organizam em termos de significado e significante. Em contrapartida,

o modelo do cálculo geométrico chega à concepção de um mecanismo,

que não precisa mais de Deus como hipótese. No modelo apologético

supõe-se que entre Deus e nós há uma mediação da linguagem. Desse

modo, a proposta de Berkeley não é acreditar na religião porque sim,

mas compreender que se trata de uma religião introduzida a partir da

fala de Deus —La Grammaire de la Nature—, que admite uma

finalidade ou intenção.

Berkeley está inteiramente imerso na tradição do século XVII,

para a qual somente Deus é considerado “causa”, isto é, Espírito.

Qualquer outra modalidade de causação era recebida com

desconfiança. Os espíritos (mentes humanas) podiam ser considerados

como causa, levando em consideração o seu caráter espiritual e a sua

relação com o Espírito Supremo. Para além disso, não podiam

estabelecer-se relações de causalidade, mas sim conjunções constantes

a partir de uma certa regularidade observada, por exemplo, nos corpos.

O ser humano, que tem corpo e também espírito, torna-se um problema.

Aproposta de Berkeley, porém o dissolve, visto que para ele os corpos

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e todo o mundo material são conjuntos de percepções, idéias na mente

do sujeito. Ora, como é que as idéias aparecem? Se não há uma

realidade dupla, não pode haver uma teoria causal da percepção, isto

é, um objeto material exterior causando a percepção no sujeito em

forma de idéias mentais. As percepções aparecem em forma de idéias

porque Deus as imprime em nossa mente dessa maneira. Deus imprime

em cada um de nós percepções de forma regularmente ordenada, de

modo que nós podemos perceber um mundo em comum. Assim,

Berkeley concebe a objetividade, pois as idéias não sãodo espírito

humano; são apenas percebidas por ele, mas “causadas” por Deus. A

mente humana opera cognitivamente com idéias, porém

ontologicamente, só Deus tem o poder de criar ou gerar idéias. O

mundo comum é possível porque certas percepções são regularmente

conectadas a outras, consolidando uma harmonia entre as diferentes

sucessões de percepções de diferentes sujeitos. Se essa harmonia não

é logicamente necessária — ou, como quer Leibniz,preestabelecida

—, ela torna-se necessária por sercontinuamenteestabelecida pela

Vontade Divina. Deus imprime, em cada um de nós, uma série de

percepções que constitui uma linguagem — aLinguagem Divina—

que nós apreendemos a interpretar. E o mundo físico é, portanto, a

compreensão dessa linguagem.

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CADERNOSESPINOSANOSXVI - 2007

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Notas

1 “Ser é ser percebido” – BERKELEY. Principles, § 3, in:The Works of

George Berkeley Bishop of Cloyne. Edited by A. A. Luce and T. E.

Jessop. Nendeln / Liechtenstein: Kraus Reprint, 1979.2 GRAYLING. A. C.The Central Arguments. Illinois: Open Court, 1986.3 “Nada há no intelecto que não tenha estado antes nos sentidos” —

axioma dos escolásticos (São Tomás), endossado por Berkeley em

Philosophical Commentaries – PC, 539, 779.4 Cf. TIPTON, I. C. Berkeley: the philosophy of imaterialism, VI, iv, p.

201. New York & London: Garland, 1988.5 BERKELEY, Principles, § 6.6 LOCKE, J.An Essay Concerning Human Understanding, II, viii, 8,

p.169, ed. A. C. Fraser, Oxford, 1894.7 BERKELEY. Principles,§ 1.

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CADERNOSESPINOSANOSXVI - 2007

8 O problema de saber se estamos acordados ou sonhando pode ser

discutido a partir dessa distinção entre realidade (idéias impressas em

nossos sentidos por Deus) e imaginação (idéias formadas por nossa

vontade a partir das idéias que temos na memória).9 WINKLER, K. Berkeley: An interpretation. Oxford: Clarendon Press,

1994, p.10.10 BERKELEY, Principles, § 33.11 Cf. SMITH, A. D. “Berkeley´s central argument against material

substance”, p.56, in: FOSTERand ROBINSON(ed.).Essays on Berkeley.

