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www.colecaomossoroense.org.br 1 Kydelmir Dantas & Caio César Muniz (Organização) CANGAÇO – Episódios e Personagens – Edição especial para o Acervo Virtual Oswaldo Lamartine de Faria

Cangaço - Episódios e Personagens · Os Limões respondem matando José Ferreira Calado na Fazenda Cajueiro, que fora de José Brilhante. Os Brilhantes vão morar na Boa Vista,

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Kydelmir Dantas & Caio César Muniz (Organização)

CANGAÇO – Episódios e Personagens –

Edição especial para o Acervo Virtual Oswaldo Lamartine de Faria

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SUMÁRIO JESUÍNO BRILHANTE Luís da Câmara Cascudo ......................................................................... 05 JARARACA Luís da Câmara Cascudo ......................................................................... 25 A CAVERNA DO CANGACEIRO JESUÍNO BRILHANTE Rostan Medeiros ...................................................................................... 42 ENTREVISTAS SOBRE O CANGAÇO NORDESTINO José Romero Araújo Cardoso .................................................................. 57 DEPOIMENTO SOBRE LAMPIÃO EM MOSSORÓ Laíre Rosado ............................................................................................ 81 VIRGULINO FERREIRA DA SILVA – O CANGACEIRO LAMPIÃO – José Romero Araújo Cardoso Benedito Vasconcelos Mendes Susana Goretti Leite ................................................................................ 92 CANÇAGO E COITEIRO Oswaldo Lamartine ............................................................................... 111 MASSILON EM CAJUAIS François Silvestre .................................................................................. 116

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LAMPIÃO Paulo Moura .......................................................................................... 119 LAMPIÃO EM PAU DOS FERROS Lavoisier Nunes de Castro ..................................................................... 131 LAMPIÃO É SUBMETIDO A JURI E RAIMUNDO NONATO DESCREVE A CENA ........................... 134 AUTOS DE PERGUNTAS AOS CANGACEIROS ......................... 160 AUTO DE PERGUNTAS FEITAS A JOSÉ LEITE DE SANTANA, VULGO JARARACA .................. 171 AUTO DE PERGUNTAS AO PRESO MIGUEL INÁCIO DOS SANTOS, VULGO “CASCA GROSSA” ....... 177 AUTO DE PERGUNTAS FEITAS A LUIS JOAQUIM DE SIQUEIRA, VULGO FORMIGA ............................................................................ 181 AUTO DE PERGUNTAS FEITAS AO BANDOLEIRO FRANCISCO RAMOS DE ALMEIDA, VULGO MORMAÇO .............................. 186 O BANDIDO BRONZEADO.............................................................. 189 ALGUMAS IMAGENS DO CANGAÇO .......................................... 193

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JESUÍNO BRILHANTE Luís da Câmara Cascudo

Homenagem especial

a Dhalia Freire Cascudo JESUÍNO BRILHANTE Rio Grande do Norte e Paraíba

Jesuíno Brilhante nasceu em março de 1844 no Sítio Tuiu-

iú, sete quilômetros da então povoação do Patu (vila em 1890, cidade em 1936), no Rio Grande do Norte, e morreu no Riacho de Porcos, Município de Brejo do Cruz, Paraíba, em dezembro de 1879, no lugar denominado Sant’Antônio.

Jesuíno Alves de Melo Calado foi o cangaceiro gentilho-mem, o bandoleiro romântico, espécie matuta de Robin Hood, adorado pela população pobre, defensor dos fracos, dos velhos oprimidos, das moças ultrajadas, das crianças agredidas.

Sua fama ainda resiste, indelével, num clima de simpatia irresistível. Certas injustiças acontecem porque Jesuíno Brilhan-te não existe mais. Era o paladino, o cavaleiro andante, sem me-do e sem mácula, em serviço do direito comum e natural.

Uma justificação natural do prestígio de Jesuíno para os sertanejos seria o seu horror ao ladrão. Não roubava e o seu bando era rigorosamente vigiado para respeitar o décimo man-damento. Recebia o que lhe davam e às vezes pedia.

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Era auxiliado pela multidão dos admiradores, nada lhe fal-tando e mesmo possuía recursos de lavoura e gado. Baixo, espa-daúdo, ruivo, de olhos azuis, meio fanhoso, ficava tartamudo quando zangado. Homem claro, desempenado, cavaleiro maravi-lhoso, atirador incomparável de pistola e clavinote, jogava bem a faca e sua força física garantia-lhe sucesso na hora do “corpo-a-corpo”. Saltava como um gato maracajá, pulando um cavalo, a porta das casas, cercas, sem esforço aparente. Era ainda bom nadador, vaqueiro afamado, derrubador e laçador de gado. Sua pontaria infalível causava assombro, especialmente porque Jesu-íno, ambidestro, atirava com qualquer das mãos.

Agricultor e criador pacífico, casara com dona Maria e ti-nha cinco filhos; Filomena, que se casou com o Alferes Antônio José, de Pombal, Alexandrina, falecida solteira, Maria, casada com José Leite, de Água Branca (João Dias, no Município do Martins), Joana, casada com Antônio José Filho e João que morreu ainda menino. Tinha uma irmã, Vicência, casada com Joaquim Alves de Santana, e três irmãos, Joaquim, assassinado pelos Limões, Lucas, que ele foi arrancar da cadeia de Pombal em fevereiro de 1887 e João Alves, falecido no Patu a 1º de janeiro de 1931.

O pai, José Alves de Melo Calado, casara-se com Alexan-drina Brilhante de Alencar, irmã do famoso cangaceiro José Brilhante (1824-1873), de apelido “Cabé”, falecido em maio de 1877, enviuvando contraiu segundas núpcias com dona Ana que, do primeiro marido, Manuel Monteiro, tivera dona Maria com quem se casara Jesuíno Brilhante.

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José Brilhante casara com D. Gertrudes Franklina de Azeve-do, também da família Feitosa, do Ceará. Um filho deste casal, Fir-mino Brilhante de Alencar (falecido no Assu a 9 de novembro de 1906), casado com Bemvinda Alves Feitosa, é pai do Padre Antônio Brilhante de Alencar (1873-1942), meu informante. Meu avô mater-no, Manuel Fernandes Pimenta, senhor da Fazenda Logradouro no Município do Campo Grande, hoje Augusto Severo, foi amigo pes-soal de Jesuíno Brilhante. Minha mãe, menina, brincou muitas vezes com as filhas pequenas do valente. Toda a minha família materna guardou reminiscências do cangaceiro fidalgo da “Casa de Pedra”. Jesuíno levava a família, mulher e filhos, para as fazendas dos ami-gos sempre que a perseguição recrudescia.

A 25 de dezembro de 1871, Jesuíno fez sua primeira mor-te. Matou a punhal o negro Honorato Limão na Rua do Patu. A história era simples. Desaparecera uma cabra amarrada no pátio de Tuiuiú e Jesuíno rastejando descobrira o animal, morto den-tro de uma panela na casa dos Limões, família temida pelo nú-mero e agressividade dos seus membros. Os Limões juraram vingar-se e agrediram Lucas, irmão de Jesuíno que fora visitar a namorada no Patu. Jesuíno galopou até à rua, ouviu Honorato deblaterar, gabando-se da surra que dera no “amarelo do Tuiu-iú”, convidando o povo para “beber à saúde do defunto”. Jesuí-no apunhalou-o, ajudado pelo primo, Manuel Monteiro.

Os Limões tiveram a proteção dos Lobatos do Brejo do Cruz e dos Lobos do Catolé do Rocha. Os Limões do Camucá e os Calados de Tuiuiú ficaram em guerra.

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Estes atacam o Camucá. Os Limões respondem matando José Ferreira Calado na Fazenda Cajueiro, que fora de José Brilhante.

Os Brilhantes vão morar na Boa Vista, já com alguns ca-pangas, inclusive Manuel Pajeú que fora do bando do tio Bri-lhante. Depois de várias ascaramuças voltaram para Tuiuiú, sem-pre perseguidos pela Polícia a mando do Coronel Valentim Lobato, protetor dos Limões, ladrões de cabras, José Limão, chamado Preto Limão (nome de um célebre cantador de viola), foi feito soldado de Polícia com a destinação especial de prender os Brilhantes na pes-soa de Jesuíno. Atacaram Tuiuiú, matando Lúcio Monteiro, cunha-do de Jesuíno, maltratando a mulher deste e conduzindo presos o velho José Alves e seu filho Lucas para a cadeia de Pombal. Sa-quearam a casa e se foram, gritando de alegria.

Jesuíno escondeu a família, com alimentos e munições na “Casa de Pedra” no alto da Serra do Patu, esconderijo inexpug-nável que José brilhante descobrira e fazia parte da fazenda “Ca-jueiro”. Reuniu o seu bando, Manuel Pajeú, José Antônio, que ele apelidara “Padre”, Benício, Antônio Duo, Manuel de Ló. Enfrentou a força policial que estava no Gravatá de Cima, aju-dada pelos Agapito, dispersou-os, tomou-lhes armas. Era então Jesuíno Brilhante, Jesuíno Alves de Melo Calado, lavrador, cri-ador, comboeiro para Mossoró; desaparecera para sempre.

Juntou-se-lhe um amigo fiel, João Delgado, valente e de-voto de Jesuíno. Nunca mais se separariam.

Em 30 de agosto de 1876, com nove homens, apareceu na ci-dade da Imperatriz (Martins) para ir buscar uma moça depositada na casa de Porfírio Leite Pinho e matar um dos Limões que estava na

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Cadeia Pública. O delegado João Ferreira de Oliveira, com 15 solda-dos enfrentou Jesuíno e o tiroteio durou mais de uma hora nas ruas. Jesuíno entrou para uma casa com os seus camaradas e sustentou as descargas, cantando sua canção favorita, a “Curujinha”:

Curujinha que vida é a tua? Bebendo cachaça, caindo na rua? Isto é bom, Curujinha! Isto é bom!

E atiravam sem cessar, cantando e batendo o compasso

nas latas que encontraram. Entretanto arrombando as paredes de taipa de uma casa para a outra, deixando alguns homens distra-indo o cerco de soldados e paisanos. De súbito, no fim da rua, pularam para fora, numa descarga fulminante que fez recuar os atacantes e fugiram sem ser perseguidos. No pé da serra retoma-ram os cavalos e voaram para o Patu.

Desta façanha o documento popular é o “A. B. C. de Jesuíno Brilhante” que Rodrigues de Carvalho registrou (“CANCIONEI-RO DO NORTE”, Paraíba, 1928) e que adiante transcrevo.

O Presidente da Província do Rio Grande do Norte, Dr. Antônio dos Passos Miranda, na sua FALA de 17 de outubro de 1876 à Assembléia Legislativa, historiou o sucesso. Serve para ser confrontado com o A. B. C. encomiástico em que Jesuíno é louvado como herói vencedor.

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“Na cidade da Imperatriz deu-se ultimamente um fato, que apesar de grave pelas circunstâncias de que foi revestido, não se pode, entretanto dizer que alterou a ordem pública.

O célebre criminoso Jesuíno Alves, acompanhado de 10 ou 12 sequazes, apareceu naquela cidade com o fim de conduzir uma moça depositada em casa de Porfírio Leite Pinho e assassi-nar um preso, que se havia apresentado para responder a Júri.

O comandante do destacamento, alferes honorário do E-xército, João Ferreira de Oliveira, reunindo a força de que dis-punha, composta de 15 praças, se dirigiu ao lugar onde se acha-vam os criminosos para os prender; foi recebido com uma des-carga, que logo pôs fora da luta um soldado e fazendo-se imedi-atamente cerco na casa, acudiram muitos cidadãos, que se pres-taram a auxiliar a Força Pública.

Depois de cercados começaram os criminosos a fazer fogo sobre a força e mais cidadãos que a auxiliavam, resultando fica-rem feridos, além do soldado já mencionado, o 1º suplente do Juiz Municipal do Termo, Cosme Justiniano de Sousa Lemos, o alferes comandante da força e o cidadão Joaquim Xavier de Queiroz, e sendo alguns ferimentos considerados graves.

Durou o cerco até às 4 horas da madrugada e nessa ocasi-ão os criminosos, tendo feito um arrombamento para a casa vi-zinha, surpreenderam as sentinelas e descarregando sobre elas as armas, conseguiram evadir-se, sem que pudessem ser persegui-dos com vantagem por causa da escuridão da noite.

Custa a crer em tanta audácia da parte de um criminoso, tantas vezes perseguido pela Força Pública por crimes que en-

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chem de terror a população do sertão, não só desta Província como das do Ceará e da Paraíba. Mas o fato que acabo de narrar vem ainda afirmar a celebridade triste de tão cruel facínora, que por mais de uma vez tem caído nas mãos da força conseguindo, entretanto escapar-se por meios ardilosos.

Depois da fuga dos criminosos, a população da cidade de Imperatriz ficou tomada de susto porque corriam boatos de que Jesuíno voltaria acompanhado de maior séqüito com o fim de assassinar as autoridades da comarca.

O Juiz de Direito, Dr. José Alexandre de Amorim Garcia, que durante os acontecimentos que acabo de narrar, portou-se como ma-gistrado verdadeiramente digno, tratou de dispor as coisas para a resistência e sem demora requisitou a força existente em Pau dos Ferros que não se fez esperar. Ao distinto magistrado acompanha-ram os cidadãos mais prestantes da localidade, que generosamente se ofereceram para auxilia-lo no nobre empenho de manter a ordem e a tranqüilidade pública. Creio que atualmente já não há mais receio da volta de Jesuíno e que a população acha-se tranqüilizada em vista das providências que tomei de acordo com o Juiz de Direito e o dis-tinto Chefe de Polícia desta Província.

Na Imperatriz há hoje 34 praças e 2 oficiais, e acredito que Je-suíno não se animará a voltar, porque se realizar tão arrojado intento não se escapará à ação da Justiça, da qual tem sempre zombado.

Devo aqui consignar um voto de louvor ao cidadão Cosme Damião Barbosa Tinoco, Juiz Municipal, Dr. Francisco Bezerra Cavalcanti de Albuquerque, 1º suplente de Juiz Municipal Cosme Justiniano de Sousa Lemos, Delegado Antônio Francisco de Quei-

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roz, Capitão João da Silva Lisboa, Professor Teófilo Orozimbo da Cunha Souto Maior e mais outros cidadãos que muito se esforça-ram para que a ordem pública não sofresse séria alteração. A Polí-cia emprega todas as diligências para prender os criminosos”.

O bando agora era grande, Jesuíno, João Delgado, Benício, Antônio Duo, José Antônio, vulgo “Padre”, seus dois irmãos Lucas e João Alves, Manuel Pajeú, Manuel do Ló, Antônio Simplício, Manuel Piri e o escravo José, rastejador inimitável.

Levou apenas seis homens e atacou a cidade de Pombal. Tiroteou nas ruas matando duas pessoas. A Força Pública desa-pareceu. Jesuíno apoderou-se da cadeia, soltou o pai e o irmão Lucas e todos os presos. Voltou triunfalmente para casa1.

Durante este 1874 várias foram as aventuras além da façanha da tomada de Pombal. Foi à ribeira do Rio do Peixe e matou o fa-zendeiro Manuel Martins que denunciara e chamara a Polícia. O pai, preso novamente, foi para a cadeia do Martins, então Imperatriz e absolvido por ausência de provas. Jesuíno não voltou a Imperatriz para não complicar o processo paterno. Mas assaltava os comboios de víveres e distribuía o saque com os famintos. As esmolas popula-rizavam-no e também os episódios cavalheirescos.

Numa tarde indo beber água numa fazendola, atendeu-o a dona da casa, chorosa e aflita porque o negro Curió, valentão local, avisara-a de que vinha dormir com ela naquela noite. O

1 Jesuíno com oito homens atacou Pombal na madrugada de 19 de fevereiro de 1874 e soltaram os presos, inclusive Lucas... se tinham evadido 42 presos da Justiça, ficando 12 que não quiseram fugir” (Wilson Seixas, “O velho Arraial de Piranhas”, João Pessoa, 1962).

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marido estava viajando. Jesuíno mandou o bando acampar longe da casa e pediu que a mulher fosse dormir numa residência vizi-nha. Ficou sozinho. Deixou a porta de fora encostada. Foi para a camarinha esperar o amoroso atrevido. Lá para as horas mortas da noite o negro Curió apareceu, impaciente. Empurrou a porta de fora, passou e fechou-a. Meteu a mão na porta do quarto e entrou. Saiu daí a uma meia hora, ensangüentado e arrastado pelos pés como porco, para ser sepultado à beira da estrada. Na madrugada o bando voltou e lavou o sangue da luta que nodoava a camarinha. De manhã chegou a dona da casa. Fez café para todos. Na despedida Jesuíno disse, sereno: – “Sossegue, dona, sossegue. Curió foi viajar e não volta mais...”.

Seu cavalo, “Exalação” segundo uns e “Peixe Branco” segun-do outros, farejava emboscadas, recuando e avisando o dono. Nas lutas espalhava uma chuva de patadas e coices. Corria como o vento e melhor saltava. Montando-o, Jesuíno pulava cercas de pedra facil-mente. O cavalo morreu poucos dias depois do dono haver falecido. O “Leviano”, de Dioguinho, em São Paulo, era dessa família.

Visitava vilas e cidades, disfarçando, hospedando-se nas casas amigas, comprando víveres e munições. Era tratado cari-nhosamente. Não por medo, mas por admiração pela sua vida perigosa e cheia de bravura.

Ia às vilas e fazendas obrigar o rapaz rico a casar com a moça pobre que abusara da inocência, como se dizia. Dizia-se “padrinho” da moça. O rapaz casava e ouvia o conselho: – “To-me conta direitinho da minha afilhada”. O marido ficava um anjo do céu.

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Quando a meu pedido Hugolino de Oliveira, de Caraúbas, ouviu dona Maria Umbelina de Almeida Castro, de família ilus-tre e maior de 80 anos (em 1942) a senhora declarou, entusias-mada: – “Jesuíno foi um homem de caráter e de vergonha, ho-mem de palavra. No tempo de Jesuíno honra de moça e de mu-lher pobre tinha defesa...”

Jesuíno ia sempre a Mossoró, tomando precauções, hospe-dando-se em casa de amigos. Ninguém, exceto a própria Justiça, o considerava criminoso. Em meados de 1879, com Manuel de Ló e seu cunhado Lúcio, foi a Mossoró comprar víveres. Passou pela porta do Juiz de Direito, Dr. Manuel Hemetério Raposo de Melo. O magistrado ficou furioso com a insolência do cangaceiro e, de chambre como estava, saiu às carreiras para o quartel do des-tacamento, mandando armar a soldadesca. Travou-se um tiroteio nas margens do rio. Jesuíno atirava sempre para o ar porque a me-tade da população de Mossoró correra ao local para assistir ao es-petáculo como se tratasse de um divertimento inofensivo.

Lúcio ficou ferido e Jesuíno deixou-o em Sant’Antônio, onde o farmacêutico Manuel Duarte Vieira, de Mossoró, ia coti-dianamente pensá-lo.

Ainda em 1877 a Polícia e os Limões cercaram a “Casa de Pedra” e não a puderam tomar. Jesuíno resistiu e os soldados voltaram para a povoação do Patu.

Incontáveis foram as batalhas, reais ou inventadas pela imaginação popular, em que Jesuíno se viu envolvido e escapou, matando e não sendo ferido. Um seu recado fazia um destaca-

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mento policial retirar-se. A fama multiplicava seus recursos e era tido como figura de lenda, com poderes sobrenaturais.

Bateu-se com a família Suassuna que sacudiu no seu rasto bandos e bandos armados e inúteis.

Era simples e bom, mas severo e inexorável nas ordens. Matou o escravo José porque este quis violentar uma mulher.

Antônio Simplício deixou-o e diziam que fora morto por ele. Manuel de Ló sucumbira numa refrega.

Finalmente, em dezembro de 1879, ia à Província da Para-íba, águas do riacho de Porcos no Município de Brejo do Cruz com os companheiros Benício, Antônio Duo, José Antônio, “Padre”, Manuel Pajeú e os dois irmãos, Lucas e João Alves.

Surpreendeu-o a Polícia paraibana, guiada pelo cabo Preto Limão (José), um dos inimigos tradicionais. Logo nas primeiras descargas Jesuíno foi ferido no braço e uma bala atravessou-lhe o peito. Os companheiros atiravam e carregavam com tanta ra-pidez que a Polícia julgou o bando muito mais numeroso e recu-ou, entricheirando-se, esperando reforço.

Jesuíno agonizante foi carregado pelos últimos fiéis. Mor-reu no caminho do lugar “Palha” onde ficou sepultado. Os ca-maradas dispensaram-se.

A viúva casou com João Delgado, levando este, vida de plantador na Paraíba. Os irmãos voltaram para o Patu.

Em 1883 o doutor Francisco Pinheiro de Almeida Castro, de Mossoró, amigo de Jesuíno, veio visitar a sepultura deste e levou a caveira do cangaceiro. Durante anos e anos esteve o crâ-nio em casa do doutor Castro. Em 1922, falecendo este, passou a

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caveira para o Grupo Escolar 30 de Setembro e depois de 1924 para a Escola Normal. O Dr. Rafael Fernandes Gurjão, deputado federal, levou a caveira de Jesuíno Brilhante e fez presente ao doutor Juliano Moreira. Não sei o paradeiro, perdida ou guarda-da na coleção do sábio alienista no Rio de Janeiro.

Não é possível reunir todas as aventuras de Jesuíno por-que, no sertão, há sempre quem indique novos episódios, possí-veis e impossíveis, com solene independência cronológica.

Rodolfo Teófilo escreveu um romance, OS BRILHAN-TES, muito contraditado pela família de Jesuíno e de José Bri-lhante. Há um bom resumo do Dr. Gustavo Barroso, HERÓIS E BANDIDOS (Rio de Janeiro, 1917); Rodrigues de Carvalho divulgou o “ABC de Jesuíno Brilhante” (CANCIONEIRO DO NORTE, Paraíba, 1928) e publiquei dois artigos, A REPÚBLI-CA, Natal, 31 de maio e 7 de junho de 1942, registrando infor-mações da família, descendentes e colaterais.

Minha mãe afirma que além do “ABC” havia uma longa série de quadrinhas, feitas depois da morte do valente, e que eram popularmente cantadas no sertão do oeste do Rio Grande do Norte. Minha Mãe recordava apenas uma quadra:

Já mataram Jesuíno Acabou-se o valentão! Morreu no campo da honra Sem se entregar à prisão.

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ABC DE JESUÍNO BRILHANTE

Agora com geral celicia, Todos na sociedade, Quando chegou a notícia: Jesuíno na cidade, Eram todos a dizer: Por certo há novidade.

Bastante fiquei vexado, Me levantei, fui olhando, Era o senhor Jesuíno, Sua escolta acompanhando, Bem vestido e bem montado, Pela rua foi passando.

Com grande sinceridade Pela rua navegou, E, encontrando um sujeito, Por Porfírio perguntou... Com quem tinha algum negócio, Sua casa procurou.

Dignamente chegando Na porta logo esbarrou, Salvando D. Luzia, Que o Porfírio não achou; Respondeu e disse a ela: – De mim não tenha pavô...

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Então, senhor Jesuíno, Presumindo o que deseja; Tinha mandado comprar Vinho, genebra e cerveja; Embora o seu portador Violento homem seja.

Foi um caso admirável, Esse agora que vos digo. Todo o povo da cidade Geralmente reunido; Que todos desejam ver Jesuíno no perigo.

Gritava com presunção O comandante da armada: – Para o senhor Jesuíno, Temos mortalha cortada, Temos algemas de ferro, Gargalheira preparada.

Há um negócio importante Que me trouxe aqui agora; Como não achei Porfírio, Me retiro, vou-me embora. Ficará pra outro dia, Se encontrá-lo por fora.

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Idéia não fez o homem, Que estava descuidado, Quando chegou a notícia; O senhor é atacado, A tropa está reunida, O senhor já é cercado.

Já eu sei, D. Luzia, Que o Porfírio não está, Mas enquanto não beber Não posso me arretirar. – Já mandei um portador, Ele pouco há de tardar.

Kalendário de distúrbio, Hoje aqui há de se ver, Si me vieram cercar Muita gente há de sofrer, Os que mais me arrojarem Hão de chorar e gemer.

– Levante-se, D. Luzia, Sem beber não me retiro, Somos todos cangaceiros, Bem podemos dar uns tiros. Se me vieram cercar Verão o que nunca viram.

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Mansamente respondeu O senhor Antônio do Ó: – Si me vierem cercar Meu patrão não fica só. E tal seja o meu destino, Que farei botarem dó.

Nesta mente estamos todos, Respondeu o João Delgado, Comigo contém por certo Contra qualquer empregado. Ao depois de dar uns tiros,

Então serei retirado

Oh! Que barulho como este No Martins nunca se deu, Muita vontade perdida, Muita gente glória deu. Nesta batalha tão forte Que Jesuíno venceu.

Por certo gritou: o rolo Que neste dia se deu, Pelo subdelegado Todo mal se procedeu, Que o Alferes sem desejo, Constrangido, cometeu.

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Quem será teu defensor Nesta serra do Martins? Não podes contar vitória, Brevemente terás fim. Pouco terá que viver Quem a ti não vir o fim.

Ralhando com presunção, Jesuíno sem temor: – Tenha sentido no cerco, Que eu brevemente me vou, Não posso ficar aqui, Que eu desta terra não sou.

Saíram todos do cerco Livre e salvo do perigo, Deus lhe concedeu a vitória, Pois não mereceu castigo. Voltaram os empregados Fortemente constrangidos.

Todos romperam o cerco Sem temor e sem demora, Jesuíno repetindo: – Stá chegando a minha hora, Tenha sentido no cerco Que a boiada vai se embora!

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Unidos ficaram todos Com muito boa união, O povo ficou dizendo: – Lá se foram, lá se vão! Voltaram os empregados, Mal servidos, sem razão.

Voltaram os combatentes, Indo o Alferes baleado. E o Juiz Municipal Com um braço bem cravado; Os mais, dizem, que gemiam Lastimado o seu estado.

Chorando ficaram muitos Sem ter remédio que dar, Bem empregado te seja. Quem mandou tu ires lá? Jesuíno e sua gente Nunca te fizeram mal.

Zombando foi Jesuíno, Pabulando a sua história, O Alferes João Francisco Com tristeza foi embora, Chegando no Rio Grande Já deu baixa sem demora.

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O til é letra do fim, Vai-se embora o navegante, Me procure quem quiser, Cada hora e cada instante. Me acharão sempre às ordens: Jesuíno Alves Brilhante.

____________________ Jesuíno Brilhante. O Cangaceiro Romântico”. Rio de Janeiro, 1970. Raimun-do Nonato. José Alves Sobrinho – “A verdadeira História de Jesuíno Brilhante. Canga-ceiro e Herói”. Dois folhetos de versos. Campina Grande, Paraíba, 1977. Prêmio Leandro Gomes de Barros pela Secretaria de Educação do Município do Recife.

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JARARACA Luís da Câmara Cascudo

Homenagem especial a Dhalia Freire Cascudo.

JARARACA Pernambuco e Nordeste

José Leite de Santana, o Jararaca, nasceu a 5 de maio de 1901 em Pajeú de Flores, Pernambuco, e foi fuzilado no cemité-rio público da cidade de Mossoró, Rio Grande do Norte, na ma-drugada de 19 de Junho de 1927.

De estatura mediana, forte, resistente, ágil, moreno-escuro, teve mocidade violenta e fugiu para Maceió, Alagoas, onde, em 1921, verificou praça no Exército, indo para o Rio de Janeiro. Foi ordenança do Coronel Antônio Francisco de Carvalho na Junta de Alistamento Militar e combateu em São Paulo a revo-lução do General Isidoro Lopes. Em 1925 estava no sertão per-nambucano chefiando bandos de cangaceiros, assaltando fazen-das e comboeiros, incendiando, matando, depredando. Atirador exímio, grande lutador de faca, juntou-se a Lampião em princí-pios de 1927, levando oito companheiros. No grupo sua ascen-dência era notória e a autoridade do salteador emparelhou com a do próprio Sabino Gomes, o lutador-tenente de Lampião.

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José Octávio Pereira Lima imagina os preparativos para a ar-rancada sobre Mossoró, sob proposta de Massalon Leite. Lambe os beiços José Leite

De Santana, o Jararaca, E ronca como um suíno; Patrão, na voz de atraca, Eu mato por brincadeira, Cantando “Mulher rendeira”, Encho de ouro a bruaca. E sobre o assalto a Mossoró na tarde de 13 de Junho de

1927: O Sabino e Massilon

Aprovaram a travessia; Jararaca, porém disse: - Já fui soldado e fui guia, É preciso rumo certo, Porque sou um cabra esperto, Ando de noite e de dia. Salto janelas de costas, Pulo do chão ao telhado, Me arrastando como cobra, Em fortins já tenho entrado,

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Como bala com feijão, Carne de gente com pão, No mundo é o melhor bocado. Por isso é que vou na frente, Comandando essa avançada, Seu Lampião tome nota, Que eu não sou de caçoada, Mulher ou moça vistosa, Dança comigo na prosa, Junto com minha negrada. Os versos contam a morte de Colchete e o ferimento que

inutilizou Jararaca:

Jararaca não recua, Bastante afoito e atrevido, Tenta arrastar seu colega, Mas este já tem morrido! E enquanto vai desarreá-lo Um balanço vem prostrá-lo Ficando logo caído. Jararaca diz: - Sabino, Conduza-me agora por Deus! Tenho o peito traspassado,

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Leva-me pra perto dos meus, Sinão o povo aqui perto, Mata-me se sou descoberto, Valha-me o santo dos céus! Não deu ouvidos Sabino Ao que roga o companheiro; Jararaca quer fugir, Andando muito rasteiro Mas uns bravos na Estação, Prostram de novo no chão Com um tiro mui certeiro. Após a nossa vitória, Jararaca noutro dia, Foi preso e bem algemado Quando fugir pretendia. Contou sua história de fera, Crimes monstros que fizera, Nos assaltos que fazia. João Martins de Ataíde (“Entrada de Lampião em Mossoró”,

Recife, 26 de Agosto de 1927), fixa também Jararaca:

O cangaceiro ferido É o cabra Jararaca,

Um dos cabras mais valente

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Que no meu grupo destaca, Quando tem raiva não fala, Depois que fere uma bala, Fere a garganta de faca.

