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JONAS, Hans. Técnica, medicina e ética: sobre a prática do princípio responsabilidade. Tradução do grupo Hans Jonas da ANPOF. São Paulo: Paulus, 2013. CAP. 11 - TÉCNICAS PARA ADIAMENTO DA MORTE E DIREITO DE MORRER A primeira reação ao título desta análise deveria ser a surpresa. “O direito de morrer”. Que estranha combinação de palavras! Que estranho que hoje em dia devamos falar do direito de morrer, quando desde sempre todo discurso referente a direitos retroagiria ao mais fundamental de todos os direitos: o direito de viver. Na prática, qualquer outro direito que se pondere, exige, concede ou negue pode ser contemplado como uma extensão deste direito primário, já que todo direito especial afeta algum patrimônio vital, o acesso a alguma necessidade vital, a satisfação de alguma aspiração vital. A vida mesma não existe em função de um direito, mas de uma decisão da natureza: que eu esteja aqui é um puro fato, cuja única faculdade natural é o equipamento com as capacidades inatas de autoconservação. Mas entre as pessoas o fato, uma vez existente, exige a sanção de um direito, porque viver significa fazer exigências ao entorno e depende, portanto, de que este as outorgue. Enquanto o entorno é humano e a concessão que outorga inclui um elemento da vontade, semelhante concessão sumária, como aquela na qual se baseia toda vida comunitária, vem a ser o reconhecimento implícito do direito à vida do indivíduo por parte da coletividade e, naturalmente, o mesmo reconhecimento, por sua vez, em todos os demais. Este é o germe de todo ordenamento jurídico. Qualquer outro direito, seja este igual ou desigualmente repartido, no direito natural ou no positivo, se depreende deste direito originário e de seu reconhecimento mútuo por seus sujeitos. Por isso, na Declaração de Independência norte-americana se menciona, com razão, no primeiro plano, a “vida” entre os “direitos inalienáveis”. E, na verdade, em todo momento (e ainda hoje) a humanidade tem tido bastante trabalho com a descoberta, definição, obtenção, defesa e proteção dos múltiplos direitos nos quais se particulariza o direito à vida. Que extremamente curioso é, pois, que nos encontremos recentemente nos ocupando com a questão de um direito de morrer! Tanto mais curioso na medida em que os direitos se buscam normalmente para o fomento de um bem, e a morte passa por ser um mal ou, no melhor dos casos, algo a que temos que nos submeter. E mais curioso ainda se tivermos em conta que, com a morte, não colocamos para o mundo nenhuma exigência, como caberia se estivesse em jogo a questão de um direito, mas, ao contrário, renunciamos a toda possível pretensão. Como se pode aplicar a isso a ideia de “direito”, na medida em que ela sempre tem que coincidir com uma variedade destes?

Cap. 11 de TME

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JONAS, Hans. Técnica, medicina e ética: sobre a prática do princípio responsabilidade. Tradução do grupo Hans Jonas da ANPOF. São Paulo: Paulus, 2013.

CAP. 11 - TÉCNICAS PARA ADIAMENTO DA MORTE E DIREITO DE MORRER

A primeira reação ao título desta análise deveria ser a surpresa. “O direito de morrer”. Que

estranha combinação de palavras! Que estranho que hoje em dia devamos falar do direito de

morrer, quando desde sempre todo discurso referente a direitos retroagiria ao mais fundamental

de todos os direitos: o direito de viver. Na prática, qualquer outro direito que se pondere, exige,

concede ou negue pode ser contemplado como uma extensão deste direito primário, já que todo

direito especial afeta algum patrimônio vital, o acesso a alguma necessidade vital, a satisfação de

alguma aspiração vital.