Oxford: Clarendon Press, 1985.12 BERKELEY. First draft of the Introdution to the Principles, § 10, in:

Works.13 BERKELEY, Principles, § 17.14 Na IntroduçãodosPrinciples, Berkeley dirige profundas objeções

à concepção lockeana dasidéias gerais abstratas.15 Cf. BOYLE. The origin of forms and qualities, in: STEWART, M. A.

(ed.).Selected Philosophical Papers of Robert Boyle. Manchester,

1979, pp.18-53.16 Locke.Essay, II, viii, 9-10.17 Ibidem, II, viii, 12.18Apesar das controvérsias — que não vamos discutir aqui — adotamos

a interpretação mais aceita, isto é, que Locke sustentava uma teoria

representativa da percepção. Com base noEssay, IV, iv, 3 e IV, xi, 2,

Grayling confirma esse ponto.19 Cf. LOCKE. Essay, IV, iv, 3.20 Ibidem, II, viii, 15.21 ZATERKA, L. “Robert Boyle e John Locke: Hipótese corpuscular e

filosofia experimental”, in: Circumscribere, Volume 1, 2006, pp. 58-

66.

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PABLO ENRIQUEABRAHAM ZUNINO

22 BERKELEY, Principles, § 25.23 Ibidem, § 65.24 Ibidem, §§ 8 e 25.25 Ibidem, § 10.26 Sobre esse problema, ver BERKELEY. An essay towards a new theory

of vision, in: Works.Ver ainda ZUNINO, P.Distância e movimento

em Berkeley: a metafísica da percepção.Dissertação de mestrado:

FFLCH-USP, 2006.27 Cf. BERKELEY. Dialogues 1, pp.179-186, in:Works.28 Cf. GRICE, H. P. “The causal theory of perception”, in: WARNOCK

(ed.).The philosophy of perception. Oxford: Oxford University Press,

1967.29 TIPTON, p.183.30 ARISTÓTELES. On the soul, II, vi, in: The works of Aristotle(translated

into English under the editorship of W. D. Ross). Chicago:

Encyclopædia Britannica, 1952. Nessa obra,Aristóteles distingue três

classes de “objetos dos sentidos”: (a) o objeto que pode ser percebido

apenaspor um único sentido; (b) o objeto que pode ser percebido por

qualquersentido ou portodoseles; (c) o objeto que pode ser percebido

incidentalmente. Aristóteles chama de “sensível próprio” (special

object) aquele objeto que não pode ser percebido por qualquer outro

sentido, tal como a cor, que é o “sensível próprio” da vista; o som do

ouvido; o sabor do gosto e assim por diante. Os “sensíveis comuns”,

por sua vez, podem ser percebidos por dois ou mais sentidos, de sorte

que o movimento, o número, a figura e a magnitude não são próprios

de nenhum sentido, mas comuns ao tato e à visão. Por último, o objeto

incidentalé definido a partir do seguinte exemplo: dizemos que vemos

“o filho de Diares” ao perceber a parte branca,diretamentevísivel, da

sua roupa. Nesse caso, percebemosincidentalmenteo filho de Diares.

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Contudo, conclui Aristóteles, não é exatamente assim que o objeto

afeta nossos sentidos, portanto “a classe dos sensíveis próprios

constitui o objeto dos sentidos no sentido estrito do termo”.31 GRAYLING, p77.32 BERKELEY. Principles, §1.33 PORCHAT, Oswaldo.IV Colóquio de Epistemologia da USJT: “Ação,

crença e conhecimento”. São Paulo, 2005.34 Cf. KANT. Crítica da Razão Pura, p.89, in: Os Pensadores. São

Paulo: Nova Cultural, 1999.35 GUEROULT. Berkeley: quatre études sur la perception et sur Dieu.

Montaigne: Aubier, 1956, pp.25-28.36 BERKELEY. The theory of vision vindicated and explained, §§ 9-11,

in: Works.37 Cf. TIPTON, p.183.38 LOCKE, John.Ensaio acerca do entendimento humano, II, i, 4, p.28,

in: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1991.39 Provavelmente, como uma forma decaptatio benevolentiæ. Esta

expressão da retórica latina significa literalmente ‘conquista da

benevolência’ e era apresentada no início da obra quando um autor

queria ganhar a simpatia do leitor.40 BERKELEY. Principles, § 2.41 Cf. BERKELEY. Philosophical Commentaries, 429.42 Alguns autores (Ayer, Price) sugerem que o problema estaria na

ambigüidade entre “perceber” e “conceber”, tendo em vista que é

possível imaginar alguma coisa, mesmo sem percebê-la sensivelmente.

