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Caio Fernando Abreu - inventário de um escritor irremediável (pdf) (rev)

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Jeanne Callegari

CAIO FERNANDO ABREU

inventário de um escritor irremediável

CD SEOMAN

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Copyright © 2008, Editora Seoman Coordenação Editorial MANOEL LAUAND Capa e Revisão HENRIQUE MINATOGAWA Projeto Gráfico GABRIELA GUENTHER Foto da Capa e da Abertura do livro ADRIANA FRANCIOSI/AGÊNCIA RBS Checagem CLARA YWATA Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Callegari, Jeanne

Caio Fernando Abreu: inventário de um escritor irremediável / Jeanne Callegari. — São Paulo: Seoman, 2008. ISBN 978-85-98903-10-1

1. Abreu, Caio Fernando 2. Escritores brasileiros — Biografia I. Título 08-05638 CDD — 928.699 índices para catálogo sistemático: 1. Escritores brasileiros : Biografia 928.699 EDITORA SEOMAN Rua Pamplona, 1465 — cj. 72 — Jd. Paulista São Paulo — SP — Cep 01405-002 Fone: 11 3057-3502 [email protected] www.seoman.com.br Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610/98. É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência da editora. Foi feito depósito legal.

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Para Caio F, pela paixão; Para Jonas Lopes, pelo apoio;

e para Eduardo Nasi, com amor. PREFÁCIO

O perfil de Caio Fernando Abreu escrito por Jeanne Callegari pode ser lido como um romance. Um delicado romance que, cheio de paixão mas também de pudor, pisa devagar sobre a matéria ardente. A estratégia narrativa de Jeanne combina com a estratégia existencial de Caio, que também viveu como se sua vida não passasse de um romance, um desses romances tensos, cheios de tristeza e de revolta, de atração pelo risco mas também de fascínio pela beleza, em cujas páginas avançamos com o coração na mão.

Jeanne começa imitando os romances clássicos. Ela parte dos extratos remotos, mas decisivos da infância, das primeiras descobertas e dos primeiros sustos, para acompanhar, à distância, a formação difícil do escritor. "Desde muito pequeno, o menino Caio demonstrou uma inclinação para a arte", diz. Esta tendência logo se revela uma disposição para a fermentação interior, movimento que o arrastou, desde cedo, para temas ameaçadores como o erotismo, a fraqueza e o risco de morte.

Nem mesmo a prática do jornalismo, que se apóia no concreto e na objetividade, lhe serviu para abrandar as turbulências íntimas. Em um conto como Pequeno monstro, de Os dragões não conhecem o paraíso, nos mostra Jeanne, Caio já rascunha, através de um jovem ai ter ego e por vias tortas, um terrível retrato de si. "Pernas e braços demais, pêlos nos lugares errados, uma voz que desafinava igual a um pato, eu queria me esconder de todos". Viver é não só suportar, mas sobretudo lutar contra o que se é. Talvez se possa pensar que, com sua alma efervescente, Caio Fernando Abreu tenha sido um eterno adolescente — e o livro

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de Jeanne Callegari, por vezes, nos enche de argumentos a favor dessa idéia. Mas Jeanne nos mostra também que, se o jovem rebelde persistia, grudado a ele, como um duplo, havia desde logo um poeta (pela postura, e não porque escrevesse versos, pois, se os escrevia, nunca publicou). Um homem que nunca desconheceu o peso do caminho que lhe coube atravessar.

Mesmo amparando-se no recurso mais didático da ordem cronológica, nem assim a autora consegue organizar e domar a atmosfera de inconstância e de desamparo que cercou a vida do escritor. Períodos fundamentais — como aquele em que, fugindo da perseguição da ditadura militar, ele se escondeu no sítio da escritora Hilda Hilst, na periferia de Campinas — ajudam a fixar traços mais firmes. Em sua chácara, Hilda seguia a idéia do escritor grego Nikos Kazantzakis, segundo quem, para entender a sociedade, é preciso primeiro dela se afastar. Lição que o jovem Caio tratou logo não só de imitar, mas de incorporar como fundamento de sua existência, e que o ajudou a delimitar, de vez, a figura de um sujeito à margem, de um desviante, um rebelde. Pode-se dizer que foi na chácara de Hilda, escoltado por ela — como uma parteira que de um corpo arrancasse não outro corpo, mas um espírito — que o escritor adulto veio a nascer.

"As vezes que tentei morrer foi por não suportar a maravilha de estar vivo e de ter escolhido ser eu mesmo", Caio escreve em uma carta aos pais, datada do final dos anos 1960. Quando, no início da década de 1970, vai para a Europa, já é um homem que deseja abraçar o mundo, perder-se na esperança de, enfim, se achar. Leva então uma existência precária, faz bicos, lava pratos, sobrevive como pode, mas avança, na Suécia, na Holanda, na Inglaterra. A bissexualidade se abre, rompendo de vez os limites de uma vida burguesa.

Mas, nos mostra Jeanne, quanto mais Caio se liberta e expande seus horizontes, mais afunda na dor. "Escrevo por uma espécie de incompatibilidade de gênios com a vida,

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escrevo para reinventar, escrevo para organizar o caos, para não enlouquecer de impotência, para re-fazer", ele mesmo descreve em uma crônica da época. Dor e escrita se conectam de modo fatal, e é nesse nó que Jeanne Callegari puxa o fio de "um escritor irremediável". E aqui se deve entender o irremediável em dois sentidos: como uma condenação (algo que não tem remédio), e como um destino (algo em que ele se lança para a vida e com grande vigor).

De volta a São Paulo, Jeanne reencontra Caio, aos 30 anos, "de calça de couro, jaqueta, gestos finos, elegantes", encostado em um carro. "O ser todo exalava algo de sexual, e de solitário também", ela resume, em uma descrição que, mesmo rápida, fisga quase toda a alma de Caio Fernando Abreu. Um sujeito que, apesar da sensibilidade extrema e da volúpia de viver sempre frustrada, nunca desiste de recomeçar. O medo da loucura, do desastre, do fracasso, se agiganta. A relação de amor e tensão que tem com a poeta Ana Cristina César — que, depois de muita luta interior, termina por cometer suicídio — é uma síntese desses sentimentos.

É também o momento em que, em O triângulo das águas, mais especificamente na novela Pela noite, pela primeira vez, Caio menciona o terror da aids — que naquela época, de ignorância e preconceito, ainda era chamada, muitas vezes, de "câncer gay". Mesmo cheio de terrores, Caio avança. Dedica-se cada vez mais a ler poesia — sobretudo Adélia Prado, Fernando Pessoa e Mario Quintana. Sua escrita está cada vez mais impregnada de lirismo, um lirismo seco e doloroso, e também de um misticismo vago, que se acentua na atitude pessoal — que cultiva com esmero — de um bruxo.

O anjo negro chega ao extremo até que ele mesmo, depois de uma doença longa e estranha, recebe a notícia de que é soro-positivo. Fato, que comunica, de modo frontal, em uma série de crônicas publicadas no jornal O Estado de S. Paulo. É o momento da virada — em que o positivo que indica a doença, negativo, portanto, é convertido por Caio em algo positivo mesmo. A vida lhe abre uma nova face. Fraco, mas

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cheio de coragem, ele volta a morar com os pais, no sul, e se dedica a rever seus livros, procurando extrair, dos mergulhos negativos, sentidos novos e vitais.

A morte o pega quando vivia como um romântico jardineiro, quieto entre suas flores domésticas, apegado ao prazer de cuidar dos próprios espinhos. É nesse andar das coisas pequenas que Jeanne o persegue até o fim. Seu livro tem a objetividade dos relatórios científicos, mas também o encantamento das cartas de amor e, ainda, a reserva temerosa das grandes confissões. Jeanne se contém sempre, o mais que pode, porque sabe que aventurar-se na vida e na obra de Caio Fernando Abreu guarda sempre um grande risco, é mergulhar no veneno terno da imperfeição.

José Castello

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INTRODUÇÃO: CEM MIL CAIOS

Um, nenhum e cem mil. O título de Pirandello ronda as noites de quem se impõe a tarefa, desde o início condenada ao fracasso, de traduzir e dar unidade a todos os muitos que algum outro foi. Escrever sobre Caio Fernando Abreu, camaleão, estrangeiro, inquieto, não foi a exceção da regra. Ele foi milhares. O Caio obsessivo com o lado escuro de todas as coisas, mas apaixonado pela vida, sempre em busca da luz, das flores, da leveza. O Caio simpático com os outsiders, com quem, curioso e temerário, gostava de andar no limite, nas noites mais perigosas, mas nunca a ponto de se perder, nunca a ponto de perder o caminho de volta, que marcava, como João e Maria da fábula, não com pedacinhos de pão ou pedrinhas, mas com seus textos, a literatura. O Caio que usava as palavras como arma de sobrevivência quando batia a depressão, a vontade de ficar sozinho, o desespero. O Caio do equilíbrio sempre além do comum, do banal, que alternava fases macrobióticas com costelas gordas, chás medicinais com whisky, cigarro com jardins e flores, sempre flores. Avencas, rosas, girassóis. O Caio F, apaixonado sempre, de uma fidelidade canina com os amigos, de um humor implacável e ácido, do qual ele mesmo era um dos principais objetos. O Caio inclassificável, que se recusava a fazer parte de movimentos, filosofias e seitas, mas que passeava e pairava por todas elas. O amigo difícil de conviver, fácil de amar; o escritor admirado e cheio de seguidores. O Caio erudito, o Caio pop, o Caio filosófico, o Caio abobrinha, o Caio deprimido. Com todos esses tive que lidar, e também com seus órfãos, herdeiros e viúvas, todos aqueles que ficaram carentes quando ele se foi, de aids, em 1996.

Muitos não queriam falar, dar entrevista. Tinham ciúme e zelo de tocar em memórias tão delicadas. Costuma ser assim, em uma tentativa como essa, de retrato; sempre algo fica de fora da moldura, oculto pela linha fina, reservado para poucos olhos. Muitos, pelo contrário, queriam dividir sua visão do Caio, suas memórias. Achavam quase egoísmo

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deixar a beleza de anedotas e palavras para trás, queriam que o mundo conhecesse o homem por trás do texto, e que homem extraordinário era esse!, pensavam. Não há razão mais certa que a outra, e a todos agradeço a colaboração, a boa vontade, a delicadeza em retornar meus pedidos insistentes. Cansa forçar a memória, buscar fatos muitas vezes esquecidos num cantinho das lembranças. Cansa reviver momentos tristes e a partida de alguém que se amou.

Por trás de depoimentos e histórias que marcaram, por trás de frases ditas e registradas em cartas, através de contos e romances, emergia aquilo que eu buscava, como o personagem de Pirandello: a unidade. Fui achando que entendia Caio, me sentindo íntima dele. Sobre o que conversaríamos se ele estivesse aqui? Sobre a infância em Santiago, a adolescência em Porto Alegre. A vida adulta em São Paulo, no Rio. A triste e heróica caminhada para o fim, em meio a suas rosas e a sua família. Sim, teríamos sobre o que falar. Fiz algumas descobertas sobre esse jardineiro-escritor marcante e apaixonado, personagem e autor da própria vida. Se a importância como escritor era flagrante desde o início, a importância como filho, amigo, jornalista e personalidade foi surgindo devagar, aparecendo como em uma revelação fotográfica. Apesar dos tantos traços, do contorno esboçado, faltam ainda detalhes. É que esse relato não se pretende definitivo, uma biografia exaustiva. Antes é um perfil, um recorte dessas milhares de faces. Ainda há muito a dizer sobre Caio Fernando Abreu. Muita gente para prosear a respeito, muitos arquivos a revirar, muitas fotografias para nos fazer lembrar. Mais cem mil para serem estudados. Partindo daqui, dá para ir apreciando o caminho, cada nova nuance, detalhe. Pois o ponto de chegada não existe. Por definição, é imperfeito.

Jeanne Callegari

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As cartas de Caio citadas no livro foram extraídas de Caio Fernando Abreu — Cartas, organizado por ítalo Moriconi e publicado pela editora Aeroplano em 2002. A carta de Manuel Abreu para o filho Zaél nunca foi publicada, faz parte do acervo da família e foi gentilmente cedida por ela, assim como algumas das cartas de Vera Antoun e os postais de Pedro Paulo de Sena Madureira.

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PRÓLOGO

— Caio, você vai fazer isso comigo? Se você se matar, as coisas vão se complicar para mim, que estou aqui com você — grita Gil Veloso.

Ele está ao lado da janela do andar de cima do duplex de um flat na Frei Caneca, em São Paulo. Ele argumentava com o escritor Caio Fernando Abreu, que se aproximava da janela e a abria, pela segunda vez naquela noite, com a vaga intenção de se jogar. Há três dias, o escritor tinha descoberto que era portador do vírus da aids. Para evitar que Caio fizesse uma besteira, o amigo Gil conversava, argumentando que se ele se jogasse lá embaixo, a situação poderia complicar para o seu lado, que estava junto no apartamento. Gil sabia que Caio o queria bem: não faria nada que pudesse prejudicar o amigo. Além disso, Caio não era um suicida; menosprezava e era contra as pessoas que tinham a indelicadeza de se matar, deixando os amigos morrendo de saudades do lado de cá. A reação era, apenas, um reflexo da febre.

O ano era 1994. Aos 45 anos, Caio Fernando Abreu era um escritor consagrado, ganhador de dois prêmios Jabuti, traduzido na França, Alemanha, Inglaterra, Itália e Holanda. Era também autor premiado de teatro. Como jornalista, tinha integrado a primeira equipe de reportagem da Veja, e depois disso passara por vários veículos, como IstoE, O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, Nova, POP, Zero Hora, Gallery Around, Leia Livros, Correio da Manhã. Viveu com intensidade as décadas de 1970 e 1980 e, por ter retratado tão bem experiências e emoções de sua época, era considerado ícone de uma geração.

Mas Gil Veloso não pensava em nada disso quando foi socorrê-lo no flat, naquela segunda-feira. Outras pessoas haviam passado por lá: no final da tarde, Déa Martins e Gil se encontraram no elevador. Caio ligara para os dois, pedira para que levassem água, e ambos chegaram com garrafas na mão. Subiram, viram que Caio não estava bem, conversaram sobre a situação, se seria melhor interná-lo ou não, e

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combinaram de ir se falando. Déa foi embora e Gil ficou cuidando do Caio.

O escritor passara os últimos três dias ligando para os amigos, contando que estava com aids, dando a notícia. Estava recluso, como se digerisse a situação. Depois, ele diria que sua primeira reação foi de naturalidade, como se já esperasse: a doença o rondava fazia pelo menos dez anos, quando, em 1983, começaram a aparecer os primeiros casos no Brasil. Não eram poucos os amigos que Caio tinha perdido para a aids: Vicente Pereira, Luiz Roberto Galizia, Paulo Yutaka, Lory Finocchiaro, Cazuza. Agora era a sua vez, e parecia natural que assim fosse.

Mas, depois do fim de semana aparentemente sensato, algo mudou: ele finalmente pareceu assimilar, com toda a força, o que estava acontecendo. Aids! Estou com aids, pensou Caio. Aids, doença, morte. Não era mais ficção; agora era de verdade. Fim da linha. Então veio a febre, e ele não se lembrava de mais nada.

Estava muito fraco, não queria comer. Recitou coisas sem sentido, delirou, teve alucinações. Gil, que estava com ele, entrou no jogo, fingia estar vendo as borboletas imaginárias, para assim tentar trazer o doente de volta à realidade. Mesmo assim, continuavam os delírios, os sem-sentidos que dizia. Gil decidiu ligar para uma médica. Na primeira vez que desceu as escadas para alcançar o telefone, ouviu a janela se abrindo. Correu e pegou Caio, que se aproximava do parapeito. Deu um grito.

Assustado, Caio paralisou; como uma criança, olhou para Gil e compreendeu o absurdo do gesto. Gil ficou conversando, acalmando o amigo até que pudesse descer novamente e pedir ajuda. Da segunda vez, conseguiu telefonar para alguns amigos e para a médica antes que Caio abrisse novamente a janela e ele precisasse argumentar para evitar novas tentativas. Não houve jeito senão chamar uma ambulância e levá-lo para o hospital Emílio Ribas. Eram mais ou menos onze da noite. A essa altura, Caio estava já completamente nu, e

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quem o vestiu e o colocou na ambulância foi Gil, pois os enfermeiros tinham medo da contaminação. No hospital, não havia leitos. Caio ficou em uma maca enquanto aguardava que um quarto vagasse. Gil já havia ligado para Déa, que também estava ali.

No dia seguinte, Caio já estava em um quarto. Não se lembrava de absolutamente nada. Os amigos foram visitá-lo e sua irmã Cláudia chegou de Porto Alegre. O médico disse a ele:

— Você precisa agora é de qualidade de vida. Era tempo de Caio realizar um sonho: voltar ao Rio

Grande do Sul. Voltar a Porto Alegre, para a casa dos pais. Plantar roseiras, ter uma vida tranqüila. Voltar às raízes. Afinal, tinha sido no Rio Grande do Sul que tudo tinha começado.

UM

É a década de 1940 em Santiago do Boqueirão, pequena cidade ao sul do Brasil. O comerciante Manuel Abreu, nascido em 1887, senta-se para escrever uma carta ao filho Zaél, de 24 anos. Tendo escolhido a carreira militar, Zaél fora morar em Itaqui, transferido junto com o primeiro batalhão destacado para operar na cidade. O rapaz, normalmente tranqüilo, tinha passado por uma fase boêmia, de bebedeiras e namoricos. Coisa da idade, do contato com colegas farristas, amigos do copo e de mulheres bonitas. Por isso, quando, no final de 1945, seu Manuel recebe uma carta do filho pedindo autorização para se casar, ele não nega, por dois motivos. Primeiro, porque Zaél já era homem feito, emancipado e, portanto, único responsável por seus atos. Segundo, porque, mesmo sem conhecer a moça em questão, que também morava em Itaqui, seu Manuel acreditava que o

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casamento seria uma boa maneira de tranqüilizar a vida de Zaél. No dia 15 de dezembro, o pai responde à carta, dando seu consentimento para a cerimônia, dizendo que, com boa vontade e energia, seria possível controlar a vida desregrada que o filho levara até ali.

A carta; trazia também recomendações para que Zaél economizasse dinheiro a fim de poder se casar o mais rápido possível, "porque não é lícito também ficares noivo indefinida-mente, prejudicando o futuro de uma filha alheia". No mais, Manuel esperava que as qualidades da noiva de Zaél se confirmassem, e que ambos fossem dignos um do outro. Aproveitando para agradecer o lindo vidro de azeite que Ota-cílio e Jurema haviam mandado, ele termina a carta, com "saudades e abraços de todos, do teu pai e amigo, Manuel Abreu".

Dois anos depois, Zaél Menezes Abreu e Nair Ferreira Loureiro se casaram. E Manuel deve ter gostado da nora que aprovara mesmo antes de conhecer. Nair era mulher forte, decidida. Era ela que, com pulso firme e determinação, comandava a casa. Depois da entrada dela na vida de Zaél, o jovem sossegou. Seria sempre conhecido como homem afável, tranqüilo.

Zaél e Nair se conheceram em Itaqui, onde ela nascera. Localizada na fronteira com a Argentina, Itaqui tinha pouco mais de 18 mil habitantes na época e a base de sua economia era agropecuária. A família de Nair era das mais distintas: Alcina Alves Ferreira, mãe dela, era prima de Rodrigues Alves, o presidente. Eram descendentes de portugueses, provavel-mente cristãos-novos. "Por causa dos narizes", brincaria anos mais tarde uma das netas de dona Alcina.

Quando Nair era pequena, porém, a situação financeira da família ficou complicada: com a morte do pai, a mãe começou a costurar para fora para pagar as contas e, assim, poder mandar as crianças para a escola. Nair insistia em estudar: viria a ser professora. Assim, foi a única dos sete filhos a cursar faculdade. Das outras meninas, três se tornaram donas de casa. Válter, um dos rapazes, se tornou

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delegado de polícia, e o outro, Marciano, jogador de futebol — chegou a fazer parte do Botafogo do Rio de Janeiro. A única que também se tornou professora, como Nair, foi sua irmã Flora.

Aos 16 anos, Nair se formou na Escola Normal: ser professora era uma das únicas profissões possíveis para uma mulher naqueles tempos. Aos 17, ela se mudou para uma fazenda em São Borja — a cidade dos presidentes Getúlio Vargas e João Goulart — para dar aulas para os filhos de um rico fazendeiro. Um a um, os três garotos viriam, anos depois, a se tornar prefeitos de São Borja.

Depois da fazenda, Nair foi para outra das pequenas cidades da região dar aula em uma escolinha, e assim foi até que conheceu Zaél, em Itaqui. Provavelmente, o encontro se deu em algum dos bailes, freqüentes na época, ou na hora do footing, na Praça Central. As mulheres andavam para um lado e os homens, para o outro. Na troca de olhares, paixões nasciam e morriam. Quando Nair conheceu Zaél, ele usava um enorme anel de ouro, com um Z gravado. Ela perguntou o que significava aquela inicial. Zaél odiava profundamente o próprio nome, que, assim como o de sua irmã Elza, fora inventado a partir de partes do nome de seus pais (ManuEL e AdeliZA). Resmungava sempre algo sobre isso, contrariado. Todo mundo confundia: Ismael, Israel; era difícil achar quem acertasse. Portanto, quando Nair perguntou o significado do Z, ele não teve dúvidas e disse: Zeferino. A confusão foi desfeita, mas a anedota ficou na memória da família.

Uma noite, enquanto ainda eram noivos, Zaél discutiu com Nair. Mais tarde, ela iria a um baile no Clube Comercial de Itaqui, e ele queria porque queria entrar na festa para buscá-la. Estava bêbado. Queria entrar fardado e a cavalo no clube, mas os amigos do quartel o amarraram na cama, e ele não pôde sair. Depois de casado, Zaél sossegou. Seu humor, no entanto, permaneceria o mesmo: embora calado, de vez em quando soltava tiradas mordazes e engraçadas.

Assim que se casaram — sem festa, pois não havia dinheiro para isso — Zaél foi transferido para Santiago e Nair

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arrumou um emprego como professora em uma escola local. Santiago do Boqueirão, antiga São Tiago das Missões, perto da fronteira com a Argentina, no Rio Grande do Sul, se destacava das outras pequenas cidades da região. Não pelo tamanho ou pela prosperidade, ou pelas belezas, que certamente possuía, mas pela quantidade de quartéis. Santiago era polvilhada de quartéis, e a maioria dos homens que ali moravam era militar. Sorte das mocinhas, que gostavam de namorar homens fardados. Achavam bonito.

Nem só de quartéis viveu Santiago, no entanto: houve um sambista, Túlio Piva, autor do sucesso de verão Tem que ser mulata, regravado em inúmeras línguas. Lá nasceu também o cartunista Santiago, que, batizado Neltair Rebés Abreu, tirou o apelido da cidade em que nasceu. O pai de Neltair era primo-irmão de Zaél. E, em um país apaixonado por futebol, também havia de existir um jogador vindo de Santiago: Anderson Polga. Houve, também, pelo menos um herói. Em 1936 — dois anos antes de Santiago ser oficial-mente promovida a "cidade" — o juiz eleitoral Moysés Vianna morreu abraçado a uma urna eleitoral, enquanto era cravejado de balas. Por defender a lisura da eleição naquela localidade com a própria vida, o heróico juiz virou medalha: a "Medalha do Mérito Eleitoral Moysés Vianna", concedida a todos aqueles que se destacassem pela atuação em matéria de Direito ou Justiça Eleitoral.

Assim era Santiago, em 1948, quando Nair ficou grávida do primeiro filho: uma terra predominantemente militar, com seus heróis e mártires, seus costumes e lendas, como qualquer outra cidade. Santiago viria a ser a inspiração para Caio criar o Passo da Guanxuma, uma cidade fictícia, à maneira da Macondo de Garcia Márquez e da Santa Maria de Juan Carlos Onetti. O Passo aparece em vários contos de Caio, e ele ambicionava um dia escrever um grande romance sobre a cidade. Embora o texto inteiro jamais tenha sido feito, o capítulo introdutório aparece em Ovelhas negras, coletânea lançada no fim da vida do escritor.

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"Isso é o que se conta, o que se diz, o que se vê e não se vê, mas se imagina do Passo. De tudo, o mais real, salpicadas entre as quatro patas da aranha — no meio dos girassóis do leste, à beira dos lajeados ao sul, pelos descampados do norte e até mesmo entre os vãos mais sombrios das areias a oeste — o que mais tem em qualquer tempo de seca ou aguaceiro, calorão ou friagem, são touceiras espessas de guanxuma. [...]... de dois males jamais sofreu, sofre ou sofrerá o Passo. De distúrbios estomacais, que chá de guanxuma é tiro e queda, nem de pó acumulado, que os ramos servem pra fazer vassouras capazes de assentar até mesmo a poeira daquele deserto próximo que sopra e sopra noite e dia sem parar e, dizem, dizem tanto, ai como dizem nesse Passo, nunca pára de crescer."

Eram oito e quinze da manhã do dia 12 de setembro de

1948. Na rua Pinheiro Machado, 575, Nair de Abreu acabava de dar à luz pela primeira vez. As parteiras Julia Jacques e dona Alcina, mãe de Nair, confirmavam: é um menino. E um menino bem grande: Caio Fernando Loureiro de Abreu nasceu pesando notáveis quatro quilos. No álbum do bebê, algum tempo depois, o pai, Zaél, anotaria, sobre os cabelos da criança: "apesar de escassos, nota-se que serão castanhos". Esse é o bebê Caio: cútis branca, olhos pretos, sem sinais particulares e "muito quietinho, quase não incomoda".

Caio seria o único dos cinco filhos de Nair a ter um álbum de bebê. Ainda assim, não todo completo: seu Zaél, que o preenchia, nem sempre tinha paciência de escrever tudo que acontecia. Assim, por exemplo, está anotado, no primeiro aniversário de Caio, na seção presentes: "Ganhou muitos presentes. O papai não vai enumerá-los por ser muito longo e estar com preguiça de escrever."

Em 1954, morre Getúlio Vargas. O falecido presidente era natural de São Borja, como o pai de Caio, que, com o passar dos anos, se tornara getulista convicto. Lia tudo que saía sobre Getúlio nos jornais e tinha uma foto dele

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pendurada na parede. Quando ele morreu, Zaél ficou arrasado. Mas, se na política as coisas iam mal, em casa Zaél só tinha motivos para alegrias. Desde muito pequeno, o menino Caio demonstrava uma inclinação para a arte que viria a desenvolver mais tarde, na sua trajetória de escritor. Com seis anos, o menino, já muito magro e muito alto, como seria a vida toda, de sobrancelhas grossas e bem desenhadas, escreve seu primeiro texto, a história em quadrinhos de Lili Terremoto, uma menina louquinha que queria fugir de casa. Desde então, o garoto continuou escrevendo e criando.

O ambiente da casa dos pais era propício para isso: Zaél, homem sofisticado, de muita cultura, estava sempre com um livro na mão. As coleções completas de Érico Veríssimo, Machado de Assis, do escritor de aventuras Karl May — um alemão cujas histórias se passavam no faroeste norte-americano, embora ele mesmo nunca tivesse deixado seu país — enfeitavam as prateleiras da casa. Sendo professora, a mãe, D. Nair, também instigava os filhos a aprender. Nenhuma leitura era proibida em sua casa: de gibis de aventuras e revistas como O Cruzeiro, que eles assinavam, a livros de Monteiro Lobato e a coleção chamada O mundo da criança, as crianças podiam ler tudo. O colega Ruy Krebs, que seria um dos melhores amiguinhos do Caio a partir do primeiro ano ginasial, quando estudaram na mesma turma, dividia a paixão por livros, e não era só ele. Luiz Carlos Moura, o Beco (pronuncia-se Beco), vizinho e primo dos Abreu, grande amigo do Gringo, irmão de Caio, lia muitas coisas quando ia visitar a casa deles, pois seu pai era comunista e, em sua casa, só havia livros ideológicos.

De vez em quando, quando Caio tinha uns sete anos, ele, Beco e Gringo brincavam de deserto, ou oásis, como Caio chamou a brincadeira anos depois, em um conto do livro O ovo apunhalado. O quartel no fim da rua era o oásis: na frente da casa dos Abreu era onde o avião dos três garotos tinha caído. Eles tinham que atravessar todo o deserto — o espaço entre a casa e o quartel — e conseguir víveres e peças para consertar o avião. Aos poucos, iam faltando as coisas:

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água, comida. Em poucos quarteirões, os meninos estavam cansados, suados, de cabeça baixa. Tinham que sentir, fingir que era tudo verdade, atuar. E conseguiam. Quase sempre só os três: a maioria dos outros garotos não conseguia ir até o final. O único que às vezes participava da brincadeira era o negrinho Jorge, filho de camponeses, que de vez em quando aparecia por lá.

Na casa dos Abreu havia sempre uma empregada doméstica. Naquela época, os empregados dormiam em casa. Uma delas era também Nair, a Nairzinha, tratada com carinho pelos pais de Caio. Quando a moça se casou, D. Nair ajudou a fazer o enxoval. Houve também a Etelvina, pobre Etelvina! Certa vez, Caio resolveu brincar de circo. Montou toda a estrutura no galpão de casa. Armaram no teto um trapézio, e a Etelvina tinha que balançar pra lá e pra cá. Em um desses balanços, a pobre caiu de cabeça no chão. Não se machucou, apesar do tombo feio. Anos depois, Caio morreria de rir sempre que se lembrasse dessa história. São duas da tarde. As crianças chegaram da escola. Ruy e Beco vão para a casa dos Abreu brincar. E os irmãos Abreu, Caio, então com dez anos, e Gringo, são os que gostam de brincar brincadeiras mais parecidas com as de que eles mesmos gostam. Nada de jogar futebol ou vôlei: quando brincam de bola, são jogos que eles mesmos inventam, assim como inventam as brincadeiras de fantoche e de deserto. Como a turma gostava muito dos circos e teatros mambembes que de vez em quando passavam pela cidade, decidiram, certa vez, fazer um teatro. A sede era a garagem da casa do Sales Horácio, colega dos meninos. A noite, a turma percorria as obras em construção atrás dos sacos que embalavam o cimento para fazer os cenários. Cobertores velhos faziam as vezes de cortinas. Ruy se lembra de que, por incrível que pareça, quem fazia os roteiros das peças que encenavam era ele, e não o Caio.

Certa vez, decidiram fazer um teatrinho de fantoches. Caio encontra uma receita de massa para fantoches na antiga Revista do Globo, de Porto Alegre, escrita por Glênio

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Bianchetti, que depois se tornaria artista plástico famoso. Eles fabricam os bonequinhos, as cabecinhas de papel machê, e inventam historinhas para as peças. De vez em quando, faziam também teatrinhos de sombra. Não dava para imaginar que, anos e anos depois, Caio viria a escrever de verdade para o teatro. Faria suas próprias peças, adaptaria textos de outros escritores, chegaria mesmo a pisar no palco como ator, em Porto Alegre. Mas isso seria muito tempo depois. Por agora, são meados dos anos 50, a cidade é Santiago, não há asfalto nas ruas, o fornecimento de luz elétrica é intermitente e não há qualquer preocupação na cabeça das crianças, a não ser brincar. Caio, às vezes, olha pela janela do quarto, sente o cheiro profundo de jasmins que vem do jardim lá fora — o cheiro era tão forte que às vezes a mãe sentia tonturas — e vê a casa da frente.

Uma casinha de madeira, escondida por plantas, um coqueiro. Oracy Dornelles, poeta, mora ali, em companhia da mãe. Da janela dele, escoava o som de música clássica. Era um som novo para Caio. Que seria?, ele se perguntaria mais tarde. Beethoven? Wagner? Caio dizia para Ruy que Oracy conversava com as estrelas, porque tinha um telescópio para observar o céu. Sem nunca ter trocado uma palavra com Oracy, sentia com ele uma identificação. Era um poeta, diziam. E assim Caio descobriu que os poetas existiam. Em carta escrita a Oracy, muito tempo depois, nos anos 80, Caio se lembraria da afinidade que sentira pelo vizinho, mesmo sem nunca ter conversado com ele. 'Nunca nos falamos, praticamente, nunca nos olhamos. Ficou só aquela vibração de silêncio, muito forte. Numa cidadezinha perdida, dois malditos que se reconhecem sem que seja necessário sequer falar sobre isso. Uma cumplicidade muda, e tão secreta que, penso, talvez você nunca tenha percebido. Na minha memória — já tão congestionada — e no meu coração — tão cheio de marcas e poços — você ocupa um dos lugares mais bonitos. "A carta foi incluída no livro O que importa em Oracy, organizado por Fátima Friedriczewski, Froilan Oliveira e Júlio César Prates. Além dos textos, Oracy fez pinturas e esculturas em fios de

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cabelo e grãos de areia, e ficaria famoso pelo circo de pulgas que mantinha. Anos mais tarde, ele esclareceria: era Beethoven o som que Caio ouvia pela janela. Fã ardoroso do alemão, Oracy foi um dos fundadores do Clube de Beethoven, em que os membros se reuniam para ouvir concertos do compositor — nas noites de gala, vestidos a rigor.

No outro dia, de tarde, as crianças se reúnem de novo para brincar. Enquanto Beco e Gringo jogam xadrez — Beco seria campeão amador da modalidade, quando crescesse —, Caio e Ruy pegam cartolina e tinta nanquim. Caio desenha as misses de maio, uma para cada estado do Brasil: miss Rio Grande do Sul, miss Minas Gerais, miss São Paulo. Ruy pinta as modelos e desenha os trajes típicos. Depois de meses de trabalho, uma a uma, lado a lado, as vinte e poucas bonequinhas vão surgindo no papel, as medidas inventadas, os nomes, as roupinhas, tudo. Que nem aquelas que vinham com as fotografias na revista O Cruzeiro, com a diferença de que aquelas eram reais e essas, inventadas, desenhadas, pequeninas. Depois que estão prontas, Caio e Ruy chamam Gringo e Beco. Os dois estão convocados: é hora do desfile das misses, e eles vão ser os jurados. Mesmo que não estivessem muito interessados, afinal Caio tinha esse jeito de impor sua vontade na hora das brincadeiras, e acabava sempre conseguindo o que queria.

Um divertimento que todos adoravam era ir ao cinema. Quando as crianças eram mais novas, só podiam entrar no cinema na matinê de domingo, ou na sessão seguinte, às quatro da tarde. Havia apenas uma sala de projeção na cidade, o Cinema Imperial, e os meninos esperavam ansiosos o dia de assistir aos "filmes de mocinho".

Beco sai de casa. Pega seu boneco do "mocinho" e se encontra com Caio e Gringo, que também estão com seus bonequinhos. Vão ao cinema, que está lotado. Começa o filme. Em determinada hora, o mocinho começa a perseguir o bandido. E a senha para a comoção geral: o pessoal todo do cinema começa a bater os pés no chão, fazendo uma algazarra, aos berros:

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— Aí, mocinho! Aí, mocinho! Caio, Gringo e Beco também gritam e batem os pés, ao

mesmo tempo em que sacodem no ar seus bonequinhos de mocinho. Era uma festa. Quando Caio cresce e seu companheiro passa a ser Ruy, eles já podem ir ao cinema quase todos os dias, com exceção dos filmes censurados para menores. De tanto irem ao cinema, inventaram passatempos relacionados, como concursos de desenhos para os cartazes dos filmes da semana. Ruy e Caio desenhavam os cartazes e, assim como no concurso de misses, os jurados eram o Gringo, o Beco e a empregada da casa do Caio.

Uma vez, tiveram a idéia de fazer um alfabeto duplo, usando as iniciais dos nomes de artistas. Por exemplo, AA era Antônio Aguilar, um nome que acharam no elenco de filmes mexicanos; BB era Brigitte Bardot, CC, Claudia Cardinale, DD, Doris Day e Diana Dors. KK era Kay Kendall, MM, Marilyn Monroe e assim por diante. O problema surgiu quando chegaram as letras YeW: onde encontrar um nome cujas iniciais fossem essas letras dobradas? A questão obrigava os meninos a levar caderno e lápis para o cinema, para anotar caso aparecesse um YY ou WW.

Caio e Ruy se consideravam os melhores desenhistas da turma. Um dia, porém, viram os desenhos de outro menino, e se espantaram. Os desenhos do Neltair, por acaso, primo de Caio, eram feitos com lascas de telha ou tijolo na calçada, feita de lajes de pedra, como a maioria na cidade. Caio e Ruy se impressionavam, principalmente, com os gladiadores greco-romanos, pois assistiam a muitos filmes épicos e bíblicos no cinema. Os dois passavam na calçada só para olhar os desenhos. O julgamento artístico dos meninos era bom. Afinal, Neltair cresceria, adotaria a alcunha de Santiago, em homenagem à cidade, e seria cartunista famoso, dos bons.

No verão, as famílias gostavam de acampar na beira dos rios. Havia uma praia muito bonita no distrito de Ernesto Alves, perto de Santiago, e também a praia de Jaguari, cidade vizinha. Dessas praias, Caio pode ter tirado a descrição da

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praia do conto Uma praiazinha de areia bem clara, ali, na beira da sanga, do livro Os dragões não conhecem o paraíso. As praias e fazendas próximas, de amigos e parentes, forneciam um contato com a natureza de que, anos mais tarde, morando nas metrópoles acinzentadas e sem verde, Caio sentiria falta.

O verde estava presente em muitas brincadeiras, como quando os garotos passavam o dia no enorme quintal da casa dos Abreu, onde havia todo tipo de árvore frutífera: bergamoteiras, pitangueiras, goiabeiras. Podiam passar a tarde chupando bergamotas ou brincando na casinha que Caio improvisara com uns compensados de madeira da embalagem de uma geladeira que haviam comprado. A idéia era que fosse um lugar só deles, um pouco inspirado no Clube do Bolinha e da Luluzinha. Na casinha, guardavam os brinquedos, os gibis, os fantoches.

Houve uma brincadeira, no entanto, que D. Nair proibiu os filhos de fazer. A brincadeira, assim como seu nome, foi inventada por Caio: bailu. Os garotos subiam na cama, jogavam cobertores sobre as cabeças, de modo a não enxergarem nada, e começavam a pular. Pulavam, pulavam, até cair no chão. Apesar de divertido, era muito perigoso, e a mãe, que comandava a casa, não permitiu mais que os garotos brincassem desse jeito.

Havia sempre um cachorrinho pela casa, ou algum outro bicho. Certa vez, alguém trouxe duas corujas. Era uma novidade, um acontecimento. Caio escreveu sobre isso no conto Corujas, de seu primeiro livro de contos, Inventário do irremediável:

Chamá-las de alguma coisa seria dar um passo no caminho de seu conhecimento, como se sutilmente as fosse amoldando à minha maneira de desejá-las. Finalmente achei. Eram nomes de criaturas estranhas, indecifráveis como elas, já perdidas no tempo, misteriosas até hoje. Rasputin e Cassandra. Calei a descoberta, ocultei o batizado, apropriando-me cada vez mais de sua natureza, embora inconscientemente soubesse da inutilidade de tudo.

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Mas nem tudo era brincadeira. O jeito de Caio sempre fora um pouco diferente; desde pequeno, tinha traços ambíguos, não gostava de futebol, preferia desenhar, escrever. A sociedade santiaguense da época não estava preparada. O primo Neltair, que viria a se tornar o cartunista Santiago, se lembra do preconceito contra o menino Caio na escola, onde, certa feita, alguém fez em um jornal-mural uma caricatura do futuro escritor, aludindo à sua pretensa homossexualidade. Era a época dos comentários maldosos, velados.

Caio tem oito anos. Está na aula de Educação Física. O professor, que também dá aula de Matemática, é o Capitão Pely, casado com a irmã do pai de Caio, Elza. O capitão vivia implicando com ele, talvez por ser cunhado de Zaél e se sentir na obrigação de despertar no aluno um comportamento viril, másculo. Os alunos têm que subir em uma tábua suspensa, comprida e estreita.

A subida era pelas laterais, que ficavam em um plano inclinado. A maioria dos meninos sobe; Caio não. Ele tem medo. O capitão insiste para com que Caio suba, debocha do menino, o chama de cagão. Sempre esse professor pegando no pé, implicando, exigindo. Os outros meninos, que conse-guem subir, riem da cara do Caio, que não consegue.

E outro dia. Caio está no Círculo Militar, um clube da cidade. Tem quadra de tênis, de patinação, balanços. De vez em quando, passavam umas projeções de filmes, e os meninos iam lá: Santiago; o irmão de Santiago, Luiz Abreu, colega de Caio na 4a série; Caio. Um dia, o futuro escritor se senta no balanço. Outro menino, também chamado Caio, vem empurrar. Sabendo que Caio, o Abreu, era mais frágil, o outro menino começa a empurrar com força, cada vez com mais força.

— Caio, não balança que eu caio! — berrava o Caio Abreu lá do alto, apavorado. Anos depois, o tímido e retraído Caio aprenderia a lidar com essas situações e seria mais enfrentativo. Chegaria mesmo a se envolver em brigas. Afinal, embora não fosse bom nos esportes, era competitivo: sempre

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representava o colégio nas disputas de conhecimento sobre Geografia e História.

Cerca de dois anos após o nascimento de Gringo, D. Nair teve mais um filho. Esse, porém, morreu logo após o nascimento. Anos depois, em 1957, nasceu Luiz Felipe, que cresceu saudável. E sapeca.

Luiz Felipe adorava provocar Caio. Sabendo que o irmão mais velho odiava cebolas, não podia nem vê-las, nem sentir seu cheiro, nada, Felipe pegava algumas e arremessava nele. Caio ficava furioso: mais alto, mais velho, alcançava Felipe e batia, batia nele, mas o castigo não conseguia fazer com que o mais novo parasse. Valia a pena apanhar um pouquinho para ver a cara do irmão furioso.

Mesmo com os garotos crescidos, as peças que Felipe e Caio costumavam pregar um no outro continuaram. Caio adorava assustar as pessoas: talvez por tédio, por falta do que fazer, quando ele estava em casa sempre pegava as pessoas de surpresa pelos corredores e arrancava gritos de todo mundo. Uma vez, quando as irmãs caçulas Márcia e Cláudia já eram grandes, foram todos veranear na praia, na casa da família, em Tramandaí. Era noite; quase todo mundo dormia, menos o Caio, que ficava acordado até tarde escrevendo. Em dado momento, ele saiu do quarto, desceu as escadas e foi até a cozinha pegar um copo de leite. Felipe, que acordara com a movimentação do irmão, escondeu-se no vão da escada e esperou. Quando Caio voltou com um copo de leite e um prato de bolachinhas, Felipe não disse nada: simplesmente estendeu os braços e colocou as mãos em cima das costas do irmão, como se fosse um fantasma ou aparição. O grito de Caio, apavoradíssimo, acordou todo mundo na casa, ao mesmo tempo em que leite, copo e bolachinhas voavam para todos os lados.

A década de 50 está terminando. Márcia nasce em 1960, Cláudia, em 1961. Por essa época, a família Abreu tem uma posição distinta na sociedade santiaguense. Não eram ricos, mas tinham algum prestígio. Zaél era integrante da maçonaria, e D. Nair estava sempre cotada entre as dez mais

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elegantes da cidade nos vários bailes e festas a que compareciam. Tanto ela quanto Zaél eram muito vaidosos, muito finos, muito "adequados". A carreira de militar e a situação de professora conferiam certa diferenciação social na época, e o casal era muito respeitado. Essa posição da família era estimada por Caio: uma vez, enfureceu-se com o irmão Gringo por ter entrado sem pagar no circo que estava na cidade. Gringo foi apanhado e expulso do lugar à vista de todos, inclusive de Caio e Beco, que foram assistir ao espetáculo de forma lícita. Caio brigou com Gringo por ter exposto o nome da família daquela maneira.

Pela via da arte, a notoriedade de Zaél e Nair se estenderia a Caio, o filho mais velho, que demonstrara uma personalidade forte e independente desde os primeiros anos. Aos 13 anos de idade, participou de um concurso literário na aula. A idéia do concurso era do professor Cavalcanti, figura importante nos primeiros anos do escritor: além de organizar os concursos literários, o professor promovia aos sábados as Horas de Leitura, em que os alunos liam textos e recitavam poemas, e criou os jornais-murais, aqueles mesmos em que Caio seria ironizado por colegas de outra turma, pois na sua ele e Ruy eram os responsáveis. Para o concurso, Caio encheu um caderno inteiro com o pequeno romance A maldição dos Saint-Marie. Venceu. As meninas faziam fila para ler, como se lembraria o escritor anos mais tarde, quando incluiu o texto na coletânea Ovelhas negras, pouco antes de morrer. "E evidente que a história cheia de clichês, influenciada por radionovelas, fotonovelas e melodramas mambembes do Circo-Teatro Serelepe, não presta, mas talvez possa render algumas risadas", escreve ele. Assim termina a história de Adriana e de seu envolvimento com os Saint-Marie, donos de um suntuoso castelo na França:

— Oh, George! — soluçou a moça. Como posso estar feliz? Não mereço o seu amor. O meu coração estava cheio de ódio por Fernando, eu só pensava em vingança. Você me perdoa?

Como resposta, o rapaz abraçou-a e deu-lhe um leve

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beijo nos lábios. Talvez agora eles possam ser felizes, a pérfida Amália não fará mal a mais ninguém.

A aurora já põe os dedos cor-de-rosa no puro azul do firma-mento. Contra o horizonte destaca-se a outrora mansão dos Saint-Marie, agora transformada em ruínas. Mais atrás vê-se a silhueta de dois jovens abraçados, parecendo uma promessa de esperança e fé no futuro.