A vida mesma não existe em função de um direito, mas de uma decisão da natureza: que

eu esteja aqui é um puro fato, cuja única faculdade natural é o equipamento com as capacidades

inatas de autoconservação. Mas entre as pessoas o fato, uma vez existente, exige a sanção de um

direito, porque viver significa fazer exigências ao entorno e depende, portanto, de que este as

outorgue. Enquanto o entorno é humano e a concessão que outorga inclui um elemento da

vontade, semelhante concessão sumária, como aquela na qual se baseia toda vida comunitária, vem

a ser o reconhecimento implícito do direito à vida do indivíduo por parte da coletividade e,

naturalmente, o mesmo reconhecimento, por sua vez, em todos os demais. Este é o germe de todo

ordenamento jurídico. Qualquer outro direito, seja este igual ou desigualmente repartido, no direito

natural ou no positivo, se depreende deste direito originário e de seu reconhecimento mútuo por

seus sujeitos. Por isso, na Declaração de Independência norte-americana se menciona, com razão,

no primeiro plano, a “vida” entre os “direitos inalienáveis”. E, na verdade, em todo momento (e

ainda hoje) a humanidade tem tido bastante trabalho com a descoberta, definição, obtenção, defesa

e proteção dos múltiplos direitos nos quais se particulariza o direito à vida.

Que extremamente curioso é, pois, que nos encontremos recentemente nos ocupando com

a questão de um direito de morrer! Tanto mais curioso na medida em que os direitos se buscam

normalmente para o fomento de um bem, e a morte passa por ser um mal ou, no melhor dos casos,

algo a que temos que nos submeter. E mais curioso ainda se tivermos em conta que, com a morte,

não colocamos para o mundo nenhuma exigência, como caberia se estivesse em jogo a questão de

um direito, mas, ao contrário, renunciamos a toda possível pretensão. Como se pode aplicar a isso

a ideia de “direito”, na medida em que ela sempre tem que coincidir com uma variedade destes?

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Mas, que ocorre se, por circunstâncias especiais, minha morte ou não morte entrar no

terreno da escolha? E se, à parte um direito de viver, fosse estatuído para mim uma obrigação de

viver? Neste caso, outros (na forma de “sociedade”) poderiam não só ter uma obrigação frente ao

meu direito a viver, mas também um direito a reclamar, contra eu mesmo, minha obrigação de

viver e, por exemplo, impedir-me de morrer antes de que eu tenha que fazê-lo, mesmo que eu

queira. Em poucas palavras, que acontece se a morte de um ser humano entra sob o controle

humano e sua própria voz (se é a do desejo de morrer) não seja talvez a única que temos que

escutar? Então o “direito de morrer” se converte em um assunto real, digno de exame e discussão.

De fato, sempre o foi para a religião e a moral no caso de suicídio, no qual se vê o elemento da

escolha mais claramente; e em alguns ordenamentos jurídicos também para a lei pública, que aprova

uma intervenção impeditiva nesse que é o mais privado dos atos, quando não, inclusive, a impõe

(e proíbe prestar ajuda a ele), e também pode ir mais longe ainda de forma a converter o suicídio

em delito penal. Esta seria a negação mais clara de um direito apelável. Mas o “direito a morrer”

que hoje agita os ânimos não tem a ver com o suicídio, o ato de um sujeito ativo, mas com a

situação do paciente mortalmente enfermo, exposto passivamente às técnicas da medicina moderna

de retardamento da morte. Embora certos aspectos da ética do suicídio também penetrem nessa

questão, a existência de enfermidade mortal como causa de morte propriamente dita nos permite

fazer uma distinção entre não resistir à morte e matar-se, da mesma forma que entre deixar morrer

e causar a morte.

