CANDIDO Antonio - Notas de Crítica Literária - T. S. Eliot

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    N TA DE CRTICA LITERRIA

    Nota prvia

    Os artigos transcritos abaixo por sugesto de Augusto Massi foram( alvo o ltimo) publicados em janeiro de 1945 no jornal Folha da Manh,de So Paulo, no qual eu era o que se chamava "crtico titular", encarrega-do de fornecer semanalmente um "rodap", nome que se dava ao que antesfra o "folhetim" e ocupava a parte inferior da pgina de um lado ao outro.Os jornais maiores tinham o seu "crtico titular", cujo rodap era designa-do por um ttulo geral invarivel, que aparecia antes do ttulo varivel decada artigo. Alguns rodaps ficaram ilustres, como o de Tristo de Athayde(Alceu Amoroso Lima) n 'O Jornal, do Rio, "Vida literria"; ou o de PlnioBarreto n 'O Estado de So Paulo, "ltimos livros"; ou o de lvaro Lins noCorreio da Manh, do Rio, "Jornal de crtica". O meu era denominado "No-tas de crtica literria", primeiro na Folha da Manh, de janeiro de 1943 ajaneiro de 1945; depois, no Dirio de So Paulo, de setembro de 1945 a fe-vereiro de 1947.

    Estes artigos sobre Eliot so modestos e tm cunho deliberadamen-te informativo, como o leitor ver. Tratava-se de divulgar o poeta, que entocomeava a ser conhecido pela minha gerao. O meu intuito era continuardivulgando poetas ingleses, tanto assim que cheguei a rascunhar um arti-go sobre os que naquele tempo eram uma espcie de "quatro grandes": CecilDay Lewis, Louis McNeice, Wystan Hugh Auden e Stephen Spender. Masno fim de janeiro de 1945, coincidindo com o Primeiro Congresso Brasilei-ro de Escritores, houve uma briga no jornal e eu me demiti com outroscompanheiros, interrompendo a srie projetada, de maneira que o quinto eltimo artigo no chegou a ser publicado e aparece aqui pela primeira vez.Os artigos sobre Eliot foram os ltimos que publiquei na Folha.

    Vistos hoje, so bem irrelevantes, pois ge l para c Eliot ficou arqui- Iconhecido no Brasil e parece que at j passou de moda. Eu li The Waste (If. ~( ILandnuma antologia em 1943 e fiquei fascinado. Sobre o poeta escrevi esses Trfcrodaps, fiz uma srie de palestras no Colgio Livre de Estudos Superiores J::(.m 194-6e, em 1947, publiquei na Revista Brasileira de Poesia um ensaio de ~cunho menos didtico, recolhido em 1959 no meu livro O observador liter- t-!:~)rio. A transcrio destes artigos superados tem interesse apenas histrico,

    para quem quiser estudar a voga dos poetas ingleses no Brasil meio sculoatrs. Na minha gerao, em So Paulo, antes de lermos Eliot pudemos ter

    ~ notcia dele por meio de um artigo de Jos Eduardo Fernandes, publi,cadoUf~ no nmero 4 da revista Clima em setembro de 1941, no qual dizia: "E en-'{I< ' to que surge a figura dominadora na moderna poesia inglesa, aquela cuja

    ~ff>.S'lj influncia todos reconhecem e cuja contribuio foi essencial para o esta-belecimento dos princpios fundamentais da poesia moderna, pelo menoscomo os concebem os contemporneos - T.S. Eliot". Jos Eduardo Fernan-des era umjovem mdico muito versado em literatura inglesa. Pela mesmapoca, Vinicius de Moraes falou em Eliot numa conferncia que fez em SoPaulo na Faculdade de Direito, e informou que entre os jovens com os quaisconvivera no tempo em que foi bolsista do Conselho Britnico em Oxford,de 1938 a 1939, havia trs correntes de opinio: para uns, o maior poetaera Yeats; para outros, Eliot; um nmero reduzido achava que era Walterde Ia Mare. Os meus artigos se inserem nessa fase de tacteio, quando qual-quer informao bem-vinda. Concordando que fossem reproduzidos comodocumento de poca, no fiz por isso mesmo qualquer retoque, deixandoinclusive os erros de traduo.

    Quero finalizar registrando que no comeo dos anos de 1920 SrgioBuarque de Holandaj estava familiarizado com Eliot e em 1924 publicouna revista Esttica uma nota onde falava dele. Nos anos de 1950 me deu depresente a terceira edio de Poems, de 1928, e a primeira de Ash Wednesday,de 1930. Srgio sabia tudo.

    A. C.

    POESIA INGLESA

    "Considero, sem nenhum esprito departi-pn'snacional, que um dosmelhores seno o melhor conjunto de poesia deste sculo", disse o sr.Vinicius de Moraes da poesia brasileira, no pequeno e magnfico resumoque dela fez para o nmero 96 da revista argentina Sur. Se no temos osgrandes vultos, diz ele, como Ungaretti, Rilke, Stefan George, Yeats,GarcaLorca, Jos Rgio, temos em compensao uma quipe mais vasta e homo-gnea - um bloco mais slido e mais extenso.

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    possvel que o sr. Vinicius de Moraes tenha razo. No h dvidaque a nossa poesia contempornea iguala a norte-americana e a portugue-sa, supera a italiana e a ibero-americana.Mas restam a francesa, a espa-nhola e sobretudo a inglesa. De qualquer modo, j no pouco podermosfalar da nossa de igual para igual em relao s outras. E o fato tanto maisextraordinrio quanto somos um povo de pouca imaginao e pouca capa-cidade potica. S 9~Lllgn_l!2S.9B_tinJ:lIl}--insistirJ}.aim-gin'!o .9bra-sile~.o, confu~jnd~m ela a~E.~l~tiyaexc.itabilici~~ meQt.'ll.-9.uecostur~_.~~ss~lta~_l].~_p'uberdad~_~orr~ndo no fim da a_~olescncia.H muitosanos, no me lembro em qual dos seus ensaios, o sr. Gilberto Amado apon-tava com justia o carter imediatista e pragmtico da inteligncia brasi-leira, pouco afeita abstrao, atividade desinteressada do esprito e todavoltada para o culto das chamadas profisses liberais. Questo de necessi-dade, dizia o sr. Gilberto Amado; atitude necessria num povo que tem pelafrente tarefas urgentes de construo. No me aventurando a explicar, deixoa responsabilidade ao ensasta e limito-me a verificar o fenmeno.

    Sem imaginao e sem o sentido profundo do jogo das idias e dasimagens, seria de esperar que o nosso acervo potico fosse mesquinho ouirrelevante. A, porm, entra o milagre, pois todos ns sabemos que assimno . A nossa poesia no s faz boa figura, como apresenta um progressoconstante. A ponto do sr. Vinicius de Moraes poder hoje em dia fazer aobservao citada. Temos, sem dvida, uma boa meia dzia de poetas deprimeirssima ordem e mais uma dzia que lhes vem logo em seguida. Nose pode exigir mais de um momento literrio.

    Comparada no s com a nossa, como com muitas outras, a literatu-ra inglesa leva a vantagem inestimvel de uma tradio potica - talvez amais slida do Ocidente - que mantm uma atmosfera densa de estmulo florao do talento. O recente concurso entre os homens do Oitavo Exr-cito uma prova significativa do lugar que apoesia ocupa entre o povo ingls.D a impresso de ser uma necessidade vital, uma atividade de todos osmomentos, um instrumento de equilbrio e definio na vida. Em meio aonmero incontvel de poetas mnimos, se alteia um bloco de poetas meno-res, que serve de plataforma a alguns poetas maiores, dentre os quais seelevam periodicamente os poetas mximos. No sculo presente a Inglater-ra j viu dois grandes - Yeats (1865-1939) e Eliot (1888) - e certamen teuma vintena de talentos apreciveis: George Russell, Walter de Ia Mare,Wilfred Owen, John Masefield, os Sitwell, Herbert Read e os recentes W

    H. Auden, Cecil Day Lewis, Louis MacNeice, Stephen Spender, DyJanThomas, Kenneth Allott etc. Justamente sobre os ltimos que pretendodizer alguma coisa ao leitor nos prximos artigos. Ao que me parece, sopouco conhecidos no Brasil fora dos grupos diretamente interessados empoesia inglesa. As nicas referncias que tenho lido sobre alguns deles sodevidas ao sr. Eugenio Gomes ("D. H. Lawrence e outros", 1937), ao sr.Jos Eduardo Fer nandes (Clima, nmero 4, 194-1), e ao sr. Otto MariaCarpeaux (Origens efins, 1944). E apenas o segundo se estendeu um poucomais. Os outros limitaram-se a mencionar.