Os meninos iam crescendo, começaram a aparecer as primeiras namoradinhas. Certa vez, Caio se apaixonou por uma menina muito bonita que morava perto de sua casa. Ela era aluna de D. Nair. Como prova de seu amor, Caio roubou uma prova de História e entregou para a garota. De alguma maneira, a mãe dele descobriu, e Beco presenciou a cena em que ela passava a maior bronca no filho primogênito. Beco se espantou: só naquele momento é que ele ficou sabendo que o amigo tinha uma queda pela garota.

O espanto acompanharia Caio pela vida afora. Incapaz de se condicionar a algum rótulo, ele seria não um, mas muitos: o Caio tímido da infância e da adolescência, o Caio enfrentativo e ousado da juventude, o Caio mais sereno e maduro do fim da vida. Para cada pessoa que o conheceu, um Caio diferente, às vezes oposto ao que outros se recordam.

Por isso é que, por exemplo, algumas das pessoas que conheceram o escritor mais tarde, quando já tinha sua homossexualidade estabelecida, se espantam de que tenha tido namoradas. A primeira delas foi Tânia, que morreu de leucemia aos 15 anos. Depois dela, foi a Iara Nicola, filha de D. Lenita, a precursora dos salões de beleza em Santiago, onde as senhoras iam fazer os penteados da época. A irmã mais nova de Iara, Valéria Nicola, e sua amiga Nádia Ahmad se lembram de como gostavam de escorregar nas longas pernas do Caio quando ele ia visitar Iara. As duas estavam sempre por perto a pedido de D. Lenita, que pedia que ficassem de olho no casal. Afinal, Caio, com seus cabelos compridos, era considerado avançado para a época. Depois de um tempo, ele mandava as meninas comprarem balas

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para namorar Iara, que acabaria por se casar com outro santiaguense, Luiz Carlos Fava, um oposto de Caio em todos os sentidos: esportista, másculo, jamais leria os livros do conterrâneo.

Com 15 anos, Caio muda-se para Porto Alegre para estudar no Instituto Porto Alegre (IPA). O colégio era caro e bom. Embora a mensalidade pesasse no orçamento dos Abreu, o filho queria, e D. Nair concordava, e até mesmo insistia, que ele tivesse a melhor educação possível. Afinal de contas, Caio tinha que seguir em frente. Ele queria conhecer novas coisas, novos lugares, e sabia que Santiago não poderia satisfazer seus anseios. Como escreveria depois em Limite branco, seu primeiro romance:

Eu gostaria de ir embora para uma cidade qualquer, bem longe daqui, onde ninguém me conhecesse, onde não me tratassem com consideração apenas por eu ser "o filho de fulano" ou "o neto de beltrano". Onde eu pudesse experimentar por mim mesmo as minhas asas para descobrir, enfim, se elas são realmente fortes como imagino. E se não forem, mesmo que quebrassem no primeiro vôo, mesmo que após um certo tempo eu voltasse derrotado, ferido, humilhado — mesmo assim restaria o consolo de ter descoberto que valho o que sou.

No internato, porém, as coisas não começam bem para o primogênito de D. Nair. Ele não se adapta, não consegue arrumar amigos, não entende as matérias. Caio fica doente e escreve uma carta medonha a seus pais, pedindo para irem buscá-lo. Diz que esteve na enfermaria, com febre e sozinho, e que tem vontade de morrer.

"[...] Cada passo que ouvia no corredor pensava que era a senhora chegando; cada riso de criança que vinha lá de fora eu julgava ser da Márcia ou da Cláudia. Confesso que tive vontade (e tenho) de morrer. [...]

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A senhora vai dizer que isso é normal, etc... Mas não é não! Os outros que chegaram junto comigo já estão adaptados.[...]

Há várias noites que não durmo e tenho pesadelos horríveis. Acho que até emagreci, ando sempre com olheiras e não como nada.[...]

Pelo amor de Deus, mãe, eu não agüento mais! Veja se a senhora dá um jeito! Isso aqui é um verdadeiro inferno. [...]

Por favor, mãezinha, não me deixe só! Responda logo. Agora é que descobri o quanto gosto disso daí. Gosto muito da senhora. Ajude-me!"

A carta dá a perceber uma faceta de Caio: o pendor para o dramático, a teatralidade, o exagero. E também a sua personalidade, de notórios altos e baixos. Após receber a carta, os pais alarmaram-se e Zaél foi buscar o filho em Porto Alegre, de carro. Na época, era tortuoso e demorado vencer a distância de mais ou menos 500 km que separa Santiago da capital. Quando Zaél chegou, Caio já estava muito melhor. A crise depressiva tinha passado, e ele acabou não voltando para Santiago. Depois de morar no internato do IPA, Caio vai para o Hotel Uruguay, no centro de Porto Alegre. Finalmente, muda-se para a pensão de uma viúva, D. Maria, que alugava quartos para estudantes. No ano seguinte à sua vinda, o amigo Ruy, de Santiago, e seu irmão Antônio também foram morar na pensão. Ruy passou a dividir o quarto com Caio, e Antônio com o Carlos Renato, irmão de Beco.

Por coincidência, morava no mesmo prédio o escritor Manoelito de Ornellas, que era amigo da família de Ruy, que, sempre muito extrovertido, foi logo se apresentando. Logo Manoelito conheceu também Caio e leu seus contos, que o impressionaram muito. A filha de Manoelito, espírita, enxergava uma aura azul ao redor do Caio, que começou a freqüentar o apartamento do escritor nessa época. Manoelito lhe deu muito apoio: apresentou outros escritores, como Érico Veríssimo. Foi por intermédio dele que Caio ingressaria no Jornalismo.

No ano seguinte, Caio publica seu primeiro conto em

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um veículo da grande circulação: O príncipe sapo, na revista Claudia. A publicação foi uma surpresa de Carmen da Silva, psicóloga e editora da seção A arte de ser mulher da Claudia, revista que inaugurou um novo estilo entre as revistas femininas da época. Ela e Caio se correspondiam há algum tempo e, quando ele enviou o conto para ver o que ela achava, ela nada respondeu: preferiu manter segredo até que a revista saísse.

O conto é sobre uma mulher, Teresa, única de uma longa fila de irmãs a não ter conseguido casar. Procurando consolo nos livros, Teresa se apaixona pela história do Príncipe Sapo. Decide procurá-lo nos homens que passam nas ruas, e acaba encontrando Francisco, um professor de piano. Ele está muito mais para sapo que para príncipe, mas ela tem esperanças: compra um piano e o convida para lhe dar aulas. O conto, nada feliz, já é sintomático dos primeiros textos de Caio, textos mais sombrios, tristes, depressivos.

No começo tinha nojo dele. O homenzinho apagado demais, humilde demais, sempre quieto, como consciente do desprezo que provocava, e por isso mesmo mais desprezível. Mas ao cair de uma tarde, Teresa surpreendeu-se a olhá-lo com pena, depois com compreensão, depois com simpatia, depois... Bem, noutro dia suas mãos tocaram-se rápidas sobre o teclado. Afastaram-se logo. A dele trêmula, nervosa; a dela hesitante; ambas, encabuladas. No dia seguinte buscaram-se discretamente, tocando-se como que por acaso, as quatro mãos. Uma semana mais tarde olharam-se nos olhos. Olhos fatigados, de gente quase velha, quase sem ilusões.

Em 1967, Caio entra para o curso de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Comemora o resultado na casa onde estava morando agora o amigo Ruy, que passara em Educação Física. Caio acabaria por trancar a matrícula e freqüentar o curso de Arte

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Dramática (CAD). Nessa época, sua melhor amiga é Maria Lídia Magliani, artista plástica. Ela e Caio formavam uma dupla e tanto: ele alto, branquelo e magricela, ela baixinha, negra, volta e meia com tinta nos cabelos ou nas mãos. Ambos vestidos de preto da cabeça aos pés. Não porque quisessem ser diferentes; havia uma dose de humor na postura existencialista dos dois, que estavam preocupados mesmo é em ser fiéis aos rumos que haviam escolhido. De vez em quando, andava com eles o futuro escritor João Gilberto Noll. Sentavam-se em um banco da praça em frente à universidade e conversavam sobre filmes, livros, discos. Nessa época, Noll ainda não sabia se escreveria prosa ou poesia, mas Caio, embora ainda se preocupasse em descobrir um estilo pessoal, que fosse só seu, parecia já ter definido desde muito cedo o que queria. Tanto que já tinha até escrito Limite branco, um romance de formação que só viria a ser publicado em 1971, e do qual Noll foi um dos primeiros leitores. Caio e Noll dividiam a paixão pelos livros: como não tinham dinheiro para comprá-los, aproveitavam para roubá-los na Feira do Livro de Porto Alegre, uma feira a céu aberto realizada em uma praça no centro da cidade. A confusão de livros e pessoas nas barracas facilita que espertinhos ou estudantes sem dinheiro embolsem exemplares sem que ninguém perceba.

Caio era leitor voraz desde menino, e começava a descobrir autores que viriam a marcá-lo por toda a vida, como Clarice Lispector. Era capaz de discutir literatura como gente grande. Embora tivesse apenas 18 anos quando escreveu Limite branco, o livro já continha muito do estilo que viria a caracterizar o escritor ao longo de sua carreira. O escritor explora sua própria angústia para dar densidade aos personagens, principalmente a Maurício, o adolescente em crise que protagoniza o texto. A descoberta do sexo, a morte, em sua forma mais perversa — o suicídio, a existência de Deus, o desejo de viver um grande amor, a busca de uma identidade e o homoerotismo: vários temas que reapareceriam depois na obra do escritor são tratados no livro, sob a ótica

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do adolescente. A história de Maurício tem vários pontos em comum com a de Caio. Ele tem uma amiga pintora, Marlene, que parece ter sido inspirada em Magliani, mas não podia ser, porque os dois se conheceram depois que o livro já estava pronto. O jovem do livro se muda para a capital, assim como Caio fez, ao ir estudar no IPA. A mãe de Maurício perde o bebê, como Nair perdera um dia.

A história se passa em meio ao turbulento final dos anos 60; como diz Caio, porém, em prefácio para a uma reedição, vinte e cinco anos depois, "o momento histórico em que se passa mal e mal aparece no livro: ele é intimista, voltado quase exclusivamente para dentro". Assim como os livros de Clarice, de Virgínia Woolf, de Hilda Hilst. Ele afirma ainda que foi quase impossível reler o livro, mas que, quando o fez, ficou chocado com a inocência do personagem.

Começou a caminhar em direção à mancha

esbranquiçada do casarão. Enquanto caminhava, descobriu que aquela cor era quase a mesma das pétalas. E do céu. As coisas brancas são sempre meio enxovalhadas, pensou, sentindo-se confusamente feliz. Parou, repetiu a frase ao inverso: as coisas enxovalhadas são sempre meio brancas. A casa crescia à medida que se aproximava. Ficava mais nítido o verde das janelas, definiam-se as roseiras em torno delas. De longe, as rosas pareciam palpitar com sua fartura, sua turgidez, sua beleza quase obscena.

A época era de ebulição cultural, comportamental e

política. Em plena ditadura militar, alguns jovens se reuniam para discutir um futuro melhor, usar drogas, comentar autores proibidos pelo regime, ouvir música; enfim, simples-mente, estar juntos. Por mais introspectivo que fosse, Caio não poderia fugir da época. Participa das discussões, experimenta drogas, deixa o cabelo crescer. Quando visita os pais em Santiago, há sempre pequenas polêmicas, discussões

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políticas; nessa hora, talvez os pais sentissem saudade do tempo em que queria apenas brincar de fantoches com os amigos ou insistia em ser o Papai Noel no Natal, mesmo que todo mundo o reconhecesse, muito magro e desajeitado, por trás das roupas vermelhas. O filhinho de D. Nair estava crescendo e, embora os pais não o proibissem de fazer nada, já se podia perceber alguns comportamentos, ainda incipientes, talvez, mas que viriam a caracterizar o escritor ao longo de sua vida: o enfrentamento, a busca de uma identidade, a vivência de experiências como busca de um significado maior na vida. E é desses conflitos e angústias que Caio tira material para Limite branco, assim como para muitos de seus primeiros contos.

Além da Magliani, que era a amiga mais próxima, Caio se aproximou bastante da turma do teatro da universidade. Tanto que acabaria entrando, anos depois, para o curso de Direção Teatral do Centro de Arte Dramática (CAD). Ele entrara nesse universo através de Irene Brietzke, que dava aula de inglês no Yázigi e tinha Caio como aluno. Irene o apresentara a toda a turma do teatro, um pessoal novo que seria importante para a renovação da arte no Rio Grande do Sul, com o grupo Província, que formariam em 1969. Um desses jovens era Luiz Arthur Nunes, futuro diretor teatral e um dos grandes amigos de Caio. Ele e o restante do grupo introduziram o escritor no universo do palco, nos autores, nas peças.

E Caio foi o responsável pelas emoções no aniversário de Luiz Arthur, em agosto de 1967. Luiz estava ensaiando uma peça no teatro da universidade quando chegam Caio e Magliani com o presente, o livro Tutaméia, de Guimarães Rosa. Estavam os dois no foyer quando um integrante do elenco passou e ofendeu Magliani, fez comentários racistas. Caio não pensou duas vezes e se jogou para cima dele. O tal rapaz, como aliás todos já desconfiavam, era informante da ditadura. Em pouco tempo, estava todo mundo na delegacia: Caio, Magliani, Luiz Arthur, todo o elenco da peça e o diretor do curso de Arte Dramática, Gerd Bornheim. Fizeram o

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boletim de ocorrência, mas, graças a um tio influente de Luiz Arthur, ex-vice-reitor da universidade, ninguém ficou preso. Por medo de represálias, Caio foi passar uns tempos com Luiz Arthur na casa dos pais dele. Umas duas semanas depois, quando achou que já dava para voltar para casa, foi pego na rua e levou uma surra.

Em 1967, a revista Realidade, da editora Abril, publicou um anúncio convocando os interessados a fazer os testes para participar de uma revista nova, a Veja, que começaria a circular no ano seguinte. Embora não fosse formado em Jornalismo, Caio participou do exaustivo processo de seleção, que incluía testes de conhecimento geral, de conhecimento específico, entrevista individual, entrevista conjunta com os outros candidatos. Vera Spolidoro, jornalista gaúcha, conheceu Caio na entrevista conjunta, depois de ambos passarem por todas as etapas.

O jornalista que entrevistava o grupo vinha de São Paulo, e parecia achar que Porto Alegre era uma província; Vera notou um certo ar de desdém em seu rosto. Quando perguntaram a ela qual fora a peça mais recente a que tinha assistido, ela respondeu Depois da queda, de Arthur Miller. Era um texto sobre a recém-morta Marilyn Monroe, e o entrevistador parecia não acreditar em uma peça que ainda não havia sido encenada em São Paulo tivesse sido montada em Porto Alegre.

Em dado momento, o jornalista perguntou a Caio sua opinião a respeito do grupo Abril. O escritor levantou-se, e, sem se preocupar se aquilo iria acabar com suas chances de trabalhar na Veja, fez um fervoroso discurso anti-imperialista. Irado, falou que a Abril era ligada ao grupo Time-Life, e que ele era contra a colonização cultural a que os Estados Unidos submetiam os outros países. Chegou a chamar a editora de entreguista. Vera nunca se esqueceu da figura magra, de pé, colérica, discursando.

Quem passasse pela fase da entrevista conjunta iria a São Paulo fazer um curso, e aí então seriam definidos os nomes dos contratados. Em 1968, quando a revista começou

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a funcionar e os profissionais que iriam trabalhar na revista já estavam definidos, Caio estava entre eles.

DOIS

Grande demais. São Paulo era grande demais. E o asfalto, asfalto por todos os lados. Onde, as árvores? Onde, os bichos? Tudo era cinza. Nem mesmo o céu escapava do cinza; dava até pra ficar na dúvida: São Paulo tinha céu? E a velocidade de tudo. Trabalho de segunda a sexta, das oito da manhã às seis da tarde; vertigem. Os parentes, longe; os amigos, longe; uma sensação de desprotegimento, de desamparo. E ainda por cima aquela voz. A voz de criança, de adolescente, fina, feia, desafinada. Alguma coisa aconteceu no coração de Caio Fernando Abreu quando ele se mudou para São Paulo, e, fosse o que fosse, não parecia agradável.

O escritor, vindo dos rincões gaúchos para trabalhar na primeira equipe da revista Veja, não se adaptou de início à cidade grande. Um difícil começo, como o fora também para Caetano Veloso, ídolo de Caio, a quem ele dedicaria sua obra de maior sucesso — o livro Morangos mofados, de 1982. Demoraria muito para o jovem escritor entender a poesia concreta das esquinas de São Paulo. Anos mais tarde, Caio diria que toda sua literatura seria fruto do choque, do contraste entre a vida interiorana em Santiago do Boqueirão e a vertigem causada pela velocidade da capital paulista.

Era preciso trabalhar, trabalhar o dia todo. Sem costume de acordar cedo e batalhar de sol a sol, Caio gramou durante os meses em que trabalhou na Veja. Ele, que sempre fora muito magro, perdeu ainda mais peso. Ficava nervoso, irritado; chegou a ficar doente, com gripe, sem coragem de sair de casa. Era uma de suas fases depressivas: durante a vida toda, o humor de Caio oscilaria entre picos de euforia e

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fundos-do-poço de melancolias insuportáveis. Nessas ocasiões, ele podia se recusar a ver qualquer pessoa ou mesmo a sair do quarto por dias seguidos. Ele costumava dizer sobre o choque que foi trabalhar como jornalista em São Paulo:

— Me estupraram até o último hímen. E, para piorar tudo, havia a voz. Esganiçada, odiosa,

infantil. Com vinte anos de idade, a voz de Caio era um tormento para ele; não se desenvolvera; em conseqüência, ele tinha vergonha de falar com as pessoas. Consultara um médico, que dissera que suas cordas vocais estavam viciadas no falar infantil. O tratamento, caríssimo, Caio não tinha condições de bancar. A voz só fazia piorar a timidez do escritor, e aumentar seu isolamento e sua aversão às sociabilidades. Muita gente tinha receio dele, nessa época: parecia arrogante, irascível, distante. A timidez, mais a vergonha da voz, aliadas a um certo senso de superioridade comum entre jovens intelectuais fazia de Caio uma figura não muito simpática, pelo menos à primeira vista.

A voz de Caio, junto com outras preocupações típicas da adolescência, como a magreza excessiva, pode ter inspirado alguns contos do escritor em que os personagens se sentem feios, inadequados, até monstruosos. Há o personagem Maurício, de Limite branco, que anseia poder olhar-se no espelho um dia sem ter vontade de desviar os olhos. E há o garoto de Pequeno monstro, conto de Os dragões não conhecem o paraíso:

Pernas e braços demais, pêlos nos lugares

errados, uma voz que desafinava igual de pato, eu queria me esconder de todos. Só tardezinha saía de casa, na hora que as empregadas domésticas — as dosas, o Pai dizia — estavam voltando da praia. Então caminhava quilômetros na beira do mar, me rolava na areia, vezenquando chorava e repetia: pequeno monstro, pequeno monstro, ninguém te quer.

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Se internamente Caio tinha problemas, no exterior as

coisas não estavam melhores. Cinco anos antes, em 1964, os militares haviam instaurado a ditadura no país. Com eles, veio a repressão, que aumentou em 1968, com o decreto do Ato Institucional n°5 (AI-5), e a censura aos organismos de mídia. Caio viria a escrever vários contos sobre o clima asfixiante instaurado pela ditadura. Muitos deles de forma simbólica, cifrada, metafórica, como em O ovo, conto de Inventário do irremediável. O ovo, lá, representa tudo que aprisiona, tudo sobre o qual não se tem controle, a rigidez e o sufocamento agravados quando não se pode sequer mencionar o assunto.

Só ontem cheguei à conclusão de que se trata

de um enorme ovo. Que estamos todos dentro dele. Mas é um ovo que diminui cada vez mais, cada vez mais, nós vamos ser todos esmagados por ele. Não sei por que os homens não se armam de paus e pedras para furar a parede. Seria muito fácil, a casca de um ovo é tão frágil.

Depois da descoberta do que o aprisiona, não há como

escapar:

Eu não sei. Tenho tanto medo. Estou esperando, cansei de escrever, a vela está quase apagando. Vou deitar. Estou ouvindo o rumor do ovo se aproximando cada vez mais. É um barulho leve, leve. Quase como um suspiro de gente cansada. Está muito perto. Tão perto que ninguém vai-me ouvir se eu gritar.

A paixão pela figura do ovo, como metáfora e como objeto em si, Caio herdou de Clarice Lispector. Um de seus livros chegaria, mesmo, a ter o objeto no título: O ovo apunhalado.

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Novato em São Paulo, Caio chegou a freqüentar

passeatas e reuniões de oposição à ditadura; mas sempre sem se comprometer demais, sem levar o credo político às últimas conseqüências. Politicamente, sua influência era muito mais dos tropicalistas, como Gil e Caetano — que ele sempre fez questão de afirmar que adorava — que de qualquer outro movimento cultural esquerdista do país. Ele preferia a maneira irônica, ambígua e debochada de protestar, e fez parte da turma que achava que "festa" e "subversão" podiam estar ligadas, e que a revolução era individual, de comportamento. Até porque, na época da poesia populista, engajada, Caio ainda era um adolescente, morando em Porto Alegre sem os pais, cursando o ginásio. Sua tomada de consciência se dá em um período em que já existia o Tropicalismo, que surge no mesmo ano em que ingressa na universidade.

Essa forma mais leve combinava com seu tempera-mento: Caio nunca foi muito de assumir compromissos, de se engajar, levantar bandeiras de qualquer tipo ou causa. Além disso, o notório senso de humor — herdado do pai, Zaél — se encaixava perfeitamente com a proposta dos tropicalistas. Ele ia mais aos encontros contra a ditadura pela festa que se fazia, pela celebração, pela oportunidade de ver pessoas.

— Para ver Norma Bengell vestida de Paço Rabanne — diria anos mais tarde, e aquilo já não era pouco: Bengell foi uma atriz de intermináveis pernas, belíssimas; foi símbolo das mudanças culturais por que o Brasil passava na década de 60.

Em tempos de AI-5, contudo, mesmo participações ocasionais eram suficientes para que o serviço de segurança do regime marcasse e perseguisse uma pessoa. Com Caio não foi diferente: ele afirmou ter recebido um telefonema da redação da Veja, dizendo que oficiais da DOPS estavam procurando por ele. Decidiu, então, sumir por uns tempos, e foi se esconder na Casa do Sol, sítio da amiga Hilda Hilst, em Campinas.

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Em carta aos pais, enviada da outra casa de Hilda Hilst, março de 1969, ele conta história diferente. Diz que Veja está dando prejuízos enormes. A revista vende pouco, os anunciantes não querem saber de comprar espaço. Para a editora inteira não fechar, teria sido necessário demitir bastante gente, inclusive ele mesmo, que teria perambulado quase um mês pela cidade atrás de oportunidades sem conseguir nada. Teria ido para a casa de Hilda por não ter conseguido emprego.

Caio conhecera Hilda por intermédio de Ana Lúcia Vasconcelos, atriz, dramaturga e jornalista, sua colega na primeira equipe da Veja. Ana Lúcia e Nello Pedra Gândara eram os grandes amigos de Caio na redação; iam a teatro, cinema, shows. Uma vez foram juntos a uma palestra de Léo Gilson Ribeiro sobre crítica literária. Ana perguntou a Léo o que achava de Hilda. Ela nascera em Campinas, onde a escritora morava, e as duas tinham se tornado muito amigas (décadas depois, em 2005, Ana escreveria um livro sobre ela). Quando souberam disso, Caio, Nello e Léo ficaram entusiasmados: pediram a Ana que os apresentasse, e ela acabou levando todo mundo para conhecer a Casa do Sol. Caio voltaria muitas e muitas vezes. Nas primeiras, ficaria hospedado na casa de Ana, mas com o tempo ganhou intimidade e ia direto para a Casa do Sol. Aos 33 anos de idade, Hilda, uma das mulheres mais bonitas de seu tempo, tinha abandonado uma movimentada vida social para ir morar na fazenda que pertencera à sua mãe, com o objetivo único de construir uma obra literária. Ao ler Carta a El Greco, de Nikos Kazantzakis, que defende a idéia de que para entender a sociedade é preciso afastar-se dela, Hilda, que namorara Vinicius de Moraes e fora cortejada por Carlos Drummond de Andrade, decidiu abandonar a agitada capital paulista e se isolar no interior para escrever. Na Fazenda São José, a onze quilômetros de Campinas, Hilda construiria a Casa do Sol, onde viveria até a morte, em 2004, na companhia de seus noventa cachorros, de livros, muitos livros, e de fotografias de escritores espalhadas pelas paredes,

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além das fotos do pai, por quem sempre foi obcecada. Na Casa do Sol, Hilda passou a viver, em 1966, com o

escultor Dante Casarini. Ali o casal recebia os amigos, que ficavam, às vezes, por temporadas inteiras, como Caio. Em 1968, quando ele vai para a Casa do Sol, Hilda e Dante já estão oficialmente casados, por imposição da mãe dela, Bedecilda.

Algumas das árvores que circundam a Casa do Sol têm mais de cem anos: figueiras, palmeiras, dracenas. No alto, suas copas entrelaçadas fazem uma sombra boa, que ajuda a amenizar o calor que faz, quase sempre, naquela região do interior paulista. O silêncio pesado é quebrado somente pelo latido das dezenas de cães que moram no sítio. Vira-latas, em sua maioria; seus semblantes estão agitados; o calor os deixa assim, inquietos.

O Caio que entra na propriedade — imponente e tranqüila como a casa grande e antiga em que morou um dia, em Santiago, a centenas de quilômetros dali — é um rapaz tímido, entusiasmado por ser hóspede daquela que ele considera uma das grandes escritoras do país e, exatamente por isso, muito amedrontado também. Inseguro, calado. Queria aprender com Hilda tudo que pudesse, queria sugar dela, do conhecimento e do talento dela, tudo que pudesse, para ser, ele também, um bom escritor. Tinha já alguns contos escritos: faltava agora organizá-los, revisá-los, fazer daquela massa informe uma obra coerente.

E foi isso que fez, durante a pequena temporada que passou na Casa do Sol. Dali sairia com um livro praticamente pronto: o Inventário do irremediável, republicado depois como Inventário do irremediável, irremediavelmente influenciado por Clarice Lispector, na época a escritora favorita de Caio, quase uma obsessão. A coisa chegou a um ponto, na verdade, que ele teve que se proibir de ler Clarice, pois, lendo-a, a sensação era de que tudo já estava escrito, e nada mais havia por fazer na literatura. Deprimia-se, desanimava. E, como dizia, só lia os livros dela escondido de si mesmo, de vez em quando.

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Enquanto inventariava seus contos irremediáveis, Caio funcionava também como uma espécie de secretário de Hilda: ela escrevia, ele datilografava. No resto do tempo, estudavam juntos o movimento dos astros, quiromancia, coisas do tipo. Caio, como muita gente que viveu o sonho hippie, era um rapaz espiritualizado: acreditava em astrologia, / Ching, candomblé, o que fosse. Não se comprometia, é claro, com nenhum desses credos; não tinha responsabilidade, disciplina, paciência ou vontade para tanto. Circulava pelas várias crenças, flertava com as várias filosofias, estudava com afinco algumas delas e inclusive as utilizava na arquitetura de seus textos. Nessa relação com o divino, a influência de Hilda foi, também, fundamental. Ela, que dizia ter visto anjos, conversado com os mortos e recebido em seu sítio a visita de discos voadores, ajudou Caio a olhar o mundo buscando sempre algo mais, além das aparências. O inefável, ela diria; a literatura de Hilda foi sempre uma busca do inefável. De Deus.

Não era só o divino que Caio discutia com Hilda. Falavam muito sobre literatura, sobre o processo de criar. O escritor discorria sobre o assunto sempre que encontrava interlocutores. Gostava de trabalhar a língua, como se nota em seus textos, sempre burilados, lapidados, reescritos. Tanto que, nos anos 80 e 90, revisou e reescreveu a maior parte de sua obra. Caio era capaz de discutir problemas de texto por horas a fio, de minúcias como pontuação ao uso de certas palavras, ritmo, tudo que dizia respeito ao texto literário. Procurava, sempre, inovar: fosse na estrutura, fosse na temática, fosse na forma. Teorizava bastante a respeito dos assuntos, e isso explica, em parte, sua precocidade na literatura, ter escrito e publicado ainda jovem, com menos de 20 anos de idade.

Uma de suas teorias, por exemplo, era a dos metâmeros. Numa viagem ao sítio de Hilda, nos anos 70, Caio a explicaria ao escritor Júlio César Monteiro Martins, que, maravilhado, jamais se esqueceu da teoria; até hoje dá entrevistas explicando do que se trata. O termo vem da biologia:

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metâmero é um anel da solitária, ou tênia, uma espécie de verme. Esse anel contém informações sobre o verme inteiro; se uma pessoa come carne contaminada com um cisticercó, um desses anéis, ele virá a se multiplicar e formar um animal completo. Na literatura, metâmero era um esboço, de um conto ou de um romance, que continha informações a respeito dos personagens, anotações soltas sobre ambiente, trama, estilo. O texto permaneceria em estado de latência literária, e o escritor poderia retomá-lo um dia e, se quisesse, ampliá-lo, formar um conto completo ou um romance. Ou então, simplesmente, publicar uma coletânea desses metâmeros, que é o que Caio viria a fazer em Ovelhas negras. Ele seleciona dois esboços que lhe parecem melhores e introduz sua teoria aos leitores. O primeiro deles se chama A perda e foi escrito em 1985:

Quando passo às vezes por aquela esquina, espio sempre a outra rua por trás da igreja. E mesmo sem querer, sem perceber claro o que sinto, lembro daquela tarde em que fui visitá-lo pela última vez, depois voltei caminhando pela rua cheia de árvores tão altas que suas copas se encontram e se misturam no alto, como um túnel redondo, irregular, a pensar coisas que nem lembro mais.

Quando passo por lá assim rapidamente, numa tarde como a de ontem ou outras iguais destes tantos meses passados, penso se não deveria retomá-la — essa rua, essa caminhada, mas sem ele agora — uma tarde, noite ou manhã quaisquer para refazer o percurso inverso até a casa dele, onde nem mora mais. E parado naquela esquina feito espião, contemplar a sacada daquele décimo andar onde costumávamos nos debruçar abraçados para olhar aquela rua lá embaixo sendo aos poucos coberta pelas sombras da tarde furando a copa-túnel das árvores. As sombras que crescem devagar sobre o asfalto quente do verão passado. As sombras, enfim.

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Depois de passar algum tempo no sítio de Hilda, de lá ter visto, supostamente, um OVNI, discutido muita literatura e organizado o material de seu primeiro livro de contos, Caio achou que era hora de voltar a Porto Alegre. Não trabalhava mais na Abril; não conseguira emprego em outros lugares; e havia, afinal, a faculdade de Letras esperando por ele. Era uma opção, que ele só abandonara pela perspectiva de integrar a primeira equipe de jornalistas de uma nova revista, que por enquanto ainda não estava bem das pernas. Conversou com Hilda; ela concordou que o melhor seria voltar para a casa dos pais; quando estivesse de diploma na mão, ele poderia voltar e tentar viver em São Paulo de novo. Decisão tomada, Caio acompanhou Hilda e Dante à praia, em Massaguaçu; era a Casa da Lua, segundo refúgio da escritora. De lá, escreveu aos pais comunicando a saída da Abril, a volta para casa e a intenção de retornar à universidade. A família de Caio estava morando em Porto Alegre desde 1969, quando Nair insistiu em ir, para que os outros filhos também pudessem estudar com facilidade. Ela mesma cursaria, então, a faculdade de Filosofia. Zaél, já militar reformado, teria preferido ficar em Santiago, onde era alguém de posição, mas os argumentos da esposa foram mais fortes.

Para Caio, voltar a Porto Alegre foi uma beleza: o céu azul, os morros, o verde das árvores. Ele amou Porto Alegre em tudo que ela era diferente de São Paulo: sem asfalto, sem loucuras; sem porralouquismos também. As pessoas doces, calmas; o sotaque familiar: o "tu". E o melhor: não ter que levantar cedo para trabalhar, nem sair de casa para comer. A mãe faz pós-graduação em Filosofia; o pai lê romances de Norman Mailer. O quarto de Caio é cor-de-rosa, os móveis são convencionais, sóbrios, os irmãos pequenos vêem televisão na sala. Não há, sequer, discos voadores; o ambiente convida a escrever — ele conta, por carta, a Hilda, sua principal interlocutora, mentora literária e espiritual.

Caio mantém sua decisão de escrever enquanto está na casa dos pais; a idéia de voltar para a faculdade, porém,

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morre nas dificuldades burocráticas que há para reabrir a matrícula. E também, principalmente, na inabilidade do escritor em se adaptar a um currículo, a horários fixos: ele não consegue parar quieto, principalmente em Porto Alegre. A capital gaúcha podia ser bonita o quanto quisesse, cheia de cores, verdes árvores e céus azuis inigualáveis. Mas isso não era, de modo algum, suficiente; Caio queria estar no olho do furacão, onde as coisas aconteciam.

E, no Brasil de 1969, o Rio de Janeiro era um lugar onde as coisas aconteciam. Lá estavam os escritores que Caio queria conhecer: Clarice Lispector, Nélida Piñon, Maria Alice Barroso, Walmir Ayala. Assim, apenas quatro meses depois de ter voltado para a casa dos pais, Caio faz uma visita à cidade sempre maravilhosa. Havia sido convidado algumas vezes por Maria Helena Cardoso, irmã do já então falecido escritor Lúcio Cardoso, com cuja obra a de Caio tinha alguns pontos de ligação — Lúcio, da mesma linhagem literária de Virginia Woolf e Clarice, o Dostoiévski mineiro, como alguns críticos o chamam, fora um escritor que se rebelara contra a tradição do romance regionalista. No auge desse estilo de texto, ele escrevera de forma intimista, introspectiva, falando de personagens mineiros, sim, mas não de sua glória, e sim da sua degradação, da degradação de suas tradições. Caio aceitou o convite de Maria Helena, mesmo achando-a um pouco "fora da realidade" e "liriguelha demais"; a oportuni-dade era muito boa para ser desperdiçada. Além do que, a língua ferina de Caio não poupava ninguém, nem os amigos; e o fato de ele achar uma tolice as cartas em que Maria Helena falava dos "passarinhos que cantam nos galhos das árvores" e das "sombras de outono" não significa que ele não nutrisse, verdadeiramente, uma afeição por ela, ou a admirasse como escritora.

O apartamento de Maria Helena fica em Ipanema. Quando vê o quarto onde ficará hospedado, Caio se comove: é o quarto que fora de Lúcio Cardoso. Como ele foi parar ali? — se pergunta. Há pouco tempo, ele era só um rapaz vindo do Boqueirão, com problemas de relacionamento com os colegas

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e que crescera rápido demais. Agora, ele estava no quarto de um dos maiores escritores brasileiros, autor de Crônica da casa assassinada, em uma cidade verdadeiramente esplendorosa, belíssima, povoada por pessoas bondosas e simpáticas, sendo tratado a pão-de-ló por uma velhinha pequenina e ágil que, modesta, não aceita ser chamada de uma das melhores escritoras do país — ao lado de Ia Lispector. E ela não é a única a tratá-lo bem: há Francisco Bittencourt, o Boroca, primo do pai de Caio; ele é inteligente, sério, uma flor de pessoa; e além disso é um dos críticos de literatura mais respeitados do Rio e conhece todo mundo. Há também Carmen da Silva, a editora que publicara o primeiro conto de Caio, O príncipe sapo, na revista Claudia, quando ele tinha 16 anos. Francisco e Carmen mostram os contos de Caio para outras pessoas, prometem arranjar editoras que publiquem seus livros, estão entusiasmados com 0 trabalho dele. Toda essa celebração em torno de Caio o deixa feliz, orgulhoso.

"As vezes que tentei morrer foi por não suportar a maravilha de estar vivo e de ter escolhido ser eu mesmo e fazer aquilo que gosto — mesmo que muitos não compreendam ou não aceitem, "— escreve aos pais, no dia 21 de agosto, enquanto Maria Helena assiste a uma novela na sala; em alguns minutos, Caio vai sair, a noite o espera: bares, cinemas, teatros, muita gente ao seu redor.

"E as pessoas que passam por mim não saberão jamais que nasci em Santiago do Boqueirão e um dia fui estudar em Porto Alegre, que eu era tímido e agressivo, porque me achava horroroso com aquele bigodinho precoce (hoje, querem pintar retratos, me acham parecido com Cristo, dizem que tenho olhos lindos!). Acho graça, acho muita graça. Tão estranho carregar uma vida inteira no corpo, e ninguém suspeitar dos traumas, das quedas, dos medos, dos choros. "

Cerca de um mês depois de sua chegada ao Rio, Caio viaja novamente para Campinas, junto com Hilda e Dante,

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que tinham ido passar uma temporada na capital fluminense. Ao longo de sua vida, Caio mencionaria sua amizade com Hilda, dizendo que chegara a morar um ano em sua casa. Na verdade, porém, embora visitasse bastante a Casa do Sol, Caio não chegou a ficar tanto tempo lá. Suas temporadas em Campinas eram intermitentes; duravam um ou dois meses, e em seguida Caio seguia de volta para Porto Alegre, ou para o Rio, ou para onde fosse. O momento era de inquietude, de viagens, de descobertas. Além disso, a presença de Caio na casa era muito intensa; sua amizade, exigente; a admiração por Hilda beirava a reverência. Chegava sempre o momento em que a escritora tinha que chegar para ele e dizer: Caio, sua hora chegou. E então ele ia embora.

Mas ele ainda estava na Casa do Sol quando, no final de outubro de 1969, aconteceu uma coisa misteriosa e impressionante; uma notícia maravilhosa, uma Boa Notícia, com maiúsculas. A partir daquele momento, ele deixaria de ser o jovem tímido, envergonhado de falar com os outros, e passaria a se assumir como adulto. A voz de Caio, tinha, finalmente, melhorado.

A história começou quando ele ganhou um gravador de Hilda e Dante, e com ele pôs-se a fazer exercícios e a gravar a voz, pensando em melhorar pouco a pouco. Só que a voz, muito cheia de personalidade, tinha outros desígnios; assim como teimara até ali em ser uma voz normal, resolvera mudar de repente, do nada; e mudara não para ser uma voz comum, como as outras. A voz nova de Caio era grave, bonita, charmosa. A partir dali, sempre que ele abrisse a boca, sairia aquele vozeirão, marcante e inexplicável, vindo não se sabe de que parte do corpo magricela do escritor. O ator Gilberto Gawronski, que conheceria Caio na década de 1980, ao encenar uma de suas peças, brincaria com a situação:

— Meu Deus, precisa ficar de pé para ouvir você ou posso ficar sentado mesmo?

Ao longo dos anos, Caio e Hilda contariam a história da figueira para explicar a mudança da voz. Havia uma figueira no terreno da chácara. Hilda teria dito ao escritor: "Cainho,

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essa figueira é mágica. Quando a gente tem um problema muito grave, fala com ela, e ela resolve". Então ele teria abraçado a figueira e pedido para a voz mudar. De volta ao quarto, teria pegado um livro de Fernando Pessoa e começado a ler em voz alta; no terceiro verso, a voz teria mudado.

Há outras versões: a de que ele teria feito três pedidos à figueira: para que a voz melhorasse, para voltar logo ao Rio, onde estava decidido a morar, e para ganhar um concurso literário de que estava participando. Os três pedidos acabariam realizados: Caio voltou para o Rio, já de voz nova e sensual, e lá soube que ganhara o Prêmio Fernando Chinaglia por Inventário do irremediável, obra a que dera forma final ali mesmo, na Casa do Sol. Em um texto, Hilda afirma que o pedido não era para a mudança de voz, mas para Caio deixar de ser tímido. Tanto ela quanto Caio diriam que o terceiro pedido era, em vez de voltar ao Rio, conseguir ir logo para a Europa. Há até quem diga, como o irmão do escritor, Felipe Abreu, que a voz não mudou de repente coisa nenhuma; mudou aos poucos, mas Caio preferia acreditar na versão romântica e mágica da figueira.

Mas a versão mais próxima da realidade é também de Caio, em carta aos pais logo que a mudança se opera. O escritor José Mora Fuentes, amigo de Hilda que até hoje vive na Casa do Sol, estava lá. Era uma noite de lua cheia, belíssima. Caio teria se sentado na área da casa e olhado a Lua; então ele teria sentido que podia fazer três pedidos que eles se realizariam. Três dias depois, a voz mudou. Os outros pedidos — tanto o prêmio literário quanto a viagem ao Rio — também logo se realizaram. De todas as versões, o que importa é que, até os vinte anos, Caio teve uma voz infantil, esganiçada; aos vinte e um, ela se tornou grave e lânguida e bela.

Caio voltou ao Rio, decidido a se estabelecer por lá; conheceu alguns hippies em uma praça de Ipanema, fez amizade, e considerava a hipótese de ficar por ali, trabalhando com artesanato; os empregos formais não apareciam. Em dezembro, porém, ele estava de volta a Porto

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Alegre. "Decidi aceitar meu ser nômade, até segunda ordem", escreveria a Hilda. A carta não era das mais fáceis de escrever: era a primeira depois de uma briga que tivera na fazenda com Dante. A coisa foi feia: as palavras "veado" e "doente" foram das mais leves que o escultor usou para caracterizar Caio no meio do entrevero, e sabe-se lá o que este aprontara para causar tamanha reação, tamanha agressividade. Caio, no entanto, não se abalou demais: com a arrogância própria da idade, somada à que lhe era própria e mais uma espécie de certeza de que não havia nada de errado em sua condição, ele se sentia acima dos preconceitos burgueses; pairava, superior, sobre o moralismo e a decadência da sociedade. Logo depois, a amizade com Dante foi retomada; ele chegou mesmo a visitar Caio e sua família em Porto Alegre, e o assunto da briga foi deixado de lado.

Caio passaria todo o ano de 1970 na capital gaúcha. Ali, prestou exames para o curso de Direção Teatral, no Centro de Artes Dramáticas (CAD). Desde criança, Caio gostava de teatro, de inventar e encenar historinhas com seus bonequinhos de papel machê; agora, ele podia desenvolver mais seriamente essa paixão. Não chegou a terminar o curso, claro, assim como não concluíra o de Letras. Mas se divertiu aprendendo algumas coisas. Descobriu, por exemplo, que era exigente demais com os textos a serem encenados. Só queria saber de tragédias gregas e de Nelson Rodrigues; o resto achava descartável. Isso mudaria alguns anos depois, quando, depois de rodar o país e parar de novo em Porto Alegre, em 1973, Caio participou como ator de algumas peças. Entre algumas das que participou no período, estavam Serafim fim fim, The black grove e The last moment, que nada tinham de trágicas ou de rodrigueanas. Em Serafim, o papel era de Batman; em The black grove, vestira-se de mulher. E por aí afora. Alguns amigos leais dizem que Caio era bom ator, mas ele mesmo costumava brincar, anos depois, já na década de 80, quando sua participação no teatro se restringia a escrever as peças, dizendo que era péssimo.

Mas estamos em 1970. Caio ainda acredita que pode

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completar o curso de Direção Teatral e mora com os pais em Porto Alegre. Nesse momento, desbundou por completo: experimentou mescalina, começou a participar de festas malucas, orgiásticas, regadas a maconha e drogas mais pesadas. Mas essas experiências, em vez de deixarem o escritor feliz, deprimiam-no ainda mais. A história da mescalina foi descoberta pelos pais, o que causou o maior rebuliço; as bacanais faziam Caio se sentir um lixo, no fim da noite. A única área em que as coisas iam bem era a profissional: Inventário do irremediável foi lançado com estardalhaço; foram muitos os convites para entrevistas. Caio manifesta sua carência, e reafirma sua determinação de ser escritor, em carta a Hilda Hilst: "Queria tanto que alguém me amasse por alguma coisa que eu escrevi."

A publicação do primeiro livro, badalada ou não, era um passo no sentido de Caio se firmar como escritor, e um escritor amado pela literatura que fazia. Mas embora Inventário do irremediável tenha sido o primeiro livro do escritor a ser publicado, não fora o primeiro a ser escrito: limite branco veio antes. E houve também um livro de contos chamado Três tempos mortos, que ficaria para sempre inédito, embora tivesse ganhado, em 1968, Menção Honrosa no Prêmio José Lins do Rego.

Como o escritor ainda tateasse seus próprios caminhos, é no Inventário que a influência de Clarice Lispector se mostra maior e mais clara. Assim como ela, Caio trabalha muitas vezes com o conceito de epifania: uma revelação mágica no meio do cotidiano, algo que faz com que a pessoa mude, repense sua vida. Em alguns contos do Inventário, essas revelações acabam por trazer a morte dos protagonistas, como no conto que abre o livro, Os cavalos brancos de Napoleão. Nesse conto, a morte é quase uma libertação, e a descoberta que os cavalos representam pode ser lida como qualquer descoberta, inclusive a do homossexualismo.

O livro é dividido em quatro partes, ou quatro

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inventários: da morte, da solidão, do amor e do espanto, temas recorrentes na obra do escritor. Há também um quinto inventário, composto de um único conto: o Inventário do irremediável. O final do conto, e do livro, traz uma esperança: a escolha pela vida. Por continuar. E a última frase define, bem, o texto de Caio, e a sua personalidade.