O novo problema é este: a moderna tecnologia médica, mesmo que não possa curar, aliviar

ou comprar um prazo adicional de vida que valha a pena, por mais curto que seja, pode retardar de

múltiplas maneiras o final mais além do ponto no qual a vida assim prolongada valha a pena ao

próprio paciente, incluindo mais além do ponto em que ele pode valorá-la. Este designa, por regra

geral (à parte o caso da cirurgia) um estágio terapêutico no qual a linha divisória entre vida e morte

coincide por inteiro com a que há entre prosseguimento e interrupção do tratamento: em outras

palavras, onde o tratamento não faz mais do que manter o organismo em marcha, sem melhorar

de nenhum modo o estado (para não falar de cura). Somente se adia a morte mediante um

prolongamento do estado de padecimento ou de mínimos existente. Este caso do paciente que

sofre sem esperança é só o extremo de um espectro da arte médica que – em união com o poder

institucional do sanatório e apoiado pela lei – cria situações nas quais se torna questionável se os

direitos mesmos do paciente (tipicamente desvalido e, de algum modo, “prisioneiro”) estão sendo

preservados ou lesados, e se, por debaixo deles, haveria um direito a morrer. Ademais, quando o

tratamento se torna idêntico, e de forma permanente, à manutenção do vivo, para o médico e o

hospital se levanta o fantasma da morte por interrupção do tratamento, para o paciente o do

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suicídio ao exigir essa interrupção, para os outros o da culpa em uma ou outra coisa com a

legitimação da compaixão. Deixaremos para mais à frente este aspecto do caso, que sobrecarrega

sua pura resolução ética com coações e temores jurídicos. No que se refere aos direitos do paciente,

com os desenvolvimentos médicos indicados, parece haver saltado à cena um novo “direito de

morrer”; e devido aos novos tipos de tratamento, que unicamente “mantém em marcha”, este

direito subjaze, claramente, ao direito geral de aceitar ou recusar o tratamento. Vamos tratar

primeiro este outro direito, apenas discutido, que, em caso de recusa, sempre inclui, mesmo que na

maioria das vezes não de forma tão direta, a morte como um resultado possível e talvez seguro de

sua escolha. Aqui, como em toda a nossa consideração, temos que distinguir entre direitos legais e

morais (e o mesmo com as obrigações).

O direito a recusar o tratamento

Legalmente, em uma sociedade livre, não há dúvida de que todo mundo (exceto os menores

de idade e os doentes mentais) é inteiramente livre para buscar ou não buscar conselho médico e

tratamento para qualquer enfermidade, e igualmente livre de abandonar um tratamento em todo

momento (exceto no meio de uma fase crítica).1 A única exceção é uma enfermidade que represente

um perigo para outros, como os são as enfermidades contagiosas e certos transtornos mentais:

nesse caso, tratamento e isolamento, incluindo medidas preventivas como a vacinação, podem se

tornar obrigatórias. Sem semelhante implicação direta no interesse público, minha enfermidade ou

saúde é inteiramente assunto privado meu, e adquiro os serviços médicos em contrato livre. Esta

é, creio, a situação legal aqui e em geral em todo Estado não totalitário.

Moralmente, a coisa não é tão clara assim. Posso ter responsabilidade por outros cujo bem-

estar depende do meu, por exemplo, como mantenedor de minha família, como mãe de crianças

pequenas, como titular decisivo de uma tarefa pública; e tais responsabilidades limitam, sem dúvida

não legalmente, mas, sim, moralmente, minha liberdade de recusar a ajuda médica. São, por sua

essência, as mesmas considerações que restringem também moralmente meu direito ao suicídio,

ainda que, neste caso, proibição religiosa alguma já não conta para mim. Em certos tipos de

tratamento, como a máquina de diálise para os casos de falência renal, a recusa equivale ao suicídio

como seu resultado. Contudo, há uma importante diferença em relação a “levantar a mão contra si

mesmo”, ou seja, matar-se violentamente: outros, incluindo os poderes públicos, de fato qualquer

1 Uma “fase crítica” seria, por exemplo, o intervalo entre duas operações planejadamente entrelaçadas ou o tratamento pós-operatório, ou situações similares nas quais só tem sentido médico a sequência terapêutica completa. Nesse caso, tem que ser contemplada como um todo indivisível, contratualmente acordado. O médico e o hospital nem sequer teriam dado o primeiro passo se o paciente não tivesse se vinculado também aos seguintes.