    No entanto, poucos poetas merecero tanto carinho quanto os mo-dernos ingleses, a gerao aparecida por volta de 1~30 e firmada com apublicao coletiva New Signatures( 1932). Gerao quase toda com tendn-cias esquerdistas, que movimentou a dcada passada e contribuiu com umasoluo original e feliz para o famoso problema da poesia participante. Emseguida a este grupo, mais ou menos liderado por Auden, aparecem osnovssimos, nascidos entre 1910 e 1920, que rejeitam em grande parte assugestes anteriores e se metem mais fundo na poesia do inconsciente(Dylan Thomas, Nicholas Moore, Henry Treece etc.), buscam um novoequilbrio intelectual (Geoffrey Grigson, Frederic Prokosch, KennethAllott), sem todavia terem ainda conseguido o nvel do movimento ante-rior. Sem terem, sobretudo, conseguido esta coisa rara, que s de quandoem vez acontece numa literatura, e que a caracterstica mais bela do gru-po de Auden: a coeso, a participao de ideais comuns, a organicidade dospontos de vista. Para encontrarmos fenmeno semelhante na poesia inglesatemos que subir at os grandes romnticos e, mais ainda, aos metafisicosseiscen tis tas.

    Acima, porm, dos novos; acima dos que os precederam (os Sitwell,Siegfried Sassoon, Edmund Blunden, Wilfred Owen, Herbert Read,Richard Church etc.), continua a se elevar a figura impressionante de T. S.Eliot, mestre e inspirador. Este norte-americano que se tornou o poetaingls mais importante do sculo, est a caminho dos sessenta, e a sua in-fluncia permanece to viva, a sua obra continua to rica como quandosurgiu para a glria, h vinte e dois anos, com o famoso poema The WasteLand. Falar em poesia inglesa moderna em boa parte falar dele, discutiros seus poemas e a sua crtica.

    Propondo-me consagrar ao assunto uns trs ou quatro artigos, re-comendo vivamente aos entendidos que se afastem, porque nada tero a

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  • aprender. Limitar-me-ei ao ponto de vista informativo, usando o material mo. Darei as indicaes bibliogrficas e biogrficas ao meu alcance, re-produzindo quanto ao mais a opinio da crtica inglesa e norte-americanae insinuando, aqui e acol, com a devida vnia, a minha colher torta. Creiofazer trabalho til, porque, como se sabe, na aluvio de livros de lnguainglesa despejados sobre ns ultimamente, os poetas modernos no com-parecem. Quem quiser l-I os tem que lhes mandar buscar as obras e sairrastreando antologias.

    Me estenderei mais sobre os quatro ases - Auden, Day Lewis, Spender,MacNeice - j por conhec-los melhor,j por serem realmente os que maisinteressam no movimento recente. Para finalizar, falarei um pouco de T. S.Eliot.

    ***Antes, porm, umas reflexes preliminares. H vantagem em nos

    metermos por uma poesia estrangeira adentro? Creio que sim.Uma das maiores experincias intelectuais e afetivas que se pode ter

    a leitura de uma poesia em lngua estrangeira. certo que o sentimentocompleto da poesia s dado queles que nasceram para a lngua em queela escrita. No obstante, o treino constante e o esforo genuno permi-tiro a qualquer estrangeiro de sensibilidade penetrar nas belezas de umapoesIa.

    Mas no esperemos que a nossa emoo seja sempre de naturezaanloga do nativo. Tomemos o exemplo bsico do valor das palavras. Aspalavras so carregadas tanto de afetividade quanto de significado prtico.Se este facilmente apreensvel pelo estrangeiro, o primeiro tende a serprivilgio do nativo. Depende duma familiaridade de toda a vida, baseia-senas emoes da infncia, na prpria tradio cultural do povo. Razes pe-las quais o leitor estrangeiro, por mais fino e sensvel que seja, talvez per-manea para sempre fechado significao mais ntima de uma poesia. Ora,neste ponto entra em jogo um mecanismo interessante, que o da substi-tuio. Raramente o estrangeiro versado numa lngua tem conscincia dasua incapacidade vamos dizer simptica em relao aos vocbulos. E, noh dvida, reagir a seu modo ao apelo emocional das palavras, reputandojusta e verdadeira a sua reao, uma vez que ela lhe permite sentir-se real-mente em estado de poesia. E talvez tenhamos de concluir que a nica

    maneira de um estrangeiro apreciar, por exemplo, a poesia inglesa, de-formar o sentido profundo a fim de poder adapt-Io aos seus moldes afetivos.E desta deformao podem resultar emoes estranhas e agudas como oraccourci d'abime de Cousin ... Na realidade, a distoro a que submetemos

    [ejJ.rr;. um texto potico estrangeiro difere apenas em intensidade da que aplica-~ mos aos versos da nossa prpria lngua, nem seml2re lidos e sentidos como

    ~f deveriam ser. .Um poema uma coisa delicadssima. O valor das palavras, o eqUI-

    lbrio dos sons, a cadncia, as imagens requerem uma ateno bem maiordo que a requerida normalmente pela prosa. Por isso que se lem mais osgrandes prosadores do que os grandes poetas. E por isso que estamosexpostos a mal-entendidos muito mais graves do que na prosa. Em poesia,o mal est em que um erro de sensibilidade pode ter nascimento de umacircunstncia quase impondervel: um acento mal distribudo, uma cadn-cia mal seguida, uma imagem mal interpretada. Assim, a tarefa principal ebsica do leitor de poesia estrangeira procurar a reao justa. Deve dis-pensar uma ateno ainda maior do que a requerida pela poesia da sua ln-gua natal. Em compensao, adquirir, graas a esta disciplina mental, umaacuidade nem sempre usual entre os leitores comuns de poesia. E o resul-tado remoto deste exerccio estimulante um aumento da capacidade desentir a poesia da sua prpria lngua. Com efeito, somos freqentementelevados a subestimar o nosso vocabulrio, devido ao desgaste motivado pelouso cotidiano e as implicaes vulgares. Em seguida ao esforo desusadoque fazemos para poder apreciar devidamente uma poesia estrangeira,voltamos por assim dizer enriquecidos nossa poesia, mais capazes de senti-Ia bem, mais capazes do esforo permanente, requerido por quase toda poesiaque se preza. Acrescentando a isto o mundo novo que se abre ao nossoesprito por meio do verso estrangeiro, sobretudo quando ele da qualida-de do ingls,julgo poder retomar o que disse, afirmando que poucas expe-rincias so to fecundas para o nosso esprito quanto o contato com ospoetas de outras lnguas.

    NOTA: O leitor interessado em poesia inglesa ler com proveito, guisa deintroduo, um livrinho precioso: Gurrey, The AppreClatlon of Poetry. OxfordUniversity Press, segunda edio, 1938.

    (Folha da Manh - 24/12/194-4)

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    Thomas Stearns Eliot nasceu na cidade do bluesfamoso, Saint Louis,em 1888, mas sua famlia era toda de Nova Inglaterra. At 1915, isto , atos 27 anos, a vida de Eliot um longo estudo. Formou-se em Harvard,estudou filosofia e literatura francesa na Sorbonne, completou os estudosfilosficos em Harvard, onde estudou lnguas orientais e foi nomeado as-sistente da Seo de Filosofia. Em 19 J4. ganhou uma bolsa para a Alema-nha, onde ficou at o incio da Primeira Grande Guerra, continuando osestudos de filosofia em Oxford. Casado com uma inglesa, fixou residnciaem Londres, onde mora at hoje. Foi professor durante algum tempo e depoisempregado de banco. Fundou em 1922 a famosa revista The Crzterzon, eassociou-se depois casa editora Faber & Faber, que atualmente dirige. Em1927 Eliot naturalizou-se cidado ingls e converteu-se Igreja Anglicana.Tem ensinado periodicamente em universidades inglesas e norte-america-nas. (Biografia baseada em Nelson e Sanders: Chief Poets of England andAmerzca, MacMillan, 1943).