Está sentado na cama, corpo nu, pés descalços, costas curvas. A lâmina vibra entre os dedos. Nenhum pensamento. Só espera. A atenção fixa em si mesma. Dobra os ombros, como se chorasse. E não corta. Joga a lâmina pela janela, vai-se curvando para si mesmo. Os braços se cruzam, enlaçam os joelhos, a cabeça afunda entre as pernas. Não chora sequer. No cinzeiro, o cigarro esquecido queima. Um fino fio de fumaça sobe aos poucos indeciso, adensando o ar que se enche de olhos, de mãos, de gestos incompletos, vozes veladas, palavras não formuladas. Sem compreender, vaga entre a fumaça e tomba. Como um cego, vendo apenas para dentro.

No fim do ano, a maré começa, mais uma vez, a soprar a favor de Caio. Ele passara um ano ruim, cheio de carências e inseguranças. Para espantar a tristeza, resolveu ir para a praia com alguns amigos. Deu certo: depois de refletir muito sobre a vida, sobre sua relação com os amigos, voltou recuperado, de bem consigo mesmo; e, como que para coroar esse novo estado de espírito, ele chegou em casa e encontrou uma carta de Hilda, que há muito não lhe escrevia. Junto com a carta, um exemplar de Fluxo-floema, com a novela Lázaro dedicada a ele. Caio não cabia em si de tanta satisfação e orgulho. Escreveu uma exultante e empolgada carta a Hilda. Na mesma noite, porém, aconteceu algo que o faria retomar a carta e escrever mais um pouco. Caio conheceu Clarice Lispector.

Personalidade magnética, misteriosa, Clarice fascinara leitores e críticos desde o primeiro livro, Perto do coração selvagem. Sua literatura diferente, estranha, é marcada por sensações; a ação ocorre sempre na cabeça dos personagens. Moderna, revolucionou a linguagem. Quando o jornalista

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José Castello perguntou a Otto Lara Resende sobre ela, Otto pediu a ele que tomasse cuidado com Clarice. "Não se trata de literatura, mas de bruxaria", falou.

Caio termina de escrever para Hilda. Pega o jornal para dar uma olhada, e lê que Clarice Lispector herselfestaria autografando seus livros em uma estação de TV, à noite. Engole o jantar que lhe oferecem e sai chispando feito um foguete para a televisão. "Cheguei lá timidíssimo, lógico. Vi uma mulher linda e estranhíssima num canto, toda de preto, com um clima de tristeza e santidade ao mesmo tempo, absolutamente incrível. Era ela. " Caio chegou perto, entregou um exemplar de seu livro recém-publicado para ela. Quando ia saindo, um escritor que estava por ali decidiu apresentá-lo direito. Caio fica nervoso, sai para o corredor; antes que vá muito longe, porém, Clarice chega até a porta e chama:

— Fica comigo. Ele fica, conversam um pouco. De repente ela pára, diz

que acha ele muito bonito, parecido com Cristo. "Tive 33 orgasmos consecutivos." Conversam mais. Falam de Nélida Piñon, de Hilda. Caio aproveita o interesse dela e lhe entrega um exemplar sobres-salente do Fluxo-floema que, por acaso, ele tinha na bolsa. Ela lhe dá seu telefone, pede para ligar quando for ao Rio. Caio vai embora meio aparvalhado e, nesse estado de êxtase e perturbação, escreve a Hilda contando o episódio.

"Ela é exatamente como os seus livros: transmite uma

sensação estranha, de uma sabedoria e de uma amargura impressionantes. Ê lenta e quase não fala. Tem olhos hipnóticos, quase diabólicos. E a gente sente que ela não espera mais nada de nada nem de ninguém, que está sozinha e numa altura tal que ninguém jamais conseguiria alcançá-la.[...]

Sinto que as coisas vão mudar radicalmente para mim — teu livro e Clarice Lispector num mesmo dia são, fora de dúvida, um presságio."

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Era o dia 29 de dezembro de 1970. O ano novo chegava.

Em 1971, Caio volta ao Rio. Totalmente imerso na cultura hippie, cabelos longos e túnicas indianas compridas, ele decide tentar um modo de vida diferente, em comunidade, bem de acordo com o sonho paz-e-amor da juventude da época. Com três garotas e um rapaz, aluga uma tranqüila casa em Botafogo. Ele acredita que tudo pode dar certo, que morar em comuna é a melhor maneira de se viver. Quanto ao seu trabalho, tudo vai bem: Caio está feliz à beca com os novos textos que anda produzindo. "Acho que finalmente achei a minha forma", escreve a Hilda Hilst, em março. "Não sei se isso é auto-elogio, mas acho que sou o único cara no Brasil que está fazendo literatura pop MESMO'."

Nessa fase de sua escrita, Caio namora o realismo fantástico dos autores latino-americanos como Cortázar, Garcia Márquez, Carlos Fuentes. Nascido na fronteira com a Argentina, e falando bem o espanhol, Caio aprecia autores como Ernesto Sábato, Ricardo Piglia. E, utilizando ao máximo as visões que tem em suas viagens — de LSD, mescalina ou chá de cogumelos —, escreve textos fundindo o fantástico, ficção científica e elementos da cultura pop. Surgem assim alguns dos contos de O ovo apunhalado, obra que só viria a ser publicada em 1975. Várias histórias desse livro podem ser entendidas como crítica à sufocante situação por que o país passava na esfera política; a ditadura está em sua fase mais dura, e muito do material publicado, inclusive em livros, só sai sob censura.

A estada no Rio é o começo do fim do sonho da

contracultura para Caio. A vida na comunidade não dá certo: ele e seus amigos se desentendem, ele sai da casa. Começa a perceber que a individualidade, às vezes, é mais importante que a coletividade; que o ser humano é egoísta — ele incluso, é claro — e que certas coisas funcionam melhor na teoria, na utopia, que na prática. Para piorar um pouco mais as coisas, ele é preso. Flagrante falso de maconha. Apanha da polícia e

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só sai da prisão porque Adolpho Bloch, dono da editora em que ele trabalhava, na revista Manchete, intercede por ele. Solto, Caio é demitido; Bloch queria distância de confusão, e foi por isso, mais que por benevolência, que o tirou da prisão e pagou a passagem de Caio para Porto Alegre. Só de ida.

Enfim, nem tudo eram flores. Mas Caio tem sorte. Entre a saída dele da comunidade e a volta envergonhada para Porto Alegre, ele encontra abrigo, carinho e amizade na casa de dois quase desconhecidos, os irmãos Vera e Henrique Antoun.

Vera tinha quatorze anos quando conheceu Caio, em 1971. Era o lançamento de Limite branco, primeiro romance do escritor, pronto desde 1968. Ficaram amigos, e até mais que isso: surgiu um clima, uma espécie de paixão entre os dois. Caio gostou muito de Vera; escrevia-lhe cartas amorosas; levou-a, junto com a mãe e o irmão Henrique, para Porto Alegre; foi visitá-la no Rio algumas vezes; escreveu uma peça infantil, A comunidade do arco-íris, em que havia uma boneca inspirada na garota. Chega mesmo a considerar a hipótese de se assentar, casar, ter filhos, um lar, uma família. No entanto, a coisa não vai pra frente: quando está com Verinha, Caio às vezes se torna esquivo; depois de horas com ela, se divertindo e conversando e montando um clima apaixonado, ele pula fora, sai pela tangente, se afasta sem maiores explicações. É a sexualidade em conflito: ele, que já havia meio que definido que gostava de rapazes, ficava assustado com a possibilidade de se envolver com uma garota e, ainda por cima, de forma tão profunda, com direito a sonhos pequeno-burgueses de casamento. O que viria em seguida?, ele pode ter pensado. Dali a pouco, ele teria um carro do ano, um apartamento com vista para o mar e estaria preocupado em pagar as prestações e a mensalidade da escola das crianças. E esse quadro não combinava com a idéia da vida que um escritor devia levar, pelo menos na imaginação romântica de Caio, forjada em plena década de 60. E a vida de escritor, seu trabalho, sua carreira, era tudo que importava. Vinha sempre em primeiro lugar, a única

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coisa à qual Caio foi sempre fiel durante a vida. Assim, a relação com Vera não engrenou.

No início de 1973, no entanto, Caio ainda estava na fase de amor e empolgação pela garota, e lhe escreve:

"Verinha-maravilha, por onde anda você, tão distanciada, tão silenciosa? Em que nova galáxia posso te encontrar outra vez, morena como uma princesa raptada por beduínos no deserto? Vezenquando baixa uma saudade, quase sempre clara como tem sido o ar verde-azulado desse verão, e fico sentindo falta do teu jeito lento de chegar pisando em nuvens, sempre azul."

De Porto Alegre, Caio escrevia a Vera contando de suas experiências com ácidos e demais drogas lisérgicas. Ele havia participado de algumas cerimônias de chá alucinógeno com ela, em Santa Teresa, quando ainda morava com a comunidade hippie que montara naquele bairro. O ano de 1972 foi todo dedicado a essas experiências. Caio estava em uma de suas fases ruins, deprimido. Pensava constantemente em suicídio, não queria sair de casa nem ver ninguém. No entanto, em uma viagem a Itaqui, onde moravam seus avós, ele voltou a ficar bem: ele sempre recuperava sua força através do contato com a terra de sua infância, através da visão de paisagens antigas. Pessoas sentadas na calçada, olhando as estrelas, tudo muito parado, sem televisão, sem carros, sem movimento. Caio reencontrou-se.

Em Porto Alegre, começou a procurar alguns amigos, gente que tinha evitado durante o período em que sentia só escuridão dentro de peito. Assustou-se, no entanto, com o que chamaria de "vampirização" das pessoas: todo mundo só querendo saber de falar e falar, de fazer comentários espertos, de mostrar um equilíbrio que não possuíam. Aí Caio passou a evitá-las de novo, mas, dessa vez, não por incapacidade de contato, e sim por escolha. Preferia ver um filme antigo, ouvir música e passear na beira do rio. Está reconciliado consigo mesmo, e não se arrepende de nada,

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como escreve a Vera: "Nada é errado, quando o erro faz parte de uma procura ou de um processo de conhecimento. " Ou ainda: "Não sei muito, também não tenho muito, também não quero muito, mas estou aprendendo a respirar o ar das montanhas."

Assim feliz, gostando de viver, Caio começa a trabalhar no jornal Zero Hora como copidesque, com o intuito de juntar dinheiro para viajar. Graça Medeiros, futura astróloga, que o conhecia havia cerca de quatro anos e seria uma das melhores amigas de Caio até o fim, voltava de uma temporada na Europa e insistia que ele devia ir também: a atmosfera política e cultural no Brasil estava insuportável. Entre as horas de trabalho que passava no jornal, Caio planejava sua viagem e continuava a escrever. O conto Visita ganhou um prêmio do Instituto Estadual do Livro (IEL) em 1973. Essa vitória foi motivo de muito orgulho para Caio: segundo ele conta, em carta a Hilda Hilst, toda a intelectualidade de Porto Alegre estava concorrendo, mas a comissão julgadora atribuiu o prêmio apenas a ele, por achar que nenhum dos outros trabalhos tinha nível. Além disso, Caio escrevera o livro de contos O ovo apunhalado, já liberto — de certa forma — da influência de Clarice Lispector. O ovo é um livro que fala de violência, de loucura; a influência do realismo mágico dos latinos se faz notar em alguns textos, como no próprio conto-título. O prefácio, assinado por Lygia Fagundes Telles, mostra o quanto o escritor já era estimado e admirado nos altos meios literários do país. Lygia o chama de "escritor da paixão", e diz: "Caio Fernando Abreu assume a emoção. Emoção esta que é vertida para uma linguagem que em alguns momentos atinge a rara plenitude próxima de um estado de graça. [...] Quando nos seminários de literatura os teóricos pedantes acabam por condenar a palavra, minha vontade simplesmente é mostrar-lhes um livro como este. Provar-lhes a atualidade da desacreditada palavra com a própria palavra, quando a serviço de uma técnica rica de recursos. Aliada a uma imaginação cintilante".

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Alguns contos de Caio falam da esperança de redenção. Em um mundo comum e medíocre, alguém de fora surge e promete a salvação, a mudança. Oferecem para quem quiser compreendê-los, porém as pessoas têm medo do novo. Apenas uns poucos escolhidos se salvam. E os mártires, os salvadores, sofrem, mas vencem no final. No conto Eles, por exemplo, uma bela prosa poética, quem aparece para mudar a rotina são seres de outro mundo. O que os seres dizem é um atestado da maneira como Caio levava sua vida.

O que eles deixaram foram estes três

postulados: importa é a luz, mesmo quando consome; a cinza é mais digna que a matéria intacta e a salvação pertence apenas àqueles que aceitarem a loucura escorrendo em suas veias.

Nessa época, a turma de Caio em Porto Alegre era composta por Maria Lídia Magliani, Jaime Gargioni, Juarez Fonseca, Augusto Rigo, Sandra Laporta. Havia também Lucrécia, um gay espalhafatoso de quem Caio gostava muito, e Graça Medeiros. As pessoas saíam juntas, fumavam maconha, iam a bares. Conversavam sobre os assuntos da época: filmes, livros, discos. Falavam mal da ditadura. Caio era muito crítico, muito ácido. Juarez Fonseca lembra de ouvi-lo comentar:

— Todo homem com mais de trinta anos é um canalha. Juarez Fonseca freqüentara a universidade na mesma

época de Caio, só que seu curso era outro; enquanto Caio cursava — ou tentava cursar — Letras, Juarez fazia Jornalismo. Na faculdade, Juarez era da equipe do jornal do centro acadêmico, O coruja. Nessa época, no entanto, não chegou a conhecer Caio: ele e Magliani formavam uma dupla quase hermética, uma dupla estranha, e um dos poucos a conversar com eles de vez em quando era João Gilberto Noll.

Os dois se conheceram quando Caio, já de volta a Porto Alegre depois de suas andanças por São Paulo e Rio, foi contratado pelo Zero Hora, onde Juarez já trabalhava. Juarez

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tinha se tornado amigo de Magliani, que também trabalhava no jornal, como diagramadora. Caio começou a colaborar nos projetos de que Juarez fazia parte, como o jornal Exemplar, influenciado por O Pasquim, Veja — na época ainda considerada inovadora — e, principalmente, pela revista Bondinbo.

Era a efervescência da imprensa nanica, a efervescência de uma geração que não agüentava a ditadura. Parecia que no Brasil não havia lugar para gente assim, que contestasse; a repressão nas ruas aumentava, o clima era de paranóia, de medo. O pessoal queria mais era sair fora. E saíram.

Os ídolos Caetano Veloso e Gilberto Gil já tinham ido em 1969. Chico Buarque também. A amiga Graça Medeiros já fora e voltara. Sandra Laporta, também amiga, estava lá. Cada um em um país — a dupla de tropicalistas na Inglaterra, Chico na Itália, Sandra na Suécia —, o destino, na cabeça dos brasileiros loucos para saltar fora, era um só: Europa. A questão era só escolher por onde começar, e a turma de Porto Alegre escolheu a Suécia.

Era um grupo de seis pessoas. Juarez e sua esposa, Sônia Azambuja, casados desde 1971. Márcio, Aninha, Augusto Rigo, Caio. Cada um iria por um trajeto diferente, e se encontrariam todos na Suécia, mais ou menos na época em que a temporada de trabalho começaria, em maio, que já estava chegando. Não havia tempo a perder.

O dia é 28 de abril de 1973. No aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, Caio está exultante. Vera e Henrique foram vê-lo antes da viagem e, embora um vidro os separasse, foi muito bom encontrar os amigos. Do avião, Caio escreveria aos dois, ainda entusiasmado com o encontro: dizia que Vera tinha olhos de vaca jérsei, e que se casariam na Finlândia e teriam sete filhos com olhos de vaca jérsei, como os dela, e cabelos pretos e lisos de índio, como os dele. De Henrique, dizia ter pressentido que ele tinha QI de gênio. "GRRRR: vontade de comer vocês dois com molho de chocolate. "

Antes de partir, além de se encontrarem com os irmãos, Caio, Augusto e Ana, que haviam decidido fazer o percurso

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juntos, escrevem do aeroporto do Galeão um telegrama a Graça Medeiros, cheios de boas expectativas e esperanças. Brincavam que o avião tinha sido seqüestrado e que eles estavam em Beirute, "maravilhosos". Era assim que aquele trio se sentia, logo antes de deixar o Brasil rumo a aventuras desconhecidas. Por acaso o destino final era a Suécia, mas se fosse Beirute, bem, não importava.

Caio, Ana e Augusto não vão direto para a Suécia. A

escala é em Madri, onde planejam ficar umas duas semanas. Caio quer tirar carteira internacional de estudante e ver Bosch no Museu do Prado. A obra do pintor holandês nascido em 1450 tinha alguns pontos de contato com a do escritor. Além do humor cáustico, com que retratava a vida de pecados do ser humano, e da dificuldade de salvação, a arte, que viria a influenciar os surrealistas mais tarde, era cheia de detalhes do fantástico. Lembremos que a própria literatura que Caio fazia, nesse momento, estava impregnada desses elementos. Como no conto O ovo apunhalado, em que um ovo sai de uma moldura e persegue o personagem:

Ele saiu da moldura e veio caminhando em minha direção. Olhei para o outro lado, mordi o lábio inferior, mas nada aconteceu: os carros passavam por cima da minha imagem refletida nas vidraças, os carros corriam e a minha imagem mordia o lábio inferior. Quando tornei a me voltar, ele continuava ali, a casca branca, as linhas mansas de seu contorno: um ovo. Disse-lhe isso — mas ele não parou -, você não vê que não tem a menor originalidade — e ele não parou -, todos já disseram tudo sobre você, qualquer cozinheira conhece seu segredo. [...] Mas ele não se move. Está parado à minha frente e volta-se devagar para que eu fique cara a cara com o punhal cravado em suas costas. É quando julgo perceber nele uma espécie de súplica: socorra-me, poupe-me, abrevie-me. Agora é um ovo delicado, tenro, humilde, e não tenho medo, e sinto pena dele, quase ternura. Então estendo os meus muitos braços coloridos e toco no cabo de bronze do

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punhal. A sua casca está manchada pelo fio de sangue coagulado. Hesito um pouco, mas fecho os olhos no mesmo momento em que meus dedos se cerram em torno do punhal. Meus olhos são janelas, minhas pálpebras grades, minhas mãos tentáculos, meus dedos ferro. Uma breve hesitação, depois empurro lento, firme. E sinto uma lâmina penetrando fundo em minhas costas, até o pesado cabo de bronze onde dedos comprimem com força, perdidos entre espáduas. Lúcia grita, mas é tarde demais. Vejo minha casca clara partir-se inteira em cacos brilhantes que ficam cintilando pelo chão do banheiro. 0 sangue escorre e eu, agora, também estou no céu com diamantes.

Em Madri, Caio encontra, por acaso, Juarez Fonseca e sua mulher, Sônia. O casal tinha ido até Lisboa de navio, e de lá para Madri de trem. Estavam numa esquina da cidade quando viram passar Caio e os amigos que tinham ido com ele. Sua figura chamava a atenção: a Espanha é um país católico, cheio de repressões, e nesse sentido estava longe de ser o paraíso dos costumes que Londres, Amsterdã ou mesmo Estocolmo prometiam ser. Foram tomar um café, e não se viram mais, até o encontro combinado na Suécia. Nessa época, Caio e Juarez ainda não eram íntimos; andavam na mesma turma em Porto Alegre, trabalhavam no mesmo local, mas não trocavam confidencias e coisas do gênero.

Sobre o encontro casual com o grupo de Caio, Juarez escreveu no diário que estava fazendo da viagem, no dia 29 de abril: "Caio muito louco caminhando pelas ruas. Todo mundo olhando."

De Madri, Caio, Augusto e Ana foram a Barcelona. Se hospedaram em um hotel na esquina da casa onde morou Picasso. Caio não achou mesmo muita graça na Espanha: a comida era horrorosa; as pessoas eram fechadas, rígidas, moralistas; as ruas de Barcelona eram sujas e poluídas. Era ainda época de ditadura no país, e se ouviam relatos de torturas e fuzilamentos. Bonito mesmo Caio só achou o bairro gótico, com catedrais com mais de 500 anos e casas de 300.

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De lá, porém, o grupo seguiu para Paris, e a impressão que a capital francesa deixou foi de puro deslumbre. Hare-krishnas andando sossegados pelas ruas; gente variada, com todos os cortes de cabelo e roupas que se possa imaginar. Bares charmosos, onde grupos de pessoas se reuniam para tomar vinho; mulheres elegantes, requintadas. Era o paraíso. Passear pela capital francesa era como andar sobre séculos de história, de cultura, de civilização. Pisar nas ruas francesas era como "pisar no coração do mundo", diria Caio.

Era noite em Itaqui, na fronteira do Rio Grande do Sul

com a Argentina. Caio Fernando Abreu tinha nove anos de idade e estava passando uns dias na casa de seus avós. Em dado momento, ele vira para o avô Aparício Medeiros e diz:

— Um dia, quando eu for grande, vou morar na Suécia. O avô, é claro, morreu de rir. Qual seria a cara dele

agora, que Caio estava mesmo indo morar em Estocolmo?

Na Suécia, os grupos se juntaram e foram todos morar numa residência estudantil minúscula. Os estudantes estavam de férias, e os estrangeiros se hospedavam no que usualmente eram seus alojamentos. Ficaram uns seis dias nessa residência, e depois se mudaram para outra, um pouco maior. Aos poucos, todos iriam se estabelecer, arrumar empregos: Juarez iria trabalhar no restaurante Catelin; Caio também iria lavar pratos, em outro lugar; Sônia arrumaria emprego em um hotel, e Sandra Laporta em outro restaurante. Aos poucos, também, todos iriam se ajeitando e conseguindo moradias individuais ou em duplas.

O grupo estava sempre junto, fosse na "casa" de um ou de outro. Encontravam-se depois dos respectivos trabalhos e iam beber, conversar, fazer comida. Augusto se revelou um exímio ladrão de supermercados: vestia seu macacão Lee e enchia os bolsos de enlatados. Sandra também se saiu bem — roubava camarões do hotel onde trabalhava e trazia para casa. Era uma festa. Todo mundo se deliciava com os camarões que, de outra forma, jamais poderiam comer,

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caríssimos que eram. Juarez nunca pegou nada. Era medroso demais e não conseguia levar um roubo até o final. Caio também tinha medo, mas pegou uma coisinha aqui e outra ali.

Entre um delito e outro, o pessoal arrumava tempo também, nas horas vagas, para viver o sonho lisérgico de uma geração. Era época de maconha, de haxixe, de ácido. E era um desses adoráveis quadradinhos mágicos que fez Juarez anotar em seu diário, no dia 24 de maio, três ligeiras palavras: "Pintou um pink. "Para bom entendedor, meia palavra basta. No dia seguinte, Caio e Augusto tomaram o tal pink, e embarcaram numa viagem incrível. Juarez pegou carona, e ficaram todos pirando cor-de-rosa, numa boa, até o efeito passar. A coisa foi tão boa, na verdade, que logo começaram os planos para outra dessas excursões, digamos, coloridas.

O dia 27 de maio caiu num sábado bonito, com sol e tempo bom. A primavera sueca está relativamente quente: dá pra sair de manga curta tranqüilamente. Os brasileiros reunidos em Estocolmo vão fazer um piquenique num bosque no bairro de Kungshara. Uma beleza de bosque: jardins cheios de amores-perfeitos e tulipas, esquilos passeando tranqüilos, junto com ovelhas e cervos. Atmosfera mágica, de conto de fadas. Os ácidos tomados às duas e meia da tarde nada mais fizeram que realçar a magia natural do parque... Caio está vestido todo de branco, andando por debaixo das árvores. Juarez, com a cabeça em órbitas insondáveis, olha pelo visor da máquina fotográfica. Uma caixa de TV está jogada no lixo, embaixo de um pequeno barranco. Caio vai até lá e passa na frente do visor de Juarez. Esse tem um insight e grita, extasiado:

— Puxa, o Caio parece o Jesus Cristo! Sandra corre para a frente da máquina e diz, com medo

de que aquilo fosse manifestação de alguma bad trip: — Corta essa, cara. Nesse momento, Juarez pára de entender o que está

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acontecendo. O mundo à sua volta, o bosque, o fiorde ali do lado com o castelo do rei Gustavo Adolfo, tudo, tudo perde o significado. A viagem ruim começa pra valer. Caio, junto com os outros, vai consolá-lo:

— Isso não é nada, cara, passa logo. E passou mesmo. Depois de sete horas. Na volta à terra,

o grupo foi para a casa de um português ouvir discos. Cat Stevens, Jorge Ben, o disco Chico & Caetano, Novos Baianos. Comeram xis-búrgueres com batatas fritas. Caio falava e falava, analisando a viagem do amigo, possíveis significados, as descobertas de si mesmo e dos outros por que Juarez tinha passado. Ele mesmo era muito sujeito a badtrips, com seu temperamento depressivo, e tinha passado por umas terríveis em Porto Alegre. Mas ali, junto aos amigos, num país distante, essas lembranças ruins pareciam distantes. Assim como parecia distante o tempo em que tinha morado em Santa Teresa, no Rio, em uma imitação malsucedida de comunidade hippie. Ali, longe do Brasil, as coisas pareciam possíveis. Até mesmo utopias que tinham escorrido pelo ralo por causa da dureza da realidade pareciam mais fáceis de acontecer naquele país, onde os jovens se deitavam seminus nos parques para tomar sol, tudo de forma muito pura, sem maldades ou malícias.

A idéia de paraíso na terra deve ter desmoronado para

Caio mais ou menos dois dias depois do piquenique no parque, quando ele encontrou o primeiro emprego, aquele de lavar pratos. Era em um bar, no centro de Estocolmo. Não tinha sido fácil. Ele e Augusto rodaram vários dias até encontrarem colocações. Augusto foi parar numa fábrica, longe da cidade, e Caio se dedicou a ficar oito horas de pé por dia, com luvas de borracha até o cotovelo, lavando pratos. E também garfos, facas, bandejas, copos, panelas. O detergente lavava também toda a arrogância que Caio pudesse sentir. Ali, naquela cozinha onde todo mundo falava uma língua que ele não entendia, ele não era melhor que ninguém. Os livros que lera, os textos que escrevera e publicara, sua postura

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"avançada", nada disso o distinguia de David, o boliviano, ou dos dois japoneses, ou do engraçado africano que trabalhavam com ele. Que seu livro O ovo apunhalado tivesse ganhado Menção Honrosa em um concurso no Brasil, isso não importava. Ali, ele era um lavador de pratos que não falava sueco. Ponto.

Claro que, quando aquela vontade de viver novas experiências passasse, e a temporada chegasse ao fim — e chegaria, como todos sabiam —, Caio poderia voltar para a casa dos pais e viver uma vida de odalisca outra vez, sem maiores preocupações. Mas, por enquanto, o momento parecia duro demais para enfrentar. E Caio, dramaticamente, bem ao seu estilo, decidiria que o menino cheio de esperanças que ele fora um dia morrera ali, na cozinha de um bar no centro de Estocolmo, lavando louça.

No dia 18 de julho, Juarez e Sônia foram embora. Juarez estava triste. Caio foi se despedir deles. Chegaria também sua vez de partir, e ele também, talvez, se sentisse triste. Saudade de ficar com Augusto e outros malucos na praça, enquanto eles vendiam colares e um francês tocava violão. Sentiria falta, talvez, até dos guardas que vinham expulsá-los sempre que começava a sessão de violão. Falta de Nega Lu, o gay negro, enfrentativo, inteligente e bem informado, que debochava de todo mundo, mas de quem ninguém debochava, pois era forte demais e seria capaz de pendurar pelo pescoço qualquer um daqueles intelectuais, cujo único exercício físico era o levantamento de copo. Mas não, Caio não se sentiria triste; antes de chegar à Suécia, a Suécia era para ele o paraíso. Uma vez lá, porém, e passado o impacto e a fascinação dos primeiros dias, ele começaria a achar a cidade um horror. Fora assim com São Paulo, com o Rio de Janeiro, com Porto Alegre. Fora assim com Madri. Estava sendo assim com Estocolmo e provavelmente seria assim com Londres, que ele tanto ansiava em ver. Esse era Caio: sempre achava um jeito de colocar defeito no lugar onde estava. Sentia-se um estrangeiro onde quer que fosse, sem possibilidade de cura.

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Depois de ter dado um pulo na Holanda e na Bélgica,

Caio estava, finalmente, em Londres. A primeira impressão foi de êxtase: cabelos coloridos andando pelas ruas, sem ninguém olhar nem comentar, roupas dos anos 30, parques lindíssimos, pessoas gentis. A cidade parecia saída de um livro de Virgínia Woolf, e era maravilhosa, bem diferente da dura Estocolmo, onde as pessoas eram fechadas demais. Todo o deslumbramento, claro, só duraria o tempo suficiente para que Caio escrevesse meia dúzia de cartas para os pais e amigos; logo ele já estaria achando a cidade fria demais, cinzenta demais. Chuva a todo momento, uma chateação. E aquela história de não ter dinheiro para nada e trabalhar em subempregos para sobreviver não era nenhuma maravilha. Fazer faxinas em casas de atores, trabalhar de modelo vivo em escolas de Belas-Artes, horas na mesma posição para que os alunos o desenhassem. Não era isso que ele tinha sonhado; não era isso que os livros tinham prometido.

Durante todo o tempo em que esteve viajando, Caio e Vera Antoun continuaram se correspondendo. Trocaram cartas amorosas, interessantes, em que ele contava suas experiências e suas mudanças de humor. Falava, por exemplo, de Nelson, um dançarino cubano que ele estava meio que namorando. Depois de meses sozinho, Caio arrumara uma paixão que o fazia suspirar pelos cantos e cantar canções do Roberto Carlos (lembrem-se que o ano é 74, e a fase brega do rei ainda não tinha começado, com todas aquelas odes às mulheres pequenas-gordinhas-de-óculos). Mas Nelson, embora tenha tido seu momento, não viria a ser o grande amor da vida de Caio; como, aliás, ninguém seria. Ele era individualista ao extremo e não deixaria que alguém entrasse em seu mundo; qualquer ameaça à sua liberdade, ele saltava fora, soltando farpas para todo lado. Nesse ponto, era defensivo, incapaz de se comprometer.

A relação com Vera, por exemplo, foi esfriando à medida que chegava a hora de voltar ao Brasil e encará-la frente a

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frente. Ele, que falara em casamento e filhotes com olhos de vaca-jérsei, já estava dizendo: opa, não é bem assim. Primeiro, disse que casar não tinha nada a ver, que se duas pessoas se gostavam, não era preciso papel nenhum para afirmar isso. Segundo, ele não podia mais dizer que a amava; só teria certeza disso se estivesse com ela ao vivo e em cores, exatamente aquilo que ele estava tentando evitar. E terceiro, ele não tinha condição de pôr um filho no mundo, não do jeito que vivia, sempre sem dinheiro, vendendo o almoço para comprar cigarros. Quarto: ele estava ficando careca, entradas enormes na cabeça; o cabelo lindo e escorrido de índio estava indo embora. Além disso, estava branquelo demais de tanto não-sol que fazia em Londres. Será que ela ia querer alguém assim ao seu lado?

Em abril de 1974: "Tenho medo de te ferir. Mas acho que precisamos 'falar

seriamente'. Desculpe, mas acho que sim, sem fantasia, sem comicidade. Me pergunto sempre se você não teceu em volta de mim uma porção de coisas irreais — se você não está projetando em mim qualquer coisa como um príncipe encantado — esperando a minha volta como quem espera a salvação."

Para quem queria comer a garota com molho de chocolate, era uma mudança e tanto.

Caio escreveu muitos textos sobre o relacionamento entre duas pessoas, tanto sobre relações hetero como homossexuais. Essa sempre foi uma de suas principais preocupações: sempre quis viver um grande amor, uma paixão avassaladora. A seu modo, experimentou de tudo. Mas não deixava que ninguém entrasse demais em sua intimidade. Assim, acabava, quase sempre, sozinho. A incomunicabilidade, comum entre pessoas que se gostam, foi explorada em um texto de O ovo apunhalado, Para uma avenca partindo:

— Olha, antes do ônibus partir eu tenho uma porção de

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coisas pra te dizer, dessas coisas assim que não se dizem costumeira-mente, sabe, dessas coisas tão difíceis de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas, compreende? olha, falta muito pouco tempo, e se eu não te disser agora talvez não diga nunca mais, porque tanto eu como você sentiremos uma falta enorme de todas essas coisas, e se elas não chegarem a ser ditas nem eu nem você nos sentiremos satisfeitos com tudo que existimos, porque elas não foram existidas completamente, entende, porque as vivemos apenas naquela dimensão em que é permitido viver, não, não é isso que eu quero dizer, não existe um dimensão permitida e uma outra proibida, indevassável, não me entenda mal, mas é que a gente tem tanto medo de penetrar naquilo que não se sabe se terá coragem de viver, no mais fundo, eu quero dizer, é isso mesmo, você está acompanhando meu raciocínio? [...] [...] está bem, eu espero aqui do lado da janela, é melhor mesmo você subir, continuaremos conversando enquanto o ônibus não sai, espera, as maçãs ficam comigo, é muito importante, vou dizer tudo numa só frase, você vai....................................................................sim, sei, eu vou escrever, não, eu não vou escrever, mas é bom você botar um casaco, está esfriando tanto, depois, na estrada, olha, antes do ônibus partir eu quero te dizer uma porção de coisas, será que vai dar tempo? Escuta, não fecha a janela, está tudo definido aqui dentro, é só uma coisa, espera um pouco mais, depois você arruma as malas e as bolsas, fica tranqüila, esse velho não vai incomodar você, olha, eu ainda não disse tudo, e a culpa é única e exclusivamente sua, por que você fica sempre me interrompendo e me fazendo suspeitar que você não passa mesmo duma simples avenca? Eu preciso de muito silêncio e de muita concentração para dizer todas as coisas que eu tinha pra te dizer, olha, antes de você ir embora eu quero te dizer quê.

Além de arrebentar esperanças e se engraçar com rapazes cubanos, Caio continuou em Londres com os pequenos roubos em lojas. Coisa pequena. As lojas grandes de onde roubavam nem sentiriam o prejuízo. Mas a Inglaterra é um país onde o shopliting é punido de forma mais severa

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que no Brasil; os seguranças e policiais não queriam nem saber de conversa. Assim, quando Caio e o amigo Homero, que também morava no apartamento que ele dividia com Marisa e Augusto, entraram em uma livraria, roubaram livros e foram vistos, não houve meio de convencer os guardas de que, como diz Garcia Márquez, roubar livros é errado, mas não é pecado. Por causa dos dois volumes de uma biografia imensa sobre Virgínia Woolf, Caio e Homero passaram a noite na cadeia e foram condenados a pagar 30 libras de multa. Era mais do que Caio ganhava por semana na escola de Belas-Artes; mas apertando aqui e ali, dava para pagar.

Prisão num país estranho e 500 contos a menos: era até onde o amor à literatura tinha feito Caio chegar.

É, estava na hora de voltar para casa.

TRÊS

— Tá certo que o sonho acabou, mas também não precisa virar pesadelo, não é?

A frase foi escrita por Caio Fernando Abreu no espelho de seu quarto em Porto Alegre, em julho de 1975. Cinco anos antes, John Lennon anunciara o fim do sonho de toda uma geração, ao cantar que não acreditava mais em coisa alguma: mágica, Ching, Jesus, Buda, Elvis ou Beatles. Ele só acreditava nele mesmo e em Yoko Ono; o sonho acabara. "The dream is over, what can I say?" A música era God, do primeiro ábum de Lennon sem os Beatles, o Plastic Ono Band. Os besouros musicais já não existiam, e o mundo devia seguir em frente sem eles.

O ano de 1968 ia longe. Os dias de Caio na Europa também. De volta ao Brasil, ele percebia o quando tinha reclamado de barriga cheia enquanto estava viajando. O clima claustrofóbico da ditadura continuava, embora amenizado, com a abertura começando a se esboçar. O

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Suplemento Literário de Minas Gerais, em que Caio colaborava desde antes de viajar, avisou que só poderia publicar um conto dele se as palavras "merda" e "tesão" caíssem fora. As pessoas em Porto Alegre estavam mudadas: tinham feito coisas das quais ele nada sabia, porque estivera fora; elas também não sabiam nada das experiências por que ele passara. Ninguém se entendia, as referências eram outras. O clima estava ficando pesado também no quesito drogas: muita gente estava começando a pirar, internações em clínicas, coisas assim. Não se podia andar pela rua com cabelos compridos e batas indianas sem chamar a atenção, como em Londres ou Amsterdã. É, era o Brasil. Por que mesmo ele tinha decidido voltar? A depressão veio pesada. Readaptar-se era difícil. Caio poderia consultar um psiquiatra amigo seu, Ernesto Bono, se o dinheiro não fosse tão curto, e a necessidade de sobreviver maior que a de curar caraminholas da cabeça. Bono era um psiquiatra diferente dos outros: era, na verdade, um anti-psiquiatra. Acreditava que a psicanálise tradicional tinha algumas vantagens, mas que no geral só servia para reforçar aquilo que ele considerava o grande problema do ser humano: o ego. Ele ia por um lado mais zen, mais de desapego; acreditava numa forma de conhecimento mais holística, falava em macrobiótica e, junto com o jornalista Luiz Carlos Maciel, queria fazer de Porto Alegre um centro de irradiação da contracultura para todo o Brasil. Caio gostava muito de Bono, mas não tinha condições, no momento, de pagar suas consultas. O milagre econômico dos militares não tinha chegado até a casa da família Abreu, como não chegara para a maioria dos brasileiros. E, mesmo que tivesse, não adiantaria nada: o milagre estava com os dias contados. Só faltava aprontar o enterro. O sonho estava acabando, e não era só para os Beatles.

Enquanto o enterro não vinha, Caio se virava para sobreviver em Porto Alegre. Não precisava fazer faxina nem posar em escolas de Belas-Artes, mas algum trabalho ele

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tinha que ter, e a saída era, como sempre, o Jornalismo. Escrever na imprensa era parte daquilo que ele chamava de "biscates culturais": resenhas e críticas para jornais, traduções e revisões para editoras, oficinas de criação literária para alunos com ou sem talento, qualquer coisa que pudesse garantir algum dinheiro no fim do mês enquanto ele escrevia seus livros. E uma das coisas que havia para se fazer em Porto Alegre, na metade da década de 1970, era colaborar com a imprensa alternativa. Eram jornais que, justamente por serem independentes, podiam se dar ao luxo de dar espaço a críticas e inovações. No eixo Rio-São Paulo, ficaram famosos veículos como O Pasquim, Opinião, Movimento, Bondinho: cada um com sua opção formal, estética e política, pois havia veículos para todos os gostos, tendo em comum apenas a condição de nanicos.

A imprensa nanica, como a chamara João Antônio nas páginas de O Pasquim, não era privilégio de paulistas e cariocas. Entre 1967 e 1973 existiu, por exemplo, o jornal Exemplar, comandado por Juarez Fonseca, em que Caio Fernando Abreu chegou a colaborar algumas vezes. Tirando O Pasquim, com quem, aliás, Caio compraria uma boa briga no final de 1976, ele colaborou em quase tudo que era nanico: Opinião, Movimento, Ficção, Inéditos, Versus, Escrita. Em 1976, Juarez começou outro projeto que teria a participação de Caio: a revista Paralelo, que duraria apenas quatro números. Dois meses antes da revista sair, Juarez pediu a Caio que entregasse uma crônica para o primeiro número da revista. Ele teria uma página só para ele, poderia escrever o que quisesse, um luxo. Mas Caio estava deprimido, sem idéias, sem dinheiro nem para as anti-consultas com Bono, ainda não totalmente recuperado da experiência européia. Por dois meses, ele esperou que alguma idéia aparecesse, alguma coisa bonita para oferecer aos leitores. Findo o prazo, porém, ele não estava melhor que antes, e nem as inspirações brotavam com mais facilidade. O jeito foi então escrever uma crônica falando exatamente desses sentimentos escuros que ele sentia, sem esconder nem maquiar nada.

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Depois de consultar o amigo Giba Rocha, descobriu que muita gente tinha gostado de entrevistas que ele tinha dado, entrevistas veementes em que Caio assumia suas posições peculiares com firmeza. Viam nele uma espécie de porta-voz da geração dos anos 70, o que, de certa forma, ele acabou se tornando mesmo, de forma não-planejada. Mas no momento, essa era uma responsabilidade grande demais para ele. "Acontece que não sou [porta-voz] e não quero assumir esse papel, porque — estou usando o máximo de, desculpem, sinceridade — não sirvo nem pra porta-voz de mim mesmo. Nos últimos tempos tenho me movimentado com dificuldade dentro dos meus escombros-de-dentro, por uma série de razões demasiado pessoais para serem trazidas ao baile (trata-se de um baile?) ando com uma autocrítica violentíssima e não consigo, simplesmente não consigo pensar organizadamente (?) ou ter idéias claras ou/e precisas sobre as coisas, quaisquer que sejam. Eu disse: quaisquer. Nas cartas que tenho escrito ou nos meus rabiscos solitários (e vis, talvez) no meio da noite, acabo sempre caindo na mais lamentável das auto-lamentações: dói, tudo dói, DÓI PRA CACETE, meu irmão; como uma nevralgia psico-espiritual (!), parece que alguma peça importante para o meu funcionamento simplesmente quebrou, e eu não sei o que fazer, e tenho consciência de quanto isso parece ridículo e juvenil, só não estou mais afim de fingir que tudo-bem, você me entende?, e é isso mesmo que eu sou, esse "ter nascido me estragou a saúde"ambulante e crônico."

A crônica segue e Caio menciona amigos, pessoas talentosas, todas mais aptas a escrever a página que ele: Tânia Faillace, Sérgio Caparelli, Luiz Fernando Emediato. Fala de uma coisa e outra, cita Mario Quintana e Adélia Prado, reclama que as grandes sacanagens sociais continuam acontecendo, "apesar das nossas ficções": "Escrevo por uma espécie de incompatibilidade-de-gênios com a vida, escrevo para reinventar, para organizar o caos, para não enlouquecer de impotência, para refazer. Mas não pense que não sei do inútil disso. " Fala também em revolução sexual e de alguém que ele queria encontrar, mas nunca está em casa. Cobra dos outros, referindo-se à previsão de Bono e de Luiz Carlos Maciel de que a Bahia já era e o novo pólo de irradiação da

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contracultura no Brasil seria o Rio Grande do Sul: "como é que é? não era um lugar altamente esotérico? Não aconteceriam coisas incríveis por aqui?" O texto termina:

"Alguém me disse, já faz tempo, num bar: "Um dia alguém precisa virar a mesa ao invés de só pedir outra Brahma. "Arrotou, chamou o garçom (seria o Isaac?) e pediu outra." E voilá, uma crônica estava pronta.

Se Caio estava mal, em parte a culpa era dele. Estava bebendo de sua taça, como gostava de dizer. Mas a taça destinada à sua geração nem sempre tinha só champagne; de vez em quando era cicuta, e das brabas, daquelas de matar filósofos. Se não havia dinheiro, um pouco era por causa da economia em crise, mas também porque Caio nunca se sujeitou a um emprego comum por muito tempo. Se ele não conseguia encontrar um único e belo amor, talvez estivesse procurando nos lugares errados. Se havia bad trips, ora, era por causa das drogas. Se a ditadura existia, era porque... Bem, a ditadura era uma das coisas sobre as quais Caio não tinha controle algum. Era uma dose amarga que sua geração tinha que engolir sem reclamar.

Caio provou desse veneno em 1975, quando foi preso em Garopaba, no litoral catarinense. Ele já havia sido preso em 1971, no Rio de Janeiro, em um falso flagrante de drogas. Dessa vez, eram dez ou quinze pessoas, entre elas Graça Medeiros, Caio, Jaime. Tocavam flauta, entravam no mar, conversavam, riam. Em dado momento, Caio e Graça foram até a padaria, na cidade; ele de calção, ela de biquíni. No caminho, alguém apontou para eles:

— Olha lá! Minutos depois, estavam presos. Na ocasião, Caio apanhou muito. Queriam que ele

depusesse contra Graça, que era o verdadeiro alvo, a pessoa em quem realmente estavam de olho, por questões políticas. Como Caio, muito dignamente, se recusasse a falar, soltaram-no. Graça foi presa e condenada em um flagrante

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falso de porte de maconha, armado na delegacia de Florianópolis dois dias depois de ter sido presa em Garopaba. O responsável pela prisão era o delegado Elói Gonçalves, o mesmo que ficaria famoso, um ano depois, por prender Gilberto Gil e Chiquinho Azevedo por porte de maconha, em Florianópolis, às vésperas de um show dos Doces Bárbaros. Gil e Chiquinho, assim como Graça, foram condenados a passar um tempo em clínicas psiquiátricas.

Essa história serviu de inspiração a Caio para escrever o conto Garopaba mon amour, mistura de fatos com altas doses de invenção e fantasia, publicado pela primeira vez na revista Ficção. Nessa ocasião, Graça tinha dado um jeito de escapar da clínica, e estava escondida. E a quem o boca-grande do Caio dedica o conto? A Graça Medeiros. E não só: à fugitiva Graça Medeiros, que, é claro, ficou furiosa, de modo que Caio acabou nunca mais dedicando texto algum a ela. Quando o conto foi publicado em livro, em Pedras de Calcutá, a dedicatória foi suprimida. A epígrafe do texto é um trecho do conto Garopaba meu amor, de Emanuel Medeiros Vieira, escritor catarinense. Depois de ter sido preso e solto na despedida de Jaime, Caio passou uns tempos na casa de Emanuel, em Garopaba.

Evitamos nos encarar — por que sentimos vergonha ou

piedade ou uma compreensão sangrenta do que somos e do que tudo é? —, mas, quando os olhos de um esbarram nos olhos do outro, são de criança assustada esses olhos. Cão batido, rabo entre as pernas. Mastigamos em silêncio as chicotadas sobre nossas costas. E os corações de vidro pintado estalam ainda mais alto que as ondas quebrando contra as pedras.

— Conta. -Não sei. (Bofetada na face esquerda.) — Conta. — Não sei. (Bofetada na face direita.) — Conta. -Não sei. (Pontapé nas costas.)

Antes do episódio em Garopaba, Graça tinha sido uma

das responsáveis pela publicação de O ovo apunhalado. O

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livro tinha ganhado, em 1973, menção honrosa do Prêmio Nacional de Ficção, mas só seria publicado dois anos depois, e com contos suprimidos pela censura, pelo Instituto Estadual do Livro, em parceria com a editora Globo. Na época, Graça era assessora de Paulo Amorim no Departa-mento Cultural da Secretaria de Educação e Cultura do Rio Grande do Sul, ao qual o Instituto Estadual do Livro (IEL) era vinculado, e intercedeu junto a ele para que o livro saísse.

Em 1975, além de publicar O ovo, Caio receberia o Prêmio Leitura do Serviço Nacional de Teatro (SNT) pela peça Uma visita ao fim do mundo, que mais tarde, sabiamente, teria seu nome trocado para Pode ser que seja só o leiteiro lá fora. Premiada, a peça foi indicada para leituras em várias partes do país; logo depois, porém, foi proibida, e só viria a ser encenada em 1983. O leiteiro... era a continuação do trabalho com teatro que Caio vinha fazendo desde que voltara da Europa. Em 1974, tinha trabalhado com o grupo Província na peça Sarau das 9 às 11. Aquela era uma peça de esquetes, e fora escrita a quatro mãos por Caio e por Luiz Arthur Nunes, primeira de várias parcerias da dupla. Os dois chegaram a morar juntos por um ano, em 1976, no apartamento de Luiz na rua Jerônimo Coelho, de onde Caio só sairia para a famosa casa da rua Chile.

A parceria com Luizar — como Caio o chamava — era boa, fluía. Um escrevia uma frase, o outro mais uma, e assim sempre, na maior facilidade. Ou então cada um escrevia uma cena, e o outro mexia, retocava. Como a experiência desse certo com o Sarau..., foi repetida em 1977: Luiz Arthur ia fazer um espetáculo de esquetes, precisava de alguns textos, e Caio escreveu alguns diálogos curtos.

Em Pode ser que seja só o leiteiro lá fora, alguns amigos se escondem em uma casa abandonada, enquanto aguardam o fim do mundo chegar. Ao amanhecer do dia seguinte, descobrem que não há nuvens de radioatividade, que o sol ainda brilha e o mundo está a salvo, por enquanto.

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JOÃO (Sem emoção.) — Estão batendo na porta. ROSINHA — Devem ser os três reis magos que vêm visitar o menino, trazendo ouro, incenso e mirra. Ou os quatro cavaleiros do Apocalipse. BABY— Ou Mona. Quem sabe é Mona com os extraterrestres? Eles vêm nos buscar também. LEO — É a polícia. Tenho certeza que é a polícia. ANGEL — Puede ser algun vecino. CARLINHA — Eu acho que são os sobreviventes da explosão. Os monstros, com aquela pele toda verde, apodrecendo e caindo... Eles vêm nos matar porque nós sobrevivemos. Nós tínhamos o direito de sobreviver ao fim do mundo. ALICE — Piração, piração, tudo piração: pode ser que seja só o leiteiro lá fora.

Por essa época, metade dos anos 70, Caio já era, principalmente em Porto Alegre, um escritor reconhecido, de certa forma consagrado. Com três livros publicados, ele era um dos integrantes do chamado boom literário dos anos 70: uma turma nova que fazia ficção, principalmente através do conto. Esses escritores se correspondiam, trocavam informa-ções, impressões, tentavam ajudar uns aos outros dentro de suas capacidades, mostrando o texto dos amigos para outras pessoas, escrevendo resenhas positivas em jornais e revistas. O espírito da época era de solidariedade com os colegas, e nisso Caio não desapontou os amigos. Mais de uma vez, deu provas de sua fidelidade, escrevendo em jornais sobre os escritores que admirava, e que quase ninguém conhecia, como a própria Hilda Hilst, aclamada por um certo ramo da crítica mas desconhecida do público, e nem só do grande. Na época, ninguém lia Hilda Hilst. A escritora se magoava com isso; tanto que, já mais velha, decidiu que iria escrever livros eróticos para ver se venderia mais. Ilusão, claro: a porno-grafia de Hilda não era como outras pornografias, como qualquer pornografia, e ela não vendeu nem meio exemplar a mais por isso; além disso, perdeu o respeito de uma parte da crítica, que passou a chamá-la de velha safada, coisas assim. Outro em quem Caio deu um empurrão foi o poeta Nei

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Duelos, gaúcho de Uruguaiana e radicado na capital. Eles eram amigos de conversar sobre literatura, cinema. Nei era jornalista. Quando entrara na faculdade, Juarez Fonseca ainda andava por lá, e foi ele que, na primeira reunião de estudantes a que o calouro Nei compareceu, chamou-o a um canto e explicou tudo: o movimento estudantil é assim e assado. E seria Juarez também que, anos depois, junto com Caio, iria na casa de Nei e o ajudaria a editar o livro Outubro. Os três separaram os poemas por tema, organizaram o livro. Caio sugeriu a troca de algumas palavras, e em geral estava certo: Nei acatava sua sugestão por achar que tinha ficado melhor.

Caio leu um poema do qual gostou muito, e perguntou em quem o poeta estava pensando quando escreveu.

— No Mario Quintana — disse Nei. Então Caio sugeriu que ele colocasse o Mario Quintana

no título do poema. Será?, perguntou o poeta. Estava em dúvida. Caio o aconselhou a arriscar. Nada teria a perder. Nei seguiu o conselho e nomeou o poema Mario Quintana. Não se arrependeria: quando o livro saiu, Quintana adorou o poema. Tanto que aceitou fazer o prefácio do livro seguinte de Nei.

Antes de Mario Quintana ver o poema, porém, o livro tinha que ser publicado. Caio usou de sua influência no IEL para conseguir a publicação de Outubro, o livro garimpado na papelada de Nei. Ele deu um parecer favorável à publicação do livro. Quando o livro saiu, foi um acontecimento: afinal, Nei não era ainda conhecido, como Caio, nem tinha nada publicado em lugar nenhum, a não ser em jornais mimeografados. Alguns conheciam sua poesia de vê-la declamada nos encontros de estudantes, mas, no geral, ele era um autor marginal. Vê-lo publicado com capricho pelo governo do estado, em plena ditadura, era algo para se comentar. Os outros poetas podiam pensar: ei, se o Nei pode, eu também posso.

Muitos dos autores publicados nessa época pelo IEL, Caio inclusive, tinham muito a agradecer à diretora do

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instituto, Lígia Averbuck. Com uma visão aberta e democrática do que devia ser a literatura, ela trouxe para o instituto e conseguiu publicar muitos autores considerados malditos, e muitos autores simplesmente novos, desconhecidos, que dificilmente conseguiriam espaço em outras editoras. Era aquela velha história: quem não fosse conhecido não seria publicado, mas como se tornar conhecido se não aceitavam publicá-los?

Apesar do heroísmo de Lígia Averbuck, ela não podia dar conta de toda a cena literária do Rio Grande do Sul. Mais coisas precisavam ser feitas. Assim, para combater a política conservadora das editoras, os autores começaram a se unir e a produzir antologias, algumas pagas do próprio bolso. Caio participou de várias, entre elas Teia & Assim escrevem os gaúchos, ambas de 1976. Era uma maneira de divulgar a novíssima literatura do país: muita gente estava escrevendo coisa boa, e era preciso desovar essa produção de algum jeito. Uma dessas antologias, porém, iria causar a Caio uma enorme dor de cabeça. E justo aquela que lhe daria mais visibilidade: a antologia publicada pela Codecri, editora de O Pasquim.

Pouco tempo antes, o nanico mais influente do país tinha decidido criar uma editora, a ser dirigida por Jeferson Ribeiro de Andrade. O primeiro livro que ele quis publicar foi uma história policial de Otávio Ribeiro. Em segundo, viria uma antologia de doze contos de autores novíssimos, gente que vinha se destacando pelo talento precoce. Entre os seis autores escolhidos estava Caio. Os outros eram o próprio Jeferson, bom jornalista, mas escritor "sem grande brilho", como escreveu em uma reportagem Luiz Fernando Emediato, que, aos 25 anos, também participaria da antologia; Antônio Barreto, poeta de 22 anos que dava seus primeiros passos na ficção; Domingos Pellegrini, o mais velho da turma, com 28 anos (Caio tinha 27); o carioca Júlio César Monteiro Martins, com 21 anos e uma arrogância típica da idade.

O mineiro Luiz Fernando Emediato era jornalista e

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editava as revistas Silêncio, que logo foi fechada pela polícia, e Inéditos. Aos 19 anos, tinha ganhado o prêmio Revelação de Autor e, por causa disso, fora considerado por muita gente uma espécie de garoto-prodígio da literatura brasileira. Isso até que o crítico Flávio Moreira da Costa o chamasse de Shirley Temple: surpreendente enquanto jovem, e ruim à medida que fosse ficando mais velho. Anos mais tarde, Emediato, antes de retomar as atividades de escritor, diria que talvez Flávio tivesse razão.

Naquela época, ele editava suas revistas, escrevia seus romances e contos, se correspondia com outros autores. Um desses escritores era Caio Fernando Abreu. Os dois vinham lendo os textos um do outro há algum tempo, através de suplementos literários diversos; Luiz gostara de um livro de Caio, O ovo apunhalado, e escreveu a ele pedindo um texto para a Inéditos. Caio mandou, eles continuaram a se corresponder, ficaram amigos. E, em 1977, foram convidados para fazer parte da antologia Histórias de um novo tempo, da Codecri.

A princípio, as coisas tinham tudo para dar certo. Os autores da antologia se correspondiam, trocavam impressões; todos amavam a literatura, todos se revoltavam contra alguma coisa, embora as semelhanças parassem aí. "Jéferson era naturalmente revoltado, por causa do mau humor; Barreto, Pellegrini e eu éramos marxistas e queríamos derrubar a ditadura a qualquer custo, ainda que derramando sangue; Caio, infeliz, revoltava-se naturalmente contra a trágica condição humana; e Júlio César, um burguês liberal, cujo talento tinha o mesmo tamanho, enorme, da vaidade juvenil, revoltava-se contra o fato de, aos 21 anos, ainda não ser considerado o maior gênio da literatura brasileira de todos os tempos", escreveria Emediato, numa bela definição dos envolvidos na antologia, na reportagem que fez para a revista Geração, da editora Geração Editorial, que fundaria décadas depois.

Essas diferenças, no entanto, iriam se agravar com o tempo. Havia muitas coisas na visão de arte dos

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companheiros com que Caio não concordava. Em março de 1977, por exemplo, Emediato enviaria a ele uma cópia do Manifesto Neo-Realista, criado pelo grupo para dizer ao mundo o que eles pensavam sobre literatura. A própria idéia de um manifesto, de um conjunto de regras — ou diretrizes, ou opiniões, como se queira chamar, mas que no final viram regras mesmo — a serem seguidas não podia ser agradável para Caio, sempre independente, muito dono do próprio nariz.

Emediato tinha mandado, por engano, duas vezes a segunda página do manifesto, e nenhuma da primeira. Assim, uma das primeiras coisas que Caio leu do documento foi a frase: "contra

O individualismo". Ora, ele não era de forma alguma contra o individualismo. Suas influências literárias só falavam do indivíduo: Clarice Lispector, Virgínia Woolf, Mareei Proust. Além disso, fazia um ano que ele estava fazendo análise (tinha conseguido um emprego na Folha da Manhã como crítico de teatro, e assim podia pagar as consultas) e, com isso, lentamente, emergia da depressão pós-Europa. Agora ele estava melhor, mas graças a quê? A analisar o ego. O eu, o indivíduo. Imagina, ser contra o individualismo. Que idéia.

E esse era apenas o começo da confusão. Caio usou de muito tato, em carta, para dar a entender a Emediato que não assinaria o manifesto. Afinal, ainda gostava muito do pessoal que sairia na antologia. Os seis eram os "paladinos do Oeste", como os chamaria na dedicatória de um livro anos depois Emediato, aliás, o preferido de Caio. O mineiro tinha escrito alguns contos de temática homossexual, embora fosse casado e hetero convicto. Sua única experiência com um homem fora na adolescência, e servira para mostrar que não era aquilo que ele queria. Mesmo assim, escrevia os tais contos, pouco preocupado com o que pudessem pensar; Caio lera alguns desses textos, e achou que havia esperança. Ali parecia estar uma alma-irmã da sua, com a mesma sensibilidade. Caio ansiava pelo momento de conhecê-lo

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pessoalmente; no cara-a-cara, poderia ver se suas expectativas se confirmavam ou não. Foi visitar Emediato em sua casa, em Belo Horizonte. Tudo correu bem, a amizade se fortaleceu. Agora faltava encontrar o resto do grupo.

O encontro com os outros paladinos aconteceu no lançamento da antologia, no Rio de Janeiro. Quatro deles — Barreto e Pellegrini não puderam ir —, que uns dos outros só conheciam palavras escritas, puderam se apertar as mãos e se olhar nos olhos. Nada de mal até aí. A confusão aconteceu mesmo quando os quatro foram dar entrevista a O Pasquim.

Histórias de um novo tempo teve sua primeira edição, de 20 mil exemplares, esgotada em quinze dias. Mais dez mil exemplares saíram, e acabaram logo. A coletânea era um sucesso, sob todos os pontos de vista. Os autores foram entrevistados pelo tablóide, e o texto saiu. E saiu editado, com trechos cortados, para que coubesse no jornal, como todos os textos. Só que Caio não gostou nem um pouco da tal edição. Na sua cabeça, só trechos dos seus depoimentos tinham sido cortados; toda a parte em que ele falava de homossexualismo teria ficado de fora, por exemplo. Intempestivo, escreveu uma carta ao jornal, manifestando toda a sua raiva. E a resposta o deixou ainda mais irado: O Pasquim, bem ao seu feitio, mandava ele lamber sabão ou catar coquinho, coisas do gênero. Depois disso, a relação do grupo foi se esfacelando mais e mais. Implicou, por exemplo, com Júlio César, em quem não perdoava a vaidade juvenil.

No final de 1977, Luiz Fernando Emediato ganhou um prêmio literário da revista Status. A grana era boa, e ele decidiu viajar com a esposa Sylvia. O filho de oito meses ficou com a avó, em Minas. O plano era visitar Caio em Porto Alegre — a relação entre eles sobrevivera aos entreveros com os demais paladinos e com O Pasquim — e depois ir até Buenos Ares ver Eduardo Gudino Kieffer e Jorge Luis Borges. Nessa época, Caio morava na casa da rua Chile, um chalé de madeira agradável, com um pátio bem grande. A casa estava alugada no nome de Graça Medeiros, mas ela mesma não ficou tanto tempo lá. Os moradores amigos se sucediam,

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como Caio e Sandra Laporta, que fora com ele para a Europa, em 1973, e sempre tinha gente visitando, como Emediato e Sylvia, então.

A relação entre Sylvia e Emediato não ia muito bem já há algum tempo. Ele mencionara o assunto em carta para Caio, que o aconselhou a não arrastar uma relação moribun-da. O que Emediato não sabia é que o amigo estava advogando em causa própria: em Porto Alegre, na casa da rua Chile, Sylvia na cozinha, Caio disse a Luiz Fernando que o amava. Bem, dizer propriamente não disse, mas pegou suas mãos, o olhou nos olhos... O suficiente para que Emediato entendesse a mensagem.

A coisa não deu certo, claro. Emediato ficou constran-gido, Caio decepcionado. Sua mania de se apaixonar por homens obviamente heterossexuais talvez fosse uma forma de defesa, de auto-sabotagem, de garantir desde o começo que não daria certo, para que assim sua liberdade e indivi-dualidade fossem mantidas intactas. Ah, e é claro: sofrendo bastante, vivendo e sangrando e amando, Caio teria vivência para escrever. Teria assunto. O mito do artista sofredor parecia calar fundo no coração do escritor.

A sede de amor, que levaria Caio a se apaixonar e se declarar várias vezes na vida, como fizera a Emediato, teria sua tradução literária em vários contos. Um exemplo é Até oito, a minha polpa macia, do livro Pedras de Calcutá. O personagem é uma mulher, já na beira dos trinta anos, sequiosa de amor:

[...] tomar banho e ficar na sacada sem olhar os pêlos

molhados do suor do peito do moço da construção em frente, esperando o quê? esperando quem? Aqui-e-agora, esses pássaros idiotas sobrevoando essa ilha de loucos, aqui-e-agora, não consigo mais ler essa porcaria, espástica, es-pás-ti-ca, proparoxítona é que tem acento na antepe-núltima? o pôster de Burt Reynolds, que vontade, Densidades Inimagináveis, nem lembro mais, venha comigo, aqui-e-agora, cinco-seis-sete-oito: por favor, por favor POR FAVOR: crave seus dentes na minha polpa

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maciaaaaaaaaaaaah. Mesmo depois da declaração de amor não ser exatamen-

te bem recebida, Caio e Emediato continuaram amigos, se escrevendo por vários anos. Nos anos 80, Caio iria morar novamente em São Paulo, onde trabalharia com Emediato e o veria quase todos os dias. Mas aí as coisas estariam mudadas: ele passaria a considerar Emediato careta demais, certinho demais para ser seu amigo. Não o perdoaria por não ser louco como ele e seus ídolos: Cazuza, Ney Matogrosso, Caetano Veloso. Pelo menos era essa a sensação que Emediato teria.

Mas em 1977, Caio e Emediato ainda estavam muito

ligados. Foram juntos a um congresso de escritores em São Paulo. A nata da nata da literatura brasileira estava lá: Rubem Fonseca, Lygia Fagundes Telles, Raduan Nassar, Ferreira Gullar, entre vários outros. Foi nesse encontro que Caio teve um bate-boca com Edla van Steen, a escritora, na época esposa de Flávio Moreira da Costa e uma das organizadoras do congresso. Edla havia organizado um jantar fechado, do qual participariam apenas alguns escritores. Caio estava entre os convidados, era um dos oficialmente inscritos no evento. Mas a maioria de seus amigos estava lá de farra: Emediato, Júlio César Monteiro Martins, Carlos Emílio Corrêa Lima. Quando o grupo tentou entrar no tal jantar, Edla vetou. Instalou-se a confusão, o bate-boca. Emediato e Carlos Emílio se lembram que Caio, muito indignado com o que ele considerava uma discriminação, se retirou do jantar junto com os amigos.

Além das confusões com tablóides, declarações de

amores impossíveis e congressos com escritores superestre-las, 1977 foi o ano do lançamento de Pedras de Calcutá, terceira coletânea de contos de Caio. Coletânea talvez não seja a palavra correta. Caio sempre buscou em seus livros de contos uma unidade, tanto temática quanto formal. Seus

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livros, em geral, são divididos em partes, cada qual tratando de determinado tema ou enfocando os assuntos sob perspectivas específicas. Cada livro tem uma lógica própria, e assim, para manter essa coerência, muitos textos conside-rados bons pelo autor ficaram de fora, por não se adequarem à proposta da obra que estivesse trabalhando no momento. Muitos desses textos seriam lançados mais tarde, na década de 90, quando Caio organizaria a — aí, sim — coletânea Ovelhas negras, com textos escritos dos 14 aos 46 anos de idade.

Pedras de Calcutá talvez seja o livro que marca o ama-durecimento de Caio como escritor. É o domínio da palavra escrita. A partir desse livro, Caio se sairá cada vez melhor nesse aspecto. A relação com a palavra aproxima-se da dos poetas, artesãos, buscando sempre o termo exato, lapidando e burilando. O conteúdo do livro segue fazendo a biografia de uma geração: já não se acredita mais na revolução, o sonho acabou. O indivíduo continua um estrangeiro em busca de um modo de estar no mundo, no mundo que estava tão diferente nos últimos tempos, nos ideais esfacelados. O mundo está esfacelado, como no conto Holocausto, de Pedras de Calcutá:

Há bem pouco um pensamento cruzou minha mente, talvez a mente de todos: creio que quando esta última chama apagar um de nós terá de jogar-se ao fogo. [...] Não nos falaremos, não nos olharemos dentro dos olhos. Apenas um de nós treze fará o primeiro movimento, se jogará ao fogo, aquecerá os outros por mais alguns momentos, depois se tornará cinza, e depois mais um, e outro mais. Como um ritual. Uma ciranda, daquelas em que uma criança entra dentro dessa roda, diz um verso bem bonito, diz adeus e vai embora. Apenas já não somos crianças e desaprendemos a cantar. As cartas continuam queimando. Eu tentei pensar em Deus. Mas Deus morreu faz muito tempo. Talvez se tenha ido junto com o sol, com o calor. Pensei que talvez o sol, o calor e Deus pudessem voltar de repente, no momento exato em que a última chama se desfizer e alguém esboçar o primeiro gesto. Mas eles não voltarão.

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Seria bonito, e as coisas bonitas já não acontecem mais.

Como seus personagens, Caio se sentia um estrangeiro eterno, irremediável. Estranho estrangeiro, sem paz fora da própria terra, incapaz de viver nela. Em Porto Alegre, ele tinha emprego no jornal, escrevia suas coisas para teatro, encontrava alguns amigos. Ainda assim, faltava algo. Talvez o centro, estar no olho do furacão. Caio não podia esperar mais tempo. Era, mais uma vez, hora de levantar vôo.

QUATRO

Encostado no carro, estava aquele rapaz de calça de couro, jaqueta, gestos finos, elegantes. Alto, muito magro, cabelos escuros. A presença do rapaz era forte; não havia quem não a notasse. O ser todo exalava algo de sexual, e de solitário também, como se uma tristeza infinita houvesse por trás dos olhos. Uma nuvem preta o acompanhava, uma nuvem de melancolia, aonde quer que fosse.

O rapaz, que não era exatamente um rapaz, mas um homem de trinta anos de idade, era Caio Fernando Abreu, que estava de volta a São Paulo, pronto para partir corações e ter o seu partido outras tantas vezes. E quem o via pela primeira vez, encostado no carro, e notava sua calça de couro preta, era Celso Curi, jornalista e agitador cultural. Caio não deve ter ficado menos impressionado com os cabelos louros e os modos doces de Celso, pois os dois, logo que se conheceram, viveram um apaixonado caso. Um breve caso, como se podia dizer sempre das relações de Caio, mas intenso — queriam engolir um ao outro, se tocar, se cheirar, como disse Celso, mais tarde.

No meio de tanta paixão, havia lugar para o humor, que ninguém era de ferro. Em alguma brincadeira cujas origens se perderam na história, os dois começaram a se chamar de

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Fraser e Gomide, por causa das atrizes Etty Fraser e Geórgia Gomide. Semelhança menor não podia haver, os dois magros que nem papel, e as atrizes, digamos, cheinhas. Mas a brincadeira pegou.

— Alô, Gomide — ligava Caio. — Olá, Fraser, como vai? Essa brincadeira de nomes não era exclusividade da

relação de Caio e Celso. Permeando a obra e a vida de Caio, há o humor queer, uma espécie de humor próprio dos gays, que se traduz em signos, brincadeiras e palavras próprias. Caio chamava, por exemplo, a amiga Jacqueline Cantore de Marilene, ou Anthea, ou MVlen. Ele mesmo podia assumir um nome feminino, como Marilene mesmo, e aí era Marilene falando com Marilene, uma loucura. E essas brincadeiras com as palavras não existiam só na maneira de chamar as pessoas. Havia verdadeiros códigos, palavras inventadas por Caio e por seus amigos que acabavam virando termos correntes no vocabulários desses grupos. "Jacira", por exemplo, é sinônimo de bicha. "Lasanha" é aquele homem bonitão, massudo, forte; "rodenir" eqüivale a coisa brega. Uma expressão surgida na noite, em alguma festa ou bar, podia ser utilizada por Caio no dia seguinte, em um conto ou crônica. Os amigos liam aquilo, se divertiam, e depois ligavam dizendo:

— Ei, vou cobrar direito autoral. Caio tinha voltado a morar em São Paulo em meados de

1978. Porto Alegre, mais uma vez, tinha se tornado insuportável, pequena demais. Em São Paulo, morou em primeiro lugar com a amiga Maria Rosa Fonseca, na rua Capote Valente, no bairro de Pinheiros. Maria Rosa fora esposa de Valdir Zwetsch, amigo e colega de trabalho de Caio em Porto Alegre. Valdir e Caio agora repetiam a dose, trabalhando na revista POP, junto com Vânia Toledo, J.R. Duran, Okky de Souza. Caio e Maria Rosa se tornaram muito amigos. Ela se lembra dele ouvindo Velvet Underground o dia todo, bebendo baldes de café e escrevendo, escrevendo,

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escrevendo todos os dias. De vez em quando saíam para jantar. No começo da estada, Caio não conhecia tanta gente na cidade, e ela ia apresentando algumas pessoas. Em 1984, quando Laura, a filha de Maria Rosa, nascesse, Caio ajudaria a dar o primeiro banho. Lady Laura, ele a chamava.

Quando Caio decidiu sair da casa de Maria Rosa, ele e Celso já haviam se tornado grandes amigos. Continuavam encantados, mas a paixão havia passado, sem rancores. Celso morava sozinho em um apartamento na Cristiano Vianna, havia um quarto sobrando. Por que não chamar Caio para morar com ele? Chamou. Caio topou na hora. E foi aí que o encanto quase se desfez, e Fraser e Gomide correram perigo.

Por que, é preciso que se diga, Caio não era uma pessoa fácil de conviver. Tinha um gênio dos diabos, um temperamento explosivo, uma qualquer-coisa que de repente lhe subia e ele não conseguia medir palavras, e quem ficasse no caminho levava chumbo. Depois batia-lhe o arrependimento, ligava, murchinho, vira-lata com rabinho entre as pernas, pedindo mil desculpas, mil perdões. Ele tanto podia aparecer com flores ou mandando as pessoas para aquele lugar; era absolutamente impossível prever seu comportamento. Cheio de manias, com a organização — dizem — típica dos virginianos, gostava de tudo no lugar, arrumado; mas nunca se lembrava de uma conta para pagar. Quando estava bem-humorado, todos se divertiam; sua capacidade de fazer rir, tiradas mordazes e irônicas, era infinita. E aí ele era elegante, fino, um gentleman. Mas quando o mau humor resolvia dar as caras, era melhor manter uma distância saudável dele. Uma distância, digamos, sanitária.

Era mesmo difícil não se desentender com ele, no dia-a-dia. O mau humor, a dificuldade com coisas práticas, tarefas simples. E havia aquela estranha necessidade de ficar sozinho de vez em quando, que viria a ser um tormento a vida toda para quem dividisse casa com ele. Caio ficava dois, três dias trancado no quarto, sem botar a cabeça para fora para

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nem dar um olá, e os de fora sem saber se estava vivo, se estava morto, se precisava de alguma coisa. As faxineiras enlouqueciam, porque não podiam entrar no quarto e limpar. Para Celso, eram momentos apreensivos.

O que Caio fazia lá dentro, se escrevia, chorava, dormia, Celso não sabia. Mas quando ele resolvia sair, Fraser e Gomide saíam com ele, o bom humor nas alturas. Aí Caio podia contar piadas, falar de astrologia, botar o taro. Uma vez Caio botou as cartas para Celso. Mexeu com a cabeça, como que lamentando, e comentou:

— Tenho uma pena de você. Você nunca vai enlouquecer.

E aí era legal de novo conviver com o Caio, e tudo ficaria bem até que a montanha-russa desse mais uma volta e ele ficasse down outra vez. Mesmo assim, já dava para ver que os dois, morando juntos, não davam certo; a coisa não funcionava. Quase um ano depois de ir morar com Celso, Caio saiu do apartamento. Foi aquela choradeira. E houve tensão também: problemas de dinheiro que ficaram mal resolvidos, Celso devendo alguma coisa a Caio. Nada que o passar do tempo não resolvesse; logo os dois estavam amigos de novo, Fraser e Gomide a vida inteira. E Caio prosseguiu sua vida nômade, morando onde desse, com quem calhasse. Depois de Celso, foi a vez de Rofran Fernandes, e depois dele outros ainda. Celso também se mudou, e abriu seu teatro, o Espaço OFF, um lugar para apresentações mais alternativas. Uma das primeiras interpretações que Gilberto Gawronski fez de Dama da noite, de Caio, foi no OFF, em um palquinho de lxlm, destinado a apresentações ainda mais experimentais que as do palco normal.

Caio continuava o trabalho na POP, da editora Abril. O trabalho lá era uma delícia: na descrição de Caio, vinte e cinco dias por mês o pessoal não fazia absolutamente nada, só se divertia. Na última semana, se mudavam para a redação, pediam pizza por telefone e fechavam a revista. A diversão era tanta que a turma da revista acabou virando a

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turma de Caio em São Paulo por uns tempos. No terceiro andar do prédio da editora, na Abril Cultural, trabalhava Maria Adelaide Amaral, hoje conhecida escritora, dramaturga e autora de novelas. Apresentada por Celso Curi, que também trabalhou na POP por uns tempos, Maria Adelaide ficou amicíssima de Caio. Um dia, o sempre muito magro Caio resolveu pegar Adelaide no colo, de brincadeira. Ela, na época, pesava 42 quilos. Caio se espantou: descobriu que ela não era magra, era levíssima, e o apelido ficou para sempre. Levinha, Levíssima.

Uma vez por dia, pelo menos, Caio subia do segundo andar, onde ficava a POP, para o terceiro, onde trabalhava Maria Adelaide, e eles conversavam; se divertiam, quando estavam bem; falavam de coisas pesadas, quando estavam mal; de coisas leves, quando tudo melhorava. Discutindo Katherine Mansfield, Proust, Lawrence Durrell, e demais escritores que amavam ou que estivessem lendo no momento, não viam o tempo passar. Na época, Maria Adelaide escrevia o romance Luísa (quase uma história de amor), que só viria a dar por terminado anos mais tarde, em 1987. Caio foi um dos primeiros leitores, e gostou do que leu: disse à amiga que ela tinha muito talento. A amizade perdurou mesmo depois que deixaram de ser vizinhos de emprego.

Outra amizade que veio daqueles tempos é com a jornalista Paula Dip, que trabalhava na redação da revista Nova, vizinha à POP. Paula era mais certinha, menos porra-louca que Caio e alguns de seus amigos, e ele acabaria sendo muito protetor em relação a ela. A amizade seria selada por um episódio triste da vida de Paula. Tendo se descoberto grávida, ela optou por fazer um aborto. Contou a história ao Caio, que deu seu apoio. Tempos depois, escreveu o conto Pela passagem de uma grande dor, do livro Morangos mofados. Dedicado à Paula, o conto descreve uma conversa telefônica entre dois amigos. Lui, o homem, está entediado com a ligação da mulher. No meio de uma conversa aparentemente banal, em que ele parece ansioso por desligar, ela menciona, uma única vez, que vai fazer um aborto.

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— Tá bom — ela disse. — Tá bom — ele repetiu. E pensou que quando

começavam a falar desse jeito era sempre um sinal tácito para alguém desligar. Mas não quis ser o primeiro.

— Vou tirar amanhã — ela falou de repente. — Hein? — Nada. Vai fazer teu chá. — Tá bom. Aqui diz que tem vitamina E. — Abriu a

mão e olhou as manchas branquicentas na palma. — Não é essa que é boa para a pele?

A aparente frieza esconde, na verdade, a "grande dor" do

título: o assunto, na verdade, é incômodo e doloroso para Lui. E para Caio. Ele mesmo passaria pela situação duas vezes na vida. Nas duas ocasiões em que namoradas suas engravida-ram, ele, em comum acordo com as garotas, optou pelo aborto. A justificativa, ele dizia, é que as gestações aconteceram em períodos loucos, em que todos usavam drogas; o medo da criança nascer deformada pelas substâncias era grande. Caio falaria, em crônicas e entrevistas, dos filhos que não teve, de como seriam se tivessem nascido. Para ele, também, haviam sido grandes dores.

A POP era a primeira revista brasileira voltada para a cultura jovem. Até hoje é lembrada por ter introduzido no país o punk rock, com a coletânea de 1977 que trazia músicas de grupos estrangeiros do novo gênero musical. Embora hoje seja praticamente impossível achar o disquinho, A revista POP apresenta o punk rock é o marco histórico do gênero no Brasil.

Embora em determinado momento da vida Caio tenha aderido à estética punk, assim como fizera com a hippie anos antes, em geral ele não tinha muito em comum com os assuntos tratados na revista. Mas era preciso "costurar pra fora" para sobreviver, como o pessoal da redação costumava brincar na época, e ele fazia o que podia. Costurava também, de vez em quando, para a revista Nova, ou para edições

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especiais, sobre a vida de John Travolta, ou como cuidar de bebês, ou culinária, ou o que viesse. Sendo todas as revistas da mesma editora, a Abril, havia grande rotatividade de jornalistas; em dias de fechamento, "emprestava-se" pessoal de outras redações, pessoal que estivesse com o horário mais folgado. Caio era contratado da POP, mas fazia free-lances para vários outros veículos. Sempre a contragosto, de certa forma; o trabalho jornalístico era penoso para ele. Não a parte de escrever, que isso ele fazia com facilidade, e muito bem; mas a questão dos horários, e dos prazos, e de lidar com chefes; enfim, a parte prática e pragmática da coisa, a parte desinteressante de qualquer emprego, se era chata de agüentar para qualquer um, mais dolorosa ainda era para Caio.

Em fevereiro de 1979, por exemplo, ele tem uma pequena briga com o diretor da revista. O diretor marca a reunião para nove da manhã, mas só aparece às dez e meia. E já chega falando grosso, dizendo que a revista está péssima. Era preciso reduzir os textos, aumentar as fotos, melhorar o lado visual.

— O leitor não gosta de ler — justificou o diretor. Caio não concordava. E falou. Tinha duas irmãs

adolescentes, supostamente o público-alvo da revista, e elas adoravam ler. E disse mais.

— A gente não deve colaborar com a alienação. O diretor chamou Caio de obsoleto, o que bastou para

que este estourasse e abrisse a torneirinha de indignações. A formação dele tinha sido feita antes de 1964; se o chefe achava que cultura e leitura eram coisas obsoletas, então estavam indo muito mal.

— E se você está a fim de colaborar com o processo de castração mental da juventude brasileira pós-64, eu não estou.

As penas continuaram voando. Em certo momento, o diretor comentou que os títulos de Caio pareciam livro antigo de História. Aquilo foi demais para Caio.

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— Minha mãe é professora de História, eu estudei muita História e se a juventude de hoje não sabe nem quem foi Getúlio Vargas é porque não se estuda mais História.

No fim, depois de muito suar e gritar, todo mundo em volta quieto, olhando a briga, Caio calou a boca. "Afinal, como na fábula do lobo e do cordeiro: contra a força não há argumentos", ele concluiria em carta à mãe, em que contava o episódio. Caio estava nervoso, cansado, louco para dar uns pontapés nas pessoas e dizer umas verdades, mas não podia. Estressava-se. Talvez estivesse precisando de umas férias.

As férias vieram. Caio resolveu ir a Olinda, lugar calmo, bonito, onde teria a paz necessária para escrever. Andava cheio de idéias, idéias ambiciosas, e não podia deixá-las morrer só por causa dos trabalhos jornalísticos, dessa coisa de ganhar a vida. A literatura andava meio abandonada há um tempo, e ele ia aproveitar o período de folga para retomá-la.

Uma semana depois de suas férias começarem, ele escreve uma carta ao amigo José Márcio Penido, jornalista mineiro radicado em São Paulo. Se esperava notícias do esturricante calor nordestino, de belas praias e malemolências, José Márcio deve ter levado um susto. Nada de Olinda: a carta vinha de Porto Alegre mesmo. Logo no início, Caio explica a mudança de planos:

"O que aconteceu? Bem, eu FUI até Olinda. Aí rodei por lá um dia inteiro, sem encontrar lugar pra ficar. Acabei indo pra Recife, onde me instalei num hotel de oitava: o Suíça Hotel, na Rua do Hospício —juro! Solucionados os problemas de acomodação, percebi que não conhecia vivalma (ai esse português castiço!) na cidade. E toca subir rua, descer rua, atravessar Capibaribe, tropeçar em cantador, em retirante, comer tapioca, olhar, olhar, assistir filmes como Iracema ou O Super-Macho ou A ilha das cangaceiras virgens (descobri que Helena Ramos dá de dez em qualquer Sônia Braga, Ana Matos que me perdoe), voltar para o hotel, passar o dedo com desgosto em cima do quilo de poeira dos móveis, olhar, olhar — olhar o quê, meu deus? Meu caro Garcia de Oliveira, me deu uma solidão tão grande que, menos de uma

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semana depois, arrumei tudo e voltei pra Sampa. Passei uma noite lá. Peguei as lãs e peles e vim pra cá. "

(Ana Matos era Ana Braga, irmã da Sônia Braga, amiga

de Caio e de José Márcio Penido. Caio a chamaria sempre de Ana Matos por causa do personagem Júlia Matos, interpretado por Sônia em Dancin Days.)

Em Porto Alegre, Caio pegou uma gripe violentíssima — resultado da mudança brusca de temperatura, Nordeste a 30 graus e Rio Grande a 2 graus negativos. Mais que a doença física, a cabeça de Caio não está legal. Ele está deprimido. Sente-se solitário. Saiu do Recife porque não havia ninguém lá, ninguém absolutamente que se importasse com ele; foi procurar suprir essas carências na cidade mais que conhecida, a amada e odiada Porto Alegre, mas nem lá as coisas pareciam melhores. Depois das férias, Caio volta à vida de jornalista em São Paulo.

Em São Paulo, o amigo José Márcio Penido também passava por suas próprias crises. Na época, ele e Caio eram muito próximos; o mineiro funcionava como uma "referência viva" de São Paulo para o gaúcho. Caio achava que se entendiam porque eram ambos de cidades do interior: ele de Santiago, José Márcio de Cambuquira. Mas essa concepção era fruto da cabeça romântica de Caio, porque José Márcio, na verdade, só morara em Cambuquira até os três anos de idade; depois disso, a família tinha se mudado para Belo Horizonte. Ele cresceu com asfalto nas veias; a situação era diferente da de Caio, que tinha morado em Santiago até ficar adolescente, e visitava a cidade sempre que podia.

Ao final do ano, quando Caio volta a Porto Alegre para mais um período de férias, Zé escreve uma carta triste para ele, cheia de interrogações, dúvidas; entre outros questiona-mentos, ele diz querer escrever, mas nem disso está tão certo. Caio, de volta da praia, responde como pode. Não há o que ensinar, o que aprender. Cita um poeta: "Caminante, no hay caminos. Pero se hace camino ai andar." Fala da dor que é escrever, da dor que precisa ser mexida e remexida, do

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quanto é preciso sangrar se se quiser produzir algo bom. "A única recompensa é aquilo que Laing diz que é a única coisa que pode nos salvar da loucura, do suicídio, da auto-anulação: um sentimento de glória interior. Essa expressão ê funda-mental na minha vida. "

São sete da manhã. Caio acorda, vai à praia. Corre um pouco: três, quatro quilômetros. Faz mais alguns exercícios, passeia um pouco. Às dez da manhã, volta para casa. Está na hora de cozinhar o arroz, que come com calma. Depois da refeição, descansa um pouco. Então, somente então, começará a escrever. O dia todo submerso, mergulhado nas palavras, às vezes falando sozinho. E o resultado dessa jornada é um texto, um belo texto, dedicado a José Márcio Penido e que daria título ao próximo livro de Caio: o conto Morangos mofados:

Na parede a natureza-morta com secas uvas brancas, peras

pálidas, macilentas maçãs verdes. Nenhuma melancia escancarada, nenhuma pitanga madura, nenhuma manga molhada, nenhum morango sangrento. Um morango mofado — e esse gosto, senhor, sempre presente em minha boca?

Antes da publicação de Morangos mofados, Caio já era,

de certa forma, considerado um guru de sua geração. Era um paradoxo: Caio não estava ensinando ninguém, mas as pessoas aprendiam com ele. Aprendiam sua maneira de ver o mundo, de forma espiritual e ao mesmo tempo intensa; sua maneira de encarar a arte com seriedade, e de transformar grandes dores em grandes textos. A vocação para guru, embora involuntária, estava em Caio, e ele não podia fugir dela.

Com Morangos mofados, essa situação atingiu seu auge. Em 1981, enquanto terminava de escrever o livro, Caio pediu demissão da Nova, onde trabalhava, para poder terminá-lo. E depois de pronto, o danado ainda custou a sair: ficou dois anos na Nova Fronteira, na gaveta, até que Luiz Schwarcz, na época na Brasiliense, interveio: se o contrato fosse cancelado,

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em um mês ele publicaria o livro. Caio pediu para rasgar o contrato e entregou o texto à

Brasiliense, que finalmente o lançou, em 1982. Publicado, o livro virou clássico instantâneo: oito edições tiradas em seqüência, sucesso de vendas e de crítica. E sempre aquele rótulo ajudando o livro a vender: o retrato de uma geração, do desencanto de uma geração, que vira a revolução acabar antes mesmo de ter qualquer chance de dar certo. E agora que uma nova década começava, era hora de olhar para trás e rever o momento que passara, e tomar uma posição a respeito dele. Caio, em seu livro, não toma essa posição. Ele deixa as coisas em aberto, deixa apenas fotografadas, no ar, as emoções de uma época. Mas seu livro, por mais triste, por mais melancólico, termina com uma esperança. Sim, o último conto, Morangos mofados, aquele escrito na praia, entre caminhadas ao sol e porções de arroz integral, é um atestado de que o mundo pode dar certo, apesar das ilusões perdidas. Apesar dos pesares, é hora de começar de novo:

Poderia talvez ser internado no próximo minuto, mas era realmente um pouco assim como se ouvisse as notas iniciais de A sagração da primavera. 0 gosto mofado de morangos tinha desaparecido. Como uma dor de cabeça, de repente. Tinha cinco anos mais que trinta. Estava na metade, supondo que setenta fosse sua conta. Mas era um homem recém-nascido quando voltou-se devagar, num giro de cento e oitenta graus sobre os próprios pés, para deslizar as costas pela sacada até ficar de joelhos sobre os ladrilhos escuros, as mãos postas sobre o sexo. Abriu os dedos. Absolutamente calmo, absolutamente claro, absolutamente só enquanto considerava atento, observando os canteiros de cimento: será possível plantar morangos aqui? Ou se não aqui, procurar algum lugar em outro lugar? Frescos morangos vivos vermelhos. Achava que sim. Que sim. Sim.

Um dos contos mais marcantes do livro, Sargento

Garcia, teria sido inspirado na primeira experiência

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homossexual de Caio. Ao menos foi isso que ele contou em entrevista à Marie Claire, em 1995. Quando tinha 16 anos, em Porto Alegre, ele foi seguido por um homem, num domingo à noite. O tal puxou papo com ele e marcou encontro para três dias depois, no centro da cidade. Mesmo sem saber direito o que iria acontecer, Caio foi, morrendo de curiosidade. O homem o levou a um lugar horrível, nojento, com lençóis sujos e um rolo de papel higiênico na cabeceira. "Me jogou em cima da cama, completamente sem romantismo", conta Caio. "Me fez segurar o pau dele e eu saí correndo". Como o conto é dedicado à Luiza Felpuda, travesti de Porto Alegre que mantinha uma casa de prostituição, é possível que o lugar a que o escritor se refere seja a casa dela, e Isadora, a mulher que aparece no conto, a própria Luiza. No conto, porém, Caio transforma o tal homem em um sargento, o sargento Hermes. Quando Tutti Gregianin decidiu filmar o conto, em 1998, o escolhido para viver o sargento seria o ator Marcos Breda.

O conto traz em si a história dessa descoberta: [...] barulho de copos na cozinha, o vidro rachado, a madeira descascada da porta, os quatro degraus de cimento, o portão azul, alguém gritando alguma coisa, mas longe, tão longe como se eu estivesse na janela de um trem em movimento, tentando apanhar um farrapo de voz na plataforma da estação cada vez mais recuada, sem conseguir juntar os sons em palavras, como uma língua estrangeira, como uma língua molhada nervosa entrando rápida pelo mais secreto de mim para acordar alguma coisa que não devia acordar nunca, que não devia abrir os olhos nem sentir cheiros para sempre surda cega muda naquele mais de dentro de mim, como os reflexos escondidos, que nenhum ofuscamento se fizesse outra vez, porque devia ficar enjaulada amordaçada ali no fundo pantanoso de mim, feito bicho numa jaula fedida, entre grades e ferrugens quieta domada fera esquecida da própria ferocidade, para sempre e sempre assim.

Embora eu soubesse que, uma vez desperta, não voltaria a dormir.

A revelação, porém, nada tem de perigosa, ou dolorida:

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ela traz, na verdade, a libertação. O que é descoberto é um caminho, uma forma de viver, ainda que maldita:

Queria dançar sobre os canteiros, cheio de uma alegria tão maldita que os passantes jamais compreenderiam. Mas não sentia nada. Era assim, então. E ninguém me conhecia. Subi correndo no primeiro bonde, sem esperar que parasse, sem saber para onde ia. Meu caminho, pensei confuso, meu caminho não cabe nos trilhos de um bonde. Pedi passagem, sentei, estiquei as pernas. Porque ninguém esquece uma mulher como Isadora, repeti sem entender, debruçado na janela aberta, olhando as casas e os verdes do Bonfim. Eu não o conhecia. Eu nunca o tinha visto em toda a minha vida. Uma vez desperta não voltará a dormir. 0 bonde guinchou na curva. Amanhã, decidi, amanhã sem falta começo a fumar.

