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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8/09/2018 1 Caminho Alternativo: o que nos dizem as fotografias de A Câmara Clara 1 Valéria Berti CONTESSA 2 Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, SP RESUMO Este trabalho aborda o livro A Câmara Clara de Roland Barthes, segundo o caminho alternativo sugerido por Etienne Samain, isto é, partir de suas imagens. O objetivo do trabalho é, num primeiro momento, analisar as linhas gerais de seu projeto gráfico numa discussão que, embora pareça um tanto formal, irá nos conduzir a um paralelo inusitado entre ida do autor e a obra. Num segundo momento, vamos nos ater às primeiras imagens do livro de sua importância, já que estas operam, segundo nossa avaliação, como portas de entrada para o universo vertiginoso da obra do escritor e pensador, Roland Barthes. Finalmente, concluiremos a abordagem proposta, além de alçar Barthes à posição de autor-curador, também nos coloca, leitores de seu livro, numa postura mais ativa e inventiva, na qual podemos passear livremente pelas fotografias. PALAVRAS-CHAVE: A Câmara Clara; Roland Barthes; fotografia. Justificativa O livro A Câmara Clara [La Chambre Claire] de Roland Barthes, publicado em 1980 na França (BARTHES, 1980), é um dos pilares do pensamento teórico sobre a fotografia. Como se poderia discutir e pensar novamente essa obra seminal após tantas reflexões? Tomaremos por guia Etienne Samain que nos indica em seu texto Um Retorno à Câmara Clara: Roland Barthes e a Antropologia Visual, publicado no livro O Fotográfico um caminho alternativo para abordagem do livro de Barthes, a saber: Barthes inserirá no seu texto um total de 24 fotografias (15 na primeira parte e 9 na segunda). É a partir dessas fotografias e de suas respectivas legendas que se deveria iniciar a leitura de A Câmara Clara. Olhá-las cuidadosamente durante um longo tempo. São elas que dão razão ao tom da dupla leitura mítica e selvagem que Barthes empreende (SAMAIN, 2005, p. 123). 1 Trabalho apresentado no GP Fotografia, XVIII Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Mestre em Comunicação e semiótica pela PUC-SP, graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo. E-mail: valeria [email protected]

Caminho Alternativo: o que nos dizem as fotografias de A ...3 Roland Barthes, La chambre claire: Note sur la photographie. Paris, Seuil, 1980 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos

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    Caminho Alternativo: o que nos dizem as fotografias de A Câmara Clara1

    Valéria Berti CONTESSA2

    Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, SP

    RESUMO

    Este trabalho aborda o livro A Câmara Clara de Roland Barthes, segundo o caminho

    alternativo sugerido por Etienne Samain, isto é, partir de suas imagens. O objetivo do

    trabalho é, num primeiro momento, analisar as linhas gerais de seu projeto gráfico numa

    discussão que, embora pareça um tanto formal, irá nos conduzir a um paralelo inusitado

    entre ida do autor e a obra. Num segundo momento, vamos nos ater às primeiras

    imagens do livro de sua importância, já que estas operam, segundo nossa avaliação,

    como portas de entrada para o universo vertiginoso da obra do escritor e pensador,

    Roland Barthes. Finalmente, concluiremos a abordagem proposta, além de alçar Barthes

    à posição de autor-curador, também nos coloca, leitores de seu livro, numa postura mais

    ativa e inventiva, na qual podemos passear livremente pelas fotografias.

    PALAVRAS-CHAVE: A Câmara Clara; Roland Barthes; fotografia.

    Justificativa

    O livro A Câmara Clara [La Chambre Claire] de Roland Barthes, publicado em 1980 na

    França (BARTHES, 1980), é um dos pilares do pensamento teórico sobre a fotografia.

    Como se poderia discutir e pensar novamente essa obra seminal após tantas reflexões?

    Tomaremos por guia Etienne Samain que nos indica – em seu texto Um Retorno à

    Câmara Clara: Roland Barthes e a Antropologia Visual, publicado no livro O

    Fotográfico – um caminho alternativo para abordagem do livro de Barthes, a saber:

    Barthes inserirá no seu texto um total de 24 fotografias (15 na primeira parte

    e 9 na segunda). É a partir dessas fotografias e de suas respectivas legendas

    que se deveria iniciar a leitura de A Câmara Clara. Olhá-las cuidadosamente

    durante um longo tempo. São elas que dão razão ao tom da dupla leitura

    mítica e selvagem que Barthes empreende (SAMAIN, 2005, p. 123).