    Embora conhecido por seus ensaios e pelos livros de versos Prufrockand other observations( 1917) e Poems( 1919), Eliot s ficou famoso em 1922,com a publicao, na Amrica do Norte, de The Waste Land, que j foi cha-mado o poema capital do sculo. Depois de The Waste Land escreveu maisquatro poemas de certa extenso: Ash Wednesday (1930), Burnt Norton(1936), East Coker( 1940) e The Dry Salvages (1941), alm dos coros da peaThe Rock (1934) e de dois fragmentos: Sweeney Agonlstes: ragments cif anAristophanic melodramma (1932), Coriolan (1935). Excluindo o terceiro e oquarto, os demais se encontram nos Later Poems. 1925-1935 (Faber & Faber,Londres, 1941). Ao todo, a sua obra potica, excluindo a tragdia Murder inthe Cathedral (1935), cabe folgadamente em 200 pginas de formato pequeno.

    ***

    ~poesia de Eliot cheia d; pensamento e de implicaes sutilssimas.Quem gostar de poesia "bonita" e fcil deve procurar outra zona ou esfor-ar-se por educar o gosto.

    Alguns temas, se no a condicionam, pelo menos serpeiam constan-temente no seu subsolo e explodem de espao a espao: a falta de sentidoda agitao moderna, desprovida de crenas diretoras; a inanidade do des-

    tino individual, em presa desta agitao; a vulgaridade do homem moder-no; a angstia do tempo; a aproximao de Deus; a viso sarcstica da vida.So temas relativamente banais, como todos os temas, e a poesia comeamenos na sua escolha do que no seu tratamento. Os poemas do grupoPrufrock, sobretudo o magistral "The Love Song of 1.Alfred Prufrock" e"Portrait of a Lady", giram em torno da pessoa do poeta, da sua perplexi-dade, da conscincia do seu ridculo, da sua dor ante a banalidade seme-lhante. The Waste Land ataca com todos os instrumentos o problema daesterilidade do mundo moderno. So quatrocentos e poucos versos extre-mamente nutridos de cultura e de significado simblico. O prprio autorsentiu necessidade de juntar-lhes um apndice explicativo, esclarecendoreferncias e aluses. John Strachey, que analisa o poema de um ponto devista estreito, indicando apenas o seu carter social de expresso de umapoca, diz espirituosamente que a ostentao de cultura demonstra bemque Eliot norte-americano, espcie de parvenu intelectual. Mas acrescen-ta logo que s a um norte-americano seria possvel a constatao implac-vel da aridez moral e afetiva da Inglaterra moderna (v. The coming strugglefor power, Modern Library, 1935). O que verdade, porm, que sem osistema de aluses, Eliot teria sido obrigado a escrever, no quatrocentos,'mas quatro mil versos, e perderia o carter magnificamente condensadoque assegura o impacto emocional do poema. "Nas mos de Mr. Eliot", dizr. A. Richards, "a aluso um processo tcnico de compre,JSo. The WasteLand eqivale em contedo a um poema pico. Sem o processo emprega-do, teriam sido necessrios doze livros." (Principies cif Literary Criticism,Regan Paul, stima edio, 1944}

    Esta tcnica das citaes poderia ser chamada de expresso poticade segundo grau. Expresso potica de primeiro grau seria, num exemplogrosseiro, eu falar, num poema, das emoes despertadas em mim pelacontemplao do morro do Jaragu: sentimento de imortalidade, aspira-o do infinito etc. Gastaria nisso uns bons cinqenta versos. Expressode segundo grau seria encaixar no poema, para dizer a mesma coisa, qua-tro ou cinco versos, ou um s verso do "Hino tarde" de Gonalves Dias.Ao toque da citao, meu esprito receberia, de um s golpe, toda a cargaemocional deste grande poema, e me dispensaria de escrever os cinqentaversos reduzindo-os a oito ou dez. E o maior efeito ainda no seria este. O,mais importante que o verso de Gonalves Dias no teria apenas umatonalidade afetiva, mas traria implicadas em si todas as associaes poss-

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    veis a propsito de romantismo, sentimento de natureza dos romnticos,zeitsgeist, weltanschaungetc. Funcionaria como uma pilha eltrica altamen-te carregada, um sistema que aumentaria a tenso do meu poema e me pou-paria metade do tamanho, poupando ao leitor a metade do trabalho e au-mentando-lhe a emoo. Este sistema, que propus chamar expresso po-tica de segundo grau, foi lanado em larga escala por Eliot. O seu grandedefeito est em que nem todas as citaes despertam no leitor a reaoconveniente e ficam engastadas no poema como um ornato sem grandealcance. Da a necessidade do leitor "preparar" seriamente o terreno paraa compreenso. O resultado o mais fecundo possvel, abrindo-nos as por-tas para o sentimento da emoo intelectual, geralmente preterida nospoetas pela simples emoo afetiva.

    Veja-se o trecho seguinte, vertido prosaicamente. O poeta faz entrarem cena pela primeira vez a cidade de Londres:

    Cidade irreal,! Sob a nvoa baa da madrugada de inverno,! A multidoescorria pela Ponte de Londres, tantos,! Nunca pensei que a mortedestrusse a tantos.! Suspiros,curtos e espaados,se elevavam,! E cada umfixava os olhos na ponta dos ps.

    Os dois primeiros versos aludem, segundo nota do autor, a "Les SeptVieillards", de Baudelaire. Transportamo-nos imediatamente para a atmos-fera fantasmal e brumosa dafourmillante cit, por cujos tentculos o gran-de poeta, precursor de Verhaeren, fazia escorrer os cortejos de vcio e demisria, de desespero e de sarcasmo que constituem os 'Tableaux Parisiens".Sabemos, ento, que os homens vistos por Eliot na Ponte de Londres Ihesparecem fantasmas grotescos, iguais uns aos outros, reproduzindo-se semcessar em partos monstruosos, todos iguais, montonos na sua misria (Sonpareille suivait: barbe, oeil, dos, bton, loques,! Nul trait ne distinguait, du mmeenfer venu,! Cejumeau centena ire, et cesspectres baroques/ M archaient du mmepas vers un but inconnu). Sabemos que a nvoa, o brownfog rif a winter dawn igual ao brouillard sale etjaune de Baudelaire, e que o poeta, como este, jtem a alma cansada e os nervos gastos: Je suiuais, roidissant mes nerfs commeun hros/ Et discutant avec mon me dj lasse.A referncia, portanto, crioua atmosfera, definiu os homens e o estado d'alma do poeta. O quarto verso- I had not thougth death had undone so many - precisa a concepo a res-peito dos homens que se agitam na cidade tentacular: Dans lescanaux troitsdu colossepuissant. A nota lacnica do autor, "Dante's Inferno, IlI, 55-7",

    nos leva Divina Comdia, quando Dante se espanta da quantidade de con-denados: E aps, to vasta multido seguia,! Que destrudo houvesse tanta gente/A morte, acreditado eu no teria (trad. Xavier Pinheiro). Assim, o au tor nun-ca imaginara que a multido dos modernos condenados, vulgares, padro-nizados, com os olhos fixos nas pontas dos ps, fosse to enorme na suadanao. Para ele, pois, so como almas penadas, mortos para a vida genu-na, atirados na "terra estril" de Londres. E o quinto verso amplia o dra-ma, assimilando a sua agitao v e triste aos suspiros dos condenados docrculo primeiro. Sighs, short and infrequent, were exhaled o verso inglscuja fonte o autor indica: "Inferno", IV, 25-7. Escutei: no mais prantolastimeiro/ OUV1~'suspiros s, que murmuravam.! Vibrando do ar eterno o espa-o inteiro (trad. Xavier Pinheiro). So os condenados que no choram, massuspiram. o limbo, manso dos que sofrem por no terem recebido batis-mo, e que pressentem a beatitude sem nunca poder atingi-Ia, por um vciocongnito, superior sua vontade. Como os vultos que o poeta v no foglondrino, semimortos, sem princpios fortes que lhes condicionem e digni-fiquem a existncia, nem frios nem quentes, mas mornos, como est noApocalipse. E esta gente toda vai como um rebanho, olhando a ponta dossapatos.