Morangos mofados consagra Caio. Como guru involun-

tário de uma geração e, também, como escritor respeitado, sucesso de crítica e público. Em São Paulo, todos querem ser seus amigos. Escritores, atores, artistas. Embora diga aos amigos que prefere se resguardar, que tem horror às rodinhas literárias, Caio circula bastante por essa época.

Ele já rodava bastante antes mesmo do livro sair, mudando de emprego e de casa como quem troca de par de meia. Em 1980, por exemplo, Caio fora morar numa casinha de vila na Melo Alves. Ficou sozinho por um tempo. De seu quintal, podia enxergar o apartamento de Cida Moreira, cantora, amiga de tempos antigos. Embora paulista, Cida ia bastante a Porto Alegre nos anos 70, por causa do relacionamento que mantinha com uma pessoa de lá. Às vezes, Caio dava um grito do quintal, chamando Cida para almoçar, ou bater papo, qualquer coisa assim. As vezes, ela é que chamava.

Na casinha da Melo Alves, vieram morar Orlando Bernardes, e depois Jacquéline Cantore. Ela era uma garota jovem, fã de Caio. Tinham se conhecido no início da década de 80, quando ela, ao ficar fascinada com o conto Eles, de O ovo apunhalado, escrevera uma carta e entregara junto com

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um presente na casa dos pais de Caio, em Porto Alegre. Ele ligou para agradecer e desde então começaram a se corresponder e ficaram amigos. Ficaram um ano e meio na casa, que adoravam. Embaixo da escada, guardavam cartas, papéis, jornais; por causa disso, chamavam o lugar de O Inconsciente. Caio, às vezes, aprontava: ameaçava se matar, se trancava no quarto dias e dias. Uma verdadeira drama queen. As tentativas de suicídio de Caio nunca foram levadas muito a sério por seus amigos mais antigos, ou mais íntimos: era parte do show, da cena, do teatro que Caio montava ao redor de si mesmo, sempre que tivesse platéia. O escritor criava expectativas em torno das pessoas e das situações, e é claro que suas idealizações iam muito além da realidade, e ele sempre se frustrava. Mas era assim que ele gostava de viver, teatralmente. Intensamente, talvez. E isso muitas vezes o levava àquelas depressões intermináveis.

Não que ele gostasse de estar deprimido. Ele sofria muito, e fazia o que podia para se sentir bem, inteiro. Em Porto Alegre, fizera dois anos de psicoterapia com Mário Bertoni. Só que em 1977 Bertoni morreu em um acidente de carro; Caio ficou muito abalado. Talvez essa perda tenha apressado a ida de Caio para São Paulo, pois foi exatamente no final de 1977 que ele voltou para o Sudeste para trabalhar na POP. Em São Paulo, Caio retomou a psicoterapia, e depois a substituiu por dança. Gostava de dançar, se sentia bem. As aulas ajudavam-no a sobreviver.

Na época da casa da Melo Alves, Caio tinha também uma moto. Ele não dirigia carros. Chegou a aprender, em Santiago do Boqueirão; o pai o deixava dirigir seu carro de vez em quando. Mas, em Porto Alegre, Caio não chegava perto do volante. Em São Paulo, então, muito menos. Mesmo a moto, porém, ficava muito tempo sem ser utilizada. Caio preferia táxis, quando podia pagá-los, ou caminhar. Ônibus, então, ele odiava.

Em novembro de 1981, Caio Túlio Costa sai da edição do Leia livros, suplemento literário publicado pela editora Brasiliense. Caio então é chamado para substituí-lo e aceita.

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Morangos mofados já estava terminado, ele podia — e devia — voltar ao trabalho jornalístico. Em entrevista ao Estadão, Caio conta que, quando o livro estoura, e é um sucesso, Caio Graco, da Brasiliense, vê ali um nicho interessante, e quer repertir a dose. Pede a Caio:

— Ei, por que você não escreve outro livro na linha sexo, drogas e rock'n'roll.

Caio ficou ofendidíssimo. Imagina se ele ia se entregar desse jeito ao mercado. Tão ofendido ficou, que não só saiu da editora, como escreveu um livro totalmente diferente de Morangos mofados. Era o Triângulo das águas, o livro que pouca gente entendeu.

Em maio de 1983, Caio decide se mudar para o Rio de Janeiro. São Paulo estava cansando, de novo. Ele tinha essa relação de amor e ódio, ou de ódio e dependência, com São Paulo e Porto Alegre. Uma vez nelas, não as suportava; uma vez longe delas, sentia falta de tudo — dos amigos, das coisas a se fazer, das folhas dos plátanos. O Rio de Janeiro, ele amava; mas não conseguia morar lá por muito tempo. Mesmo assim, ele tentou, mais uma vez.

Nessa época, Caio estava muito próximo da poeta Ana Cristina César. Ela era muito amiga de Graça Medeiros, que por sua vez era grande amiga de Caio, e assim o círculo se completou.

Além de muito culta, grande ensaísta e poeta, Ana era bela, belíssima. Todos se deixavam hipnotizar por ela, que sabia o quanto era sedutora. Seu livro A teus pés foi um sucesso, mas as pessoas, mais que interessadas nos poemas, estavam interessadas no personagem Ana C, na deusa, na beldade. A beleza, da qual Ana era muito consciente, passou a ser uma maldição. E esse pode ter sido um dos motivos que contribuíram para a depressão, violentíssima, que a levou a se jogar da janela de seu quarto em outubro de 1983, aos 31 anos.

Mas ainda é maio. Ana Cristina está deprimida, Graça cuida dela. Caio se muda para o Rio para ajudar a cuidar, para estar perto, sabendo que a situação de Ana é delicada.

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Ana vai visitá-lo, certo dia, no hotel em Santa Teresa que Caio escolhe como moradia — um hotelzinho hippie, onde moraram Rita Lee e Raul Seixas. Ele descreve o encontro em carta a Jacqueline Cantore. "Ana C. MAL. Põe mal nisso. Magra, consumida, trêmula, chorosa. Não sei contar direito. Nunca vi ninguém tão frágil. Com toda minha gripe, eu era um poço de saúde ao lado dela. Imagina uma alface (ela) ao lado de uma costela gorda (eu). E lúcida.[...] Parece Isabelle Adjani em Nosferatu, depois que começa a ser sugada. linda, naturalmente, mas troppo morbo."

Caio e Graça Medeiros conversam, têm uma idéia de terapia para Ana C. Caio às vezes gostava de falar, sempre irônico, zombando de si mesmo:

— Fala grosso, veado! E a terapia que ele imaginava para Ana C. ia mais ou

menos nessa linha: "... somos mais por uma terapia bageense, tipo te fresqueia, prenda, come uma costela gorda, toma uns mates, dança uma chula, uma tirana do lenço, te joga nua no açude na hora da sesta. Porque tá uma crise sensível demais, dá pra entender? Recomendei uma brahma na esquina com uma coxinha e um dreherpra rebater. Something like that." A terapia Fala Grosso Veado. Se ele a usava para sair de suas próprias depressões, é algo a se conjecturar, mas é bem possível; como os amigos sabiam, por mais natural e integral e macrobiótico que Caio pudesse tentar ser, ele adorava um bom churrasco. Se houvesse um whisky pra completar, melhor ainda.

Ainda que amasse muito Ana Cristina, e estivesse no

Rio em parte para ajudar a cuidar dela, a situação entre os dois não era sempre um soneto de amor e paz. Caio se irritava, por vezes, com as depressões de Ana; corre uma história em que ela, em crise, ameaça se jogar da janela, Caio a segura, e em seguida passa-lhe uma descompostura. E esse não seria o único estremecimento entre os dois. Há pelo menos um outro, relatado por Caio em carta a Jacqueline Cantore. Era aniversário de Ana Cristina. Caio vai à festa,

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onde conhece um rapaz — identificado apenas pela inicial T., no livro de cartas. T. está na festa com o namorado, L., com quem vive há quatro anos. Não se importando muito com a longevidade da relação, Caio engata uma conversa animadíssima com o tal T. Três horas de conversa. As pessoas em volta olham, desconfiadas. De repente chega L.: — T., vamos embora? Eu não estou gostando nada disso — disso sendo, obviamente, o Caio.

No ouvido de Caio, T. se despede com uma bomba: "te encontro amanhã às quatro no Amarelinho".

Caio vai ao banheiro. Na volta, Ana Cristina vem falar com ele.

— O que está acontecendo entre você e T.? — Achei ele ótimo, só isso. — Vocês vão se ver mais? — Marcamos um encontro amanhã. — Você sabe que ele vive com L. há QUATRO anos? — Sei, ele me disse. — Me permite um conselho? — Pode ser. — Não vá a esse encontro. — Sinto muito, mas vou mesmo. — Então, por favor, retire-se imediatamente. — Você está me expulsando. — Estou. — Então tchau e feliz aniversário. Não é a última vez que os dois se vêem. No aniversário

de Caio, em setembro, Graça Medeiros leva Ana até o hotel em Santa Teresa, para ver se os dois voltam a se entender. Outras pessoas aparecem no hotel, amigos do Rio. A situação se ameniza, sem ressentimentos. É o último encontro dos dois.

Além de Graça e Ana, Caio tem muitos amigos no Rio. Como a atriz Kate Lyra, na época esposa do compositor Carlos Lyra, que ficou famosa em programas humorísticos na TV pelo bordão "Brasileiro é tão bonzinho!". Ela achava o máximo que ele tivesse se mudado para um hotel para

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escrever, e ele adorava o jeito dela, engraçado, espontâneo; além de linda, Kate era inteligente, se interessava por filosofia, por literatura. Ficaram amigos imediatamente. Tanto que Mário Prata e Caio, quando foram chamados para escrever uma novela com José Wilker, criaram um papel só para ela, de uma cantora de rock russa. A novela acabou não se concretizando, mas a amizade perdurou.

Outra amizade importante é o editor Pedro Paulo de Sena Madureira. Pedro Paulo, que conhecera o escritor por indicação de Lygia Fagundes Telles, editou os livros de Caio na Nova Fronteira. Mais que editor, porém, era amigo de Caio, via nele a mesma unicidade, a mesma falta de cisão que havia em sua própria personalidade: a biografia de Caio não era separada da obra. Caio não inventou um personagem; ele e seu texto eram uma coisa só. Havia muitas afinidades entre os dois, e Caio adorava visitar Pedro Paulo em seu apartamento no Leme, organizadíssimo. Era louco por D. Maru, governanta, praticamente da família, que ao saber da visita do escritor já preparava o conhaquinho que ele adorava. Adorava também Carlos Henrique, companheiro de Pedro Paulo, e, é claro, o próprio. Conversavam de literatura — o lado pop escondia a conhecimento profundo que Caio tinha dos clássicos, Stendhal, Proust, Machado de Assis, Flaubert. E Pedro Paulo, que nunca tinha dado grande atenção aos beatniks, começou a lê-los por causa do Caio, que adorava ironizar a origem do amigo, que vinha de família tradicional e endinheirada. Ele gostava de criticar os amigos que começavam a ganhar dinheiro: dizia que tinham se vendido ao sistema capitalista. No caso de Pedro Paulo, achava muito fútil todo aquele ambiente de coluna social, de alta sociedade. Em uma das ocasiões que questionou esse lado de Pedro Paulo, este respondeu:

— Caio, nem parece que você leu Proust. Aí Caio entendeu. Não era futilidade; era frivolidade. Um

dos aspectos do ambiente que permitira que Pedro Paulo, entre outras coisas, adquirisse tanta cultura. Madame Bovary era frívola. Proust também. E é claro que o editor não levava

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a sério toda aquela mise-en-scène. Caio era um escritor que não dava trabalho aos editores:

entregava o texto praticamente pronto, sabia o que estava fazendo.

Tinha grande domínio e preocupação com a forma. Quando Caio entregou O triângulo das águas, por exemplo, o livro estava pronto. Só faltava o título. Levou o material para Pedro Paulo, que disse:

— Caio, como é que não tem título? Chove nas três histórias. São três signos de água.

— São os textos das águas — emendou Caio. — São três? Triângulo. — Triângulo das águas — completou Caio. Um título

estava pronto. O triângulo das águas difere em tudo de Morangos

mofados, a começar pelo tipo de texto; em Morangos, são contos, e no Triângulo, três novelas. Morangos tem um realismo que as novelas do Triângulo não buscam, até por ser um livro construído sobre uma estrutura astrológica, sobre os arquétipos dos três signos do elemento água. A primeira novela, Dodecaedro, se refere ao signo de Peixes; a segunda, O marinheiro, a Escorpião. A terceira, Pela noite, a Câncer. O excesso de palavras do livro, em contraste com os contos mais diretos de Morangos, é uma escolha de Caio: ele busca esse jorro de água, esse fluxo de palavras. Por todas essas diferenças, O triângulo das águas causou estranheza. Mas assim que o livro foi sendo absorvido, e as comparações com Morangos sendo deixadas de lado, a situação melhorou: o livro ganhou o Prêmio Jabuti, um dos mais prestigiados do país. Hoje em dia, o prêmio, além de prestígio, confere uma quantia em dinheiro aos ganhadores; Caio teria ficado muito feliz em receber uma quantia assim, na época; mas como ainda não havia, ele ficou mais que feliz com sua estatueta.

A primeira das três novelas, Dodecaedro, narra a

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história de doze amigos juntos em uma casa, e as emoções que atravessam em determinada noite: as paixões e tendências e medos de cada um vão se desvendando aos poucos. E ao contar-se a história de cada um, conta-se como, também, mesmo cercado de amigos, o ser humano está sempre sozinho, solitário. A segunda novela, O marinheiro, aborda também o tema da solidão, através da vida do homem que decidiu se encerrar em casa, para fugir das dores e paixões do mundo, e que em certo dia recebe a visita de um marinheiro, que vem como um profeta, para lhe trazer a boa nova, uma mensagem.

Seus olhos tinham a cor do mar. Tinham a cor exata de

quem, por muito tempo, todas as horas, durante todos os dias de muitos meses e anos, olhou detidamente o mar. Conquistara esse verde, imóvel, inquieto, esse vagar. Tocou de leve na minha mão estendida. E se foi. [...] Não estava triste, mesmo assim recomecei a chorar, enquanto ouvia, outra vez, o aviso guardado para sempre na memória das paredes: — Abraça tua loucura, antes que seja tarde demais.

O triângulo das águas foi também o primeiro livro de

Caio a mencionar a aids, na novela Pela noite. E provavelmente foi também o primeiro texto de um autor brasileiro a falar da doença. Dois amigos de infância, vindos do Passo da Guanxuma — muito parecida com Santiago, era a cidade fictícia a que Caio sempre se referia, como a Macondo de Garcia Márquez — se reencontram anos e anos depois, em São Paulo, em uma sauna gay. Combinam de se ver de novo. O dono do apartamento onde ocorre o encontro arma um jogo de sedução, um jogo em que eles assumem outras identidades, em que ele é Pérsio, por causa de um personagem de Cortázar, e o outro é Santiago, por causa do personagem de Garcia Márquez. Pérsio fala e fala, suas palavras jorram incessantemente, revelando suas culpas, seus medos, suas inseguranças. Ele vive uma tumultuada vida amorosa, sem parceiro fixo, enquanto Santiago, depois de ter sido noivo de uma mulher por seis anos, foi para São

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Paulo e ficou dez anos junto de um homem. Essa estabilidade, essa tranqüilidade em lidar com a própria identidade sexual, Pérsio não a tem; ele não a entende, e talvez a inveje. Cheio de culpas e medos, é ele que menciona, duas ou três vezes, a aids.

Desde o início da década de 80, já se ouviam rumores sobre o que a mídia passou a chamar de "câncer gay", uma doença devastadora que só atingia homossexuais, para a qual não havia cura. As notícias chegavam rápido ao Brasil, embora ainda envoltas em suspense, suspense derivado, na verdade, da ignorância: pouco se sabia sobre as formas de contágio, sobre o vírus causador da doença, e sobre como ele agia no organismo. Como a única coisa em comum que as primeiras vítimas tinham era o fato de serem homossexuais, começou-se a achar que a doença tinha algo a ver com esse "comportamento" ou com essa "identidade" homossexual.

Quando mais pesquisas foram feitas e se descobriu que a contaminação também podia atingir heterossexuais, o estrago já estava feito. A aids parecia castigo divino, castigo aos gays, aos drogados, a todos que levavam uma vida libertária. A vida do pessoal egresso da contracultura estava mudada para sempre, a partir do momento em que se diagnosticou o vírus. Aqueles que tinham experimentado o amor livre, a vida em comunidades, as drogas, tudo a que tinham direito, estavam agora condenados a viver sob a paranóia da contaminação. E contaminados estavam todos, de certa forma, pelo medo.

E no Brasil, o marco da chegada da aids foi a morte do estilista Markito. Quando soube da morte dele, Caio estava no hotelzinho em Santa Teresa, uma chuva abundante caindo, ninguém podendo entrar nem sair do hotel. Ele e outros hóspedes ficavam bebendo e conversando, lamentando a morte do estilista. A partir daí, a paranóia só aumentou. Três anos depois de acabar, a década de 70 chegava, realmente, ao seu final, marcada não só pela doença, mas também pela abertura política e pelo desvanecimento dos sonhos da contracultura.

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Em seu perfil de Ana Cristina César, O sangue de uma poeta, ítalo Moriconi escreveu que a morte de Ana foi um marco, também, do fim da década de 70. Como se Ana não aceitasse, ou não pudesse aceitar a mudança, ela se matou, congelando sua Imagem nos doces anos em que se podia pensar em mudar o mundo. Porque era mais ou menos isso: mudar ou morrer. A maioria escolheu mudar, como Fernando Gabeira, por exemplo, que volta do exílio exibindo sunga de crochê nas praias do Rio.

Caio também escolheu mudar. Há muito já não era o hippie de cabelos longos, parecido com Jesus Cristo. A escritora Clarice Lispector o chamara de Quixote, por causa de sua barbinha. Ao lado de Caio no lançamento de um de seus livros, madrinha da noite, ela ficava sussurrando para ele: você é Quixote! Você é Quixote! Agora, porém, o escritor assemelhava-se mais a um punk, calça e jaquetas de couro, ou a um dark, roupas sempre escuras. Ele viveu os anos 80 com a mesma intensidade com que vivera os 70.

Acompanhava o teatro, a música, era entusiasta das novas manifestações. Era fã, por exemplo, dos Titãs. E do grupo teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone. Adorava Marina Lima, Cazuza. Estava ligado no seu tempo, nos novos acontecimentos. Infelizmente, havia a aids; para algumas pessoas, o medo dela era tão parte dos anos 80 quanto qualquer música da Legião Urbana.

Em outubro de 1983, O triângulo das águas já tinha

sido publicado, e Caio foi a Porto Alegre lançá-lo na Feira do Livro. A feira, em barracas ao ar livre na praça, é uma tradição em Porto Alegre, e um orgulho de seus habitantes. Além de reunir muitos escritores, que vão lançar suas obras e autografá-las para o público, é a grande oportunidade de comprar livros a preços mais baixos que no resto do ano. Muitas editoras organizam seus lançamentos em função do evento em Porto Alegre, e todos os anos a escolha do patrono da feira causa grande expectativa na imprensa e nos círculos literários locais.

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Um dia depois de lançado o livro, Caio recebe um telefonema: Ana Cristina César está morta. Jogou-se da janela da casa dos pais, no sétimo andar, onde se recuperava de outra tentativa de suicídio, feita na semana anterior, pela ingestão de remédios. Caio ficou desnorteado. O estado emocional de Ana, a dor que ela sentia, não era surpresa para ninguém. Mas talvez Caio não imaginasse que a poeta chegaria ao ponto extremo da dor, ao gesto máximo do desespero. Talvez não imaginasse que ela conseguiria. De qualquer modo, Caio chorou, chorou convulsivamente. Precisava dividir o sentimento com alguém, mas quem? Os amigos em comum com Ana Cristina estavam todos no Rio. Então Caio se lembrou de Bruna Lombardi. A atriz tinha escrito alguns livros, dos quais Caio gostara muito, e desde então tinham se tornado grandes amigos. Sempre que Caio estava em Porto Alegre e ela aparecia na cidade, ele a buscava no aeroporto, levava-a para sair, jantar, passear. Caio resolveu procurar Bruna, que estava na feira acompanhando Mario Quintana. Quando o viu, Bruna abriu a bolsa e disse:

— Olha que estranho: quando eu estava saindo de casa para pegar o avião, você me veio na cabeça dizendo 'Bruna, você tem que ler esse livro' — e puxou da bolsa um exemplar de A teus pés, o livro de poemas de Ana C.

— Bruna, eu vim aqui te contar que a Ana se matou. E assim a notícia foi dada a Bruna. Ao menos na versão

que Caio contou para o jornalista Eduardo Sterzi, que o entrevistaria anos depois, quando o próprio Caio viria a ser o patrono da Feira do Livro. "Tinha um toldo, e o Mario Quintana lindo, e a Bruna linda, todo mundo transpirando, e aquela coisa estranha no ar. E uma lembrança triste, mas, ao mesmo tempo, mágica", ele diria ainda, na entrevista.

A "mágica" da lembrança não aparece aqui por acaso. Não é incomum, quando se trata de histórias envolvendo o Caio, a presença de um toque estranho, meio mágico, de coincidências inexplicáveis. Às vezes, ele parecia ser meio bruxo, meio mago. Nos anos 90, o jornalista José Castello viajaria para a Europa no mesmo avião de Caio. Ele conhecia

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o escritor de vista. Ficou apenas observando, enquanto Caio botava o taro para as garotas sentadas a seu lado. Castello ficou fascinado pela figura do escritor: parecia um mago, muito misterioso. Tímido incurável, Castello não se atreveu a cumprimentar Caio, mas ia ao banheiro com freqüência, e ao banheiro mais distante da sua poltrona, apenas para passar em frente ao escritor e poder dar uma boa olhada nele. Um bruxo, o Caio. Dizia-se um hedonista, e assim se desculpava antecipadamente por eventuais mentiras ou fantasias. Nem sempre é possível separar suas versões da verdade.

Uma verdade incontestável, no entanto, é que a morte de Ana Cristina foi um fantasma que o perseguiu por muitos anos. Quando ela morreu, ele escreveu a Jacqueline: "E não conseguir dormir: na minha cabeça, Ana C. parada à beira de uma janela. Pensamentos mórbidos: o que ela teria sentido um segundo antes de se jogar no espaço. Depois do choque, certa raiva. Com que direito, Deus, com que direito ela fez isso? Logo ela, que tinha uma arma para sobreviver — a literatura —, coisa que pouca gente tem."

A imagem da morte perseguia Caio, se alojava em seu lado escuro. Talvez herança do romantismo, da poesia de Baudelaire, de Rimbaud; poetas amados por Caio, poetas malditos. Ecos de Edgar Allan Poe e sua literatura sombria, negra; ou mesmo de outros autores, para quem a morte foi sempre o grande tema, junto com o amor. Essa idéia de morte romântica, que tanto apelo tem junto a certos tribos urbanas, como os góticos, calava fundo em Caio. Por mais que ele insistisse na vida, em seus incensos, suas macrobióticas, havia um lado seu que era obcecado pela morte. E foi esse lado que, de certa forma, se atormentou pelo fantasma de Ana C.

E se apaixonou, também, pela aids, desde o começo. Caio falava e falava nela, com tanto ódio quanto freqüência; era uma obsessão, algo que o inquietava, que o interessava, que o tocava profundamente. A medida que o tempo passa, a obsessão fica mais forte: pessoas de quem só ouvimos falar começam a morrer, depois amigos de amigos, por fim os

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próprios amigos, as pessoas com quem dividimos casa e comida, começam a ficar doentes. A doença espreita, ronda, como um ladrão, esperando o momento certo de entrar na casa. Caio sente essa sombra se aproximando, se aproximando, e se revolta contra ela; a odeia, fala sobre ela; a única coisa que não pode fazer é ignorá-la. Caio tinha um motivo a mais para ir a Porto Alegre em outubro, além de lançar seu O triângulo das águas na feira do livro. O motivo tinha vinte e poucos anos de idade, era ator, Touro ascendente Capricórnio, e tinha uns olhos que mudavam de cor. Atendia pelo nome de Ivan Mattos, o motivo, e Caio estava perdidamente apaixonado. "....Também porque aconteceu uma coisa que, como Deus, eu pensava que não existia. Imagino que isso que chamamos de amor. Algo assim. Porque tudo que vivi e senti antes me parece agora bobagem, brincadeira. [...] Eu pensava que não existia. A beira dos 35 anos, eu estava certo de que não existia. Ou que, se existia, não era para mim", escreve a Maria Adelaide Amaral.

Não que Caio não se apaixonasse muito antes de conhecer Ivan. Ele se apaixonava muito, e sempre. Por várias pessoas ao mesmo tempo, às vezes. Chegou a sustentar três ou quatro casos ao mesmo tempo, em graus de comprometimento variados, em geral não muito alto — o que não quer dizer que não estivesse perdidamente, loucamente apaixonado. Caio sofria, sofria, sofria de amor. Sofria de paixão. Sofria de rejeição, muitas vezes — porque quem ele queria não o queria. Porque quem ele escolhia só gostava de mulheres. Porque quem ele queria gostava de homens também, mas só de vez em quando. Porque quem ele queria gostava de homens, mas não queria compromisso sério. Há quem diga que, ao se apaixonar, Caio preferia os homens mais másculos, mais viris, e por isso às vezes acabava escolhendo algum que não era homossexual; mas para ficar, na noite, para se divertir, Caio ficava com vários tipos de caras. Gays mais espalhafatosos, gays mais sóbrios. E mulheres, sim. Havia mulheres. Caio chegou a namorar sério

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algumas delas. Ele contaria em entrevista à Marie Claire, em 1995, que sua primeira experiência sexual teria sido com uma mulher. Ele tinha 19 anos, já morava em São Paulo. Uma amiga veio até sua casa num domingo chuvoso. Caio abriu a porta, mas ela não o deixou falar uma palavra. "Me jogou na cama e me estuprou", contou o escritor. "Foi ótimo." Em muitas entrevistas, desde o início dos anos 70 até o final da vida, Caio sempre repetiu que não acreditava em homossexualidade OU heterossexualidade: acreditava, isso sim, em sexualidade. Pessoas se apaixonam por pessoas, não por rótulos. Embora ele tenha tido clara preferência por homens a maior parte da vida, houve algumas mulheres de quem gostou. Para uma delas, Maria Clara Jorge, a Cacaia, ele dedica o livro Morangos mofados. Esse tipo de homenagem era constante na literatura de Caio: todos os seus livros, e a maior parte dos seus contos, são dedicados a alguém. Podia ser uma lembrança da pessoa que o inspirou a escrever a história, ou do amigo com quem viveu fatos muito parecidos, ou simplesmente uma forma de expressar carinho, sem que nada no conteúdo do texto justificasse aquela dedicatória específica. Na época em que escreveu Morangos mofados, Caio vivia seu caso com Cacaia; nada mais natural que o livro fosse dedicado também a ela.

Cacaia era amiga de Graça Medeiros, que a apresentou ao escritor. Houve também Vera Antoun, paixão que aconteceu mais por carta que pessoalmente, e com quem o escritor, sempre construindo castelos em cima de nuvens, pensara em se casar e ter filhos. Houve uma arquiteta, cujo apelido era Pifa. Houve Maria Emilia Bender. Houve mulheres. Houve homens. Houve paixões.

E decepções, inclusive, e solidão, como ele escreveu em vários textos. Um exemplo é o conto Além do ponto, de Morangos mofados, em que o protagonista vai até a casa de alguém, debaixo de chuva, levando cigarros e conhaque. Ele chega, ansioso, e bate na porta.

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E bati, e bati outra vez, e tornei a bater, e continuei batendo sem me importar que as pessoas na rua parassem para olhar, eu quis chamá-lo, mas tinha esquecido seu nome, se é que alguma vez o soube, se é que ele o teve um dia, talvez eu tivesse febre, tudo ficara muito confuso, idéias misturadas, tremores, água de chuva e lama e conhaque no meu corpo sujo gasto exausto batendo feito louco naquela porta que não abria, era tudo um engano, eu continuava batendo e continuava chovendo sem parar, mas eu não ia mais indo por dentro da chuva, pelo meio da cidade, eu só estava parado naquela porta fazia muito tempo, depois do ponto, tão escuro agora que eu não conseguiria nunca mais encontrar o caminho de volta, nem tentar outra coisa, outra ação, outro gesto além de continuar batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo nesta porta que não abre nunca.

E em 1983 a paixão principal — não se pode afirmar

que fosse a única, porque é mais ou menos nesse período, em que Caio mora no Rio de Janeiro, que ele convive com Cacaia, por exemplo — é Ivan. O jovem ator — na época com vinte anos — participava da montagem da peça Pode ser que seja só o leiteiro lá fora, de Caio, dirigida por Luciano Alabarse, em Porto Alegre. A peça estava sendo encenada dez anos depois de ter sido proibida pela censura dos militares, e nas idas de Caio a Porto Alegre, ele acompanhou a montagem do amigo Luciano, que conhecia desde os tempos em que freqüentava o Centro de Artes Dramáticas (CAD). Caio conheceu Ivan, os dois se apaixonaram. Foi uma das mais longas relações de Caio de que se tem notícia — durou pouco mais de um ano — e mesmo assim não foi uma relação fácil.

Para a juventude de Ivan, as depressões de Caio eram um fardo pesado demais a carregar. O lado escuro, os poços profundos onde ninguém entrava, isso tudo não fascinava Ivan, mas o assustava, e o afastava de Caio. Ele viajou com o escritor para o Rio, ficou alguns meses com ele, mas no final as diferenças — de idade, de temperamento — venceram. Os dois se separaram, e Caio voltou à sua desastrosa vida afetiva de sempre. Não sem antes pedir de volta a Ivan as

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apaixonadas cartas que tinha escrito a ele, com medo, talvez, de que aquilo pudesse ser usado contra ele de alguma forma; nas cartas, Caio era sempre muito mais sensível, frágil e aberto que pessoalmente.

E ele era compulsivo em relação a escrever cartas: adorava conhecer pessoas novas, porque assim tinha mais gente com quem trocar correspondência. Caio escrevia três, quatro cartas por dia, às vezes; e eram cartas longas, de várias páginas, em que ele se expunha muito. Ao vivo, era discreto, tímido e arredio. Nas cartas, era mais engraçado, mais derramado, mais solto. Assinava, muitas vezes, como Caio F, numa referência à adolescente alemã Christiane F, cuja história é contada no livro Eu, Christiane F, 13 anos, drogada, prostituída..., escrito pelos jornalistas Horst Rieck e Kai Hermann.

Na pequena temporada que passou em Porto Alegre, Caio aproveitou para tentar uma coisa nova em seu trabalho: a adaptação do texto de outra pessoa. O texto era Reunião de família, de Lya Luft, que seria levado ao palco no ano seguinte, em 1984, com direção de Luciano Alabarse, que já dirigira a montagem de O leiteiro. Lya era amiga de Caio, assim como outras escritoras de renome, como Lygia Fagundes Telles e Hilda Hilst. Todas tinham grande apreço por ele e respeito por sua obra. A literatura de Caio tinha vários pontos em comum com a delas, principalmente com a de Hilda.

Entre os atores escolhidos para atuar em Reunião de família, estava, claro, Ivan; ele e Caio ainda namoravam quando o escritor começa a adaptar a obra, embora já não estivessem mais juntos quando o texto foi levado ao palco. A adaptação de Caio foi muito bem-sucedida; um pouco, talvez, pelas similaridades existentes entre seu universo e o de Lya Luft, um universo cheio de brumas, de mistérios, de questionamentos sobre a existência. Ajudou também o fato de que, já sabendo quem seriam os atores de antemão — Luciano os havia escolhido — Caio podia escrever o papel de cada um pensando nas características de cada ator. Cada

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fala, assim, era pensada para aquele ator específico. Os papéis escritos sob medida, além de serem uma oportunidade rara para os atores de teatro, que poucas vezes tinham a chance de fazer um papel que se ajustasse plenamente às suas características e potencialidades, ajudaram no sucesso da peça.

No livrinho que acompanhou a apresentação da peça, no ano seguinte, há textos de Lya Luft, elogiando o trabalho de Caio. Ela fala do medo que tinha de alguém mexer em um texto seu, do receio que teve a princípio, mas a confiança que tinha em Caio venceu, e a autorização foi dada. No final, Lya ficou mais que feliz com o resultado: "Nos diálogos, senti que aquelas personagens, agora já não unicamente minhas, mas nossas — minhas e de Caio Fernando Abreu — adquiriam uma nova vida, uma nova dimensão, a vida e a dimensão das figuras de teatro. Mas, nem por isso, deixavam de ser aquelas figuras torturadas que habitavam o livro original. Acho que Caio conseguiu uma coisa rara: uma adaptação que me pareceu, em muitas coisas, mais expressiva ainda que o livro."

Caio também escreve um pequeno texto para o livreto. Nele, alude a acontecimentos de sua vida, alguns de forma direta, outros em linguagem cifrada. Fala do mergulho que deu numa história de amor tão linda que era como se fosse a primeira. Embora não cite o nome de Ivan, é a ele que se refere. No texto, Caio mostra algumas de suas obsessões, a fascinação pela morte, todo o lado escuro que, embora não fosse o único lado do escritor, Ivan alega não ter conseguido suportar.

"Encurralado entre o salto pela janela de Ana Cristina César, a fuga incompreensível de Carlinhos Hartlieb, a partida súbita de Lígia Averbuck, de volta ao quarto de onde saí para a estrada, no sobrado de meus pais, no Menino Deus, depois de anos, sozinho num verão escaldante, numa cidade deserta, todas as horas a morte rondava, emboscada entre objetos familiares de muitas gerações. [...]

Nas noites, aos poucos, Carlinhos, Lígia e Ana C. foram deixando de assombrar. Decidi trocar este árido Porto pela

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louca Sampa, assumindo minha carajá muito mais paulistana que fronteiriça. Descobri dolorido que aquele amor não era especial nem para sempre: trocamos em miúdos pobres as juras de eternidade que, por acreditarmos em encontros, ainda somos capazes de fazer. Tão juvenis — graças a Deus. Então colei os cabelos eriçados do punk sobre os cachinhos do arcanjo. E vim à tona com o livro de Marilena Chauí embaixo do braço."

Os cachinhos do arcanjo são os cachos de Ivan, o amor que não era para sempre. Carlinhos Hartlieb era um importante cantor e compositor gaúcho, autor de Por favor, sucesso, e que ficou também conhecido por organizar as famosas Rodas de Som: espetáculos à meia-noite, nas sextas-feiras, com grupos desconhecidos, no Teatro de Arena, em Porto Alegre. Logo depois de gravar seu primeiro disco individual, Risco no céu, Carlinhos viajou para a Praia do Rosa, no litoral de Santa Catarina. No dia 3 de fevereiro de 1984, seu corpo foi encontrado na casinha de madeira que construíra, uma das primeiras do local. Nunca se soube exatamente do que ele morreu.

Lígia Averbuck era a protetora dos escritores gaúchos; lançara O ovo apunhalado de Caio em plena ditadura, quando coordenava o IEL. Ela também morreu em 1984. Era a morte, a morte que ele teve que enfrentar para lidar com os demônios do texto de Lya. E o livro de Marilena Chauí, provavelmente, era Repressão sexual, que Caio leu por essa época. Cheio de culpas e amarguras, nem sempre Caio estava 100% feliz com sua sexualidade.

Se a vida amorosa era o desastre de sempre, a profissional estava indo melhor que nunca. Enquanto ganhava a vida trabalhando na IstoÉ, na época editada por Zuenir Ventura, fazia uns lances para a Gallery Around, house-organ da casa noturna Gallery. Um dos donos da Gallery era José Pascowitch, irmão de Joyce Pascowitch. Ele chamou a irmã para cuidar da revista, que, com o trabalho de Paula Dip e Antônio Bivar, se tornou um dos veículos mais

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interessantes da época, revelando talentos como Barbara Gancia e José Simão. A Gallery Around faria escola com seu estilo elegante e sofisticado, ligado nas tendências. Caio começou como colaborador, depois se tornou redator da revista.

Mas isso era o ganha-pão. A parte que interessava, a literatura, ia melhor ainda. Além do lançamento do Triângulo, do sucesso pós-Morangos mofados, da adaptação de Pode ser que seja só o leiteiro lá fora, Caio terminava o roteiro de um longa 35 mm que seria baseado em um conto seu, Aqueles dois. O filme, homônimo, foi dirigido por Sérgio Amon, e tinha no elenco Pedro Wayne, Beto Ruas e Suzana Saldanha. Filmado em Porto Alegre, teve pré-estréia em Gramado, em 1986. Muito premiado, o filme foi o único brasileiro a concorrer ao 11º Festival de Cinema Gay e Lésbico em San Francisco (EUA), em 1987. Além disso, Morangos mofados também estava sendo levado aos palcos, no teatro Cacilda Becker, no Rio de Janeiro, e Caio deu uma força na produção. E ele se preparava ainda para lançar o livro infantil As frangas.

As frangas é um livro de que Caio gostava muito. A história surgiu da coleção que Caio tinha de galinhas pequeninas, pequenos enfeites de geladeira. Apaixonado pelas galinhazinhas, que ele só conseguia chamar de frangas, porque assim eram chamadas em sua infância, em Santiago, Caio ganhou várias de amigos ao longo da vida. O livro era também uma forma de homenagear Clarice Lispector, que tinha uma paixão também enorme por galinhas — e ovos — e escreveu vários textos a respeito. Assim, cada franguinha do livro é baseada em uma franga de verdade, que morava na geladeira do Caio, que aos poucos foi inventando personali-dades para cada uma delas. O livro é a história desse galinheiro. Um dos projetos de Caio, antes de morrer, era escrever a continuação das frangas, já que muitas novas surgiram em seu galinheiro depois da publicação do livro. Em uma referência a Rambo, e com muita ironia, o livro deveria se chamar Frangas 2 — a missão. Caio não teve tempo,

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entretanto, de concluir essa história. Depois da morte de Ana C. e do fim da relação com Ivan,

Caio volta a São Paulo, já um pouco esquecido da loucura que é viver na cidade. Ele agora quer ficar ali por um bom tempo. Vai morar em uma casa alugada do ator Ricardo Blat, uma bela casa de dois quartos, com uma roseira no pátio. Detalhe singelo, mas não pouco importante: Caio era apaixonado por rosas. Era apaixonado por jardins e flores.

Na casa nova, começa a trabalhar. Caio está envolvido agora com alguns projetos para televisão. Trabalha em um roteiro para Ronda, uma série sobre São Paulo com Bruna Lombardi e Carlos Alberto Riccelli. Faz também dois roteiros para Regina Duarte, de quem se aproxima nessa época. Ela faz a série Joana, no momento. Os dois chegam a sair juntos; em uma ocasião, vão a um show de Caetano Veloso ("lindo, decadentíssimo, bêbado, analisado e blasé", diz Caio, em carta a Luiz Arthur Nunes), que faz a música de abertura da série. Caio, sempre fã de Caetano, agora convive com pessoas que o conhecem. Está cercado de estrelas, atrizes, escritores, diretores. Apesar de tudo, tenta se manter mais reservado; não quer virar "moda besta", diz. Ele não se deslumbra com as estrelas que estão a seu lado; se a pessoa fosse interessante, não importava se era famosa ou não. Assim, Caio era amigo de Regina Duarte e Lygia Fagundes Telles, duas mulheres respeitadas e famosas; ao mesmo tempo, adorava Claudia Wonder, travesti paulista, que manteria anos depois uma coluna na revista G Magazine. Ele a conheceu na noite e adorava conversar com ela sobre a vida. Quando começou a escrever crônicas para o Estadão, Caio chegou a falar de Claudia e seu trabalho, convidando os leitores a assistir ao seu show.

Além do trabalho com a TV, Caio faz uns free-lances de crítica teatral para a IstoÉ. E revisão de originais para a Brasiliense. Com a educação impecável que recebera no Rio Grande do Sul, Caio tinha o português ótimo e era um grande revisor. Nos jornais, era bom copidesque. Nas editoras, revisava livros. Um dos livros que revisou foi Feliz ano velho,

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de Marcelo Rubens Paiva, publicado no mesmo ano de seu Morangos mofados. Corre a história, pela boca de defensores fiéis de Caio, que na verdade ele é que teria escrito o livro, de tantas modificações que foi obrigado a fazer. Marcelo teria entregado uns rascunhos toscos para Caio, e ele praticamente teria reescrito o livro. O próprio Caio, no entanto, teria contado a amigos, como Luiz Fernando Emediato, que a história era um exagero; ele apenas poliu o texto de Marcelo, que, afinal, era um rapaz muito novo e inexperiente; Feliz ano velho era seu primeiro livro, e só foi escrito para contar a história do acidente que, aos 20 anos de idade, deixara o rapaz para sempre paralítico. É uma fase de intenso trabalho para Caio, tanto que a literatura fica meio em segundo plano: seu próximo livro de contos, Os dragões não conhecem o paraíso, só sairá em 1988. Além das revisões de livros, faz também traduções. Uma de que gosta muito é a de Sonhos de Bunker Hill, de John Fante, autor que admira. O primeiro que o fez chorar em muito tempo, dizia.

Aos 36 anos, Caio já pode olhar para trás e ver que construiu uma obra. Ele é, definitivamente, um escritor. E um escritor com público cada vez mais fiel. Reedições de seus primeiros livros, que foram publicados de forma quase artesanal quando ele ainda era adolescente, começam a ser pedidas pelas editoras. Caio concorda em reeditar, desde que faça modificações. Perfeccionista, quer mexer no texto, atualizá-lo, corrigir erros, melhorar o estilo. A base fica a mesma, mas é preciso aparar algumas arestas. Então, em 1984, para uma nova edição de O ovo apunhalado, ele retoma o livro escrito uma década antes, e o revisa todo. A edição sai pela Siciliano, onde trabalha agora o editor Pedro Paulo de Sena Madureira, que já lançara anteriormente o livro pela Salamandra.

O ovo apunhalado era um livro que já tinha história e fãs ferrenhos. Grace Gianoukas, atriz gaúcha, leu o livro em 1982 e se apaixonou imediatamente. Ela estudava em Porto Alegre, fazia Artes Cênicas no CAD, e morava com mais dois

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amigos do curso de Letras. Mas Grace era natural de Rio Grande, cidade que fica a quatro horas e meia de viagem de Porto, e numa das visitas que faria à família, ela estava sem nada para ler. Um dos amigos que moravam com ela lhe mostrou O ovo, ela achou interessante. Quando leu, foi como uma bofetada: apaixonou-se pelo estilo, pelo autor, pelas coisas que ele dizia. Passou a semana de visita deitada na cama, lendo e relendo o livro.

Em 1983, quando Caio foi lançar O triângulo das águas na Feira do Livro, Grace não tinha dinheiro para comprar o livro. Mesmo assim, entrou na fila de autógrafos, só para ver o Caio. Ele foi muito correto, muito blasé, mas não lhe deu muita atenção.

Na época, Grace trabalhava em um restaurante de comida natural. Um dia ela vinha caminhando, os pratos na mão, quando abriram-se as portas vai-e-vem, tipo faroeste, e ela deu de cara com o Caio sentado em uma das mesas. Voltou imediatamente. Meu Deus, o Caio! O Caio tá aqui, meu ídolo, meu ídolo, ai meu Deus, ai ai ai! Shell, irmã de Augusto Rigo, o amigo de Santiago que fora com Caio para a Suécia, e também trabalhava no restaurante, arrastou Grace pelo braço e a levou até a mesa, apresentou-a ao Caio, eles conversaram um pouco. Grace convidou-o para assistir ao seu espetáculo O Acre vai à Rússia, que estava sendo muito elogiado na época, um espetáculo moderno, de vanguarda. Tempos depois, Caio vai ao espetáculo. Já estava tudo escuro, mas Grace o viu entrar. Ai meu deus, o Caio tá aí... Mas foi em frente. No final, os atores abraçavam o público, agradeciam a presença, e lá foi ela dar um jeito de abraçar o Caio. Dias depois, encontram-se por acaso num bar. Ele passa, cumprimenta. Daí a pouco, Grace recebe um bilhete. Adorei o espetáculo de vocês, não fui ao camarim porque sou muito tímido, mas foi ótimo etc etc. Era do Caio. Aí foi aquela festa: Grace foi para a mesa dele, conversaram de verdade, de verdade mesmo, pela primeira vez, e desde então se tornaram grandes amigos. Caio ia a festas na sua casa, saíam juntos.

Em 1984, quando Caio está morando na casa onde

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antes morava Ricardo Blat, que se mudara para o Rio de Janeiro, Grace vem morar com ele. A faculdade ainda não terminara, mas só entrava em greve, sempre em greve. Caio foi crucial nesse momento: insistiu para que ela viesse, ofereceu sua casa, disse que Porto Alegre era pequena demais. Depois de uma visita a São Paulo junto com o irmão, Airton, em que se hospedaram na casa de Caio, Grace decidiu vir morar de vez, para alegria do escritor, que adorava sua companhia.