    1 Trabalho apresentado no GP Fotografia, XVIII Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento

    componente do 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.

    2 Mestre em Comunicação e semiótica pela PUC-SP, graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São

    Paulo. E-mail: valeria [email protected]

    mailto:valeria%[email protected]

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    A fim de trilhar o caminho de Samain, serão considerados os três seguintes

    elementos isoladamente: a) a imagem fotográfica, b) os comentários de Barthes, entre

    aspas, denominados de “legenda” por Samain e, por último, c) título original da foto,

    que irá apenas nos servir como indicação, já que, como veremos, esta informação é

    mencionada apenas para que se tenha uma referência espaço-temporal sobre a fotografia

    e a que a legenda à que esta se refere. É essa a sequência em que esses três elementos

    estão posicionados na grande maioria das páginas que contém fotos, em A Câmara

    Clara.

    A Câmara Clara: sobre o projeto gráfico da versão original

    A análise que se segue tratará da versão original do livro em francês – La

    Chambre Claire: note sur la photographie – publicada em 1980 na Coleção Les Cahiers

    du Cinéma pelas editoras Gallimard e Seuil3.

    Comecemos pelos comentários de Barthes em cada fotografia. Eles aparecem

    imediatamente abaixo das mesmas, enquanto que o título original aparece na parte

    inferior da página com um tipo e tamanho de letra muito menor do que a dos

    comentários do autor (que, vale lembrar, Samain denomina “legenda”, mas que nós

    chamaremos, a partir de agora de comentários).

    Esta manobra subverte, em termos, o conceito de legenda, posto que o que a

    legenda clássica das fotografias – que consiste nas informações de título, autor, local e

    data – foi posicionada na parte mais inferior da página, com um tamanho de letra

    pequeno, bem longe da foto, e, ainda, bem abaixo dos comentários de Barthes entre

    aspas. Os comentários de Barthes entre aspas ganham em importância ao ocuparem uma

    posição de destaque.

    Neste artigo trataremos de três das imagens das vinte e seis imagens, a saber: a

    imagem da capa, a primeira foto do interior do livro (colorida) e a primeira foto em

    preto-e-branco, cujo padrão de dimensões e diagramação será seguido por praticamente

    todas as outras fotos do livro.

    Vamos iniciar com a primeira imagem, que está presente na capa.

    3 Roland Barthes, La chambre claire: Note sur la photographie. Paris, Seuil, 1980

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    Imagem 1– Capa da edição original

    O Formato do livro é 150mm x 215mm com 12mm de espessura. A capa

    apresenta um fundo bege chapado, que pode, segundo nossa análise, aludir ao tom de

    pele de uma pessoa, que, segundo nossa avaliação, poderia ser a pele da mãe do autor,

    Henriette Barthes. O nome do autor e a editora estão impressos em azul escuro, e o

    título e subtítulo do livro em rosa pink, o que poderia aludir a uma tatuagem corporal

    sobre a pele (que seria o fundo bege da capa). Além disso, podemos apontar uma

    relação feminino/masculino tanto no texto como na imagem, já que esta apresenta o

    desenho de um homem e uma mulher. Trata-se de uma gravura de um homem

    utilizando uma câmara clara para desenhar uma mulher. Esta figura funciona como um

    correspondente imagético do texto do título. Faz-se necessário um breve esclarecimento

    sobre o título do livro A Câmara Clara, levantada por Geoffrey Batchen no texto de

    2008, Uma Outra Pequena História Da Fotografia (BATCHEN, 2008):

    A escolha do título também merece uma análise cuidada. Uma Câmara Clara

    é um instrumento de desenho inventado antes da fotografia. Constitui-se de

    um prisma de vidro que foca a luz refletida para o seu interior de uma cena e

    de um papel colocados por baixo do instrumento, sendo que estas duas fontes

    de luz são depois fundidas na parte de trás de retina de um observador. É um

    instrumento no qual se vê a imagem apenas no olho da mente, tornando a

    experiência totalmente privada e individual. Barthes escolhe perversamente

    este termo para este aparato desprovido de câmera e este olhar-para-dentro,

    para representar um livro ostensivamente dedicado à nossa experiência

    comum de olhar para imagens de uma máquina fotográfica. Para onde quer

    que olhemos, o livro está carregado com binários deste género, onde cada

    termo é apresentado como o inverso de outro (BATCHEN, 2008).