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um, tem o direito (amplamente contemplado, inclusive como uma obrigação) de impedir uma ativa

tentativa de suicídio mediante uma oportuna intervenção, o que nem sequer exclui a violência.

Admite-se que se trata de uma ingerência na liberdade mais privada do sujeito, mas só momentânea

e, a longo prazo, um ato em nome, precisamente, dessa liberdade. Porque não faz mais do que

restabelecer o status quo de um sujeito livre, ao qual se dá a oportunidade de voltar a pensar, de que

ele ou ela possam revisar o que, talvez, tenha sido uma ideia de desespero momentâneo... ou de

persistir nisso. A insistência terminará por lográ-lo, e só terá impedido a eventual precipitação. A

intervenção vinculada ao tempo trata o ato vinculado ao tempo como um acidente, do qual se pode

aceitar que ser salvo, inclusive contra sua vontade, é o próprio desejo duradouro, só temporalmente

posto em dúvida, da vítima (e se mostra às vezes como tal, precisamente por guardar mal o segredo

da sua intenção, o que torna possível a intervenção). O resgatado tem, em suas mãos, que refutar

esta imputação. Não discuto aqui a ética do suicídio como tal, mas só os direitos (e obrigações de

outros em intervir nele). E em nossa presente discussão conta precisamente isto: que a contra-

violência no momento da violência suicida não obriga a pessoa a seguir vivendo, mas só volta a

deixar aberta a questão para ela.

É claramente diferente obrigar a um enfermo doente e sem esperança continuar a

submeter-se a uma terapia de manutenção que lhe provê uma vida que ele não considera digna de

ser vivida. Ninguém tem o direito, muito menos a obrigação, de impor isto a alguém em uma

prolongada negação de sua autodeterminação. Se impõe certa medida de adiamento para proteger

do irrevogável que se apresenta no apressamento. Mas, mais além desse breve retardamento, só o

puxão interno da responsabilidade – “tenho que preservar-me por estes e aqueles” – pode desviar

o sujeito, por sua própria vontade, de fazer o que escolheria fazer somente por si mesmo.2 Mas esta

mesma classe de considerações, temos que acrescentar, pode conduzir também à conclusão oposta:

“O tratamento (que não ajuda em nada) é economicamente ruinoso para minha família, e por eles

o abandono”. Se pudermos afirmar a existência de uma obrigação – mesmo que não coatora – de

seguir vivendo pelos outros, contra o meu próprio desejo, temos que conceder, pelo menos,

também o direito de morrer por eles. Mas não a obrigação! Ambas as direções contrapostas da

responsabilidade não tem o mesmo peso moral, como poderíamos esclarecer se nos

perguntássemos porque se pode defender decentemente alguém que tenha direitos sobre a pessoa:

sem dúvida, só por seu seguir viva, nunca por seu consentimento em morrer. A morte tem que ser

a menos influenciável das opções; a vida pode ter seus defensores, seja a partir do egoísmo, seja do

2 Por razões de fé religiosa, o paciente pode descartar “unicamente por si” a opção da morte, por isto constituir o pecado de suicídio. Eu questionaria que o constitua, porque submeter-se à sentença já ditada pela incurabilidade tampouco é suicídio, como um condenado à morte deixar de pedir adiamentos e indultos. Mas aqui só temos em conta a ética temporal destas questões, e deixamos em aberto seus possíveis aspectos teológicos.