Aos olhos de Caio, Grace era ainda uma menina, aos vinte e um anos de idade. Ele a protegia de todas as formas: lhe dava conselhos, apresentava-a a amigos, mostrava livros que deveria ler. Com Caio, Grace conheceu James Joyce, Ezra Pound, Clarice Lispector. Principalmente Clarice Lispector. Caio também apresentou Grace a Orlando, com quem ele morara na casa da Melo Alves. Orlando tinha um show-room de moda, onde Grace passou a trabalhar. De dia, trabalhava no show-room. A noite, era garçonete.

Por essa época, Grace só conhecia o lado meigo do Caio, o lado gentleman, bem humorado. Um dia, porém, ela viria a conhecer seu lado agressivo. Numa tarde, apareceram dois homens alegando ser oficiais de Justiça, querendo falar com Ricardo Blat. Grace disse para voltarem à noite, quando Caio estivesse em casa, pois ele é que conhecia o rapaz.

Quando voltaram, Caio foi gentil. Disse que Ricardo não morava mais ali. Um dos homens pediu um copo d'água. Caio deixou entrar, ainda sorrindo. Os dois se sentaram no sofá. Tudo bem. Quando pediram para ir ao banheiro, Grace viu os olhos de Caio transformarem-se em fúrias. Ele começou a mudar.

— O senhor é Abreu? — perguntou um dos homens. — Eu também sou Abreu.

— Aham. Todo mundo é Abreu. O Brasil inteiro é Abreu. E vamos indo, vamos indo embora — responde Caio, já empurrando os senhores porta afora. Grace não sabia onde se esconder de vergonha, a grossura com que Caio tratara os oficiais... Então Caio se justificou.

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Para ele, aqueles homens não eram oficiais coisíssima nenhuma; eram de alguma polícia, e estavam ali para plantar alguma coisa contra o Ricardo, plantar drogas para um possível flagrante, sabe-se lá por quê. Quando percebeu isso, Caio quis mandá-los logo embora. Paranóia ou verdade, Caio tinha antecedentes: por duas vezes, ele tinha sido preso por flagrante falso de drogas. Gato escaldado, não via muitos motivos para confiar na polícia brasileira.

Não que ele não usasse drogas. Usava, sim. Não era viciado, não usava todo dia, não tinha nenhuma droga de sua preferência, mas usava, de vez em quando, nas festas, na noite. Às vezes cocaína, para ficar acordado. Anfetaminas, pelo mesmo motivo.

Comprimidos para dormir, quando decidia dormir. Maconha, às vezes, às vezes. Álcool: sempre. Um bom whisky, uma cervejinha. Um strega flambado. Gostava do que era bom: quando podia, gostava de ir ao Ritz, um bar moderninho de São Paulo, e pedir um whisky doze anos. As vezes, chegava bem cedo ao bar, e ficava horas escrevendo, até os amigos começarem a chegar. Na maior parte das vezes, escrevia em casa mesmo.

Caio está fazendo café: é hora de escrever. Ele arruma a

mesa. De um lado, à esquerda, a pilha de papéis em branco, impecável. Do outro, a pilha de textos escritos, sem uma ponta fora do lugar. No meio, a pequena máquina de escrever, cinza. Ao alcance da mão, a garrafa e a xícara de café, o cinzeiro, o isqueiro e os cigarros. Tac-tac tac-tac, ele bate à máquina, o montinho de papéis da esquerda vai diminuindo, o da direita aumentando. Caio bebe um gole de café, fuma um cigarro. Quando há uma ou duas bitucas no cinzeiro, ele o limpa, jogando as cinzas no lixo. Se anoitece, substitui o café por Jack Daniels. E assim por horas e horas a fio, tac-tac-tac. Ao final, quando deixa a mesa, ela está intacta, exceto pela pilha maior do lado dos papéis escritos. No final de agosto de 1984, Caio começa a trabalhar fixo na Around. Apesar dos gritinhos da mulherada e do ambiente

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metido a chique, com pessoas cool entrando e saindo a todo momento, esse é um trabalho que ele gosta de fazer: dá a oportunidade a ele, por exemplo, de ir ao Rio de Janeiro entrevistar Ney Matogrosso, seu ídolo. No Rio, surge também um novo amor: Pedrinho. "... depois de uma noite linda com Pedrinho, [...], a última imagem foi a ponta do dedo indicador dele acariciando a ponta do meu dedo indicador através das grades da janelinha do elevador. Cena de cinema. E a voz dizendo que vem a São Paulo daqui a uma, quem sabe duas ou três semanas. Porta do elevador fecha enquanto sobem os créditos.", escreve a Luciano Alabarse. Esse homem é ou não é um romântico incurável? Um sonhador, por mais ironia que tente imprimir às palavras.

Antes que pudesse colocar a carta a Luciano no correio, entretanto, acontece uma coisa que deixa Caio muito impressionado. O escritor Reinaldo Moraes, autor dos romances Tanto faz e Abacaxis e amigo de Caio, foi visitar a mãe e encontrou-a morta, caída no chão da cozinha. Não havia quem o ajudasse: o pai já havia morrido, ele era filho único. Os amigos é que foram dar uma força, inclusive Caio. Ele, que nunca tinha visto ninguém morto, exceto a cantora Elis Regina, que morava perto de sua casa e morrera há pouco tempo, estava ajudando a vestir a morta, providenciar caixão, enterro. Logo ele, tão obcecado pela idéia de morte. Ficou impressionadíssimo, falou no assunto por semanas. E achou que tinha aprendido algo com a experiência: ficado realmente adulto, muito mais velho. Alguma coisa já não estava lá, no corpo morto da mulher. "A alma? Pode ser."

Caio conhecera Reinaldo em 1981, através de Maria Emilia Bender, que trabalhava junto com ele na Brasiliense. Caio e Maria Emilia foram namorados por algum tempo, e ele costumava visitar a moça no apartamento que dividia com Ruy Fontana Lopes e Reinaldo Moraes, no bairro de Higienópolis. O escritor Mário Prata morava no mesmo prédio. De vez em quando, Reinaldo e Caio participavam de eventos literários juntos, como o lançamento de livros e seminários. Certa vez, em Porto Alegre, vendo que a fila era

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grande na frente da sua mesa, mas que não havia ninguém na mesa do Reinaldo, Caio chamou os amigos e parentes de lado e dizia para irem, que Reinaldo era ótimo. Nessas ocasiões, a farra era grande. Os dois compartilhavam a porra-louquice e iam aos mesmos bares, como o Pirandello, na rua Augusta — chegaram mesmo a participar da coletânea Contos Pirandellianos — 7 autores à procura de um bar, em que a idéia era histórias que se passassem no bar de Antônio Maschi. Uma vez, em 1983, foram juntos a um evento em uma universidade em Londrina, para discutir a literatura dos anos 80. Na sessão de autógrafos, chegou um casal de namorados que era fã dos dois. Conversa vai, conversa vem, Caio terminou a noite com o menino e Reinaldo com a garota, no hotel.

No início de 1985, Caio muda novamente de endereço. Ele decide ir morar com Sérgio Bianchi, cineasta, amigo, para quem chegou a escrever alguns roteiros. Antes de mudar para lá, porém, ele fica num apartamento pequenino, na verdade uma quitinete, por pouco mais de um mês. Grace, que morava com ele, decide ir para uma pensão, já que o dono da casa não a alugaria para três garotas. Não queria fazer "república", disse ele a Grace e às amigas que dividiriam com ela a casa. Caio, porém, chama Grace para ficar com ele na quitinete até surgir alguma coisa. O espaço era exíguo, mas Caio era leal com os amigos, e mais ainda em relação a Grace. Situações engraçadas aconteceram no curto período da quitinete: às vezes, Grace chegava do trabalho, tarde da noite, e Caio estava acompanhado. Ele pedia para que ela fosse dormir na cozinha, e lá ia ela, pé ante pé, deitar-se no espaço mínimo entre a geladeira e a pia e a mesinha e o fogão. Se esticasse o braço, trombava em alguma coisa, mas era divertido mesmo assim.

E as mudanças não aconteciam apenas na vida de Caio e Grace. No plano político, havia um clima de alívio: em janeiro daquele ano, Tancredo Neves fora eleito presidente do Brasil por um Colégio Eleitoral. As eleições não foram diretas, como a maioria pedia, mas pelo menos era um presidente

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civil. Depois de mais de vinte anos de militares no poder, isso já era algo a ser comemorado. E foi: o tal namorado de Caio, Pedrinho, quebrou o pé dançando na festa de vitória do Tancredo. A alegria durou pouco, no entanto: o presidente morreu antes de tomar posse. Seu vice José Sarney assumiu. Sarney também era civil, mas apoiara os militares até quase o final da ditadura.

Enquanto isso, a aids vai chegando mais perto de Caio. Luiz Roberto Galizia, diretor, autor de poesia, jornalista, uma pessoa de quem Caio gostava, embora nunca tivesse tido a chance de se aproximar muito, foi internado, aos 34 anos de idade. A paranóia aumenta um ponto. Caio tem umas pequenas doenças, infecções, aftas na boca, mas os médicos dizem que não é nada.

Como se a possibilidade de doença não bastasse, Caio ainda quase morre queimado num incêndio em seu apartamento, incêndio causado por ele mesmo. Era o mês de março, e Caio já estava morando com Sérgio Bianchi. Em carta a Jacqueline Cantore, o escritor descreve o episódio.

"Sas que ontem, segunda, esta Marilene aqui QUASE MORREU QUEIMADA? Estava ela no fogão, mui lépida, assando umas coxas de franga, quando eis senão que sente um odor estranho vindo das bandas do dito fogão. Ela estava, mui poeticamente, de costas para o fogão, observando aquela pêxa grávida no aquário, que não se decide a parir (vão ser arianos, os demônios, eu esperava pêxes de Pêxes, sas?) Então me viro (observe a mudança espontânea & natural da tercêra para a primêra pessoa) e eis que, atrás do fogão, vejo CHAMAS ENORMES ATÉ QUASE O TETO. Joguei água, aí chamei o Sergião que telefonava da sala (Sergião disse: "Agora tenho que desligar porque minha casa tá pegando fogo", bem natural), e ele começou a me puxar pra fora da cozinha, aos gritos de "Vai explodir! Vai explodir! Não joga água que é pior!". Marilene, ousadíssima, queria avançar entre as chamas para DESLIGAR O FORNO (ela não tinha grana para comer e sua maior preocupação era que as coxas ficassem inutilizadas,

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isso é, carbonizadas). Bueno, corremos para o corredor do prédio. Duas velhinhas saíam do elevador. Sergião: "Corram, saiam depressa que vai explodir tudo!". Uma das velhinhas começa a desmaiar. Junta gente na porta do prédio. Seu Antônio, o zelador, vem com um extintor de incêndio. Gritos, sussurros, gemidos, faniquitos. Fumaça, cheiro de gás, "apaguem os cigarros!" (Marilene correu para seu quartinho e, num sopro, apagou a vela de sete dias, juro), & LABAREDAS CADA VEZ MAIS ALTAS. Bom, o extintor apagou tudo: espuma branca por toda a cozinha e toda a sala. Enfim. Marilene foi espiar se a pêxa tinha abortado: raçuda, ela — continua grávida. Ai, a tremedeira. Que medo!"

O episódio terminou bem, e Caio o contou da maneira que sabia: com humor. Quando não há jeito, o melhor é rir, ele pensava. Era adepto da "cultura das abobrinhas", que é simplesmente falar bobagem. Ver filme cinemão de Hollywood, falar asneiras, essas coisas. Justificando essa maneira leve de ver a vida, ele vinha sempre com o trecho de um poema de Drummond:

"Perdeste o melhor amigo, não tens sequer um cão ... mas e o humourt"

Afinal, poesia também era muito importante na vida de

Caio. Ele lia Adélia Prado, Hilda Hilst, Fernando Pessoa, Mario Quintana, e, principalmente, Drummond. Adorava a poeta Ledusha, paulista de alma carioca que era sua amiga, assim como Ana Cristina César. Todos eles eram influências tão grandes para sua prosa quanto os ficcionistas que ele amava. Caio também escrevia poesia: escrevia em seus diários, que manteve por boa parte da vida. Mandou várias em cartas para amigos, ao longo da vida. Como essa, que escreveu em fevereiro de 1974 e enviou a Vera Antoun: Estavam ali as portas

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Janelas e varandas. Estavam ali Na fronteira do olhar Onde o de dentro encontra Justamente Com o de fora. Nesse ponto exato Elas estavam: Bastava um gesto. Mas o meu estar parado Era maior que eu. Estar parado Estar vivo: A mesma incompreensão E medo Entre mim E aquele estar das coisas. Estar ali Como nunca ter chegado. Estar ali Por estar ali E além de mim 0 que eu não ousava. Ah Relembro a amplidão dessas varandas intocadas Os pequenos raios de luz Nos vidros coloridos das janelas. Revejo a dura consistência da porta Cerrando seu segredo. E me retorno Ali No imóvel do gesto que não fiz. Como se pudesse Agora Escancarar portas e janelas

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Para sair nu pelas varandas Desvairado e nu Profeta, louco, infante. Sair para o vento O sol, as tempestades, as neves, As quedas de estrelas e Bastilhas, O cheiro de jasmins Entontecendo os quintais. (pudesse retomar manhãs, amigo, manhãs perdidas como tudo que não fui) Mas continuo Ali. Aqueles espaços Permanecem mortos dentro de mim. Como um corpo que se ama E não se toca.

Ou esse, sem data, reunido entre os dispersos publicados no livro Caio 3D — o essencial da década de 1980, de 2005.

Não cantes, como eu, Os outros por bebedeira Não saúdes A morte em literatura. Boa negra Voltada para as estrelas Pés de chumbo cravados na lama: O canhão E sua escandalosa metafísica

Caio nunca publicou em livro seus poemas. Talvez não os achasse bons, talvez não os levasse a sério. Brincava com

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Mário Prata que poesia era coisa para quem não conseguia chegar ao fim da linha. Mas a importância de ter lido os poetas, em seus textos, era de fato inegável, e aparece na preocupação com a forma, no lirismo, na exatidão do uso das palavras.

E as influências para seus textos não vinham só da literatura: cinema, teatro, música, tudo podia influenciar um texto. Caio chegou a dizer, certa vez, que devia ser insuportável para Academia, e também para a crítica, lidar com um escritor que confessava que o trabalho do Cazuza e da Rita Lee foram influências muito maiores que Graciliano Ramos. "Isso deve ser insuportável. Você compreende? Isso não é literário. E eu gosto de incorporar o chulo, o não-literário", disse.

Fosse o que fosse que o inspirasse, ele anotava sempre em caderninhos. Sonhos, frases-ímã. "Eu vou magnetizando coisas no inconsciente, coisas do dia-a-dia, coisas que magicamente as pessoas vão te dizendo", disse em uma entrevista. De forma intuitiva, pouco metódica, tudo ia fermentando, amadurecendo, até que surgia uma história inteira, redonda.

Como ele gostava de escrever com música, às vezes tentava apanhar no texto o ritmo daquela música, fazer uma "coreografia verbal" para ela. Muitos de seus contos vêm com o aviso: para ler ao som de. Pode ser Keith Jarrett, Angela Ro Ro, Rolling Stones. E Caetano Veloso, sempre, cujo verso "como é bom poder tocar um instrumento" Caio estava sempre repetindo. Ele adorava essa frase. Como era bom poder tocar um instrumento, pensava, como era bom poder escrever, ter essa arma para lutar contra as agruras do mundo.

E o instrumento estava afinado, e tinha seu público. Até cachê adiantado estava recebendo: Luiz Schwarcz, então na Brasiliense, propôs um adiantamento a Caio para que ele escrevesse um romance. Caio já ruminava a idéia há três anos, a idéia para Onde andará Dulce Veiga. Era só sentar e escrever. Mas as coisas não eram bem assim com Caio; ele

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tinha seu próprio ritmo, que por sua vez era ditado pelo ritmo do texto, quase uma entidade independente. Muitos escritores afirmam que o que fazem é captar uma idéia e escrevê-la; são simples canais de transmissão da arte. Por mais que Caio trabalhasse duro, o texto viria quando tivesse que vir, e isso só foi acontecer em 1990, quando, depois de anos enrolando, escreveu o livro em dois meses e o publicou, já então pela Companhia das Letras. Enquanto não escreve Dulce Veiga para a Brasiliense, Caio sofre mais uma decepção. Viaja a São Tome das Letras com Pedrinho, mas lá discutem muito, brigam, diferenças saltam à tona. Queriam ir embora, mas o pneu furou, o motor pifou, tudo errado. E a relação que durara nove meses acabava assim. E como má notícia sempre anda de mãos dadas, Caio sabe da morte de Fernando Zimpeck, um ator gaúcho. Galizia já tinha ido. As informações ainda eram poucas, as pessoas morriam muito rápido. E ser gay ainda era sinônimo da peste. Para piorar um pouco mais, amigos começam a ligar, a deixar recados na secretária eletrônica, preocupados. Estava rolando o boato de que ele também estaria com aids. Baixo astral total, mas pelo menos as aftas sararam, os gânglios que tinham aparecido diminuíram. Caio se sentia saudável, parecia saudável, e os boatos eram infundados — ao menos aparentemente.

Ruim mesmo era a falta de auto-estima que às vezes aparecia. Sempre com muito humor, mas dava para perceber uma certa tristeza, uma certa carência por trás de suas brincadeiras. Em carta a Jacqueline:

"Abobrinha 2 (somente para iniciados): Abobrinha 2a. S'as o que o Caio Fernando Abreu disse quando viu o Jaburu do outro lado da calçada? — Como é que estou do outro lado, se estou aqui? Abobrinha 2b. S'as o que o Jaburu, do outro lado da calçada, fez quando viu o Caio Fernando Abreu? Gritou: — Jaburú-ú!"

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Em 1986, Caio abandona a Around — que agora não se chama mais Around, e sim A-Z — e vai trabalhar em O Estado de S. Paulo. Vai fazer o que sabe: crítica cultural, cinema, literatura, música. É a época da criação do Caderno 2, o suplemento de cultura; pela primeira vez, o sisudo diário recebia jovens para fazer um caderno do tipo, e o editor é Luiz Fernando Emediato, paladino do Oeste, amigo dos tempos de ditadura e jornais nanicos. Emediato e Caio, que tinham perdido contato, começam a se ver todo dia, mas naquela incômoda posição de chefe e subordinado. Caio não gostava de receber ordens, de cumprir deadlines, de se preocupar com horários de fechamento. Emediato precisava fazer tudo isso, precisava botar o jornal na rua. E quando cobrava resultados de Caio, este era seco, mal-humorado, frio. Para ele, Emediato tinha se entregado, se vendido ao sistema, talvez; era o chefe engravatado e careta.

O Caderno 2 não era fácil de se editar. Como era um caderno de cultura em geral, havia vários grupinhos: o pessoal do teatro, o pessoal do cinema, da literatura, da música. Ninguém se misturava muito. Caio tinha sua turma: José Márcio Penido, amigo de muito tempo, agora dividia a redação com ele. Havia outros. E Caio estava sempre pronto a defender seus amigos, mesmo os que não trabalhavam no jornal, quando achasse necessário. E mesmo que não fossem amigos: ele rodava a baiana sempre que achava que alguém estava sendo injusto. Emediato, por exemplo, gostava de implicar com o grupo de rock Titãs. Em qualquer crônica ou texto, ele dava um jeito de enfiar os Titãs no meio e fazer uma brincadeira, uma palhaçadinha, uma alfinetada de leve. Caio, que adorava o grupo, se mortificava. Por quê?, perguntava. Por que essa implicância com os Titãs? Ele, sempre tão bem-humorado, não tinha humor nenhum nessas questões; levava a sério demais a defesa do trabalho e da arte das pessoas que admirava.

Por essa época, Caio trabalha também na peça A maldição do vale negro, junto com Luiz Arthur Nunes. A peça é inspirada no texto que Caio escrevera, aos 13 anos de

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idade, para o concurso de redação em sua escola — A maldição dos Saint-Marie, que foi publicado mais tarde, em Ovelhas negras. Caio e Luiz Arthur passaram todo o Carnaval de 1986 trabalhando e brincando com a idéia de melodrama. Escreveram o texto e Luiz Arthur dirigiu a peça, que ganharia o Prêmio Molière de teatro, em 1989.

Nesse período, Caio escreve também o roteiro do longa-metragem Romance, dirigido por Sérgio Bianchi. O escritor e Sérgio, porém, já tinham desistido de morar juntos. Sérgio era, às vezes, muito louco, muito intenso, e Caio também não era uma pessoa muito fácil... O escritor vai então para um apartamento na Haddock Lobo, onde fica, finalmente, por vários anos. Vai morar com Antônio Neto, um rapaz que não conhecia, mas que topara dividir apartamento com ele. Uma amiga em comum lhe pedira que acomodasse Caio por uns tempos, e Antônio disse que não se importava. Na verdade, ele se importava, mas quando soube que era o Caio, a coisa mudou de figura. Antônio era gaúcho e tinha morado no mesmo bairro do escritor em Porto Alegre. Fã de sua obra, achou o máximo ver o desfile de pessoas que se tornou comum no apartamento depois da vinda de Caio: "atores, atrizes, escritores, vagabundos, poetas, artistas plásticos, veados, lésbicas, gente famosa, gente anônima, alcoólatras anônimos, alcoólatras famosos, mãe-de-santo, pai-de-santo, travesti, garçonete, guarda-costas, porteiro de boate, dona de boate", conta Antônio, talvez com certo exagero, na introdução de seu livro Mãe na zona. A idéia para a história surgiu em uma noitada que Caio, Cazuza e ele passaram em um bar. Caio começara a dar uma de astrólogo e falar do mapa astral de Antônio. Sabia que o rapaz era ariano e que seu ascendente era Libra, mas era só. Não sabia as outras coisas. Foi quando Cazuza interveio e começou a brincar. Inventou que o Antônio tinha trígono na quarta casa da Lua em Saturno, o meio do céu em trígono em Urano, e mais um monte de coisas sem sentido. O rapaz entrou na brincadeira; disse que, além da Lua e Saturno e Urano sabe lá onde, ele tinha a mãe na zona. A expressão pegou, e os três passaram

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a noite toda discutindo o que era ter a mãe na zona, e por fim Caio sugeriu que o rapaz escrevesse um conto ou crônica que ele publicaria. Antônio escreveu, o conto Mãe na zona saiu na A-Z e fez muito sucesso. Caio insistia para que o rapaz escrevesse um livro: ele lhe daria toda força. Apenas 19 anos depois, no entanto, Antônio tomou coragem e escreveu o livro. E, afinal, o que é ter a mãe na zona? Segundo as primeiras frases do conto de Antônio, "mãe na zona é errar, se foder, chorar e se arrepender profundamente. Depois, começar tudo de novo. Exatamente do mesmo jeito."

Outro que morou com Caio nesse período, início de 1987, foi o ator Marcos Breda, que conhecera Caio uns dois anos antes, em uma festa na casa da atriz Imara Reis. O ator, que era também gaúcho, de Porto Alegre, estava em São Paulo para participar do filme Feliz ano velho, baseado na obra de Marcelo Rubens Paiva. Breda voltaria a São Paulo no ano seguinte, para fazer uma montagem da Electra de Sófocles, dirigida por Jorge Takla, e foi então que dividiu o apartamento com Caio, durante seis meses. Ali, ele viu saírem da máquina de escrever vários dos contos do livro Os Dragões não conhecem o paraíso, que seria publicado em 1988.

O ator também se preocupava com os sumiços de Caio, dois, três dias sem aparecer, trancado no quarto. Ele então bolou um estratagema: espalhou talco no chão entre o quarto de Caio e o banheiro. Assim, quando voltasse da rua, podia saber se Caio estava vivo ou morto: bastava ver se havia pegadas. Se o amigo havia saído para ir ao banheiro, ou à cozinha, era porque estava vivo, e apenas queria ficar sozinho. Dois dias depois, porém, o talco continuava intacto. No terceiro dia, o ator tomou coragem e bateu na porta. Lá de dentro, uma voz cavernosa respondeu: Bom dia, Breda. O estratagema do ator era bom, e funcionaria com qualquer outra pessoa. O problema era que Caio tomava comprimidos para dormir e ficava dois dias literalmente apagado.

Caio convivia bem com a heterossexualidade convicta de Breda. O apartamento era mais movimentado por causa das

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namoradas que o ator levava que pelos casos de Caio. Por acaso, muitas das meninas que Breda namorava na época eram bissexuais; Caio gostava de brincar com o amigo, dizendo que essa era sua forma de exercitar sua bichice sem culpa.

Um dia, os dois vão a uma festa. Chega um amigo de Caio, que começa a dar em cima de Breda. Caio, sarcástico, enterra as esperanças do amigo:

— Desista, meu amor. Todas nós já tentamos. É por influência de Caio também que Breda vai morar no Rio de Janeiro, na metade de 1987. Mário Prata estava escrevendo a novela Helena na Manchete e precisavam de alguns atores para certos papéis. Caio, que estava trabalhando com Prata em uma novela de José Wilker que acabou não se concretizando, indicou Breda, e lá foi ele. O ator foi para o Rio e não saiu mais. Representou em adaptações de algumas obras de Caio, como O homem e a mancha, no teatro, e Sargento Garcia, um curta. Em 2004, viria a participar, dessa vez como ator e também co-produtor, junto com Camila Pitanga, da remontagem da peçav4 maldição do vale negro, com direção de Luiz Arthur Nunes.

O livro que Breda viu nascer enquanto morava com Caio, Os dragões não conhecem o paraíso, é provavelmente o melhor trabalho do escritor. Os contos apresentam uma unidade temática, segundo Caio nos diz, em uma pequena introdução. É um livro sobre amor. São treze contos, e não à toa — treze é um número cheio de significados místicos, mágicos, para quem acredita nessas coisas, e ele acreditava. Já na primeira história, Linda, uma história horrível, ele aborda o tema que o afligia: a aids. Sempre usando elipses, sem citar o nome da doença ou do vírus que a causa, ele fala dos sinais, da degradação do corpo. Um homem vai visitar a mãe. Doente, e pressentindo, talvez, seu fim, ele chega sem avisar, e encontra a mãe envelhecida, junto com a cadela também idosa, Linda.

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— Mas vai tudo bem? -Tudo, mãe. -Trabalho? Ele fez que sim. Ela acariciou as orelhas sem pêlo da

cadela. Depois olhou outra vez direto pra ele: — Saúde? Disque tem umas doenças novas aí, vi na

tevê. Umas pestes. — Graças a Deus — ele cortou. Acendeu outro

cigarro, as mãos tremiam um pouco. — E a dona Alzira, firme?

Um por um, foi abrindo os botões. Acendeu a luz do abajur, para que a sala ficasse mais clara quando, sem camisa, começou a acariciar as manchas púrpura, da cor antiga do tapete na escada-agora, que cor? -, espalhadas embaixo dos pêlos do peito. Na ponta dos dedos, tocou o pescoço. Do lado direito, inclinando a cabeça, como se apalpasse uma semente no escuro. Depois foi dobrando os joelhos até o chão. Deus, pensou, antes de estender a outra mão para tocar no pêlo da cadela quase cega, cheia de manchas rosadas. Iguais às do tapete gasto da escada, iguais às da pele do seu peito, embaixo dos pêlos. Crespos, escuros, macios.

— Linda — sussurrou. — Linda, você é tão linda, Linda.

Em todos os contos, o escritor aborda seus temas

preferidos: o estranhamento, a solidão, a dor. Seus personagens vão envelhecendo com ele. Sempre jovens em Inventário do irremediável, agora há homens de 40 anos — como o próprio escritor. O estranhamento que sentiam em relação à cidade grande, muito forte em seus primeiros contos, agora já é aceito pelos personagens, que, mesmo solitários, vislumbram esperanças. O texto do escritor está em sua melhor forma, e isso foi reconhecido: Caio ganha seu segundo Jabuti por Os dragões.

A repercussão do livro ultrapassa as fronteiras continentais e chega à Inglaterra, onde John Gledson, o maior especialista inglês em literatura brasileira, escreve uma crítica muito elogiosa para o Times, de Londres. Essa crítica abre portas para Caio: tradutoras e agentes foram procurá-lo; há interesse em publicar Os dragões em francês, em italiano, em alemão. A carreira internacional de Caio começa aí, e ele

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não vai perder nenhuma chance de conseguir dar certo lá fora. Até porque isso significa viajar: Inglaterra, França, Alemanha... Dar uma descansada do Brasil.

As possibilidades são imensas, mas não assim, imediatas — Levaria tempo até que as coisas se ajeitassem, contratos, ajustes: Caio só viaja para a Europa no final de 1990. Enquanto a viagem não chega, ele acerta algumas contas consigo mesmo; depois de cinco anos de espera, é a hora, finalmente, de se descobrir Onde andará Dulce Veiga.

CINCO

— Eu deveria cantar. Caio está numa fila de banco, esperando sua vez. De

repente, lhe ocorre a frase: Eu deveria cantar. Ele corre para casa, excitado. O começo! Ele tem o

começo. E todo o resto. A idéia, dele e do cineasta Guilherme de Almeida Prado,

já existia há uns dez anos, os rascunhos já tinham uns seis, o quase-adiantamento para escrever já datava de uns quatro anos. A idéia inicial era inscrever o roteiro do filme em um concurso e depois escrever o romance. No entanto, apesar do roteiro estar terminado, Dulce Veiga não saía. Recusava-se. Os dragões desistiram de esperar, furaram a fila e foram publicados antes dela. Mas a idéia para a primeira frase — a singela "eu deveria cantar" — detonou o processo criativo. Tudo aquilo que Caio vinha maturando há anos resolveu sair à tona, com várias mudanças em relação ao roteiro feito a quatro mãos com Guilherme. Em dois meses, terminou o livro: escrevia dez, doze horas por dia. Das duas mil páginas que tinha escrito, no total, tirou umas duzentas. Escrevia, escrevia, escrevia. Resultado: um belo desvio na coluna. Além do livro pronto.

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O processo é o mesmo que acontece a uma amiga escritora, Márcia Denser. A mulher com pinta de fatal, a preferida de Paulo Francis, a devoradora de homens. Alter ego literário: Diana Marini, a Diana caçadora de seus contos. Márcia era amiga de Caio desde os anos 70, quando se trombaram em algum lançamento de livro pela cidade, ambos com aquele quê de malditos, loucos, sem papas na língua. Ambos precoces, apadrinhados desde cedo por grandes nomes: ele por Hilda Hilst, Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles: ela, por Paulo Francis. Ambos belos: Caio com seu jeito de Quixote, alto, cabelos lisos, ela loira, loira fatal, rosto de boneca. Beldades perversas; ficaram amigos. Enquanto Caio escreveu Sapatinhos vermelhos, uma releitura para adultos do conto de Andersen, Márcia escrevia sua versão da Branca de Neve. Ela era a Branca de Neve, cercada de anõezinhos, cercada de homens por todos os lados. Ele era a mulher dos sapatos vermelhos, que conseguiu conquistar três homens com seus sapatos, por mais que os pés doessem. Eram amigos, Márcia e Caio; ela estava sempre no apartamento dele.

Enquanto ele escrevia Dulce Veiga, uma aventura no terreno do romance, que ele só praticara uma vez, aos 18 anos de idade, com Limite branco, ela também se arriscava a um texto maior, o infantil A ponte das estrelas, e ela o escreveu em pé, também de dez a doze horas por dia, numa tentativa de não engordar demais. O fato de os dois — e não só eles, mas a maioria dos escritores brasileiros da época — estarem decididos, depois de tantos anos escrevendo contos, a fabricar romances, não era coincidência. Talvez houvesse uma necessidade de provar que se conseguia fazer algo de maior fôlego, algo mais trabalhado, escrito mais com a cabeça e menos com o coração, com o impulso para o nocaute que um conto deve ter. E, mais pragmaticamente, era uma exigência do mercado mesmo, uma questão da época. Os anos 70 foram todos dedicados ao conto. Havia revistas e jornais literários, muitos deles nanicos, que os publicavam, que circulavam, que realmente eram lidos. Nos anos 80, com

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o fim da ditadura, acabam os nanicos, e assim um veículo por onde escoar tanto texto curto. As editoras começam a preferir romances, porque o leitor médio está mais acostumado com eles. Rubem Fonseca, por exemplo, grande contista, publica vários romances nessa época, nem todos com o mesmo sucesso de crítica que seus livros anteriores de textos curtos.

Dulce Veiga, a cantora, não era uma invenção de Caio.

Quem a criou foi o escritor Marques Rebelo, que nos anos 30 escreveu A estrela sobe, com Dulce, ainda chamada Dulce Rodrigues, como personagem. Em 1974, Bruno Barreto faz a versão do romance para o cinema, e rebatiza a cantora, agora sim, de Dulce Veiga. O filme é estrelado por Betty Faria e Odete Lara, que foi amiga de Caio. Assim, ao escrever sobre Dulce Veiga, Caio homenageia não só Marques Rebelo, um escritor urbano, como ele, mas também Odete Lara, que aliás é personagem do livro.

O narrador de Onde andará Dulce Veiga é um jornalista. Dão a ele a tarefa de encontrar Dulce Veiga, cantora muito popular que desaparecera vinte anos antes. Ele segue as pistas, conhece a filha dela, Márcia Felácio, vocalista de uma banda punk. Entremeando a história, há as menções a Pedro, um amor do narrador, um amor que foi embora. Os enigmas vão se resolvendo, um a um. A busca de Dulce Veiga significa mais para o narrador que um simples trabalho, uma boa matéria: é a busca de si mesmo. A busca de seu passado, afinal a primeira entrevista que fez quando chegou na cidade grande, tantos anos atrás, foi com Dulce.

Não estou absolutamente seguro que, de algum lugar no interior do apartamento, viessem os acordes iniciais de Crazy, he calls me, na gravação de Billie Holiday, e poderia ser também Glad to be unhappy, Sophisticated lady ou qualquer outra dessas canções roucas, gemidas. Naquele tempo eu não as conhecia, mas estou certo de que nessa ou na outra vez perguntei quem era e ela disse que era Billie, e eu anotei, tão aplicado. Tudo isso que agora parece clichê banal, naquele

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tempo — repito e não me canso, porque é belo e mágico na sua melancolia: naquele tempo — tudo era novo, eu nem suspeitava das marcas pelo caminho. Afirmo que havia música, sem medo de mentir, pois mesmo que não houvesse nada e o silêncio do apartamento fosse cortado apenas pelo ruído dos carros na avenida São João, lá embaixo — mesmo que não, que nada e nunca, repito: seria tão perfeito se fosse exatamente assim como penso que lembro, tantos anos depois, que ficou como se tivesse sido.

A busca de Pedro é a busca de aceitação do presente. O narrador tem aids, assim como Pedro teve, e por isso foi embora; assim como tem Márcia, a jovem cantora. E ela que dá nome aos bois, e cita a doença nominalmente. Ela o faz encarar seus gânglios, seus sinais. O encontro com Dulce, afinal, acontece; mas não é nada do que se esperava; há um choque. Não há mistério: ela apenas se tinha recolhido a uma cidade do interior, para viver de acordo com os preceitos da seita Santo Daime. Ela lhe dá um gatinho de presente, o gatinho chamado Cazuza, e ele vai embora. E começa a cantar, enfim.

O narrador começa a cantar. Ele faz, no final, o que deveria ter feito no começo. Finalmente se aceita, e se compreende. A doença não é o fim, mas a possibilidade de um novo começo. Sem querer, pois ainda não sabia que estava doente, Caio intui em Dulce Veiga o que seria a sua postura, quando se descobrisse, finalmente, soropositivo: descoberta da possibilidade de vida.

Toda de branco, Dulce Veiga estava parada na porta

da casa, ao lado do cachorro. Uma arara pousou na árvore perto dela. Os primeiros raios do sol faziam brilhar aquela estranha coroa -tiara, diadema — que tinha entre os cabelos louros.

Pisquei, ofuscado. Ela ergueu o braço direito para o céu, a mão fechada, apenas o indicador apontado para o alto, feito seta. Depois gritou qualquer coisa que se esfiapou no ar da manhã.

Parecia meu nome.

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Bonito, era meu nome. E eu comecei a cantar.

Mas estamos em 1989. Caio ainda não teve coragem de

fazer o que ele chamava de O Teste. Ele via seus amigos sofrerem, perdeu muitos deles. Uma das perdas mais sofridas, mais choradas, foi Cazuza. Não em vão, esse é o nome do gatinho com que Dulce presenteia o narrador no livro.

Cazuza e Caio foram amigos. Tiveram até um pequeno rolo, namorico, agarramentos de bastidores. Certa vez, em um show, Cazuza dedicou Só as mães são felizes a Caio, que ficou todo orgulhoso. No final do show, vai até o camarim e dá uns bons amassos no amigo. Eles se gostavam, se admiravam. Iam juntos a bares trash, como Vai Improviso, do travesti Andreia de Maio. O bar era o que se podia chamar de barra pesada: tiroteios, tráfico de drogas. Muita gente não encarava, mas Caio preferia esse bar aos chamados guetos gays. Caio odiava esses guetos, odiava boates e saunas exclusivamente gays.

Caio sofreu muito ao acompanhar a decadência física do cantor, e foi um dos mais indignados com a capa da Veja que expunha uma foto de um magro e pequenino, porém altivo, Cazuza, com a manchete: "Cazuza: Uma vítima da aids agoniza em praça pública". A tal manchete foi uma confusão, e o final da matéria também, em que se desmerecia o trabalho do cantor, dizendo que ele não era gênio coisíssima nenhuma. Vários artistas e intelectuais elaboraram e assinaram um manifesto contra a revista. A jornalista que fez a entrevista se demitiu, afirmando que escrevera uma matéria equilibrada; o final e a manchete problemática seriam responsabilidade dos editores.

Quando Cazuza morreu, Caio chorou potes. Viajou até o Rio para o enterro. Apareceu com uma coroa de flores enorme, e ficou em seu canto, chorando, chorando. Desde então, sempre que fosse falar de aids, e da maneira de lidar com ela, citaria o cantor, a admiração que sentia pela forma

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como ele encarara a doença -aberta, tentando eliminar os preconceitos. Foi mais uma das grandes perdas quç assombrariam Caio até o fim de seus dias, como o fora a perda de Ana Cristina César.

Afora as tristezas, Caio ia tocando a vida. Apresentou, por uns tempos, um programa de crítica literária na TVMix, uma programação da TV Gazeta, dirigida por Fernando Meirelles, que ainda não era o aclamado diretor de cinema. Na literatura, saiu uma coletânea de seus contos chamada Mel & girassóis, organizada por Regina Zilberman, uma estudiosa da obra do autor, pela editora Mercado Aberto. No teatro, novas adaptações de Morangos mofados: já tinha havido a primeira, feita por Paulo Yutaka, amigo querido que também viria a morrer de aids. Luciano Alabarse também fizera a sua, em Porto Alegre. E agora era montada uma na Bahia.

No apartamento da Haddock Lobo, os amigos continuavam a aparecer. Em 1989, andou pelo apartamento de Caio o ator gaúcho Renato dei Campão, que já conhecia o escritor desde a primeira montagem de O leiteiro, em 1983. Renato não atuava na peça, mas estava sempre com o grupo. Antes dessa época, Renato já cruzara com Caio pela noite de Porto Alegre, mas tinha um certo medo dele: o comentário geral era que o escritor era uma pessoa extremamente intelectual, fechada, séria; arrogante, para dizer em uma palavra. Na conversa de bar, anos depois, é que Renato descobriu quão engraçado Caio podia ser. De um humor negro, negríssimo, mas engraçado.

Renato descobriu também o lado temerário de Caio, o lado que gostava de ir a bares barra pesada, freqüentados por personagens do maior submundo da noite. Era nessas aventuras que Renato o acompanhava. Vamos pegar pó?, dizia Caio. Vamos, respondia Campão, pronto para qualquer coisa. Vamos beber? Vamos pegar um michê? Vamos comer churrasquinho (às sete da manhã, depois de passarem a noite bebendo) ? Vamos, dizia Campão; com ele não havia tempo ruim. Era isso que Caio apreciava nele: sua disposição

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para aventuras. Em 89, ele convidara o ator para se hospedar em seu

apartamento em São Paulo, prometendo arrumar um emprego na capital paulista para ele. Nessa época, o apartamento de Caio era um lugar agitado: visitas a toda hora, amigos vindos de todas as partes, e a secretária eletrônica com os recados mais ilustres: Caio, aqui é a Regina Duarte, me liga. Mesmo com tantos contatos, o emprego para Campão nunca veio. Caio se enrolou, mergulhou em uma de suas muitas crises depressivas, e menos de um ano depois de ter saído de Porto Alegre, Renato voltou.

Por ser amigo mais de farras noturnas, Renato presenciou algumas cenas em que Caio, bêbado, armava barracos escandalosíssimos. Ele diz ter presenciado uma cena, uma vez em Porto Alegre, em 1987, no bar Líder. Ele e o escritor estariam conversando animadamente no balcão, o lugar lotado. Caio gesticulava e falava alto, empolgado com o assunto que discutia. Atrás dele, havia uma mulher de cabelos compridos, que volta e meia batia sem querer a bunda em Caio. O escritor teria se irritado com aquilo, e em certo momento virado para a mulher e dito: sai daqui. Ela não deu bola. Algum tempo depois, ele viraria de novo: tu não vai sair daqui? Ela nada. Mais uma vez: tu não vai sair daqui? Como a mulher não saía, e continuava encostando em Caio, ele decidiu. Calmamente, enquanto conversava com Campão, o escritor acendeu o isqueiro, levantou-o atrás da cabeça e ateou fogo nos longos cabelos da inconseqüente figura, que não sabia manter o próprio traseiro no lugar. A mulher se pôs a gritar, mas nada aconteceu a Caio. Ele continuou tranqüilamente a conversa, e ela nada fez em represália, talvez com medo de uma atitude ainda mais agressiva.

A agressividade de Caio vinha à tona, de vez em quando, até na relação com os fãs. Por mais que adorasse ser lido, de vez em quando o mau humor o dominava. Muitas meninas e meninos o assediavam, admiravam sua obra, e vinham falar com ele. Uma vez, em Porto Alegre, uma garota veio dizer que

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era fã de Caio. Fazia um frio enorme, e ele e o amigo Luciano Alabarse saíam do cinema. A resposta veio rápida e ríspida:

— Não quero fãs, quero amantes.

Em 1989, em outro período, também foi morar com Caio por uns tempos Ivan Mattos, o ator, namorado do início dos anos 80. Moraram juntos por alguns meses — agora bons amigos, apenas — até que o gênio de Caio e o temperamento de Ivan se trombassem de vez e os dois brigassem feio, dessa vez para sempre.

Ivan estava no apartamento. Caio chegou bêbado em casa, ele e a amiga Déa Martins, uma produtora de eventos também gaúcha, que ele conhecera poucos anos antes. Déa era divertidíssima, adorava Caio, e os dois se juntavam sempre para falar bobagens, e também para fazer loucuras, às vezes. Déa presenciou a briga de Caio e Ivan, por causa da menção do escritor de chamar um michê pelo telefone. Caio deu um tabefe em Ivan, que ficou magoadíssimo e foi embora no outro dia, sem dar mais notícias, enquanto o escritor se corroia em culpa.

Todos esses conflitos Caio discutia com seu terapeuta, Ronaldo Pamplona. A terapia o ajudava demais. Também, sofrendo uma desilusão amorosa por semana, era preciso mesmo um pronto-socorro emocional de vez em quando. Porque por mais que dissesse que aquele tal era o último amor, ele estava sempre se apaixonando de novo. E de novo. E quebrando a cara, bem, de novo. Houve alguns casos até duradouros, inclusive um que ele mencionaria mais tarde, numa entrevista à Marie Claire, como sendo a provável pessoa de quem ele pegara aids. Um bailarino, uma pessoa conhecida que viveu na Suécia, e que morrera em 1989 em decorrência da síndrome. Desde então, afirma Caio na entrevista, ele não se descuidou mais. Os amigos afirmam, no entanto, que era impossível saber como Caio contraíra a doença, porque, embora fosse recatado a maior parte do tempo, apaixonado por alguém, de vez em quando tinha uns surtos de galinhagem, como dizia. E na noite, na loucura,

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bêbado, bem, é difícil afirmar que ele se protegia sempre. Embora não fizesse o teste, ficava paranóico sempre que aparecia alguma pequena doença. Primeiro, uma infecção nos ouvidos que não sarava nunca; depois, um herpes-zóster. As pessoas diziam que era paranóia dele, que aquilo era apenas seu corpo colocando as inseguranças para fora, e assim ele seguia vivendo.

Além da terapia, Caio continuava a manter sua espiritualidade viva, através dos rituais mais variados. Falava sempre com sua mãe-de-santo, D. Sônia, no Rio de Janeiro. Jogava taro, / Ching. A beleza dos rituais o fascinava, talvez mais que a fé, crença em algo maior. E assim, pela beleza do ritual, ele chegou a freqüentar também o Santo Daime, que virou moda entre os intelectuais e artistas do Rio e de São Paulo no final dos anos 80. O Daime é uma substância alucinógena, em torno da qual se formou uma seita na Amazônia. Quem participou do ritual original afirma que o que se fazia no Rio era uma imitação tosca do que acontecia nas selvas amazônicas. Enfim, era uma forma de tentar contatar a divindade, e Caio tentava. O Santo Daime está presente em Onde andará Dulce Veiga; não por acaso, o livro é dedicado a Cida Moreira, cantora e amiga de Caio, que participara dos rituais originais na Amazônia. Caio a entrevistou exaustivamente para saber como era tudo, e usou essas informações no livro. O jornalismo até que servia para alguma coisa, afinal.