Mas Berkeley usa esse argumento para mostrar o contrário: “nada

mais fácil do que imaginar, por exemplo, árvores em um parque, ou

livros em uma estante e ninguém para percebê-los” (Principles, §§

22-24). O fato de poder “imaginar” esses objetos como coisas que

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não são “atualmente percebidas” significa que já as estamos

percebendo, porém, abstraindo-se o sujeito. Nesse sentido, “imaginar”

também é uma forma de perceber que consiste em imaginar-se a si

mesmo percebendo. Se perguntarmos a alguém, por exemplo, como

seria ver o sistema solar desde o Sol, a pessoa teria que imaginar-se

no Sol percebendo os planetas em volta e, abstraindo-se a si mesma

do contexto, teria uma resposta possível. Essa discussão reproduz o

debate entre os professores Plínio Smith (USJT) e Paulo Faria

(UFRGS), após a conferência do Prof. André Klaudat (UFRGS),

intitulada:“Confiança nos sentidos”, proferida durante oIV Colóquio

de Epistemologia da USJT: “Ação, crença e conhecimento”. São

Paulo, 2005.43 BERKELEY. Principles, § 27.44 Ibidem, §§ 140-142.45 GRAYLING, p.50.46 BERKELEY. Principles, § 48.47 Ibidem, § 148.48 Cf. TIPTON. Berkeley: The Philosophy of Immaterialism, p.298.49 BERKELEY. Principles, § 149.50 Cf. TARANTO, P. Curso: «George Berkeley: Les Principes de la

connaissance humaine», FFLCH-USP, 2006, p. 24 : “Ainsi l’illusion

des mots (...), qui consiste à nous faire croire que chaque mot signifiant

correspond nécessairement à une idée fixe, et cette idée à une réalité,

se trouve –t-elle dissipée. Il faut pour cela « tirer le rideau des mots »

(metaphorical dress), et contempler les idées « pures et nues ». Car

les idées ne représentent rien qu’elles-mêmes ; elles n’ont pas de

double-fond, ni ne recèlent rien de caché. L’union des mots et des

idées doit être dissoute pour permettre au critère de vérification du

sens de s’appliquer.”

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FRIEDRICHNIETZSCHE

Carta sobre Espinosa*

FRIEDRICHNIETZSCHE

* Tradução de Homero Santiago.

Num livro recente, a psicanalista Maria Rita Kehl afirma que

Espinosa “representou, para o século XVII, o mesmo espírito

demolidor de crenças e ortodoxias que Nietzsche, para o XIX.”1 Quer

dizer, sem embargo das diferenças e de todas as dissimilitudes

perceptíveis logo à primeira leitura, preservadas as peculiaridades e

idiossincrasias, o holandês Bento de Espinosa e o alemão Friedrich

Nietzsche, cada um a sua época, desempenharam para a história da

filosofia e da cultura ummesmopapel; convergindo, pois, se não em

teses, ao menos num certo “espírito”, que é aquele de umtrabalho

crítico monumental a lhes permitir pôr em xeque a nossa civilização,

em particular aquela conhecida no Ocidente e amplamente marcada

pelo judaísmo-cristianismo. Até certo ponto, não é algo diferente

daquilo que já afirmara Deleuze quando, ao avaliar retrospectivamente

seu trabalho em história da filosofia e sem abrir mão do privilégio que

sempre concedeu nessa história às singularidades, confessava que “tudo

tendia para a grande identidade Nietzsche-Espinosa”.2

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Sob tal perspectiva, não é de admirar que a muitos tenha

parecido grande interesse estudar e aprofundar as possíveis

convergências entre as filosofias de Espinosa e de Nietzsche. Trata-se

de uma aproximação que não é sem proveito para aqueles que têm em

mira a formulação de um programa filosófico da imanência radical

que, em nosso tempo, possa encontrar naquelas filosofias poderosos

exemplares do pensamento crítico e emancipatório. Na luta contra a

transcendência, espalhada em toda parte sob variadas formas, seria

mesmo um desperdício deixar de avaliar em conjunto a herança dos

melhores combatentes.