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amor. Mas mesmo a causa da vida não pode ser defendida com demasiada força em uma alegação

desse tipo. Precisamente o amor tem que reconhecer, contra a voz do interesse, que nenhuma

obrigação de viver pode superar em mim o desejo de morrer, de forma a me proibir, que realmente

revogue meu direito de optar pela morte nas circunstâncias aqui assumidas. Sejam quais forem as

pretensões do mundo sobre a pessoa, este direito é (deixando de lado a religião) moral e

juridicamente tão inalienável como o direito de viver; e mesmo que a percepção tanto de um como

do outro direito possa ser sacrificada por escolha própria – e somente por livre escolha – em relação

a outras considerações. O casamento de ambos os direitos contrapostos assegura a ambos que

nenhum deles possa converter-se em obrigação incondicional: nem a de viver, nem a de morrer.

O direito público tem algum lugar nisso tudo? Sim, e isso em dois sentidos que se apoiam:

primeiro, como parte de sua missão de proteger o direito à vida, a lei tem que sancionar também o

direito de receber tratamento médico, enquanto dá basicamente a todos igual acesso a ele; e, em

segundo lugar, tendo em conta a limitação fática dos recursos médicos, tem que elaborar critérios

equitativos de preferência para esse acesso. Esta última função de controle público pode, como se

sabe pelo exemplo da diálise, equivaler à decisão de quem deve viver e quem deve morrer; e entre

as prioridades que regem esta decisão podem estar as responsabilidades e papeis de um indivíduo

frente a outros que dependem dele, que ceteris paribus podem lhes dar um empurrão na ordem de

preferência em relação ao indivíduo sozinho. Igualmente, por conseguinte, o que antes

considerávamos como contrapostos, a partir de dentro, ao desejo e ao direito de uma pessoa em

recusar a ajuda médica, ou seja, a dependência de outros em relação à pessoa aparece agora, a partir

de fora, como um aumento das exigências de tratamento... à custa do direito à vida de uma terceira

parte. Mas o que a autoridade pública pode dar, pode também retirá-lo posteriormente a favor de

uma pretensão melhor, conforme o mesmo principio de equidade ou “justiça distributiva”.

Voltaremos a isso como recurso legal indireto que serve de ajuda ao direito de morrer.3

O exemplo da diálise é extremo. Habitualmente o direito a recusar o tratamento ou ignorar

o conselho médico envolve, não o direito de morrer (salvo em um sentido altamente abstrato e

remoto), mas o direito a correr riscos, a apostar um pouco em um jogo de azar com a saúde, a

confiar na natureza e desconfiar da arte médica, ou simplesmente a disponibilidade a aceitar danos

posteriores ou mesmo uma menor expectativa de vida, em troca da liberdade frente a um regime

de vida limitador; ou tão somente o direito de não ser molestado. O exemplo da diálise foi escolhido

porque nele o tratamento contínuo equivale à manutenção da vida e sua interrupção significa a

3 A ética temporal e a religiosa coincidem aqui. Nenhuma religião, por mais estritamente que proíba o suicídio como pecado por considerar a vida uma obrigação para com Deus, converte com isso a autoconservação em obrigação incondicional, o que de fato levaria a espantosas consequências morais.

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morte certa, e a opção contrária não representa, pois, “correr um risco”, mas uma inequívoca

decisão de morrer, de eficácia imediata.

Ainda assim, não é completamente o tipo de caso no qual o “direito de morrer” se apresenta

como o agonizante problema em que se converteu recentemente. Porque o normal aqui é que o

paciente não sofra menosprezo algum de sua capacidade intelectual para decidir por si mesmo, e

esteja fisicamente capacitado o bastante para agir de modo a desconectar-se da máquina, sem que

ninguém possa obrigá-lo a voltar a conectar-se. Seu direito a morrer não arrasta consigo, pois, a

colaboração de outros, e pode ser exercido por ele mesmo. A mesma coisa vale para outras terapias

de manutenção da vida, como o uso de insulina para os diabéticos. Em tais casos existe tanto a

capacidade de tomar a decisão como a de executá-la, e o direito de morrer não está seriamente

posto em dúvida, nem eficazmente impedido a partir de fora, seja qual for sua ética. Os casos

“agonizantes” são aqueles do paciente mais ou menos “prisioneiro” (por exemplo, no hospital),

em estágio terminal de uma enfermidade mortal, cujo desvalimento físico coloca a outros no papel

de ajudante na realização de sua opção pela morte, inclusive, em casos extremos, no de seu

representante na hora de adotar a opção.