Uma das pessoas que influenciou Caio a tentar o Santo Dai-me foi Vicente Pereira, dramaturgo, amigo e parceiro de trabalho de Mauro Rasi, ligado ao movimento do teatro besteirol que surgiria depois. Vicente foi um dos autores do famoso programa de humor TV Pirata. Ele e Caio foram grandes amigos; os melhores que se pode haver. Eram almas gêmeas, de uma certa forma: o mesmo humor, a mesma espiritualidade, a mesma forma de encarar a vida. Quando Vicente morreu, de aids, anos depois, Caio diria que sua ausência era a mais dolorida. Era seu melhor amigo, seu grande colega. Vicente tinha uma forma de encarar as coisas

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voltada ao desapego: não acumulava coisas; acreditava que quanto mais desse, mais retornaria a ele. Com essa filosofia, influenciou pelo menos mais uma pessoa: Miguel Falabella, também ligado ao teatro. Caio, quando o conheceu, vivia esse desapego; talvez não de forma consciente, talvez não como filosofia de vida, mas era assim que ele era: não conseguia juntar nada, comprar um carro, um apartamento, acumular bens. Estava sempre trabalhando, e sempre sem dinheiro. Era um sucesso como escritor, dava oficinas de criação literária, fazia copidesques, traduções, free-lances, e estava sempre sem dinheiro. Generoso, dava constantemente presentes aos amigos; um livro, uma pintura, um anel; quando menos se esperava, ele podia virar e se oferecer para pagar a conta de todo mundo no bar. Era assim que ele era. E Vicente também. Não poderiam deixar de ser amigos. A semelhança era tão óbvia que as pessoas em volta percebiam. Muito antes de Caio e Vicente se conhecerem pessoalmente, eles já se conheciam dos relatos dos outros. José Márcio Penido dizia: Caio, você precisa conhecer o Vicente. E ao Vicente: Vicente, você precisa conhecer o Caio. José Márcio fez a ponte, por muito tempo, entre os dois. Sabia que, no minuto em que se encontrassem, se adorariam. E assim foi. Amigos até o fim. Há uma frase de Vicente, tão repetida por Caio, que muita gente chega a achar que é dele: "Quando duas ou mais pessoas estiverem reunidas em nome de Deus, eu estarei no meio delas. Mas sempre com um decote bem profundo."

Caio brincava com Vicente, dizia que ele era a sacerdotisa do Daime. Era só o Vicente entrar em alguma seita, credo, filosofia ou religião e, dois meses depois, já estava comandando as reuniões, com algum cargo ou posto importante. Sacerdote, sacerdotisa. A relação de Caio com essas coisas era sempre mais descompromissada. Ele não assumia que fazia parte da seita, estava sempre como visitante, como turista. Não fazia parte de seu temperamento se comprometer a fundo com as coisas — namoros, religiões, empregos. Por um lado, isso era triste: lhe dava uma solidão

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tremenda, às vezes. Por outro, a liberdade que tinha lhe permitia ir aonde fosse sem dar satisfações a ninguém. E assim foi, quando Caio decidiu ir para a Europa, em 1990, para lançar seus livros.

E como Caio queria ir para a Europa... Os tempos aqui, como sempre, não eram fáceis. Collor tinha ganhado as eleições. Aquilo desanimava Caio, e muita gente também. Antes do segundo turno da eleição, em 1989, o Jornal do Brasil pediu a Caio que escrevesse um perfil de Collor; Márcio Souza escreveria o de Lula. Caio escreveu o texto, mas ele nunca chegou a sair. Segundo o escritor, foi considerado ofensivo demais pela direção do jornal. Foi publicado depois pelo jornal alternativo Verve, e Caio o republicou, anos mais tarde, em Ovelhas negras.

O texto era um conto. Falava de um menino, Fernando, que tinha um encontro com um outro menino, um ruivo, com todas as características de ser o demônio. O menino Fernando faria um acordo com o diabo para dominar a todos. Se fez bem ou não em não publicar o texto, não dá para dizer; mas a direção do JB acertou, ao menos, em afirmar: era ofensivo, sim. E tinha que ser, diria Caio, se pudesse. Quase como se adivinhasse o que viria depois: a roubalheira, o impeachment, os caras-pintadas.

— Para possuir todos, você foi o escolhido — o

menino disse. E curvando-se mais: — Pense bem, Fernando. Vou perguntar pela última vez. Tudo isso, você quer? Ele voltou a cabeça até mergulhar os olhos no verde sem limites dos olhos dos outro. E aceitou:

— Quero. [...] — Você é o escolhido, Fernando. Dentes agudos

picaram seu pescoço. — Mais fundo-pediu. — Daqui a trinta anos, meu bem-amado — o menino

ruivo gemeu. E num movimento mais brusco explodiu dentro dele, enchendo-o de ouro líquido. Aquele mesmo que, trinta anos mais tarde, sairia por sua boca escolhida

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para chover sobre as cabeças e corpos de todos aqueles homens e mulheres que o aplaudiriam como o cavaleiro andante, um príncipe, um rei. Um deus coroado pelo lado mais negro de todas as coisas. Molhou as pedras num jato prolongado de prazer-o primeiro.

— Como é seu nome? — perguntou então. Astaroth, imaginou ouvir. Só imaginou. 0 menino

ruivo tinha desaparecido ao sol do meio-dia em ponto, quase dezembro de uma segunda-feira, dia de Exu, nas pedras do Arpoador.

Em novembro de 1990, Caio finalmente viaja à Europa.

Vai a Londres lançar a tradução inglesa de Os dragões não conhecem o paraíso — Dragons dont go to heaven — em uma feira de cultura brasileira. Foi notícia por lá: deu entrevista para a revista Time, para o jornal The Independent, para a Time Out, para a rádio BBC. Depois de divulgar seu livro, Caio foi correr atrás de lugar para morar e emprego.

Quarenta e dois anos de idade, nove livros publicados, uma tradução inglesa, e lá estava o Caio procurando emprego de garçom, para conseguir passar mais um tempo na Europa, até o lançamento da edição francesa do livro, que só aconteceria dali a quatro meses, em março. Por essas e outras é que a figura de Caio é tão associada a de D. Quixote de La Mancha. Clarice Lispector, que primeiro lhe deu o apelido (você é Quixote! Você é Quixote!, Clarice lhe sussurrava no ouvido, ao seu lado, enquanto ele autografava livros, em algum lançamento), e provavelmente pensando em sua aparência, sua barbinha, nem imaginava o quanto o termo colaria em Caio, lhe assentaria bem como uma roupa feita sob medida. O quixotismo dele estava presente em seus ideais, ideais nobres, de lealdade e busca de um mundo melhor, e também na maneira trôpega de lutar por eles, a maneira errada, desajeitada. Às vezes, combatia moinhos de vento, e a chance de sucesso parecia ser zero, mas ele continuava lutando. Na ida à Europa, ele não tinha dinheiro nenhum; viajou com a passagem que havia ganhado do prêmio Molière pela peça A maldição do vale negro. Se

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quisesse ficar lá, teria que batalhar um emprego, um subemprego qualquer, já que, com sua inabilidade em lidar com questões materiais, não tinha nenhum dinheiro guardado para segurar a barra nessa hora. No fim das contas, ele fez alguns free-lances para jornais no Brasil e, assim, quixotescamente, fez sua carreira internacional.

Em Londres, Caio estava feliz: visitou a casa onde

morou Virgínia Woolf; foi até o rio Ouse, onde ela se matou; pegou uma pedrinha do jardim dela. Comprou um casaco, que seria seu companheiro por anos, um casacão de soldado alemão no mercado de Camden, por uma pechincha. Comprou uma máquina de escrever usada, uma Smith-Corona, com a qual passou a escrever cartas aos amigos, sempre sem acentos — o teclado era britânico. Seguindo o costume de dar nomes às suas máquinas de escrever, essa ele chamou de Dorothy.

Caio fica uns tempos na casa de Ray, seu editor na Inglaterra. Ray, um irlandês, mora num bairro negro, o Brixton, uma espécie de Harlem londrino, como Caio o descreve. "Em cima, uma negrona grita o tempo todo fuck you little devil! I’ll kill you, bastard: para nigrinhos. Grita mais coisas que não entendo, mas me soam mais para David Lynch do que para T.S. Eliot. ", escreve a Jacqueline Cantore. Ele sente que os tempos são difíceis, que tudo é perigoso, como São Paulo era; a única diferença é que na Inglaterra as pessoas sofrem a crise com mais estilo.

Em Londres, além de ver muitos filmes e ler muitos livros — seu inglês vai se soltando mais e mais — Caio fica na espera dos compromissos que tem a cumprir: algumas leituras e palestras na Inglaterra; depois, em março de 1991, o lançamento da edição francesa de Os dragões. Enquanto isso, ele sonha. Escreve a Magliani: "Depois desta, quando voltar ao Brasil, queria demais começar a providenciar uma mudança de São Paulo. Não sei para onde. Algum lugar onde eu possa plantar rosas. Isso é FUNDAMENTAL. Quero porque

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quero cultivar roseiras." Nessa carta, ele conta ainda à amiga que planeja escrever um livro chamada Histórias estrangeiras. Seriam histórias sobre a condição de ser um estrangeiro, e não só em outras cidades, mas no mundo. O livro viria a ser publicado, postumamente e incompleto, pela Companhia das Letras, com o título — já modificado por Caio — de Estranhos estrangeiros.

Porque ele era, acima de tudo, um estrangeiro. Em São Paulo, sentia que a cidade o sufocava, a violência, a poluição. Em Porto Alegre, não agüentava o moralismo das pessoas. Em Londres, quando se achava que tudo estaria bem, afinal, era a Europa, ele achava tudo frio demais. Havia sempre um motivo para não gostar do lugar, e Caio começou a perceber que ele seria, sempre, um estrangeiro. Mesmo aprendendo a gostar do Brasil, ele jamais deixaria de ser um gaúcho, um gaúcho da fronteira, um homem sem lugar. "No fundo, nunca saí de Santiago do Boqueirão", escreve, na mesma carta, a Magliani.

Assim que aceita sua condição de eterno estrangeiro, Caio pode parar e olhar ao redor e ver que os problemas, afinal, não estão em Santiago, em Porto Alegre, em São Paulo ou Londres; a confusão está é nele mesmo. Assim, pode aprender a amar o lugar onde está, apesar de todos os pesares, apesar de todos os defeitos. E é assim que Caio começa, finalmente, a amar o Brasil. Com todas as crises e dores e terceiro-mundismos, Caio ama e odeia o Brasil. Sobretudo ama. E o descreve muito bem, o seu Brasil, o Brasil urbano, das grandes cidades, em Onde andará Dulce Veiga. E é isso que encantará os franceses, quando o livro for lançado lá: o retrato de um Brasil urbano, violento, mas também poético; diferente, talvez, dos clichês que se costuma apregoar do país. Como no trecho seguinte, em que a metrópole é o pano de fundo para suas lembranças:

O motorista japonês tentou puxar conversa, mas respondi com um grunhido, ele desistiu depois de comentar que ia cair a maior água. Afastei o banco para trás, estendi

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as pernas, abri mais o vidro. Ele ligou o rádio, rezei para que não sintonizasse num daqueles programas com descrições hiper-realistas de velhinhas estupradas, vermes dentro de sanduíches, chacinas em orfanatos. De repente a voz rouca de Cazuza começou a cantar. Vai trocar de estação, tive certeza, mas ele não trocou. Isso me fez gostar um pouco dele, tão oriental, talvez budista, e pedi que aumentasse por favor o volume, deitei a cabeça no encosto de plástico pegajoso e por quase um segundo, muito rapidamente, enquanto o carro rastejava pelo trânsito difícil, sobre o asfalto em brasa, a camisa molhada, a pilha de laudas virando pasta entre meus dedos, fechei os olhos, o vento soprava na minha cara, secando o suor, e por quase um segundo, outra vez, como quem de repente suspira ou pisca e segue em frente, veloz feito uma mariposa que cruza subitamente o ar nas noites de verão, à procura de luz acesa para girar em torno, como quem apaga ou acende uma dessas luzes para perceber no quarto vazio apenas a vibração de asas que restou no ar, não o inseto que já foi embora, no fundo turvo do pensamento, eu queria ver no escuro do mundo, sem querer nem provocar ou conduzir, por quase um segundo, finalmente, dentro do táxi que descia em direção ao Ibirapuera, lembrei então de Pedro.

Com o sucesso do livro na Europa, Caio começa a

sonhar alto. Dulce Veiga é uma história super-cinematográfica; e se algum diretor francês se interessa e resolve comprar os direitos? E se o Almodóvar se interessa, lá na Espanha? Caio está brincando quanto a isso, claro; mas ele brinca principalmente para convencer o amigo Guilherme de Almeida Prado, cineasta, a fazer o filme. O livro, afinal de contas, surgiu da idéia dos dois para um filme. Caio chegou a pedir para uma amiga cantora, Laura Finocchiaro, musicar uma letra que ele fez. Laura fez a música, e a gravou, anos depois. Chama-se Poltrona verde.

Laura é uma das três irmãs Finocchiaro, gaúchas, todas artistas. Débora é atriz. Laura, cantora. A outra irmã, Lory E, era roqueira, tinha a sua banda, a Lory E Band, e era muito, muito maluca, e muito amiga do Caio. Com trinta e poucos

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anos, morreu de aids. O personagem Márcia Felácio, filha de Dulce Veiga, vocalista da banda Vaginas dentatas, é um pouco inspirada em Lory. Inspiração, e homenagem. Caio adorava cantoras. Era amigo de muitas delas: Laura, Cida Moreira, Adriana Calcanhoto. Escreveu releases para discos de Laura e de Cida, sem cobrar por isso. De Cida, era um dos melhores amigos. A Adriana Calcanhoto, "deusa", ele admirava demais; nas outras vezes em que esteve na Europa — sim, porque Londres em 1990 era apenas o começo — escreveu algumas cartas a ela, contando de suas experiências, e sempre fazendo referências ao álbum Senhas, da cantora. Caio amou o álbum; seria uma das únicas fitinhas que ele levaria para ouvir no walk-man, e a ouvia sem parar. Chorava sempre na parte do "eu ando pelo mundo, prestando atenção em cores..." Em homenagem a Caio, Adriana escreveria mais tarde a canção Alegre, gravada por Vânia Bastos.

E Caio não gostava apenas de cantoras sérias, como Adriana, Cida ou Marina Lima. Em uma de suas viagens à Europa, ele levou a fita da dupla pop-humorístico-sertaneja Xicotinho & Salto Alto, que fez sucesso com a canção Doida demais. Stella Miranda, atriz paulistana, asfalto nas veias, fez a dupla com a cantora Katia Bronstein, apenas de farra. Nenhuma das duas tinha qualquer ligação com o interior ou com a música caipira. Stella participou, como atriz, do primeiro besteirol da história dos besteiróis. Era a peça As 1001 encarnações de Pompeu Loredo, escrita por Vicente Pereira e Mauro Rasi, em 1980. O teatro besteirol fazia crônicas sobre o cotidiano, comédia de costumes; tinha o humor contundente e criticava a sociedade. A crítica, no entanto, não assimilava. Diziam que era bobagem, besteira, e foi aí que surgiu o nome "besteirol". Vinte anos depois, surgiria uma nova tropa de atores e autores de teatro inspirados no movimento. Grace Gianoukas, amiga de Caio, faria sucesso com o espetáculo Terça insana. Em 2006, o espetáculo entraria no quinto ano de apresentações, sempre com mais e mais fãs. O público e a crítica estariam prontos,

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finalmente, para esse tipo de humor. Apesar da sua amizade com as cantoras, e com Laura, e

de até a música estar pronta, Caio não viu Dulce Veiga virar filme. Guilherme de Almeida Prado não conseguiu filmá-lo naquela época; as dificuldades de se fazer cinema no Brasil eram imensas; não havia dinheiro. O projeto só foi iniciado em 2005, agora sim, com todo apoio das leis culturais, e com vários atores consagrados nos papéis principais: Maitê Proença como Dulce Veiga, Carolina Dieckmann como Márcia E O narrador, que no livro não tem nome, no filme se chama Caio — uma singela homenagem ao amigo — e é vivido pelo ator Eriberto Leão.

A relação de Caio com o cinema de Guilherme vem antes, porém, do projeto de Dulce Veiga. Caio fez uma pequena ponta no filme Perfume de gardênia, e também leu dois textos em off — com aquela bela, lenta, cheia e grossa voz — no filme A dama do Cine Xangai, ambos de Guilherme. E, como Dulce Veiga era um projeto dos dois, era natural que o amigo filmasse a história, ainda que muitos anos depois.

Seis meses depois de ter deixado o Brasil, e depois de passear também pela França, Caio está de volta. Renovado, decide visitar Maria Lídia Magliani, em Tiradentes, Minas. Vai acompanhado da amiga escritora Sônia Coutinho. Caio inveja a vida que Magliani conseguiu montar para si, longe das capitais, numa cidade pequena, histórica, cheia de belos morrinhos. Ali Magliani, que é artista plástica, pode pintar e desenhar com tranqüilidade; além disso, pode cultivar uma horta, que Caio acha maravilhosa. Ele colhe várias ervas, suficientes para fazer litros de chá quando voltasse a Sampa. A tranqüilidade da cidade, no entanto, não impede que Caio fique doente, com umas pequenas infecções. Quando ele volta a São Paulo, elas pioram ainda mais. Depois que voltou da Europa, Caio está com a saúde meio arrebentada. Lá, no frio, na neve, 15 graus negativos, ele estava bem. Foi só na volta a São Paulo que seu organismo começou a dar problemas. Primeiro, uma otite. Depois, feridas em dois dedos da mão esquerda e um da direita. A médica chamou a infecção de

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estreptococcia e achava que não, não era motivo para fazer O Teste.

Mesmo com as infecções e os namoricos que eventualmente aparecem, Caio não consegue parar quieto. Dá palestras em várias cidades de São Paulo, depois mais laboratórios de criação literária, em Curitiba. Ele fazia pelo dinheiro, principalmente, e às vezes comentava que preferia se dedicar somente à sua literatura, mas nem por isso deixava de fazer o trabalho bem feito. Quem fez oficina com ele conta: Caio era um professor atencioso, lia o que a turma escrevia com carinho, sugeria mudanças, dava textos de Clarice Lispector, como o conto Tentação, para os alunos lerem, e os discutia depois. A experiência de ter aula com ele foi marcante para muita gente, mesmo que não tenham nascido daí, necessariamente, escritores de renome. Um dos alunos de Caio foi o gaúcho João Batista, que o conheceu na oficina Anatomia do Conto, ministrada pelo escritor na Casa de Cultura Mário de Andrade, em São Paulo. João e Caio se tornaram amigos; nas viagens à Europa que fez, Caio mandava sempre um postal ou trazia uma lembrança para ele, como o pôster de uma peça de teatro baseado em Clarice Lispector: La passion selon G.H, que estava em cartaz na França.

Além de Curitiba para a oficina literária, Caio passeia

por São Luís do Maranhão e passa o Natal de 1991 em Porto Alegre, com a família. Como sempre, volta renovado: uma viagem aos pampas, um contato com as raízes, sempre fazem de Caio um pouquinho mais feliz. Ele volta preparado para enfrentar o passado e reescrever Limite branco, seu primeiro romance, escrito aos 18 anos. A segunda edição do livro sai em 1994, pela Siciliano. Escreve, também, crítica literária para a Playboy. Para a Playboy, aliás, Caio escreve ainda um ensaio sobre a atriz gaúcha Luciene Adami, que atuou na novela Pantanal, amiga sua e de Ivan Mattos.

Entre uma viagem e outra, o escritor acaba perdendo o

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apartamento onde mora. O aluguel subira demais e ele não tinha como pagar; mesmo assim, enquanto a causa rolava na Justiça, ele continuou morando no apartamento. Sem se preocupar demais, afinal, no final de 1992 já estava de viagem marcada para a Europa de novo. Dessa vez, com tudo pago: ele era convidado da Maison des Ecrivains Etrangers (Casa dos Escritores Estrangeiros), que fica em Saint-Nazaire, para uma bolsa de dois meses. Funcionava assim: ele ficava dois meses num apartamento todo montado, inclusive com faxineira, e vales para ir ao cinema e teatro e bares de graça, mais uma pequena mesada de 1500 dólares; sua única obrigação era deixar um texto pronto, ao sair, para ser publicado pela editora Arcane XVII. Antes dele, passaram pela Maison o escritor argentino Ricardo Piglia, autor de Dinheiro queimado, e o chileno Reinaldo Arenas, entre outros. Arenas, na verdade, ficou apenas três dias: tinha medo de se jogar da janela do apartamento — que ficava num décimo andar — e foi embora. Seis meses mais tarde, ele realmente se atirou de uma janela e morreu, em Nova York.

Depois de dez dias em Paris, Caio rumou para Saint-Nazaire, uma pequena cidade portuária, na França. Foi uma época de glória para ele: bem tratado, bem alimentado, bem acompanhado, Caio viveu, por dois meses, um conto de fadas para escritores. Assim à vontade, no décimo andar de um prédio defronte ao mar, Caio escreve um ótimo texto, uma pequena novela chamada Bem longe de Marienbad, publicada na França e, anos depois, no Brasil, no póstumo Estranhos estrangeiros.

O texto gira em torno de uma frase que perseguia o escritor há anos, uma frase de Camille Claudel numa carta a Rodin:

"Il y a toujours quelque chose d'absente qui me tourmente."

"Há sempre alguma coisa de ausente que me

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atormenta." A novela, em primeira pessoa, é a história de um homem que chega a uma pequena cidade na França para procurar um amor. Ele segue as pistas do homem, vai a seu apartamento, e por fim descobre a si mesmo, descobre a busca do outro por si. Originalmente, Caio chamou a novela de O leopardo dos mares, sendo o leopardo o próprio narrador da história, o que só se descobre ao final. O texto, permeado de referências a Arenas e à canção de Barbara e F. Wertheimer, Marienbad, é delicado e belo, e promete, ao final, a possibilidade do reencontro e da harmonia.

É fácil descobrir o endereço — dix-sept, rue du Port —, que me soa romântico com seus erres rascantes ditos pela loura cinqüentona da portaria. Mais difícil, e ela insiste, seria explicar por que me vou sem sequer passar uma noite aqui. Não pelo quarto, madame, pela comida ou qualquer desses outros detalhes dos hotéis, s'ilvous plaft, mas pelo horror imóvel das enguias em sua jaula de vidro associado ao outro horror também imóvel daquela palavra. Pelo risco da imobilidade eterna, madame, pelo perigo de eu mesmo permanecer para sempre aqui, igualmente imóvel, congelado em inúteis delicadezas enquanto tudo ou nada ou apenas qualquer coisa, mesmo insignificante, se agita e move e se perde em outro lugar, com certeza madame não compreenderia tanta ânsia tropical, bien sür.

Desvio o rosto, não devo me deter tempo demais em

meus próprios olhos. Aumento o som da canção, olho para fora enquanto o trem dispara sobre os trilhos. Preciso ficar sempre atento. Ainda não anoiteceu, e alguns dizem que há castelos pelo caminho.

Na temporada que passa em Saint-Nazaire, Caio grava

um pequeno documentário para a Maison, em que se entremeiam passagens de sua narração de Bem longe de Marienbad em off, em português, com imagens dele andando pela cidade, no frio e nas brumas, com seu capotão inseparável, e uma entrevista, em um francês bastante razoável, em que ele fala de suas influências, de literatura, de

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cinema, de poesia, de astrologia. É nesse documentário que Caio fala que, independentemente de se acreditar ou não, a astrologia é importante para ele na criação dos personagens de seus textos; cada um tem seu mapa astral desenhado antes da escrita, e a personalidade bem formulada. Fala também da importância do cinema em seus textos; diz que, quando está escrevendo, sempre pensa: onde está a câmera agora? Ele pensa o texto de uma forma cinematográfica, com seus zooms, fade-ins e fade-outs, cortes e mudanças de perspectiva. O documentário é muito bem feito, e dá a chance a Caio de falar de sua obra, de seus processos de criação; alguns anos depois, quando se descobrisse doente, ele seria chamado para muitas entrevistas, só que todas girando em torno do tema HIV/aids, e aquilo muito o chatearia. Saint-Nazaire, enfim, era um pequeno sonho, a realização de um ideal: todo escritor deveria ter aquelas condições para escrever, pensava Caio.

Enquanto não está escrevendo, ele vai ao cinema várias vezes, com sua carteirinha de convidado. De vez em quando, participa de jantares e eventos com os outros escritores convidados da Maison, uma turma da Estônia, Letônia e Lituânia, e uma dramaturga tcheca, Daniella, que, segundo ele afirma em carta, escreveu peças lindíssimas. Faz também amizade com Marina, a filha de nove anos de idade de seu editor na Arcane XVII. Marina sabe tudo sobre Van Gogh e Caio adora conversar com ela. Ele, que nunca teve muita paciência para crianças, começa a afrouxar. Conversa também com Isabelle, a gaivota que mora na janela da cozinha. Caminha na praia, lê. Ouve o álbum Senhas, de Adriana Calcanhoto, repetidamente. Tudo na mais absoluta paz.

Caio aproveita esse momento da melhor maneira que pode, porque no Brasil as coisas estão feias. Ele perdeu mesmo a causa judicial do seu apartamento, e não tem mais onde morar quando voltar. Quem cuida de tudo, em sua ausência, é Gil Veloso.

As pessoas costumam se referir a Gil como secretário de

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Caio, porque ele exercia esse papel: ia na padaria, pagava contas, verificava contratos; fazia de tudo para o escritor. Na verdade, Gil nunca recebeu um centavo para cuidar do Caio. Eles eram amigos. Tudo que fazia — nisso os amigos são unânimes em afirmar — era sem esperar nada em troca, sem nenhuma segunda intenção.

Os dois se conheceram na metade dos anos 80. Gil era fã da obra de Caio. Tinha edições de obras do escritor que o próprio não tinha, que acabavam ficando para ele. Ficaram amigos. Caio achou aquele nome ótimo: Gil Veloso, mistura de Gilberto Gil com Caetano Veloso. Visitando Caio, convivendo com ele, Gil percebeu a dificuldade do escritor em lidar com as coisas práticas da vida, contas, bancos, papéis. E foi ajudando, ajudando, até se tornar uma espécie de secretário. Os dois foram sobretudo amigos, o que nem sempre era fácil: era preciso paciência para lidar com o Caio, às vezes. O escritor dizia sempre que Gil era um anjo da guarda enviado pelos céus para cuidar dele. Gil brincava: anjo da guarda porque eu guardo suas coisas, é isso? Afinal, foi Gil que desmontou o apartamento da Haddock Lobo e deu um jeito de guardar as coisas do amigo em sua própria casa.

O luxo na Maison acabara, mas nem por isso Caio deixou de voltar à Europa. Em esquemas mais econômicos, ele viaja para divulgar seus livros, fazer leituras e palestras. Em janeiro, vai para a Holanda. Amsterdã, depois Kõln e Frankfurt. Para Amsterdã, ele tem carona; o amigo Sappe Grootendorst vai buscá-lo de carro. Em 1993, Sappe havia defendido uma tese sobre a literatura gay no Brasil, para a qual entrevistou 18 autores brasileiros, entre os quais estava Caio. Em seu estudo, Sappe constatou que os escritores brasileiros não gostavam muito que chamassem o que faziam de "literatura gay". Para Caio, por exemplo, isso não existia. Graciliano Ramos não era chamado de escritor hetero; porque ele deveria ser chamado de escritor gay. Em seu caso, a explicação é que, embora não vestisse a camisa e saísse gritando palavras de ordem, ele escreveu alguns contos cujos

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personagens eram gays ou em que havia sugestões de homoerotismo. Nada panfletário, mas em algumas situações os personagens apanhavam, eram criticados, se davam mal por sua condição. Saíam feridos, mas moralmente vitoriosos. Um exemplo é o conto Aqueles dois, de Morangos mofados. Dois rapazes, Saul e Raul, se conhecem ao serem contratados para trabalhar na mesma firma. A amizade dos dois irrita o pessoal da empresa e ambos acabam demitidos. Saul e Raul saem juntos, altivos. A derrota fica reservada para os que desaprovavam a amizade dos dois:

Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a gema de um enorme ovo frito no azul sem nuvens do céu, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz na repartição. Quase todos ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram.

Caio odiava o rótulo de escritor gay, assim como odiava

quaisquer rótulos que pretendessem dar conta de sua literatura em uma palavra. Escritor introspectivo, escritor de geração, escritor marginal, quais fossem. Ele não gostava, como em geral nenhum escritor gosta. Fosse como fosse, Sappe entrevistou Caio para seu trabalho, e anos depois traduziu alguns contos dele para o holandês. Agora ele ia buscá-lo para irem até a Holanda. Entre uma leitura e outra, Sappe e Caio arrumam tempo para se apaixonarem um pelo outro e viverem uma breve, porém bonita, história de amor. Fazem juntos, e à mão, um livrinho com um conto de Caio traduzido por Sappe, e vendem em várias livrarias gays.

Nessa viagem, Caio vai ainda à França e à Alemanha, para cumprir compromissos relativos à sua carreira lá fora. Depois volta ao Brasil. Sem a ajuda que esperava receber dos amigos, já que estava sem casa e sem dinheiro, segue direto para Porto Alegre, para fazer um tratamento dentário com sua irmã Cláudia, que é dentista.

Em junho Caio volta à Europa: Alemanha, para o Interlit

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— o Congresso Internacional de Escritores do III Mundo —, depois Itália, para fazer o lançamento da tradução italiana de Dulce Veiga em Milão, Gênova e Veneza. Alegria, alegria: um dos sonhos de Caio é conhecer Veneza. Depois ainda, Berlim. Entre um compromisso e outro, Caio escreve aos amigos. Cartões para Adriana Calcanhoto, Luciano Alabarse. Um cartão rápido, escrito a quatro mãos por Caio e Gerd Hilger, seu tradutor na Alemanha, para Gilberto Gawronski. No cartão, Caio conta a Gilberto das leituras de Dama da noite que ele e Gerd estavam fazendo Alemanha afora. Depois Caio diria a Gilberto, a respeito de sua performance:

— Acho que você teria orgulho de mim. Dama da noite é um conto de Caio, que Gilberto

Gawronski, gaúcho, ator, adaptou para teatro e representou inúmeras vezes. A primeira apresentação da peça foi em 1988, no teatro Crepúsculo de Cubatão, no Rio de Janeiro. Depois, a peça foi para o Espaço OFF, de Celso Curi, em São Paulo. Ao longo dos anos, Gawronski a interpretaria ainda em Porto Alegre, Londres e no Rio. Em 1996, o ator a representou também na França, em Lyon. Gawronski dirigiu, montou e atuou tantas vezes nesse espetáculo que é difícil imaginar uma apresentação de Dama da noite sem o envolvimento dele; por isso é que Caio disse a Gilberto que ele teria orgulho dele. O escritor considerava o personagem tanto do ator quanto dele mesmo, que a tinha escrito.

O posto de musa inspiradora do conto é reivindicado por várias amigas de Caio. Várias delas acreditam ter sido a fonte de inspiração para a mulher do conto, a dama da noite que conversa com um garoto, que ela chama de boy, e conta a ele sua história, que é a história, na verdade, de todo outsider, de todos os que vivem à margem da sociedade. O mais provável, contudo, é que a personagem seja um compósito, um amálgama da personalidade de todos essas amigas, como Claudia Wonder, Márcia Denser — a quem o conto é dedicado — e mais ainda um toque da imaginação do escritor.

Como se eu estivesse por fora do movimento da vida.

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A vida rolando por aí feito roda-gigante, com todo mundo dentro, e eu aqui parada, pateta, sentada no bar. Sem fazer nada, como se tivesse desaprendido a linguagem dos outros. A linguagem que eles usam pra se comunicar quando rodam assim e assim por diante nessa roda-gigante. Você tem um passe para a roda-gigante, uma senha, um código, sei lá. Você fala qualquer coisa tipo bá, por exemplo, então o cara deixa você entrar, sentar e rodar junto com os outros. Mas eu fico sempre do lado de fora. Aqui parada, sem saber a palavra certa, sem conseguir adivinhar. Olhando de fora, a cara cheia, louca de vontade de estar lá — tá me entendendo, garotão? Eu sou a dama da noite que vai te contaminar com seu perfume venenoso e mortal. Eu sou a flor carnívora e noturna que vai te entontecer e te arrastar para o fundo do seu jardim pestilento. Eu sou a dama maldita que, sem nenhuma piedade, vai te poluir com todos os líquidos, contaminar seu sangue com todos os vírus. Cuidado comigo: eu sou a dama que mata, boy.

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Verso do postal: "Com votos de Novo Ano LINDO p/ você, e toda a troupe da Sabará, vai minha última foto. Te gusta?"

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Na adaptação teatral, a dama da noite vira Dana de Avalon, um ser ambíguo, mais que uma drag queen, uma pessoa com uma postura mais agressiva que a do conto, que fala apenas de uma quarentona que vive pelos bares à caça de homens. Gawronski se equilibra sobre saltos plataforma de 14 centímetros, coloca a pesada jaqueta de couro negra, a peruca vermelha e os longuíssimos cílios e faz o monólogo sem parar, andando pelo bar, subindo nas mesas ou correndo. Dana está sempre no controle, ela é experiente, ela sabe o que faz, embora precise dessa platéia, do boy que a escute.

Foi com Gilberto Gawronski que Caio assistiu no cinema ao filme Filadélfia, de 1993, que retrata a história de um homem com aids, demitido da firma onde trabalhava por estar doente. O homem, vivido por Tom Hanks, decide processar a firma, mas custa a achar um advogado que pegue o caso. Por fim, encontra um advogado homofóbico — vivido por Denzel Washington —, que no entanto acha injusta a demissão de Hanks pela empresa. Enquanto corre o processo, pode-se ver a decadência física do personagem. Uma das cenas clássicas era a de Tom Hanks ouvindo Maria Callas e dançando, segurando a aparelhagem do soro. De chorar potes de lágrimas.

Ao final do filme, assistido no cinema, Caio e Gilberto saem para a rua. Caio diz:

— Uma vodka pura, né. Caminham pela Av. Paulista até o Ritz, em silêncio, e

bebem duas doses. Pronto: agora podem conversar de novo, com o choque do filme amortecido pela bebida.

No final de julho, Caio está de volta a São Paulo. Nos

primeiros dias, fica hospedado na casa de Gil Veloso, mas logo arruma um lugar para morar, um flat na Frei Caneca. É um pouco caro, mas o escritor faz questão de um mínimo de conforto. Preciso ter uma ilusão de segundo mundo — você sabe que, embora Laika, tenho uma alminha três chie", escreve a Gerd Hilger. Ao final da carta, um PS: "Falei com Zulmira

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Ribeiro Tavares. Um desastre! Você acredita que ela me acusou de ter sido injusto com a

Raquel (sic) de Queiroz? Manda MATAR (as duas)!" O episódio a que ele se refere é uma briga que teve na

televisão, ao vivo, com a escritora Rachel de Queiroz, em julho de 1991. De vez em quando, Caio era chamado para ser um dos entrevistadores do Roda Viva, da TV Cultura, na época um programa bastante influente. Naquele dia, a entrevistada era Rachel, e o apresentador, Jorge Escosteguy. Já no começo do programa, os entrevistadores questionam a escritora sobre suas posições políticas, pois Rachel colaborara com os trotskistas, em certa época, mas depois apoiara o golpe militar de 1964. Caio já começa perguntando se ela é reacionária ou comunista. Começa o bombardeio:

— Mas você apoiou o golpe, Rachel? — à resposta afirmativa dela, ele pergunta:

— Mas você não tinha noção das torturas? Rachel afirma que ela apoiou o golpe do Castello

Branco, que era seu parente, muito amigo de seu marido. Segundo ela, Castello não torturara ninguém; só os que vieram depois. Rachel era contra João Goulart e Brizola, que chamava de caudilhos.

O programa segue. Caio pergunta sobre literatura, se ela acha que a literatura brasileira é muito desprezada; a autora nega. A essa altura, o embate entre os dois é claro. Embora Caio não faça muitas perguntas, quando as faz, são provocativas. Quando a escritora defende a presença de José Sarney na Academia Brasileira de Letras, da qual ela fazia parte, ele ironiza:

— Quem sabe não convidam o Collor para a Academia... Ele continua. Pergunta o que os membros realmente FAZEM na Academia; ela responde que vai lhe mandar o gibi com as notícias. Quando ela fala da propriedade que tem no Nordeste, ele pergunta se o latifúndio é produtivo ou improdutivo. Quando ela fala que o PT continua o que o Brizola e os caudilhistas tinham de pior, ele se dá o direito de discordar. E pergunta do Collor:

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— Você não acha que o Collor tá dando continuidade ao que havia de mais lamentável no golpe militar de 64, que você ajudou?

Ela diz que só ajudou o golpe do Castello; ele retruca, insiste.

— Se você tá perguntando isso em uma televisão oficial, quer dizer que há um grau de liberdade muito maior — diz Rachel. — Desde o Sarney que nós temos essa liberdade.

— Mas é o mínimo. — Não é o mínimo, não. É porque você é muito jovem e

não passou os tempos piores. — Tenho 42 anos e estive preso em 68! — Então você não aprendeu com o tempo, porque

passamos tempos muito piores. Caio diz que ainda está aprendendo, mas antes que

continue, o apresentador intervém. O programa segue, até que Caio faça sua última manifestação, a mais polêmica.

— Quero falar uma última coisa. Estou me sentido muito constrangido de estar aqui. É a última coisa, e eu não vou me tornar constrangedor. Por várias coisas que você falou, eu concluo que você colaborou para coisas muito negativas nesse país, no meu ponto de vista. Compreendo, todos nós somos humanos, erramos, nos equivocamos, coisa e tal. Mas eu estou me sentindo extremamente constrangido de estar na posição de render homenagem ao tipo de ideologia que eu profundamente desprezo.

— Caio, você tem que fazer perguntas, e não render homenagens, desculpe — intervém Escosteguy.

— Não, eu só queria dizer isso, eu não tenho mais perguntas a fazer — diz Caio.

— Eu gostaria de responder a você que nós estamos num país democrático, eu respeito suas posições e espero que você respeite as minhas... — diz Rachel.

— Eu respeito, tanto que calo — interrompe Caio. — ... se as minhas posições são constrangedoras para

você, eu acho também as suas muito constrangedoras para mim. Realmente, estou sendo exigida de me pronunciar sobre

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esses temas que eu não gostaria de me pronunciar, de discutir isso com você. De forma que é recíproca nossa posição. O programa continua, Caio não fala mais nada; só olha para o papel e rabisca.

A performance de Caio no programa suscitaria debates sobre o papel do entrevistador e do jornalista na entrevista; havia quem criticasse e quem defendesse sua posição. Alheio a tudo isso, Caio, depois de acertado o lugar para morar, batalha serviços. O dinheiro que sobrou da Europa vai acabando aos poucos, e é preciso sobreviver. Já faz algum tempo que ele publica uma crônica quinzenal no Estadão. A coluna faz bastante sucesso, mas o dinheiro é insuficiente para Caio se manter. Ele então faz trabalhos como revisar traduções — mal-feitíssimas, na opinião dele — feita por catedráticos da USP O pagamento? Um terço do que o tradutor original ganha. "Laika é laika, sempre será", escreve a Gerd Hilger.

Em setembro de 1993, depois de lutar contra a aids por meses, morre Vicente Pereira, o melhor amigo de Caio. Ele fica triste, triste, mas sente alívio pelo amigo, agora, possivelmente, em paz. O escritor se lembra de outros que foram: Orlando, que dividiu apartamento com ele; Galizia; Cazuza. Mas se lembra também de uma frase que Vicente repetia, parafraseando alguma atriz de cinema, que o anima um pouco: "Segura o turbante, meu bem, e sente o ritmo". Caio segurava o turbante, sentia o ritmo e ia vivendo.

Em janeiro de 1994, Caio pega uma gripe que leva três semanas para ir embora. Depois uma otite crônica, que se recusa a sarar. Ele passa o mês praticamente de cama, doente. Mesmo quando se cura, fica deprimido, sem querer sair de casa. Mas tem que se levantar logo: afinal, daí a pouco é hora de ir para a França de novo, lançar os livros. Afinal, como escreve a Gerd Hilger: "Não se pode ser infeliz, não se pode morrer em vida, não se pode desistir de amar, de criar. Não se pode: é pecado, é proibido — verbotten, não é assim em German? Não é possível adiar a vida."

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Em março de 1994, Caio volta a Paris. Seus livros vão

indo bem no país, e ele vai divulgá-los em um programa de TV sobre literatura, chamado Jamais sans mon livre (Jamais sem meu livro), comparado por Caio ao Programa do Jô, aqui no Brasil. E coincidência das coincidências: quando Caio, na entrevista, comparou Dulce Veiga à cantora Maysa, o diretor do programa, um chileno "gordimenso", enlouqueceu: ele tinha sido amigo íntimo dela. Trocara fraldas do filho, o Jayme Monjardim. Por conta dessas e outras, a gravação do programa foi engraçadíssima.

Apesar de muito requisitado para entrevistas, Caio sempre arruma um tempinho para ir ao cinema. Dessa vez, se apaixona por Short cuts, dirigido por Robert Altman e baseado no livro de Raymond Carver. Tendo assistido ao filme Kika, do diretor espanhol Pedro Almodóvar, que ele odiou, Caio chega à conclusão de que o Altman é um "Almodóvar COM substância". Tudo isso ele conta em carta a Maria Lídia Magliani, que continua em Tiradentes.

Caio passa uns tempos em Paris, depois uma semana em Saint-Nazaire, depois volta à capital francesa. Está feliz: até autógrafo na rua ele deu, para um garoto francês que viu a entrevista na TV, comprou os três livros e deu vários outros de presente aos amigos. Não deixava de ser engraçado. E há mais: sai matéria sobre ele na LExpress, perfil em Les Inrockuptibles, foto em cores em Telérama... Ele faz também outro programa de TV, o Cercle de Minuit, também comparado ao Jô daqui, em que os outros convidados do dia são Isabella Rossellini e Jeff Bridges. Enfim, ele vende seu peixe, e os franceses estão comprando: Dulce Veiga é indicado para o Prêmio Laure-Bataillon, da Maison des Écrivains Etrangers, que premia o autor e o tradutor do melhor romance estrangeiro traduzido no ano. John Updike acaba vencendo o prêmio em 1994, mas só a nomeação já deixou o brasileiro orgulhoso, com o ego nas alturas.

Depois de dois meses na França, Caio resolve dar uma passeada. Vai até Lisboa, que está curioso por conhecer, e

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para a Noruega, visitar Augusto, o amigo de infância que foi para a Europa e não mais voltou. Casou-se com um norueguês, de papel passado e tudo, e por lá ficou. "Ambos me convidam para a colheita de narcisos da primavera. A frescura é tanta, que, claro, não resisto", escreve a Luciano Alabarse. "Se alguém perguntar por mim, diga que estou noivo de Isabelle Adjani — mas não fiquei metido e mando beijos."

Depois de Lisboa e Noruega, Caio volta ao Brasil, em junho. E foi só pisar em terras brasileiras para cair doente. Magro do jeito que era, perdeu mais oito quilos. Dá-lhe antibióticos e mais antibióticos, mas a danada da doença — o vírus, bactéria, o que fosse — não o largava de jeito nenhum. Caio estava apavorado, com medo da aids. Falava e falava disso com os amigos. Até que Graça Medeiros, sempre decidida, achou que era melhor fazer O Teste logo. Aí se tirariam as dúvidas, e Caio poderia respirar aliviado, se desse negativo. Nesse caso, eles fariam a maior festa, mandariam fazer camisetas com EU SOU NEGATIVO! escrito bem grande, e sairiam pelas ruas jogando confete.

Caio aceita a idéia. Parece mesmo o melhor a fazer, já que as infecções não o abandonam. Já faz quase dois meses que voltou da Europa, e não consegue melhorar. E ele tem trabalho a fazer, tem que voltar à Alemanha em outubro, para a França de novo em novembro. Não, ele tem que se livrar dessa dúvida, de uma vez por todas.

Na época, os resultados do exame demoravam uma semana para sair. Uma semana de angústia, apreensão. E na hora de buscar o resultado, Caio não quis ir. Pediu para Graça buscar para ele.

Ela foi. Chegou em casa, o envelope já aberto. Caio perguntou:

— E aí? — Não vai dar para fazer camiseta — respondeu ela.

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SEIS

Alguma coisa aconteceu comigo. Alguma coisa tão

estranha que ainda não aprendi o jeito de falar claramente sobre ela. Quando souber finalmente o que foi, essa coisa estranha, saberei também esse jeito. Então serei claro, prometo. Para você, para mim mesmo. Como sempre tentei ser. Mas por enquanto, e por favor, tente entender o que tento dizer. É com terrível esforço que te escrevo. E isso agora não é mais apenas uma maneira literária de dizer que escrever significa mexer com funduras — como Clarice, feito Pessoa. Em Carson McCullers doía fisicamente, no corpo feito de carne e veia e músculos. Pois é no corpo que escrever me dói agora. Nestas duas mãos que você não vê sobre o teclado, com suas veias inchadas, feridas, cheias de fios e tubos plásticos ligados a agulhas enfiadas nas veias para dentro das quais escorrem líquidos que, dizem, vão me salvar.

Dói muito, mas eu não vou parar. [...]

Assim Caio começa a contar ao seus leitores de O Estado de S. Paulo que estava doente. A crônica, publicada em 21 de agosto de 1994, chama-se Primeira carta para além do muro, e não é, ainda, muito explícita sobre o mal que o acomete. Ele apenas diz que dói, dói fisicamente escrever, deitado numa maça de hospital, os braços cheios de agulhas espetadas. Caio ainda não entendeu direito o que está acontecendo, está sob efeito de remédios, tudo é ainda muito turvo.

A princípio, ele encara a coisa toda bastante bem. Fazia sentido ele estar com aids: metade de seus amigos morrera em decorrência da doença, outros tantos ainda lutavam contra ela. Ele passara mais de uma década com medo de estar contaminado, e não à toa. Ele se encaixava perfeita-mente naqueles grupos e comportamentos "de risco", embora

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já se soubesse que o vírus não era exclusivista e atingia gente de todo tipo, não necessariamente gays, não necessariamente drogados, não necessariamente promíscuos. A doença era a cara dele, Caio pensou. Era como se já soubesse. Não se assustou. Pegou o telefone e calmamente ligou para os amigos, contando a notícia: Cida Moreira, Lygia Fagundes Telles, sua mãe. Ligou para mais gente. Durante o final de semana inteiro — pegara o resultado numa sexta-feira — ficou bem, ao telefone. Alguns amigos foram visitá-lo, conversaram, viram que estava sereno. Graça, que estava cuidando dele, teve que voltar ao Rio para cumprir um compromisso de trabalho. Voltaria na segunda. Porém as coisas atrasaram, ela não conseguiu voltar na segunda, e ligou para ele.

Caio não estava nada bem. De repente, caíra a ficha: toda a irreversibilidade de sua doença, todo o absoluto que estava contido no resultado positivo do exame, todo o significado, enfim, de ser soropositivo, parecia descer sobre sua cabeça e esmagá-la como um trator. Era peso demais, era demais. Vou morrer, pensou ele. Vou morrer, tenho aids, acabou. Graça ficou preocupada, e não só ela. Déa Martins e Gil Veloso também ficaram, e rumaram para o apartamento do Caio.

Ele tivera, finalmente, o choque da descoberta. O choque de saber-se condenado. O organismo não agüentou, veio a febre. Muito alta, a febre levou ao delírio. Nada incomum em casos assim: grandes traumas podem levar as pessoas a ficarem temporariamente perturbadas, doentes, delirantes. Os médicos dão a isso o nome de "quadro de dissociação mental". Foi o que aconteceu ao Caio, e Gil logo percebeu. Ele não falava coisa com coisa, recitava em alemão, francês. Tentou se atirar da janela, Gil segurou-o a tempo. Não era intenção de Caio, provavelmente, se matar. Ele não sabia o que estava fazendo. No dia seguinte, não se lembraria de nada.

Gil resolve que era melhor correr com ele para o hospital. Foram para o Emílio Ribas. Custaram a arrumar

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um leito no hospital lotado. No dia seguinte, já muita gente tinha sido avisada: Cláudia Abreu, sua irmã, veio de Porto Alegre. Graça Medeiros também já estava na cidade. Outros amigos iam visitá-lo. Graça também teve uma discussão com o médico: ele dizia que Caio estava maluco. Ela dizia que não, era apenas o susto, o trauma. Logo ele voltaria ao normal. O médico insistia em dizer que Caio estava mentalmente muito perturbado — provavelmente com um tumor no cérebro. Quando Gilberto Gawronski apareceu para visitá-lo, o médico alertou:

— Se prepara. Periga o teu amigo não te reconhecer. Gilberto entra no quarto com o coração apertado,

esperando ver o amigo totalmente abalado, vegetativo, incomunicável. Quando abre a porta e Caio o reconhece, diz:

— Bem-vindo à Filadélfia! O médico vira para Gilberto, discretamente: — Eu não disse? Aí Gilberto relaxou. Não só a memória de Caio estava

intacta, como também o seu humor. "Bem-vindo a Filadélfia", claro, era uma referência ao filme de Tom Hanks, que Caio e Gilberto haviam assistido juntos. Mas como o médico podia saber disso? Ele pensou que o Caio achava estar, realmente, na Filadélfia.

E o humor do Caio não parava. Ele ia para os exames e pedia aos amigos: segura a Maria Callas pra mim, por favor. A Maria Callas era o aparato do soro, que ele levava dançando, exatamente como na cena de Filadélfia. Ele compôs raps para o AZT, brincou, cantou. Depois do susto inicial, ele ia descobrindo um jeito de lidar com a doença. Antes de ter descoberto esse jeito, porém, ele escreveu a Primeira carta para além do muro, já fazendo referência velada à doença. Na crônica, ele se agarrava à única coisa que podia ajudá-lo a viver: a literatura. E termina o texto, assim:

Tenho medo é desses outros que querem abrir minhas veias. Talvez não sejam maus, talvez eu apenas não tenha compreendido ainda a maneira como eles são, a maneira

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como tudo é ou tornou-se, inclusive eu mesmo, depois da imensa Turvação. A única coisa que posso fazer é escrever — essa é a certeza que te envio, se conseguir passar essa carta para além dos muros. Escuta bem, vou repetir no teu ouvido, muitas vezes: a única coisa que posso fazer é escrever, a única coisa que posso fazer é escrever.

Depois da primeira, vieram ainda uma segunda e uma

terceira cartas. A segunda é um pouco mais clara que a primeira, e fala dos anjos que Caio encontrara em sua descida ao inferno: anjos de branco, funcionários do hospital; os anjos de negro, seus amigos que lhe trazem presentes e carinho. E os outros anjos, os que já foram.

Noite alta, meio farto de asas ruflando, liras, rendas e

clarins, despenco no sono plástico dos tubos enfiados em meu peito. E ainda assim eles insistem, chegados desse Outro Lado de Todas as Coisas. Reconheço um por um. Contra o fundo blue de Derek Jarman, ao som de uma canção de Freddy Mercury, coreografados por Nureiev, identifico os passos bailarinos-nô de Paulo Yutaka. Com Galizia, Alex Vallauri espia rindo atrás da Rainha do Frango Assado e ah como quero abraçar Vicente Pereira, e outro Daime com Strazzer e mais uma viagem ao Rio com Nelson Pujol Yamamoto. Wagner Serra pedala bicicleta ao lado de Cyril Collard, enquanto Wilson Barras esbraveja contra Peter Greenaway, apoiado por Nelson Perlongher. Ao som de Lóri Finokiaro, Hervé Guilbert continua sua interminável carta para o amigo que não lhe salvou a vida. Reina Ido Arenas passa a mão devagar em seus cabelos claros. Tantos, meu Deus, os que se foram. Acordo com a voz safada de Cazuza repetindo em minha orelha fria: "Quem tem um sonho não dança, meu amor."

A terceira crônica é muito mais clara que as outras

duas. Nela, Caio conta o que lhe tinha acontecido, detalhe por detalhe. O Teste, o resultado, as ligações para os amigos, depois a febre e o delírio, e o hospital. Caio ficou 27 dias internado no Emílio Ribas. Lá aconteceu uma coisa inesperada: ele recebeu tanto carinho das pessoas, tantas

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vibrações positivas, como comentaria sempre em entrevistas dali adiante, que ele foi, serenamente, começando a aceitar. E que mais ele podia fazer? A doença era irreversível demais para que se pudesse lutar contra; era preciso aceitar. E ele aceitava todo dia, como escreveu na Ultima carta para além dos muros.

[...] O que importa é a Senhora Dona Vida, coberta de ouro e prata e sangue e musgo do Tempo e creme chantilly às vezes e confetes de algum carnaval, descobrindo pouco a pouco seu rosto horrendo e deslumbrante. Precisamos suportar. E beijá-la na boca. De alguma forma absurda, nunca estive tão bem.

A terceira crônica foi escrita já em Porto Alegre. O

médico recomendara a ele: você precisa agora é de qualidade de vida. Então Caio decidiu: adeus, São Paulo. Fez uma festa de despedida na boate A Loca, na qual cantou Laura Finocchiaro e compareceram muitos amigos, como Paula Dip e o marido. Mário Prata se lembra de ter visto Caio pela última vez nessa festa. Muitas luzes vermelhas, verdes, azuis, muita fumaça. Prata estava sentado em uma escada quando Caio passou a mão em sua cabeça e subiu os degraus, leve, incorpóreo, parecendo, por causa das luzes coloridas, uma figura sobrenatural, um anjo.

Caio voltou, então, ao Rio Grande do Sul, para morar com seus pais já tão idosos, no sobrado colonial espanhol no bairro Menino Deus. Há roseiras no jardim, como ele sempre sonhara em ter. E ele se dedica, então, a cuidar de si, de suas flores, de sua obra. Nunca foi tão fácil conviver com o Caio — alguma coisa nele meio que serenou. O mau humor de antes, as alfinetadas, o gênio difícil, tudo isso foi substituído por uma espécie de paz, de aceitação. Ele vivera os últimos anos em constante aceleração, viajando de cá para lá, Paris-Berlim-Londres-São-Paulo, e agora era obrigado a parar. Ele sempre quisera desacelerar; invejava a amiga Magliani e sua horta, lá em Tiradentes. Agora era a hora. Não haveria outra, ele pensava. A vida não era mais adiável.

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Ele descobriu o que já sabia ainda com mais força: amava a vida. Acalentava o sonho de fazer parte da primeira geração de sobreviventes, os primeiros a driblar o vírus da aids. Não a cura, que isso parecia impossível, mas alguma maneira de estabilizar a doença, deixá-la tipo a diabetes, algo crônico, porém não letal. Ele achava que, se conseguisse sobreviver mais um ou dois ou três anos, essa "cura" podia aparecer, e então ele poderia viver muitos anos mais. E estava certo: quando ele morreu, em 1996, já existiam os remédios que comporiam o famoso coquetel. Ainda não se sabia como dosá-los, e administrá-los nas doses certas para manter a doença em níveis controlados, mas já existiam.

Em Porto Alegre, a rotina de Caio era simples: acordava

cedo, tomava café, ia cuidar das roseiras. Escrevia um pouco: crônicas para O Estado de S. Paulo e agora também para a Zero Hora, de Porto Alegre. No Estadão, Caio escrevera crônicas de 1986 a 1989; depois de uma pausa de três anos, retomara seu espaço em 1992, e escreveu até dezembro de 1995. Uma seleção de suas crônicas para publicação em livro foi elaborada por Gil Veloso, quando Caio já estava doente. Pequenas epifanias foi publicado em maio de 1996, alguns meses depois da morte de Caio.

A rotina leve na casa dos pais e as doses de AZT pareciam estar funcionando. Caio ganhara peso, os exames de sangue apontavam bons resultados de plaquetas, leucócitos e linfócitos. Quando precisou de um remédio mais caro, americano, que custava 4 mil dólares o grama, Lucinha Araújo, a mãe de Cazuza, e Scarlet Moon, esposa do Lulu Santos, conseguiram de graça para ele, conta Graça Medeiros. As coisas pareciam bem, e Caio decidiu que iria, sim, cumprir seus compromissos na Europa.

Primeiro, a Alemanha. Em 1994, a Feira de Frankfurt foi dedicada ao Brasil; Caio foi participar da feira e depois seguiu por várias cidades alemãs, fazendo leituras e palestras. Ele iria ainda à França, passar duas semanas em Aries, numa mini-bolsa para escritores, mas não deu. Um teimoso

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sarcoma de Kaposi resolveu brotar em Caio, e brotar bem na ponta do nariz. O sarcoma é uma espécie de câncer de pele, uma lesão arroxeada que acomete as pessoas contaminadas com HIV. É um dos estágios mais adiantados da doença, e, segundo os cálculos dos médicos, Caio já devia estar contaminado há pelo menos uns dez anos. Não foi surpresa, portanto, quando a lesão apareceu. Mas na ponta do nariz era demais; Caio antecipou a volta ao Brasil.

De volta a Porto Alegre, Caio recebeu um presente

inesperado. Amigos de São Paulo — Celso Curi, Maria Adelaide Amaral, Vânia Toledo e mais alguns — fizeram uma vaquinha e compraram um laptop para ele. Celso Curi foi eleito para ir a Porto Alegre entregar o presente. Caio adorou, escreveu crônicas contando de seu novo Robocop, falou em cartas aos amigos que agora era um homem informatizado. Informatizado em termos: Caio não sabia muito bem mexer no computador. Não sabia salvar os arquivos, por exemplo. E também não queria aprender. Assim que terminava de escrever, imprimia tudo. E corrigia as provas à mão, como sempre fizera.

Quando Celso esteve em Porto Alegre para entregar o computador, ele e Caio saíram juntos para o teatro. Celso chorava o tempo todo, pensando no amigo que ia perder. Chorava de molhar a calça, uma calça clara. E Caio, ao lado dele, dando soquinhos em sua perna, mandando ele parar, porque estava incomodando. Celso estava muito mais triste que Caio, ou pelo menos assim parecia. Era, provavelmente, a última vez que se veriam.

Além do laptop levado por Celso, outras alegrias esperavam Caio: seu novo imunologista. Ah, o imunologista. Era lindo, o médico. Lasanha. Belíssimo. Tratara de Lory Finocchiaro e de mais tantos positivos que havia em Porto Alegre. Eduardo Sprinz, o nome do imunologista. E Caio ficou apaixonado por ele, apaixonado assim meio de brincadeira, meio a sério, achando que havia um motivo pelo qual ele pegara a doença, e o motivo era revelado agora: conhecer o

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médico. Sempre apaixonado, o Caio. E pelo médico, um clichê até justificável: se muita gente se apaixonava pelo analista, ele se apaixonava pelo imunologista, que era quem, afinal, estava mais próximo dele agora, quem o tocava, quem lhe dava a promessa de vida. Caio escreve a Gerd Hilger:

"Gerd Alberto da Silva Hilger, como o senhor é guloso! Já pedindo foto da MINHA lasanha completamente pelado(a)... Para seu governo, honey, eu recém comecei a pegar amizade, ontem foi apenas a segunda vez que nos encontramos! Mas falando sério — God! — que homem GOSTOSERRIMO... Claro que estou achando que tudo era fatal, e que fiquei doente apenas para conhecê-lo, e que natural e inevitavelmente ele também vai se apaixonar por mim, e que movido pelo amor descobrirá algum medicamento fantástico que me salvará a vida e certamente logo depois iremos viver em alguma ilha do Pacífico Sul (ou norte, ou leste, oeste, tanto faz) onde seremos felizes para sempre — e o senhor Não será convidado a nos visitar, a não ser que leve o Valdir junto, OK?"

Por mais lindo que fosse o médico, no entanto, Caio não estava disposto a apostar todas as suas fichas num número só. Além da medicina clássica, ele se tratava também com propólis e lama de Araxá. Cecília Niesemblat, uma amiga antiga, a quem Caio dedicou alguns contos, o tratava com florais de Bach. E Caio descobriu um remédio que, segundo ele, era mais curativo que AZT: crianças.

Ele passava o dia brincando com seus sobrinhos: Rodrigo, de onze anos, e Laura, de quatro, filhos de Cláudia e Jorge; e o mais novo, o Felipinho, de um ano e meio, filho de Luiz Felipe. Caio comprou uma caixa de lápis de cor enorme para a Laura, que adorava desenhar, e gostava muito de Frida Kahlo — queria sempre ver a foto daquela "mulher de bigode". E passava tardes inteiras sentado com ela, desenhando, desenhando. Felipinho, o mais novo, era incrivelmente louco por frangas. Via uma e começava a gritar: gangá-gangá! E o mais velho, Rodrigo, virginiano como o Caio, tinha o temperamento do tio: às vezes se isolava, não

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queria saber de ninguém, principalmente em festas ou reuniões familiares. Ao contrário do tio, porém, era muito informático, sabia lidar com computadores, impressoras e tecnologias. Caio estava ficando obsoleto.

A sua principal preocupação era o jardim. Nas cartas aos amigos, nas crônicas, ele falava sempre das dificuldades que tinha em manter o jardim, onde tirou algumas das fotos mais famosas de sua vida, vivo, lindo, como queria. Eram caramujos canibais querendo devorar as flores, ou o inverno rigoroso que secava as plantas, ou ervas daninhas de todo tipo, ou a flor do girassol pesada demais para seu próprio caule — "como se não suportasse o peso da própria beleza que engendrou" — , ou as formigas querendo devorar as angélicas; enfim, era difícil manter o jardim vivo. Era preciso trabalho, esforço. Horas e horas ele passava no jardim, cuidando, mexendo na terra. Conversava com os vizinhos, alguns deles loucos por jardinagem, como Irineu Garcia, artista plástico, cuja casa ficava em frente à do Caio; ou Felipe, vizinho da casa ao lado, com quem o escritor trocava sementes e dicas e truques. Caio brincava: estava pensando em trocar suas credenciais de "jornalista e escritor" para "escritor e jardineiro". Havia as rosas, as roseiras que ele amava — algumas das quais estão de pé até hoje. E Caio gostava de viver assim. Conversava com D. Anita, octogenária, sua vizinha, que todos os dias passava em frente ao jardim, onde Caio passava a maior parte do tempo, para ir à fisioterapia. Junto com o marido, D. Anita fora a primeira moradora da Oscar Bittencourt, rua onde os Abreu agora residiam. Ela vira cada casa ser construída, e sabia a história de cada morador. Adorava conversar com Caio: ele lhe contava as histórias da Europa; descendente de italianos, D. Anita era fascinada pelo continente. Chegou a colocar na filha o nome de Itália, mesmo nome de uma sua irmã falecida. Caio ficava encantado em conversar com ela. De vez em quando, o escritor pegava a bicicleta e ia dar longos passeios no parque da Marinha. Podia também ver o pôr-do-sol na usina do Gasômetro. Era calmo, tranqüilo. E bonito.

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Caio quase não saía do Menino Deus, o bairro onde morava. Escreveu em uma crônica, certa vez: "moro no Menino Deus, do qual Porto Alegre é apenas o que há em volta". Anos depois de sua morte, o chileno Carlos Aguirre Sepúlveda abriu uma pastelaria no bairro e, para homenagear os moradores e o escritor, fez uma faixa com a frase. Foi um sucesso. Os moradores do Menino Deus consideram Caio uma espécie de patrimônio local.

Mesmo isolado, Caio não perdia o contato com os amigos. Sempre alguém ligava, aparecia, escrevia. Como Amanda Costa, astróloga e amiga. Os dois se conheceram em agosto de 1985, na Jornada Literária de Passo Fundo. Caio estava lá para falar como escritor e ela, que já era fã e se lembrava de vê-lo na rua, nos anos 70, com o casaco preto enorme, trabalhava na editora L&PM. Os dois tinham algo em comum: assim como Graça Medeiros, Caio e Amanda foram alunos de astrologia de D. Emma de Mascheville, uma alemã que influenciou várias gerações de astrólogos em Porto Alegre. Caio dedica alguns textos a D. Emy, como a chamavam. Amanda, de uma geração mais nova que a do Caio, compartilhava seus interesses literários e astrológicos, e se deram bem de imediato. Trocavam cálculos astrais e confidencias nas cartas; nos últimos anos, sempre perguntava se ela não achava que as mudanças astrológicas não poderiam trazer a cura da doença.

Em 1995, ele precisava de uma caixinha de isopor para guardar os remédios. Amanda levou a tal caixinha em um almoço, foram comer camarões no Tirol, um restaurante de que ele gostava muito. Caio se sai com essa:

— Obrigado. Agora vou forrar com papel de oncinha, para ficar mais bonitinho.

Além das crônicas, Caio continuava trabalhando em outras coisas. Fez a tradução de Assim vivemos agora, novela da ensaísta americana Susan Sontag que descreve as reações de um grupo de amigos quando um deles contrai aids. A tradução ter sido feita por Caio, portador do vírus, emocionou

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a autora. Quando o livro foi publicado, em novembro de 1995, Maurício Stycer, da Folha de S. Paulo, pergunta em entrevista se ela sabia que o tradutor tinha aids. "Sei e isso me emocionou muito. Não só porque ele é um conhecido escritor e a tradução, parece, está muito boa, mas porque ele leu a história há algum tempo e sugeriu a sua publicação. O fato de essa história significar algo para o Caio e que vai significar algo para outras pessoas porque ele fez a tradução me deixa muito feliz e agradecida a ele."

Caio trabalha também na literatura, a todo vapor: revisou Morangos mofados, que saiu em nova edição pela Companhia das Letras. E mexeu em todos os seus guardados, papéis antigos: selecionava textos para uma antologia, uma espécie de autobiografia ficcional, que conteria textos de todas as fases de sua vida. O resultado foi o livro Ovelhas negras, que saiu pela editora Sulina, em 1995. O livro traz desde A maldição dos Saint-Marie, escrita aos 13 anos de idade para um concurso escolar, até textos mais atuais, escritos já em Porto Alegre. Cada texto publicado na obra vem precedido de uma pequena explicação do escritor, contando as circunstâncias em que escreveu o texto, o que gosta ou o que não gosta nele, porque não entrou em nenhum livro, enfim, comentários gerais.

Ovelhas negras era considerado por Caio um livro pré-

póstumo. Ele estava selecionando seus inéditos para que ninguém o fizesse depois de sua morte. Repetia sempre:

— Não quero que façam comigo o que fizeram com Ana Cristina César.

Ele se referia à publicação, depois da morte de Ana C, de vários livros contendo inéditos e dispersos, poemas inacabados, que jamais teriam sido publicados com o crivo da poeta. No entanto, esse medo de Caio referia-se à sua ficção; ele não fazia restrição, por exemplo, à publicação de suas cartas. Pelo menos aquelas trocadas com outros escritores e artistas. Tanto que doou à Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, uma parte de sua correspondência

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passiva. E ele escreve a Lucienne Samôr, escritora e amiga, em fevereiro de 1995: "Nós nos escrevemos dezenas de cartas. Não sei se você guardou as minhas como eu guardei as suas. Se você guardou, uma idéia — após minha morte, claro — é você publicá-las. Vamos que eu me torne um mito literário (melancolicamente póstumo...) De qualquer forma, se você as tem, são suas. E a minha herança para você."

Grande parte das cartas de Caio para Lucienne, infelizmente, se perdeu num incêndio. Algumas das que sobraram foram publicadas no livro organizado por Ítalo Moriconi Caio Fernando Abreu: Cartas, de 2002. A publicação da obra gerou polêmica: alguns amigos de Caio não quiseram dar as suas cartas, por considerarem a publicação prematura. Muita gente citada nas cartas ainda estava viva, circulando, e a língua ferina de Caio não costumava perdoar ninguém. Os trechos mais pessoais, no entanto, foram suprimidos, alguns nomes substituídos por iniciais, e assim o livro saiu. Vários amigos e leitores foram pegos de surpresa: é que nas cartas Caio era muito mais engraçado, e leve, e animado, que pessoalmente. Ao vivo, muitas vezes era irascível e calado; nas cartas, podia falar mais livremente, e fazia piadas, e falava de sentimentos que não teria coragem de dizer cara a cara. Não era a pessoa deprimida que se poderia apreender de seus contos.

Além de organizar Ovelhas negras, Caio revisou outros

de seus livros. Inventário do irremediável, publicado em 1970, ganhou mudanças drásticas. Oito contos foram excluídos, por ele achá-los repetitivos demais. Fez algumas mudanças na pontuação, correções, melhorias nas frases, embora a estrutura permanecesse a mesma. E o título passou a ser Inventário do irremediável; segundo o autor, para diminuir o caráter definitivo do título original.

Caio esperava ter tempo de escrever também a volta das frangas e Estranhos estrangeiros. Não teve. Assim como não

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assistiu à montagem de um texto de teatro seu, O homem e a mancha, um monólogo dirigido por Luiz Arthur Nunes e representado por Marcos Breda.

A peça tinha sido escrita por encomenda de Carlos Moreno — o garoto-propaganda do Bombril —, mas ele nunca chegou a encená-la. A cena da apresentação da peça para ele, aliás, foi constrangedora. Anos antes, Caio chamou Luiz Arthur, que estava em São Paulo, para acompanhá-lo na leitura para Moreno e Fábio Namatame, que faria a cenografia. Caio faz uma bela leitura, com sua formação de ator e sua voz. Ao final, porém, ninguém diz uma palavra. Luiz começa a falar compulsivamente para preencher o silêncio, mas Moreno não disse absolutamente nada, nem então e nem depois. Ao que consta, também não pagou um centavo pelo texto que encomendara. Caio ficou arrasado, chateado. Mas agora, finalmente, Breda e Luiz Arthur iam montar a peça. Ele pedia aos amigos que se apressassem, pois ele queria ver o texto encenado.

Era uma peça complexa: de dentro de um personagem, saía outro — na comparação do autor, como os bonecos de madeira russos, os baboushkas, em que um vai saindo de dentro do outro. Assim ele construiu O homem e a mancha, que é, na verdade, uma releitura de D. Quixote. O personagem o perseguia desde que Clarice Lispector resolvera apelidá-lo. Ele resolveu, então, brincar com isso. De um ator procurando um personagem, nasce o personagem obcecado com a mancha — uma alusão à aids, mas também a qualquer espécie de paranóia ou obsessão, e também à cidade do personagem de Cervantes, La Mancha — e dele nasce D. Quixote, e desse nasce o Cavaleiro da Triste Figura, e assim os personagens se alternam, num interessante jogo de personalidades. O monólogo foi incluído no livro Teatro completo, que reúne todas as peças de Caio, inclusive a adaptação que ele fez de Reunião de família, de Lya Luft. Organizada por Luiz Arthur Nunes, a obra foi lançada depois da morte do escritor.

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Desde a descoberta da aids, Caio decidira viver uma vida mais tranqüila em Porto Alegre. Paradoxalmente, foi aí que a mídia começou a dar mais atenção a ele: choviam pedidos de entrevistas, muitas delas motivadas pela questão da doença. Caio se sentia desconfortável com essa situação, embora reclamasse exagerada-mente. Quem o ouvisse falar, pensaria que a mídia jamais lhe dera qualquer atenção até o dia em que descobriram que ele tinha aids, o que não era verdade. Ele sempre foi um autor procurado, respeitado, muito popular em alguns meios. Já desde os anos 70 ele tinha seus fãs fiéis; a partir de Morangos mofados, livro-símbolo de uma geração, seu nome se tornou mais popular. Todo mundo tinha um exemplar em casa. Não se pode dizer, portanto, que Caio fosse ignorado pela imprensa até 1994. De fato, porém, os pedidos de entrevista aumentaram.

Ele foi convidado para ir ao programa do Jô Soares, por exemplo. E achava aquilo a ironia das ironias, porque ele tinha tentado, antes, ir ao programa divulgar algum de seus livros, mas fora vetado "por estar fora da mídia". Agora, no entanto, o queriam. E ele foi, com a desculpa de lançar Ovelhas negras e a reedição de Morangos mofados. Na maior simpatia, conversou com Jô, fez piada, brincou. Em dado momento, depois que a aids já tinha sido citada, Jô lhe pergunta se ele não pensava em escrever algum livro tratando da doença. Caio responde:

— Não. Vai que eu não morro, com que cara eu vou ficar?

Risadas, risadas. Depois ele explicou que, na verdade, a aids já aparecia em alguns textos seus: Onde andará Dulce Veiga é uma história de amor entre dois contaminados, o protagonista e Márcia E A conversa segue, e ninguém pode imaginar o quanto estar ali significa para Caio. A ironia da situação.

Caio aparece também em um Globo Repórter sobre aids. Quem dirige o programa é o amigo de longa data José Márcio Penido. Em um depoimento muito bonito, Caio diz que não tem tempo para morrer. Ele tem planos, coisas a fazer. E ele

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acredita na possibilidade de cura, sim. Diz que faz parte de uma geração muito colonizada, que cresceu assistindo ao cinema americano, e que portanto sempre acredita que vai haver um beijo da Doris Day com Rock Hudson no final, e todos serão felizes para sempre.

Na entrevista, Caio expõe sua teoria de que, na verdade, o planeta é que está doente: maltratada, a Terra começou a reagir. Assim que se curar o planeta, se curará o ser humano. Ele vê coisas piores que a aids vindo por aí, se nada for feito — era a época em que se soube do vírus Ébola, muito mais letal que o HIV. Mas na época não se sabia disso, e havia medo, e Caio estava, mais do que nunca, convencido de que era preciso mudar a maneira de tratar o planeta. E também a nós mesmos: embora, até o fim, não tenha desistido do cigarro, ele não queria mais maltratar o corpo, beber, se drogar.

Mas é claro que a aids não era como o Ébola. Na visão do escritor, a aids era uma doença cheia de estigmas, que talha o ser humano no que ele tem de mais delicado, que é a sexualidade. E por isso era preciso desmistificar, não se envergonhar. Falar da doença era a melhor forma de combatê-la, e principalmente de combater os preconceitos ligados a ela, os clichês associados aos soropositivos. Por isso, ele dava entrevistas; mesmo sabendo que o interesse maior não era em sua obra, e sim na doença, ele falava. Participa, por exemplo, junto com a jornalista Regina Echeverria, de um simpósio sobre aids, em 1994, no teatro do Maksoud Plaza, em São Paulo. Os dois, os únicos que não eram médicos no evento, ficavam sentados de um lado do palco, e os debatedores do outro — um deles era o dr. Dráuzio Varella, um dos primeiros médicos a combater a aids no país. Caio estava lá para dar seu testemunho, assim como Regina, que fora falar da história de seu marido, que morrera por causa da doença. O escritor falou do que se passava física e emocionalmente com ele, das dores e dos humores. Comoveu a platéia e ajudou a diminuir, um pouco, o desconhecimento da doença.

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Por estar de volta a Porto Alegre, por ser, realmente, um escritor reconhecido, que merecia a homenagem, e um pouco, é claro, por ele estar doente e não poder, talvez, ter outra chance, Caio foi convidado para ser patrono de Feira do Livro de 1995. Júlio Zanotta Vieiras na época presidente da Câmara Rio-grandense do Livro, insistiu para que assim fosse: a nomeação de Caio não era uma unanimidade. Os argumentos de Júlio venceram, porém, e Caio foi escolhido. De início, quando convidaram o escritor, ele desconfiou. Mas isso não é coisa para gente morta?, perguntou. Quando esclareceram que não, o patrono tinha que estar bem vivo, e muita gente legal já tinha aceitado antes, como Mario Quintana, ele relaxou e aceitou. Brincava, dizendo que achava solene demais a palavra patrono, e preferia ser chamado de padrinho da feira; se bem que, dizia, estava mais é para padroeiro, um pé do outro lado e outro aqui.

Por essa época, Mauro Castro, taxista, fã de literatura, acompanhava as crônicas de Caio no jornal. Seu ponto de táxi fica no Menino Deus, a dois quarteirões da casa da família Abreu. Quando o escritor ia para o hospital Moinhos de Vento fazer radioterapia, para o câncer de pele, costumava caminhar até o ponto de táxi e chamar Mauro para levá-lo. Caio preferia ir sem ninguém da família para essas sessões no hospital. Um dia, Mauro comentou com Caio que tinha visto o ou-tdoor de seu livro Pequenas epifanias em uma rua. Caio pediu que o levasse até lá. Foram. Por uns cinco minutos, sem descer do carro, o escritor olhou seu nome no alto, viu a capa do seu livro. E não deve ter gostado do que viu, pois ficou em silêncio a maior parte do caminho, depois. Comentou algo sobre oportunismo, sobre acharem que ele já estava morto. E pediu para irem embora. Mauro, o taxista, hoje escreve colunas para o jornal Diário Gaúcho, contando "causos" da vida de motorista. Influenciado por Caio, o taxista fã de literatura começou a escrever. E faz sucesso.

No final de 1995, o médico avisou a Caio que ele

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precisaria extrair a vesícula. Era urgente. Mas Caio decidiu adiar a cirurgia. Pediu a seu irmão Felipe que o levasse de carro até Santiago do Boqueirão. Queria despedir-se da cidade. Não ia lá há muitos anos, desde que fora homenageado, recebendo o título de santiaguense ilustre. A temporada na terra natal foi ótima: Caio conversou muito com as tias, principalmente tia Elcy Abreu, que ele adorava. Relembrou a infância, descansou. Fez as pazes com essa parte do seu passado. Quando voltou, escreveu uma crônica para Zero Hora contando da viagem, da emoção que era voltar ao lugar onde nascera.

Depois de retirar a vesícula, Caio decidiu fazer outra viagem. Ele iria à Praia do Rosa, em Santa Catarina. A mãe não poderia ir com ele: com 71 anos, já tinha sofrido duas isquemias cerebrais e não tinha saúde. O pai, Zaél, não abandonaria a esposa em casa. Os irmãos tinham ocupações. A companheira de viagem de Caio foi, então, Déa Martins, que estava morando em Porto Alegre na época. Pegaram carona de carro com duas garotas amigas da família e foram. Chegando lá, Caio e Déa tiveram algumas briguinhas. Esta-vam os dois muito mal: ela saindo de um relacionamento, deprimida; ele, doente. Na pousada onde ficaram, havia um hibisco, aquela flor símbolo dos surfistas. Déa olhou, perguntou: que flor é essa? Foi o suficiente para Caio se irritar. Como assim, que flor é essa? Então você não sabe o que é um hibisco? Ficou irado. Estava muito abalado, muito sensível, muito doente. Embora estivesse sereno a maior parte do tempo, às vezes era difícil lidar com Caio. Ele tinha a sensação de que tudo que ia fazer seria pela última vez.

Quando foi ao cinema com Gilberto Gawronski, por exemplo, de passagem pela cidade, escolheu um filme longuíssimo, de três horas. Tinha porque tinha que ver aquele filme. Gilberto pegou o carro, buscou-o, foram. Com cinco minutos de filme, Caio queria ir embora. Não é esse filme, não é isso que eu pensava. Ele queria ver O Filme, algo marcante, significativo; ele não tinha tempo a perder. Gawronski discutiu com ele, mas não teve jeito: teve que levá-

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lo embora. Em casa, a situação não era mais fácil. A mãe doente, e

Caio implicava com ela. Dizia que ela o atordoava, não o deixava em paz, estava sempre atrás dele contando histórias intermináveis. Ela o desgastava, lhe dava nos nervos. Ele explodia, brigava com ela. Depois se arrependia, céus, ela tão velhinha e ele fazendo malcriação. Mas no dia seguinte brigava de novo. Parecia mais o hospital Abreu do que a casa da família, brincava o escritor. O pai, 74 anos; a mãe, 71, e ele, bem, ele doente até o osso.

Déa teve que partir mais cedo da praia; recebeu uma

proposta de trabalho no Rio e voltou para lá. Caio também antecipou sua volta a Porto Alegre: estava doente. Poucas semanas depois, pegou pneumonia. O amigo Luciano Alabarse, um dos poucos que acompanhou sua doença de perto até o fim, voltava do hospital e chorava. Chorava no hospital mesmo, mas Caio mandava ele ficar quieto: você está mais deprimido que eu, Luciano. Anos antes, em 1984, Caio tinha escrito ao amigo: "Na minha lápide, quero alguma coisa mais ou menos assim: Caio F, que muito amou."

Depois de vinte dias internado, o corpo do escritor não

agüentaria a pressão. Os amigos o visitavam, e ele lhes dizia: estou cansado, estou muito cansado. Era como se ele já não coubesse mais em seu corpo. No dia 25 de fevereiro, uma e meia da tarde, Caio faleceu. Era um domingo. Mais ou menos na mesma hora, Reinaldo Moraes voltava de Buenos Aires de avião; ao passar por Porto Alegre, se sentiu muito mal. Quando chegou em São Paulo, soube da morte do Caio. Amanda Costa estava almoçando em um restaurante árabe com uma amiga e começou, do nada, a pensar nele, pensar nele, pensar nele. Quando chegou em casa, ouviu no rádio que tinha morrido. Do outro lado do mundo, no Egito, o jornalista José Castello, que, superada a timidez, entrevistara Caio algumas vezes, sentiu uma tristeza, uma dor no peito inexplicável. Quando voltou ao Brasil e soube da morte do

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escritor, fez as contas, fusos horários e tal, e viu que Caio morrera exatamente na hora em que ele tivera a sensação estranha no Egito. As dez da noite do domingo, Hilda Hilst alega ter visto Caio, na Casa do Sol, em Campinas. Fora se despedir. Usava um cachecol com uma fita vermelha: os dois teriam combinado que vermelho significava que estaria tudo bem.

Pesando menos de 40 quilos, Caio foi enterrado no cemitério São Miguel e Almas. Sua mãe ficou inconsolável; quatro meses depois, teve um acidente vascular cerebral (AVC) e não levantou mais da cama. Um ano depois, morreu. Um ano e dez meses depois dela, foi a vez de seu Zaél. Em três anos, filho, mãe e pai tinham falecido. Alguns anos depois da morte de Zaél, os restos mortais dos três foram transferidos para o Cemitério Ecumênico João XXIII, onde ocupam o número 4352 07. Dias antes de morrer, Caio fizera seu testamento. À sua maneira, claro: não registrara nada em cartório. Escrevera, apenas, uma carta, para ser lida pelo seu pai, depois de sua morte. Na carta, ele fazia pequenos legados. Queria que Marcos Breda ficasse responsável e recebesse os direitos de sua obra teatral; Gil Veloso da literária; Gilberto Gawronski da de cinema e audiovisual.

A vontade de Caio não foi cumprida; quem administra a obra dele é a família. Mas, sem saber que isso ia acontecer, sete dias depois da morte, na missa, os amigos se reuniram para a leitura da carta. Seu Zaél sério, emocionado. Quando chega a parte de Gawronski, ele lê, ele tem que ler:

— Betinho, se o Spielberg quiser filmar Dulce Veiga, você vai ficar rica!

Caio, onde quer que estivesse, estava dando risadas.

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EPÍLOGO

Na praia do Rosa, com Déa, em dezembro de 1995. O céu estava nublado, chuviscava, e Caio teimou que ia entrar no mar.

— Não entra, cara, você vai pegar uma pneumonia, tá louco?

Caio insistiu. Desde que chegara na pousada, ele estava usando um galho que catara na estrada como bengala. Pois bem, nem o galho ele queria. Era sua caminhada. Ele iria sozinho. Ia conseguir.

Lentamente, foi andando até o mar, debaixo dos finos pingos de chuva. Atravessou a faixa de areia, entrou no mar. Mergulhou. Pediu ao deus das águas que o curasse. Jogou água para cima, fez festa. E voltou. Lentamente, mas satisfeito.

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Obras de Caio Fernando Abreu publicadas no Brasil Inventário do irremediável. Porto Alegre: Movimento, 1970; 2a ed. Sulina, 1995 (com o título alterado para Inventário do irremediável). Limite branco. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1971; 2a ed. Salamandra, 1984; São Paulo: 3a ed. Siciliano, 1992; Rio de Janeiro: 4a ed. Agir, 2007. O ovo apunhalado. Porto Alegre: Globo, 1975; Rio de Janeiro: 2a ed. Salamandra, 1984; São Paulo: 3a ed. Siciliano, 1992; Rio de Janeiro: 4a ed. Agir, 2008. Pedras de Calcutá. São Paulo: Alfa-Omega, 1977; 2a ed. Companhia das Letras, 1995; Rio de Janeiro: 3a ed. Agir, 2007. Morangos mofados. São Paulo: Brasiliense, 1982; 2a ed. Companhia das Letras, 1995; Rio de Janeiro: 3a ed. Agir, 2005. Triângulo das águas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983; São Paulo: 2a ed. Siciliano, 1993; Porto Alegre: 3a ed. L&PM, 2005. Os dragões não conhecem o paraíso. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. Mel e girassóis. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988. As frangas. Rio de Janeiro: Globo, 1988. A Maldição do Vale Negro. Porto Alegre: IEL/RS (Instituto Estadual do Livro), 1988.

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Onde andará Dulce Veiga? São Paulo: Companhia das Letras, 1990; 2a ed. Planeta De Agostini, 2003; Rio de Janeiro: 3a ed. Agir, 2007. Ovelhas negras. Porto Alegre: Sulina, 1995; 2a ed. L&PM, 2002. Estranhos estrangeiros. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. Pequenas epifanias. Porto Alegre: Sulina, 1996; Rio de Janeiro: 2a ed. Agir, 2008. Girassóis. São Paulo: Global Editora, 1997. Teatro completo. Porto Alegre: Sulina/IEL, 1997. Fragmentos. Porto Alegre: L&PM, 2002. Caio Fernando Abreu: Cartas. Org.: ítalo Moriconi. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002. Caio 3D: o essencial da década de 1970. Rio de Janeiro: Agir, 2005. Caio 3D: o essencial da década de 1980. Rio de Janeiro: Agir, 2006. Caio 3D: o essencial da década de 1990. Rio de Janeiro: Agir, 2006. Melhores contos de Caio Fernando Abreu. São Paulo: Global Editora, 2006.

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OBRIGADOS

A Cláudia, Felipe e Márcia Abreu, pela generosidade com que compartilharam histórias, fotografias, vídeos, livros e documentos relativos ao irmão. A Jorge Cabral, cunhado, pelos mesmos motivos. A Evandro e Leandro Martins, e a sua mãe, Maria Aldina, pela ajuda em Porto Alegre; a Juliano, por ter sido um bom e divertido cicerone. A Mauro Castro, por ter me levado pra lá e pra cá em seu táxi quando eu precisava. A Jacques, por rodar Porto Alegre inteira de bicicleta para me entregar um vídeo com entrevistas do Caio. A Luís Francisco Wasilewski, e a Fábio Fabretti, pelos conhecimentos sobre o Caio, pelas fontes que me passaram.

Agradeço também a Alex Werner, a seu irmão, Bruno Werner, e a seu pai e a sua madrasta, por terem sido tão bons anfitriões no Rio de Janeiro. Em São Paulo, agradeço a minha irmã, Liliane, não só pelo abrigo, mas por tudo, e sempre. A todos, agradeço por terem me ouvido falar e falar sobre o livro. Foram quatro anos monotemáticos, eu sei.

Esse livro começou a nascer na Universidade Federal de Santa Catarina. Agradeço à Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (PRAE) pelo apoio dado. Aos professores Ricardo Barreto, Clóvis Geyer e Tânia Rodrigues, agradeço as dicas e idéias. A Luiz Alberto Scotto e Carlos Locatelli, os grandes planos e sugestões. A Diógenes Fischer, por primeiro ter me apresentado à obra de Caio F, emprestando-me seu Morangos mofados, que aliás não devolvi — nem pretendo. A Fábio Bianchini, grande amigo, por fazer o contato com uma das fontes. A Edirê Ferreira e Paulo Vaz de Arruda, pelo papel importante em apoiar e ouvir. A Beatriz Tironi Sanson, por existir, apenas. A Paulo Camossa, por conseguir material ao qual eu não teria acesso de outra forma.

A Wendel, Tadeu e Romeu Martins, por me ouvirem falar do trabalho, darem palpites, e me contarem o que eles mesmos andam fazendo. A Upiara Boschi, por ler o texto e opinar; sobretudo por gostar e me incentivar. A Marina

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Darmaros, por trocar figurinhas e contatos. A minha família, especialmente tia Laura e minha mãe, Marisa, pela paciência, pelo apoio. Por acreditar.

Agradeço a Adriana Franciosi, a Ricardo Stefanelli e à equipe do jornal Zero Hora, por terem gentilmente cedido fotografias importantes para este livro. A meu editor, Manoel, pela fé no livro. Pelo mesmo motivo, meu obrigada a Carpinejar, Ricardo Lombardi, Rafael Franco e ao pessoal da revista Crescer.

Cada um a seu modo, Gil Veloso e Luciano Alabarse cuidam com zelo da memória de Caio. Por isso, que não é pouco, agradeço aos dois.

Agradeço a todos os entrevistados, que me cederam seu tempo e suas memórias: Adriana Calcanhoto, Amanda Costa, Ana Braga, Ana Lúcia Vasconcelos, Anna Gioconda Homem (D. Anita), Antônio Neto, Bruna Lombardi, Carlos Aguirre Sepúlveda, Carlos Emílio Corrêa Lima, Celso Curi, Cida Moreira, Claudia Wonder, Déa Martins, Emanuel Medeiros Vieira, Gilberto Gawronski, Graça Medeiros, Grace Gianoukas, Guilherme de Almeida Prado, Irineu Garcia, Itália Homem Ledur (D. Itália), Ivan Mattos, Jacqueline Cantore, Jaime Gargioni, João Batista, José Castello, José Márcio Penido, José Mora Fuentes, Juarez Fonseca, Júlio César Monteiro Martins, Kate Lyra, Laura Finocchiaro, Luiz Abreu, Luiz Arthur Nunes, Luiz Carlos Fava, Luiz Carlos Moura, Luiz Fernando Emediato, Luiz Schwarcz, Márcia Denser, Marcos Breda, Maria Adelaide Amaral, Maria Lídia Magliani, Maria Rosa Fonseca, Mário Prata, Nei Duelos, Paula Dip, Pedro Paulo de Sena Madureira, Regina Echeverria, Reinaldo Moraes, Renato Campão, Ruy Krebs, Santiago, Sônia Azambuja, Stella Miranda, Vera Antoun, Vera Spolidoro.

Quero agradecer, também, a Jonas Lopes, por me ensinar sobre disciplina. À sua família, Leide, Fernanda, João: pelo apoio, sempre. E a Regina Carvalho, por estar sempre disponível, por ler os textos assim que eu os mandava, pelo grande conhecimento de todos os assuntos e pela amizade, pelas batatas fritas e sukitas, agradeço demais.

Page 193: Caio Fernando Abreu -  inventário de um escritor irremediável (pdf) (rev)

Obrigada mesmo. A todos que me ajudaram de alguma forma, me apoiaram: seria longo citar todos os nomes, mas obrigada. E, finalmente, quero agradecer a Eduardo Nasi, o melhor marido, companheiro, amigo. Sem você, não teria conseguido terminar o livro. Te amo, querido. Sempre.

 

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