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    Batchen aponta que esta oposição, já presente no título da obra, sugere o tom do

    que seguirá: inúmeras dualidades de termos, tanto de imagens quanto de conceitos,

    como veremos à frente. Observamos ainda que esses binários são muito dinâmicos já

    que seus termos são, ora opostos, ora complementares. Na parte posterior do livro –

    quarta capa – encontraremos outra dualidade, expressa no texto citado por Barthes:

    Imagem 2– Quarta capa da edição original

    A tradução desse texto para o português é:“Marpa ficou muito perturbada

    quando seu filho foi morto e um de seus discípulos lhe disse: ‘Dizias-me sempre que

    tudo é ilusão. E a morte do teu filho, não é uma ilusão ?´ E Marpa respondeu: ’Com

    certeza, mas a morte do meu filho é uma superilusão.´ Prática da via tibetana.”4

    O texto transcrito acima se refere à perda de um filho por uma mãe, enquanto

    que a temática do livro gira em torno da perda de uma mãe por um filho. Eis, portanto,

    presente, na capa – na pele? – a segunda dualidade do livro, já que Barthes retoma a dor

    da perda de sua mãe por diversas vezes no corpo do livro.

    Passemos ao corpo do livro: o papel das páginas internas (miolo do livro) é de

    alta gramatura – vale apontar que em nenhuma edição brasileira encontramos um papel

    tão espesso – o que possibilita a impressão em ambos os lados da página (tanto de texto

    como imagem fotográfica), sem que haja o prejuízo a visualização da outra face da

    página. Notamos também que a área das páginas é 145mm x 215mm e a dimensão das

    manchas de texto é 95mm x 130mm. As margens são todas bastante generosas5.

    4 A tradução é de responsabilidade da autora 5 Páginas da direita: margem superior 3 cm, lateral esquerda 2 cm, lateral direita 3 cm, inferior para as página da

    direita, somente com texto. As páginas da esquerda são espelhadas, isto é, margem lateral esquerda de 3cm, lateral

    direita de 2 cm, e superior e inferior de 4cm

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    Imagem 3 – Lado esquerdo: Página só fotografia só com texto e lado esquerdo (ambas sem escala)

    Nas páginas que contém fotografias, a dimensão das mesmas acompanha as

    dimensões da mancha gráfica que é de 95mm x 130mm, o que fica claro na imagem

    acima. O fato de as margens apresentarem dimensões equivalentes tanto nas páginas de

    texto quanto nas de foto revela que ambos os textos, tanto o visual e o texto escrito com

    imagens, têm, para Barthes, a mesma importância do texto escrito com palavras.

    A fonte escolhida para compor o texto foi a clássica Times New Roman. Trata-

    se de fonte serifada (facilita a leitura de textos longos) e com um corpo grande, o que

    também proporciona ao leitor bastante conforto visual.

    O que podemos concluir desta breve análise é que o projeto original do livro A

    Câmara Clara, da Editora Gallimard-Seuil, foi cuidadosamente planejado pelo autor, e a

    editora preserva sabiamente até hoje o projeto gráfico, o que dá integridade à obra e

    possibilita que tenhamos acesso, quase quarenta anos depois da primeira edição, a um

    exemplar absolutamente idêntico ao original, que data de 1980.

    A Câmara Clara: Escolha das fotos

    Roland Barthes seleciona, para a publicação em seu livro, fotos de vários períodos

    numa ordem aparentemente aleatória. Para Geoffrey Batchen, ao realizar essa operação,

    Barthes subverte a ordem cronológica das imagens fotográficas. Tal procedimento

    indica que para além da História – no seu sentido tradicional – como é apresentada, por

    exemplo, no livro The History of Photography, de Beaumont Newhall, (NEWHALL,

    1964) existe a “estória”: a narrativa própria, a história do sujeito, na qual os

    protagonistas são seus familiares e ele mesmo, que aparecem no livro de maneira muito

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    sutil, por meio de uma manobra estratégica, quase digna de romance policial, de aludir a

    fotos particulares que somente são mostradas em outro livro, sua biografia, Roland

    Barthes por Roland Barthes, de 1975.