    Unreal aiy,/ Under the brownjog of a winter daum / A crowdflowed over LondonBridge, somany,l I had not thougth death had undone so many./ Sighs, short andirfrequent; were exhaled.r And each manfixed his eyes before hisfiet.

    Deste modo, as aluses concorrem para o efeito do verso. No ilus-tram, mas so o prprio material com que Eliot cria a atmosfera. Os ho-mens que ele v na Ponte de Londres no so os velhos de Baudelaire nemos condenados de Dante, Londres no igual Paris de "Les Sept Vieillards"nem ao crculo primeiro do "Inferno". So homens em cuja substncia en-tra algo de uns e de outros; uma cidade que participa de certo modo dotentacularismo de Paris e da estagnao moral do Limbo. Mas o resultado uma sntese original, em cujo fundo passam as associaes motivadas pelaaluso a Dante e a Baudelaire.

    Uma vez integrados nesta tcnica de composio estamos ainda lon-ge, todavia, do verdadeiro sentido do poema. Todas as suas partes, todasas suas aluses so formas diversas que toma a idia fundamental, isto ,a equiparao da vida moderna lenda da terra estril, do Rei impotente,base das lendas do Santo Graal, por sua vez, uma expresso postenor de

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    certos ritos de fertilizao. A vida e a cultura so, deste modo, interpreta-das luz de equivalncias mitolgicas, o poeta dando a cada cena, a cadacitao, um sentido mtico, uma variao sobre o tema da lenda. A terra erafrtil e est estril. So necessrios ritos propiciatrios para dar-lhe o an-tigo vigor. O contraste estabelecido no poema de diversos modos, inclu-sive por um jogo de alternncia e confronto entre o esplendor do mundoda poesia antiga e o prosasmo chato da vida moderna. Assim que o boudoirde uma gr-fina enervada e ftil descrito segundo reminiscncias deAntnio e Clepatra, das Metamorfoses, da Eneida e do Paraso Perdido. Emmeio do esplendor dos velhos mitos e das grandes cenas do passado, ocontraste da mulher elegante, sem princpios, entediada, escrava de prti-cas desprovidas de contedo humano pondervel.

    Todo o poema deve ser lido como que em quatro planos: a conscin-cia das referncias, a fim de aproveitar a riqueza das associaes; o simbo-lismo psicossocial; o esforo de interpretao do mesmo em termos demitologia; a unidade emocional que resulta desta convergncia. Geralmenteos leitores, e mesmo os crticos, se atm apenas aos dois primeiros planos,o que reduzir The WasteLand justamente sua parte por assim dizer bsica:

    \ao seu andaime e ao seu alicerce tcnico. O essencial o mito moderno

    eJ }t!4 ti) tentado por Eliot, num esforo de criao que assume a sua esplndida)( '[L

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    Na In laterra, um homem como Eliot de encontrar ai uns dos {elementos mais eficientes do seu estilo voltando trezentos anos atrs e indo L1.

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    esta a terra do cacto/ esta a terra defunta! Aqui imagens de pedra/ Selevantam e aqui se junta/ A splica da mo de um homem morto/ 1117. deuma estrela morta.

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    Em meio desolao, confuso e treva, aparece em "Os HomensOcos" o vislumbre de um apelo religio. Cinco anos antes, em "TheHippopotamus" - um dos seus mais belos poemas - Eliot no s j con-trastava a permanncia da Igreja com a vacuidade do efrnero, como indi-cava a sua eficcia redentora. S ela lhe parecia capaz de fundir os contr-rios, tema que vai se espraiar em Ash Wednesday.Em "The Hippopotamus",o efemero recebe a glria da exaltao final, eternizado pela fora da Igre-ja. Depois de umjogo magnfico de imagens irnicas e srias, o hipopta-mo sobe aos cus e toca harpa, lavado pelo sangue do cordeiro, beijado pelasvirgens mrtires, enquanto a Igreja permanece em baixo, plantada entreos vcios da terra. Se este tratamento irnico e sarcstico do problema ain-da no revela um crente, revela pelo menos a preocupao dirigida nestesentido. Em meio terra rida do seu tempo, o poeta procura algo de per-manente e duradouro, que solva as contradies e, no obstante o seu ca-rter terreno, permita a redeno do pecador-hipoptamo.

    L Para termos uma idia dos problemas que alimentam a poesia de Eliotf:r"~A!i neste perod~, basta-n~s.lembrar do Contraponto, de ~uxley. Este roman-(lzw{ c e, de 1928, e uma especle de retomada, no plano da fico, do mesmo sen--:- I~ ~imen.toque inspira The ~ste Land. O hedonismo epidrmico, o desvario~I Ideolgico, o esnobismo intelectual, se agravaram na Europa com o~ l-loJ)(.w.,) desequilbrio trazido pela Grande Guerra. Estes sintomas de crise da cons-

    O cincia burguesa, acompanhando a prpria crise estrutural da burguesia,se refletiram fundamente na literatura e na arte, como sabido. Tanto Eliotquanto Huxley empreenderam a anlise do fenmeno - um por meio dosimbolismo potico, outro do romance. Lucy Tantamount parente da gr-fina da segunda parte de The Waste Land, cultivando ambas uma certa fe-rocidade, exasperada pelo refinamento e pela falta de apoio moral. O inter-locutor, cnico e irnico, bem pode ser um outro Spandrell.

    A primeira parte da obra de Eliot, pois, construda em torno destaidia de crise de valores, qual ele procura dar uma solidez maior que asimples constatao, por meio de um verdadeiro estaqueamento intelectual.Procura drenar o pntano com a revalorizao dos grandes temas. Breve-mente, procurar revalorizar os grandes princpios. Este senso tradiciona-

    lista, ligado porventura sua origem puritana da Nova Inglaterra, fortifi-cou-se com o convvio dos clssicos. Dante foi dos poetas que mais estu-dou. Dryden e Donne forneceram, ao lado do simbolismo francs, as prin-cipais sugestes da sua forma. No seria de estranhar que ele se .brigassede todo sombra da tradio. Foi o que fez em 1927, convertendo-se IgrejaAnglicana, ou, como prefere dizer, Igreja Catlica Inglesa. Mais precisa-mente, converteu-se ao partido da Igreja Alta. Na Igreja de Inglaterra, o"High-Church Party' se ope ao "Low-Church Party". Enquanto este aceitaa doutrina calvinista da predestinao, afirma a salvao pela f e d me-nos importncia tradio evanglica, s formas e ao rito (ao carterinstitucional da religio, numa palavra), aquele se apega ao formalismo comoa elemento essencial. Permanece, pois, mais prximo Igreja Romana,quando o "Low-Church Party' mais chegado ao protestantismo. Eliotescolheu justamente o setor mais formal e tradicionalista do Anglicanismo.Em 1928 declarou-se anglo-catlico em religio, monarquista em polticae clssico em literatura. Manobra triplicimente reacionria, mas admira-velmente conseqente. Digna de admirao pela sua coerncia. Mais normal,por ventura. que a dos catlicos-esguerdistas ou dos monarco-futl.lristas ...

    Da desolada terra estril de aps-guerra, muitos intelectuais sarampara solues de reao ou de fuga. Eliot para o catolicismo ingls, EzraPound para ofascismo, Huxley para o transcendentalismo. No caso citado,os trs fugiram, tambm, ao seu meio natal. Eliot, norte-americano, remon-tou a corrente e acomodou-se no regao de S. M. Britnica; Pound, tam-bm norte-americano, fez-se partidrio e propagandista de Mussolini,morando na Itlia desde 1924; Huxley, ingls, passou para a Amrica doNorte, onde est aprendendo a combinar o seu vago misticismo pacifista,de afinidades hindus, com um alto senso de explorao comercial das pr-prias obras.

    ***(Como diria o grande Fernandel, Moije dirais jamais rien/ Mais je

    trouue que c'estpas bien...).

