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1 Extractos do meu livro A Transição para a Democracia. Memórias Políticas, II (1976-1982), Bertrand e Círculo de Leitores, Lisboa, 2008, pp. 291 a 327. I DECLARAÇÕES MINHAS ANTERIORES SOBRE CAMARATE 1

Camarate

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Diogo Freitas do Amaral revela novos dados sobre o desastre

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1 Extractos do meu livro A Transição para a Democracia. Memórias Políticas, II (1976-1982),Bertrand e Círculo de Leitores, Lisboa, 2008, pp. 291 a 327.

I

DECLARAÇÕES MINHAS ANTERIORESSOBRE CAMARATE1

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O DESASTRE DE CAMARATE(4 DE DEZEMBRO DE 1980)

A NOTÍCIA. PRIMEIRAS REACÇÕES

Como já disse, ficara decidido que, na quinta-feira, 4 de Dezem-bro, Sá Carneiro e Amaro da Costa iriam fazer um segundo comícioao Porto, enquanto Gonçalo Ribeiro Telles, Helena Roseta, do PSD,e eu próprio acompanharíamos o General Soares Carneiro no comí-cio de Setúbal. No dia seguinte, sexta-feira, 5, os três líderes da ADestariam juntos no comício de Lisboa.

Cheguei a casa, naquela quinta-feira perto das 20h00. Ainda vio princípio do «Telejornal» e depois fui logo jantar, porque estavacombinado sair de casa às 20h30 para ir buscar a Helena e o Gonça-lo, seguindo nós os três no meu carro para Setúbal.

A meio do jantar, tocam à porta: era um dos guardas da PSP queme faziam segurança pessoal. Entrou com ar constrangido para o halle, mal me viu, disse em voz baixa e arrastada:

— Sr. Professor, tivemos agora uma má notícia: o avião em queseguiam para o Porto o Sr. Dr. Sá Carneiro e o Sr. Eng.o Amaro daCosta caiu, pouco depois de levantar voo.

Eu, ainda sem perceber nada, perguntei:— E há feridos?

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Ele, com um ar muito sério mas composto, respondeu de imediato:— Não, Sr. Professor, não há feridos......................................................................................................— Peço desculpa, Sr. Professor: quando disse que não há feridos,

eu queria dizer... peço perdão... eu queria dizer que morreram todos!Não quis acreditar. Caiu-me a alma aos pés. E senti suores frios,

muito intensos, percorrendo o meu corpo de cima a baixo......................................................................................................Nisto, iam passados alguns segundos apenas, dei comigo a pen-

sar: «Atenção: se o Primeiro-Ministro morreu, então isso quer dizerque a responsabilidade do Governo recai toda sobre mim, que souVice-Primeiro-Ministro e, como tal, por força da Constituição, cabe--me substituir o Primeiro-Ministro em todas as suas faltas e impedi-mentos. Tenho de agir de imediato.» Senti cair sobre mim todo o pe-so desta enorme responsabilidade.

Fiz então, eu próprio, quatro telefonemas rápidos: o primeiro foipara a secretária pessoal do Primeiro-Ministro, Conceição Monteiro,que já sabia da notícia e estava muito abalada. Pedi-lhe que convocas-se de urgência o Conselho de Ministros para as 21h30 na residênciaoficial de S. Bento, e que fizesse o favor de avisar o General SoaresCarneiro; o segundo e o terceiro telefonemas foram para o GonçaloRibeiro Telles e para a Helena Roseta, a quem tive de dar a notícia,aguentar o choque de ambos, e dizer-lhes que já não haveria comícioem Setúbal; o quarto foi para o meu primo direito, meu grande ami-go e meu chefe de gabinete, Nuno Amaral, pedindo-lhe que viesse deimediato para minha casa, fazer companhia à minha Mulher e aosmeus filhos, pois eu teria de ir para o Conselho de Ministros e nãosabia a que horas voltaria.