    Ao mesmo tempo em que Barthes valoriza fotografias ditas (por ele) de amadores

    para falar sobre fotografia, ele também escolhe fotografias de artistas consagrados como

    August Sander, André Kertész, Felix Nadar, entre outros. Ora seleciona as mesmas

    fotos que estão em Newhall, ora escolhe outras obras dos fotógrafos que estão presentes

    em Newhall, ora coloca fotos do suplemento Le Nouvel Observateur Spécial Photo6,

    suplemento da revista de variedades Le Nouvel Observateur, ou mesmo de seu acervo

    pessoal.

    Em A Câmara Clara, Barthes irá perscrutar a fotografia a partir de uma seleção

    criteriosa e pessoal (segundo ele próprio) de fotografias dos séculos XIX e XX. Mas,

    como explica Batchen, talvez não se trate de um critério tão arbitrário quanto pareça

    numa primeira abordagem:

    Existem 24 fotografias ilustradas a preto e branco em Câmara Clara,

    juntamente com uma única reprodução a cores de uma imagem Polaroid pelo

    fotógrafo francês Daniel Boudinet. É interessante considerar por um

    momento esta seleção de imagens, desligadas do texto que explica o seu

    significado no livro. As ilustrações aparecem-nos em intervalos regulares e

    sem uma ordem cronológica particular. Dez delas são do século dezenove,

    sendo a mais antiga (que Barthes, erroneamente, chama de “a primeira

    fotografia”) datada de 1823 e a mais recente, incluindo o trabalho de

    Boudinet, tirada em 1979, ano em que o livro foi escrito. Assim, enquanto

    afirma, numa declaração que ficaria famosa, que faria da “medida do

    conhecimento fotográfico” apenas ele próprio (CL, 9), Barthes oferece, no

    entanto, aos seus leitores, uma amostra completa da fotografia, com exemplos

    de 1820, 1850, 1860, 1880, 1890, 1900, 1920, 1930, 1950, 1960 e de 1970.

    Uma recolha nada má, para uma seleção que pretende ser arbitrária e

    inteiramente pessoal (BATCHEN, 2008).

    Além de Barthes ter escolhido todas essas fotografias, ele também inclui – fato

    já embora deveras discutido ainda não comprovado – duas fotografias de seu arquivo

    pessoal: a Polaroid, como já vimos, e a foto de sua mãe quando criança, que denomina,

    6 NOUVEL OBSERVATEUR (1977). Spécial Photo, n.2, nov,

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    de maneira quase sorrateira de La Souche, título esse que poderia ser traduzido como “A

    Cepa”. Durante todo o livro, o autor também se refere a esta foto pelo nome de foto do

    Jardim de Inverno.

    Imagem 4 – La Souche ou Fotografia do Jardim de Inverno

    A Câmara Clara: primeiras imagens

    A primeira imagem do livro marca presença logo de início: trata-se de uma

    pequena gravura de traços pretos e fundo branco, que aparece sobre a parte inferior da

    pele, digo, capa do livro. Tal gravura representa o uso de uma câmara clara. Trata-se de

    uma gravura de Vincent Chevalier, de 1834, que também está no livro The History of

    Photography, de Beaumont Newhall7.

    Imagem 5 – Reprodução da gravura nas dimensões em que a mesma se encontra na capa do livro

    Esta imagem, embora apresente dimensões reduzidas (ocupa um pequeno

    quadrado de 35mm de lado), é bastante significativa, já que, além de ser a representação

    física do objeto câmara clara – ou camera lucida –, também remete à operação que o

    autor irá realizar ao longo do livro. É como se Barthes, representado pelo o homem da

    gravura, ao olhar para o objeto de desejo mãe/fotografia à sua frente – corresponde à

    7 Em ambas versões: de 1964 e 2012

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    mulher da imagem – através da mediação do artefato da câmara clara, fosse escrever,

    desenhar, anotar, delinear, traduzir o que é este “objeto”: – a Fotografia, praticamente

    um nome próprio. Esta imagem acena ao leitor com um tom sutil de metalinguagem: ela

    corresponde, em termos de imagem, à complexa operação que Barthes efetua ao longo

    de todo seu livro: perscrutar a fotografia através de um olhar interior, introspectivo.