    (Folha da Manh - 7/1/1945)

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  • 11O

    De 1925 a 1930 Eliot escreveu apenas trs pequenos poemas: "Journeyof the Magi" (1927), 'A Song for Simeon" (1928) e 'Animula" (1929). Can-tos de um convertido espera da grande inspirao religiosa, que veio em1930 com Ash Wednesday, o segundo grande poema. 'A Jornada dos Ma-gos", escrita no ano da converso, exprime o sentimento de morte em vidaque deve misturar-se a este novo nascimento que a converso. Numa lin-guagem extremamente simples, humana e quase familiar, um dos magosconta a sua jornada e a sua perplexidade final:

    ...fomoslevadospor toda esta distnciapara/ Nascimento ouMorte? Haviacertamente um Nascimento,! Isso era sem dvida evidente. Eu j viramortes e nascimentos,! Mas pensara fossemdiferentes; este Nascimento/Fora-nos agonia amarga e dura, comoMorte, a nossa morte.! Voltamossnossas casas, nossos Reinos,! Mas sem nos sentirmos vontade, sem oantigo bem-estar,! Vendo um povo estranho agarrado aos seus deuses.!Preferiria uma outra morte.

    T. S. EUOT - II!

    Esta marginalidade do convertido, do homem que foi guiado por umaEstrela (qualquer Estrela) e se desprendeu por isso do antigo eu, ficandona inadaptao do novo estado, separado dos antigos pares - o poeta vailentamente perd-Ia. Ash Wednesday um grande poema religioso, que nosfala da sua converso e da sua serenidade. Aps a agitao v, a dvida e aloucura, uma redentora "quarta-feira de cinzas".

    Bem menor do que The Waste Land (433 versos), Ash Wednesday (218versos) concebido e feito de modo diverso. Renunciando tcnica dasaluses especficas, ou usando-a apenas incidentalmente, Eliot forja aquium sistema de smbolos diretos, quase sempre verdadeiras alegorias. Apre-senta ao leitor um encadeamento de imagens que bastam a si mesmas comofatores de emoo, mas que tomadas de um modo geral, no contexto do.p'oema,fUncionam como elos de um roteiro potico, no caso, a converso. ASenhora, os Leopardos, o unicrnio, a gazela, as cores, a escada, tm umvalor encantatrio prprio, e despertam em ns emoes e ritmos indepen-dentes de qualquer outro valor. No obstante, a sua influncia s nos in-tegralmente transmitida se lhe atribuirmos certos valores alegricos, alisfacilmente apreensveis quando lemos o poema com ateno, alertas aojogodas a sociaes e tendo em mira o seu c~rter de experincia religiosa.

    b Depois da grande discusso que o Simbolismo acendeu em torno dast1lw imagens poticas, houve uma espcie de divrcio do smbolo e da alegoria.

    Esta passou a significar mais ou menos chapa, imagem convencional, sem1a surpresa permanente que borbulha na indeterminao do smbolo. Len-do o Apocalypse, de D. H. Lawrence, tem-se um quadro interessante dacontenda. No entanto, no h esta diviso estanque entre um e outro. Todaalegoria justa e aceitvel na medida em que tem a frescura e o encanta-mento do smbolo e todo smbolo eficiente tende a e uilibrar-se como ale-goria. Exemplo: o cisne de Mallarm - que no esperava ver-se metido nestacanoa.

    Na Idade Mdia, a grande poesia alegrica, assim como o pensa-mento e a arte. O maior poema criado pelo esprito humano, a Divina Co-mdia, um sistema de alegorias. O n do problema reside alhures. Trata-se, no de dizer que a alegoria vazia de contedo potico, nem que se tornafacilmente chapa,mas explorar as suas possibilidades. A grande alegoria aquela: I) que tem um valor potico independente da sua funo; que exis-te, enquanto valor potico, independente da sua funo: quando leio o so-neto de Mallarm, antes de me ocorrer que o cisne o smbolo da purezapotica, sinto uma emoo ligada prpria beleza da imagem e das circuns-tncias em que ela atua; 2) que, uma vez dada a chave, permanece capaz dedespertar emoes e resiste ao clich.

    O prprio Eliot nos diz coisa parecida no seu ensaio sobre Dante,estabelecendo a validez e a autenticidade das alegorias. Neste ensaio, es-creve muito bem que a alegoria funciona na obra de Dante porque o pro-cesso normal do pensamento da Idade Mdia era o alegrico. Hoje, diz ele,temos apenas sonhos, e no mais vises, da a defasagem entre a alegoria ea nossa sensibilidade. A tentativa da sua poesia, especialmente em AshWednesday, criar uma atmosfera em que seja possvel a viso, a aceitaodo significado do mito e das imagens, a submisso de todas as faculdadesao poder da poesia.

    O ensaio sobre Dante (que vem nos Selected Essays) de 1929: coin-cide quase com Ash Wednesdaye um elemento precioso para compreen-d-lo - o mundo da alegoria dantesca, em que o poeta estava mergulhado,esclarecendo as imagens e a natureza do poema. Entenderemos melhor aeste se encararmos a sua imageria de um ngulo por assim dizer medieval,dantesco, e nisto justamente que reside a ousadia da tentativa de Eliot.

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  • I.lo

    e num mundo em que a viso era forma de conhecimento o pensamentodo homem tendia naturalmente a se organizar sob forma alegrica, no nosso,a alegoria tende a adquirir um carter disfuncional. "Para os que gostamapenas da pompa sria da realeza, da igreja e dos funerais militares, a pom-pa que encontramos aqui (no 'Purgatrio') e no 'Paraso' parecer aborre-cida ...Ela pertence ao mundo do que chamei alto sonho, e o mundo moder-no parece capaz somente de baixo sonho". Ora, o milagre da poesia - ohumanssimo milagre da poesia - reside precisamente no fato dela ser ca-paz de criar um mundo em que, temos a impresso, o sonho vem do alto eno de baixo. Um mundo onde o rumor das vsceras se sublima em harmo-nia de esferas. Em que pese a Eliot - porque Eliot, a fim de restabelecer ovalor da alegoria, apela para o elemento transcendente, o sentimento reli-gioso. Ora, parece-me que o grande, o magnfico poder da poesia no resi-de no fato de ela ser um intermedirio entre o homem e o mistrio, mas nofato de ela criar o mistrio que nos parece depois envolv-Ia e condicion-Ia. A fora de um poeta como Eliot - um altssimo poeta - devida suacapacidade de criar aquela atmosfera encantada, onde o sonho parece des-cer do alto e comunicar-nos com algo de supremo, como as vises de Dantena Vila Nuoua.

    No seu ensaio, Eliot escreve que "o mtodo alegrico de Dante trazgrandes vantagens quando se escreve poesia: simplifica a dico e torna asimagens claras e precisas. Na boa alegoria, como a de Dante, no neces-srio compreender primeiro o sentido para apreciar a poesia, mas a nossaapreciao da poesia que nos d vontade de compreender o sentido". ocaso de Ash Wednesday. Nunca, como nele, conseguiu Eliot afastar to com-pletamente o elemento discursivo para confiar o seu canto ao puro valordas imagens. De tal modo que antes de serem alegorias elas j so imagenspuras e magnficas.

    A segunda das seis partes do poema, por exemplo, fala de trs leo-pardos brancos que devoraram o poeta, mas por intercesso de uma damade branco os ossos espalhados cantam a Deus, e este lhes d a terra comoquinho a dividir. um admirvel poema, construdo em torno deste jogode brancura - o plo dos leopardos, a veste da Senhora, os ossos - numapaisagem pr-rafaelista de zimbros, de onde brota o cntico. No bestiriomedieval o leopardo ( "La lonza" do primeiro canto da Divina Comdia) osmbolo da luxria; no difcil ver, no caso, que o embate das paixesd stroararn o poeta, e este procura redimir-se por intermdio da Dama de

    branco. Esta pode ser uma espcie de Beatriz, uma Virtude corporificada,alegoria do Amor Sagrado; mas os versos do cntico nos esclarecem quedeve ser a prpria Igreja. Com efeito, em "The Hippopotamus", dez anosantes, Eliot dizia que: The churcli can sleep and .feed at once,o poema sendoconstrudo sobre a idia de que enquanto o efrnero vtima das contradi-es e precisa ser redimido, a Igreja as supera e redime, contendo-as noseu carter onmodo. a idia do cntico:

    Senhora dos silncios/ Calma e aflita/ Dilacerada e intacta/ Rosa damemria/ Rosa do esquecimento/ Exausta e partejante ele.