Entretanto, vimos e ouvimos, num boletim especial da RTP,a confirmação oficial da notícia. Foi um segundo choque, quase tãobrutal como o primeiro (...).

Depois de ter sabido, através da PSP, de que o Eng.o Eurico deMelo, Ministro da Administração Interna, tinha ido para o local doacidente, em Camarate, entrei no carro e indiquei ao motorista queíamos para a residência oficial do Primeiro-Ministro, em S. Bento.

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Não consegui dizer uma palavra durante o percurso. A dor e o sofri-mento moral continuavam muito grandes: mas o sentido da respon-sabilidade do Governo e do País — ainda por cima, numa hora tãodifícil — fazia-se sentir cada vez mais. Tinha as mãos e os pés gela-dos. Mas a cabeça, felizmente, continuava a funcionar normalmente.E logo ali, durante a viagem através de Lisboa, fixei a mim própriotrês objectivos imediatos: auscultar o Conselho de Ministros (ou osMinistros que já tivessem chegado), telefonar ao Presidente da Repú-blica, e falar ao País pela televisão — tudo isto o mais depressa possí-vel.

PRIMEIROS CONTACTOS

Quando cheguei à residência oficial, a entrada, a escada para oprimeiro andar e o hall que neste conduzia então à sala de reuniõesdo Conselho de Ministros estavam completamente cheios, com al-guns Ministros, diversos Secretários de Estado, e muitos assessorese adjuntos — uns com um ar profundamente abatido, outros nervo-síssimos, outros chorando.

Não consegui reunir logo o Conselho de Ministros — como de-sejava —, porque a maioria dos seus membros ainda não tinha com-parecido. Fiquei a conversar numa das salas com os que já lá estavamou iam chegando. Reinava entre todos uma grande tristeza, mas tam-bém uma grande serenidade. Conversámos acerca das possíveis cau-sas do acidente e, sobretudo, das medidas e atitudes a tomar naquelanoite. A nossa principal prioridade era, como devia ser, saber what todo next. Ninguém perdeu a cabeça.

Quando chegou, o Ministro da Administração Interna, Eng.o Eu-rico de Melo — que vinha horrorizado com o que vira no local doacidente (sobretudo os corpos carbonizados) —, trazia também uma

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informação inquietante: segundo numerosos governadores civis, deCoimbra para norte, estava a gerar-se um ambiente de grande excita-ção em vários pontos do País — nomeadamente por parte das basesdo PSD e do CDS —, havendo perigo de que tal ambiente degene-rasse durante a noite em perturbações da ordem pública. Temia-se,sobretudo, uma nova onda de assaltos e fogo posto às sedes do PCPe dos partidos de extrema-esquerda, tal como acontecera no VerãoQuente de 1975.

Logo ali decidimos, em petit comité, que era preciso impedir emabsoluto essa onda de desespero e violência; disse ao Ministro Euricode Melo que desse ordens claras e categóricas nesse sentido, quera todos os governadores civis, quer aos comandos-gerais da PSP e daGNR; e percebi que tinha de antecipar rapidamente a minha comuni-cação ao País através da televisão.

Pedi aos Ministros da Administração Interna, Eurico de Melo, daJustiça, Mário Raposo, dos Assuntos Sociais, Morais Leitão, e dosTransportes e Comunicações, Viana Baptista, que se ocupassem domais urgente — respectivamente, a manutenção da ordem pública, asautópsias, os contactos com as famílias das vítimas, e a preservaçãode todos os destroços e vestígios no local do acidente.

De imediato, fechei-me num pequeno gabinete que havia ali aolado, e comecei a redigir o texto da declaração oficial que ia fazeratravés da televisão.

Ao mesmo tempo, mandei ligar com urgência para o Presidenteda República. E dei indicações para informarem a RTP de que eu es-taria lá dentro de meia hora para fazer uma comunicação ao País.

Entretanto, na modesta e acanhada sala de um qualquer adjunto,redigi em quinze minutos o texto que ia ler perante as câmaras. Saiude um só jacto e sem emendas.