    Partiremos agora para a primeira imagem do interior de A Câmara Clara. Trata-se de

    uma fotografia retirada do arquivo pessoal do autor. É uma fotografia realizada com

    uma câmera Polaroid na qual domina o tom azul esverdeado, realizada pelo amigo de

    Barthes, Daniel Boudinet, em 1979.

    Imagem 6 – Polaroid, Primeira foto do livro

    Neste caso, não há comentário do autor. Barthes simplesmente insere o título da

    foto, numa posição inferior na página, mas que não chega a alcançar o pé da pagina

    (como ocorrerá na foto seguinte), juntamente com o autor, seu amigo Daniel Boudinet.

    Além disso, o título corresponde à marca de um fabricante que se tornou sinônimo desse

    tipo de foto. É curioso como logo após a imagem de uma gravura, que poderíamos

    considerar como um dos ancestrais da fotografia (por conta do princípio de

    sensibilização de chapas metálicas), Barthes introduz uma imagem de 1979, realizada

    por uma câmera Polaroid analógica – câmera que realiza a revelação química

    instantânea da foto – muito usual no período.

    A fotografia sugere, segundo Samain, a entrada num recinto misterioso, no

    mundo do imaginário, ou ainda na câmara obscura, espécie de caixa preta com um

    pequeno orifício que é o princípio básico de toda câmera fotográfica – da mais

    rudimentar até as digitais – como o próprio autor aponta no seguinte trecho:

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    A primeira [fotografia] abre, simbolicamente, o livro. É uma polaróide datada

    de 1979, que realizou Daniel Boudinet, amigo de Barthes. O interior do

    apartamento de Barthes, ambiente reservado, aconchegante, um tanto secreto

    [...]. Ambiente um tanto inquietante desse espaço quase fechado: atrás dessas

    cortinas, dessa alcova, dessa câmara obscura, o que estava por acontecer, o

    que havia de acontecer luminosamente? Nada se sabe ainda. Apenas uma

    pequena abertura, uma fenda, uma concha amorosa e benevolente, um

    triângulo secreto, um triângulo de ouro e luz, aberto a um novo olhar sobre

    signos incertos do mundo (SAMAIN, 2005, p. 123).

    É curiosa a oposição que há entre esta fotografia e a imagem da capa do livro

    original, a saber: trata-se de um quarto escuro, espécie de contraponto à primeira

    imagem da capa externa do livro, reproduzida abaixo, de um dispositivo de desenho

    largamente utilizado antes do advento da fotografia, a câmara clara. A camera obscura,

    termo em latim que significa quarto escuro em português, também é o nome do local

    onde se realiza a revelação e ampliação de placas fotográficas e negativos. Poderíamos

    montar o seguinte esquema de comparação entre as imagens:

    Câmara clara (imagem da capa) X Câmara obscura (primeira foto do livro).

    Objeto que permite ver X véu, passagem estreita, alcova que esconde.

    Olivier Beuvelet, no texto Image-Fente et indicialité photographique chez

    Barthes, aponta que como esta imagem funciona junto com a epígrafe “Em

    Homenagem a O Imaginário de Sartre”. Assim, esta foto seria uma imagem-fresta

    (image-fente). Ele afirma ainda que desde a abertura do livro, “tudo já está aí,

    formulado visualmente.” (BEUVELET, 2013).

    O autor afirma ainda que a imagem-fresta

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    Exprime visualmente o desejo de uma imagem que assombra o ensaio e a

    reflexão de Barthes aqui...o luto da mãe, afeto por um rastro luminoso,

    passagem real da luz, presença de um escondido (de um longínquo?) que

    entra como uma luz vinda de um alhures invisível, ou ao menos velado...Esta

    imagem seria uma teoria visual da fotografia tal que a semiologia a

    concebe.[...] poderíamos dizer que o que esconderia esta imagem-tela8 que

    abre como um negativo seu ensaio sobre a fotografia que seria seu

    desenvolvimento, seria a famosa foto do jardim de inverno onde não se vê

    sua mãe fotografada9 na idade de 5 anos ao lado de seu irmão de sete anos,

    que escolhe não mostrar (BEUVELET, 2013).