Nossa intenção aqui é oferecer ao leitor um documento de

primeira ordem (e que, salvo engano de nossa parte, desconhece versão

portuguesa em sua integridade) em tudo que se refere às relações

entre os dois filósofos em questão: o bem conhecido texto que

Nietzsche envia a seu amigo Franz Overbeck em 30 de julho de 1881,

sobre um cartão-postal, dando conta de suas leituras sobre o

espinosismo e algumas conclusões que elas lhe inspiram.

Em meados daquele ano,Auroraacaba de sair, Nietzsche está

instalado em Sils-Maria e prestes a ter uma primeira intuição do eterno

retorno que marca o início da concepção doZaratustra3; entre uma e

outra solicitação que faz a amigos:

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FRIEDRICHNIETZSCHE

ele pede a Overbeck retirar-lhe da biblioteca da

Basiléia dois volumes de Hellwald:História da civilização

eA Terra e seus habitantes, bem como “o volume de Kuno

Fischer sobre Espinosa”. Nietzsche já havia recorrido mais

de uma vez àHistória da filosofia modernado professor

de filosofia de Heidelberg Kuno Fischer (1824-1907),

assim como sem dúvida a suas conferências de 1860,A

vida e a obra de Kante I. Kant, evolução, sistema e

história da filosofia crítica; era essencialmente a Fischer

que devia seu conhecimento de Kant. Pois ele igualmente

se recordou da exposição consagrada por Fischer à

filosofia do grande pensador solitário, posto à margem da

comunidade judaica em razão de suas idéias heréticas e

de suas simpatias pelas “Luzes”, Baruch de Espinosa. Quis

então retomar esse livro, cuja segunda parte do primeiro

tomo era consagrada à “Escola cartesiana”, e

particularmente a Espinosa. Overbeck atendeu o pedido

imediatamente e Nietzsche se lançou sem mais demora

nessas leituras.4

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CADERNOSESPINOSANOSXVI - 2007

Pelo menos no que concerne à leitura de Kuno Fischer, o

resultado será extraordinário, como atesta o postal remetido ao amigo

que lhe fizera a gentileza de conseguir o livro. Chegará Nietzsche a

escrever várias outras passagens sobre Espinosa, em geral críticas,5

mas nenhuma atingirá a importância dessa confissão emocionada do

encontro e da identificação, para lá das “diferenças enormes”, entre

os dois pensadores. Para alguém que, “sempre que detectava algum

parentesco (...), ficava muito animado e feliz”,6 o efeito da descoberta

não foi pequeno, deve ter produzido inclusive um alívio físico

importante em dias marcados pela doença.Arespeito, o alemão poderia

dizer o mesmo que outrora afirmara, com admiração, após a leitura

deA origem dos sentimentos moraisdo amigo Paul Rée: “vejo o meu

próprio eu ampliado e projetado para fora”.7

Pudera. De um lado, há uma convergência doutrinária

claramente estabelecida que, não obstante o caráter negativo das teses

(“ele nega...”), serve à delimitação de um terreno comum que,

positivamente, é o trabalho de desmonte da maneira vulgar de conceber

ao mundo e a nós mesmos. De outro lado, o texto deixa salientar uma

incontida alegria; uma confluência, não uma influência, que tem o dom

de efetuar a passagem dasolidãopara adualidãode dois pensadores

solitários em sua radicalidade. Não é pouco. A alegria do encontro é

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FRIEDRICHNIETZSCHE

aquela de um combatente que, no meio de uma guerra, num terreno

inóspito, quando entrincheirado e com balas zunindo sobre a cabeça,

topa com um companheiro de luta, alguém solidário nos pensamentos

e na própria solidão. Para dizer em poucas palavras, um

companheirismo notrabalho crítico.