    Atravs da Dama o poeta recebe o toque da f (cuja cor o branco)e passa a buscar a salvao.

    o assunto da terceira parte, consistente numa srie de imagens deascenso de uma escada. Aqui flagrante o paralelismo com o "Purgat-rio", onde o pecador progride por crculos cada vez mais altos:

    Naprimeira volta da segunda escada/ Voltei-meeolheiem baixo/ Amesmaforma enroscada no balastre/ Sob o vapor ftido do ar/ Lutando com odemnio das escadas...Na segunda volta da terceira escada/ Umajanela bamba inchada como umfigo/ E alm do espinheiro em flor e do panorama campestre/ A silhuetaespessa vestida de azul e verde/ Deleitava a primavera com uma frutaantiga.

    A quarta parte o eixo do poema. Uma srie de imagens e cores(verde, violeta, azul e branco), de bichos raros (unicrnios recamados, corasdouradas), guas e freixos, enquadram a figura feminina que era a Damade branco da segunda parte, a musicista de azul e verde da terceira, e quenesta vai com as cores de Maria, branco e azul, revigorando as fontes,umedecendo afinal a waste land. O poeta aqui dotado do alto sonho, por-que os milagres se sucedem; o tempo est para ser redimido e ele se reco-menda silenciosa irm com a splica de Arnault:

    Sovegna vos. Quem ia por entre a violeta e a violeta ...! Quem entorevigorouasfontese refrescouasnascentes/ Esfriouarochasecaedeufirmeza areia/ Vestidode azul-pervinca,azul da cor de Maria - Sovegnavos.Aqui esto os anos que desfilam levando flautins e flautas, restaurando/ Aquem passa pelo tempo entre o sono e o despertar ...! ...Redimi/ O tempo.Redimi/ A viso confusa do mais alto sono/ Com recamados unicrnioslevando douradas coras.

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  • oIIO

    Na quinta parte o poeta est em contato com o verbo e a suaencarnao, cujo mistrio aqui simbolizado num jogo de palavras (word,world), sempre com a presena da velada irm. A redeno se aproxima,porque a parte acaba com uma imagem em torno do paraso. O paraso quese transformou em deserto (a waste land), reviceja. Os pecadores, cujo des-tino em face da Dama se discute nesta parte, no so abandonados por ela,pois cospem a semente da ma. Est redimido o tempo:

    A velada irm, por entre os finos teixos/ Rezar por aqueles que aofenderam/ E esto aterrorizados e no podem render-sei E afirmam anteo mundo e negam por entre as rochas/ No ltimo deserto entre as ltimasrochas azuis/ O deserto no jardim e o jardim no deserto/ Da seca, cuspindoda boca a semente murcha da ma.Z meu povo.

    A sexta parte termina o poema como uma prece.

    (Folha da Manh -14/1/1945)

    T. S. ELIOT- IV1l-t.r ~ . Os coros da pea The Rock (1934) quase constituem poesia de tese.__IEliot cantando a angstia dos grandes problemas modernos e pregando a

    Srwee.l(~ soluo crist. Sweenney Agonistes:jragmento de um melodrama aristofnico,tr.~.Mh provavelmente o maior tour deforce do poeta no campo do que se poderiar chamar a sua teoria da vulgaridade. Para ele, a vulgaridade algo de ater-

    rador, mais ou menos como para Flaubert. Mas enquanto para Flaubert oproblema se revestia de um cunho acentuadamente esttico, o filistinocorporificando a banalidade obtusa que acompanha a civilizao burguesa,para Eliot ele ainda mais sinistro, porque mais um ndice do desvariomoral e da esterilidade do mundo contemporneo. Por isso, uma obses-so em toda a sua obra. SweeneyAgonistes, cujo ttulo uma pardia do poemade Milton, tem por epgrafe um trecho das Coforas, de Esquilo: Tu no asvs, no as vs/ mas eu as vejo;elas meperseguem, precisofugir. Eliot repete oclamor de Orestes, perseguido pelas Frias, em relao ao burgus moder-no. No entanto, o fragmento no de boa qualidade, e nos deixa uma im-presso de insucesso. Eliot ficou aqum do seu plano de tratar em modo

    [' ~ f)~ maior a vulgaridade e o vcio sem paixo. Mais convincente o outro frag-mento, Coriolan, stira sobre o desnorteio dos chefes e as iluses do poder.

    Depois de Ash Wednesday, contudo, e ao lado da sua atividade na poesia

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    ~ dramtica, o que h de realmente importante na obra de Eliot a p sia iQa~f.f tempo: Burnt Norton (1936) e East Coker (1940) so meditaes sobr '--:-- problema do tempo e constituem o aspecto mais recente da sua poesia.'* A diferena entre Ash Wednesday e The Waste Land menor do qu

    a diferena entre Ash Wednesdaye estes poemas. Ambos so bem mais di-retos e despojados, repousando menos sobre a dialtica da imagem e assu-mindo a forma prpria do discurso. este carter discursivo que os carac-teriza e que, talvez, nos permita dizer que so menos poticos. O jogo deidias assume freqenternente um tom abstrato, mas a poesia adquire, emcompensao, seno profundidade maior, pelo menos um alcance maisuniversal.

    Vimos que em Ash Wednesday um dos temas centrais era o da "re-deno de tempo", ou seja, o ultrapassamento das limitaes e das contra-dies ligadas a existncia temporal. E o poema chega a nos dar a impres-so de que o tempo redimido por meio da intercessora invocada - Damade branco, flautista de azul e verde, irm velada de branco e azul. No en-tanto, Burnt Norton coloca o problema com renovada intensidade, no maisem termos de aceitao pela f, mas de meditao metafsica, graas qualrenascem as dificuldades aparentemente solvidas:

    O tempo presente e o tempo passado/ So talvez presentes no tempofuturo,! E o tempo futuro contido no tempo passado.! Se todo tempo eternamente presente/ Todo tempo irredimvel./ Aquilo que poderia tersido uma abstrao/ Que permanece apenas possibilidade perptua/ Nummundo de especulao.

    A traduo prosaica d para sentir a diferena entre este poema e osanteriores. uma meditao, desenvolvida em termos abstratos, mas umameditao extremamente condensada, pois gira em torno de um s tema.Trata-se de determinar um ponto (de pensamento ou de existncia) queescape ao do tempo; que no seja escravo do presente, nem do passado,nem do futuro. Numa palavra, trata-se de abordar o absoluto, intemporal.O poeta se vale das idias de repouso e movimento, de provenincia e des-tino a fim de criar a sugesto deste ponto morto, suspenso do vir-a-ser e,portanto, da existncia humanamente concebida. Il ~. Embora as ap~rncias possam ser err:contrrio, Burnt Norton talvez (;r~'t.

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    tude mais desusada e mais tensa. preciso, com efeito, gue aceitemos (eportanto criemos em ns mesmos) uma atmosfera extremamente rarefeitade pensamento, a fim de deixar formar-se na sensibilidade a sugesto dointemporal. O esforo, todavia, ultrapassa no s as nossas foras, como asdo poeta, que cede ante a insero inevitvel de toda experincia humanano tempo: Msica epalavras s se movem/ No tempo.

    Mas no cede sem protesto, mesmo porque sabe que o ser _a outrametade do no-ser, e s existe devido a ele: As palavras, depois dafala,/ Seperfazem no silncio.

    justamente sob este aspecto que vai retomar o problema, cinco anosmais tarde, com East Coker, o ltimo dos seus poemas que me foi dado ler,e que talvez possa ser chamado o poema da recorrncia. O seu primeiroverso : Em meu comeoest meufim, e o l tirno: Em meufim est meu comeo.

    O nome do poema o de uma aldeia inglesa, torro dos Eliot, de ondesaiu um antepassado do poeta para aNova Inglaterra, no sculo XVII. Destemodo, voltando a ser ingls, o poeta como que fecha um crculo: In mybeginning ts my end.Mas este ciclo histrico um simples episdio do tem-po, que por sua vez um moto-contnuo de ciclos interpenetrados - casasque caem e se erguem, campos que se enchem e se esvaziam, cadveres quealimentam o trigo, trigo que alimenta o homem:

    Pedra nova para novas casas,velhas casaspara novos fogos,! Fogos velhospara cinzas e cinzas para a terra/ Que j carne, plo e esterco,! Osso dehomem e de animal, cana de trigo e palha.