A meio da redacção do documento, chegou o telefonema de Be-lém. O Presidente Eanes apresentou-me — e, por meu intermédio,a todo o Governo — as suas mais sentidas condolências pelo trágicoacontecimento, o que eu agradeci, e disse-me que precisávamos defalar. Logo respondi:

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— Pois é, Sr. Presidente. Eu também acho. Mas tive agora notí-cias do Sr. Ministro da Administração Interna, provenientes dos go-vernos civis do centro e norte de Portugal, que nos fazem recear quepossa haver, durante esta noite, perturbações da ordem pública e ata-ques a sedes do PCP e dos partidos da extrema-esquerda. (...) Demodo que, se o Sr. Presidente concordar, eu propunha-me ir já daquipara o Lumiar, fazer uma comunicação ao País onde apelarei à calmae ao civismo de todos, e no fim seguiria de lá directo para Belém. Pa-rece-lhe bem?

O Presidente Eanes concordou plenamente. Acabei de redigir adeclaração que ia fazer na televisão e parti em alta velocidade para osestúdios do Lumiar. O Conselho de Ministros, logo que teve quorum,reuniu sob a presidência do Ministro Adjunto do Primeiro-Ministro,Francisco Pinto Balsemão. Contudo, por deferência para comigo, li-mitaram-se a trocar impressões e nada deliberaram até eu chegar.

A MINHA COMUNICAÇÃO AO PAÍSATRAVÉS DA RTP

Quando cheguei ao edifício da RTP, informei de imediato osseus dirigentes, e os técnicos incumbidos da emissão especial que seia fazer, da decisão que tinha tomado no trajecto — gravar primeiro,e só depois deixar a gravação ir para o ar. Receei, na verdade, que, sefalasse em directo, pudesse acontecer-me a meio ficar emocionadoou com a voz embargada: era um risco que, nas circunstâncias domomento, eu não podia correr. A minha comunicação ao País tinhade ser feita, na qualidade de substituto do Primeiro-Ministro, em tomfirme e revelador de que não havia, da minha parte e da parte do Go-verno, qualquer hesitação, medo ou desorientação. Era a autoridadedo Estado e a manutenção da paz pública que estavam em causa.

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Assim se fez. A gravação saiu bem logo à primeira tentativa. Deiordens para a transmitirem de imediato. Eram 22 horas e 24 minutos(TMG).

O texto foi o seguinte:

«Portugueses :

Num horrível acidente de aviação morreu hoje ao princípio da noite o Primei-ro-Ministro de Portugal, Dr. Francisco Sá Carneiro. No mesmo desastre falece-ram sua Mulher, Snu Abecassis, o Ministro da Defesa Nacional, AdelinoAmaro da Costa, e sua Mulher, o chefe de gabinete do Primeiro-Ministro, Antó-nio Patrício Gouveia, e os dois pilotos da avioneta.

Ignoramos ainda as causas do acidente, que serão apuradas no mais rigorosoinquérito, a que se procederá de imediato.

É com a maior consternação e pesar que vos confirmo esta notícia brutal.O Dr. Francisco Sá Carneiro foi um grande homem, um grande lutador

e um grande estadista.Foi um grande homem — na coragem com que assumia as suas posições, na

simpatia irradiante do seu temperamento e na lucidez invulgar do seu espírito vivoe sagaz.

Foi um grande lutador — e sobretudo um lutador pela liberdade, antes e de-pois do 25 de Abril. Morreu em pleno combate, no ardor de uma campanha elei-toral que tomou a peito e ao serviço de uma causa nobre, de um ideal elevado, deuma noção mais pura de Democracia, que desejava com toda a sua alma paraa nossa Pátria.

