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7 1 F ogo, pensou Cassie. Só o que via à sua volta eram as cores intensas do outono. O amarelo alaranjado do bordo-açucareiro, o vermelho vivo do sassafrás, o car- mim dos arbustos de sumagre. Era como se o mundo todo ardesse com o elemento de Faye. E eu estou presa no meio disso. O enjoo na boca do estômago de Cassie piorava a cada passo que ela dava pela Crowhaven Road. A casa vitoriana amarela no final da rua estava linda co- mo sempre. Os raios de sol formavam um arco-íris, como um prisma que pendia na janela mais alta. Uma menina de cabelos compridos e castanho-claros a chamava da varanda. — Rápido, Cassie! Está atrasada! — Desculpe — disse Cassie, tentando se apressar quan- do o que realmente queria era dar meia-volta e fugir para o outro lado. Teve a súbita e inexplicável convicção de que seus pensamentos íntimos deviam estar transparecendo no rosto. Laurel daria uma olhada nela e saberia tudo o que aconteceu com Adam na noite anterior, e tudo sobre o trato com Faye. Círculo_Secreto_A-Prisioneira.indd 7 Círculo_Secreto_A-Prisioneira.indd 7 19/04/2012 08:50:43 19/04/2012 08:50:43

[cap 1] A Prisioneira

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Primeiro capítulo

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Fogo, pensou Cassie. Só o que via à sua volta eram as

cores intensas do outono. O amarelo alaranjado do

bordo-açucareiro, o vermelho vivo do sassafrás, o car-

mim dos arbustos de sumagre. Era como se o mundo todo

ardesse com o elemento de Faye.

E eu estou presa no meio disso.

O enjoo na boca do estômago de Cassie piorava a cada

passo que ela dava pela Crowhaven Road.

A casa vitoriana amarela no final da rua estava linda co-

mo sempre. Os raios de sol formavam um arco-íris, como

um prisma que pendia na janela mais alta. Uma menina de

cabelos compridos e castanho-claros a chamava da varanda.

— Rápido, Cassie! Está atrasada!

— Desculpe — disse Cassie, tentando se apressar quan-

do o que realmente queria era dar meia-volta e fugir para o

outro lado. Teve a súbita e inexplicável convicção de que seus

pensamentos íntimos deviam estar transparecendo no rosto.

Laurel daria uma olhada nela e saberia tudo o que aconteceu

com Adam na noite anterior, e tudo sobre o trato com Faye.

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Mas Laurel apenas a pegou pelo pulso e a conduziu para

dentro da casa, subindo até o quarto de Diana, que estava

parada na frente do grande armário de nogueira; Melanie

estava sentada na cama. Sean, no banco da janela, inquieto,

esfregando os joelhos com as palmas das mãos.

Adam estava ao seu lado.

Ele levantou a cabeça quando Cassie entrou.

Ela encontrou aqueles olhos cinza-azulados só por um

segundo, e foi o suficiente. Eram da cor do mar no que ele

tinha de mais misterioso, iluminado pelo sol na superfície,

ocultando profundezas incompreensíveis. O restante do ros-

to era o mesmo de sempre: cativante e intrigante, o orgulho

aparecendo nas maçãs do rosto pronunciadas e na boca de-

terminada, mas também havia sensibilidade e humor. Seu

rosto parecia diferente só porque na noite passada Cassie

tinha visto aqueles olhos azuis meia-noite com paixão e sen-

tido aquela boca...

Nem por palavras, olhares ou gestos, disse ela a si mesma

intensamente, olhando o chão, porque não se atrevia a le-

vantar a cabeça de novo. Mas seu coração estava tão acele-

rado que ela esperava ver a frente do suéter palpitando. Ah,

meu Deus, como conseguiria cumprir seu juramento? Era

preciso uma quantidade incrível de energia só para se sentar

ao lado de Melanie e não olhar para ele, para bloquear o

calor carismático de sua presença em sua mente.

É melhor se acostumar com isso, disse Cassie a si mes-

ma. Porque será assim muitas vezes a partir de agora.

— Que bom, estamos todos aqui — disse Diana. Ela se

aproximou e fechou a porta. — Esta é uma reunião fechada

— continuou, virando-se para o grupo. — Os outros não

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foram convidados porque não sei se eles têm os mesmos

interesses que a gente de verdade.

— Você está atenuando — disse Laurel em voz baixa.

— Eles vão ficar chateados se descobrirem — comentou

Sean, os olhos negros disparando entre Adam e Diana.

— Que fiquem — disse Melanie sem emoção alguma.

Seus olhos cinzentos e frios estavam fixos em Sean e ele

corou. — Isto é muito mais importante do que qualquer

ataque que a Faye possa ter. Precisamos descobrir o que

aconteceu com aquela energia maligna... E agora.

— Acho que sei um jeito — informou Diana. De uma

bolsa de veludo branca, ela retirou uma pedra verde delicada

numa corrente de prata.

— Um pêndulo — disse Melanie imediatamente.

— Sim. E isto é peridoto — explicou Diana a Cassie. —

É uma pedra visionária... Não é, Melanie? Em geral usamos

quartzo transparente como pêndulo, mas desta vez acho que

o peridoto é melhor... É mais provável que pegue vestígios

da energia maligna. Vamos levá-lo ao lugar onde ela esca-

pou e ele vai se alinhar com a direção que a energia tomou,

começando a girar.

— Assim esperamos — murmurou Laurel.

— Bem, a teoria é essa — disse Melanie.

Diana olhou para Adam, que estava estranhamente

calado.

— O que você acha?

— Acho que vale a pena tentar. Mas vai exigir muito

poder mental. Temos todos de nos concentrar... Especial-

mente porque não estamos com o Círculo completo. — Sua

voz era calma e equilibrada, e Cassie o admirou por isso. Ela

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manteve o rosto voltado para Diana, mas na realidade seus

olhos estavam fixos no armário de nogueira.

Diana se virou para Cassie.

— E você?

— Eu? — disse Cassie, assustada, despregando os olhos

da porta do armário. Não esperava ouvir pergunta alguma;

não entendia nada de pêndulos ou peridoto. Para seu pavor,

ela sentiu seu rosto corar.

— Sim, você. Pode ser inexperiente nos métodos que usa-

mos, mas em grande parte do tempo você deve sentir as coisas.

— Ah. Bem... — Cassie analisou seus sentimentos, ten-

tando ver além da culpa e do terror que a dominavam. — Eu

acho... que é uma boa ideia — disse ela por fim, sabendo o

quanto parecia desajeitada. — Por mim, tudo bem.

Melanie revirou os olhos, mas Diana assentiu com serie-

dade, como fizera com Adam.

— Muito bem então, só o que podemos fazer é tentar

— disse ela, baixando o peridoto e sua corrente de prata

na palma da mão esquerda e fechando-a com firmeza. —

Vamos.

Cassie não conseguia respirar; ainda vacilava com o im-

pacto dos olhos verde-claros de Diana, ligeiramente mais

escuros do que a pedra, mas com a mesma transparência

delicada, como se tivessem uma luz brilhando por trás.

Não posso fazer isso, pensou ela. Ficou surpresa ao ver

como tudo era simples agora que ela olhava nos olhos de

Diana. Não posso fazer isso. Terei de contar a Faye... Não, vou

contar a Diana. É isso. Vou contar a Diana eu mesma, antes

que Faye o faça, e vou conseguir que ela acredite em mim. Ela

vai entender; Diana é tão boa, ela vai ter de entender.

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Todos se levantaram. Cassie também se ergueu, viran-

do-se para a porta numa tentativa de esconder a agitação

— Devo contar a ela agora mesmo? Pedir que f ique aqui um

minuto? —, quando a porta se abriu na sua cara.

Faye estava parada na soleira.

Suzan e Deborah encontravam-se atrás dela. A loura

arruivada parecia cruel, e a cara fechada habitual da moto-

queira estava ainda mais sombria do que de costume. Atrás

delas estavam os irmãos Henderson; Chris franzindo as so-

brancelhas e Doug sorrindo de um jeito selvagem que era

perturbador.

— Indo a algum lugar sem a gente? — disse Faye. Ela

falava com Diana, mas seus olhos estavam fixos em Cassie.

— Não mais — murmurou Laurel.

Diana soltou um suspiro profundo.

— Não acho que estejam interessados — disse ela. —

Vamos seguir a energia maligna.

— Não estamos interessados? Quando todos vocês estão tão

ocupados? É claro que só posso falar por mim, mas estou inte-

ressada em qualquer coisa que o Círculo faça. E você, Deborah?

A cara fechada da motoqueira mudou brevemente para

um sorriso de malícia.

— Eu estou — disse ela.

— E você, Suzan?

— Eu estou interessada — concordou Suzan.

— E quanto a você, Chris?

— Eu estou...

— Está bem — disse Diana. Seu rosto estava corado;

Adam se postou a seu lado. — Nós entendemos. É melhor

com um Círculo completo mesmo... Mas onde está o Nick?

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— Não faço ideia — disse Faye friamente. — Ele não

está em casa.

Diana hesitou, depois deu de ombros.

— Vamos fazer o melhor que pudermos com o que te-

mos — disse ela. — Vamos para a garagem.

Ela gesticulou para Melanie e Laurel e elas foram pri-

meiro, passando às cotoveladas pelo grupo de Faye, que pa-

recia querer ficar para discutir mais. Adam se encarregou

de Sean e o pôs porta afora, depois começou a conduzir os

Henderson. Deborah e Suzan olharam para Faye e seguiram

os rapazes.

Cassie ficou para trás, na esperança de uma chance de falar

a sós com Diana. Mas a amiga parecia ter se esquecido dela;

estava ocupada encarando Faye. Por fim, de cabeça erguida,

passou pela menina alta que ainda bloqueava parte da porta.

— Diana... — chamou Faye. Diana não olhou para trás,

mas seus ombros se retesaram; ela estava ouvindo.

— Vai perder todos eles — continuou, dando sua risada

indolente enquanto Diana ia para a escada.

Mordendo o lábio, Cassie avançou furiosamente. Um

bom empurrão em Faye, ela pensava. Mas Faye a contornou

tranquilamente, bloqueando a porta.

— Ah, não, você não. Precisamos conversar — disse ela.

— Não quero conversar com você.

Faye a ignorou.

— Está aqui? — Ela passou rapidamente ao armário de

nogueira e puxou uma maçaneta, mas a gaveta estava tran-

cada. Todas estavam. — Que droga. Mas você pode desco-

brir onde ela guarda a chave. Quero essa chave o mais rápido

possível, entendeu?

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— Faye, você não está me ouvindo! Eu mudei de ideia.

Não vou fazer nada.

Faye, que esteve zanzando pelo quarto como uma pan-

tera, tirando proveito desta oportunidade única de examinar

as coisas de Diana, parou de repente. Então se virou devagar

para Cassie e sorriu.

— Ah, Cassie — disse ela. — Assim você me mata.

— Estou falando sério. Mudei de ideia. — Faye se limi-

tou a sorrir para ela, recostando-se na parede e balançando a

cabeça. Seus olhos dourados de pálpebras pesadas cintilavam

de diversão, a cabeleira preta caindo pelos ombros quando

mexia a cabeça. Ela nunca estivera tão bonita — nem tão

perigosa.

— Cassie, vem cá. — A voz de Faye estava um pouco

mais tensa, de impaciência, como uma professora que fala

com muita tolerância com uma aluna atrasada. — Deixa eu

te mostrar uma coisa — continuou, pegando Cassie pelo

cotovelo e a arrastando para a janela. — Agora olha lá para

baixo. O que você vê?

Cassie parou de lutar e olhou. Viu o Clube, o grupo da

escola de New Salem, os garotos que assombravam — e

aterrorizavam — alunos e professores. Viu que se reuniam

na entrada da garagem de Diana, com as cabeças brilhan-

do sob os primeiros raios do poente; o louro arruivado de

Suzan transformando-se em vermelho, os cachos escuros

de Deborah com um toque de rubi, o cabelo comprido e

castanho-claro de Laurel, o castanho e curto de Melanie e o

louro desgrenhado dos irmãos Henderson, todos destacados

pelo brilho avermelhado do céu.

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E ela viu Adam e Diana, próximos, a cabeça de Diana

apoiada no ombro de Adam. Ele a abraçava de um jeito pro-

tetor, o cabelo escuro como vinho.

A voz de Faye veio de trás de Cassie.

— Se contar a ela, vai matá-la. Vai destruir sua fé, tudo

em que ela mais acredita. E vai tirar dela a única coisa em

que ela confia, de que ela depende. É o que você quer?

— Faye... — Cassie fervilhava.

— E aliás, vai ser banida do clube. Você sabe disso, não

sabe? Como acha que Melanie e Laurel vão se sentir quando

souberem que você andou se agarrando com o namorado de

Diana? As duas nem vão falar com você de novo, nem mesmo

para completar o Círculo. O coven também será destruído.

Os dentes de Cassie estavam trincados. Ela queria bater

em Faye, mas não adiantaria nada. Porque Faye tinha razão.

E Cassie pensou que podia suportar ser rejeitada, ser uma

pária na escola de novo; até pensou que suportaria destruir

o coven. Mas a imagem do rosto de Diana...

Isso mataria Diana. Quando Faye terminasse de contar,

a mataria. A fantasia de Cassie de confessar a Diana e con-

seguir que ela compreendesse desapareceu como uma bolha

de sabão estourando.

— E o que quero é tão razoável — continuava Faye,

quase cantando. — Só quero olhar o crânio um pouquinho.

Sei o que estou fazendo. Você vai pegar para mim, não vai,

Cassie? Não vai? Hoje?

Cassie fechou os olhos. Através das pálpebras fechadas,

a luz era vermelha como fogo.

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