O bandido Jararaca Andava com Lampião, Sendo muito respeitado Pela zona do sertão, Ganhou a fama que tem Depois que entrou em Belém E em São Sebastião.

Nasceu ele em Pajeú, É moço ainda e solteiro, Há muito tempo que andava Na vida de cangaceiro, Depois que foi baleado, No seu bolso foi achado Boa quantia em dinheiro. Trajava regularmente Os dedos cheios de anéis, Fora outras jóias de ouro, Embrulhada nuns papéis. Era tudo quanto havia E em dinheiro trazia Mais de 800 mil réis.

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Ele chegou em Belém E em São Sebastião, Atacava os povoados De acordo com Lampião, Na casa de um fazendeiro, Trouxe bastante dinheiro, Roupa nova e munição. Em Mossoró recebeu Uma bala no pulmão, Um ferimento na coxa, Um grande talho na mão. Devido estar tão ferido Foi por isso que o bandido Ficou caído no chão. Foi o bandido Colchete Que caíra baleado, Com um tiro bem certeiro Que um rapaz lhe tinha dado, Jararaca foi ligeiro Para tirar o dinheiro Que ele tinha guardado. Nisto deram-lhe outro tiro Pôs Jararaca no chão, Bandido de confiança

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Do grupo de Lampião; Quando ele foi encontrado Estava assim recostado Bem perto da Estação. Colchete levou um tiro Porém não ficou mortal. Caiu assim na calçada, Junto ao muro do quintal, Chegou um rapaz ligeiro, Arrastou o cangaceiro, Matando com um punhal. Quando Colchete caiu um dos atiradores saltou a trinchei-

ra de sacas de algodão prensado, arrastou-se pelo chão e matou o bandoleiro a punhal. Foi o Sr. Francisco Calisto de Medeiros, de comprovada coragem pessoal, o mesmo que foi buscar Jara-raca, ferido, oculto e desarmado na sombra do pontilhão da Es-trada de Ferro e o trouxe, de alpercatas e meias de seda.

Ferido no peito, Jararaca arrastou-se para os arredores da cidade, sendo alvejado pelo grupo que defendia a Estação.Duas vezes ferido, conseguiu ainda alcançar um morador ao qual ofe-receu três contos de réis para ocultá-lo e ir comprar medicamen-tos na cidade. O homem pediu as armas de Jararaca que as en-tregou todas, inclusive, o punhal, última arma de que o canga-ceiro se aparta.

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Matou-lhe a sede, esconde-o no pontilhão e foi denunciá-lo às autoridades em Mossoró, na manhã de 14 de Junho. O Sr. Francisco Calisto de Medeiros veio buscá-lo. Jararaca acompa-nhou-o depois de dizer “estou desarmado”, significando a im-possibilidade da reação.

Nos seis dias em que esteve preso melhorava diariamente. Queixava-se de não ficar bom porque não lhe davam pimenta malagueta para curar os ferimentos. Prestou declarações (“A REPÚBLICA”, Natal, 21 de Junho de 1927), informando sobre sua pessoa: “Que havia entrado no bando de Lampião com oito homens. Nascera no dia 5 de maio de 1901 em Pajeú de Flores, Estado de Pernambuco. Fora soldado do Exército, tendo verifi-cado praça em Maceió em 1921, sendo depois ordenança do Coronel Antônio Francisco de Carvalho na Junta de Alistamento Militar no Rio de Janeiro. Disse que a vida de bandido era muito ruim, mas sempre procurou evitar atos maus de seus companhei-ros pois teve educação e era muito respeitado no bando. E em Mossoró recebera o primeiro balaço vindo de cima da Igreja de São Vicente de Paulo”.

Leonardo Mota (“NO TEMPO DE LAMPIÃO”, 36) re-corda a morte e Jararaca. Apenas a hora é inexata. Foi pela ma-drugada e não numa “boca de noite”.

“Uma boca de noite, noite de lua, o Jararaca, algemado, foi conduzido da cadeia para o cemitério. Chegando lá rodeado de soldados, mostraram-lhe uma cova, aberta lá num canto, qua-se fora do “sagrado” e lhe perguntaram se ele sabia para que era aquilo... Foi quando Jararaca falou, frocado e destemido: - “Sa-

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ber de certeza não sei não, mas porém estou calculando... Não é para mim? Agora, isso só se faz porque eu me vejo nestas cir-cunstâncias, com as mãos inquiridas e desarmado! Um gosto eu não deixo para vocês: é se gabarem de que eu pedi que não me matassem. Matem! Matem, que matam, mas é um home! Fi-quem sabendo que vocês vão matar o homem mais valente que já pisou neste...” Mas não teve tempo de acabar de dizer o que queria. Por trás dele, um soldado deu-lhe um tiro de revólver na cabeça. A bala pegou bem no mole do pé do ouvido, lá nele. O Jararaca amunhecou das pernas e caiu, de olho vidrado. Aí, os soldados o empurraram com os pés pra dentro da sepultura”.

Em 1935, na povoação de Boa Esperança, serra do Mar-tins, ouvi depoimento inteiramente idêntico, Jararaca ainda dis-sera: “Se eu tivesse uma faca e fosse solto, a ferro frio, botava vocês todos pra correr. Coragem com homem amarrado e de-sarmado toda a gente tem”.

Há quem afirme ter sido a morte de Jararaca provocada por ciúmes de Sabino Gomes ou do próprio Lampião, pondo-o na vanguarda, sabendo-o afoito e louco no ataque que já se a-nunciava perdido para os bandoleiros.

Sabino não o quis socorrer, vendo-o ferido. Um documento sugestivo é a relação dos bandoleiros que

atacaram Mossoró a 13 de Junho de 1927, a maior façanha de Lampião e a “cidade grande” que ele chegou a ver. Jararaca in-dicou os seguintes companheiros: - Sabino, Ezequiel seu irmão; Virgínio, seu cunhado; Luís Pedro, de Retiro; Chumbinho; José Delfino, Manuel Antônio, de Bom Nome; Ás de Ouro, de São

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Francisco; Candieiro (Velho), da Serra do Mangue; Serra do Mar; Vicente Feliciano, vulgo Rio Preto, negro velho sarado, da Paraíba, valente e acostumado a receber balas nas alpercatas e não entrarem; Luís Sabino, criado pelo Sabino Gomes, disposto e moço; Fortaleza, Moreno, Euclides e Beija-Flor, todos do Pi-auí; Guindu, do Bom Nome; José de Sousa, vulgo Tenente, do Riacho do Navio; Trovão, da Serra do Mato; Camilo da Serra do Monte; Antônio dos Santos, do Ceará; Marreca, do Pajeú; Bem-tivi, do Cariri; Dois de Ouro, moço rico da Paraíba; Juremal de Medeiros, pertencente à família dos Nóbregas e Medeiros, do Sabugi, na Paraíba; Sabiá, cangaceiro velho do Cariri; Pinga-Fogo, cearense; José Relâmpago e Vinte-e-Dois, do Cariri; Lua Branca, irmão do Vinte-e-Dois; Antônio Cachiado, moço

disposto e alvo, de Pernambuco; Chá Preto e Barra Nova, da Serra do Monte; Pai Velho, cabra velho e ex-cangaceiro dos carvalhos, das Piranhas; José Pretinho, Luís Pedro, que há cinco anos anda com Lampião; Mergulhão, do Pajeú; Coqueiro, do Ceará, o qual atirou no carro que conduzia o Coronel Antônio Gurgel; Vereda, irmão de Candieiro; e Colchete, morto em Mos-soró, atirado pelo cabo Leonel.

A tentativa de Lampião contra Mossoró motivou a publi-cação de vários folhetos na literatura popular: Mariano Ranchi-nho, “O ASSALTO DE LAMPIÃO A MOSSORÓ ONDE FOI DERROTADO”; João Martins de Ataíde, “ENTRADA DE LAMPIÃO EM MOSSORÓ” (Recife, 1927); Pereira Lima, “A DERROTA DE LAMPIÃO EM MOSSORÓ”, Mossoró, s. d. (de onde transcrevo os versos sobre Jararaca), etc; Veríssimo

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Melo publicou um ensaio, “O ATAQUE DE LAMPIÃO A MOSSORÓ ATRAVÉS DO ROMANCEIRO POPULAR”, Na-tal, 1953. Ver ainda a entrevista do Prof. Eliseu Viana, “A RE-PÚBLICA”, Natal, 19 de Junho de 1927, “O MOSSOROEN-SE”, de 19 e 26 de Junho, “CORREIO DO POVO”, de Mossoró, 19 de Junho, todos de 1927, e o artigo de Dorian Jorge Freire, “A VERDADE SOBRE A ENTRADA DE LAMPIÃO EM MOSSORÓ”, Meeting, nº 2, Mossoró, Setembro, 1953.

“Lampião em Mossoró”, Raimundo Nonato, Pongetti edi-tor, 2 ª edição, Rio de Janeiro, 1956, o maior documentário.

O Sr. Dorian Jorge Freire informa: “Jararaca morreu no dia 19 de Junho de 1927. Sobre seu fim paira ainda um insondá-vel mistério. Afirmam alguns que o bandido foi assassinado. Outros dizem que foi morto quando procurava fugir. Tive in-formações, no entanto, de que, quando soube que iria ser trans-portado para Natal, o cangaceiro teria dito que iam matá-lo, mas que veriam que um cabra de Lampião morria sem dar um gemi-do”.

Diz a tradição, porém, que Jararaca foi levado da cadeia ao cemitério onde obrigaram-no a abrir uma cova, cortaram-no a facada, estriparam seus órgãos mais íntimos e jogaram-no na cova ainda vivo. Há quem afirme, ainda, que ele foi conduzido para o cemitério e ali morto a coices de baionetas, não sendo verdadeiras as versões de que teria sido levado para Natal, morto a facadas, tendo aberto sua cova e nela jogado ainda com vida.

Sabemos, porém, que a notícia da morte de Jararaca em Mossoró dificilmente pode ser acreditada. O próprio Chefe de

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Polícia de Pernambuco, descria que tivessem prendido Jararaca, “homem que não se deixa prender”. O fato é que ele não somen-te foi preso como também foi morto ou assassinado aqui.

Há mesmo uma lenda que diz haver no cemitério local, ao lado da sepultura do criminoso, uma árvore que geme nas noites de chuvas e chora toda vez que alguém se lhe toca.

A verdade é que Jararaca morreu no cemitério de Mossoró com um tiro de fuzil na cabeça. Quando o empurraram para a cova, que não fora aberta por ele, já madeira, pintada de verde, indica o local. Colchete fora enterrado no canto vizinho.

E junto ao túmulo anônimo, uma árvore chora dentro da noite a lembrança cruel da hora trágica.

VIDA E MORTE DE JARARACA

Jararaca, Zé Leite de Santana, Indivíduo de Buique natural; Sertaneja região donde promana Do banditismo a origem principal; De Pernambuco é pujante comarca Onde se mata a bala, a pau, a faca. Tornou-se esse negro repelente, Dessas paragens – toiro mui terrível, E matava, roubando muita gente! Cometeu no Pajeú um crime horrível, Que todo Pernambuco se assombrou: Uma família inteira assassinou!

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Não foi o roubo o móvel monstruoso Dessa hecatombe tétrica e horrorosa, Foi somente porque a mão do esposo, Linda mulher lhe repeliu raivoso; Jararaca sequioso de vingança, Matou um velho, uma moça e uma criança. Nesse tempo em São Paulo rebentou A revolta que abalou todo Brasil E junto com a tropa então marchou Jararaca perverso, hediondo e vil, Como um esteio das ilegalidades Dessa carcaça podre que é o Bernardes! No ataque geral dos Legalistas Jararaca duas moças encontrou, Filhas lindas de dois capitalistas; O bandoleiro delas se apossou! Enquanto o canhão tudo arrasava O monstro vil as moças martirizava.

O Governo passando a outro guia, Jararaca deixou de ser soldado, A vida do sertão lhe seduzia, Um plano novo tinha concertado; De bandidos um grupo chefiar E o Nordeste de novo avassalar.

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Desertou uma noite ao Norte veio, Pra sua terra juntar gente temível, E chegando em Buique um forte esteio Encontrou em Coxete, o mais terrível Bandido do interior de Pernambuco Que vivia da faca e do trabuco. Facilmente um grupo se juntou, Nas tenebrosas terras do Pajeú; E um assalto geral se registrou Desde Floresta até o Novo Exu, De Vila Bela a Cabrobó e Triunfo, Até Alagoas ele foi trunfo. Lampião nesse tempo estava calmo Porque a Polícia forte o perseguia, Jararaca sabia palmo a palmo, O terreno onde Lampião vivia. Resolveu procurar o quadrilheiro Para na luta ser seu companheiro. Os bandidos assim ficaram fortes, Porque Sabino após se incorporou, Antes, porém, fazendo muitas mortes, Em diversos ataques que efetuou; Puderam esses tipos asquerosos, Desenvolver seus planos vantajosos.

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Deveis leitor já ter compreendido Que esse grupo foi quem nos assaltou, Guiado por famanaz bandido, A quem Lampião com fé depositou Certeza de tomar nossa cidade, Fazendo aqui a sua felicidade. Masssilon é o nome desse cabra Que agora já brigou com Lampião! Sede sangue em tempo algum lhe sobra, Daqui levar queria o seu quinhão, De Jararaca a história eu vou findar, Quero sua morte a todos relatar. Ferido mortalmente pelos bravos Que em suas trincheiras valorosas Salvaram co’heroísmo dos batavos A cidade das torres alterosas; Jararaca perdeu-se de repente, E arrastou-se pelo chão como serpente. Atravessou assim o pontilhão Da Estrada de Ferro Mossoró, O sangue lhe jorrava do pulmão; Seus fugiram, estava só! A madrugada vinha despontando, Suas dores foram aumentando.

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Desfeita a treva, poude o bandoleiro, Avistar uma casa ali bem perto, Para lá se arrastou e com dinheiro, Quis subornar um rapazinho esperto, Mas ele prometendo proteção Com outros amarrou-o com um cão. Veio a Polícia e trouxe pra Cadeia, A pantera ferida e bem doente. Jararaca rosnou com cara feia - “Só me queixo da torre São Vicente Se eu visse aqueles cabras nesse canto Juro que atirava até no santo” . Seis dias esse fera demorou Aqui exposto com todos conversando; Os ferimentos graves que o prostrou Já com o tempo até iam sarando. Mas a Polícia pra evitar um mal, Resolveu removê-lo pra Natal. No dia 19 à madrugada, A noite estava escura e tenebrosa, O tenente em condução bem preparada, Transportou a fera vil e asquerosa; Na estrada jararaca quis correr, Foi pior, que mais tarde veio a morrer!

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Pesada luta a fera então travou E quase que fugia dessa vez Se não fora um soldado que o agarrou Com força destemida e altivez. Jararaca foi morto de punhal, E enterrado num podre lamaçal.

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A CAVERNA DO CANGACEIRO JESUÍNO BRILHANTE

Rostan Medeiros2

APRESENTAÇÃO

A Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço - SBEC, que procurar agrupar seus membros em torno da pesquisa histó-rica e social do Nordeste, sente-se na obrigação de apoiar um trabalho desta envergadura, sobre a CASA DE PEDRA DO CA-JUEIRO, situada no município de Patu – RN, e que serviu de esconderijo e morada para JESUÍNO BRILHANTE e seu grupo, durante as perseguições sofridas pela força política e coronelís-tica daquela região limítrofe com o estado da Paraíba.

Rostan, neto de seridoenses e bisneto de Quincó da Rama-da, – no município de Acari – RN, onde houve o caso da incri-minação de Chico Pereira, de Nazarezinho – PB, nos idos de 1927, para que fosse preso e justiçado pelas forças legais de

2 CARLOS ROSTAND F. MEDEIROS – Nascido em Natal, em 27/10/1967. Técnico em turismo e guia regional de turismo, atualmente estudando administração com extensão em marketing na FARN. Espeleológo desde 1990, atualmente exercendo o cargo de Presidente da SEPARN – Sociedade Para Pesquisa e Desenvolvimento Ambiental do Rio Grande do Norte. Sócio da SBEC, pesquisando sobre as grutas e cavernas que tiveram alguma relação com a História do Cangaço.

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então – já vinha apresentando inclinação para ser um dos nossos cangaceiros culturais.

Este trabalho é, portanto, o seu ingresso nas hostes do bando comandado por Paulo Gastão, desde 13 de junho de 1993, que sempre procurou levar o nome desta entidade com pessoas de qualidade que se preocupam em mostrar a face sócio-cultural do Nordeste e, agora, também turística.

Seja bem vindo, jovem cangaceiro!

Kydelmir Dantas.3

3 Pesquisador e sócio da SBEC e do IHGRN. È de Nova Floresta – PB, radi-cado em Mossoró – RN.

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A CAVERNA DO CANGACEIRO JESUÍNO BRILHANTE

Durante estes mais de dez anos de estudos espeleológicos,

nas inúmeras viagens pelo sertão potiguar e nordestino, foi inte-ressante perceber como a nossa região possui na sua gênese si-tuações sociais únicas em relação ao conjunto da nação brasilei-ra. Dentre estes fenômenos um é de especial destaque, que está sempre presente nas conversas dos alpendres das casas simples e acolhedoras do sertão, é utilizado para quebrar a sisudez dos sertanejos, funcionando como um método simplificado para o início de um diálogo que culmina com a fatal pergunta: “Tem caverna por aqui?”. Este assunto é o cangaço.

O flagelo das secas e as conseqüências deste fenômeno climático criaram ao longo dos séculos acontecimentos que marcaram a região Nordeste de forma dramática: os retirantes, a fome, os conflitos sociais (como em Canudos) e, indiretamente, o cangaço.

Instigados pelo analfabetismo, pela fome, pelas injustiças praticadas pelos homens poderosos (os coronéis), pela falta do sentido real de justiça e o descaso das autoridades pelos menos favorecidos, fizeram muitos se voltarem para a prática do can-gaceirismo. O palco foi os sertões da Bahia ao Ceará e o tempo ocorreu desde 1765, com o temido Cabeleira em Pernambuco, até a morte de Corisco em 1940.

Em meio a estas situações, no ano de 1844, nascia Jesuí-no Alves de Melo Calado, no sítio Tuiuiú, a sete quilômetros da

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cidade de Patu, na fronteira do Rio Grande do Norte com a Para-íba. Homem simples que se tornaria, caçador, tropeiro, vaqueiro, lavrador e, devido ao envolvimento em guerras de família, can-gaceiro.

Entrou para história do cangaço como o cangaceiro ro-mântico, que rouba dos ricos para dar para aos mais pobres, que mata em defesa do povo oprimido. Contudo, foi um precursor do cangaço como ficou conhecido até hoje. Sobreviveu quase dez anos na ilegalidade por que foi apoiado por ricos fazendei-ros e aos quais respondia a este apoio com a força do seu bando

Até 1871 Jesuíno trabalhou como lavrador e vaqueiro, le-vando vida pacata e sossegada, cuidando de sua família. Era casado e possuía cinco filhos. Porém seus problemas tiveram inicio com o roubo de alguns de seus caprinos, roubo atribuído aos seus vizinhos, a família Limão. Não bastasse o sumiço dos animais, alguns dias após o acontecido, um irmão de Jesuíno foi agredido por um elemento da família Limão na feira da então vila de Patu. Nos sertões do Nordeste, até os dias de hoje, um homem de bem que venha a matar um oponente por motivo de vingança ou por buscar salvaguardar a sua honra ou de sua famí-lia é, em muitos casos, perdoado ou implacavelmente caçado. Com Jesuíno não foi diferente, ele matou o agressor de seu ir-mão e com poucas alternativas a sua disposição, tornou-se o cangaceiro mais famoso do Rio Grande do Norte.

Existem relatos que a família dos Limões eram ligados a políticos poderosos na região. Sendo assim, não sobrando mui-tas alternativas a Jesuíno Brilhante, viu-se seguindo pelo cami-

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nho das armas e utilizando os mesmos estratagemas dos seus inimigos.

Vários foram seus feitos na região. Em 1874 assaltou a cadeia da cidade paraibana de Pombal, com a intenção de liber-tar seu pai e seu irmão, presos de forma injusta.

Em uma outra ocasião, no dia 30 de agosto de 1876, ele e seu bando lutaram contra a policia de forma inteligente e corajo-sa em Imperatriz (atualmente Martins – RN). Tendo ido a esta cidade, por volta das seis da noite, com o intuito de resolver um problema na casa do Sr. Porfírio Leite Pinho, viu-se cercado e passou a resistir tenazmente noite adentro com mais dez compa-nheiros, sempre cantando e fazendo o compasso de seus versos com latas. Finalmente decidem abrir uma passagem de uma casa para outra, através das paredes e surpreendem a polícia. Fogem incólumes por volta das quatro da madrugada aproveitando a escuridão da noite. Todos os fatos ficaram eternizados pela mão do Juiz de Direito José Alexandre de Amorim Garcia.

Jesuíno tinha como seu principal refúgio uma caverna na Serra do Cajueiro, em Patu, que se tornou conhecida com Casa de Pedra de Jesuíno Brilhante. Ali habitavam Jesuíno, sua mu-lher e seus filhos, pois sua família sempre o acompanhou, exceto nos combates. Esta caverna teria sido descoberta pelo seu tio materno, José Brilhante, conhecido como “Cabé” (1824-1873). Sendo bastante provável que Jesuíno já deveria conhecer o local muito antes de ter entrado no cangaço.

O que a pouca bibliografia existente nos conta, é que o velho cangaceiro José Brilhante, teria cortado um grande mata-

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gal para facilitar a sua entrada na caverna e decidiu ocupá-la por ser um esconderijo muito bem localizado no aspecto de defesa, devido à visão da região (a caverna situa-se em uma altitude média de 260 metros) e ao fato de encontrar-se próximo uma fonte de água potável.

Esta caverna foi vária vez visitada por estudiosos do fe-nômeno do cangaço, principalmente com a intenção de avaliar os elementos da paisagem, da utilização da caverna como área de esconderijo e sua potencialidade como baluarte de defesa.

No ano de 1877 ocorreu a mais trágica seca que o Nor-deste brasileiro já sofreu, Vários comboios de alimentos foram destinados aos necessitados, tendo Jesuíno Brilhante assaltado alguns deles. Ficou a fama que distribuía os alimentos entre os mais pobres e necessitados. Entretanto, outras versões afirmam que estes alimentos eram exclusivamente para a sua “gente”.

A família materna do ilustre escritor potiguar Luís da Câ-mara Cascudo foi contemporânea do cangaceiro e o escritor, levado pelas histórias narradas em sua própria casa, pesquisou sobre a sua vida do cangaceiro no ano de 1942. O mestre Cascu-do ficou particularmente impressionado com o depoimento, na cidade de Caraúbas - RN, da então octogenária Maria Umbelina de Almeida Castro, ouvindo-a dizer, convicta: “Jesuíno foi um homem, homem de caráter e de vergonha, homem de palavra. No tempo de Jesuíno honra de moça donzela e de mulher pobre tinha defesa“.

Jesuíno Brilhante tombou lutando contra seus inimigos em dezembro de 1879, na localidade de Riacho dos Porcos, em

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Brejo do Cruz, na Paraíba. Para o povo ele morreu como um bravo. - Foi como uma lembrança longínqua, trazidas pelos colonizadores portugueses, das antigas narrativas de lutas me-dievais que eram cantadas em verso e prosa nas feiras e fazen-das do arcaico sertão nordestino. Criando de forma prática, um tipo de código de honra, que empunha entre aqueles que o co-nhecia, que muitas situações só poderiam ser resolvidas com sangue. Foi como o herói de “Carlo Magno e os doze pares de França” ou da incrível historia contada nos versos de “Roberto Bruce e a Princesa Magalona” que Jesuíno Brilhante seguiu a tradição do seu tempo, a desonra seria perder as armas ou ren-der-se. - Tinha apenas 35 anos.

No Rio Grande do Norte, a lembrança de Jesuíno Bri-lhante, provoca atualmente uma situação que coloca a visão do fenômeno do cangaceirismo com características diferenciadas de outros estados nordestinos.

Enquanto em Pernambuco, Alagoas, Bahia e Sergipe, o mais comentado cangaceiro brasileiro, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião (1899-1938), é alvo de intensas controvérsias. No estado potiguar, grande parte da população, lhe aplica apenas uma denominação: bandido. “Se Lampião foi ou não uma boa pessoa“, “se ajudou ou não os mais pobres“, “se era um bandido ou um injustiçado”, são temas dos inúmeros debates que ocor-rem nestes estados. Criando, muitas vezes, uma imagem quase positiva deste controverso homem. Gerando margem para a cri-ação de variadas interpretações de sua saga. Entretanto, em Mossoró - RN, o povo comenta com orgulho a derrota do bando

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no propalado ataque realizado por ele e seu grupo com mais de cinqüenta cangaceiros no dia 13 de junho de 1927. Nas nossas pesquisas espeleológicas, principalmente quando trabalhamos nas áreas rurais das cidades de Felipe Guerra e Governador Dix-Sept-Rosado (região por onde o bando de Lampião passou em direção a Mossoró), comenta-se muito a série de atrocidades, roubos e seqüestros cometidos por este cangaceiro.

A rápida passagem de Lampião pelo Rio Grande do Nor-te criou, através de sua violência, uma situação muito diferenci-ada em relação às lembranças deixadas por Jesuíno Brilhante e a sua relação com a população local. Desde variados escritores, até as pessoas mais simples da região oeste do sertão potiguar, reconhecem Jesuíno Brilhante como uma pessoa extremamente cordial, homem de palavra, honrado. Que fazia o que fazia por que não havia justiça para os mais pobres. Este foi um dos prin-cipais vestígios deixado por um cangaceiro, morto há cento e vinte e três anos. A realidade é sempre cruel nos seus fatos, po-dendo toda esta historia não ter sido tão romântica como está escrito nos livros. Contudo, persiste até hoje, lenda do Canga-ceiro Romântico.

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A CASA DE PEDRA Não existem registros fotográficos de Jesuíno Brilhante,

contudo a sua caverna-esconderijo esta muito bem conservada e é o símbolo mais importante de suas aventuras e desventuras.

A primeira literatura publicada que faz, inúmeras vezes, alusão a esta caverna, é a do escritor cearense Rodolfo Teófilo (1853-1932). Com o seu romance, “Os Brilhantes” de 1895. Depois vieram outros literatos, escritores e pesquisadores como Eloy de Souza (1873-1959), Gustavo Barroso (1888-1959).

Em 19 de janeiro de 1969, o escritor e historiador mosso-roense Raimundo Nonato (1907-1993) visitou a caverna com a intenção de coletar dados mais fidedignos para a realização do seu livro “Jesuíno Brilhante - O Cangaceiro Romântico”. O mesmo relata o quanto foi difícil o acesso e compreende a razão do cangaceiro haver resistido a várias incursões de forças do governo, dentre estas uma comandada pelo então oficial de poli-cia e futuro senador e ministro Amaro Bezerra Cavalcanti.

Comenta o aspecto assustador da caverna e sobre a exis-tência de cobras cascavéis no seu interior. Várias pessoas estive-ram presentes na caminhada da sede da fazenda Cajueiro até a gruta, que durou três horas por razão da mata fechada.

A literatura de cordel versa muito pouco sobre o assunto, já que os poetas populares, fixaram-se na figura do cangaceiro e sua vida de lutas, deixando muitas vezes de referir-se ao seu esconderijo.

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Em 1997, uma equipe espeleológica da SEPARN (na é-poca ainda não constituída juridicamente) e membros da SBEC - Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço, dentre eles o escri-tor e folclorista Gutenberg Costa, o pesquisador Kydelmir Dan-tas e o jornalista Cid Rosado, realizaram uma visitação a área da caverna.

Nesta ocasião, os pesquisadores da SBEC, comprovaram sobre vários aspectos as características defensivas desta caverna. Em particular, a visão privilegiada que os cangaceiros possuíam da região a partir do topo da caverna, possibilitando o tempo necessário para uma adequada reação armada aos ataques das forças policiais. Dentro da caverna, é possível verificar que pe-dras foram deslocadas para melhor proteger a entrada e dar uma melhor visualização da área externa, visando uma melhor condi-ção de disparo. O teto da caverna está com fuligem negra prove-niente da utilização de fogueiras.

Outro aspecto interessante relativo à maneira de sobrevi-vência do grupo de cangaceiros é a existência da antiga fonte de água em uma surgência no granito a poucos mais de 200 metros da caverna.

Atualmente a fazenda Cajueiro pertence ao Sr. Jorge Pe-reira de Castro (popularmente conhecido como “Josa Baiano”) e fica localizada às margens da rodovia que liga Patu - RN a Cato-lé do Rocha -PB. A propriedade localiza-se a 5,6 Km da área urbana de Patu e durante o ciclo do algodão no Rio Grande do Norte (1860 a 1950) chegou a empregar 150 pessoas na produ-ção algodoeira. Ainda existem nos locais benfeitorias desta épo-

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ca. Da sede da propriedade para a caverna percorre-se uma dis-tância de 1.800 metros.

Com relação à geologia da área ela é formada de rochas magmáticas, ou seja, rochas formadas pelo resfriamento e solidi-ficação do magma. No caso de Patu, por não haver uma comuni-cação com a superfície, o magma cristalizou-se quando ainda estava em sub-superfície, formando as rochas conhecidas como granito, no período geológico conhecido como proterozóico superior, que varia de 570 milhões de anos a 1,1 bilhões de anos atrás. Com o passar do tempo, a cobertura rochosa que recobria os granitos, sofreu processos erosivos e foi retirada, de tal forma que estas rochas altamente resistentes à erosão permaneceram com sua forma pouco alterada, justificando a formação das ser-ras da região, que possuem altitudes variáveis de 500 metros a 800 metros, com relação ao nível do mar. Na Serra do Cajueiro, desde a base até as altitudes mais elevadas, existem abrigos cri-ados pelo rolamento de blocos de granito. Estes blocos são for-mados devido ao intemperismo e falhamentos que atuam na ro-cha. Um destes abrigos é a caverna de Jesuíno Brilhante.

Durante a visita conjunta SEPARN - SBEC, em 1997, foi realizada uma topografia preliminar que definiu como área total de progressão da caverna de 60,46 metros, desnível de 6,72 me-tros, extensão norte-sul de 14,64 metros, extensão leste-oeste de 14,22 metros e altura média de 2 metros. Sua localização em coordenadas geográficas em UTM ficou definida em:

Área 24 648736E e 9319399N.

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Dentro de critérios estritamente espeleológico a caverna de Jesuíno Brilhante seria classificada como um abrigo de rola-mento de blocos de granito. Contudo creio ser positivo, pelo menos neste trabalho, manter o nome como o local é conhecido pela população nativa.

Em recente visita realizada pelos membros do CECAV-RN e SEPARN pode-se comprovar que já ocorrem visitações desordenadas, existindo algumas pichações a base de carvão e alguma quantidade de lixo. Este dado é preocupante, pois a ca-verna possui poucas dimensões e qualquer atitude depredatória acarretará em uma perda irreversível deste patrimônio.

As cavernas são recursos naturais não-renovaveis, por esta razão é muito importante que, para uma melhor utilização deste patrimônio histórico-espeleológico dentro do âmbito do Turismo Ecológico, sejam realizados estudo mais abrangente, não apenas na área especifica da utilização da caverna como produto turísti-co, mas realizar toda uma gama de pesquisas nas encostas da Serra do Cajueiro buscando novos abrigos relacionados ou não com a caverna de Jesuíno Brilhante.

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DEPOIMENTO MEU INTERESSE SOBRE O CANGAÇO

Sobre o cangaço e a cultura do nordeste, surgiu das histórias contadas pela minha avó, de um certo assalto ocorrido na então vila de Carnaúba, distrito do Município de Acari, mais precisamente na Fa-zenda Ramada, ao lado da serra Rajada, no dia 1º de fevereiro de 1927, na qual foi vítima meu bisavô, o fazendeiro Joaquim Paulino de Medeiros (Coronel Quincó).

História que, cada vez mais, concluo que o assalto foi uma grande armação e que a minha família foi tão vítima quanto Chico Pereira e a sua família.

Acredito que este assalto, além de ter tido o propósito de incri-minar o Chico Pereira, serviu também para enfraquecer o potencial financeiro que o Coronel Quincó possuía e, conseqüentemente, difi-cultar a idéia que o meu avô, Joaquim Paulino de Medeiros Filho (o Jacó do livro, filho de Quincó), tinha: Advogado formado no Rio de Janeiro, Jacó tinha sérias pretensões políticas na região e, com o assal-to, tudo mudou.

Meu avô tornou-se (ou talvez sempre tenha sido) comunista. Acabou preso em 35, fugiu para Campina Grande e acabou assassina-do por um primo (por razões políticas) em 1952. Nos arquivos da Se-cretária de Segurança Pública de Natal, e em dois livros publicados sobre a Revolução de 35, meu avô possui no seu prontuário, a profis-são de agricultor. Um tanto estranho esta mudança de trabalho, princi-palmente para um filho de Coronel e comprovadamente formado em Direito.

Esta última parte sobre a vida do meu avô não possui explica-ção dentro do seio familiar, por esta e outras razões que possuo um

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interesse extremamente particular para pesquisar mais a fundo o caso Chico Pereira (também filho de Coronel e depois cangaceiro).

O autor.

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Bibliografia consultada:

• CHANDLER, Billy Jaynes – Lampião, O Rei dos Cangaceiros – Ed. Paz e Terra – 1981.

• CHIAVENATO, Julio – O Cangaço – Ed. Brasiliense – 1990. • FACÓ, Rui. – Cangaceiros e Fanáticos – Ed. Civilização Brasileira

- 1963. • FERREIRA, Vera & ARAÚJO, Antonio Amaury C. de. De Virguli-

no a Lampião – Ed. Idéia Visual – 1999. • GASTÃO, Paulo Medeiros – Contribuição a uma Bibliografia do

Cangaço 1845 / 1996 – Fundação Vingt-un Rosado – Col. Mossoro-ense, vol. 911 – 1996.

• HOBSBAWN, E.J. – Bandidos – E. Forense Universitária – 1975. • MELLO, Frederico Pernambucano de – Guerreiros do Sol – Bandi-

tismo no Nordeste do Brasil.- Ed. Massangana – Recife, 1985. • NONATO, Raimundo. Jesuíno Brilhante – O Cangaceiro Românti-

co. 2º edição – novembro de 1998. • OLIVEIRA, AI. & LEONARDOS, OH. 1943 – Geologia do Brasil.

Rio de Janeiro, Editora FTD, 813 p. • OLIVEIRA, Antônio Kydelmir Dantas de. Mossoró e o Cangaço –

Fundação Vingt-un Rosado – Col. O Mossoroense, série C, vol. 950. Mossoró, junho 1997.

• QUEIROZ, Maria I. P. de – Os Cangaceiros – Ed. Duas Cidades - 1977.

• SEPARN - Sociedade Para Pesquisas e Desenvolvimento Ambiental do Rio Grande do Norte e SBEC - Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço - Resumo Histórico Analise de capacitação Turística e Topográfica da Casa de Pedra de Patu. 1998 (Não publicado).

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ENTREVISTAS SOBRE O CANGAÇO NORDESTINO

José Romero Araújo Cardoso

A Melquíades Pinto Paiva; A Pedro Lins;

A Hermosa Góes Sitônio; A Maria Leonila Costa Cruz (in memoriam), Manuel Arru-

da de Assis (in memoriam), José Cavalcanti (in memoriam) e Zacarias Sitônio (in memoriam).

Introdução

Elaborado e escrito originalmente entre os anos de 1989 e 1991, o presente trabalho se constitui de coletânea realizada a partir de entrevistas que fiz com pessoas que viveram os turbu-lentos anos de domínio da violência e do cangaço no século pas-sado no Estado do Rio Grande do Norte e no vizinho Estado da Paraíba.

Na época eu ainda era estudante universitário, em João Pessoa, capital paraibana, cursando geografia na UFPB, a qual, posso afirmar com certeza, é uma das maiores obras do ministro José Américo de Almeida de tanta influência e participação em diversos temas abordados nesse trabalho de resgate histórico de fontes primárias, cujas memórias o tempo poderia apagar, pri-

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vando-nos de informações valiosas sobre uma época marcada pelo tropel dos cavalos e pelas disputas normalmente resolvidas à bala. A cronologia abrange, principalmente, as décadas de vin-te e trinta do século XX.

Tive, com muita honra, sentindo hoje muita saudade, o privilégio de conviver por muitos anos com atentos espectadores e protagonista, como Manuel Arruda de Assis, que assistiram e participaram do ciclo do cangaço, da hecatombe revoltosa em Piancó (PB) e da guerra civil de Princesa (PB), a qual, por quase cinco meses, ensangüentou o solo paraibano, repercutindo, in-clusive, nos Estados vizinhos e, depois, em todo o Brasil, quan-do triunfou a revolução de 30, possibilitada pelo furor espetacu-lar que tomou conta do País quando do assassinato do presidente paraibano João Pessoa, integrante, capitaneado por Vargas, da chapa da Aliança Liberal que disputou as eleições fraudadas, nesse mesmo ano.

Devido a pouca maturidade com a arte da escrita, quando da confecção dos originais, tive que refazer parágrafos inteiros, reconstituindo-os de acordo com o estágio atual de minha evolu-ção intelectual, literária e cultural.

As memórias desses proeminentes personagens que assisti-ram aos mais espetaculares fenômenos históricos locais, muitos ensejando, como no caso da Revolta de Princesa (PB) (ocorrida de 28 de fevereiro a 26 de julho de 1930), mudança impressio-nante na condução sócio-econômica e político-administrativa do País, essas reminiscências registram diversos aspectos do uni-verso que se concretizou enquanto conjuntura no nordeste brasi-

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leiro semi-árido de uma época, a qual influenciou profundamen-te modos de vida, imaginário e concepções de toda a sociedade sertaneja agro-pastoril.

Minha preocupação em resgatar uma época se concretiza nesta publicação da Coleção Mossoroense, viabilizada por Mel-quíades Pinto Paiva, cujos originais guardou em seu imenso arquivo particular, responsabilizando-se, de fato, pela possibili-dade de trazê-las a público.

Exemplo da importância dessas entrevistas se encontra nas últimas entrevistas concedidas pelo lendário Coronel Manuel Arruda de Assis, o grande militar pombalense que enfrentou cangaceiros, revoltosos da coluna Prestes e “cabras” a serviço do “Coronel” José Pereira, quando da célebre campanha nas serras da Paraíba, na fronteira com Pernambuco, no ano de 1930.

Quando do meu êxodo de João Pessoa em direção à terra de Santa Luzia do Mossoró, fugindo da perseguição brutal insti-tuída há décadas aos que não são genuinamente litorâneos, tal-vez devido ao ódio atávico em razão da morte de João Pessoa, o grande Presidente que desafiou um verdadeiro “fogo de coiva-ra”, desses que chega ao fanatismo quando gosta, da mesma forma que quando detesta, típico dos nativos do semi-árido, fo-ram-me extraviadas as preciosas entrevistas, perdidas, talvez, no ensejo a pressa em sair da ciranda de humilhações vividas na capital paraibana, quando do 13 anos e poucos meses que lá residi. Agradeço peremptoriamente a D’Us por ter me concedido a Benção de ter conseguido sair dali, do meu Estado natal, da

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Paraíba, pois nunca foi aberta uma janela que me permitisse desempenhar o meu trabalho, de mostrar ao mundo que mereço as chances de poder ser útil e assim sobreviver nesta selva de provações e de ausência de valores nobres, valores verdadeira-mente humanos e solidários.

Primeiramente, Graças ao Eterno Todo Poderoso, em se-guida, na terra, ao grande ictiologista e profundo estudioso do ciclo do cangaço, cearense das Lavras da Mangabeira, Professor Doutor Melquíades Pinto Paiva, deve-se o resgate duplo da me-mória privilegiada de muitos amigos que cultivei, verdadeiros e fraternos, diversos desses se encontram na eternidade, aos quais devotei profundo carinho, respeito e amizade quando de suas passagens no plano terreno.

José Romero Araújo Cardoso, Terra de Santa Luzia do Mossoró,

28 de dezembro de 2004

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O ATAQUE DE LAMPIÃO A MOSSORÓ (RN) Entrevista Com Maria Leonila Costa Cruz4

(Mossoró – RN)

Uma das mais importantes e arriscadas ações criminosas de Lampião foi a tentativa de ataque a Mossoró, o mais expres-sivo município do interior do Estado do Rio Grande do Norte.

Planejado, provavelmente em Aurora, Estado do Ceará, auspiciada pelo “Coronel” Isaías Arruda, chefe político local e entusiasta ferrenho do coiterismo, o ataque a Mossoró foi incen-tivado por cangaceiro de nome Massilon Benevides Leite, natu-ral de Pombal, Estado da Paraíba. No dia 13 de junho de 1927, dedicado a Santo Antônio, conforme a tradição cristão-ocidental, houve a invasão do bando de Lampião à importante urbe potiguar.

No dia anterior havia aprontado uma série de tropelias i-nimaginável na pequena localidade de São Sebastião, saquean-do-a e matando moradores indefesos. Os cangaceiros tomaram conta da estação ferroviária e a incendiaram. Tentaram, inclusi-ve, assassinar o gerente de nome Aristides de Freitas.

Mossoró havia sido avisada dos planos de Lampião através de carta remetida pelo “Major” Argemiro Liberato de Alencar, de Pombal, endereçada ao “Coronel” Rodolfo Fernandes, prefei-to da cidade visada pelos bandoleiros das caatingas, com base em informações fornecidas por cidadão residente em Itaporanga

4 CRUZ, Maria Leonila Costa. Mossoró (RN), 15 de janeiro de 1989.

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(PB), no vale do Piancó, de nome Antônio Pereira Lima, irmão do “Coronel” Zé Pereira, de Princesa (PB).

A defesa em Mossoró foi constituída, majoritariamente, por civis convocados pelo “Coronel” Rodolfo Fernandes. O es-paço geográfico foi de fundamental importância para a resistên-cia. Diversos prédios, a estação ferroviária e as torres das igrejas foram empiquetadas com centenas de homens armados.

No calor da hora, pavor e incertezas rondaram as barrica-das do prefeito, diversas feitas com fardos de algodão. O domí-nio do território e a serenidade do chefe executivo foram decisi-vos para a vitória da resistência mossoroense.

Dona Maria Costa Cruz foi uma espectadora assustada dos acontecimentos tétricos registrados naquela época. Estava em São Sebastião quando os bandoleiros ali se arrancharam. Viu a depredação e os estragos que a violência do banditismo rural semeava.

Sua memória enfatizou que os disparos que vitimaram o cangaceiro “Jararaca”, hoje cultuado como “santo milagreiro, foram feitos por cidadão de nome Severino Alves, ao contrário do que nos informa a maioria da literatura sobre o assunto, in-cluindo Raul Fernandes, cujo clássico por título “A marcha de Lampião – assalto a Mossoró”, destaca que esta “façanha” cou-be a outro cidadão de nome Manuel Duarte.

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MÉTODOS DE SANGRAMENTO UTILIZADOS POR VOLANTES E CANGACEIROS

Entrevista Com o Coronel Manuel Arruda de Assis5 (Pombal – PB)

O sangramento foi um dos crimes mais hediondos cometi-

do no sertão nordestino no tempo do cangaço, praticado tanto por tropas volantes, as quais dispunham de “sangradores ofici-ais” como por cangaceiros.

Símbolo de uma cultura forjada pela colonização erigida sob a ênfase da força e da violência, responsável pelo extermínio dos índios que habitavam a hinterlândia, a “técnica” de sangra-mento foi aperfeiçoada ao máximo. A razão econômica da pene-tração interiorana exigia que o gado criado de forma ultra-extensiva fosse, necessariamente, abatido para o consumo de uma minoria privilegiada da população, principalmente a do litoral canavieiro. No sertão, se tornou um “trabalho de mestre” matar sangrando a jugular ou a carótida.

As carótidas são duas artérias, a comum direita e a comum esquerda, sendo que a comum direita é originária do tronco braqui-ocefálico e a comum esquerda é originária do arco aórtico. A ruptu-ra dessas artérias significa morte certa. A hemorragia violenta na via arterial do fluxo de sangue da aorta se encarrega de tudo.

Quando o soldado João da “mancha”, considerado inclusi-ve por seus antigos colegas de farda, como um psicótico, extra-

5 ASSIS, Manuel Arruda de Assis. Pombal (PB), abril de 1989.

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vagante sangrador das forças volantes paraibanas, rompeu, com um bisturi pertencente ao medico Luiz de Góes, a carótida do advogado João Dantas, assassino do presidente João Pessoa, quando de sua detenção na penitenciária do Recife (PE). João Dantas estava preso na companhia do cunhado, o engenheiro Augusto Caldas, também assassinado com a mesma “técnica”. O “serviço” fora feito por um profissional macabro que conhecia muito bem o seu “ofício”. O militar sabia milimetricamente on-de iria romper a artéria, visto que a luta corporal travada entre o intrépido advogado João Dantas e os seus algozes impediu o seccionamento no ponto exato, como pretendia Dr. Luiz de Gó-es. Conforme Arruda, só alguém que estava profundamente em contato com a “arte” de sangrar poderia ter feito um “trabalho” com tamanha perfeição.

As veias jugulares, outras que também eram preferidas pe-los “sangradores” das lutas do cangaço nordestino, são de ex-trema importância para o organismo. A veia jugular interna é a principal. Ao rompê-la é quase impossível de haver qualquer possibilidade de salvação, a não ser que haja modernas técnicas de reversão, como presença de médicos e hospital, praticamente inexistentes nos ermos esquecidos dos sertões de outrora, embo-ra ainda hoje encontremos tal situação em diversos lugares espa-lhados pelo nordeste e pelo Brasil afora.

Com o comprometimento da veia braquiocefálica, poucas chances de vida havia às vítimas desse suplício macabro promo-vido por solados e bandidos no sertão do cangaço, principalmen-te quando do apogeu de Lampião. Essa veia se anastomisa com

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a veia braquiocefálica direita, formando a veia cava superior, de fundamental importância à manutenção da vida.

Lampião era expert nesta técnica, dispondo para iss de imen-so punhal de setenta centímetros de lâmina. Tarimbado na lida do campo, sobretudo no que diz respeito à pecuária, fornecendo peles e couros ao “Coronel” Delmiro Gouveia, com quem a família Fer-reira negociava, o “rei do cangaço” inovou e utilizou-a profusa-mente quando de sua chefia no cangaço (1922 – 1938).

A veia jugular externa, quando rompida, representa morte certa. Essa veia é constituída da junção da veia retromandibular com a veia auricular posterior, e, após vários estágios de grande importância, desembocará, mais freqüentemente, na veia subclávia.

Segundo o Coronel Manuel Arruda de Assis, sobre quem há registros históricos indeléveis, tendo marcado de forma ex-traordinária a história das lutas do povo do semi-árido nas pri-meiras décadas do passado século, outro método bastante utili-zado por ambas as partes envolvidas nas lutas, consistia em per-furar a clavícula, introduzindo-se, com violência, o instrumento perfuro-contudente diretamente na aorta, junto ao coração.

Depois da hecatombe de Piancó, ocorrida no mês de feve-reiro do ano de 1926, cuja participação do velho guerreiro das hostes volantes, natural do município de Pombal, fora decisiva e marcante, houve aprisionamentos de militares da coluna Prestes, bem como da cozinheira da milícia que pregava novos rumos. Era uma baiana conhecida entre os revoltosos por tia Maria. Apenas um escapou da triste sina, devido aos apelos de muitos no sertão, inclusive do Padre Cícero.

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Conforme ainda o entrevistado, um prisioneiro quando do sangramento pelos militares comandados pelo Coronel Elísio Sobreira, revelou ter feito muito isso quando da marcha da colu-na, entre os diversos combates que travou.

Ainda em Piancó, Arruda relembrou a chacina do barreiro, a qual vitimou o Padre Aristides Ferreira e diversos camaradas que lutaram bravamente para tentar conter o avanço da coluna. Todos foram sangrados por membros da coluna, consternados com as mortes dos cavalarianos que chegavam na cidade de Pi-ancó, alvejados pela pontaria certeira do então sargento Manuel arruda de Assis.

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João da “Mancha”: O Soldado Sangrador “Oficial” da Tropa Volante do Tenente Ascendino Feitosa

Entrevista Com o Coronel Manuel Arruda de Assis6

(Pombal – PB)

Embora fosse soldado contratado da Polícia Militar do Es-

tado da Paraíba, João da “Mancha” serviu, particularmente, às intrigas pessoais do Tenente Ascendino Feitosa com membros da família Dantas, naturais de Mamanguape (PB), mas radicada na serra do Teixeira (PB).

Conforme o Coronel Manuel Arruda de Assis, o tempera-mental oficial que servia à causa do presidente João Pessoa, fer-renho inimigo de um sertanejo de nome Silveira Dantas, para quem levou grande desvantagem numa briga, nutria atenção especial pelo humilde e perverso soldado. De acordo com o en-trevistado, esse militar de baixa patente era o braço executor dos sangramentos perpetrado, sobretudo, pela volante do Tenente Ascendino. Ele tinha uma mancha escura no rosto, razão pela qual foi-lhe dado esse apelido.

Outro militar paraibano a quem João Pereira de Sousa, o sangrador João da “mancha”, serviu, foi ao Tenente João Maurí-cio da Costa. Arruda revelou que foram inúmeros combates con-tra cangaceiros, de cuja participação desse soldado foi registra-

6 ASSIS, Manuel Arruda de. Pombal (PB), abril de 1989.

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da, algumas marcantes. Manuel Arruda de Assis disse que em certa ocasião esse soldado foi condecorado, ganhando divisas de cabo, mas devolveu-a e preferiu voltar a ser soldado.

A notoriedade desse soldado foi granjeada no ensejo da tomada da penitenciária em que se encontravam presos o Dr. João Duarte Dantas e seu cunhado Augusto Caldas, o primeiro, assassino do presidente João Pessoa e, o segundo, era uma ino-cente vítima das intrigas políticas.

Após assassinar o carismático chefe do executivo paraiba-no, em Recife (PE), o filho do “Coronel” Franklin Dantas, exe-cutor confesso do crime, cujo ato, cheio de fúria fôra presencia-do por diversas pessoas, é ameaçado constantemente pelos re-voltados paraibanos. Ameaçaram sangrá-lo assim que a revolu-ção triunfasse e a Aliança Liberal chegasse ao poder.

Quando as tropas comandadas por Juarez Távora, ativo in-tegrante da coluna Prestes, chegaram ao Recife, o primeiro local visado pelos militares paraibanos foi a detenção onde se encon-travam presos João Dantas e Augusto Caldas que se tornou alvo dos comandados por Ascendino Feitosa, estando entre estes João da “mancha” e o médico Luiz de Góes. Conforme o entrevista-do, esse médico era capaz de tudo, regido por verdadeiro espíri-to sanguinário.

Dominados os prisioneiros, Luiz de Góes apontou a As-cendino a carótida. João Dantas entrou em luta corporal com seus algozes, sendo atingido na sobrancelha. Com precisão in-vulgar, João da “mancha” recolheu o bisturi e aplicou certeiro golpe no local indicado, pondo fim à vida de João Dantas. O

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entrevistado revelou que o corpo do advogado foi profanado de diversas maneiras, mesmo quando estertorava. Em seguida, o engenheiro Augusto Caldas teve o mesmo fim, morrendo implo-rando para que o deixassem cuidar da família.

Segundo Manuel Arruda de Assis, era comum solicitar a presença de João da “mancha” quando cangaceiros eram aprisi-onados. No combate de 1923, quando o sucessor de Sinhô Perei-ra fora ferido no tornozelo, no qual pereceram Lavandeira e Cí-cero Costa, dois cangaceiros de importância fenomenal no ban-do de Lampião, ambos foram sangrados pelo frio soldado volan-te que se aperfeiçoou em matar usando o extremo da covardia e da perversidade.

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João Paulino, Um “Cabra” a Serviço do “Coronel” Zé Pereira

Entrevistas Com Pedro Lins

(João Pessoa – PB),

José Cavalcanti (João Pessoa – PB)

e Zacarias Sitônio (João Pessoa – PB)

A revolta de Princesa (PB) teve uma de suas origens no

encadeamento de conseqüências trazidas com a política econô-mica de João Pessoa para os interesses da elite dirigente da soci-edade sertaneja agro-pastoril, representadas pelas oligarquias paraibanas.

À conjunção de fatores em que imperou, além da supra ci-tada causa, desprestígio de chefes políticos tradicionais e uma inteira aversão ao suporte da oligarquia maior estruturada por Epitácio Pessoa, baluarte incontestável da política paraibana de 1916 a 1930, somou-se aos burburinhos do cenário nacional e fez eclodir, em 28 de fevereiro de 1930, a mais feroz luta arma-da registrada no século XX em solo paraibana.

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Princesa se tornou fortaleza inexpugnável, resistindo pal-mo a palmo o assédio das milícias leais ao presidente João Pes-soa. Muitos militares desertaram para servir ao chefe da revolta, o até então prestigiado “Coronel” José Pereira.

Entre os que preferiram empenhar a palavra ao seu benfei-tor, conforme os costumes de concessão de favores e benesses da época, estava um soldado de nome João Paulino, profundo conhecedor dos cenários das beligerâncias.

O “Coronel” José Pereira Lima organizou a defesa dos seus domínios de forma impressionante, provocando baixas es-trondosas à força pública paraibana durante os quatro meses e vinte e oito dias que durou sua resistência à ação implacável da bravura dos militares paraibanos.

Conforme Zacarias Sitônio, presente aos fatos e atento es-pectador da revolta de Princesa, a segurança pública do governo João Pessoa preparou àquela que foi considerado a coluna da vitória. Quase cem homens foram colocados em caminhões na capital do Estado e mandados para o teatro de guerra. Levavam um bruxo, cujas preces e mandingas garantiam que os solados pegariam Zé Pereira à unha.

Na subida da serra, em direção a Princesa, foram trucida-dos por “cabras” comandados por Marcolino Pereira Diniz, João Paulino, Gavião, Caixa-de-fósforo, entre outros. O bruxo foi alvo de dezenas de disparos, caindo mortalmente ferido. Deze-nas de soldados perderam a vida nesse cruento combate.

Devido à possibilidade de recrudescimento do conflito, com uso de armas mais potentes, visto até aeronaves ter sido

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conseguida pelo governo paraibano, o “Coronel” Zé Pereira or-denou que João Paulino semeasse regímen de terror sertão afora. O chefe guerrilheiro atacou casas de Liberais em Brejo do Cruz (PB) e área fronteiriça ao Estado do Rio Grande do Norte, oca-sionando grandes depredações.

Saques, pilhagens, roubos, e, não raro, estupros, marcaram esta fase da campanha de Princesa. Pedro Lins narrou que no eixo Jatobá de Piranhas (PB) – Bonito de Santa Fé (PB), houve verdadeira celeuma provocada na população indefesa pelos ja-gunços comandados por João Paulino, fato confirmado por José Cavalcanti, morador do sítio Pinheira, em Jatobá de Piranhas, hoje cidade de São José de Piranhas, quando da passagem da coluna insurrecta por esta região.

Nesses ermos localizados na fronteira dos Estados da Para-íba com o Ceará, João Paulino encontrou a morte quando resol-veu atacar fazenda, cujo morador, de nome Raimundo Marceli-no, conforme informações prestadas por Pedro Lins e José Ca-valcante, conseguiu surpreendê-lo e, assim, desferir violenta cutilada de arma branca. O jagunço de Zé Pereira ainda conse-guiu manobrar a sua arma longa e fazer disparo, o qual acertou a perna do velho genitor do seu algoz.

Enterrado às margens do rio Piranhas, João Paulino, con-forme Zacarias Sitônio, desobedeceu as ordens do comando da república de Princesa, pagando com a vida devido o despertar de sua ganância.

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Entrevistas Pessoais:

CAVALCANTE, José. João Pessoa (PB), 27 de julho de 1991.

LINS, Pedro. João Pessoa (PB), 23 de julho de 1991.

SITÔNIO, Zacarias. João Pessoa (PB), 29 de julho de 1991.

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A Vingança de Lampião Contra o “Coronel” Zé Pereira

Entrevistas Com Hermosa Góes Sitônio

(João Pessoa – PB)

e Zacarias Sitônio (João Pessoa – PB)

O mais comentado combate entre cangaceiros comandados

por Lampião e soldados sob as ordens do Major pernambucano Teófanes Ferraz Torres, famoso por ter capturado Antônio Sil-vino em 1914, ocorreu no ano de 1923, entre os municípios de Conceição do Piancó (PB) e São José do Belmonte (PE), na ser-ra das panelas.

Essa feroz prova de fogo ficou famosa por que àquele que se tornava o “rei dos cangaceiros” foi ferido no tornozelo, além de perder importantes membros do bando, como Lavandeira e Cícero Costa, o farmacêutico do grupo.

Zacarias Sitônio e Hermosa Góes Sitônio rememoraram àqueles acontecimentos, narrando que Lampião ficou abandona-do durante doze dias, no mato, agonizando. Quando o descobri-ram, o seu estado era desesperador, coberto de parasitas e com o pé preso à perna apenas por tendões.

A guarda pessoal de Marcolino Pereira Diniz o escoltou até os Patos de Irerê, localizado a 18 quilômetros de Princesa,

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reduto do poderoso “Coronel” José Pereira. Marcolino, imortali-zado por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira em famoso baião intitulado “Xanduzinha”, era sobrinho e cunhado do “Coronel” Zé Pereira, chefe político princesense de grande expressão na década de vinte do século passado.

Na malha impecavelmente protomafiosa montada por Lampião, Marcolino e o seu pai, o “Coronel” Marçal Florentino Diniz, compunham importantes agentes a serviço da proteção ao cangaço. Foram eles os principais responsáveis pela continuida-de da carreira de bandido de Lampião. Convocaram médicos e serviçais para tratar do calcanhar que fora seriamente afetado, atingido no tiroteio da serra das panelas.

Em Nazarezinho (PB), outra questão da família Pereira era reclamada por um sertanejo de nome Francisco Pereira Dantas. Na ênfase ao rosário de ódio que começou a ser tecido quando da morte do patriarca deste ramo familiar espalhado pelo nor-deste, houve convite de um pequeno comerciante desta localida-de, de nome Chico Lopes, para raid dos bandoleiros à cidade de Sousa (PB), saqueada em 27 de julho de 1924. Foram coman-dantes do assalto os irmãos de Lampião, Antônio e Levino, Chi-co Pereira, Chico Lopes, Sabino Gório e um cangaceiro de nome Paizinho, responsável pela ação violenta de domínio da residên-cia do magistrado local, Dr. Archimedes Souto Maior.

A rede de informantes de Lampião era precisa. Conforme Zacarias Sitônio e Hermosa Góes Sitônio, o chefe cangaceiro entrou em profunda angústia quando as notícias sobre a violên-cia do ataque lhes chegaram. O bando havia se excedido em

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Sousa, responsabilizando-se pelas mais vexatórias e vergonho-sas ofensas ao representante máximo da lei na cidade.

Astuto e sagaz, Virgulino sabia que sua estadia pacata e tranqüila na região de Princesa estava definitivamente inviabili-zada. Zé Pereira iria tomar providências drásticas no sentido de efetivar perseguição ao seu grupo. Era dever incontestável e indiscutível do político princesense levar avante campanha per-seguitória ao cangaço sob o domínio de Lampião. E assim o fez.

Foi instalado Batalhão da Polícia Militar na cidade de Pa-tos das Espinharas (PB). Os combates entre cangaceiros e volan-tes se intensificaram de forma impressionante, resultando na tragédia de Serrote Preto, na região de Água Branca (AL). Atra-ídos para uma armadilha, muitos soldados e oficiais paraibanos foram eliminados, diversos de maneira cruel.

Em seguida, continuando a haver refregas entre os dois la-dos, houve o assassinato de Levino Ferreira, primeiro irmão o “rei do cangaço” a perecer em luta. O confronto se deu, confor-me os entrevistados, no ano de 1925 em uma localidade conhe-cida por Tenório, localizada na região de Flores do Pajeú (PE). Lampião culpou Zé Pereira pela perda do parente, jurando vin-gança.

O cangaceiro passou a atacar o gado pertencente ao “Co-ronel” Zé Pereira, bem como aos que pertenciam aos seus agre-gados e familiares. Iniciava-se a vingança implacável e perversa de Lampião.

As ações mais violentas foram registradas em dois lugare-jos perdidos nas quebradas daquele sertão. Em propriedades

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conhecidas por “Caboré” e “Lagoa do Serrote”, os bandoleiros assassinaram diversas pessoas, incluindo entre estas um ancião que contava com mais de noventa anos e uma criança de apenas doze anos.

Amaldiçoando o solo paraibano pela perda do parente, Lampião deslocou sua área de atuação par o seu estado natal, onde a malha de coiteiros lhe serviu satisfatoriamente, articulada com o esquema criminosos estruturado em conluio com a rede de proteção ao banditismo rural que vicejava no sul do Ceará.

Entrevistas Pessoais:

SITÔNIO, Hermosa Góes. João Pessoa (PB), 10 de agosto de 1991.

SITÔNIO, Zacarias. João Pessoa (PB), 10 de agosto de 1991.

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Sabino das Abóboras, um cangaceiro de Lampião

Entrevistas com Hermosa Góes Sitônio (João Pessoa – PB)

e Zacarias Sitônio (João Pessoa – PB)

A fazenda Abóboras está situada entre os municípios per-

nambucanos de Serra Talhada e Triunfo. Pertenceu ao “Coronel” Marçal Florentino Diniz, cedida, por herança, ao casal José Pereira Lima – Alenxadrina Pereira Lima, sua filha e sobrinha do esposo. Zé Pereira transformou-a em importante empresa rural.

As Abóboras e o seu entorno se transformaram em valha-couto de Lampião. O cangaceiro a freqüentava regularmente, talvez como forma de dar vazão ao seu imaginário e concepção de homem de projeção social, como sempre desejou.

Sabino Gório nasceu e foi criado nesta fazenda mantendo contatos ininterruptos com famanazes do banditismo rural serta-nejo. Era homem de confiança de Marcolino Pereira Diniz.

Ao contrário do que Leonardo Motta e Rodrigues de Cava-lho enfatizaram, Sabino das Abóboras, conforme revelaram Za-carias Sitônio e Hermosa Góes Sitônio, não entrou par o canga-ço devido morte de um irmão de nome Gregório. Asseguraram que a inserção do temido pernambucano nas hostes do banditis-mo rural sertanejo, cuja participação na tentativa de ataque a

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Mossoró, em junho de 1927, foi enfática, se deu em razão do assassinato de um primo legítimo de nome Josino Paulo, surdo-mudo martirizado por Clementino Quelé, o célebre tamanduá vermelho das pilhérias do cangaceiro.

A razão para o trucidamento do inocente Josino Paulo de-veu-se à morte de um irmão do valente Quelé, vitimado por ba-las disparadas por irmão da vítima, de nome José Paulo.

No combate que definiu a entrada de Sabino das Abóboras no perigoso mundo do cangaço, Quelé se encontrava acamado, vitimado por bexiga. Conforme os entrevistados, o famoso guer-reiro de Santa cruz da BaixaVerde (PE) se deslocou, como um raio, até uma das fazendolas que circundam as Abóboras, com o propósito deliberado de levar avante vingança, não se importan-do a quem atingia.

Poucos cangaceiros foram tão cultivados, fora o chefe Lampião, do que Sabino Gório, cuja presença no cangaço a cul-tura popular se encarregou de perpetuar, a exemplo da trova divulgada pelas quebradas do sertão, a qual dizia: “Lá vem Sa-bino mais Lampião, chapéu quebrado, fuzil na mão”.

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Entrevistas Pessoais: SITÔNIO, Hermosa Góes. João Pessoa (PB), 10 de agosto de 1991. SITÔNIO, Zacarias. João Pessoa (PB), 10 de agosto de 1991.

NOTAS SOBRE O AUTOR José Romero Araújo Cardoso. Pombal – PB (28 de setembro de 1969). Geógrafo. Professor Adjunto do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da Uni-versidade do Estado do Rio Grande do Norte. Assessor da Fun-dação Vingt-un Rosado/Coleção Mossoroense. Escritor. Especi-alista em Geografia e Gestão Territorial (UFPB) e em Organiza-ção de Arquivos (III CEOARQ – UFPB). Mestre em Desenvol-vimento e Meio Ambiente – PRODEMA - UERN. Membro da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço (SBEC) e do Insti-tuto Cultural do Oeste Potiguar. Sócio-correspondente do Insti-tuto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN) e do Instituto Cultural do Vale Caririense (ICVC). Contatos: 084-316-5093. E-mail: [email protected]

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DEPOIMENTO SOBRE LAMPIÃO EM MOSSORÓ Laíre Rosado

REPORTAGEM DE ILNÁ ROSADO

LEAD

JERÔNIMO LAHYRE DE MELLO ROSADO, 78 anos, é

farmacêutico e funcionário público federal aposentado. Nasceu em Mossoró, diplomou-se em Recife, pela Faculdade de Farmá-cia do Recife, foi sócio responsável pela Farmácia Rosado e pela fórmula do Antinevrálgico Rosado, da autoria do seu avô, remé-dio contra gripe, febre e dor de cabeça. Era daqueles farmacêuti-cos que manipulavam fórmulas e até hoje, se mantém informado sobre medicamentos e suas composições. Exerceu o cargo de Inspetor Federal de Ensino, transferiu-se para Natal, em 1964, morou alguns anos em Salvador, na Bahia e hoje reside na capi-tal deste Estado.

Seu sonho era ser médico, mas só estudou seis meses, pas-sando para farmácia; órfão de pai, que era médico, criado pelo avô desde os 12 anos, sentiu a necessidade de trabalhar, deixan-do de cursar a faculdade que o levaria aquela profissão. Assumiu a Farmácia, casou com Francisca Gurgel Frota, com quem teve quatro filhos, dos quais três se formaram em medicina. Seu neto mais velho cursa medicina, diz com orgulho.

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De uma formação humanística invejável, conhecedor de vá-rios idiomas, dentre eles, o francês e inglês, expert em História Universal, de temperamento calmo e retraído, Dr. Lahyre é deten-tor de uma memória prodigiosa. Sabe e recita poesias de vários poetas brasileiros. A leitura é sua principal ocupação. Diz ter um sexto sentido muito aguçado e nunca erra nos conselhos que dá.

No terraço dos fundos de sua residência, que ele chama, ale-gremente, de “sala de visita”, rememora fatos de sua infância e juventude, alguns alegres, com aquela pitada de ironia, outros tris-tes, que não gosta de comentar. Lampião é um deles.

Convidado para falar ao “Mossoroense” sobre esse aconte-cimento relutou e retrucou: “o que sei sobre Lampião é o que vivi. Nunca li nada sobre o assunto, pois os fatos vivenciados foram terríveis”.

Repórter – Quantos anos você tinha na época do ataque

de Lampião e seu bando a Mossoró? Lahyre – Eu tinha 16 anos e estava no sítio do meu avô

Jerônimo Rosado, que ficava por trás da cadeia pública, à beira do rio. Fazia companhia à minha mãe, Ilnah de Mello Rosado, muito doente, que faleceu pouco mais de um mês depois.

Repórter – Que época era essa e quando soube que o bando de Lampião estava indo em direção a Mossoró?

Lahyre – Estávamos em junho de 1927. Começou a correr o boato, no sábado, pois soubemos, através do aviso pelo telé-grafo de São Sebastião, (hoje Gov. Dix-sept Rosado), que o bando estaria vindo em direção a Mossoró. Naquela época, as

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comunicações eram via telégrafo e a cidade se comunicava com outras cidades, com São Sebastião e Porto Franco. À noite, esta-va havendo um baile do Humaitá, comemorando a vitória e não foi dada muita importância ao fato. Aquele sábado era dia 11 ou 12? Não sei precisar bem. Lampião atacou Mossoró no dia 13. Não me lembro que dia foi 13, mas sempre achei que era um domingo. O que me lembro é que o pessoal da estrada de ferro de São Sebastião transmitiu a mensagem, abandonou suas posi-ções e o trem já tinha saído a não sei quantas horas para Mosso-ró, quando o bando lá chegou. Já pensou se Lampião tivesse chegado a Mossoró, de trem? Teria desembarcado numa das trincheiras mais fortes da cidade, a da estrada ferroviária.

Repórter – Conte a situação da população. Lahyre – Era um corre-corre danado, gente tirando seus

familiares da cidade, em direção ao Tibau, Areia Branca, teve gente que ficou até embarcado, no mar. Lampião trouxe

tanto aperreio, que não tive tempo de ter medo. As aflições su-peram o medo.

Repórter – E seus familiares, onde estavam? Lahyre – O velho Rosado, meu avô, com quem eu morava

desde a morte do meu pai, Jerônimo Rosado Filho, não queria sair da casa do centro da cidade. Ele chegou a fazer uma seteira (buracos enviesados nas paredes da sala), pois queria se defen-der dentro de casa com a família. Duo (Duodécimo), seu filho, ponderou que ele deveria retirá-la para um lugar seguro, pois ele tinha muitas filhas e o bando era terrível. Então ele passou a transportar todos, em várias viagens de automóvel, na manhã do

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dia do ataque. Foram todos para o “Canto do Junco”, de propri-edade do Sr. Dobinha, no caminho de Tibau. Imagine, umas casinhas de palha, num descampado, sem proteção... Mas era fora da cidade. Na casa da rua só ficaram o velho Enéas, avô de Wilson Rosado e “Seu Chico”, antigo empregado da farmácia, com as portas e janelas trancadas.

Repórter – E você ficou no sítio? Lahyre – Não. Como minha mãe estava muito mal e não

podia ir junto, eu fui à cidade buscar um carro, para levá-la para outro sítio, de minha avó materna, D. Maroca, um pouco mais adiante do primeiro, entrando pelos Paredões. Quando chegamos lá, já havia mais ou menos 40 pessoas. Voltei ainda ao anterior, para buscar algumas coisas que ficaram lá. Um trabalhador, que tinha levado um bule de leite, um depósito grande para a cidade, como sempre fazia, lá chegando, encontrou tudo deserto. Voltou às pressas para o sítio de meu avô, encostou o bule num canto da casa, correu e atravessou o rio a nado. Ouvi o tiroteio e rumei para o outro sítio, por dentro, pulando cercas, cortando caminho.

Repórter – E o que aconteceu aí? Lahyre – No meio de tanto aperreio, sempre acontecem

fatos pitorescos. João de Melo, um rapaz que morava na casa de D. Marola Silva, que também estava lá, foi até à beira do rio e viu um sujeito de chapéu de couro, no sítio vizinho, encostado na cerca. Deu de volta, contou o fato e saiu gente correndo até pelo arame farpado das cercas, pra tudo que é lado. Na casa fica-ram sete pessoas. Eu, minha mãe, deitada numa rede, muito mal, D. Marola Silva e seis filhos Pedro e Viriato e os dois moradores

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do sítio. Fechamos as portas e ficamos esperando. Eu tinha uma arma, creio que um mosquetão, que João de Melo sacudiu nos meus pés quando fugiu.

“Amaro Silva trouxe enrolada nuns panos, a orelha de Colchete, o cangaceiro que havia sido morto, no largo da Igreja de São Vicente”.

Repórter – E apareceu alguém do bando? Lahyre – Não. Ninguém. Foram horas e mais horas de

angústia. E nós, lá dentro, trancados. Eu, tomando conta de mi-nha mãe... Já tinha havido a refrega. Amaro Silva, que estava nas trincheiras, foi até o sítio, que nós chamávamos de “canto”, para ver a mãe dele, D. Marola.

Repórter – E o que ele disse? Lahyre – Contou o que havia acontecido na cidade e trou-

xe enrolada nuns panos, a orelha de Colchete, o cangaceiro que havia sido morto, no largo da Igreja de São Vicente. Botaram-na em uma lata e esta dentro de outra e enterraram em baixo de uma árvore. Não me lembro se era de Juá ou Oiticica, mas fica-va perto da casa. Tempos depois, eu derrubei essa casa, que fi-cava perto da porteira e construí outra mais recuada. Essa histó-ria eu sempre contei a vocês, quando o sítio era nosso e vocês sempre cavavam debaixo das grandes árvores, perto da antiga casa, à procura de orelha de Colchete.

Repórter – E vocês ainda ficaram no sítio? Lahyre – Não; voltamos para a cidade e entramos pelos

fundos da casa de D. Marola, que ficava perto da cadeia, acho que na Rua Machado de Assis, não sei que nome tem hoje. Mi-

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nha mãe veio numa rede, cujos punhos eram enfiados em uns paus, carregada nos ombros por mim e outras pessoas. Daquele jeito que se leva defunto no interior.

Repórter – Houve algum incidente no caminho? Lahyre – Não. Ou melhor, quase. Havia uma trincheira na

cadeia e a história do homem do chapéu de couro tinha chegado até lá. As pessoas da trincheira estavam a postos, com armas apontadas em direção ao sítio. Assim que passamos pela cadeia e entramos em casa, ouvimos aquela descarga de fusilaria. Di-zem que mataram um cavalo! Dias depois, levei minha mãe para a casa dela, na Rua Bezerra Mendes, onde faleceu.

Repórter – O que você soube dos acontecimentos da ci-dade?

Lahyre – Lampião mandara um bilhete para o Prefeito Cel. Rodolfo Fernandes, exigindo 400 contos de réis, caso con-trário, incendiaria a cidade. O Prefeito mandou dizer que ele viesse receber a quantia. Mossoró praticamente não tinha solda-do e Natal não mandara reforços. A cidade foi defendida pela população civil. Sabia-se que Lampião não queria entrar em Mossoró, mas foi convencido dada a insistência de Sabino, um dos destaques do grupo. Dizia-se Lampião não gostava de atacar cidades que tinham Igrejas.

“O curioso é que os bandidos se movimentavam, não pa-ravam, para desviar as balas”.

Repórter – Pelo que lhe contaram na época, como eles chegaram?

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Lahyre – Pelo Alto da Conceição; deixaram os cavalos em um lugar, do outro lado do rio e vieram a pé. Atacaram pela Igreja de São Vicente, que ficou com a parte de trás (arredonda-da), cheia de buracos. A respeito disso, um deles disse algo (com a Igreja), que não quero que você bote aí. Pois bem, Lam-pião e o bando se espalharam, pela praça da Igreja, depedraram uma casa lá, cujo pessoal tinha ido para Areia Branca. Esse pes-soal não ficou em terra não; ficou embarcado, sobre águas, tal era o medo. Voltando a praça, três pessoas da cidade, entre elas, Manuel Duarte, subiram na torre da Igreja, badalando os sinos, anunciando a chegada do bando, mas se esqueceram de fechar a porta. Felizmente não aconteceu nada a eles. Os bandidos pen-savam que os tiros cerrados saíam da Igreja, mas não foi não; eram das trincheiras, principalmente a de Rodolfo Fernandes. O curioso é que os bandidos se movimentavam, não paravam, para desviar as balas.

Repórter – Havia muitas trincheiras? Lahyre – Sim, muitas. Por trás dos parapeitos dos prédios

altos da cidade, em vários lugares. A de Rodolfo Fernandes também era muito forte. Amaro Silva ficou lá. Durante muitos dias depois, ainda se viam os sacos empilhados.

Repórter – Sabe dizer se alguém morreu no tiroteio? Lahyre – Da população, ninguém. Do bando, Colchete, no

largo de São Vicente, arrastado depois até o patamar da Igreja Matriz. Ele avançara, com um punhal na boca, em direção à trincheira Rodolfo Fernandes e foi atingido por uma bala. Creio que ela partiu de lá. Aconteceu que Jararaca, outro do bando,

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deixou de se movimentar e se baixou para tirar o armamento de Colchete, tendo sido atingido por uma bala no peito; tentou cor-rer, mas foi atingido por outra bala, dessa vez, na perna. Aí foi sua desgraça! Sem poder andar, ainda conseguiu se arrastar até as imediações da Estrada de Ferro, onde ficou escondido e de-pois encontrado. Acho que o primeiro tiro partiu do alto da Igre-ja. O Menino de Ouro, um adolescente do bando, terrível, ficou ferido e parece-me que outros do bando também, mas consegui-ram fugir. Não sei se ele morreu, mas não apareceu na foto do bando tirada, tempo depois, em Limoeiro. Quanto a Jararaca, a versão que sei é que ele teria ido até uma casa pedir ajuda em troca de dinheiro e o entregaram à polícia.

Repórter – Em que pontos da cidade estiveram os canga-ceiros?

Lahyre – Nos fundos do Cemitério, ali pela União dos Ar-tistas, hoje Liga Operária e na Praça de São Vicente, vindos do Alto da Conceição.

“Acho que pensavam que Jararaca ia morrer. Como isso não aconteceu, resolveram matá-lo, temendo que Lampião vol-tasse para buscá-lo”.

Repórter – O que aconteceu com Jararaca? Lahyre – Ele foi preso e levado para a cadeia. Eu fui vê-

lo, como muita gente que esteve lá. Estava na parte térrea da área livre, sentado num caixão antigo, daqueles que levam duas latas de gasolina, com a perna estirada e os soldados ao lado.

Repórter – Que impressão lhe causou?

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Lahyre – Tinha uma cara horrível, os cabelos sujos, pra cima de duros; era uma coisa asquerosa, todo sujo, um bicho! Acho que vestia uma camisa e uma calça, mas estava tão sujo que não deu para perceber bem. Não vi sangue. Ele disse que “se fosse só a ferida do pulmão, curava com pimenta malague-ta”. Explico a você porque. Tem balas que atravessam fazendo um pequeno orifício na entrada, deixando um rombo maior do outro lado. Depende do calibre ou se ela é de chumbo.

Repórter – E o que fizeram com ele? Lahyre – Acho que pensavam que ele ia morrer; mas co-

mo isso não aconteceu, resolveram matá-lo, temendo que Lam-pião voltasse para buscá-lo. Aí ninguém teria sossego. Natal reclamou muito porque ele foi morto. O Major Laurentino, de Mossoró, se justificou com esse argumento. Pois bem, levaram Jararaca para o cemitério, fizeram-no cavar a cova, mataram-no com uma faca ou punhal, segundo eu soube, e o enterraram.

Repórter – E a vida da cidade, voltou ao normal? Lahyre – Passamos uns dias de incertezas, por não saber-

mos onde Lampião se encontrava. Uma volante da Paraíba cru-zou Mossoró, em perseguição ao bando, mas sem notícias dele. Com o passar dos dias, as lojas do comércio foram abrindo suas portas; a qualquer boato ou alarme, os sinos da Igreja repica-vam, todos fechavam as portas e corriam. Só respiramos alivia-dos, quando chegou a Mossoró, a foto de Lampião e seu bando, tirada em Limoeiro. Aí tivemos a certeza de que ele tinha ido embora.

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Repórter – Como soube da morte de Lampião e Maria Bonita?

Lahyre – Soube tempo depois. O capitão que comandava a volante era parente daquela nossa amiga alagoana, que morou muito tempo em Mossoró e hoje mora em Salvador. Como o lugar que o pegaram era difícil acesso, o capitão levou as cabe-ças dele e de Maria Bonita, para provar que os tinha matado. Elas ficaram muito tempo em Salvador, em exposição no Insti-tuto Médico-Legal Nina Rodrigues, onde hoje funciona um mu-seu.

“Eu não vi. Mas você, quando esteve lá, muitos anos de-pois, ainda viu, não foi?”.

Repórter – Passados todos aqueles anos do episódio, você chegou a ler alguma coisa sobre Lampião?

Lahyre – Não. Não gosto de falar sobre isso e muito me-nos ler a respeito. Um dia desses, minha irmã queria me trazer um livro sobre o assunto, da Coleção Mossoroense. Recusei. Nunca li nada sobre o episódio, pois os fatos vivenciados foram terríveis. Medo não tive. Meu aperreio foi tão grande, que não tive tempo de ter medo.

Repórter – Recentemente estive em Mossoró e numa pas-sagem rápida pela antiga cadeia, hoje um museu, de relance, vi uma fotografia de alguns civis que defenderam a cidade, no dia do ataque de Lampião. Alguém que também visitava o museu, comentou que os civis que ali estavam, teriam se juntado para tirar a foto e que muitos deles não combateram nas trincheiras. Gostaria de saber sua opinião a respeito disso.

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Lahyre – Essa história de dizer que os civis se juntaram para tirar o retrato, isso é uma mentira. Natal não mandou nin-guém para ajudar. O contingente policial existente era muito reduzido. Mossoró foi que se defendeu.

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VIRGULINO FERREIRA DA SILVA – O Cangaceiro Lampião –

José Romero Araújo Cardoso Benedito Vasconcelos Mendes

Susana Goretti Leite

Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião, nasceu a sete de julho de 1897 no município de Villa Bella, hoje Serra Talha-da, Estado de Pernambuco, e foi registrado no cartório da sua cidade natal a doze de agosto de 1900, conforme registro de nascimento reproduzido por Carvalho (1974). Era filho de José Ferreira dos Santos e Maria Sulema da Purificação, sendo de-fendido por diversos autores que pertencia a família Feitosa, dos Inhamuns, no Estado do Ceará. Com relação a esta possibilidade assim se expressa Macedo (1975, p. 25);

se é verdade que o capitão Virgulino vinha do tronco Feitosa dos Inhamuns, a violência do sangue, de fato, era-lhe muito antiga. Família velha como o sertão dos sesmeiros e povoado-res, dividia, no sul do Ceará, nos Inhamuns, o poderio com os Montes, outro clã de sangue quente e muito derramado naque-las paragens.

A primeira referência a esta vinculação genealógica de

Virgulino Ferreira da Silva com a valente família cearense en-contramos em seu biógrafo pioneiro, o jornalista paraibano Éri-co Gomes de Almeida, quando escreveu a obra, intitulada

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“Lampeão, sua história”, escrita em1926 quando a fama do ban-dido atingia proporções exponenciais.

Quanto ao físico e indumentária, Leonardo Motta, célebre folclorista cearense, assim o descreveu;

Amulatado, estatura meã; magro e semi-corcunda; barba e nuca ordinariamente raspados e sempre que é possível perfu-mados; na perna esquerda encravada uma bala, com que o al-vejou o sargento “Quelé”, da polícia parahybana; o olho di-reito branco e cego, escondido pelos óculos pardacentos, de aros dourados; mãos compridas que se assemelham a garras; os dedos cheios de anéis de brilhantes falsos e verdadeiros; ao pescoço, vasto e vistoso de cor berrante, preso ao lado por va-lioso anel de doutor em direito; sobre o peito, medalhas do pa-dre Cícero, escapulários e saquinhos de “rezas fortes”, chapéu de cangaceiro, tipicamente adornado de correias e metal branco; ensimesmado toda vez que defronta uma turma de cu-riosos; folgazão quando entre poucos estranhos ou no meio de comparsas; não se esquecendo de um guarda costa à direita sempre que desconhecidos o rodeiam; paletó de camisa de ris-cado, claro, calças de brim escuro; alpercatas reluzentes de i-lhozes amarelos; a tira-colo, 2 pesados embornaes de balas e bugingangas, protegidos por uma coberta e chales finos; tórax guarnecido por 3 cartucheiras; ágil como um felino mas apa-rentando constante estropiamento e exaustão; às mãos um fu-zil; à cintura duas pistolas “parabellum” e um punhal de 78 centímetros de lâmina. (In: Araújo, 1982, p. 76)

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A Vida Antes e Depois de Entrar Para o Cangaço

Virgulino Ferreira da Silva levava vida normal como qualquer outro sertanejo antes de adentrar o cangaço, campean-do o gado na caatinga, correndo em vaquejadas, trabalhando em artesanato de couro e auxiliando o pai como almocreve. Esta última atividade certamente favoreceu-lhe bastante no conheci-mento profundo das veredas do sertão. Gueiros (1953, p. 11) faz referências às façanhas de Lampião quando vaqueiro na adoles-cência, frisando que era respeitado e admirado nas ribeiras do riacho de São Domingos, que cortava a propriedade dos seus pais em Villa Bella.

Um pretenso roubo de chocalhos foi o responsável pelas primeiras escaramuças contra uma família antes amiga, ligada aos Ferreiras por fortes laços de compadrio. Os Saturninos da Pedreira, em alusão a propriedade Pedreira que situava-se vizi-nha às terras da família de Lampião, são apontados como pivô das refregas nos longínquos anos finais da década de 1910 do século passado, conforme Macedo (1975, p. 29-35).

Lampião estreou na senda do crime em seu estado natal, mas foi com a fixação de sua família em Alagoas, depois do acordo informal mantido com os rivais, que provocou a transfe-rência de seus pais e irmãos para a não menos violenta localida-de de Matinha de Água Branca (AL), onde ficou protegido pelo “coronel” Ulisses Luna em Alagoas que houve de fato a sua inserção no cangaço, bem como a de alguns irmãos seus à exce-

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ção de João Ferreira e Ezequiel, que depois se integraria também ao bando.

Ataques cruéis entre os anos iniciais da década de 1920 às localidades de Pariconhas, Espírito Santo e Poço Branco, todas no estado Alagoano, são apontados como as façanhas que rende-ram notoriedade regional aos irmãos Ferreira (Maciel, 1985, p. 15-29), embora a façanha que de fato lhe deu mais destaque te-nha sido o saque à residência da Baronesa de Água Branca, resi-dente em Água Branca (AL), Dona Joanna Vieira de Siqueira Torres (idem, p. 38-43).

Lampião serviu ainda como cangaceiro ao seu conterrâ-neo Sebastião Pereira e Silva, conhecido por Sinhô Pereira, que movia luta sem trégua contra os Carvalhos da mesma localidade de Villa Bella. Quando o comandante Sinhô Pereira deixou o sertão e fugiu para o estado de Goiás, foi a Lampião que o velho guerreiro do Pajeú entregou a chefia do bando (Macedo, 1975, p. 36-42).

Durante os vinte e dois anos que se entregou à vida ban-doleira, Lampião não costumava penetrar no Piauí e na zona norte do estado do Ceará. No norte cearense nunca contou com o apoio do coronelato como na região sul, cuja estruturação de valhacoutos com certeza tenha garantido certo sucesso em suas empreitadas.

O número de companheiros em armas oscilava bastante. No início da carreira era reduzido, mas aumentou consideravel-mente quando da sua ascensão a chefe do bando de Sinhô Perei-ra no ano de 1922, registrando-se provavelmente maior número

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de componentes quando do desfile de cento e cinco cangaceiros por ele chefiado a dois de setembro de 1926, na cidade de Ca-brobó, estado de Pernambuco (Oliveira, 1985, p. 33). Em quatro de março do mesmo ano havia comparecido à cidade do Juazei-ro do Norte (estado do Ceará), a convite do Dr. Floro Bartholo-meu da Costa, amigo do Padre Cícero Romão Batista e líder político do sul do Ceará, para que fizesse parte dos Batalhões Patrióticos organizados pelo Presidente Arthur Bernardes que combatia o foco insurgente dos revoltosos comandados pelos oficiais do Exército Brasileiro, Miguel Costa e Luís Carlos Pres-tes, a conhecida Coluna Prestes. Nesta ocasião recebeu a falsa patente de “Capitão” das mãos do Padre Cícero. No ano de 1928, que marca a fuga dramática para os sertões baianos, em razão da repressão desmedida feita pelas polícias do Rio Grande do Norte, Ceará e Paraíba desencadeada por causa do frustrado ataque à cidade de Mossoró (estado do Rio Grande do Norte), ele se encontrava na companhia de apenas quatro bandoleiros.

Lampião buscava nos fenômenos e coisas da natureza a inspiração para os apelidos dos seus cangaceiros. Por isso regis-traram-se diversos bandidos com os nomes de jararaca, corisco, jandaia, jitirana, vereda, limoeiro, etc. Quando um cangaceiro morria seu apelido era herdado por outro cangaceiro que entrava no bando. Utilizava ainda a identificação dos seus subordinados a partir do local de origem, a exemplo dos celebérrimos José Baiano e Sabino das Abóboras. Abóboras era uma fazenda entre as cidades de Serra Talhada e Triunfo no estado de Pernambuco.

Mello (1985.p. 90-91), enfatiza que;

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Durante as duas décadas que compõem o seu período de cor-rerias bem para além do que a ficção possa engendrar, chegou a exercer concreto domínio sobre áreas dos sertões de sete Es-tados do Nordeste, tendo o seu grupo em ocasiões de maior su-cesso ido além dos cento e vinte componentes. Foram seus as-seclas, num primeiro plano Antônio Ferreira da Silva, o Espe-rança; Livino Ferreira da Silva, que também se assinava Livi-no Ferreira dos Santos ou, ainda, Livino Ferreira de Souza, o vassoura, Ezequiel Ferreira da Silva ou Ezequiel Profeta dos Santos, o Ponto Fino; o seu cunhado Virgínio, o Moderno; e o seu diletíssimo amigo Luís Pedro Cordeiro, o Luís Pedro, to-dos mortos no cangaço. Em plano levemente inferior, vale ci-tar os cabras Sabino Gomes de Góes, o Sabino; Antônio Rosa, o Antônio do Gelo; Cristino Gomes da Silva Cleto, o Corisco; José Leite de Santana, o jararaca; José Baiano, bandido que conduzia um ferro de gado com as suas iniciais, destinado a marcar mulheres nas faces, coxas ou nádegas, desde que usas-sem cabelos ou vestidos curtos; Ângelo Roque da Costa, o La-bareda; Sátiro de tal, o Gato; Antônio Ribeiro, o José Sereno; Mariano Laurindo Granja, o Mariano, e mais os cabras Por-tuguês e Moita Braba, todos tendo ascendido à chefia de seu subgrupo.

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Principais Cidades Atacadas

Lampião protagonizou façanhas espetaculares, a exemplo da fuga desesperada em direção ao sul do estado do Ceará após o frustrado ataque de 13 de junho de 1927 à cidade de Mossoró, segunda maior núcleo urbano do estado do Rio Grande do Norte (Fernandes, 1999). Acossados por policiais de três estados (Rio Grande do Norte, Ceará e Paraíba), os cangaceiros conseguiram furar cercos intransponíveis.

No entanto, a mais ousada investida do grupo de Lampião não contou com a participação do chefe, quando a 27 de julho de 1924 seus irmãos comandando o bando, unidos ao de um canga-ceiro paraibano de nome Francisco Pereira Dantas, conhecido por Chico Pereira do Jacu, da localidade de Nazarezinho, invadi-ram a cidade de Sousa (estado da Paraíba), conforme Nóbrega (1989, p. 71) e Mello (1985, p. 135). A ousadia dos bandidos resultou na perda do imprescindível valhacouto na região serra-na que faz a divisa dos estados da Paraíba e Pernambuco. Houve empenho do mandonismo local e do governo paraibano na cap-tura dos cangaceiros, embora revezes dignos de notas tenham acontecido às tropas destacadas para as missões, a exemplo do célebre combate de Serrote Preto no estado de Alagoas, quando a milícia da Paraíba foi quase que totalmente destroçada em to-caias fenomenais. O recrudescimento das perseguições a Lampi-ão resultou na morte de Livino Ferreira, na localidade Tenório de Flores do Pajeú (estado de Pernambuco), embora a vindita do cangaceiro tenha sido marcada pela violência inaudita, atingindo

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populações indefesas de lugarejos perdidos nos confins da serra da Bernarda em Princesa (estado da Paraíba). O novo posicio-namento da classe dominante desta região sertaneja do estado da Paraíba quanto ao tratamento aos bandidos personificou-se na instalação de um batalhão da Polícia Militar em Patos das Espi-nharas, no governo de João Suassuna (1924-1928), concentran-do a atuação na fronteira com o estado de Pernambuco, epicen-tro do cangaceirismo por causa da proximidade com o vale do Pajeú, considerado o “celeiro dos bandidos”.

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Principais Coiteiros de Lampião e a Repressão do Governo Como forma de tentar se desvencilhar da mácula de ter

homiziado cangaceiros, o chefe político de Princesa (PB), “Co-ronel” José Pereira Lima, que no início da década de Trinta do século passado moveu uma luta encarniçada contra o governo do presidente paraibano João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque, financiou uma resposta erudita aos comentários propalados por Lampião de que o político sertanejo havia-lhe usurpado certa quantia em dinheiro que o cangaceiro lhe havia confiado, trans-formando-o numa espécie de banqueiro informal sem juros. O referido “coronel” encomendou ao jornalista paraibano Érico Gomes de Almeida a confecção de uma obra que traçou o perfil do bandido de forma bastante negativa, intitulada “Lampeão, sua história”, constituindo-se na primeira biografia erudita de Virgulino Ferreira da Silva, que foi publicada em 1926.

Perseguido tenazmente pelas volantes paraibanas, Lampi-ão não voltou mais à Paraíba, onde quem de fato o protegia era Marcolino Pereira Diniz, imortalizado por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira no baião “Xanduzinha”, gravado em 1950, que enaltecia o “caboclo Marcolino”.

Seu apogeu começou a declinar após o mais impressionan-te feito de sua vida à margem da sociedade convencional, que foi a tentativa frustrada de saquear a cidade de Mossoró. Depois deste episódio seu eixo de atuação teve que ser radicalmente revertido.

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Seus coiteiros mais importantes foram Antônio da Piçarra, de Brejo Santo (estado do Ceará), Ângelo da Jia, de Tacaratu (estado de Penambuco), “Coronel” Marçal Florentino Diniz e Laurindo Diniz, ambos de Princesa Isabel (estado da Paraíba), Marcolino Pereira Diniz, dos Patos de Irerê e também da região limítrofe da Paraíba com Penambuco. A repressão aos agentes patrocinadores do cangaço, principalmente após a tentativa de saque a Mossoró, é destacada por Mello (1985, p. 116), quando relata que;

Às voltas com o grave problemas das deserções que se segui-ram ao revés em Mossoró, Lampião chega ao Pajeú, deparan-do-se com os primeiros e nada desprezíveis efeitos de um plano de governo concertado ainda no início do ano. É que com o advento do governo Estácio Coimbra, o novo chefe de polícia de Pernambuco, Eurico de Souza Leão, havia estabelecido no-vas diretrizes à repressào ao banditismo. O ponto central de sua firme orientação repousava no combate sem trégua aos coiteiros. Um a um iam descendo presos para a capital alguns dos principais aliados do cangaço. De Custódia, descem dois políticos influentes; de Tacaratu, o fazendeiro Arsênio Gomes; de Serra Talhada, o comerciante Ascendino Alves de Oliveira e o chefe político, “coronel” José Olavo de Andrada; de Rio Branco, descem mais alguns coiteiros, até que finalmente é preso o “coronel” Ângelo Lima, conhecido como Ângelo da Jia, à época o maior deles. A ação corajosa de Estácio Coim-bra contra homens que, juntos, representavam milhares de vo-tos, tira as muletas aos bandido. Sem o coiteiro o cangaceiro não é nada.

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Lampião passou a agir no estado baiano no ano de 1928, inicialmente sob a proteção do “Coronel” Petronilo de Alcântara Reis. Durante um ano o “rei do cangaço” esteve longe das refre-gas e escaramuças, mas a traição do coiteiro que o recebeu na Bahia fê-lo voltar à ativa, com força redobrada e com uma per-versidade inexplicável. O governo baiano passou a oferecer a quantia de cinqüenta contos de réis para quem, civil ou militar, o trouxesse às autoridades competentes de qualquer forma, vivo ou morto.

Contudo, apesar de todos os esforços olvidados, o estado da Bahia não estava preparado para enfrentar as artimanhas da guerra de guerrilhas de Lampião. Precisava-se que homens acos-tumados às suas estratégias fossem convocados para a luta con-tra o banditismo rural. Vieram, principalmente de Pernambuco, guerreiros das caatingas que conheciam todos os segredos da arte da guerra de Lampião, com destaque ao clã dos Nazarenos, famosos perseguidores do bandido e aquele que foi o matador de Corisco, “o diabo louro”, José Osório de Farias, o célebre José Rufino.

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Maria Bonita, a Mulher de Lampião Mas não só de estripulias nas caatingas baianas, alagoanas

e sergipanas viveu Lampião e o seu bando recomposto nesta fase que ele inaugurou quando transpôs o rio São Francisco. Virgulino Ferreira da Silva encontrou no município de Geremo-abo (estado da Bahia), numa propriedade conhecida por Malha-da da Caiçara, a companheira que o seguiu até os últimos mo-mentos. Chamava-se Maria Déa de Oliveira, a qual passou à história com o apelido de Maria Bonita, a “rainha do cangaço”. Corria os nos de 1930 e a cabocla sertaneja tinha menos de vinte anos de idade, sendo na ocasião casada com um sapateiro co-nhecido por José de Nenén. Maria Déa deixou o marido para acompanhar Lampião, causando a estranheza do comandante Sinhô Pereira quando da entrevista a Macedo em julho de 1975, cuja assertiva fomentou que nunca permitiu e nem permitiria a presença feminina no cangaço.

Mulheres se destacaram como bravas guerrilheiras, como a famosa Dadá, esposa de Corisco, ferida em combate no qual pereceu o valente cangaceiro que vingou Lampião.

Tiveram vários filhos mas apenas uma sobreviveu, a qual recebeu o nome de Expedita. Nasceu em plena seca de 1932 no estado sergipano e foi entregue a coiteiros de confiança para que não se expusesse as agruras do cangaço. Foi criada por um va-queiro de nome Severo Mamede que trabalhava na fazenda Exú, propriedade de um fazendeiro de nome Zequinha Andrade, que era compadre de Lampião. Havia acertado com Lampião para

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que o vaqueiro ficasse com a menina logo depois do nascimento (Araújo, 1982, p. 17).

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Documentário Cinematográfico

Lampião se deixou filmar por um aventureiro de origem libanesa de nome Benjamin Abraão Botto. Secretário particular do Padre Cícero, Benjamin já havia tido contato com o canga-ceiro quando este foi convocado por floro Bartolomeu da Costa para comparecer ao Juazeiro do Norte (CE) e receber uma falsa patente de Capitão do Exército Brasileiro. Com a morte do Pa-dre Cícero Romão Batista em 1934, tentou convencer a empresa fotográfica ABA Filmes de Fortaleza (estado do Ceará) a incen-tivar sua aventura pelas caatingas baianas, encontrando o bando após inúmeros contatos com a malha protomafiosa de coiteiros que o assessorava nas investidas criminosas.

Realizado o filme e extensas sessões de fotografias com todo o grupo, Benjamin Abraão Botto não viveu o bastante para ver o resultado dos seus trabalhos cinematográfico e fotográfico. Foi assassinado de forma misteriosa no ano de 1937, enquanto Lampião e o bando, acossados com a repressão policial, teriam pouco tempo de atuação.

De acordo com Mello (1985, p. 199); A habilidade do cinegrafista verdadeiramente das arábias chegou ao ponto de lhe permitir, num requinte mercadológico, a obtenção de uma declaração passada e, o que é ainda mais incrível, futura e exclusividade para o documentário elabora-do, constando esta de uma carta de próprio punho do bandido, que Abraão faria publicar com grande alarde e em fac-símile na edição de 18 de fevereiro de 1937 do Diário de Pernambu-co. (...) É fácil avaliar a irritação do presidente Getúlio Vargas

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e do seu Departamento de Imprensa e Propaganda. Começava a contagem regressiva para a destruição do cangaceiro-mor. Afinal, como seria possível modelar um Brasil novo com Lam-pião espiando do terreiro?

O documentário elaborado por Benjamin Abraão Botto se

responsabilizou pelo esclarecimento de vários subterfúgios dos coiteiros que assessoravam o cangaceirismo no Nordeste brasi-leiro, descortinando para os sulistas como estava montado o poderoso esquema que garantia parte do sucesso que Lampião alcançava.

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A Morte de Lampião No dia 28 de julho de 1938 o grupo descansava às mar-

gens do riacho Angico, um pequeno afluente do rio São Francis-co do lado sergipano. Uma volante sob o comando do tenente João Bezerra, auxiliada pelo aspirante Francisco Ferreira de Mello e pelo sargento Aniceto, conseguiu finalmente alcançá-los na grota de angicos, município de Poço Redondo, travando-se um tiroteio no qual onze cangaceiros e um soldado foram mor-tos, colocando-se um ponto final na atribulada atuação de Virgu-lino Ferreira da Silva como o mais bem sucedido chefe de bando do Nordeste Brasileiro. Segundo Araújo (1982, p. 34) até hoje não se sabe ao certo o nome de todos que tombaram em Angico. Recorrendo a imprescindível colaboração de ex-cangaceiros, como Dadá, Cila, Zé Sereno, Criança, Pitombeira e Balão rela-cionou Quinta-feira, Maria Bonita, Luiz Pedro, Mergulhão, Elé-trico, Enedina, Cajarana, Tempestade e Marcela, além do chefe do bando, o famoso Lampião.

Nas proximidades da área onde foi travado o último com-bate do “rei do cangaço”, no qual ele não conseguiu disparar um único tiro, estava a volante dos Nazarenos, que buscava a todo custo reivindicar a glória pela morte de Lampião. Consideraram o objetivo alcançado pelo oficial alagoano uma afronta, pois quem era para ter liquidado com o bandido deveria ter sido eles. Passaram quase duas décadas seguindo os seus passos. Suspei-tava-se que João Bezerra realizava negócios escusos com Lam-pião, fornecendo-lhe armas e munição.

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Procedida a rapina usual quando dos combates e mortes de cangaceiros, os corpos foram degolados e as cabeças levadas primeiro para a cidade de Piranhas (estado de Alagoas), palco de diversas tropelias de Lampião, inclusive de um ataque formidá-vel quando a cangaceira Inacinha, esposa de um bandido apeli-dado Gato, havia sido capturada pela volante liderada pelo mesmo homem que comandou a chacina de Angicos.

As cabeças dos cangaceiros mortos foram levadas para o Instituto Médico Legal Nina Rodrigues, em Salvador (BA), on-de foram estudadas pacientemente a fim de que revelassem si-nais de degenerescências lombrosianas, tendo em vista que as teorias do médico-antropólogo italiano estavam em voga na é-poca como forma de explicar a inserção de cidadãos comuns no mundo do crime.

Em maio de 1969, depois de mais de três décadas final-mente o que restou dos cangaceiros mortos em angicos foi enter-rado no cemitério das Quintas, em Salvador, capital baiana, de-vendo-se a isso, em parte, à pressão do Dr. Sylvio Hermano de Bulhões, filho de Corsico e Dadá, que mobilizou a opinião pú-blica para que pusessem fim a exposição bárbara dos restos mor-tais dos principais expoentes do ciclo épico do cangaço no sécu-lo 20.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Érico de. Lampeão, Sua História. Parahyba/PB: Imprensa Official, 1926. ARAÚJO, Antônio Amaury Correia de. Assim Morreu Lampi-ão. São Paulo/SP : Traço Editora Ltda., 1982. CARVALHO, J. Rodrigues de. Serrote Preto : Lampião e Seus Sequazes. 2. ed. Rio de Janeiro/RJ: SEDEGRA S/A – Grá-ficos e Editores, 1974. FERNANDES, Raul. A Marcha de Lampião – Assalto a Mos-soró. 4. ed. Mossoró/RN: Fundação Vingt-un Rosado, 1999 (Coleção Mossoroense, Série “C”, Vol. 1074). MACIEL, Frederico Bezerra. Lampião, Seu Tempo e Seu Rei-nado (II – A Guerra de Guerrilhas – Fase de Vinditas). Pe-trópolis/RJ: Vozes, 1985. MACEDO, Nertan. Lampião – Capitão Virgulino Ferreira. 5. ed. Rio de Janeiro/RJ: Editora Renes, 1975. _________. Sinhô Pereira – O Comandante de Lampião. São Cristóvão/RJ: Ed. Artenova S. A ., 1975.

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MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do Sol: O Banditismo no Nordeste do Brasil. Recife/PE: FUNDAJ / Ed. Massangana, 1985. NÓBREGA, F. Pereira. Vingança, Não – Depoimento Sobre Chico Pereira e Cangaceiros do Nordeste. 3. ed. João Pesso-a/PB: Departamento de Produção Gráfica, 1989. OLIVEIRA, Aglae Lima de. Adriana – A Vida de Uma Pro-fessora no Estado de Pernambuco no Tempo de Lampião. 2. ed. Recife/PE: FUNDARPE, 1985.

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CANÇAGO E COITEIRO Oswaldo Lamartine

Criando Deus o Brasil Desde o Rio de Janeiro, Fez logo presente dele Ao que fosse mais ligeiro: O Sul é para o Exército. O Norte é pra Cangaceiro.

As primeiras Sesmarias do século XVII que foram con-quistadas do aborígine a boca de clavinote, com sua população de escravos e assalariados, enquistados no alto sertão onde a justiça não penetrava e, quando o fazia, amoldava-se às conve-niências sociais e políticas, – pêrra, trôpega e, mais das vezes conivente aos senhores dos feudos patriarcais.

O alto sertão, berço do cangaço e ciclo da pecuária, onde pa-trão e escravo campeavam e participavam dos mesmos riscos e faziam-se compadres, excluiu o elo intermediário do ciclo da cana, – o feitor. O trabalho do homem isolado, identificando-o com o terreno, conhecendo serras, filmas, esconderijos; e, açoi-tado pelas vergônteas de mofumbo nas carreiras desabaladas atrás dos barbatões, – sedimentou o seu individualismo estimado pelas condições do trabalho e do meio, fazendo-o revidar afron-tas, desdenhar dos "cabras de peia", fugir aos castigos para "ga-nhar as caatingas" onde se arregimentava aos bandos; volantes, passando a viver do cangaço, – forma deturpada desse individu-alismo.

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...Quem tem medo da polícia nasceu roncoio, é safado...

O adolescente que se fazia homem assistindo e participando

dos dramas das senzalas, lutas com ameríndios para a manutenção da posse da terra, sacrifício do gado para o consumo, narrativas de façanhas onde o sangue é sempre o líquido que lava a honra, luta com feras, duendes e homens. Nenhum herói importado de outras ribeiras. A sua idolatria no meio isolado era seduzida para o heroís-mo bronco e selvagem dos que o cercavam, cantados nas gestas com lances de bravura suicida, injustiçados ou pseudo injustiçados em luta constante para reparação de um erro:

Um cabra matou meu pai e ficou bem descansado; disse a um Irmão que eu tinha: — meu pai há de ser vingado inda o cabra ti no inferno, lá mesmo é esquartejado.

A tradição em proteger seus agregados: o escravo e depois o vaqueiro, o compadre, o morador, o rendeiro, o parente e o eleitor são filamentos nervosos de seu patrão. O destino do ho-mem tem o limite geográfico do poderio dos proprietários:

A pessoa que for nos meus terrenos Está sujeita a uma ordem que destina; Ele coze, ele fia, ele faz renda Troca birro Igualmente a u'a menina".

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Lutas de família, – Quincas Saldanha e Antônio (início deste século) assalariando "cabras", ensangüentando vilas e es-tradas, amedrontando populações e queimando propriedades. Lutas políticas: em 1929 a de Princesa (Paraíba ), armando de fuzis e armas automáticas centenas de cangaceiros.

A 4.X.911 chefes políticos de 17 municípios da ribeira do Cariri (Ceará), inclusive o Pé. Cícero Romão Batista, lavram um documento, "fé-política", onde no art. VII se lê: "A bem da mo-ral e da ordem os chefes terminarão a proteção aos cangaceiros". Um ano mais tarde, Antônio Silvino, que inundava o sertão de dinheiro falso, assaltava, matava, protegia, era chamado pelo chefe político de São Miguel de Jucurutu e o juiz de direito de Acari (ambos do R.G.N.), – Dr. Vicente Veras e Vicente Dutra, num entendimento para fins eleitorais.

Populações flageladas pelas variações climatéricas perió-dicas, pedindo, emigrando e assaltando para sobreviver.

A sífilis poluindo os homens, cuja terapêutica se restringe a benzeduras e "garrafadas".. O álcool e as "comidas brabas" intoxi-cando. Doenças de carências aliadas a uma consangüinidade desba-ratada. Epilépticos, loucos e tarados gerando monstros. Em síntese: ausência absoluta de higiene mental e do corpo:

O problema do cangaço Não é tal como se pensa. Depende do nosso povo Sua instrução, sua crença. Estradas nos carrascais, Faltam escolas e hospitais, Sem isso não há quem vença.

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Formas religiosas deturpadas por beatos místicos. Na Ser-ra de João do Vale, — Joaquim Ramalho (R. G. Norte); Pé. Cí-cero no Juazeiro (Ceará) e o Conselheiro em Canudos (Bahia). Atraindo romeiros de todas as castas; do honesto, laborioso e ingênuo agricultor que os procurava para consultas de saúde, previsão de inverno, benção, etc., ao cangaceiro, isolado ou em bandos, em busca de proteção, rezas fortes, intervenção, etc.

Desse meio surgiram os Cunha, Pataca, Liberato, Cabelei-ra, Brilhante, Viriato, José Antônio, Rio Preto, Antônio Silvino e Lampião. Percorrendo as caatingas, cercados de sequazes, per-seguidos aqui e açoitados ali pêlos fazendeiros e, algumas vezes, subordinando seus perseguidores ou desfrutando a antipatia dei-xada pêlos "macacos ou mata-cachorro" no caráter do sertanejo que vivia entre dois dilemas: O cangaceiro, – ameaçando-o de morte em caso de traição, protegendo-o, vingando seus desafe-tos e remunerando a sua hospitalidade de algumas horas. A polí-cia: espancando-o para descobrir um roteiro imaginário, requisi-tando seus cavalos e desrespeitando a sua hospitalidade:

O sertanejo infeliz Com a polícia e o cangaço É que sofre as conseqüências Dizendo não sei que faço. Si sirvo a polida, apanho Sirvo Lampião levo banho Apanhando em qualquer passo.

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Forças volantes cujos desertores fornecem ao cangaço o seu maior voluntariado, munições e armas.

O cangaceiro de bando em tomo de um chefe com seu tra-je característico pintado por João Maria de Ataíde:

Ele traz o seu cabelo Americano cortado Traz a nuca descoberta Usa o pescoço rapado, Os dedos cheios de anéis. Boa alpercata nos pés Pra lhe ajudar no serrado

fruto de regiões esquecidas homens e governos: ... Nas margens do Mochotó Onde o homem vive, só pensando em ser assassino. Usado como instrumento, perseguido, admirado ou acoita-

do, teve a sua carreira cortada por dois elementos da civilização: o caminhão e o telégrafo.

Natal, junho – 1948.

Política e Leiras, Rio de Janeiro, 18/08/1978.

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MASSILON EM CAJUAIS François Silvestre

Próximo ao fim da década de vinte, Lampião teve seus li-derados divididos em quatro grupos. Um sob seu próprio co-mando, outro sob o comando de Corisco, um terceiro liderado por Sabino Gomes e um quarto o chefiado por Massilon.

A esse grupo, liderado por Massilon, foi dada a tarefa de fazer levantamento da situação policial e das condições finan-ceiras do comercio do Rio Grande do Norte. Especialmente na região de Mossoró Credita-se a Massilon a equivocada informa-ção de que seria fácil levantar um bom dinheiro no comércio de Mossoró, apenas ameaçando e exigindo um resgate do sossego. Não contava Lampião com uma informação sobre o caráter se-reno, mas valente, de Rodolfo Fernandes, nem sobre o tamanho da cidade e a capacidade de reação dos seus habitantes.

Antes de visitar, disfarçado, a capital do Oeste, Massilon cercou algumas fazendas, fazendo ameaças e amealhando per-tences, quatro meses antes do cerco de Mossoró.

Era manhã, naquele sábado de 1928, quando Massilon a-pontou no pátio da Fazenda Cajuais. Trazia no peito um meda-lhão dourado, que lhe caía sobre a cartucheira, preso por uma corrente de prata que refletia a luz do sol. Seu cavalo, paramen-tado de arreios em couro amarelo, guarnecidos de fitas verme-lhas, parecia uma representação de cavalhada.

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Na noite anterior, dona Guilé de Alencar, viúva de Joa-quim Gomes e nora de Bisinha Suassuna, fora avisada de que a fazenda sob o seu comando seria atacada por cangaceiros de Lampião. Ironia da vida, muitos anos depois, mãe-Guilé veio a casar uma filha com um filho de Isidoro Gomes, vizinho e com-padre de Zé Ferreira, pai de Lampião.

A matriarca de Cajuais mandou para o Riacho dos Cavalos os filhos maiores. Aguardou os cangaceiros sozinha, tendo ape-nas a companhia do filho seminarista, Alexandrino Suassuna de Alencar, que veio a ser padre e reitor do Seminário de Pesqueira. No interior do imponente casarão, Massilon assistiu a uma cena que ele próprio contava depois como exemplo de coragem e afeto. Ao revirar os armários para localizar jóias de família ou dinheiro, recebia impropérios da dona da casa, que o chamava de salteador covarde. Massilon não aceitou a provocação e resolveu matar a sua "anfitriã". Puxando um punhal, com cabo em madrepérola, avan-çou sobre dona Guilé, dizendo que lhe arrancaria os olhos. Nisso, o seminarista tomou a frente da mãe.

Disse a Massilon que matasse a ele, pois a dor dela seria ainda maior. O cangaceiro vacilou. Aí a matriarca desmentiu o filho e tomou-lhe novamente a frente. “Mulher de preto, você pode matar. Não pode é matar seminarista". E avisou que Padim Ciço não perdoaria o matador de um seminarista. E ficaram bri-gando mãe e filho, para convencer Massilon a salvar a vida do outro, oferecendo-lhe a própria vida. Impressionado, Massilon baixou o punhal e o deu de presente ao jovem seminarista. Esse punhal ficou guardado em Cajuais durante décadas, até ser leva-

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do polícia, num cerco que lá foi feito para tentar prender Enéas Suassuna. Ainda vive lá, sentinela ao sopé do Martins e Portale-gre, o vetusto casarão de Joaquim de Alencar e Tercina Pereira.7

7 Artigo publicado em O Jornal de Hoje (Natal/RN) em 11 de agosto de 1999.

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LAMPIÃO Paulo Moura

I No Dia 07 de Julho, Do ano noventa e sete Na fazenda Ingazeira Nascia um cabra da peste Pra quem o destino um dia Lhe pôs a bravura em teste. O pai, seu José Ferreira. Almocreve conhecido Vivia naquelas ribeiras Com dois filhos já crescidos E com D. Maria Lopes Esposa de um bom marido. O recém nascido foi Chamado de Virgulino Era esperto como um boi Correndo no sol a pino Que, quando vê um vaqueiro Dispara em desatino.

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José Ferreira compôs Uma prole de nove filhos Cinco homens, quatro moças. No qual não viu empecilho Pra criar honestamente Com trabalho, angu e milho.

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II

Ezequiel e Mocinha, Anália, João e Livino, Virtuosa e Angélica, Antonio e Virgulino. Estava completa a família Desse humilde nordestino.

Virgulino aos cinco anos Foi morar com sua avó Que, boa como uma rosa Tinha ele por xodó Morava em poço do negro Perto do sítio Cipó.

Junto com sua avó De nome D. Jacosa. Morava o tio, Mané Lopes. Que ficava todo prosa Quando via Virgulino Montando besta raivosa.

Quando completou dez anos Seu tio Lopes colocou Na escola de Soriano E Virgulino estudou Pra no futuro virar Quem sabe um governador.

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III

Mas Virgulino dizia Para o tio, muito animado: – Meu tio, eu quero estudar. Não pra ser adevogado Eu quero é ser vaqueiro Pra tomar conta de gado

E com três meses de estudo Já lia e escrevinhava O tio dizia: – Lê esta! Ele lia e respostava. Então saiu da escola Que pra vaqueiro bastava.

Com 15 ou 16 anos Virgulino já fazia De tudo, e muito bem feito, Como o pai mesmo dizia E ainda acompanhava O pai na Almocrevaria.

E a vida dos Ferreira Resumia-se a isto Viviam do seu trabalho Pois tinham muito serviço. Não mexiam com ninguém Pois não precisavam disto.

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IV

Mané Lopes trabalhava De inspetor de quarteirão E, cedo, ensinou o sobrinho A usar o mosquetão Que carregava nas costas Pra mor de pegar ladrão

Mas a posição de Lopes Era muito cobiçada Por um tal José Nogueira Homem de posse invejada Porém, maldoso e cruel. De fama ruim, desgraçada.

Zé nogueira não gostava Do progresso dos Ferreira Era louco de vontade De comprar suas ribeiras Para aumentar seu rancho E mandar naquelas beiras.

Zé Saturnino era outro Maldoso, ruim e mofino. Era genro de Nogueira. Antes era bom menino. Mas um dia foi à feira E brigou com Virgulino.

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V

O motivo nem se sabe Dizem que foi por besteira E uma intriga puxa outra E então José Nogueira Montou uma emboscada Ferindo Antonio Ferreira

Aí começou a briga Amassaram-se chocalhos, Cortaram rabos de bois Tiraram das cercas, galhos. Saturnino e Nogueira, E os Ferreira contra os dois.

Saturnino e Nogueira Encurralados, fugiram; Temendo serem furados Por uma rajada de tiros Esconderam-se no sítio Do finado Valdomiro.

Os irmãos Ferreira foram Aconselhados sair De lá da Serra Vermelha Que o pior tava por vir Com a polícia no encalço Iam morrer sem agir.

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VI

Foram atrás de dois homens Conhecidos nas ribeiras Dois cangaceiros famosos Que andavam com a cabroeira Resolvendo umas questões Entre Carvalhos e Pereiras.

Esses dois homens valentes Receberam Virgulino Que lhes contou sua estória E traçou o seu destino. O dele e dos dois irmãos Unidos desde menino.

Sinhô Pereira aceitou Os Ferreira no seu lado Apenas para protege-los Pra não serem molestados – Estando comigo, vocês não serão incomodados.

Zé Ferreira pra Alagoas Achou por bem se mudar Pra se livrar do inimigo E para em paz trabalhar. Mas, Saturnino botou Polícia em seu calcanhar.

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VII

Zé Lucena era um sargento Que depois virou tenente Vivia matando tudo Que encontrava pela frente Pois era uma otoridade E só honrava a patente.

Zé Lucena investiu Com uma tropa de macacos No sitio de Zé Ferreira Que já era um velho fraco Deu-lhe um tiro na cabeça E o velho foi pro buraco.

A esposa quando viu Seu Zé caído no chão Teve logo uma vertigem Pensou que fosse visão O seu peito bateu forte E parou seu coração.

Virgulino enfurecido Jurou vingar os seus pais Pensou em matar Nogueira Ficou neste vai num vai Terminou matando este E matando muito mais.

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VIII

Mudou de nome pra vulgo Para melhor atuar Nos estados nordestinos Sem ter repouso nem lar Andou por todo o sertão Do Sergipe ao Ceará.

Vingou-se de uns desafetos O cabra da gota serena Tudo isso pra atrair A volante de Lucena. O tamanho da sua raiva Pra essa terra era pequena.

Fez desordem, fez justiça. Por todo este sertão Tirou de rico pra pobre Matou homens de questão Sangrou tarados, covardes, Corno, macaco e ladrão.

O povo ia gostando. Outros já sentiam medo O humor de Virgulino Pra muitos era um segredo Uma hora, era bonzinho. Noutra já metia medo.

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IX

Podia sangrar um soldado Ou manda-lo ir embora. Hora queimava fazendas Outra hora dava esmolas Era assim, o Virgulino... Sem juízo na cachola.

Mas houve um certo dia, Sua alma andava aflita. E, como por um encanto Chegou Maria Bonita Para acalmar seus ânimos E ele esquecer a vindita.

Maria foi uma mulher Mui fiel e companheira Às vezes, se conversava Era boa conselheira Se entrava numa restinga Era exímia atiradeira

Mas o destino atropela Toda estória de amor Com Lampião foi igual O destino lhe ceifou Levou-lhe a vida e a esposa. Foi bezerra quem matou.

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X

Emboscado em Angicos Onde se achava arranchado Uma tropa de macaco Subiu o morro agachado E Lampião com seu grupo Foram todos metralhados.

Na noite do ocorrido Pedro Candido levou Os mantimentos pedidos Que o chefe encomendou: Cachaça, carne, tecidos E outras coisas de valor.

A polícia descobriu Que Pedro Candido sabia O lugar certo e exato Que o capitão se escondia Era na grota de Angicos E só Pedro conhecia.

Ameaçando a família Do coiteiro acovardado A polícia colocou No que ia ser levado Para o capitão comer, Veneno pra todo lado.

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XI

Botou no pó do café, Na cachaça, no bode assado, Colocou na rapadura. E no toucinho defumado Ali quem morreu de bala Antes, foi envenenado.

Hoje, ninguém mais duvida Do que se deu no passado Bezerra cercou a grota Onze foram metralhados, Seus bens foram saqueados E todos decapitados.

Elétrico, Mergulhão, Moeda, Enedina e Mangueira, Caixa de Fósco, Luiz Pedro, Cajarana e Quinta-Feira, Maria e Lampião, Morreram sem dar carreira.

Reinou quase vinte anos Neste sertão esquecido. O rei do cangaço foi Por coronéis, protegido. Hoje o povo inda pergunta: - Foi herói, ou foi bandido?

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LAMPIÃO EM PAU DOS FERROS Lavoisier Nunes de Castro

Nas suas incursões por cinco estados do Nordeste, no co-

mando de grupos de cangaceiros, saqueando fazendas, matando pessoas indefesas e enfrentando volantes policiais, Virgulino Ferreira, o "Lampião", respondeu a inúmeros processos.

No dia 10 de junho de 1927, Lampião e Seus sanguinários comparsas, dentre eles "Coqueiro", "Trovão", "Relâmpago", "Jarara-ca", "Mormaço" e "Colchete", os três últimos mortos, posteriormen-te, na invasão à cidade de Mossoró, saquearam o Distrito de Vitória, atual município de Marcelino Vieira e, com o emprego de violência, subtraíram vários objetos, animais e dinheiro de diversas proprieda-des, atacando o destacamento do tenente Napoleão Agra, matando o soldado José Monteiro de Matos.

O processo, instaurado em Pau dos Ferros, sede da co-marca, seguiu o rito previsto pelo Código de Processo Penal do Estado, que entrara em vigor no ano de 1918. Á, exceção de "Ja-raraca", "Mormaço" e "Colchete", todos os acusados, no total de cinqüenta, foram pronunciados pelo então juiz de Direito de São Miguel, substituto legal de Pau dos Ferros, Dr. Janúncio Gorgô-nio da Nóbrega, por infração aos artigos 294, § 1o e 356, ambos da Consolidação das Leis Penais, vigente na época. O magistra-do, por haver julgado improcedente a denúncia quanto aos indi-ciados "Mormaço", "Jararaca" e "Colchete", recorreu de oficio da decisão para o Superior Tribunal de Justiça em Natal (atual

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Tribunal de Justiça), que manteve o julgamento de primeiro grau. O acórdão data de 25 de abril de 1934.

O processo parou, no tempo e no espaço, porque os acusa-dos jamais foram capturados para se submeterem ao julgamento popular. Em 07 de dezembro de 2001, transcorridos 67 anos da decisão da Superior Instância, o juiz de Direito João Affonso Morais Pordeus, que respondia pela comarca de Pau dos Ferros, declarou a extinção da pretensão punitiva do Estado, pondo um termo ao histórico processo.

No relatório da sentença, o magistrado teceu elogios ao trabalho desenvolvido por todos os profissionais que atuaram nos autos, em especial aos promotores Manoel Augusto Abath e Claudionor Telógio de Andrade, ao defensor Francisco D'As-sis Morais, aos juizes distritais João Escolástico Bezerra e Francisco França de Sousa, e aos juizes de Direito, João Vi-cente da Costa e Janúncio Gorgônio da Nóbrega.

Após registrar as dificuldades existentes na época da ins-trução processual, anos vinte e anos trinta, com a deficiente es-trutura dos meios de comunicação e de transporte, bem como a falta de acomodações e de recursos humanos adequados ao ple-no desenvolvimento dos trabalhos forenses, o juiz João Afonso Morais Pordeus fez referência à seguinte certidão da lavra do escrivão Abílio Deodato do Nascimento: "Certifico que os bor-rões constantes às folhas retro destes autos, foram em conse-qüência de uma galinha que, pulando sobre a mesa onde se a-chava um tinteiro sem a rolha, virou-o, derramando a tinta por cima não só destes autos, como ainda sobre outros papéis que

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se achavam também sobre a dita mesa. O referido é verdade e dou fé. Pau dos Ferros, 04 de outubro de 1927".

O processo de "Lampião" e seu bando, instaurado em Pau dos Ferros, no ano de 1927, está, finalmente, arquivado.

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LAMPIÃO É SUBMETIDO A JURI E RAIMUNDO NONATO DESCREVE A CENA8

Em que artigos do Código Penal estaria incri-minado Virgulino Ferreira, o legendário Lam-pião, se fosse ser submetido ao tribunal de júri? É a pergunta que Raimundo Nonato se propõe a responder neste artigo. Ele diz que, embora a era do cangaceirismo já esteja ultrapassada na história nordestina, os crimes de Lampião “continuam revividos na voz recordadora das multidões aflitas, que por todos eles foram martirizados.

JURI DE LAMPIÃO

O julgamento de Virgulino Ferreira, vulgo Lampião, vale, sobretudo, como objeto de motivação de alguma pesquisa histórica a esclarecer na trama dos fatos envolventes do auda-cioso assalto à heróica cidade de Mossoró.

Os delitos, em si, já estariam prescritos ou extintos, nos termos do Código Penal, art. 108, nº I e IV.

Examinados nas suas razões, já estariam mesmo prescritos e até extintos pelos fatores evidenciados ao decurso de cinqüenta anos da ocorrência tenebrosa, com prazo assim duplicado da extinção da punibilidade.

8 “O Poty”, Natal-RN, 25.05.1977

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De qualquer modo, porém, se não poderia encontrar mar-gem de atenuação para os atos hediondos e devastadores do “ca-pitão” do cangaço, na faixa do Oeste Potiguar, o qual tombou em luta com mais dez sequazes, na fronteira de Sergipe com Alagoas, a 29 de julho de 1938.

VOTO

Virgulino Ferreira, vulgo Lampião, natural de Pernambu-

co, mas atravessando no período de alguns anos, vários Estados do Nordeste, foi atraído, em Junho de 1927, ao Rio Grande do Norte para o assalto ostensivo à cidade de Mossoró, no dia 13 daquele mês e ano. No percurso, desde os sopés da serra de Luiz Gomes, o grupo de bandidos, em número mais ou menos de ses-senta, todos montados e bem apetrechados de armas e munições, não teve mãos a medir na prática de violências materiais e pes-soais, por toda a parte. Os crimes de morte, pois ocorrentes em vários pontos do Estado, são os de maior penalidade, compreen-siva então do art. 294 § 2º do atual Código Penal (dezembro de 1940, vigente de 01.01.1942).

Tem-se como positivo haver sido Lampião pronunciado, por: (três vezes, pelo delito de homicídio,) (sete vezes, pelo de roubo,) (duas, pelo de lesões corporais graves,) (duas, pelo de ferimentos leves e) (três pelo de ameaça)

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Por fatos apurados em processo crime na Comarca de Mar-tins, conforme sentença de pronúncia datada de 27 de outubro de 1927 (v. livro “Lampião em Mossoró”, de nossa autoria, 1ª edi-ção, 1955, já em 3ª, 1965, págs. 139-144, Pongetti, Rio). Aliás, a partir dos municípios de Luiz Gomes, Pau dos Ferros até Mosso-ró, se verificaram ações criminosas dessa natureza, sabendo-se também de formação de processo na Comarca de Pau dos Fer-ros, como se registra no livro “Pela Justiça”, pág. 174, do res-pectivo Juiz de Direito, publicado em 1929 no Rio de Janeiro, hoje Desembargador aposentado, do Tribunal de Justiça do esta-do do Rio Grande do Norte, Dr. João Vicente da Costa.

Comentando no volume IX do Código Penal vigentes, de 1942, o art. 288 § único, “associação em quadrilha ou bando para fim criminoso”, o Ministro Nelson Hungria, luminar do Supremo Tribunal Federal e das letras jurídicas com o maior renome, escreve: No Brasil à parte o endêmico cangaceirismo do sertão nordestino, a delinqüência associada em grande estilo é fenômeno episódico. Trata-se (si et in quantum), de uma resul-tante fatal, ou característica das condições geo-sociais da hinder-lândia do Nordeste.”. em livro recente (Lampião em Mossoró – 1956), Raimundo Nonato disserta: “o fenômeno ecológico do cangaço pode ser analisado através de capítulos de verdadeiro ineditismo...”

Vencido em Mossoró, o grupo contornou para Limoeiro, Ceará, onde o governo, pressionado pelo clamor público, pela representação federal e imprensa, mesmo do Rio, resolveu fazer a perseguição aos cangaceiros invasores, que, na selva, no Ser-

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rote da Roda, e ainda em território dos Municípios de Pereira e Riacho do Sangue, mantiveram cerrados tiroteios com numerosa força, inclusive de cavalaria, cearense e paraibana. Aí têm opor-tunidade de fuga para o alto sertão do Ceará e Pernambuco, em meio a difíceis travessias, e dois a três anos mais estão pene-trando em zonas interioranas de Alagoas, Bahia e Sergipe. Ho-misiados em grota de uma fazenda na fronteira de Sergipe, an-dava-lhe no encalço volante policial deste último Estado, afeita a reencontros dessa espécie. E assim, a 29 de julho de 1938, posto o cerco a Lampião e seu grupo, numa luta de vinte minu-tos também mortos onze cangaceiros, logo expostas as suas ca-beças nas cidades de Piranhas do Ipanema, de Alagoas, Lampião um dos desaparecidos. Outros elementos de infiltração estran-geira perturbam e agitam pelo interior e até nas capitais. A solu-ção reclama bem a medida que o Deputado Dioclécio Duarte propôs em 1927, na Câmara Federal, atendendo a telegramas da Associação Comercial e outras instituições de Mossoró, a orga-nização de força federal específica, destinada a reprimir o bandi-tismo, sob novas formas.

“Derrotado dentro das ruas de Mossoró pela resistência da população civil, ao comando de seu grande Prefeito Rodolfo Fernandes, como faz notar o historiador Vingt-Un Rosado, (Três Crônicas sobre o Treze de Junho, ed. 1965), Lampião tem extin-ta a punibilidade, pelos crimes praticados, antes de tudo, por motivo de sua morte, artigo 108, nº I do Código Penal, e depois pela prescrição (art.º 108, IV, art.º 109, I decorrência do prazo

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de vinte anos para os casos de cominação de penas superiores a doze anos de reclusão).

Ainda a revisão, recurso admissível nos processos findos e mesmo post-mortem, onde se poderia indicar qualquer possibili-dade de resultado?

Para uma divagação literária – que se invocaria no intuito de mitigar a condenação? A contemplação aos prisioneiros sob resgate não passava de astúcia, em vista da perspectiva de im-portâncias a receber, além de que, no fragor da luta, quando se mutuavam as injúrias e acusações entre os combatentes, grita-vam os soldados: “não fossem covardes, soltassem os fazendei-ros detidos”. O tipo de cangaceiro respeitoso, preservante dos assaltos comuns e violentos, declinara. Se tal se conduziam os Brilhantes, suscitando literatura no Ceará, no Rio Grande do Norte, na Paraíba, em suas questões pessoais, de terra, a extra-vasar no bacamarte, viram eles a reação forte da cidade de Mar-tins, na tarde e noite de 30 de agosto de 1876, em que ali entra-ram (dez homens montados e armados, denunciando criminosos noutros pontos) em atitude pacífica mas afrontosa e inquietante para o princípio de autoridade e da ordem pública e social. O destacamento local, de igual número, acrescido de elementos civis, não demorou a intimativa de rendição, tornada conflitante até à madrugada protetora da fuga dos desordeiros.

Hospedados em casa de advogado sertanejo, pretenderiam os Brilhantes vingança contra inimigo, aliás preso. Antônio Sil-vino, mais de trinta anos após, perambulava pelos sertões de todo o Nordeste, mesmo em diversos lugares do Rio Grande do

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Norte. Fazia suas “colheitas” sem agravações, punindo o infri-gente do grupo na hipótese de qualquer atentado, a menos esti-vesse em luta. Lampião, impelido cedo ao cangaço, degenerou numa borda de facínoras, perigosos malfeitores a serviço por vezes do “excesso de politicagem” funesta, como se qualificou naquele debate de projeto na Câmara Federal. Irremissível, pois, em suas ações devastadoras e bárbaras.

O teatro, o cinema, na imitação das proezas do far-West e no conhecimento do folclore selvático, podem tirar proveito artístico e comercial na produção de filme, como o de Lima Bar-reto no Festival Internacional de Cannes, 1953, muito embora outras manifestações mais úteis e educativas se possam apresen-tar. Os violeiros e cantadores populares, em folhetos impressos, nas feiras, dão depoimentos incontáveis de testemunhas presen-ciais”, no cotejo do escritor Veríssimo de Melo e ao se referir às “pinceladas rápidas mas vigorosas” de Folclorista Dr. Luís da Câmara Cascudo, no seu “Vaqueiros e Contadores” ... “Uma cavalaria de Hunos... galopavam, cantando, berrando, uivando, disparando fuzis, guinchando, tocando os mais disparatados ins-trumentos, desafiando todos os elementos” ... (v. “Lampião em Mossoró”, et) à conclusão, fecha o Dr. Veríssimo o comentário ao romanceiro popular com o verso de Pereira Lima:

“A data de 13 de junho em ouro ficou gravada junto a 30 de Setembro, será u´a nova alvorada

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despontando alviçareira sobre a cidade altaneira nobre, santa e imaculada” O “Diário do coronel Antônio Gurgel (prisioneiro do gru-

po) é um informativo precioso do que foi a movimentação dos bandidos”. Às 5 ½ de 13 de junho de 1927, o grupo levantou acampamento (pouco adiante de São Sebastião [Dix-sept Rosa-do], à margem da Estrada de Ferro, onde pernoitara), rumo de Mossoró. Então, à luz do dia, pude ver, horrorizado, aquele ban-do de demônios, entregues aos maiores desatinos, quebrando portas, espaldeirando quem encontravam, exigindo dinheiro, roubando tudo, numa fúria diabólica. A palavra de ordem era matar e roubar! (livro cit.)

A condenação histórica sem os pormenores da empreitada a que foram tentados os malfeitores, aniquilados, deriva inelutá-vel de cada um dos fatos aterrorizantes aludidos. Os co-réus ou mandantes não terão escapado ao mesmo destino fatal, e já lhe não aproveita a extinção de punibilidade da jurisdição penal.

A era de intranqüilidade dos sertões nordestinos desenca-deada pelos cangaceiros, já não apresenta marcos da sua sobre-vivência.

Seus crimes, embora prescritos e sem condições de punibi-lidade, continuam revividos na voz recordadora das multidões aflitas, que por eles foram martirizadas.

De todos os lugares, a cidade de Mossoró, iluminada a luz elétrica e onde os cangaceiros penetraram nas suas ruas para

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uma empreitada destruidora, essa viverá sempre acordada contra o perigo.

O dia 13 de junho de 1927, quando os bandoleiros desfe-charam uma tremenda ofensiva, numa tarde chuvarenta, cantan-do MUIÉ RENDEIRA, como registra o historiador Câmara Cas-cudo, no livro Viajando o Sertão, para serem repelidos com va-lentia pelos seus bravos defensores, esse DIA continuará vivo na memória do povo, marco de sua resistência sem igual, presente em capítulo da HISTÓRIA REGIONAL inapagável como a irre-tratabilidade da própria lei do tempo.

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Trecho do relatório da agência local do Banco do Brasil S.A. referente ao primeiro semestre de 1927, no qual estão feitas des-crições do que foram os dias de terror para esta região em virtude dos ataques dos ban-doleiros de Lampião a Mossoró.

SITUAÇÃO DA PRAÇA – Se não fossem as incursões

de bandoleiros no território norte-riograndense, justamente na parte que mantém mais ativo comércio com esta cidade, poder-se-ia considerar inteiramente jugulada a crise irrompida em 1925, com a desvalorização de todos os produtos do Estado e também dos grandes estoques de tecidos então aqui existentes, que a política de deflação do meio circulante, diametralmente oposta a de então, veio determinar.

A firmeza do mercado, em preços compensadores, ulti-mamente, de todos os produtos do estado, a par de uma maneira de comprar e vender mais equilibrada e criteriosa por parte do comércio local, concorreram para o soerguimento, mais cedo do que se esperava, das condições econômicas e financeiras da pra-ça. Os compromissos antigos estavam, com raras exceções, pa-gos e os novos iam sendo liquidados à vista, prova evidente de que a praça estava em plena normalidade.

As incursões de grupos de cangaceiros ocasionaram séria paralização de negócios nos meses de maio e junho do ano cor-rente, determinando alguns pedidos de prorrogação de títulos, aliás justíssimos, uma vez que, receiosos de serem atacados no

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caminho, os comerciantes e agricultores do interior não se atre-viam a vir a esta cidade, para liquidar ou amortizar os compro-missos vencidos.

Livre de vez ou passageiramente (quem saberá?) dessa ter-rível praga, a praça vai voltando, paulatinamente, à normalidade, prosseguindo na fase de perfeito soerguimento que os pertinazes esforços e o reconhecido espírito de honestidade dos comercian-tes locais fazem jus.

BANDITISMO – É inacreditável existirem ainda no sécu-

lo em que vivemos, com o avanço permanente da civilização, no vasto interior dos sertões nordestinos, bandos armados que rou-bam, depredam, martirizam, matam e desonram. É ainda uma estilha de barbaria primitiva que a condescendência de certos governos está deixando eternizar, com grandes prejuízos para a Nação. De quando em vez, grupos de indivíduos, na mais revol-tante das covardias, pois a sua arma de maior sucesso é a surpre-sa, investem contra cidades, vilas e povoados. Esses assaltos que cada vez se tornam mais audaciosos e repetidos, haja vista o desta cidade, distante cerca de 40 quilômetros do litoral, em 13 de junho do ano corrente, constituem um pesadelo indefinido para as populações laboriosas, ordeiras e honestas, ao mesmo tempo preocupadas em defender a vida e a honra de suas famí-lias, já que não podem garantir as suas propriedades.

Na verdade, é uma situação tristíssima, na qual já nos en-contramos e representa um doloroso aspecto do sertão. E quando nos vem a lembrança que essa situação desumana é simplesmen-

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te criada e alimentada por “certos coronéis” de influência políti-ca nas zonas em que pontificam, cuja moralidade e compostura bem se ajustam aos atos canibalescos do banditismo, não pode-mos esconder o espírito de revolta que nos vai na alma.

O cangaceiro, na sua horrenda psicologia, é ainda um tipo superior a desses teratológicos “coronéis”, seus mandantes e protetores. Pelo menos aquele arrisca a própria vida, enquanto estes, comodamente, aguardam o produto dessas vilegiaturas, em que a morte é o mais humano de todos os crimes.

O cangaceiro não é originariamente um caso psicológico. Não é também o caldeamento da raça, nem outras fantasias lite-rárias que surgem, à miude, ora em artigos pela imprensa, ora nos duelos oratórios, nas duas casas do Congresso. O cangaceiro é, em geral, um tipo normal; degenera-se pelo consórcio permanente de duas calamidades: a falta de polícia e a falta de justiça, resumidas em uma outra maior do que estas – a falta de governos.

O cangaceiro é uma fonte de eceita de certos, determina-dos e conhecidos “coronéis” do sertão que, explorando a igno-rância e a falta de instrução de trabalhadores de suas fazendas e sítios, que hajam em qualquer ocasião demonstrado coragem, fá-los ingressar na senda do crime, primeiramente na consecução de certos “servisinhos particulares”, insinuando-os depois ao banditismo, mediante as seguintes condições: metade dos rou-bos, abrigo, proteção, armas e munições. Contam também esses bandos de celebrados com a proteção de alguns oficiais das mi-lícias, comandantes de colunas volantes que aparentemente os perseguem, em troca de “gordas” gorgetas. Isso está mais do que

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provado. Estão ai os depoimentos dos cangaceiros aprisionados e as entrevistas concedidas, num momento de revolta, por ofici-ais das polícias cearenses e norte-riograndenses que estiverem em encalço do nefando grupo de “Lampião”, que atacou esta cidade, motivadas pelas ocorrências deprimentes verificadas durante a perseguição movida, pela primeira vez, pela polícia cearense, cujo comando, segundo afirmam aqueles oficiais, es-tavam entregue a um oficial que é cunhado de um dos maiores protetores daquele execrando facínora, se não bastasse o teste-munho insuspeito de várias pessoas de fé, residentes nas locali-dades em que “Lampião” e seus asseclas são bem recebidos.

Aurora, Lavras, Missão Velha, Juazeiro, Crato, Barbalha, Milagres e muitas outras localidades situadas na zona do Cariri, são focos permanentes do banditismo. Aí se refazem constante-mente, em armas e munições, homens e animais, esses grupos que andam levando o desassossego, a desonra e o luto, através do imenso território de quatros Estados – Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas.

Por residirem em território cearense os maiores protetores desses bandos nefastos e certamente por insinuações daqueles, essas feras tornam-se em verdadeiros cordeiros logo que ingres-sam em território cearense. Daí atribuir-se, com visos de verda-de, ao Governador daquele Estado, quando interpretado, antes desta última excursão do grupo de “Lampião”, porque não per-seguia esse bandido e seus companheiros quando acoitados em território cearense, a resposta de que “não os perseguia porque nada cometiam no seu Estado”.

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De todos os Estados citados, quando têm o seu território invadido por essa malta de degenerados, são recebidas notícias freqüentes sobre a posição dos bandidos ou o rumo que toma-ram, porém logo que penetram em território cearense, as notícias escasseiam até desaparecer completamente, ou então são menti-rosas, como se constatou, quando “Lampião”, antes de entrar em território norte-riograndense, atravessando o estado da Paraíba, se passou para o Ceará. Deste foi comunicado que “Lampião” com o seu grupo havia rumado o Estado do Piauí, quando efeti-vamente ele se encontrava em Aurora, preparando-se para o ata-que a esta cidade.

Se medidas severas e radicais não forem, a tempo, toma-das, na repressão ao banditismo, este tende a se alastrar cada vez mais, sendo imprevisível até que ponto chegará. Conseqüências ruinosas para a Nação já se vão verificando. Os proprietários de terras, situadas nas zonas infestadas por esses grupos de bandi-dos, que dispõem de algum recurso, já estão abandonando as suas propriedades. Pessoas que viajou recentemente por esses lugares, informa-nos que é verdadeiramente acabrunhador o ver-se léguas e mais léguas de terrenos fertilíssimos completamente abandonados, quando outrora ai se via labor intenso.

Por todos os motivos, de ordem moral, financeira e eco-nômica, esses fatos deprimentes e ruinosos para a Nação não devem nem podem continuar. Urge que o Governo Federal, re-conhecendo a importância ou a indiferença dos governos esta-duais, tome medidas enérgicas para extirpar de vez esse cancro do organismo nacional.

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Dentre os planos de grande visão do atual Governo, está o da estabilização da moeda, que já está feito sem quase se sentir, o que prova a excelência do plano, e conseqüentemente o da sua conversabilidade.

Assenta-se o plano em primeiro estabilizar para depois converter. O êxito desse grande empreendimento, no futuro, reside no saldo da balança comercial que nos deverá fornecer o excesso da exportação sobre a importação. Na manancial agríco-la do país está, portanto, o fator máximo. Este que deve, por todas as formas, ser desenvolvido, está afetado com os atos ca-nibalescos do banditismo que, em vista disso, deixou de ser um dano regional para ser nacional. Impõe-se, pois, medidas prontas e decisivas para debelar o mal.

É o que esperam do governo federal as populações nordes-tinas.

ATAQUE À CIDADE DO APODI – Ocorreu às primei-

ras horas da manhã do dia 10 de maio do corrente ano. A exem-plo dos revoltosos, o primeiro cuidado do grupo atacante foi destruir a estação telegráfica, evitando assim qualquer comuni-cação do que se estava passando naquela cidade. O grupo era composto de cerca de 30 homens, montados e armados com fu-zil mauzer, tipo 1908 (!) bem municiados, chefiado pelo perigo-so facínora Massilon Leite, que também se encontrava entre os que posteriormente assaltaram esta cidade, em 13 de junho do corrente ano.

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O ataque levado a efeito nessa cidade, que dista cerca de 15 léguas desta, segundo as declarações de um cangaceiro do grupo, aprisionado em Martins, quando tentava fazer espiona-gem, fora insinuado por pessoas inimigas dos que atualmente ocupam as posições de comando da polícia, isto é, na polícia. Por isso não se verificaram, em sua plenitude, os contumazes atos de vandalismo que caracterizam esses ataques inopinados de bandidos, visto os mandantes terem também amigos naquela cidade, aos quais não desejavam fazer mal.

O assalto visava a morte e aplicação de surras em determi-nadas pessoas que o chefe do grupo, não se sabe por que, não levou a efeito. Limitaram-se os bandidos a saquear e incendiar os estabelecimentos comerciais e casas particulares dessas pes-soas. Verificou-se apenas uma morte – a do comerciante Manoel Rodrigues, assassinado friamente por um facínora do grupo, desafeto da vítima.

Do assalto à cidade de Apodi, como dissemos acima, se veri-ficou as primeiras horas do dia 10 de maio, só tivemos notícia às 10 horas da noite desse dia por um telegrama dirigido ao sr. Rodolfo Fernandes, mandado passar em São Sebastião, oito léguas distante daquela cidade, por um portador que uma das pessoas visadas pelo grupo conseguiu mandar do seu esconderijo.

De posse dessa notícia alarmante, o sr. Rodolfo Fernandes, que é o digno Prefeito desta cidade, deu ciência a todas as pes-soas de responsabilidade da cidade, inclusive ao Gerente desta filial, que reside em casa contígua à daquela autoridade.

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Na persuasão de que o grupo pudesse ter rumado para esta cidade, onde poderia estar às primeiras horas da manhã do dia 11, aquela autoridade tratou logo de ver quais os meios de que poderia dispor para a defesa da cidade, em caso de qualquer ataque.

Nessa noite agitada de gerais e horríveis apreensões, de-pois de muitos esforços, ficou constatado que se poderia contar com meia dúzia de soldados da polícia estadual, mal municiados e meia dúzia de rifles com reduzida munição, muito embora não faltasse gente que a todo o momento se oferecia. No comercio não havia, nem há, estabelecimento que tivesse armas e muni-ção, artigos esses que aqui vão rareando, devido às dificuldades existentes atualmente na sua aquisição.

Nessa noite horrível em que o próprio Delegado de Polícia nem seu substituto legal aqui não se encontravam, o que bem mostra o abandono e o descaso por esse importante serviço, nin-guém mais dormiu; todas as famílias se conservaram acordadas na dolorosa expectativa de ver a cidade, de um momento para outro, ser atacada, sem que pudesse ser defendida, à falta de elementos.

Felizmente a hipótese não se concretizou, mas o ambiente de terror ficou implantado.

MEDIDAS DE PRECAUÇÃO – Depois do ataque da ci-

dade de Apodi, começou só então a ser notada a falta de carinho com que é tratada esta cidade na parte concernente ao seu poli-ciamento. Cidade de cerca de 15 mil almas, com uma filial do primeiro estabelecimento bancário do país, uma coletoria federal

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e muitas outras repartições públicas, com um número considerá-vel de operários, aplicados no serviço de fábricas, prensas e no prolongamento da Estrada de Ferro de Mossoró, onde trabalha gente de toda parte e espécie, situada, podemos dizer, no sertão, e ameaçada constantemente de ataques de bandoleiros, não po-dia continuar a ser policiada por meia dúzia de soldados, muito embora para tal concorresse o reconhecido espírito ordeiro de sua população. Com o louvável objetivo de conseguir fosse re-forçado o número de praças da polícia estadual aqui destacadas, congregaram-se todas as pessoas de responsabilidade da cidade e resolveram apelar para o Exmo. Sr. Governador do Estado e sr. Chefe de Polícia, expondo os motivos que justificavam per-feitamente essa providência, sobrelevando-se dentre esses o da responsabilidade de ser esta cidade atacada inesperadamente por grupos de bandidos. Aquelas autoridades, alegando razões de ordem financeira e refutando o receio de que todos aqui residen-tes se achavam de um possível ataque de bandoleiros, animava-os, afirmando que se não havia ainda registrado o fato de uma cidade litorânea e do tamanho desta ser atacada, mas que no momento não os podia atender.

Desiludidos de qualquer providência por parte do Governo Estadual, resolveram aquelas mesmas pessoas convocar uma grande reunião para ventilar medidas atinentes à defesa dos bens da coletividade, que importaria na da própria cidade. Pelo Ge-rente desta filial, foi alvitrada a idéia de uma subscrição no co-mércio local para a aquisição de armas e munições, destinadas exclusivamente ao aludido mister, concorrendo as firmas segun-

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do os seus recursos e extensão de bens a defender, idéia essa que foi imediatamente aceita por unanimidade. Para presidente da comissão que se encarregaria dessa incumbência foi lembrado, por nímia gentileza das pessoas presentes à reunião, o nome do primeiro signatário do presente relatório. Na mesma ocasião ficou também resolvido que armas e munições, depois de passa-do o perigo em que se encontrava a cidade, seriam distribuídas proporcionalmente à quota de cada subscritor, comprometendo-se cada um a não se desfazer das mesmas, sob qualquer motivo, como também a traze-las limpas e tratadas, a fim de que, em casos futuros e idênticos, a cidade pudesse contar com algum recurso eficiente para a sua defesa.

A comissão apurou cerca de Rs. 23:000$, concorrendo esta filial com a quantia de Rs. 2:000$ e as firmas Tertuliano Fer-nandes & Cia., M. F. do Monte & Cia. e Alfredo Fernandes & Cia. com Rs. 3000$ cada uma.

Com o produto apurado se conseguiu adquirir na capital do Estado do Ceará, cerca de 50 armas, entre fuzis e rifles, e apro-ximadamente 9.000 tiros, que constituíram, incontestavemente o fator máximo do êxito da brilhante resistência oferecida por esta cidade à malta de facínoras que a atacou em 13 de junho do ano corrente.

ATAQUE A ESTA CIDADE – Teve por principal causa

a falta de policiamento aqui existente, levado ao conhecimento dos bandidos pelos inúmeros espiões que espalham, com ante-cedência, pelas cidades, vilas e povoados que pretendem atacar.

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Para favorecer esse serviço, em que os bandidos são exímios, estão as próprias condições da cidade; de comercio intenso e de grande trânsito de comboios de toda parte. A fama de riqueza de que goza esta cidade em todos os altos sertões nordestinos e o reconhecido espírito de ordem e de retraimento de sua popula-ção também foram fatores poderosos no ânimo dos bandidos para empreenderem a audaciosíssima empresa do ataque levado a efeito. Como este se verificou, relataram a maioria dos jornais dessa capital, com grande minudência. Apenas diremos que não. Foi de surpresa e com êxito para os assaltantes devido à inabili-dade destes. Em 12 de junho último, isto é, na véspera do ata-que, às 12:00 horas do dia, segundo as últimas notícias recebi-das, supunha-se o grupo a 24 léguas daqui, mas o mesmo já se encontrava apenas a 7. Efetivamente, o portador conduzindo a carta do sogro do Gerente desta filial, aprisionado pelo perigoso grupo no lugar denominado “Santana”, quando ia em busca de sua esposa que se encontrava em uma fazenda ameaçada pelos facínoras, na qual aquele senhor comunicava achar-se prisionei-ro do “Capitão Lampião” e pedia a remessa de Rs. 21:000$ exi-gidos por este para o seu resgate, foi que determinou exatamente o perigo iminente a que a cidade estava ameaçada. Desde logo providenciou-se a defesa da cidade. O grupo assaltante estava tão seguro do êxito da empresa que, chegando a São Sebastião, pequena localidade, distante daqui cerca de 7 léguas, às 10:00 horas da noite, preferiu aí pernoitar, quando poderia ter continu-ado a viagem e atacar a cidade às primeiras horas do dia 13.

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O perigoso grupo era composto de 52 homens e reunia os nomes mais falados e execrandos do banditismo no Nordeste, como sejam: Lampião, Sabino, Moreno, Jararaca e Massilon. Pela vez primeira se consagraram para o mesmo fim quatro che-fes de grupo. Com exceção de quatro ou cinco bandidos arma-dos de rifles, todos os demais conduziam fuzis mauser, tipo 1908, bem municiados, carregando os mais alentados cerca de 500 litros. Todos vinham bem montados, trazendo até muitos animais de reserva. O grupo compunha-se de homens de rara coragem ao mesmo tempo exímios atiradores, tanto de frente como de costas. Vinham perfeitamente informados acerca das pessoas de maiores responsabilidades da cidade e atacaram de preferência, com o premeditado fito de aprisionar, como de-monstra a planta ilustrada da cidade que ao presente anexamos, as residências do Gerente desta filial, Prefeito da cidade e a do Gerente da Estrada de Ferro de Mossoró.

No oitão direito da residência do Gerente desta Agência, justamente onde foi levado a efeito o mais cerrado de todos os tiroteios, caíram feridos mortalmente os facínoras Colchete e Jararaca, sendo que aquele teve apenas alguns segundos de vida e este alguns dias.

O bandido Jararaca era o terror dos sertões de Pernambu-co, sendo considerado pela polícia desse Estado como muito mais perigoso e perverso do que o próprio Lampião. Por isso o Chefe de Polícia daquele Estado, logo que soube do aprisiona-mento do citado facínora, apressou-se em enviar ao Prefeito desta cidade os mais efusivos parabéns, muito embora não acre-

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ditasse desde logo na veracidade das notícias daqui transmitidas, avisando aquela ocorrência, dada a grande e reconhecida valen-tia e sagacidade do referido cangaceiro, que nunca se deixou apanhar em territórios pernambucanos, onde era grandemente perseguido.

O ataque à cidade foi levado a efeito precisamente às qua-tro horas e trinta minutos da tarde, depois de haverem dirigido duas cartas ao Prefeito da cidade, exigindo a quantia de Rs. 400:000$000 para desistirem do intento. Esses documentos fo-ram também transcritos pelos jornais dessa capital.

O tiroteio durou cerca de 2:00 horas, retirando-se os ban-didos precipitadamente, ante a intensidade dos disparos das trin-cheiras da cidade e depois que viram tombar dois de seus com-panheiros mais audazes. Repelidos, tomaram os fascínoras a direção da fronteira cearense, que fica a poucas léguas daqui. Desde que entraram em território norte-riograndense, pelo Mu-nicípio de Luiz Gomes, até o se passarem para o cearense, os bandidos cometeram toda sorte de ignomínias; roubos, depreda-ções, incêndios, surras, estupros e mortes.

O aprisionamento de pessoas, sob ameaça de morte, caso os parentes e amigos destas não remetam a importância fixada, que varia segundo as informações que têm sobre as posses des-sas mesmas pessoas, constitui uma das mais proveitosas fontes de receita desses nefandos grupos.

Logo que os bandidos que atacaram esta cidade se acha-ram em território cearense, por ordem determinante de Lampião, o chefe supremo do grupo, cessaram os atos canibalescos. Da

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cidade de Limoeiro, no Estado do Ceará, por onde não tenciona-va passar o grupo, que se encontrava distante da mesma cerca de 3 léguas, foi enviado a este um portador avisando que poderia entrar na referida cidade porque ao grupo nada acontecia. À vis-ta de tão gentil convite o grupo não se fez esperar e para lá se dirigiu, entrando naquela cidade aos gritos de vivas ao Padre Cícero e ao Governador daquele estado, depois de todos os do grupo se haverem enfeitado de fitas de seda de todas as cores, que roubaram durante a travessia deste estado.

Na cidade de Limoeiro os bandidos não só foram bem re-cebidos como também banqueteados pelo respectivo Prefeito e outras autoridades locais, havendo por essa condição, o que pa-rece incrível, o congraçamento da Lei com o Banditismo...

Segundo o depoimento do bandido Jararaca, que ao pre-sente anexamos, as armas e munições de que dispõe o grupo presentemente foram-lhe fornecidas, ao tempo da passagem dos rebelados pelos Estados nordestinos, pelo falecido deputado federal – Sr. Floro Bartolomeu, encarregado pelo Governo da República de então para armar gente para combater aqueles des-viados da lei.

Ao que se diz, essas armas e munição, depois da passagem dos rebeldes, não puderam ser recolhidas pelo Governo Federal, sob alegação de extravio, sendo certo existir grande quantidade em poder de vários “coronéis”, chefes políticos de localidades no interior do Estado do Ceará, que delas se vão agora utilizan-do, fornecendo aos bandidos em troca de avultadas quantias

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extorquidas por estes das populações indefesas dos altos sertões nordestinos.

PROVIDÊNCIAS TOMADAS PELA ADMINISTRA-

ÇÃO DA AGÊNCIA PARA DEFENDER OS INTERESSES DO BANCO – Na mesma noite em que tivemos certeza de que o bando sinistro para esta cidade se dirigia, fomos à Agência e colocamos dentro dos dois cofres existentes todos os papéis, livros e documentos. No dia do ataque a esta cidade, horas antes, transportamos para Areia Branca, como medida de prudência, o numerário então existente, que montava a Rs. 912:064$081, depositando-o no cofre que temos naquela vila, na Agência da Companhia Nacional de Navegação Costeira. Vinte e quatro horas após o ataque desta cidade, que ficou unicamente ocupado pelos seus defensores, regressamos com o numerário. Entretan-to, ao aqui chegarmos, verificamos que a situação era de franca insegurança, sendo a cidade, de quando em vez, sacudida por toques de alarme, uma vez que não havia certeza, durante alguns dias que se seguiram ao ataque, à falta de comunicações, porque o grupo tinha cortado todos os fios telegráficos, onde este se encontrava e mesmo porque se receiava novo ataque.

Como se encontrasse completamente fechado o comércio lo-cal, só reaberto cerca de oito dias após o ataque, como também porque os comerciantes e respectivas famílias se encontrassem refugiados em Areia Branca, resolvemos transportar para Natal o aludido numerário, o que fizemos por intermédio do sr. Contador da Agência e mis dois funcionários, em 16 de junho último.

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MEDIDAS QUE SE IMPÕE – Muito embora tenha con-tra si a precariedade da situação financeira do estado, não pode-mos deixar de reconhecer as providências solícitas e eficientes, tomadas pelo exmo. Sr. Governador do Estado, logo que teve certeza que o bando sinistro de Lampião para aqui realmente se dirigia. Reforço de praças, armas e munição foram remetidas de Natal a toda pressa e a tempo de entrarem em ação. Afigurou-se a todos, entretanto, que da mesma forma, não procedeu o oficial comandante das forças estaduais do interior do Estado, deixando que os bandidos atravessassem este de oeste para leste, sem que lhes pusessem uma retaguarda, uma vez que para isto dispunha de elementos, o que certamente teria forçado o grupo a procurar a fronteira cearense, perto da localidade de Itaú, neste Estado, evitando assim o ataque a esta cidade.

Agora que já ficou demonstrado praticamente que esta ci-dade está exposta a inopinados ataques de bandidos, julgamos oportuno que essa Matriz, trazendo também a sua contribuição aos justos reclamos da população desta cidade, se dirija ao Ex-mo. Sr. Governador e solicite deste a permanência nesta cidade, que por todos os motivos faz jus a isso, de um contingente poli-cial nunca inferior a cem praças, a fim de garantir, não só a po-pulação da cidade, como também os grandes valores aqui exis-tentes, destacando-se francamente dentre esses os da Agência do Banco aqui existente.

Se essa providência indispensável não for quanto antes tomada, não podemos assegurar a defesa dos valores a nós con-fiados, porque não estamos livres de termos, inopinadamente, às

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caladas da noite, as nossas residências assaltadas e, sob ameaça de morte, extensiva às nossas famílias, sermos obrigados, pela violência a tudo entregar a esses audaciosos facínoras, ou mes-mo assassinados depois de aquiescermos aos seus desejos, dado o espírito de malvadeza e perversidade que caracterizam esses monstros.

Desde o ataque à cidade de Apodi até o presente momento que a cidade, amiudamente é sacudida por notícias alarmantes e inquietadoras, principalmente, à noite, tornando-se, portanto, a vida nessas condições em verdadeiro martírio, notadamente, para aqueles que, além das responsabilidades sacrossantas da família, se vêm objetivados pelas decorrentes dos cargos que ocupam.

Se a providência da permanência aqui de cerca de cem praças, que é inicialmente estratégica, devido a parte dessa força pode ser, de um momento para outro, jogada com rapidez no interior do Estado, contando para isso com o transporte rápido que oferece a Estrada de Ferro de Mossoró, não for levada a efeito, não sabemos como o Banco sair desse doloroso dilema: ou o Banco, em face da situação insegura e aflitiva da cidade, fecha a filial que aqui mantém, ou insiste pela sua permanência, ficando com a responsabilidade moral e material do que venha a ocorrer com os seus funcionários e respectivas famílias e dos prejuízos decorrentes que essa falta de garantias pode determi-nar relativamente aos valores pertencentes ou sob a guarda da filial desta praça.

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Ilustrando as ocorrências a que vimos de nos reportar, jun-tamos ao final deste documento o seguinte:

Quinze fotografias,; Depoimentos do bandido Jararaca; Uma planta ilustrada da cidade de Mossoró; Dois exemplares do “Correio do Povo”, que se edita nesta

cidade, respectivamente, dos dias 24 e 31 de julho do corrente ano, contendo a entrevista concedida pelo Tenente Joaquim Tei-xeira de Moura, da polícia norte-riograndense e as declarações do facínora Bronzeado, um dos do grupo que atacou a cidade de Apodi, em 10 de maio último.

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AUTOS DE PERGUNTAS AOS CANGACEIROS

Antônio Inocêncio de Oliveira, segundo Escrivão do crime

neste distrito do Martins, estado do Rio Grande do Norte, etc9 Certifico que dos autos-crime contra os réus Virgolino Fer-

reira, vulgo Lampião, Sabino Gomes, Antônio Leite, vulgo Massilon, Francisco Ramos de Almeida, vulgo Mormaço e ou-tros, consta o auto de perguntas feitas do preso Francisco Ramos de Almeida, vulgo Mormaço. – Aos quinze dias do mês de se-tembro de mil novecentos e vinte e sete, nesta cidade de Mar-tins, do estado do Rio Grande do Norte, às doze horas, na Dele-gacia de Polícia, aonde se acha o delegado de polícia, Tenente

9 O propósito da presente publicação não é outro senão o de juntar o docu-mentário da passagem de Lampião pelo Rio Grande do Norte. Daí, porque, tanto na cópia dos relatos dos jornais, como no depoimento dos cangaceiros, foram dispensadas inúmeras declarações que se relacionavam com atividade e vida pregressa do grupo em outros Estados. De todos, Mormaço, foi o bandoleiro que prestou declarações mais importan-tes, tendo dado nada menos de quatro depoimentos: em Crato-CE, a Pau dos Ferros, Martins e Mossoró, RN. Em todas as referências e as acusações são mais ou menos semelhantes. Juntamente com Bronzeado e mais dos presos de justiça, que se encontravam na cadeia de Mossoró, foi levado para a estrada de Natal e morto com os outros. Do ocorrido, há um processo, onde se fez prova de qualquer forma, que um dos bandidos pegou de um fuzil, atirou nos companheiros e depois, suicidou-se com a mesma arma...

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Joaquim Teixeira de Moura, comigo escrivão de seu cargo abai-xo nomeado, ai foi apresentado o preso Francisco Ramos de Almeida, vulgo Mormaço, de dezenove anos de idade, solteiro, natural do município de Araripe, lugar Baixo dos Ramos do es-tado do Ceará, não sabendo ler nem escrever. Interrogado a res-peito do que causou a sua prisão, disse: que em mil novecentos e vinte e quatro, dirigia-se à cidade de Ouricuri, do Estado de Per-nambuco, onde verificou praça na polícia do mesmo estado; que dias depois seguiu para São Gonçalo, fazendo parte de uma for-ça sob o comando do Tenente Manoel Antônio, a fim de guerre-ar as fronteiras ameaçadas pelas revoltas; que daí seguiu com o Coronel João Nunes fazendo parte de uma grande força que se destinava ao estado do Piauí, onde iniciando-se a perseguição dos revoltosos, seguiu pra Valença, no mesmo Estado, dando-se ali grande tiroteio entre os revoltosos e as forças legais; que em conseqüência desse tiroteio, saia ele respondente baleado na perna direita; que voltara para Ouricuri, a fim de ser curado do ferimento que recebeu; que quatro meses depois, achando-se restabelecido, fez algumas diligências em perseguição ao grupo de Lampião; que depois disto fora destacar em cidade de Custó-dia onde foi expulso a bem da disciplina, em virtude de um atri-to entre ele respondente e o comandante do destacamento; que em vista disso resolvera regressar á casa de seus pais residentes no Brejo Seco no estado do Ceará; que ao passar no lugar São Francisco em Pernambuco, encontrou-se em plena rua com o grupo de Lampião; que Lampião procurou matá-lo em virtude dele respondente vir trajando roupa militar, o que não o fez por

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conveniência atenciosa e mesmo porque Lampião ficara infor-mado de que ele respondente havia sido expulso da polícia de Pernambuco: que Lampião perguntara a ele respondente se que-ria morrer ou acompanha-lo; que Lampião lhe dera um rifle e munição ...................................................................................... .............................................................................................................................................................................................................. que no começo do mês de junho deste ano Lampião completa-mente preparado, levantou acampamento fazendo-se do caminho com direção do Rio Grande do Norte, viajava sempre à noite, a fim de não ser visto, aconteceu que ao penetrar no Rio Grande do Norte, alguns dos bandidos que ficaram atrás se embriagaram sendo descoberto por isso a sua marcha que não tinha sido di-vulgada neste Estado, e, marchando na mesma direção alcançou no dia 10 do dito mês de junho, a Fazenda Nova, no município de Luiz Gomes, onde aprisionou o proprietário da referida fa-zenda, Coronel Joaquim Moreira, estipulando a quantia de vinte contos para seu resgate; daí Lampião sai no mesmo dia pernoi-tando a pequena distância; que pela manhã do dia seguinte, al-cançou a fazenda Arueira no mesmo município, de propriedade de José Lopes, às oito horas, onde aprisionou a esposa do dono da casa, dona Maria José, estipulando a quantia de trinta contos para seu resgate; que nesse ínterim o bandido Graúna, que saiu para dar água a seu cavalo, encontrando-se com pobre homem no caminho da aguada, pelo simples fato de não ter-lhe ensinado onde tinha animais soltos, matou-o a tiro de fuzil; que às nove horas o grupo marchou, alcançando a fazenda de Caiçara, às

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dezesseis horas, havendo um encontro do grupo com a força do tenente Napoleão atribuindo Lampião ser essa força a que se achava fazendo a defesa de Vitória, município de Pau dos Fer-ros, isto por saber que a fazenda Caiçara ficava nas proximida-des de Vitória, que esta força iniciando o tiroteio, o grupo cor-respondeu atirando também, o que durou pouco tempo, por ter a força recusado; que Lampião depois reconheceu que a força havia recuado, avançou e, dando uma batida no teatro da luta, encontrou um dos seus companheiros, de nome Patrício, vulgo Azulão, morto e bem assim um soldado; que o bandido Capueiro dirigindo-se ao cadáver do soldado deu neste alguns tiros de fuzil e algumas furadas, em seguida conduzindo o fuzil que se achava ao lado do mesmo soldado; daí o grupo marchou alcan-çando o lugar João Gomes, pernoitando nas proximidades dessa fazenda; que daí o grupo seguiu passando na fazenda Caucel10 no município de Pau dos Ferros, onde aprisionou Francisco Germano, estipulando a quantia de dez contos, para seu resgate; que daí o grupo partiu rumando Boa Esperança, neste município, e ao aproximar-se das primeiras casas desse lugar, Sabino pren-deu dois homens a fim de irem com eles entrar em Boa Esperan-ça; que ainda com ar do dia Lampião entrou em Boa Esperança, saqueando alguns estabelecimentos, apunhalando nessa ocasião Jararaca um homem cujo nome ignora, deixando-o quase morto; depois do grupo praticar toda sorte de perversidade, daí partiu rumando Mossoró, pernoitando no lugar Várzea Grande que

10 Não existe este lugar no itinerário. Deve ser a fazenda Caricé.

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dista três léguas de Boa Esperança; que Lampião logo após ter ordenado que todo grupo se agasalhasse, dividiu-o em dois fi-cando Sabino um pouco distante de Lampião que ficara na fren-te fazendo a guarda, mantendo ambos grande vigilância por re-cearem algum ataque de força; que no dia seguinte pela manhã antes da saída do grupo, Sabino ouvindo uma algazarra como que fosse alguma força que se aproximava, empiquetou a estra-da e, momentos depois, aproximaram-se no local algumas pes-soas que vinham em seu encalço e, em dado momento Sabino fazendo fogo contra as mesmas, matou três delas, correndo os demais que não foram atingidos. Perguntado ao respondente se sabe os nomes dos cangaceiros que fizeram parte da coluna che-fiada por Sabino, que de emboscada matara aquelas três pessoas, respondeu que os cangaceiros que compunham essa coluna, e-ram: Jararaca, Moreno, Navieiro, Antônio dos Santos, Trovão, e outros cujos nomes não se recorda. Perguntado ainda se sabia que os prisioneiros marchavam em companhia do grupo e se iam soltos ou amarrados, respondeu que acompanhavam o grupo soltos: que daí o grupo marchando, alcançou uma hora depois a fazenda Jurema, onde roubaram animais. Perguntado ainda se o grupo passara na fazenda Morcego e Castelo deste município e o que praticou de desordem, respondeu que no lugar Morcego o grupo fez algumas depredações e espancamentos e, a tiro de fuzil feriu a uma pessoa ali residente. No lugar Castelo, o grupo procedeu da mesma forma, ferindo também a tiros de fuzil a uma pessoa; que o grupo também passou na fazenda Buracos, onde fez depredações, surrando um homem, tendo aprisionado,

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no lugar Corrida11, um rapaz de nome “Seu Leite”, estipulando a quantia de cinco contos para seu resgate. Perguntado a ele res-pondente da fazenda Jurema que destino tomou o grupo, res-pondeu que o grupo demorando-se pouco em Jurema seguiu na direção de Mossoró, e ao passar nas proximidades de Gavião, um pouco adiante, o respondente viu Sabino chamar o prisionei-ro Francisco Germano e este indo à presença de Sabino recebeu do mesmo ordem para ir embora, o que fez imediatamente. Per-guntado se o prisioneiro Francisco Germano que fora posto em liberdade, entregara a Lampião o dinheiro estipulado para seu resgate, respondeu que não sabe informar se foi ou não entregue esse dinheiro; que o grupo marchou alcançando, na tarde do dia doze, a fazenda do Sr. Antônio Gurgel, a quem Lampião pren-deu e conduziu, estipulando a quantia de vinte contos de réis, para seu resgate; que o grupo se fez ao caminho de Mossoró. Já à noite, encontrou perto de São Sebastião, um comboio de lã que se achava no descanso, mandando Lampião incendiar o dito comboio de lã e cumprida essa ordem o grupo marchou e che-gando na povoação de São Sebastião, um pouco tarde da noite, ali fez algumas depredações, incendiando um automóvel que se achava na garagem; que continuando a marcha, todo grupo per-noitou meia légua de distância daquele povoado; que no dia tre-ze pela manhã o grupo partiu em marcha acelerada na direção de Mossoró, ponto visado do ataque combinado, na Serra do Dia-mante, do município de Aurora, o Estado do Ceará, e ao apro-

11 Indicação errada. Com referência a este ponto há anotação anterior.

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ximar-se daquela cidade, a cerca de treze horas, alcançou uma fazenda que, dista meia légua da mesma cidade, onde estacio-nou, que momentos depois, Lampião escreveu uma carta ao pre-feito de Mossoró, na qual exigia a importância de quatrocentos contos, adiantando que no caso negativo atacaria, sem perda de tempo, a cidade; que momentos depois, Lampião recebeu a res-posta do seu ultimatum, escrita nos seguintes termos: “Impossí-vel Mossoró fornecer dinheiro a bandidos; estou resolvido a reagi-lo na altura, aproxime-se”; que Lampião não desanimou, reuniu todo o grupo; que se compunha de sessenta e cinco can-gaceiros, mandando que azeitassem os fuzis e estivesse o grupo em posição de sentido, marchando logo depois em direção da-quela cidade; que ao chegar nas primeiras casas Lampião dividiu o grupo em duas colunas, uma chefiada por Sabino, outra por ele Lampião; que ele respondente pertencia a coluna chefiada por Lampião; que as referidas colunas entraram em Mossoró a um só tempo atirando a torto e a direito, encontrando grande resis-tência, notando que chovia bala de todos os pontos, cerrando-se assim grande tiroteio de parte a parte; cerca de duas horas ou mais ou menos de fogo, Sabino avisara a Lampião que Jararaca e Colchete já se achavam mortos; que Lampião após a essa notí-cia deu ordem para recuar e marchando com todo o seu grupo para o lugar onde havia deixado os animais. Perguntado se os prisioneiros fizeram parte das linhas de fogo, respondeu que os prisioneiros ficaram a uma certa distância, guardados por oito bandidos; que Lampião montando todo o grupo seguiu pernoi-tando em uma roça a uma légua de distância da cidade, de cujo

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lugar saiu pela manhã com destino ao Limoeiro, do estado do Ceará; que nessa viagem o grupo alcançou uma fazenda, cujo proprietário ignorava-se o nome e ai pernoitou; não sabendo porém, se alguns de seus companheiros fizeram algum saque; que no dia seguinte, pela manhã o grupo fez caminho, alcançan-do ao meio-dia a fazenda de um homem de nome Manuel Freire, o qual preso por Lampião teve que dar ao mesmo a importância de dez contos, como seu resgate; que momentos depois o grupo partiu alcançando a cidade de Limoeiro, ainda com ar de dia; que a força que fazia a defesa daquela cidade antes da aproxi-mação do grupo retirou-se; que o vigário da freguesia recebeu Lampião demonstrando grande satisfação, convidando-o para fazer a refeição serviu ele próprio a mesa com as amabilidades de estilo, depois do que Lampião e Sabino e mais alguns canga-ceiros iniciaram com o referido vigário, amistosa palestra; que momentos depois chegava o telegrafista local e avisara a Lampi-ão que havia recebido telegrama procedente de Mossoró notici-ando partida de força em perseguição do grupo; que nesse ínte-rim Lampião reunindo o grupo desocupou Limoeiro indo dormir a uma meia légua de distância; que no dia seguinte, pela manhã, o grupo partiu indo refugiar-se na fazenda Felicidade do muni-cípio de Jaguaribe onde permaneceu três dias; que Atílio propri-etário da referida fazenda que fora encarregado por Lampião de indagar por fora da aproximação de alguma força, soube que naquela proximidade achava-se acampado um grande contingen-te e disto cientificando a Lampião, o conduziu com seu grupo para a Serra da Micaela onde internou-se; que depois de dois

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dias Lampião sabendo que as forças que o perseguiam já haviam tido conhecimento de sua estrada, levantou acampamento e ao partir com destino a Serra do Velame, encontrou-se com uma numerosa força havendo cerrado tiroteio que durou uma hora mais ou menos acontecendo que Lampião vendo que o caso es-tava perigoso, recuou deixando toda montada e quatorze rifles e em seguida com seu grupo fora se refugiar na Serra do Velame onde permaneceu dois dias. .......................................................... ....................................................................................................... que ao chegar entre Ingazeira e a Serra de São Pedro ele respon-dente achando-se fatigado pelas lutas, manifestou a Lampião o desejo de não querer fazer mais parte do grupo; que Lampião disso inteirado não fez nenhuma objeção, apenas fez ver a ele respondente que fora do grupo seria mais fácil a sua prisão; que ele respondente, recebendo a ordem de Lampião para ir embora, vendera ao mesmo, fuzil de que se achava armado, pela quantia de duzentos mil réis, depois das despedidas, ele respondente disfarçando-se fez-se ao caminho da casa; que o bandido Co-queiro que também deixou o grupo seguiu com destino ao Piau-í,12 ficando o respondente no Baixo dos Ramos, município de Brejo Seco, onde residem seus pais; que dez dias depois ai em casa de seus pais houve um samba, ao qual compareceu muita

12 O depoimento de Mormaço na cidade de Crato esclarece que, quando o grupo debandou no Cariri, Coqueiro entrou para o Piauí, desaparecendo, assim o bandido que prendeu o Cel. Antônio Gurgel. No local aonde se veri-ficou sua prisão, pelos cangaceiros, o Sr. Antônio Gurgel mandou construir uma capela com a invocação de Santo Antônio.

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gente; que alguns sambistas embriagando-se abriram luta e que ele respondente investindo contra os mesmos a fim de reagi-los, recebera um ferimento na mão esquerda; que nesse ínterim ele sacando de um revólver fora agarrado por diversas pessoas a-contecendo que o seu revólver disparou, indo o projétil atingir à sua perna direita e disparando outra vez o revólver foi o projétil atingir o seu tio Raimundo Lopes que morreu imediatamente; que ele respondente fugindo foi ter no lugar Mulungu em casa de um seu parente de nome Vicente Barbosa que ciente do ocor-rido, aconselhou-o que se entregasse à Justiça o que fez o res-pondente; que sendo recolhido à cadeia de Crato, do estado do Ceará, voluntariamente declarou ter sido companheiro de Lam-pião durante toda excursão triunfal pelos estados de Pernambu-co, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte; que no grupo sua alcunha era Mormaço. ................................................................... ....................................................................................................... Perguntado quantas pessoas havia morto durante o tempo em que andou com Lampião, respondeu que nenhuma, apenas atira-ra muito. Perguntado ainda se fizera parte em todos os crimes praticados por Lampião em sua excursão no Rio Grande do Nor-te, respondeu que sim. Perguntado, ainda mais se fora coagido pela autoridade que o interroga, Tenente Joaquim Teixeira de Moura, para declarar o que vem expondo neste auto, respondeu que não e ainda mesmo se tivesse sido coagido, não deixara de expor a verdade do que observou e praticou como cangaceiro de Lampião. E como nada mais disse nem lhe foi perguntado, deu-se por findo o presente auto que lido e achado conforme, vai

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assinado pela autoridade policial, e a rogo do depoente por não saber ler nem escrever, Jocelim Vilar de Melo. Eu, Antônio Ino-cêncio de Oliveira, escrivão, o escrevi. Martins, 24 de outubro de 1927.

(a) Jaquim Teixeira de Moura Jocelin Vilar de Melo. Fiel ao original; dou fé Antônio Inocêncio de Oliveira – 2º escrivão do crime.

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AUTO DE PERGUNTAS FEITAS A JOSÉ LEITE DE SANTANA, VULGO JARARACA

Aos quatorze dias13 do mês de junho de mil novecentos e

vinte e sete, nesta cidade de Mossoró, Estado do Rio Grande do Norte, pelas dezesseis horas, na Delegacia de Polícia, presente o Segundo-Tenente Laurentino Ferreira de Morais, Delegado de Polícia neste município, comigo escrivão do seu cargo adiante nomeado, ali se achando o indivíduo José Leite Santana, o mesmo delegado fez as perguntas seguintes: Qual seu nome, idade, estado civil, profissão, naturalidade, residência e se sabe ler e escrever? Respondeu chamar-se José Leite Santana, vulgo Jararaca, com vinte e seis anos de idade, solteiro, atualmente exercendo a profissão de cangaceiro, natural de Buíque, Estado de Pernambuco, sem residência fixa e sabe ler e escrever. Per-guntado mais como recebeu os ferimentos que apresenta e de onde veio para esta cidade? Respondeu que foi ferido ontem, mais ou menos às quatro horas da tarde, no ataque feito a esta cidade por ele respondente em companhia do grupo de cangacei-ros chefiado por Virgulino Ferreira, vulgo Lampião, do qual também fazia parte, e na ocasião em que retirava os arreios de munição e mais objetos de seu companheiro de nome Colchete, que havia também recebido um tiro e agonizava, que veio para esta cidade em companhia de 52 cangaceiros chefiados por Lampião, com o fim especial de atacar e roubar. Perguntado

13 O bandido Jararaca fora preso na manhã deste dia, gravemente ferido.

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mais de onde veio, ultimamente, com Lampião, e se acompa-nhava este desde muito tempo? Respondeu, que saíram em dias do mês de maio findo, de Pajeú, estado de Pernambuco, e que acompanhava Lampião há pouco mais de um ano. Perguntado mais qual a sua profissão anterior ao seu encontro com Lampião e onde residia? Respondeu que antes de conhecer Lampião, re-sidiu sempre em Buíque e no ano de mil novecentos e vinte e um, retirou-se para assentar praça, em Alagoas, com destino ao Rio de Janeiro, sendo incluído no Terceiro Regimento de Infan-taria, tendo ao concluir o seu tempo de serviço engajado ao Pri-meiro Regimento de Cavalaria Divisionária, tomando parte na revolta de São Paulo a favor da legalidade com a Coluna Poti-guara, onde foi ferido, que acompanhou a perseguição aos re-beldes, até Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, onde teve baixa; que como soldado de Infantaria, foi ordenança do Coronel re-formado Antônio Francisco de Carvalho, que voltando à sua terra natal, foi ameaçado de morte por Lampião, tendo para evi-tar a sua morte, resolvido aliar-se ao seu bando. Perguntado mais se no itinerário feito por Lampião, rumo a Mossoró, ataca-ram algumas cidades, vilas, povoação ou fazenda? Respondeu que atacaram Belém, no Estado da Paraíba, onde encontraram resistência, tendo Lampião ordenado a retirada para economizar a munição; que penetraram no Rio Grande do Norte por Luiz Gomes, atacaram duas fazendas nesse município, prenderam, na primeira, um velhinho e na segunda, uma senhora idosa; que segundo ouvira de Lampião, estes prisioneiros só serão postos em liberdade, mediante certa importância que ele precisa; que

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dali partindo, rumo a Mossoró, encontraram dois automóveis com soldados da polícia deste Estado, com os quais, deram uma brigada; que desta luta, resultou morrer um dos homens do gru-po e os soldados abandonaram os automóveis, pois foram estes queimados de ordem de Lampião; que atacaram ainda e rouba-ram uma fazenda de nome Jurema, nas proximidades de Gavião, sem encontrar resistência; que deram um pequeno fogo, em A-podi, onde foram repelidos, sendo este fogo dirigido por Massi-lon Leite, conhecido no bando por Benevides, e uma pequena parte de gente que acompanhava Lampião; que saindo em dire-ção a Mossoró, ao chegarem numa fazenda, na Várzea do Apo-di, encontraram um tal Antônio Gurgel, viajando de automóvel, o qual, foi preso e acompanhou o grupo, até ser entregue a im-portância de vinte contos de réis que Lampião exigiu pelo seu resgate; que prosseguindo, marcharam até São Sebastião, onde entraram sem resistência, na noite de 12 do corrente, que ai in-cendiaram um caminhão e um automóvel e saquearam as bode-gas existentes, vindo pernoitar um pouco abaixo do povoado, em umas roças; que partindo deste ponto, na manhã de ontem, ao se aproximar desta cidade, Lampião mandou um portador trazendo um bilhete, pedindo a importância de quatrocentos contos de réis, sob pena de atacarem a cidade, voltando o portador, com resposta negativa, informou que tinha muita gente armada e dis-posta a receber o grupo à bala; que, contudo, Lampião ordenou avanço para atacar por ser vergonhoso chegar tão perto e voltar sem fazer uma tentativa; que partiram do ponto onde se acha-vam, mais ou menos uma légua desta cidade, vindo todo pessoal

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a cavalo, pelo outro lado do rio até às proximidades da ponte da Estrada de Ferro; que neste ponto deixaram as montarias amar-radas e dois homens guardando os prisioneiros; que atravessa-ram, a pé e avançaram pela Estrada de Ferro, divididos em gru-pos chefiados, por Lampião, Massilon Leite, conhecido no ban-do por Benevides, Moreno e Sabino; que os três primeiros avan-çaram na frente em direção à parte de baixo da cidade e que o grupo de Sabino, do qual ele, respondente, fazia parte, penetrara pelos fundos de uma igreja, que agora sabe chamar-se São Vi-cente; que ao começarem atirar, foram repelidos por cerrado tiroteio; que em dado momento viu cair baleado e estrebuchar o seu companheiro conhecido por Colchete; que como é de praxe, tratou de desarmar o seu companheiro dos arreios de munição e mais objetos que interessava; que neste momento foi baleado, também, nos peitos e ao sentir-se ferido, tratou de aliviar-se dos arreios e procurou fugir, mas, ao atravessar a Estrada de Ferro, recebeu um ferimento, na perna direita, por novo projétil, fican-do impedido de prosseguir, permanecendo, ai, até hoje de ma-drugada, quando saiu se arrastando até o outro lado da ponte da Estrada de Ferro, onde foi preso hoje pela manhã. Perguntado mais de quantos homens se compõe o grupo de Lampião que atacou esta cidade e os seus nomes e apelidos? Respondeu, que o grupo era composto de cinqüenta e três homens, inclusive seu chefe. ............................................................................................ ....................................................................................................... Perguntado mais qual o tipo de armamento e munição que Lam-pião e sua gente conduz, bem assim, como é distribuído? Res-

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pondeu que o grupo de Lampião conduz quarenta e quatro fuzis mauzer e nove rifles com cerca de quinze mil cartuchos, distri-buídos até quatrocentos a cada homem, sendo que este número, conduzem os mais alentados (valentes). Perguntado onde deixou Lampião o resto do seu armamento, pois o seu grupo era muito mais numeroso do que ele respondente diz ter atacado esta cida-de, onde o mesmo Lampião, obteve este armamento e respectiva munição... ...................................................................................... ....................................................................................................... Perguntado mais se sabe, quando e onde, o indivíduo Massilon Leite ou Benevides, se juntou ao grupo de Lampião, se este é o mesmo Massilon que assaltou Apodi no começo do mês de maio findo, se o ouviu fazer referência sobre o referido assalto e se no mesmo tomou parte gente do grupo de Lampião? Respondeu que Massilon Leite ou Benevides, a quem vem se referindo é o mesmo que atacou Apodi em dias do mês passado e que se jun-tou ao grupo de Lampião dias depois do assalto em companhia de José Coco e José Roque, trazendo mais seis fuzis mauzer e pequena quantia e pode afirmar ele respondente que neste assal-to não tomou parte nenhum dos homens que acompanhavam Lampião; que ouviu ainda Massilon Leite dizer que tinha sido ele autor das mortes no Brejo do Cruz; que sabe ainda de ciência própria que Lampião só aventurou-se a vir assaltar Mossoró, por insistência de Massilon, o qual assegurou que havia de tirar mui-to bom resultado, pois nunca falou Lampião, em vir a Mossoró, antes do seu encontro com Massilon e acredita mesmo, que se Lampião, para evitar encontros com forças de outros Estados,

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tivesse de passar em qualquer outro ponto deste Estado, faria sem roubo ou ofender qualquer pessoa, desde que não fosse per-seguido, pois Lampião não tem nenhuma intriga nesse Estado, e só procura fazer dano, nos pontos onde tem inimigos ou é perse-guido. Perguntado mais se entre a Várzea do Apodi e São Sebas-tião, ele respondente ou alguns dos seus companheiros pratica-ram roubos atualmente ou assassinaram? Respondeu que um pouco antes de chegar a São Sebastião, o seu companheiro de nome Moreno, vendo correr um rapaz caído, baleado, o referido Moreno, acabou de mata-lo apunhalando. Perguntado mais os sinais do rapaz a que se refere? Respondeu que não pode dizer, porque era noite e não o viu de perto. E como nada mais respon-deu nem lhe foi perguntado, deu-se por findo este auto de per-guntas que lido e achado conforme, vai assinado e rubricado pelo delegado, assinado a rogo dele respondente por não poder fazê-lo em vista do seu estado de saúde, o cidadão José Furtado de Freitas, comigo Euclides Carneiro, escrivão que o escrevi.

(a) Laurentino Ferreira de Moraes José Furtado de Freitas14 Euclides Carneiro15

14 José Furtado de Freitas, cirurgião dentista, cearense. 15 Euclides Carneiro, funcionário público, à época, residente em Mossoró.

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AUTO DE PERGUNTAS AO PRESO MIGUEL INÁCIO DOS SANTOS,

VULGO “CASCA GROSSA” Aos vinte dias do mês de fevereiro de mil novecentos e

vinte e oito nesta cidade do Martins16, Estado do Rio Grande do Norte, na Delegacia de Polícia, onde se achava o delegado de polícia cidadão José Fernandes dos Santos, comigo escrivão ad-hoc do seu cargo abaixo assinado, ai foi apresentado o preso Miguel Inácio dos Santos, vulgo “Casca Grossa”, de 16 anos de idade, solteiro, natural do município de Taracatu, Estado de Per-nambuco, não sabendo ler nem escrever. Interrogado a respeito do que causara a sua prisão, disse que trabalhando no sítio Poço dos Ferros foi a mandado deixar uma carga d´água a Lampião e seus companheiros que se achavam refugiados numa serra en-cravada em terras do aludido sítio; que aí chegando Lampião foi cercado por uma força travando-se entre a mesma e os cangacei-ros grande tiroteio e depois os cangaceiros correram e ele decla-rante os acompanhou; que depois desse tiroteio Lampião seguiu em direção do Ceará indo homiziar-se no município de Aurora; que daí Lampião recebeu grande quantidade de munição, tendo,

16 As notas, cópias de documentos e demais informações sobre a passagem dos bandoleiros no município de Martins, e dos crimes que aí cometeram, foram colhidas pelo Desembargador Pelópidas Fernandes, pessoa profunda-mente conhecedora dos detalhes, lugares e pessoas referidas no processo instaurado naquela cidade, contra cangaceiros remanescentes do grupo de Lampião.

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segundo diziam no grupo, cerca de 35 contos de réis; que depois a conselho de Massilon, que já se encontrava, Lampião resolveu atacar o Rio Grande do Norte, que depois de 2 dias de viagem entraram neste Estado no município de Luiz Gomes, ali aprisio-nado o cel. Joaquim Moreira e dona Maria José, respectivamen-te, nos lugares Fazenda Nova e Arueira; que no tiroteio travado perto de Vitória, no município de Pau dos Ferros, morreu um bandido chamado Patrício, cujo apelido ignorava, morrendo também um soldado; que neste município o grupo fez diversas depredações dentre as quais lembra-se de um tiro dado por Jara-raca em um rapaz que saltava uma cerca, da prisão de um rapaz chamado Seu Leite no lugar Corredor, de roubos feitos em Boa Esperança, das mortes de 3 rapazes no lugar Várzea Grande,17 praticadas por Sabino, Lampião, Jararaca, Massilon e Pinga Fo-go, que depois desses assassínios seguiram para Mossoró aprisi-onando o grupo no mesmo dia um senhor cujo nome ignora; que não fez parte do ataque a Mossoró porque ficou com os animais nas proximidades daquela cidade, mas sabe que assistiu aos tiro-teios de Velame e Felicidade, no Ceará; que ao chegar a Aurora demorou mais ou menos 4 dias; que um dia desconfiando Lam-pião que a comida estava envenenada resolveu sair incontinenti e ao se retirar com o seu povo foi incendiada a manga onde se achava homiziado e foram ouvidos alguns tiros; que a comida era fornecida pelo vaqueiro da fazenda que igualmente forneceu alguma munição; que daí Lampião seguiu com o seu grupo para

17 Há no local das mortes, 3 pequenas cruzes, à margem da estrada.

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Pernambuco; que ali chegando no município de Vila Bela resol-veu o declarante deixar o grupo, o que fez, à noite, depois de entregar-se às autoridades de Taracatu, entregando, também, as armas e munições que conduzia. E como nada mais disse e nem lhe foi perguntado, deu-se por findo o presente auto que depois de lido e achado conforme vai assinado pela autoridade policial e a rogo do depoente por não saber ler nem escrever o cidadão Jerônimo de Aquino. Eu, Manoel Jácome de Lima18, escrivão que o escrevi.

João Fernandes dos Santos Jerônimo de Aquino Segue-se um exame de idade em Casca Grossa19 dizendo

os peritos – farmacêutico João Belém Carneiro e Trajano Men-des Muniz20, ter ele de 19 a 21 anos de idade.

* * *

18 Professor do Grupo Escolar Almino Afonso, de Martins. Inspetor de ensino estadual. Nome bastante relacionado no Rio Grande do Norte, conhecido, em toda a Zona Oeste, pela alcunha de Professor Dudas. 19 “Casca Grossa” era preto, estatura baixa, cabelos encarapinhados, olhos pretos (reza assim o exame de idade 20 Fiscal do Imposto do Consumo, muito conhecido nos municípios da Ribei-ra do Apodi.

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O auto de perguntas a Francisco Ramos de Almeida, vulgo Mormaço, foi feito aqui a 15 de setembro de 1927, às 12 horas, pelo delegado de polícia Tenente Joaquim Teixeira de Moura, ocupa 26 folhas de almaço, foi assinado a rogo do bandido pelo Dr. Jocelin Vilar de Melo,21 sendo escrivão Antônio Inocêncio de Oliveira.

OBS.: Silvério, na pronuncia, se esqueceu do primeiro

crime cometido pelo grupo ao entrar neste município; o roubo na casa de João Frutuoso, na Ponta da Serra.

21 Dr. Jocelin Villar, funcionário publico federal. Prestou decisivo concurso no combate aos cangaceiros. Com sua colaboração foi organizado o “ITINE-RÁRIO” da passagem de Lampião pelo Rio Grande do Norte. O serviço de cartografia é de autoria do engenheiro Francisco Monte. Entrevista do Dr. Jocelin, à fls. 133-137.

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AUTO DE PERGUNTAS FEITAS A LUIS JOAQUIM DE SIQUEIRA,

VULGO FORMIGA Aos quinze dias do mês de junho de mil novecentos e vinte e

sete, nesta cidade de Mossoró, Estado do Rio Grande do Norte, pelas dez horas, na Delegacia de Polícia, presente o Segundo-Tenente Laurentino Ferreira de Morais, comigo escrivão de seu cargo adiante nomeado, ai foi ouvido Luis Joaquim de Siqueira, vulgo Formiga22, a quem aquela autoridade fez as perguntas se-guintes: Qual o seu nome, idade, estado civil, profissão, naturalida-de, e se sabe ler e escrever. Respondeu chamar-se Luís Joaquim de Siqueira, vulgo Formiga, com trinta e um anos de idade, solteiro, jornaleiro, natural de Afogados de Ingazeiras, no estado de Per-nambuco, residente nesta cidade e sabe ler e escrever. Perguntado mais como ele respondente se encontrou, quando, onde e a que horas, com o grupo de cangaceiros chefiado pelo bandido Virguli-no Ferreira (Lampião)? Respondeu que no dia treze do corrente, cerca de sete horas, saiu desta cidade em companhia de Amadeu Lopes a um passeio na casa de residência deste, no lugar Passagem de Oiticica, deste município, que ao chegar um pouco antes da casa de Lopes, foi aprisionado com o seu referido companheiro por um grupo de cangaceiros, chefiados por Virgulino Ferreira, vulgo

22 Esse indivíduo apelidado de Formiga serviu de portador, conduzindo os bilhetes trocados entre Lampião e o prefeito de Mossoró. Depois, foi preso. Deu depoimento e desapareceu sem deixar notícia.

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Lampião; que pedindo ele respondente a Lampião, para lhe garantir a vida, este respondeu que ninguém lhe ofenderia; que perguntado por Lampião se vinha de Mossoró e que havia respondido, que a cidade estava bem guardada à espera de um grupo de cangaceiros, mas não sabia qual esse grupo era; que perguntado ainda por Lam-pião ele respondente quantos homens, mais ou menos tinha em armas, respondeu que uns duzentos no mínimo; que nessa ocasião Lampião fez um gesto desdenhoso dizendo: “Confere”; que ele Lampião, perguntou ainda “eles brigarão menino?” que ele respon-deu “o intuito é brigar” que nesse momento, Lampião entrou para a casa de Miguel Santino em cujo terreiro se achava, e depois de fazer um bilhete e o Coronel Antônio Gurgel outro, entregou-os a ele respondente para vir trazer ao Coronel Rodolfo Fernandes, com a condição de voltar até duas horas da tarde, cujos bilhetes ele res-pondente sabe que era pedindo a importância de quatrocentos con-tos de réis, ao mesmo Coronel Rodolfo e ameaçando de no caso de não ser enviada a importância até duas horas da tarde, ele Lampião entraria nesta cidade, fazendo toda sorte de depredações. Pergunta-do mais se ele respondente veio a pé ou a cavalo? Respondeu que veio em um cavalo que lhe foi dado por Lampião e que ao chegar nesta cidade entregou os referidos bilhetes ao seu respectivo desti-natário o qual lhe deu ordem para desmontar enquanto arranjava o dinheiro; que horas depois o Coronel Rodolfo despachou a ele res-pondente entregando um bilhete para entregar a Lampião e que ele respondente voltando alcançou Lampião. Já em caminho desta cidade isto às três horas aproximadamente; que ao encontrar-se com Lampião entregou o bilhete que levava, tendo ele Lampião,

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depois de ler o bilhete, dito: “Eu lá faço conta dessa porcaria” e gritou para o seu pessoal “seguimos”; que nessa ocasião um dos homens do grupo, cujo nome não sabe, entregou a ele respondente um rifle, depois de haver tirado as balas deste; que ao encontrar-se com Lampião, o seu companheiro Amadeu já vinha também arma-do com rifle a cavalo, cujo rifle, supõe ele respondente também não continha balas; que ao chegar ao Saco, subúrbio desta cidade, disse Lampião que ele respondente entrasse para uma casa em compa-nhia do senhor Antônio Gurgel e um rapaz que vinha prisioneiro dos bandidos; que depois entraram Lampião deixou um grupo de dez bandidos, mais ou menos guardando a ele respondente e de-mais prisioneiros e os animais em que montavam, amarrados, se-guindo com o resto do grupo em direção a esta cidade, a pé; que poucos momentos depois ele respondente ouviu o tiroteio para o lado desta cidade, o qual durou mais ou menos uma hora; que ces-sando o tiroteio, quase às 18 horas depois, chegou ai Lampião com ares afobados e gritou ao pessoal que vinham com ele: “Vamos, vamos” e depois de montados, seguiram no rumo da fazenda Soli-dão deste município; que ao chegarem à estrada do fio cortaram este e atravessaram a estrada até dar em uma casa que ele respon-dente não sabe de quem é; de cuja casa levaram dois rapazes para ensinar a estrada que ele Lampião queria alcançar novamente; que ao chegarem nesta, cortaram novamente o fio, que neste ponto, ele respondente se dirigiu a Lampião para conseguir na sua volta para esta cidade que ao pedir isto a Lampião este acudiu dizendo o se-guinte: “Vá primeiro falar com Antônio Gurgel que ele tinha um negócio com você”; que tendo ele respondente ido ao senhor Antô-

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nio Gurgel, este disse que queria que ele respondente trouxesse um bilhete a seu irmão Tiburcinho e dissesse a este que em todo caso viesse socorre-lo e conhecer amigos que naqueles dias tinha feito e que Lampião era um homem como qualquer outro e que podia ir sem receio que ele Antônio Gurgel se responsabilizaria por tudo; que ao se apear ele respondente, do cavalo em que ia e que lhe fora dado por Lampião, este quis que viesse no cavalo e que se não o quisesse para si soltasse no campo; que ao chegar no lugar Forno velho encontrou-se com o senhor Idalino Viriato e muitas outras pessoas desta cidade; que perguntado pelas pessoas que ali se a-chavam, de onde vinham e de quem era o cavalo que montava, contou toda sua história, da qual as pessoas presentes se horroriza-ram; que deixou o cavalo no poder do sr. Idalino Viriato, por haver este declarado que o referido cavalo pertencia ao sr. Cícero Secun-dino, residente no lugar Camurim deste município, dirigindo-se em seguida, para esta cidade. Como nada mais respondeu nem lhe perguntado estando presente o sr. Idalino Viriato da Silva, o dele-gado resolveu fazer uma ligeira acareação neste mesmo auto tendo ao mesmo feito as perguntas seguintes: Qual o seu nome, idade, estado civil, profissão, naturalidade, residência e se sabe ler e es-crever? Respondeu chamar-se Idalino Viriato da Silva, com qua-renta e seis anos de idade, casado, marchante, natural deste Estado, residente no Alto da Conceição, desta mesma cidade, e não sabe ler nem escrever. Perguntado mais o que sabe a respeito da passagem do grupo chefiado pelo cangaceiro Lampião e se tem alguma coisa a contestar sobre o que diz Luiz Joaquim de Siqueira, que diz ter deixado em seu poder um cavalo? Respondeu que estando esta

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cidade alarmada com as notícias de aproximação de um grupo de cangaceiros, ele respondente retirou-se com a sua família para o lugar Forno Velho a uma légua distante desta cidade e ficou em casa de Antônio Pajeú, que ali estando, chegou cerca das vinte horas, Luiz Joaquim de Siqueira, conhecido por Formiga, montado em um cavalo cardão, novo, inteiro, ripado, com a “ribeira” do Patu, neste Estado, cujo cavalo ele respondente conheceu pertencer a Cícero Secundino, residente no lugar Camurim e sela de Luis Ferreira, também residente no lugar acima aludido; que indagando de onde vinha ele Formiga, respondeu que vinha da fazenda do Se-nhor Luis Firmino, onde foi posto em liberdade pelo cangaceiro Lampião que o aprisionara às dez horas daquele dia, treze do corren-te; que o referido cavalo entregou ele respondente ao seu respectivo dono, estando a sela em seu poder para entregar a quem de direito. E como nada mais respondeu, nem lhe foi perguntado deu o delegado por findo o auto de perguntas com a careação que depois de lida e achada conforme vai assinada e rubricada pelo mesmo delegado, assinado pelo respondente Luís Joaquim de Siqueira, assinado a rogo do respondente Idalino Viriato da Silva o cidadão José Faustino Filgueira23, comigo Euclides Carneiro que o escrevi e assino.

Laurentino Ferreira de Morais Luis Joaquim da Siqueira José Faustino Filgueira

23 José Faustino, homem taciturno. Andava pisando em algodão. Muito co-nhecido e respeitado pela arraia miúda. Era o carcereiro. Quando em Mosso-ró se dizia que alguém estava no hotel do Zé Faustino já se saia que o pobre diabo se encontrava na mucura.

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AUTO DE PERGUNTAS FEITAS AO BANDOLEIRO FRANCISCO RAMOS

DE ALMEIDA, VULGO MORMAÇO Aos treze dias do mês de dezembro do ano de mil nove-

centos e vinte e sete, nesta cidade de Mossoró24, Estado do Rio Grande do Norte, pelas quatorze horas, na Delegacia de Polícia, presentes o Segundo-Tenente Laurentino Ferreira de Morais, delegado de polícia deste município, comigo escrivão do seu cargo abaixo nomeado aí foi ouvido o indivíduo Francisco Ra-mos de Almeida, vulgo Mormaço, de dezenove anos de idade, solteiro, natural do município de Araripe, lugar Baixio dos Ra-mos, do Estado do Ceará, não sabendo ler nem escrever. Inter-rogado se tomou parte no ataque feito a esta cidade no dia 13 de junho p.p. pelo bando chefiado por Virgulino Ferreira, vulgo Lampião? Respondeu que na noite de 12 de junho do corrente ano o grupo capitaneado por Lampião, cerca de vinte duas ho-ras, assaltou a povoação de S. Sebastião deste município e que incendiaram um automóvel, quebrando as portas de duas ou três bodegas e tirando as bebidas que existiam nas mesmas, mar-chando depois em direção a esta cidade, pernoitando em um lugar cujo nome ignora, há alguns quilômetros daquela povoa-

24 As cópias destes documentos, em Mossoró, foram dirigidas pelo Professor Manuel Leonardo Nogueira. O dr. José Vieira, juiz de Direito da Comarca, e o escrivão do Primeiro Cartório, Bel. Hemetério Fernandes muito concorre-ram para facilidade do serviço. Datilografia de Severino Medeiros.

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ção; disse que no dia treze, às cinco horas, o grupo levantou acampamento em direção a esta cidade e de passagem iam os cangaceiros roubando todas as casas que encontravam, prenden-do dois cidadãos para serem resgatados imediatamente por certa importância, sabe que um obteve sua liberdade pela importância de quinhentos mil réis e que o outro, ele depoente nada sabe; que dessa cidade, mandou Lampião um bilhete exigindo ao Cel. Rodolfo Fernandes a importância de 400 contos de réis e que obtendo resposta negativa, resolveu atacar a cidade. Disse mais que o portador do bilhete foi o indivíduo Formiga, que desta cidade se dirigiu ao encontro do grupo, dando informação sobre a situação e fortificações da mesma e que, diante da negativa do prefeito, Lampião marchou para esta cidade aproximando-se cerca de dezesseis horas fazendo fogo dividindo o grupo em duas colunas, uma chefiada por Lampião, e outra por Sabino; a primeira chefiada por Lampião atacou a Estrada de Ferro e a segunda, chefiada por Sabino, a casa do Cel. Rodolfo Fernan-des; que encontrando resistência nos dois redutos resolveram retirar-se depois; que Lampião foi avisado de que já havia caído morto o bandido Colchete e ferido gravemente Jararaca, ambos da segunda coluna; procurando os animais depois de montados seguiram na direção de Limoeiro, acampando cerca de três lé-guas distanciadas daqui, roubando Manuel Freire e Childerico Fernandes em avultada quantia e depois entraram no Estado do Ceará, nada mais roubaram até a cidade de Limoeiro, aonde chegaram no outro dia cerca de dezesseis horas, sendo recebido amigavelmente. Disse mais que o grupo se compunha de sessen-

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ta e cinco quando penetrou no Rio Grande do Norte, mas ao aproximar-se desta cidade o grupo compunha-se de sessenta e quatro, pois havia morrido o cangaceiro chamado Azulão25 no encontro com as forças do Tenente Napoleão nas proximidades de Vitória, deste Estado. .......................................................................................................

E como nada mais disse nem lhe foi perguntado, deu-se por findo o presente inquérito que lido e achado conforme con-fessou, vai assinado e rubricado pelo delegado e assinado por ele respondente por não saber escrever Francisco Leite de Carva-lho26, comigo, escrivão Giusepe Leite de Albuquerque, que o escrevi.

Laurentino Ferreira de Morais Francisco Leite de Carvalho

25 O nome do bandido era Patrício. Azulão, um título de guerra. 26 Francisco Leite de Carvalho, ao tempo, professor do Grupo Escolar 30 de Setembro, em Mossoró. Depois, Juiz de Direito de Touros. Assassinado em Natal.

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O BANDIDO BRONZEADO

O que nos disse o comparsa do bando sinistro que atacou Apodi

Segunda-feira, aqui chegou, procedente de Apodi, escolta-do pela polícia, o bandido Manuel Ferreira, vulgo Bronzeado, comparsa do grupo sinistro, que, em 10 de maio do corrente ano, assaltou a cidade de Apodi, roubando, matando e incendiando.

A curiosidade e o interesse de jornalistas levaram-nos à presença de Bronzeado, que nos revelou sensacionais declara-ções.

Sem aborrecimento o facínora nos disse o seguinte: É natural de Lavras, Ceará, onde residia, tem 27 anos de

idade, é solteiro e vivia da agricultura. Estava naquele lugar, em dias de abril deste ano, quando

recebeu convite de vir ao Rio Grande do Norte por intermédio do indivíduo Júlio Porto.

......................................................................................... Atacaram Apodi, às 3 horas da madrugada do dia 10 de

maio, prendendo os soldados, soltando os presos, levando 4 fu-zis e munição. Arrombaram a casa do sr. Francisco Pinto, onde furtaram jóias e dinheiro.

Roubaram o negócio do sr. Luiz Leite e incendiaram a ca-sa da viúva Jázimo.

Não sabe, porém, dizer por que Massilon não matou o sr. Francisco Pinto, nem surrou o sr. Luiz Leite.

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Sabe que o seu companheiro Cajazeira matou Rodrigues, roubando-lhe.

Depois do saque – Abandonaram o Apodi, às 10 horas do dia, rumando a Patu, onde o indivíduo Lúcio Brilhante, que fazia parte do grupo, disse que iria matar e roubar.

No riacho Umari, já à tarde, começou a chover e tendo-se demorado, para endireitar sua carona, Bronzeado perdeu de vista os seus companheiros.

O bandido perdeu-se – E depois de muito andar, já à noite, encontrou um homem que lhe ensinou erradamente o caminho de Icó.

Ia subindo uma serra quando foi preso. Um exemplo de energia que deve ser imitado – Perdura,

ainda, no espírito público, a profunda impressão produzida pelo inominável assalto feito a importante cidade de Mossoró, Rio Grande do Norte, pelo funesto bando de malfeitores, chefiados pelo temível bandoleiro Lampião.

Em carta dirigida ao prefeito daquela cidade, o bando exi-gira a avultada quantia de 400 contos, sob pena de assalta-la, para assassinar e saquear.

A essa audaciosa embaixada, o Coronel Rodolfo Fernan-des, prefeito da cidade, respondera em termos incisivos e enér-gicos que o tornaram cada vez mais respeitado e mais querido pelos seus munícipes.

Os bandidos, em represália, atacaram a cidade, encontran-do uma bem organizada defesa, feito com respeitável elemento

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do comércio e do povo em geral, sob a orientação e bravura do digno governador da cidade, Coronel Rodolfo Fernandes.

Estampando hoje o retrato do sr. Coronel Rodolfo Fernan-des, nada mais fazemos do que render uma merecida homena-gem à sua invejável bravura cívica que servirá de exemplo a muitos chefes políticos de várias cidades do Nordeste coniventes por covardia ou por motivos ainda mais criminosos com o bando funesto que infelicita nossos sertões.27

27 “Correio do Povo”, Mossoró, 31.07.1927. Ano II, nº 58. Transcrição de “O Jornal de Alagoas”, Maceió, 21.07.1927.

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ALGUMAS IMAGENS DO CANGAÇO

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Bilhete de Lampeão ao prefeito de Mossoró Rodolfo Fernandes, em 1927.

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Virgolino Ferreira, o Lampeão.

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Sabino.

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Grupo de Lampião em Limoeiro, juntamente com os reféns. Foto de Chico Rodrigues – Acervo Raibrito.

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Grupo de Lampião em Limoeiro do Norte, devidamente a cavalo. Foto de Chico Rodrigues – Acervo Raibrito.

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Referências Bibliográficas:

Nas Garras de Lampeão – Diário. Raimundo Soares de Brito. Lampião em Mossoró. Raimundo Nonato da Silva.

Acervo da Coleção Mossoroense.