Foi um grande estadista. Várias vezes me confidenciou que só ao fim de cin-co anos se poderia saber se ele tinha sido ou não um estadista. Mas todos nós, queservimos no Governo da Aliança Democrática sob a sua direcção, podemos dartestemunho da real dimensão deste governante — que ao leme do Estado foi sere-no, firme e competente, que apreendia e dominava todos os problemas que lheeram postos com rapidez e argúcia penetrante, que não adiava uma única decisãopor mais difícil e embaraçosa que aparentasse ser, que não receava assumir a res-ponsabilidade total das resoluções tomadas e que se erguia sempre ao plano maiselevado dos superiores interesses nacionais, quer na política externa quer nosmeandros da política interna, onde nunca mostrou como Primeiro-Ministro amais leve ponta de espírito partidário.

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Não foram necessários cinco anos. A morte repentina e violenta recorta-lhehoje um perfil de autêntico estadista, de quem os seus inúmeros adeptos e o Paísem geral guardarão uma recordação feliz e um exemplo cívico de primeira grande-za. A História não o esquecerá.

Morreu também no desastre o Ministro da Defesa Nacional e Vice-Presi-dente do CDS, Adelino Amaro da Costa. Foi um político excepcional, um bri-lhante parlamentar, um amigo inexcedível. O CDS deve-lhe o máximo que umpartido pode dever a algum dirigente — e o Governo da AD encontrou nele oprimeiro civil a desempenhar o cargo de Ministro da Defesa depois do 25 deAbril, função a que dedicou uma entrega total e onde preparava, com o entusias-mo contagiante que era timbre da sua personalidade, a transição das Forças Ar-madas para a dependência do poder civil.

Uma palavra também para António Patrício Gouveia, destacado militantedo PSD e excelente colaborador do Primeiro-Ministro, que em tudo o acompa-nhou, até na morte.

Neste momento doloroso de luto nacional, quero aqui prestar a homenagemcomovida e magoada do Governo Português a quem foi seu Primeiro-Ministroe seu Ministro da Defesa Nacional. Estou certo de que ao fazê-lo interpreto ossentimentos de todos os Portugueses, fossem simpatizantes ou adversários políticos.

Como católico, rogo a Deus que abençoe todos os que faleceram neste acidentee que dê força e ânimo às suas famílias e aos seus amigos para transformarema dor enorme que sofrem neste momento numa determinação muito firme de conti-nuar a obra em que tanto se empenharam.

Os homens passam. Mas o exemplo fica. E os ideais por que lutaram e de-ram a vida não morrem. Continuemos, pois.

Peço a todos a maior calma e serenidade! Repito: peço a todos a maior calmae serenidade!

Sejamos dignos em tudo de quem, para além da morte, espera de nós, nestemomento difícil, uma coragem exemplar.»

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A LONGA NOITE DE4 PARA 5 DE DEZEMBRO

Como o leitor terá reparado — ou poderá confirmar, voltandoa ler —, não é verdade o que depois várias pessoas e jornais afirma-ram: que nesta declaração eu teria afirmado que o acidente de Cama-rate não fora de origem criminosa. É óbvio que não disse, nem podiadizê-lo: eu nada sabia então acerca dessas causas.

Naquela noite e nos dias seguintes, recebi numerosas felicitaçõespela comunicação que fiz. E várias pessoas de alto relevo na vida pú-blica nacional me escreveram ou telefonaram a dizer que, com aquelaminha comunicação, naquele momento e naquele tom, eu tinha con-seguido «segurar o País», evitando uma onda de fúria popular contraas sedes de determinados partidos (PCP e extrema-esquerda).

Se assim aconteceu de facto, fico muito honrado e satisfeito porter podido dar este contributo para a manutenção de uma sã convi-vência democrática entre todos os Portugueses, então ainda poucohabituados a ela.

Contra o que me apetecia fazer, não fiquei na RTP a ver a trans-missão da minha declaração. O tempo urgia. Meti-me no carro e se-gui imediatamente para Belém. Quando lá cheguei, a transmissão játinha acabado. Não a vi naquela noite — nem nunca mais, até hoje.Tenho-a em casa, num vídeo da RTP, que guardo e guardarei comoum documento histórico.

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A AUDIÊNCIA COM O PRESIDENTE EANESÀS 23 HORAS

Encontrei o Presidente da República sinceramente comovido.Abraçou-me e renovou as suas condolências ao Governo, pedindo--me para as apresentar também às famílias das vítimas. Agradecie disse que assim faria. Felicitou-me pelo tom e conteúdo da minhacomunicação ao País. Também agradeci.

Sentámo-nos então no gabinete de trabalho do Presidente. Logode entrada, pus-lhe várias questões vitais:

— Sr. Presidente: queria, primeiro que tudo, informá-lo de quetomámos todas as medidas necessárias e possíveis, junto dos gover-nadores civis, da PSP e da GNR, para manter a ordem pública duran-te esta noite e nos próximos dias. Considero ser esse o primeiro de-ver do Governo nas circunstâncias presentes.

O Presidente Eanes concordou, elogiou e pediu-me para o man-ter informado do evoluir da situação — o que fiz nos dias seguintes.

Continuei então:— A segunda questão é esta, Sr. Presidente: hoje é quinta-feira, 4

de Dezembro. As eleições presidenciais estão marcadas para o próxi-mo Domingo, dia 7. O ponto de vista do Governo é o de que se de-ve manter a normalidade constitucional, fazendo as eleições no dia 7,tal como previsto — salvo se entrássemos num período anormal deconvulsão política e social, que esperamos não aconteça. É essa tam-bém a opinião do Sr. Presidente?

— Sem dúvida, respondeu Ramalho Eanes. Mas, como eu souum dos candidatos, nessa matéria seguirei, em princípio, a opinião doGoverno.

Coloquei-lhe então uma terceira questão:— Sr. Presidente: no breve encontro que tive com alguns dos

Srs. Ministros antes de ir à RTP, esboçaram-se algumas dúvidas so-bre a questão de saber se, tendo falecido o Primeiro-Ministro, o Go-verno deve apresentar hoje mesmo a sua demissão ou se, para não

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rodear o acto eleitoral do próximo Domingo de maior dramatismo esensação de instabilidade política do que a que já existe, o Governosó deve apresentar a sua demissão na próxima segunda-feira. A deci-são, aqui, é sua, Sr. Presidente: o Governo fará como V. Ex.a enten-der; e, para o caso de considerar que a demissão deve ser apresentadajá hoje, estou pronto a fazê-lo neste momento.

Ramalho Eanes não se precipitou, mas respondeu sem hesitar:— Não, não. Nem pensar nisso. Depois da grave comoção na-

cional desta noite, e a três dias das eleições presidenciais, o País nãopode ficar sem Governo, ou com um Governo demissionário. A apre-sentação da demissão do Governo, por morte do Primeiro-Ministro,faz todo o sentido, mas só na próxima segunda-feira, depois do actoeleitoral, e se não houver segunda volta.

Fez uma pausa e, para minha grande surpresa, acrescentou:— Digo-lhe mais. Numa altura destas, o País também não pode

ficar com um Governo sem chefe. Um navio sem comandante rapi-damente começa a navegar à deriva. Portanto, o Sr. Professor Freitasdo Amaral, a partir deste momento, é, para todos os efeitos, o Pri-meiro-Ministro de Portugal.

Fiquei surpreendido, mas não perturbado. Apenas respondi:— Pois bem, Sr. Presidente: assim será. V. Ex.a pode contar co-

migo.O resto da conversa não teve a ver com a situação política interna,

mas com a situação internacional: telegramas urgentes e confidenciaischegados durante aquele mesmo dia às minhas mãos, no Ministériodos Negócios Estrangeiros, davam conta de informações, tidas porfidedignas, segundo as quais as tropas do Pacto de Varsóvia — lide-radas pela União Soviética — invadiriam esta noite, de 4 para 5, aPolónia, para pôr termo à instabilidade pré-democrática criada pelosindicato livre Solidariedade, sob a chefia corajosa de Lech Walesa.O Presidente e eu analisámos a hipótese e, embora concluindo pelasua improbabilidade naquele momento, combinámos o que fazer se elase viesse a verificar, em termos de contactos de alto nível na NATO.

Saído de Belém, fui de novo para a residência oficial de S. Bento.Pouco faltava para a meia-noite.

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PRESIDO AO CONSELHO DE MINISTROS

Assim que cheguei, pedi aos Ministros presentes e aos Secretáriosde Estado com assento no Conselho de Ministros que entrassem pa-ra a sala do Conselho, e solicitei a saída das restantes pessoas.

A seguir, já com todos os Ministros e dois Secretários de Estadosentados — o Secretário de Estado da Presidência do Conselho,Dr. Brás Teixeira, e o Secretário de Estado Adjunto do Primeiro-Mi-nistro, Doutor Vasco Pulido Valente —, dirigi-me para a referida sala,atravessei-a junto à parede do lado direito, e caminhei para o topo damesa. O lugar do Primeiro-Ministro estava vazio. À sua esquerda en-contrava-se já sentado, como de costume, Francisco Pinto Balsemão,e à direita da cadeira do Primeiro-Ministro estava, vaga, aquela ondeeu normalmente me sentava, como Vice-Primeiro-Ministro e n.o 2 doGoverno.

Durante breves segundos, enquanto avançava em direcção aofundo da sala, ponderei se me devia sentar no meu lugar habitual ouse, diferentemente, deveria ocupar a cadeira central, que era a do Pri-meiro-Ministro. Uma certa modéstia natural que sempre gosto deusar nas questões protocolares inclinava-me para a primeira solução.Mas depressa a intuição política e a minha formação jurídica impuse-ram a segunda: eu era, na falta ou impedimento do Primeiro-Minis-tro, o seu substituto automático, à luz do disposto na Constituição;tendo falecido o Primeiro-Ministro, cabia-me a mim — nem que fossepor algumas horas apenas — desempenhar interinamente as funçõesde Chefe do Governo. E nessas funções acabara de ser confirmadopelo Presidente da República. Tinha de haver um homem ao leme.Sentei-me, pois, na cadeira do Primeiro-Ministro. E dei início à ses-são, que foi serena e não registou qualquer incidente.

.....................................................................................................Em breves palavras iniciais, evoquei saudosa e comovidamente a

memória de Sá Carneiro e Amaro da Costa, prestando-lhes a home-nagem oficial e pessoal que lhes era devida.

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O Conselho de Ministros, através de Francisco Pinto Balsemão,exprimiu em nome de todos o pleno apoio do Governo às minhaspalavras, bem como, aliás, à comunicação feita ao País pela televisão.

Agradeci. Informei então o Conselho do conteúdo da minhaconversa com o Presidente da República. O Conselho concordoucom todas as decisões aí tomadas.

Pedi depois aos Ministros que encarregara de tarefas especiais,antes de partir para os estúdios do Lumiar, que dessem conta aoConselho do resultado das suas diligências.

O Ministro da Administração Interna, Eurico de Melo, relatoucomo prosseguiam os trabalhos junto aos destroços do avião, em Ca-marate, e informou o Conselho de que, até àquele momento (já pas-sava da meia-noite), reinava a calma em todo o País, sublinhando quea minha declaração televisiva tivera, segundo a opinião dos governa-dores civis, um efeito imediato de «acalmação». O Conselho congra-tulou-se com isso.

O Ministro da Justiça, Mário Raposo, informou que, apesar dadelicadeza das autópsias a realizar, o Instituto de Medicina Legal es-perava que todas elas estivessem prontas pelas sete da manhã de sex-ta-feira.

O Ministro dos Assuntos Sociais, Morais Leitão, comunicou quefalara com a maioria das famílias das vítimas e que todas, sem excep-ção, pediam encarecidamente que os funerais tivessem lugar o maiscedo possível — ou na sexta-feira, 5, ou no Sábado, 6, o mais tardar,e nunca na segunda-feira, 8, como alguns Ministros tinham avançadoinformalmente no nosso encontro das 21h30.

Enfim, o Ministro dos Transportes e Comunicações, Viana Bap-tista, informou que havia legislação especial que obrigava à constitui-ção de uma comissão de inquérito sempre que se desse um acidentede aviação com vítimas mortais, pelo que, na manhã seguinte, elepróprio — que era a entidade legalmente competente para o fazer —iria proferir um despacho nomeando a pertinente comissão.

Obtidas estas informações iniciais, e confirmadas pelo Conselhoas orientações seguidas, propus então que o Conselho se debruçasse,mais detidamente, sobre a questão da data dos funerais. O dia de

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1 Uma questão diferente é a de saber se a RTP fez bem ou mal em dedicar tantas horasseguidas às exéquias solenes e aos funerais de Sá Carneiro e Amaro da Costa. Nunca ha-verá unanimidade de opiniões sobre isso, embora eu tenha sido na altura, e continue a serhoje, solidário com a decisão tomada pelo então presidente da RTP, Daniel Proença deCarvalho. Como explicarei adiante, o facto não teve nenhuma influência nos resultadoseleitorais do dia seguinte.

segunda-feira, 8, ficou logo excluído, devido aos pedidos instantesformulados pelas famílias das vítimas; Domingo, 7, também não po-dia ser, porque era o dia das eleições; restava a escolha entre sexta--feira, 5, e Sábado, 6. Mas na sexta-feira, 5, era pouco provável que sepudessem realizar os funerais. E, mesmo que fosse possível, não seriaconveniente: primeiro, porque os funerais de Estado, com honrasmilitares, costumam levar pelo menos 24 horas a organizar; e depois(como me tinha sido explicado, no Ministério dos Negócios Estran-geiros, pelo Protocolo de Estado) porque eram necessárias também24 horas para fazer chegar às autoridades dos países nossos amigose aliados o convite para estarem presentes nas cerimónias fúnebres, eera manifestamente impossível, à uma hora da manhã do dia 5, con-seguir que viessem nesse mesmo dia, ainda que à tarde, as delegaçõesestrangeiras que queríamos convidar — e que acabaram por podervir no Sábado, 6.

Estas foram (posso garanti-lo) as duas únicas razões que levaramo Conselho de Ministros a optar pela realização dos funerais no Sá-bado, 6 de Dezembro. Ninguém — mas ninguém mesmo — alegou,como mais tarde se nos criticou, que o dia de Sábado devia ser esco-lhido por ser o melhor dia para garantir uma grande cobertura televi-siva e um elevado índice de audiência. Quem é que, num momentodaqueles, com o nosso Primeiro-Ministro e um colega nosso mortosnum acidente brutal, há cerca de quatro horas, se iria lembrar de pen-sar nos efeitos televisivos do funeral? E alguém que me conheça achaque eu deixaria pôr o problema ali e nesses termos? Naquele Gover-no, havia sentido de Estado; e o momento era demasiado cruel parase fazer política politiqueira.1

O Conselho de Ministros decretou luto nacional por três dias eainda decidiu mais algumas questões protocolares (por exemplo, a es-colha do Mosteiro dos Jerónimos para as exéquias solenes), tendo

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ouvido por último uma breve exposição minha sobre as notícias deuma possível invasão da Polónia por tropas do Pacto de Varsóvia.Mas não houve debate. Eram duas da manhã; estávamos todos can-sados; e, sobretudo, sentíamo-nos esgotados pela dor e pela necessi-dade constante de tomar decisões difíceis.

Foi, de longe, o mais dramático de entre cerca de 200 Conselhosde Ministros em que participei em toda a minha vida política.

O PRINCIPAL PARTIDO DA OPOSIÇÃO (PS)PEDE-ME UMA AUDIÊNCIA URGENTE

Logo às primeiras horas da manhã de sexta-feira, 5, recebi em ca-sa um recado do gabinete do Dr. Sá Carneiro — cujo pessoal foi ab-solutamente inexcedível durante os cerca de 30 dias em que fui Pri-meiro-Ministro interino (...) —, com a informação de que forarecebido há minutos um pedido de audiência, muito urgente, parauma delegação do Partido Socialista, chefiada pelo Dr. Mário Soares.