    Nestes ciclos se difunde a vida humana. Os mortos vivem nos vivos,os vivos so mortos a prazo.

    Treva treva treva. Todos vo para a treva.../ E ns com eles vamos, nofuneral calado,! Funeral de ningum, pois ningum h para enterrar.

    Os nossos mortos, deixamo-los para trs enquanto vivemos. Assim,deixa o poeta aos seus avs, que evoca na aldeia tranqila de onde provie-ram e cujo casamento fecundo celebra, e que v bailar noite na charneca,como duendes, at que a aurora surja.

    Neste campo aberto! Se no te aproximares muito, se no te aproximaresmuito,! Ouvirs, em noites de vero,amsica/ Da flauta dbil e do tamborpequeno/ E os vers danando roda da fogueira/ Em ligao de homemcommulher/ No danar, que quer dizer, no matrimnio/ Sacramento muidignitoso e cmodo.

    So eles, os nossos maiores, que definem o tempo, porque so o pr-prio estofo em que trabalha o tempo. So eles que

    Sustm o tempo/ Sustm o seu ritmo na dana/ Assim como a sua vidanas vivas estaes/ O tempo das estaes e das constelaes! O tempo daordenha e da colheita/ O tempo de acasalar-se homem com mulher/ E odos animais.

    Nesta vida, egresso das vises (Surge a aurora e um dia novo/ Prepa-ra-se para o calor e o silncio), o poeta empreende a luta pela expresso,

    ...0 combate intolervel! Com palavras e sentidos.

    que lembra o "Lutador", do nosso Carlos Drummond. O contedoda expresso fugidio e falaz, porque a inteligncia e a observao no socapazes de fixar a chama nica e irreprodutvel do real:

    Existe, ao que parece, quando muito um limitado valor! No conhecimentoprovindo da experincia.! O conhecimento impe um molde e falsifica,!Pois que o molde novo a cada instante/ E cada instante uma nova,perturbadora! Avaliaode tudo quanto fomos.

    Mas o sentido da vida est justamente no ato, na ao presente, e foiesta a concluso inevitvel de Burnt Norton. Ser existir, porque a exis-tncia d a nossa medida. Mas ser no tambm padecer, no sentidoetimolgico deste termo? Ser no-ser, porque s se aquilo que j no sequer mais ser; em compensao, no-ser ser, porque apenas sobre o no-ser que podemos construir o ser futuro, que vir-a-ser. A existnciapoderia ento parecer uma privao de essncia, pois somos o esforo diri-gido para o que quereramos ser, mas que ainda no somos e nunca sere-mos. Para que a existncia no se dilua entre os nossos dedos, falha desentido e solidez, a razo da vida aceitar o ato pelo qual queremos ser.Pelo qual nos firmamos no nosso no-ser presente a fim de aspirarmos aofuturo-ser, que apenas tocado ser no-ser, e assim pelos sculos dos scu-los. A negao da negao afirmao, e a realidade ltima da existncia uma integrao, e no privao de e.ssncia, a vida se perfazendo no vir-a-ser, no devenir.

    Eu disse minh'alma, aquieta-te, e espera sem esperana! Porque esperarseria esperar em coisa v; espera sem amor/ Porque o amor seria amor decoisav;resta aindaaf! Mas fe amore esperanaesto todos no esperar.!Espera sem pensar, porque no s ainda capazde pensar:! Assim as trevassero luz e a quietude ser dana.

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  • 84Esta primeira fase de negao um prolongamento de Burnt Norton,

    da procura de um ponto-morto, onde todo ato potncia pura, absoluta (Ano ser naquele ponto, noponto imvel,! No haveria dana, e s a dana exis-te). Por isso o poeta ultrapassa de certo modo, afirmando a realidade vivado ser e do no-ser:

    A fim de l chegares,! De chegares aonde ests, de te livrares de onde noests,! Devers ir por uma senda que a senda da ignorncia.! A fim depossures o que no possuis,! Devers ir pela senda em que no se possui.!A fim de chegares ao que no s/ Devers ir pela senda em que no ests.

    uma dialtica sutilssima da essncia e da existncia, apresentadas.obas espcies da dialtica do ser e do no-ser, que definem o tempo. Dequalquer modo, lanamo-nos no vir-a-ser, que vida e progresso.

    S pelo tempo o tempo conquistado, estava em Burnt Norton. E o poetaaceita a vida sob a sua realidade indisfarada. Liga-se aos antepassados afim de extrair deles a fora vital, mas no os quer transfigurados pela con-veno e a piedade filial, e sim na integridade humana com que se inseremno tempo e comunicam conosco. Por isso, a herana que deles nos vem adecepo e anseio irretribudo, filhos do tempo, lei da evoluo humana.

    No quero saber/ Da sabedoria dos velhos, mas da sua estultice/ Do seumedo do medo e da exaltao, seu medo da posse,! De pertencer um aooutro, ou a Deus.

    Esta incapacidade humana, este sofrimento de Tntalo, Eliot, cris-to, liga-a ao pecado, que aparece no poema sob o smbolo da doena, en-tregue s mos sangrentas do cirurgio:

    nossa nica sade a doena,! Se obedecermos enfermeira moribunda/Cujo nico pensamento no agradar/ Mas lembrar do nosso antema,que o de Ado/ E que, para curar, a nossa doena deve agravar-se.

    Mas preciso viver, dentro do pecado e das contradies do tempo.Na comunho dos vivos, o poeta aplica a herana dos mortos:

    Devemos estar quietos e no obstante marchar/Para uma outraintensidade/ Para unio maior, comunho mais funda/ Atravs da fria trevae da desolao vazia/ Grito de onde, grito do vento, guas imensas daprocela e do peixe-porco. Em meu fim est o meu comeo.

    (Folha da Manh -21/1/194-5)

    T. S. ELIOT - V (INDITO)

    Se Castro Alves no vos subjugar do primeiro golpe, nunca mais sereissubjugados por ele. Se Valry vos subjugar do primeiro golpe, porque j

    V )0~)sabeis com antecedncia qual o ~ompor~amento requeridoda vossa sensi-V bilidade. Porque, na verdade, Valery no e um poeta que subjugue. Sua fora

    insinuante e no agressiva. Requer um contato prolongado, o estabeleci-mento de laos sutis, todo um lento trabalho de cristalizao, graas ao qualas afinidades so solicitadas, formadas. O contato com Eliot obedece tam-bm a este tipo de relaes. Podeis, sem dvida alguma, sentir primeiravista a influncia de certos versos carregados de magia, que vos aparecemcomo fulguraes e se incrustam como tatuagens na vossa memria: "Thoseare pearls that were his eyes", "...yet there the nightingale/ Filled all thedesert with inviolable voice ...", "The 'potarnus can never reach/ The man-go on the mango-tree ...". Todavia, para que sintais a integridade emocio-nal e intelectual do poema, e de toda a poesia de Eliot, preciso um esforode aproximao. A poesia aqui um fruto de conquista, e tanto mais a tereismerecido quanto mais vos esforardes.

    No h dvida que Eliot apresenta barreiras que, sendo foras, sotambm limitaes. Uma delas o seu esnobismo, o seu preciosismo; ou-tra, o seu exibicionismo intelectual. Se no quiserdes passar alm destasaparncias que podero repelir-vos, no chegareis ao que constitui realmen-te o interesse de Eliot, e que redime o seu pedantismo, porque est muitoacima dele. Eliot talvez um dos poucos poetas modernos cuja obra searticula numa coeso admirvel, dando nascimento a um verdadeiro siste-ma potico -:-tomada a expresso no sentido de que falamos de um sistemafilosfico, por exemplo. uma poesia to profundamente pensada quantosentida, as suas partes exprimindo as diferentes tentativas de abordar o temada expresso potica.

    A obra de Eliot encontrou sempre muita resistncia, mesmo depoisde se ter tornado uma coqueluche dos meios literrios e de ter dado ori-gem a centenas de pequenos Eliots, enxergando em tudo esterilidade e vazio,e procurando ench-Ias com agudezas e rebuscamentos de alta sofistica-o. Para isto contribuiu sem dvida a personalidade do poeta, sempremetido com refinados, procurando conviver com afin dufin tanto intelec-tual quanto socialmente falando, e escrevendo ensaios em prol da purezade linha, do equilbrio clssico, da condensao e da disciplina artstica. O

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    prprio poeta fez troa a respeito em dois pequenos poemas que vm nosLater Poems, chasqueando a popularidade de Ralph Hodgson, e afirmandocom certa suficincia a sua aristocrtica posio. Ralph Hodgson, conheci-do por suas criaes de ces e pssaros, um poeta acomodado, que no seafasta das normas e escreve dentro da tradio rornntico-vitoriana-georgiana, que j foi espirituosamente chamada "tradio morango-com-creme". Fcil e superficial, a sua popularidade larga e slida, razo pelaqual Eliot diz no poema:

    Queprazer estar comMr. Hodgson/ (Todomundo fazquesto de conhec-10)/ Comseu ritmo musical! E o seuCode Baskerville/ Que a umapalavrado dono/ Vos seguir nos calcanhares/ E vos picar em pedaos.! Queprazer estar com Mr. Hodgson!/ Adorado por todas as criadas/ (Elas oolham como algo diferente)/ Enquanto espreme na bocal O caldo da tortade groselhas.

    A seu prprio respeito, diz no poema seguinte, que traz o ttulo pito-resco de "Lines for Cuscuscaraway and Mirza Murad Ali Beg":

    Como desagradvel estar com Mr. Eliot!/ Com suas feies de traosclericais,! Seu cenho to franzido/ Sua boca to dura/ Sua conversa toestritamente/ Restrita a O Qu Precisamente/ E Se e Talvez e Porm.!Como desagradvel estar comMr. Eliot!

    A stira ferina, talvez um pouco antiptica, mas justa, e nos auxiliaa entrar no assunto da dificuldade de Eliot. Um poeta como Ralph Hodgsonno apresenta problema ao leitor; d-lhe solues prontas. E, infelizmente, isso que o leitor espera dos poetas. Os seus versos requerem um mnimode ateno e, mesmo quando belos - o que no raro - se encaixam direitonuma tradio h muito aceita pelos hbitos mentais do leitor. Em relaoa eles os reflexos j esto treinados - se me permitis. Do mesmo modo porque a campainha do almoo desencadeia uma maior secreo salivar, os seusversos condicionam reaes mais ou menos habituais. Imaginai, porm, queem vez da campainha tocassem um reco-reco e um apito. O paciente ficariaperplexo entre o apelo da hora, de refeio, e a estranheza de um sinal nuncadantes associado a ela. Talvez se misturem na sua cabea idias de carnaval,partida de trem, futebol e almoo. E a saliva no se comporta devidamente.

    Fenmeno parecido se d, mais ou menos, em relao a um poeta comoT. S. Eliot. O leitor sabe que poesia, mas ...As glndulas salivares negam-e a segregar. Eliot convida o leitor a um esforo que lhe desagrada, logoquando ele esperava a torta de groselhas: How unpleasant to meet mr. Eliot!

    No entanto, este desajustamento define a originalidade, e o carterdos seus versos define aquele choque intelectual que nos obriga a sair darotina e nos lanarmos na aventura a que nos convida o poeta. Define, paratudo dizer numa s frase, aquele "elemento de surpresa, to essencial poesia", de que nos fala o mesmo Eliot num dos seus ensaios.

    Quando um poema, lido pela primeira vez, no tem surpresa algumapara o leitor, podemos estar certos de que ele representa uma tendnciapotica ultrapassada OU em vias de o ser. E significa que o seu autor noteve foras para realizar este ultrapassarnento ou nem sequer teve cons-cincia dele. A conseqncia imediata para a poesia o culto do clich, oemprego de formas e torneios providos de emoo j convencional eestandardizada. E temos deste modo a morte de uma determinada tendn-cia potica, prolongada s vezes como verdadeiro fenmeno de inrcia cultu-ral por meio dos sub-poetas, regidos pelo automatismo e no pela inspirao.

    Ora, acontece que a poesia se populariza justamente no momento emque aparecem os clichs, isto , quando o pblico j tem os reflexos condi-cionados por um longo contato com determinados processos literrios. Se,neste perodo, surge uma poesia nova, cheia de surpresas, a tendncia ge-ral para boicot-Ia e apegar-se mais solidamente poesia expirante.

    No Brasil, o Parnaso ainda encontra eco apaixonado entre os leito-res. Quando muito avanados, estes vo at os intimistas que floresceramao lado do Modernismo. E o fato deste comear a difundir-se na grandemassa dos leitores vem mostrar a sua exausto.

    N a repulsa a Eliot, pois, vai muito desta fatalidade de adaptao. Eos que o repelem apegam-se sobretudo ao argumento do seu pedantismo.Ora, Eliot , com efeito, um poeta algo pedante - tomando a palavra nomelhor dos sentidos, se que o h, pois que o seu pedantismo no camuflavazio algum, seno guase uma conseqncia inevitvel da sua riqueza eda sua profundidade. Erra quem acusa poesias, como a sua, de serem purosjogosdo esprito. Pelo contrrio, jogo do esprito a explorao de velhosclichs, a persistncia em formas tacitamente aceitas pela sensibilidadealltomatizada do leitor. Se, a sensibilidade no participa do trabalho cria-dor do esprito, porque este no existe. Existe apenas o malabarismo, oengenho maior ou menor em armar as peas j gastas de um puzzle argui-safado. O hermetismo de Eliot revela, ao contrrio, uma ecloso de todasas foras, um esforo emocional para criar algo novo, que represente umariqueza potica genuna. Do seu trabalho, se bem sucedido, resulta uma

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    v 'r lad ira mensagem, se me for permitido trazer baila este pobre voc-bul de cheiro integralista. O poeta de clichs, ao contrrio, se limita aoj g de apaixonado de rimar bola com cebola e arranjar chave de ouro parauma banalidade qualquer. Longe de ser mais humano, por mais comunica-tivo, apenas mais vulgar, e s os ingnuos confundem humanidade com ~. vulgaridade.

    Assim, o hermetismo de Eliot - hermetismo que vai se esclarecendo medida que vivemos nele, aps hav-Io aceito honestamente - no querdizer ressecamento nem impotncia. apenas indcio da sua originalida-de. Se no escapou do pedantismo, porque este quase uma fatalidade detoda obra que, por um excesso de requinte, um esforo de depurao est-tica, tende a cortar as pontes que a lir;am com a vida, a fim de constituir-senum todo autnomo - supremo orgulho do pensamento. Que exprime avida de maneira aparentemente incompatvel com ela, uma vez que naequao resultante importa mais o termo da inteligncia que o do seu ob-jeto. Foi tal pedantismo que roou a asa em Mallarm e envolveu a obra deValry, como a de Eliot.

    O pensamento deste poeta de tal modo denso, a sua conscinciaartstica to desenvolvida, que impe-se uma seleo rigorosa no materialda inspirao. Da o rigor com que afastam os moldes usuais e buscam umaexpresso nica para a sua viso. O drama se repete em cada grande poeta,e a medida da sua grandeza nos dada pelo afastamento em que fica doinatingvel ideal. Em Eliot, o esforo se coordena admiravelmente, comoficou dito, e o resultado aquele sistema potico a que nos referimos -resultado que compensa plenamente a dificuldade do seu verso e o esno-bismo das suas pretenses

    Olhada em conjunto, a obra de Eliot, at este momento, nos aparececomo um conjunto, no qual as diversas partes se entrosam. Ao longo dela,os temas so propostos, retomados, aparentemente resolvidos, mas reapa-recendo adiante, a ponto de parecerem as realidades rriais tangveis e maisconstantes. No uma poesiafilosijica no sentido corrente. O seu carterde sistema vem menos do desenvolvimen to e solues de temas - to ao gostoda poesia inglesa - quanto da arquitetura com que eles so dispostos. O seutratamento potico, nunca discursivo, e por isso chamei obra de Eliotum i tema potico.