    Ou seja, esta imagem-fresta, imagem-tela esconderia outra imagem também

    relacionada com sua mãe, a fotografia do Jardim de Inverno10

    . Beuvelet continua: “A

    imagem-fresta permite esclarecer a relação com a origem, isto é com objeto

    representado, na representação, e como toda a imagem é ao mesmo tempo retorno e

    corte em relação à sua origem” (BEUVELET, 2013). Fontanari também corrobora essa

    opinião, ao afirmar:

    Ora, se partirmos dessa concepção de fragmento, poderíamos dizer que essa

    seria talvez a justa definição para a fotografia, uma vez que o que a

    caracteriza de fato é uma espécie de golpe ou corte de espaço e tempo ou, em

    outras palavras "uma fatia única de espaço-tempo, literalmente cortado a

    vivo" (Dubois, 2008, p.161). Isso é, “a imagem-ato fotográfica interrompe,

    detém, fixa, imobiliza, destaca, separa a duração, captando dela um único

    instante. Especialmente, da mesma maneira, fraciona, levanta, isola, capta,

    recorta uma porção de extensão” (ibid). (FONTANARI, 2015).

    É como se toda imagem – tal como a Polaroide de Boudinet – fosse uma

    imagem-fresta (Beuvelet) ou imagem ato (Dubois). Essa qualidade forneceria portanto,

    uma qualidade de continuidade, de movimento, de ação à tão pretensamente “estática”

    imagem fotográfica.

    Após esse portal, entrada, véu, passagem estreita para um ambiente interno,

    escuro e íntimo, há uma fotografia, ao contrário, produzida em ambiente externo.

    Apontamos para uma abertura em direção a uma grande variedade de sensações.

    8 tradução livre de image-écran 9 tradução livre de saisie 10 Fotografia que encerra o grande mistério de A Camara Clara: teria ela sido esta publicada no livro ou não?

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    Imagem 6 – Segunda foto do livro

    Comentário de Barthes11: “De Stieglitz só me encanta a sua foto mais conhecida....”

    Notamos, primeiramente, que esta foto escolhida por Barthes também está

    presente no livro de Newhall, The History of Photography, (edição de 1964). Trata-se

    de uma fotogravura12

    de 1893 de Alfred Stieglitz. Trata-se de uma imagem bastante

    enigmática. O vapor ocupa grande parte da cena. Trata-se de uma fotografia complexa,

    na qual os sentidos se abrem, já que ela sugere muitas coisas: a) movimento e ruído dos

    cavalos, b) o odor de cavalos, c) sensação de frio e calor, pois há neve no piso, e há

    vapor saindo do corpo e da boca dos cavalos, d) é como se houvesse várias imagens em

    uma só. Além disso, esta imagem poderia certamente ser um fotograma de um filme,

    analogamente às imagens analisadas por Barthes em seu texto de 1970, O terceiro

    sentido [Le troisième sens]. Nesse texto, Barthes se utiliza de fotogramas de O

    Encouraçado Potemkin13

    para expor os conceitos de óbvio e obtuso, que ele criou para a

    fotografia, que por sua vez apresentam alguma semelhança com os conceitos centrais de

    A Câmara Clara: de punctum e studium. Tomamos a opção de não tratar de tais

    conceitos neste texto, já que estes já foram especificamente abordados pela autora, em

    sua dissertação de mestrado14

    .

    Por fim, ao escolher as três primeiras imagens do livro, Barthes termina por –

    além, é claro, de nos brindar com fotografias cheias de alusões – realizar um apanhado

    de várias técnicas. A saber: gravura que – conforme apontado acima – é um dos

    ancestrais da fotografia; uma Polaroid, – processo técnico analógico, pontual de um

    11 Que no livro se encontra logo abaixo da fotografia

    12 https://www.metmuseum.org/toah/works-of-art/58.577.11

    13 O Filme de Sergei Ensenstein de 1925 que retrata a Revolução de 1905 na Rússia Czarista.

    14 Contessa, Valéria Berti. Roland Barthes e a Câmara Clara: um novo estatuto para as imagens. 2014. 121 f.

    Dissertação (Mestrado em Comunicação) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2014.

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    momento específico – e, finalmente a segunda fotografia: uma fotogravura, processo

    que antecedeu o processo do negativo.

    O autor como curador

    Resta-nos ainda abordar uma questão trazida à tona por Batchen. Diz ele:

    “Certamente, ao fazer de si mesmo um elemento retórico tão central no seu olhar sobre

    a fotografia, Barthes torna-nos conscientes do seu papel autoral, como escritor e como

    curador”. (BATCHEN, 2008).