Mandei marcar o encontro para as 12h30, convocando para essareunião — que interpretei como destinada a apresentar condolências —o Ministro Adjunto do Primeiro-Ministro, Dr. Francisco Pinto Balse-mão, que também representaria o PSD, e o Arq.o Gonçalo RibeiroTelles, em nome do PPM.

À hora combinada, lá chegou a delegação do PS, liderada peloseu secretário-geral, Mário Soares, que eu e os outros dois compa-nheiros do Governo e da AD recebemos no gabinete do Primeiro--Ministro, na residência oficial de S. Bento.

As primeiras palavras do Dr. Mário Soares foram, como era natu-ral, de sentidos pêsames, mas também de visível consternação. Agra-deci, igualmente comovido.

Logo a seguir, o Dr. Mário Soares — um «animal político» porexcelência — mudou de tom e afirmou com toda a convicção:

— Bem, o PS, como maior partido da Oposição, está muito inte-ressado em ouvir do Governo uma explicação clara e nítida sobretrês pontos: primeiro mantêm-se ou não as eleições presidenciais para

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1 V. o «Diário de Notícias» de 6-12-80, p. 5.

o próximo Domingo?; segundo, o Governo já apresentou a sua demis-são ao Presidente da República e, se não, quando tenciona apresentá-la?;e terceiro, quem é neste momento o Primeiro-Ministro em funções?

Respondi como o leitor já sabe, nos termos que tinham ficadoacordados na véspera, à noite, com o Presidente da República e queo Conselho de Ministros depois aprovara. Quando o Dr. Mário Soa-res ouviu a terceira resposta, quis certificar-se melhor e indagou:

— Então, pode dizer-se que neste momento o Sr. Professor Frei-tas do Amaral é que é o Primeiro-Ministro de Portugal?

Respondi, contidamente:— Assim é, Sr. Dr.. Foi o que ontem à noite me declarou, ex-

pressamente, o Sr. Presidente da República. E eu cumprirei o meudever, ainda que só por alguns dias ou semanas.

O Dr. Mário Soares pareceu aliviado:— Ainda bem. O PS concorda com as três decisões que acabam

de nos ser comunicadas: adiar as eleições seria um grande erro e umpéssimo precedente; fazê-las com um Governo demissionário não re-solvia problema nenhum, e podia criar problemas novos; e, sobretu-do, é muito importante que o País saiba, e veja, que o Governo temalguém de confiança encarregado pelo Presidente da República deo chefiar, ou seja, que o Governo não ficou como corpo sem cabeça.

E, após uma breve pausa, perguntou:— Posso dizer isso no meu partido e, eventualmente, à comuni-

cação social?— Com certeza, respondi eu. De Belém já publicaram, agora

mesmo, um comunicado a dizer o mesmo.Trocadas algumas informações sobre os funerais, a entrevista ter-

minou. Soube depois que o Dr. Mário Soares, à saída, disse à televi-são e aos restantes órgãos da comunicação social tudo o que ouvirade mim, manifestou a concordância expressa do PS, e acrescentouque estavam assim reunidas todas as condições para que se pudessemanter a normalidade constitucional e a paz democrática entre todosos Portugueses, apesar do trágico desastre de Camarate.1

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Também houve, no principal partido da Oposição, naquele mo-mento trágico da vida pública portuguesa, um verdadeiro sentido deEstado.

As últimas mortes violentas e traumáticas de Chefes de Estadoou de Governo que Portugal tinha conhecido (a do rei D. Carlos, em1908, e a do Presidente Sidónio Pais, em 1919) já haviam ocorridohavia, respectivamente, 72 e 61 anos. Ninguém, na nossa geração, es-tava preparado para um choque emocional colectivo de tamanho im-pacto.