O texto alemão aqui oferecido e sobre que se baseou a tradução

foi retirado de Nietzsche,Sämtliche Briefe, Walter de Gruyter, Berlim

& Nova Iorque, 1986, vol. 6, p. 111. Como instrumentos de

comparação nos servimos da tradução inglesa de Christopher

Middleton (Selected letters of Friedrich Nietzsche, Indianapolis &

Cambridge, Kackett, 1996) e dos artigos deAndré Martins (“Nietzsche,

Espinosa, o acaso e os afetos. Encontros entre o trágico e o

conhecimento intuitivo”,O que nos faz pensar, no 14, 2000) e de

Luciana Zaterka (“Conatus e Vontade de Potência: semelhanças e

dessemelhanças”,Cadernos Espinosanos, no 2, 1997), ambos trazem

em vernáculo trechos substanciais da carta nietzschiana. Cabe observar

também que uma primeira versão deste trabalho foi utilizada no curso

intitulado “Espinosa, Nietzsche: o trabalho crítico”, oferecido no

segundo semestre de 2006 aos alunos do vespertino do primeiro ano

de filosofia da Universidade de São Paulo; a eles, gostaria de agradecer

uma primeira leitura que ajudou no aperfeiçoamento do resultado.

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CADERNOSESPINOSANOSXVI - 2007

Texto e tradução

Friedrich Nietzsche

An Franz Overbeck in Basel (Postkarte).

[Sils-Maria, 30. Juli 1881]

Ich bin ganz erstaunt, ganz entzückt! Ich habe einen Vorgänger

und was für einen! Ich kannte Spinoza fast nicht: daß mich jetzt nach

ihm verlangte, war eine „Instinkthandlung”. Nicht nur, daß seine

Gesamttendez gleich der meinen ist — die Erkenntniß zum

mächtigsten Affekt zumachen — in fünf Hauptpunkten seiner Lehre

finde ich mich wieder, dieser abnormste und einsamste Denker ist mir

gerade in diesen Dingen am nächsten: er leugnet die Willensfreiheit

—; die Zwecke —; die sittliche Weltordnung —; das Unegoistische

—; das Böse —; wenn freilich auch die Verschiedenheiten ungeheuer

sind, so liegen diese mehr in dem Unterschiede der Zeit, der Cultur,

der Wissenschaft. In summa: meine Einsamkeit, die mir, wie auf ganz

hohen Bergen, oft, oftAthemnoth machte und das Blut hervorströmen

ließ, ist wenigstens jetzt eine Zweisamkeit. — Wunderlich! Übrigens

ist mein Befinden gar nicht meinen Hoffnungen entsprechend.

Ausnahmewetter auch hier! Ewiges Wechseln der atmosphärischen

Bedingungen! — das treibt mich noch aus Europa! Ich mußreinen

Himmel monatelang haben, sonst komme ich nicht von der Stelle. Schon

6 schwere, zwei- bis dreitägigeAnfälle!! — In herzlicher Liebe

Euer Freund.

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FRIEDRICHNIETZSCHE

Nietzsche

A Franz Overbeck na Basiléia (cartão-postal).

[Sils-Maria, 30 de julho de 1881]

Estou inteiramente espantado, inteiramente encantado! Tenho um

precursore que precursor! Eu não conhecia quase nada de Espinosa;

que eu agora ansiasse por ele foi uma “ação do instinto”. Não só, que

sua tendência geral seja idêntica à minha — fazer do conhecimento o

afeto mais potente— em cinco pontos capitais de sua doutrina eu me

reencontro, este pensador, o mais fora da norma e o mais solitário, me

é o mais próximo justamente nestas coisas: ele nega o livre-arbítrio

—; os fins —; a ordem moral do mundo —; o não-egoísmo —; o mal

—; se certamente também as diferenças são enormes, isso se deve

mais à diversidade de época, de cultura, de ciência. In summa: minha

solidão, que, como sobre montes muito altos, com freqüência

provocou-me falta de ar e fez-me o sangue refluir, é ao menos agora

uma dualidão. — Maravilhoso! Aliás, meu estado de saúde de forma

alguma corresponde às minhas esperanças. Tempo excepcional também

aqui! Eterna variação das condições atmosféricas! — isso me leva

ainda a deixar a Europa! Preciso ter céulimpodurante meses, senão

eu não consigo avançar. Já 6 acessos graves, com duração de dois a

três dias!! — Afetuosamente

Seu amigo.

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CADERNOSESPINOSANOSXVI - 2007

Notas

1 Ressentimento, São Paulo, Casa do psicólogo, 2004, p. 99.2 Entrevista concedida aoMagazine littéraire, no 257, setembro de

1988; apud Pierre Zaoui, “La ‘grande identité’ Nietzsche-Spinoza,

quelle identité?”,Philosophie, no 47, setembro de 1995, p. 65.3 Cf. Ecce homo, São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 82.4 Curt Paul Janz,Nietzsche, biographie, Paris, Gallimard, 1984, tomo

II, p. 361.5 Para uma consideração do conjunto dos textos de Nietzsche sobre

Espinosa, ver Giuseppe Turco Liveri,Nietzsche e Spinoza.

Ricostruzione filosofico-storica di um incontro impossibile, Roma,

Armando, 2003. O nosso texto, em particular, é analisado a partir da

p. 57.6 Rüdiger Safranski,Nietzsche, biografia de uma tragédia, São Paulo,

Geração Editorial, 2005, p. 114.7 Apud Safranski, ob. cit., p. 167.

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DEFESAS

Mestrado

ANDRÉ MENEZES ROCHA

Orientadora: Marilena de Souza Chaui

Data da defesa:18/01/2007

Título

Fortuna e superstição: um estudo destes temas noTratado Teológico-

Políticode Espinosa.

Resumo:Estudo dos temas da fortuna e da superstição noTratado

Teológico-PolíticodeEspinosa.Naprimeiraparte,estudoosentidodestes

temas no prefácio, texto cuja forma é retórica. Na segunda parte, estudo

como os mesmos temas reaparecem em capítulos doTratado Teológico-

Político, textos que têm forma demonstrativa.

Palavras-chave: fortuna, superstição, medo, segurança, política.

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EVENTOS

Jornadas Bacon

Em 29 e 30 de maio, foram realizadas as Jornadas Bacon, evento

organizado pelo Grupo de Estudos Espinosanos, no Departamento de

Filosofia da USP.

Cuarto Coloquio Internacional Spinoza

Aser realizadonoComplejoVaquerías,ValleHermoso,Córdoba,

Argentina, nos dias 25, 26 e 27 de outubro de 2007. Organizado pelo

Centro de Investigaciones de la Facultad de Filosofía y Humanidades de

la Universidad Nacional de Córdoba.

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• Os textos devem ser inéditos e ter de preferência até 40 laudas

(30 linhas de 70 toques).

• O arquivo, que deve ser enviado por e-mail ou por correio, deve

conter o nome do autor, a instituição a que está vinculado, o

endereço eletrônico ou o telefone.

• Osartigosdevemviracompanhadosdeumresumoeumabstract

de 80 a 150 palavras cada um, cinco palavras-chave ekeywords.

• As notas de rodapé devem ser digitadas no final do artigo,

utilizando-se o recurso automático de criação de notas de rodapé

dos programas de edição.

• As citações devem ser feitas no correr do texto de acordo com as

normas técnicasdaABNT; podendo-se incluir, a critério do autor,

as referênciasestabelecidasde textosclássicos,porexemplo,para

aÉticade Espinosa (EI, P2), ou para osNovos ensaiosde Leibniz

(II, xxi, §25).

• As referências bibliográficas devem ser listadas no final do texto,

em ordem alfabética e obedecendo a data de publicação.

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CCCCCONTENTSONTENTSONTENTSONTENTSONTENTSCCCCCONTENTSONTENTSONTENTSONTENTSONTENTS

1. INTERROGATING THE NEGATIVITY: ESPINOSA BETWEENBAYLE AND

HEGEL

Mariana de Gainza 09

2. NEGATION AND OBJECTIVITY IN THE CRITIQUE OF PURE REASON: A

READING OF THETRANSCENDENTALDIALECTICS

Silvana de Souza Ramos 41

3. KNOWLEDGE, ACTION AND AFFECTION: THE PROBLEM OF THEACRASIAIN

ARISTOTLE ANDESPINOSA

Marcos Ferreira de Paula 61

4. THE FORMATION OF REASON INESPINOSA’SETHICS, ACCORDING TODELEUZE

André Menezes Rocha 89

5. CAUSALITY AND REPRESENTATION ONBERKELEY: THE IMMEDIATE DATA

OF THE SUBJECTIVITY

Pablo Enrique Abraham Zunino 101

6. A LETTER ONESPINOSA

Friedrich Nietzsche 131(Trad. Homero Santiago)

7. NEWS 139

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