    O caráter titubeante, de descontinuidade e fragmentação em A Câmara Clara, é

    facilmente identificável ao longo de toda a obra. Descontinuidade, conflito, hesitações.

    Talvez tudo isto desoriente um pouco o espectador-leitor ao longo do livro. Contudo

    essas operações não confundem o leitor, mas, ao contrário revelam que, por trás de

    tantas certezas aparentes, o autor-produtor também oscila, titubeia, tergiversa, e, ao fim

    e ao cabo, termina por construir um texto denso, sólido e coerente, sobre o qual tanto se

    discutiu, e ainda se discute. Ademais, esta obra permanece ainda intrigante, inovadora e

    atual – mesmo após quase 40 anos depois de sua publicação. O livro nos conduz a

    conceitos centrais da fotografia que não serão superados tão cedo.

    Além disso, como nos aponta Batchen, Barthes, ao se expor, seja ao falar de seus

    sentimentos, tanto quando trata da saudade de sua mãe e de seu luto, quanto quando

    mostra a fotografia de sua mãe criança com seu tio Binger (trata-se muito

    provavelmente da fotografia que ele intitula La Souche, embora se refira a ela por A

    Foto do Jardim de Inverno), ou criando uma espécie de mistério, jogo de esconde-

    esconde ou até mesmo quando mistura a ordem cronológica e linear das fotos escolhidas

    para o livro, assume, em relação à sua obra, o papel de autor-curador. Essa operação se

    desdobra, de certa maneira como uma sugestão para nós, leitores. Serve de indicação

    para sua obra com uma postura ativa e criativa, igualmente como curadores.

    Considerações finais

    Este artigo buscou, por um lado, provocar a curiosidade do leitor e motivá-lo a

    abordar (ou, retomar) o livro A Câmara Clara de Roland Barthes de um novo ponto de

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    vista, como aponta Samain, isto é, partir de suas fotografias, seguindo as pistas do

    caminho de um “outro” texto: da narrativa visual.

    Além disso, este trabalho teve o propósito de, através do olhar de Batchen,

    revelar a operação que Barthes realiza como curador das fotos de seu livro. Batchen

    também sugere, por extensão, que adotemos, diante de uma obra, uma postura mais

    ativa. É oportuno lembrar que estamos nos referindo a um contexto dos anos oitenta do

    século passado. E que hoje, essa função de autor-curador nos parece tão corriqueira.

    Referências

    BARTHES, R. A Câmara Clara: nota sobre a fotografia. Lisboa: Edições 70, 2009.

    _______ A Câmara Clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

    _______ La chambre claire: Note sur la photographie. Paris: Éditions du Seuil, 1980.

    _______ O Terceiro Sentido. In: O Óbvio e o Obtuso, Lisboa: Edições 70, 1984.

    _______ Roland Barthes by Roland Barthes, translated by Richard Howard. Los Angeles:

    University of California Press, 1994.

    _______ Roland Barthes por Roland Barthes, tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo:

    Estação Liberdade, 2003.

    _______ Sur la photographie. In: OEuvres complètes Roland Barthes vol III, p. 1233. Paris:

    Editions du Seuil, 1995.

    BATCHEN, G. Photography Degree Zero. Cambridge: The MIT Press, 2011.

    DUBOIS, P. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 2008.

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    FONTANARI, R. Roland Barthes e a revelação profana da fotografia. São Paulo: EDUC,

    2015.

    NEWHALL, B. The History of Photography. New York: The Museum of Modern Art, 1964.

    NEWHALL, B. The History of Photography. New York: The Museum of Modern Art, 2012.

    SAMAIN, E. Um retorno à Câmara Clara: Roland Barthes e a antropologia visual. In: O

    fotográfico. São Paulo: Hucitec, 1998.

    Referências da internet

    BATCHEN, G. Uma Outra Pequena História Da Fotografia. 2008.

    Disponível em: .

    Acesso em: 5 Jul. 2018.

    BEUVELET, O. Image-fente et indicialité photographique chez Barthes…

    Disponível em: < http://culturevisuelle.org/parergon/archives/1794

    Acesso em: 1 Nov. 2013.

    FONTANARI, R. Roland Barthes e a fotografia.

    Discursos fotográficos, Londrina, v.6, n.9, p.53-76, jul./dez. 2010

    Disponível em: