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7 Matando o tempo: o impasse e a espera por Fábio de Souza Andrade Nascer numa Sexta-Feira Santa, em 13 de abril de 1906, e mor- rer às vésperas do Natal de 1989 trouxe à biografia de Samuel Beckett uma simetria irônica, aproximação entre fato e fábula. Memórias voluntariamente embaralhadas ao ficcional estão na base da prosa que o fizeram um dos nomes centrais do moder- nismo europeu. Imagens como as sugeridas pelos relatos acer- ca do seu nascimento,invertendo parodicamente a estrutura do percurso mítico cristão, são obsessivamente recorrentes em sua obra. Seu fascínio pelo equilíbrio instável da formulação agos- tiniana dos destinos simétricos e opostos dos dois ladrões, o bom e o mau, crucificados ao lado do Cristo (“não se desespe- re, um dos ladrões salvou-se; não se anime, o outro perdeu- se”), aponta outra constante de seu modo de apreender o mundo: o filtro dos paradoxos e dos impasses. Como a nitidez das lembranças do sofrimento no útero materno, que o autor de Godot alegava preservar, a data do nascimento vira fumaça intrigante, aparentemente contrariada pela certidão registrada

Matando o Tempo. Fim de Partida

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Matando o tempo: o impasse e a espera

por Fábio de Souza Andrade

Nascer numa Sexta-Feira Santa, em 13 de abril de 1906, e mor-rer às vésperas do Natal de 1989 trouxe à biografia de SamuelBeckett uma simetria irônica, aproximação entre fato e fábula.Memórias voluntariamente embaralhadas ao ficcional estão nabase da prosa que o fizeram um dos nomes centrais do moder-nismo europeu. Imagens como as sugeridas pelos relatos acer-ca do seu nascimento, invertendo parodicamente a estrutura dopercurso mítico cristão, são obsessivamente recorrentes em suaobra. Seu fascínio pelo equilíbrio instável da formulação agos-tiniana dos destinos simétricos e opostos dos dois ladrões, obom e o mau, crucificados ao lado do Cristo (“não se desespe-re, um dos ladrões salvou-se; não se anime, o outro perdeu-se”), aponta outra constante de seu modo de apreender omundo: o filtro dos paradoxos e dos impasses. Como a nitidezdas lembranças do sofrimento no útero materno, que o autorde Godot alegava preservar, a data do nascimento vira fumaçaintrigante, aparentemente contrariada pela certidão registrada

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no cartório do subúrbio abastado ao sul de Dublin, Foxrock,que aponta como 13 de maio o dia certo em que o filho deMay Roe Beckett e William Beckett veio à luz.

Vindo de famílias bem postas, de protestantes irlandeses,identificadas com a elite local (o pai, empreiteiro bem sucedido,sociável e amante dos esportes; a mãe, enfermeira, de linhagemdecaída de proprietários de terra, severa e inclinada ao autorita-rismo), Samuel e seu irmão mais velho, Frank, dividiram otempo entre o estudo nos melhores colégios, levando ao TrinityCollege, e a vida ativa: Samuel era excelente remador, jogavarugby e integrou categorias inferiores da seleção irlandesa de crí-quete. Nos anos de formação, revelou-se um scholar promissor,com fôlego de erudito precoce, particularmente dedicado às lín-guas e literaturas românicas. Estudioso de Dante, tomou-lheemprestado a personagem de Belacqua para servir como seualter ego nos escritos iniciais, de forte cunho biográfico e am-bientados no meio boêmio, artístico-universitário de Dublin.1

Beckett foi também leitor da produção francesa contemporânea(Proust, Gide,Valéry, Larbaud, Francis Jammes), apresentada porum professor que o elegera como provável sucessor em Trinity,Rudmose-Brown. O saldo maior deste período veio nos anosseguintes à graduação, quando mudou-se para Paris, num pro-grama de intercâmbio com a École Normale Supérieure, assu-mindo um leitorado de inglês entre 1928 e 1930.A amizade comAlfred Péron e Thomas MacGreevy, ambos ex-membros doprograma, a aproximação do círculo criativo que orbitava aoredor de James Joyce, foram decisivos em sua vida.

1 Dream of fair to middling women, espécie de retrato do artista quandojovem, renegado e publicado apenas postumamente, e More Pricks thanKicks, livro de contos extraído do primeiro que saiu apenas em 1933.

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Depois de um período de provação pessoal, quando, devolta à Irlanda, deu aulas a contragosto em Trinity, Beckettabandonou a carreira acadêmica: dizia não querer ensinar aosoutros o que não sabia ele próprio.Autor de um poema pre-miado em Paris, o erudito e irônico Whoroscope, meditaçãosobre o tempo que trazia como personagem central o filósofoDescartes na corte da Rainha Cristina, de uma preciosa mono-grafia sobre Proust (a publicação de Em busca do tempo perdidoera muito recente), de um ensaio sobre o projeto em anda-mento do Finnegans Wake, Beckett viveu uma fase de incertezae conflitos familiares extremamente penosos, culminando natroca de Dublin por Londres, onde viveu entre 1933 e 1935,traduziu Rimbaud (“Le Bateau Ivre”) e escreveu seu romancemais joyceano e colorido, Murphy, submetendo-se paralela-mente a sessões analíticas com Bion.

Fixando-se definitivamente em Paris a partir de 1937,confirmando esta escolha ao ser apanhado pela eclosão daguerra em visita à Irlanda (“prefiro Paris em guerra à Irlandaem paz”), Beckett engajou-se na Resistência, escapando porpouco da Gestapo e vendo-se obrigado a se refugiar com amulher Suzanne, no sul da França, em Roussillon. Lá, Beckettescreve Watt, romance em que o protagonista serve ao enigmá-tico Sr. Knott. Colocando em xeque o poder de investigaçãoda linguagem, a estratégia narrativa do livro lembra a de umtelefone sem fio: afasia, confusão de blocos lógicos, registrostestemunhais lacunares compõem o quadro confuso da biogra-fia de Watt segundo um certo Sam, homônimo do autor.

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Confinado no quarto, a multiplicação dos textos: 1946-1953

Com a libertação de Paris, Beckett retorna à cidade e viveentre 1946 e 1953 uma grande explosão criativa. Neste interva-lo, escreveu duas peças (Eleuthéria, publicada postumamente, eEsperando Godot), os primeiros contos em francês, a trilogia fic-cional composta por Molloy, Malone morre e O inominável, alémda novela Mercier et Camier. Sobre estes livros construiu-se omito beckettiano: eles valeram-lhe o Nobel e a “condenação àfama”, na expressão de seu biógrafo, James Knowlson. Duasmudanças decisivas deram-se então: a primeira diz respeito asua escolha declarada da impotência, da miséria e da solidãohumanas como sua matéria artística. Hugh Kenner, um de seusprimeiros e melhores críticos, vale-se da imagem de dois cami-nhos estéticos opostos para explicá-la: há a família dos acroba-tas, empenhados em fazer mais e melhor que seus antecessores,colocar a corda bamba, sem rede, cada vez mais alto; mas hátambém a linhagem dos clowns, que trazem a corda bambajunto ao chão e se ocupam de exibir os limites humanos, pro-jetando luz sobre a falha e o fracasso.

Apesar do brilho virtuosístico da prosa alusiva deMurphy, repleta de paródias e jogos verbais, encenação daopulência de recursos expressivos na esteira joyceana, no pós-guerra, Beckett descobriu-se o mais autêntico representanteda segunda espécie de criador, encaminhando-se progressiva-mente para um estilo do menos, analítico, econômico sintá-tica e semanticamente, descrito com exatidão por uma divi-sa que ele próprio formulou, nos Três diálogos com Duthuit(1949): “a expressão de que não há nada a expressar, nadacom que expressar, nada a partir do que expressar, nenhuma

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possibilidade de expressar, nenhum desejo de expressar, alia-do à obrigação de expressar.”

Esta virada estilística, colocando o reverso das potencia-lidades humanas em foco, não implicou em abandonar o olharirônico e cheio de humor, não fosse Beckett negar as raízesirlandesas.A atmosfera peculiar do universo beckettiano, des-crita pela crítica como de comitragédia, funciona às avessasdaquela que caracteriza tragicomédia: no lugar de um climasoturno que se encaminha para uma resolução final em festa ecasamento, instaura-se em seu mundo uma capacidade de rirem meio à privação e ao sofrimento, mesmo sem a perspectivade remissão no horizonte sombrio. Foi esta âncora firme deum universo temático persistente (“meu assunto é o fracasso”)que permitiu a Beckett o trânsito livre entre os gêneros.

O segundo fato relevante dos anos do pós-guerra nopercurso beckettiano foi a adoção do francês como língua decriação. O abandono temporário da língua materna já foi jus-tificado de diversas maneiras; a mais consistente delas parece terrelação direta com sua virada estilística – abandonar o inglêspermitiria calar os ecos e cacoetes formais, escrever “sem esti-lo”, simplificar a dicção.Ao contrário de outros casos célebresde bilingüismo na literatura moderna (Conrad ou Nabokov,por exemplo), o exílio lingüístico beckettiano é voluntário ereversível: ele próprio traduziu a maior parte de suas obraspara inglês ou francês, conforme concebidas inicialmentenuma das duas línguas, promovendo alterações significativasque, muitas vezes, voltaram a incidir sobre o primeiro original.Assim, além de elaborar dois originais de praticamente cadaum de seus textos, incutiu-lhes um dinamismo que prosseguepara além da publicação.

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Os vagabundos beckettianos, submetidos a crises parale-las do corpo e da máquina pensante, andarilhos forçados trope-çando nos percalços da existência lumpen, incapazes de comu-nicar-se com o restante da humanidade, são contemporâneosda ficção e drama destes anos. Portadores dos despojos da civi-lização burguesa, dos restos do otimismo da razão iluministaconvertidos em bugiganga, passam e repassam sua existênciavazia de significados por um implacável crivo analítico, heran-ça cartesiana. O efeito deste alto poder de abstração consubs-tanciado no mais instintivo e simples é avassalador, cômico einquietante a um só tempo.

Na trilogia em prosa, a escolha de primeira pessoa e acontaminação das personagens pela obsessão narrativa permiteapresentar o processo por dentro.Ao explorar as entranhas doromance em Molloy e Malone morre, Beckett chegou a um im-passe. Dedicar-se à forma dramática como um descanso etomada de fôlego foi o pretexto para a elaboração de Esperan-do Godot que, à maneira daqueles romances, veio para explorarcontradições e fraturas na dramaturgia moderna e revolucioná-la na sua essência. Se o elemento fundamental do teatro é ação,o que se passa se os protagonistas são exemplos acabados daineficácia da ação, optando, forçada ou voluntariamente, peloimobilismo, fazendo o elogio da acídia e da indolência, nãoapenas como mal menor, mas como estratégia de sobrevivên-cia (a única possível)? O reinado da espera infinita, da esperan-ça manca, inconclusiva por natureza e sem objeto definido,acaba por contrariar todas as expectativas do público, obrigan-do-o a redefinir o que entende por drama.

Foi este o impacto dos diálogos de Vladimir e Estragon,Pozzo e Lucky, quando encenados em janeiro de 1953 (Molloy

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e Malone morre, lançados em 1951, foram escritos em 1948,como Godot; já O inominável, publicado no ano da estréia deGodot, foi concebido em 1949). Beckett retomou a prosa na se-quência. Seu livro seguinte, os Textes pour rien, ensaiava darcontinuidade à voz despersonalizada e virtualmente insilenciá-vel que encerra a trilogia, ao cabo da qual nada da narrativarealista tradicional (enredo e personagens consistentes, trata-mento ilusionista de tempo e espaço, verossimilhança e plausi-bilidade, concatenação de motivos e episódios etc) resta em pé.Fragmentos reunidos,“falsos recomeços”, tentativas de “falharmelhor” e resolver a aporia representada n’O inominável, estestextos marcaram o fim dos anos de escrita fluente; a partir deentão, a produção beckettiana, ainda que contínua, teve partomuito mais trabalhoso, caso de Fim de partida, seu lance seguin-te que, mais de uma vez, Beckett destacou como o filho dileto.

Fim de partida: nec tecum, nec sine te

Minha obra é uma questão de sons fundamentais (é sério), tor-nados tão plenos quanto possível, e não aceito a responsabilida-de por mais nada. Se as pessoas têm dor de cabeça com os har-mônicos, que tenham. E providenciem sua própria aspirina.Hamm como afirmado, e Clov como afirmado, juntos como afir-mado, nec tecum, nec sine te, em tal lugar, em tal mundo, é tudoque posso fazer, mais do que poderia.(Beckett em carta a Alan Schneider, de 29/12/1957)

Originalmente concebido em um ato, em 1954, dividido emdois no processo de elaboração, o dueto agonístico entre X.

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(depois Hamm) e F. (ou Factótum, depois Clov) pareceu aoautor uma “girafa de três pernas”. Beckett não tinha certeza,então, se faltava-lhe mais uma perna ou se a solução seria am-putar-lhe outra, para consertar o que lhe parecia um desequilí-brio estrutural.Tendo revisto profundamente o texto ao longode 1955, foi apenas na metade de 1956 que concluiu a peça, no-vamente reduzida a um único ato e com o acréscimo de maisduas personagens (Nagg e Nell).A tradução para o inglês, End-game, veio cerca de um ano depois.

A estréia deu-se em Londres, em francês, sob a direçãode Roger Blin, que fizera de Godot um sucesso, sem que istotivesse garantido recursos para uma encenação parisiense. Arecepção da nova peça foi mais fria, resposta até certo pontoesperada para um texto que Beckett descrevia como “bastantedifícil e elíptico, dependendo fundamentalmente do seu poderde ferir, mais ‘desumano’ que Godot”. Beckett destacava comouma das chaves de Fim de partida a fala de Nell,“Nada é maisengraçado que a infelicidade”, eco reformulado de seu própriojuízo sobre a natureza da convivência de Didi e Gogo com aespera,“Nada é mais trágico que o grotesco”.

As personagens de Fim de partida estão às voltas com atarefa de acabar de existir, virtualmente infinita e de conclu-são impossível. O cenário é um interior cinzento, austero,batizado de abrigo, em que seus quatro habitantes vivemcomo se fossem os últimos sobreviventes de uma humanida-de devastada, últimos resquícios de uma natureza que se esgo-ta.A proximidade enganosa do fim está não apenas na escas-sez de meios – tudo na peça (remédios, provisões, bicicletas)está se acabando – mas também na decrepitude física dos per-sonagens (um cego paralítico, um coxo, dois mutilados) e na

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rotina vazia que custa a preencher o tempo da espera, com-pletamente desprovido de esperança.

O girar em falso do relógio, negação da novidade e damudança, sugere um processo de entropia, uma decadênciairreversível e irremediável, que as personagens, corroídas pelotédio e por um humor ácido derivado da consciência aguda,tentam enganar, apegando-se a rituais e hábitos cuja única fina-lidade é matar o tempo.A própria estrutura dramática da peça,circular, eivada de paralelismos, começando e terminando comsolilóquios, sugere a assimilação do tema à forma. Quando ociclo se cumpre, Hamm deixa entrever que, no dia seguinte, asmesmas velhas perguntas e velhas respostas estarão a torturar edistrair as mesmas personagens. Entusiasmo fingido, relaçõeshumanas ensaiadas, raivas de mentira servem às tentativas, inú-teis, de conferir sentido a um mundo desprovido de significado.

A relação entre o par central, Hamm e Clov, é a deopressor e oprimido, uma dependência recíproca fundada emamor e ódio e em diálogos sadomasoquistas como que encena-dos por um par de canastrões. Em Hamm – personagem que,volta e meia, ameaça a ilusão dramática, aludindo a sua partici-pação num jogo-representação ficcional – há referências, indi-retas e paradoxais, tanto a Hamlet o grande papel do teatroinglês, quanto ao ham actor (em inglês, o canastrão). Seu nomelembra ainda um dos filhos de Noé, sobreviventes solitários apartir do qual a humanidade deveria se recompor. A ligaçãoindissolúvel entre Hamm e Clov ecoa os inseparáveis ham (pre-sunto) e cloves (os cravos que o temperam). Por fim, Nagg, Nelle Clov evocam, em línguas diversas, os “pregos” (Nagel, em ale-mão; nail, em inglês; clou, em francês) que o “martelo” Hamm(hammer, em inglês) insiste em torturar.

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Comparada por muitos a um mito da criação às avessas,com um deus-tirano decaído, que desfaz a luz no cinza onipre-sente, em que as águas voltam a tomar conta de tudo e a vida emsuas manifestações mais baixas, paródicas e elementares (umapulga, um rato, um cachorro de pelúcia de três patas e sem sexo)declina, a especialização de funções no par Hamm e Clov suge-riu a outros uma alegoria da convivência entre o corpo e amente às portas da morte, desentendendo-se e seguindo cami-nhos solitários. Imobilizado em sua cadeira, Hamm habitaria umsimulacro do crânio (o palco quase vazio), convivendo commemórias reprimidas (os pais enlatados ou cobertos), falhas docorpo (autonomizado em um servo claudicante e incapaz de sesentar) e a imprecisão das informações sensoriais. As janelas,nesta leitura, ocupariam o lugar dos olhos, porta para as armadi-lhas dos sentidos, igualmente embotados e enganadores.

Na peça, chama a atenção a retomada constante de cer-tas falas e motivos, que trocam de boca, mas não de sentido(“Vou deixá-lo”;“Não há mais [bicicletas, caramelos, calman-te]”,“Estamos progredindo”). Este paralelismo, retomado na si-metria entre diversas situações – Hamm pede um beijo a Clov,Nagg e Nell tentam se beijar; Nagg amaldiçoa Hamm, Hammprevê um fim triste e solitário para Clov, etc. – não é gratuito.Ao lado das recorrentes pausas introduzidas no texto pelasrubricas, silêncios que convidam o sentido (ou sua ausência) ase espraiar, incutem na estrutura da peça uma coesão quasemusical.A repetição sublinha o que há de comum, mas inco-municável, nas experiências das quatro personagens: o vazio,a solidão, a vontade irrealizável de acabar, espicaçando, no in-tervalo, os companheiros de infortúnio. O gancho dramáticoda peça (a ameaça de partida de Clov) não se resolve, perma-

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necendo em suspenso no quadro final, em que, vestido demaneira desconjuntada, pronto para a chuva e para o sol, Clovimobiliza-se, sem concretizar a sonhada fuga.

A consciência do jogo ficcional, presença marcada nosnarradores-protagonistas da trilogia em prosa do pós-guerra, écentral também em Fim de partida. O tema da encenação, evi-dente, por exemplo, no travestimento da personagem que viriaa ser Clov (depois suprimido), percorrerá a peça em sua formafinal desde a primeira fala de Hamm, acompanhada pelo gestode descobrir o rosto, levantando o lenço, metáfora para a cor-tina na boca de cena:“Minha...(bocejos)...vez. (Pausa) De jo-gar.”2 Beckett comparou a peça a uma partida de xadrez, emque o rei, Hamm, está em permanente ameaça de xeque; oslatões, assemelham-se a torres; Clov é um cavalo, que se movelateralmente, esquivando-se.Tanto em francês como em inglês,há uma referência ambígua ao jogo e à representação (play,jouer) que se perde no português “jogar”.A descrição de seusofrimento como “sublime”, ainda que irônica, vincula Hammaos heróis de tragédia, ligação reforçada pelo seu nome, queparece abreviar Hamlet, e pelas citações truncadas de Ricardoiii (“Meu reino por um lixeiro”, em inglês, nightman, aludindotambém à peça de xadrez, knight, o cavalo) e Próspero (o “Finiela rigolade”,“Fim da folia”, fala de Hamm que anuncia a pro-ximidade de seu solilóquio final, foi vertido em Fim de partidapela fala de A tempestade, “Our revels are ended.”).

2 Quando dirige seu olhar à platéia, Clov derruba a quarta parede ima-ginária que separa atores e público: “A coisa está esquentan-do[...]Vejo...uma multidão...delirando de alegria. (Pausa) Isso que euchamo de lentes de aumento”.

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A busca do fim: pré-história de uma peça

Dos primeiros rascunhos, muito próximos à pantomima, àstentativas de voltar a explorar o artifício da simetria imperfeitanuma peça em dois atos quase idênticos (fórmula eficaz deGodot), conduzindo à opção final pelo ato único, a reconstru-ção do bem documentado processo de composição de Fim departida é bastante reveladora da escrita beckettiana. Pode-setomar como ponto de partida um primitivo diálogo dramáticoentre X. (futuro Hamm) e F. (Factotum, futuro Clov), que so-breviveu em duas versões: um rascunho de seis páginas segui-das de notas, incluídas num caderno pertencente ao acervo doTrinity College, e numa versão mais desenvolvida, de 21 pági-nas, datilografadas em francês que também acabam ex abrupto.Provavelmente, Beckett escrevia o texto tendo em mente doisatores: Roger Blin e Jean Martin, que, na estréia de Godot,haviam encarnado Pozzo e Lucky, respectivamente, e nestetexto a ser escrito repetiriam os papéis de senhor e criado.

Ainda que as personagens centrais já sejam reconhecíveise o cenário já corresponda ao definitivo nas linhas gerais, res-salvando-se a ausência dos latões (a introdução dos pais do pro-tagonista viria apenas mais tarde), a ação é mais localizada geo-gráfica e historicamente, mesmo que o contato efetivo daspersonagens com o exterior seja praticamente nenhum. Asreferências esparsas permitem situar a trama na Picardia, aonorte da França, região particularmente destruída pela Primei-ra Guerra, e novamente castigada na Segunda Guerra. Lá, Bec-kett serviu a Cruz Vermelha irlandesa, em 1945, como motoris-ta e almoxarife de um hospital. Em Fim de partida, só restarãovestígios desta situação precisa.

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Entre os objetos que constituem o reduzido aparato cê-nico desta versão destacam-se um tambor, para chamar o cria-do, uma seringa (inútil, pois a droga está em falta) e uma Bíblia,cuja sobrevivência final assumirá o aspecto de menções veladase mínimas, abarcando um contexto mítico-cristão difuso, parti-cularmente calcado na figura de Noé, no mito do dilúvio e nosrudimentos da Paixão de Cristo.Aqui, X. parece ainda buscar,meio a contragosto e desacreditando de antemão, algum conso-lo numa possível conversão à crença religiosa. A decepção secristaliza em antireligiosidade, tema a ser mais desenvolvido nasversões finais.

A espera vazia pelo fim, os diálogos agudos, sem objetivoclaro, lembram Godot e antecipam o pingue-pongue verbal deFim de partida. F. recusa-se a matar X. porque o ama, como con-fessa, enojado. Os diálogos anunciam as carências psicológicaspersistentes do futuro Hamm, como a lamentada incapacidadepara o afeto ou a tendência pela transfiguração sublimada daprópria biografia por meio do sonho e, mais importante, de his-tórias inventadas, para as quais necessita, desesperadamente, depúblico.A mãe aparece apenas indiretamente, como protagonis-ta das lembranças, possivelmente imaginárias, que X. guarda deum acidente terrível. Nesta fantasia, o acidente resulta em suainvalidez e morte, milagrosamente remediadas pelo narrador,que ordena a F. que a traga a sua presença. Segue-se uma entra-da de F., travestido. Na breve conversa com a “mãe” de araque,X. não consegue produzir a ternura artificialmente perseguidae, desgostoso, pede a F. que leve dali toda aquela “putrefação”.O fim abrupto deste original sinaliza certa indefinição do foco.

Em resumo, esta versão preliminar já apresenta, naexpressão de Ruby Cohn, os fios, mas não a trama, de Fim de

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partida.3 Nela, X. relaciona-se no modelo senhor-escravo comF. e alude ao tema da representação; o espaço físico já é essen-cialmente o final, tomado por um clima de colapso, doença edesastre: o eixo central estava definido.

A próxima estação a caminho de Fim está no desdobra-mento provisório da peça em dois atos, bem caracterizado jános primeiros dos vários originais sob a guarda da Universida-de de Ohio. Como já acontecera em Molloy e Godot, o meca-nismo da repetição com variações mínimas permitiu a Beckettsublinhar dois temas essenciais à peça, contrapontisticamentecombinados, quais sejam, o tema da representação e o motivodo fim. Estabelecido o padrão no modelo experimental emdois atos, foi-lhe possível preservar este pendor para o ordena-mento musical dos temas e voltar à condensação do ato único.

Nas versões em dois atos, já vigora em traços gerais adivisão estrutural da peça em 16 partes, demonstração da lógi-ca rigorosa que orientou a construção do texto, explicitada porBeckett em 1967, quando da montagem da peça no SchillerTheater de Berlim. Nelas, além da pantomima inicial e dolenço cobrindo o rosto do protagonista, aparece pela primeiravez o desdobramento das duas personagens em dois pares: adupla A e B,Aristide e Bonnet, senhor e criado, representandoas mesmas rotinas que serão atribuídas a Hamm e Clov; e M. eP., a mãe e o pai, confinados aos latões de lixo.

Uma série de alusões bíblicas, depois abreviadas, estãoaqui intimamente ligadas às cenas de travestimento de B., tam-bém cortadas na versão final, cortes que trouxeram como con-

3 Cohn, R. – “The play that was rewritten”, in Just Play: Beckett’s Thea-ter (Princeton: Princeton Universtity Press, 1980), pp.173-186.

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seqüência uma ação menos colorida, mais contínua e repetiti-va, aparentemente datando dos tempos do dilúvio. Para contor-nar o tédio de A., B. lê passagens das escrituras, mais especifica-mente longas genealogias, como a de Shem. As listas depatriarcas e procriadores reforçam, pelo contraste, o tema daesterilidade e do esgotamento das formas de vida.A reação deA. é edipiana, ordenando a B. que vá buscar sua mãe paraajudá-lo a gerar. Aturdido, B. procura desfazer a dúvida (nãoseria sua mulher?), o que dá margem a uma tirada misógina,não incomum em Beckett, incomodado com o papel femini-no de perpetuar a vida, entenda-se, prolongar o sofrimentohumano: “Mãe, mulher, irmã, filha, puta, para mim tanto faz.Uma fêmea. Dois peitos e uma vulva.”

B. volta com uma peruca loira, seios falsos, calças com-pridas sob as saias, voz em falsete, apresentando-se com umafala posteriormente atribuída a Nell: “Hora do amor, benzi-nho?”. Segue-se um cômico triângulo amoroso, em que A e Btentam empurrar a falsa mulher de um para outro, com o agra-vante que B é, ele próprio, o objeto da disputa, travestido. Asombra de uma indesejável e comicamente improvável gravi-dez paira sobre a cena.

Aliás, é também uma cena de disfarce a responsável poruma das diferenças mais marcantes entre as versões em doisatos e a da estréia. Nesta última, após o monólogo final deHamm, Clov permanece em cena, mudo, pronto para umapartida que não se sabe se acontecerá, encerrando-se a peça emsuspenso; naquelas, ao se dar conta de que B. aparentementepartiu,A. é surpreendido por sua reaparição, desta vez caracte-rizado como menino. Assumindo uma voz infantil, B. diz-sechamar Edward, de idade e origem desconhecidas.A. pergun-

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ta-lhe se, ao chegar, cruzou com alguém, vivo ou morto, nacozinha. O menino diz que não. Levando as mãos ao rosto,A.oferece-lhe o quê comer, sugerindo que, tomando Edwardcomo agregado, um novo ciclo se inicia.

Ao longo da substituição de versões, Beckett opta pelasupressão de tudo que, além de indevidamente direto, é exces-sivo, em busca de um texto mais enxuto, ordenado por padrõesseveros, quase geométricos.Assim, aos cinco risos de Hamm naabertura, correspondem cinco bocejos de Clov; se Hamm tema cadeira de rodas, Clov tem a escada; enquanto Hamm seesconde atrás de óculos escuros, Clov espicha sua vista atravésda luneta.Ao apito que Hamm emprega para chamá-lo, Clovresponde com seu despertador. Na mesma direção, episódiosconcentram-se em alusões simbólicas ou imagens sutis e ovocabulário vai-se restringindo, recorrendo às mesmas poucase incisivas palavras.

Beckett desfez-se das cenas de travesti, de um cômicoescrachado e, guiado por um noção de equilíbrio aguçada, eli-minou também aquelas em que a crueldade física entre as per-sonagens era mais violenta. No lugar do burlesco, do slapstick,introduziu brincadeiras verbais, anedotas como a do alfaiateincapaz de terminar as calças ou a boutade sobre a audição evisão declinantes. A confusão de vaudeville em torno docachorro de pelúcia ou do par escada-luneta são resíduos.

Os poucos acréscimos que fez foram para reforçar estepadrão monocórdio, característico da vida no abrigo, seja napostura física das personagens no palco, coreografada coincidirem momentos cênicos análogos, seja na inserção de imagensque concretizam a experiência da simultânea proximidade edificuldade do fim em se cumprir (por exemplo, os grãos e as

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pilhas, as menções dos fenômenos e provisões que se esgotam,a consciência da representação). Esta, de fato, é a experiênciafundamental, que faz com que todo texto beckettiano reatecom o fio solto abandonado pelos anteriores, em dois aspectoscentrais à peça: as relações humanas destruídas e a importânciada narração autoconsciente na organização do seu mundo.

Girando em falso: diálogos, duração e agonia verbal

Como os pontos altos da produção beckettiana nos pós-guer-ra, Fim de partida volta-se para a esterilidade da passagem dotempo e para a impossibilidade visível de ainda tentar significarem um mundo esvaziado de sentido, através de palavras desgas-tadas e insignificantes. Na peça, como nos romances da trilogia,este processo é acompanhado a partir do ponto de vista deuma subjetividade declinante.A impossibilidade de progresso emudança, salvo sob a forma cada vez mais remota e adiada docessar da vida, faz com que a imagem tripartite da sucessão degerações (Nagg, Hamm, Clov) apareça como caricatura sotur-na dos três rostos de Tiziano: a maturidade equivalendo àputrefação, sem a contraparte de uma juventude viçosa. Nasprofecias sombrias de Hamm e Nagg, cada geração lega àseguinte sua cota de miséria e sofrimento.

Se o motor dramático é o diálogo e as personagens ape-nas logram a se constituir na contraposição de vontades, no con-fronto e interpelação ininterruptos com outras personagens, aocontrário dos contatos ocasionais de Molloy, por exemplo, mal-sucedidos e esparsos, narrados sempre a partir dos traços apaga-dos que nele deixam, fugidios e parcialíssimos, Fim de partida

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confina as personagens em um mesmo espaço fechado – abrigo,refúgio, lar e inferno –, condena-as à convivência forçada, a umarotina que se tece por tediosa troca de palavras e insultos.

Na peça, a stichomythia, relação de complementaridadeentre falas visceralmente interligadas, que compõem as dispu-tas verbais entre Hamm e Clov, espacializa-se na gravitação docriado ao redor do centro imóvel, regulador, representado pelacadeira de rodas do senhor caprichoso.A alternância de papéis,em que à crueldade satisfeita e à aspereza das réplicas e trépli-cas não corresponde nenhuma falsa positividade (ao contrárioda relação hegeliana clássica entre opressor e oprimido, da qualrestam ainda vestígios no par Pozzo e Lucky), manifesta-se nainstabilidade da posição de vantagem que cada um logra obter,temporária e precariamente, às custas de estocadas verbais.

Infligir dor e humilhação pode, aparentemente, colocaro mundo em movimento, incitar a reação e armar a revoltadespertando a consciência acuada para uma revolução. Mas acapacidade de reação aparece aqui neutralizada por um confor-mismo e uma desestruturação interior, uma incapacidade deprotesto que se traduzem no aspecto fisicamente mutilado daspersonagens. Não é impossível ver nos cotos de Nagg, ou nacegueira e paralisia de Hamm, estágios posteriores da limitaçãode Clov para se sentar e de sua dificuldade de locomoção.Asprofecias correspondentes atribuídas a Hamm e Clov lembramque o destino de todos é comum e sinistro.

Hamm submete os pais ou os antigos “súditos” (seuspobres, como os chama) a rotinas sádicas em que, imaginaria-mente, confere a um alter ego ficcional a satisfação divinizantede dispor sobre o destino alheio. A premissa de ardilosidadematreira e de permanente conflito – em que, por razões de

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uma pedagogia equívoca, cabe aplicar o corretivo antes da falta(se não foi você, foi seu pai) – manifesta-se nas proibições gra-tuitas, no negar de favores inócuos e a seu alcance, ou ainda emordens que convertem a dificuldade extrema de comunicaçãoem exasperação injustificada contra a relutância dos demais emadivinhar seus desejos instáveis e ilógicos.

Urgência e frenesi definem o ânimo de Hamm, sempreansioso em colocar seu mundo mínimo em movimento, masincapaz de transformá-lo em ação. Hamm, como Moran, oduplo ativo de Molloy, caracteriza-se por uma enganosa pressaem terminar, em tomar providências para que o curso dosacontecimentos se acelere, permanentemente contraditada poruma igualmente forte e paradoxal tendência às delongas e adia-mentos, uma hesitação em efetivamente dar cabo às rotinaspreparatórias. O simulacro de atividade frenética encobre umaconvicção profunda de que o fim da ação é vazio, desprovidode finalidade, frustrante e conhecido de antemão (“o fim estáno começo e no entanto continua-se”).

O diálogo de surdos que aqui se trava não é apenas como mundo e com as suas criaturas. Ele é reflexo, antes de maisnada, da incapacidade de conciliar os fios desencontrados ouemaranhados que compõem a própria consciência individual.Na tentativa de tramá-los a contento, suas personagens recor-rem sobretudo a um expediente: o de contar-se histórias.

Personagem, narrador: resíduos do épico

Em Beckett, as palavras não são mais propulsoras da ação, seustextos dramáticos dissolvem os projetos em palavrório, ordena-

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do e simétrico sim, mas que se reconhece e se mostra inútil,pondo em cena heróis armados de uma razão tortuosa e semfinalidade. No teatro, Hamm encarna de maneira paradigmáti-ca este vínculo entre proferir um discurso, ainda que mecâni-co e inócuo, e continuar existindo, o que, para ele, acaba porsoar como uma maldição.A importância crescente dos quadrosestáticos, imagens congeladas, no teatro beckettiano coincidecom uma injeção de movimento naquilo que habitualmente éassente e estável no reino da ficção, compondo uma trajetóriacruzada na evolução dos dois gêneros em sua obra.

No que diz respeito à narrativa, a obra final caminhouem direção à dramatização, à teatralização dos processos inte-riores da consciência criadora, recuando para o momentoanterior à sua cristalização em imagens, personagens, situaçõesprecisas no tempo e no espaço, interpretáveis simbolicamente.Isto não significa uma psicologização do processo, uma vez queo drama do texto se desenrola não nas hesitações psíquicas deuma consciência, mas no seu embate determinado com asestruturas da linguagem.

Ao mesmo tempo, o teatro foi progressivamente perden-do sua característica maior, a apresentação de destinos emmovimento, corporificados na ação, em nome de uma maioratenção às imagens acabadas, de caráter quase pictórico, qua-dros que pedem contemplação em si, independentes do enca-deamento e sucessão de episódios, descolando-se do processopara constituírem-se enquanto totalidades expressivas em si.Uma narrativa dramatizada, enovelada no moto contínuo daconsciência, põe-se ao lado de um teatro imobilizado que, cadavez mais, abandona o legato dramático em nome do stacatto ex-pressivo de quadros justapostos.

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A árvore à sombra da qual se desenrolam os dois atos deGodot, o cenário de mínimos elementos aliado à máxima res-sonância semântica em Fim de partida estão a meio caminho daspeças tardias, nas quais o domínio técnico dos aparatos e artescênicas é total, o autor-diretor chamando a si o controle detodos os aspectos envolvidos na montagem. Beckett introduziumarcações precisas na peça de 1956, para enfatizar os elemen-tos de pantomima com que ela se abre e encerra e garantir arepetição coreográfica de determinadas atitudes e posturas, tra-duções visuais de significados decisivos.

À fixação de imagens destacadas, suspensas de um con-texto maior dado pelo enredo, conferindo atributos líricos aoteatro final de Beckett, corresponde na ficção tardia (anos 70em diante) o desdobramento da consciência ordenadora danarrativa em instâncias que disputam, dramaticamente, a hege-monia do sujeito, cindido em fissura irônica e autoreflexiva,processo que culmina nos romances que compõem a chamadasegunda trilogia, dos anos 1980 (Company, Mal vu, mal dit e Stir-rings Still). Em Company, por exemplo, uma voz que chega dovazio indefinido, interpela o personagem, referindo-se a elecomo “você”, veiculando memórias que, visivelmente, lhe per-tencem. Em momento algum dá-se a fusão destes pólos nasegurança de um “eu” bem estabelecido, delimitável; a primei-ra pessoa narrativa, desacreditada, é substituída pela terceira,dividida e batizada ironicamente “última” por Beckett.

Dentro deste quadro de importância crescente da narra-tiva no teatro beckettiano, Hamm apresenta-se como um nar-rador consciente de seu assunto – a crise, pessoal e cósmica – edas dificuldades de tratá-lo – servindo-se de uma linguagemque não mais corresponde às coisas ou ao sujeito.Trata-se de

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uma personagem e de um escritor, um escritor-personageminsatisfeito com o que concebe, nunca à altura de resgatar eexpressar seu sofrimento, talvez por isso, enveredando pela iro-nia, pelos constantes comentários sarcásticos sobre a beleza eeficácia do próprio texto4.

Diferentemente do que acontece em Molloy ou Moran,também eles narradores mas voltados para dentro de si mesmosdesde o princípio, desorientados num labirinto interior, a fabu-lação de Hamm parte de uma postura de segurança inicial, damanipulação tranqüila dos eixos da realidade e da ficção. É aospoucos que se abala esta impassibilidade ideal. No princípio,Hamm dá o ritmo da chegada do fim de suas histórias, cuidaem calibrá-las com observações que se assemelham às marca-ções de tempo de um maestro, ora acelerando, ora retardandoos andamentos, servindo-se, conforme o ânimo, disposição enecessidade, de formas breves e longas, comprimindo umaepopéia em anedota, espichando um evento menor em histó-ria alentada5.

A ductilidade do material narrativo que Hamm empre-ga revela-se na variedade das pequenas histórias alegóricas,microparábolas ou anedotas que recriam ordenadamente lem-branças dispersas – como no caso da Mãe Pegg ou na históriado pintor enlouquecido, incapaz de enxergar no mundo nada

4 “Clamaste pela escuridão, a noite escura caiu” – Esteta frustrado,Hamm cita o segundo verso de um soneto de Baudelaire invocando osofrimento (“Sois sage, ô ma Douleur, et tiens-toi plus tranquille. / Turéclamais le Soir; il descend; le voici” – Recueillement).

5 Cf. Morrison, K. – Canters and Chronicles: the use of narrative in the playsof Samuel Beckett and Harold Pinter (Chicago: University of ChicagoPress, 1983), pp 27-42.

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além de destruição – , condensando pontos cruciais da auto-imagem conflitiva do protagonista. Da mesma ordem, são asmemórias dos pais sobre o acidente nas Ardenas, convertidasem historieta embutida nas suas falas; as lembranças de Naggsobre os cuidados que dedicava a Hamm ainda menino; a piadado alfaiate: todas espelham a importância do narrar na defini-ção das identidades na peça.

Com certeza, sua relevância estrutural empalidece fren-te à uma narrativa em particular, concebida por Hamm, que seprolonga por toda a encenação e cujo fim anuncia seu encer-ramento: a história sobre um tirano poderoso que hesita emoferecer ajuda a pobres coitados – um homem implorando porpão para seu filho faminto, às portas da morte.Também nelapode-se perceber resquícios de lembranças autobiográficas.Como Winnie em Happy Days (1961), Hamm também se serveda narrativa e da terceira pessoa para disfarçar as memórias eangústias pessoais.

Em paralelo com o procedimento estético definidor danova categoria mimética que se aplica ao teatro e à narrativabeckettiana (reconstruir, desfamiliarizando, o sem sentido domundo a partir da montagem de fragmentos construídos apa-rentemente segundo princípios clássicos de representação,reproduções do real em sua quase imediaticidade), Hammretoma os motivos centrais à sua existência – o poder e o apo-drecimentos das relações humanas, especialmente as familiares,a incomunicabilidade decorrente de uma linguagem inócua edesgastada – por meio de fragmentos biográficos encobertospor disfarces tênues.

A história que alimenta o dia-a-dia de Hamm, verdadei-ra trama de Penélope, mortalha defeituosa, traz em seu centro

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uma figura de tirano, encarnação acabada do poder, com o qualele se identifica plenamente, confrontada com uma versão fracade pai em apuros. Serve-lhe de anteparo para racionalizar, ino-centar e lamentar sua relação falha com os genitores, com ofilho postiço (Clov), em suma, neste contexto, com o mundo ecom os homens. O esqueleto desta história dispõe as variáveisque integram o sonho de onipotência de Hamm e sua contra-parte, o pesadelo da efetiva e total impotência. Colocada emtermos míticos, sua situação é revestida por simbologia cristã, demaneira a mostrar na personagem do egocêntrico tirano umacaricatura pretensiosa e acabada dos atributos divinos (a onipo-tência, a onipresença, a onisciência, a infinita misericórdia).

Assim, pode-se dizer que as narrativas são para Hammmero passatempo, apenas na medida paradoxal em que a isto seresume o arremedo de vida que lhe é possível: um repassar daspossibilidades caladas, um repisar de mágoas acumuladas e umaprofissão de fé niilista, que caçoa dos que ainda se mostramcapazes de alguma ilusão feliz e tenta levá-los a enxergar adesolação geral à sua volta. Do pintor apavorado, que atravessa-va a exuberância do cenário para dele extrair sua facies hippocra-tica, a caveira por sob a beleza do rosto, a história como deca-dência, Hamm converte-se no melhor discípulo.

Em Malone, também confinado ao leito à espera do fim,encontramos um parente próximo de Hamm. Esteta e escritormal realizado, ele acompanha sua progressão rumo ao silênciocom um plano de obra em estágios sucessivos demarcados porhistórias, que irá manipular – unindo, suprimindo, esticando ealternando – ao sabor do tempo que lhe resta, narrativas tem-peradas pelo tédio, pela insatisfação e, por fim, contaminadaspelas memórias pessoais, das quais pretendia, inutilmente, res-

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guardá-las. Contadores compulsivos de casos, sua fixação pelanarrativa e seu amor pelos restos, de objetos e vivências, cha-mam nossa atenção para o quanto vida e ficção são faces inse-paráveis de uma mesma desgastada moeda no universo becket-tiano, aliás, o nosso.

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Esta tradução é conseqüência de uma convivência pro-longada com o texto beckettiano, em grande parte alimentadanas discussões com Vinícius Torres Freire, co-autor de uma ver-são inicial, a quem devo uma série de soluções felizes na tradu-ção, as observações do crítico arguto e a interlocução constante.