Vamos discutir aqui dois exemplos: o do paciente consciente no estágio terminal de uma

enfermidade como o câncer e o do paciente irrecuperavelmente inconsciente em coma irreversível. O

segundo exemplo tem chegado repetidamente às manchetes dos jornais diários devido ao drama

legal a ele vinculado, e tem ocupado em muito a imaginação pública; mas o primeiro é, por seu

conteúdo mais essencial, mais frequente e mais problemático.

O paciente consciente e incurável no estágio terminal

Imaginemos a seguinte cena: O médico diz, talvez depois de uma primeira ou segunda

operação, “Temos que voltar a operar”. O paciente diz: “Não”; o médico: “Então você morrerá

sem dúvida”; o paciente: “Que assim seja”. Dado que uma operação requer o consentimento do

paciente, isto parece por fim ao caso e não coloca problemas éticos ou legais. Mas a realidade não

é tão simples. A negativa do paciente tem que basear-se, antes de tudo, na mesma condição

capacitadora que seu consentimento: tem que estar bem informado para que seja válida. De fato,

seu consentimento só será bem informado quando aquele que decide conhece, além dos “prós”,

também os “contras”, os aspectos desfavoráveis e arriscados nos quais poderia se basear um “não”.

Portanto, o direito de morrer (quando há de ser exercido pelo próprio sujeito competente e não

por um representante em seu lugar) se torna inseparável de um direito à verdade e fica efetivamente

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anulado pelo engano. Mas tal engano é quase uma parte da prática médica, e não só por motivos

humanos, mas também diretamente terapêuticos.

Pensemos no diálogo anterior ampliado pelas seguintes perguntas do paciente, uma vez

que o médico declarou que é necessária uma nova operação: “Que conseguirei em caso de sucesso?

Quanto mais viverei e que tipo de vida terei? Como paciente permanente ou voltando a ter uma

vida normal? Com dores ou sem elas? Quanto tempo transcorrerá até o próximo ataque da doença,

retornando à situação atual de emergência?”. (Tenham em conta que falamos de um estado

incurável, “terminal” em seu contexto e só variável em seus prazos). Todas essas perguntas podem

referir-se naturalmente somente a expectativas fundamentadas conforme o estágio do conhecimento

médico... nada mais, nada menos.

É óbvio que o paciente tem o direito a uma resposta sincera. Mas é igualmente óbvio que

o médico está em uma situação intrincada quando a sinceridade significa espanto. O paciente quer

realmente a verdade sem maquiagem? Poderá suportá-la? Que fará ao seu estado de ânimo no valioso

restante de seus dias contados, se agora decide-se a favor ou contra um adiamento? Desejaria, em

seu mais profundo íntimo, o piedoso engano? E ainda mais torturante: a terrível verdade não

poderia talvez levar a cabo, por si mesma, a avaliação médica, ao destruir as reservas espirituais, a

famosa “vontade de viver”, com a qual o paciente poderia auxiliar as medidas terapêuticas, de

forma que o seu “me rendo” piore realmente o prognóstico? Ao fim e ao cabo a esperança é uma

força em si mesma, e colocar mais ênfase nela do que em seu contrário não só serve para convencer

da terapia, mas também para a melhora real das expectativas do paciente. Em resumo: não poderia

a verdade ser, de fato, nociva para o paciente e o engano ser-lhe útil em algum sentido, subjetivo

ou objetivo? Dessa maneira, ao meditar sobre o direito de morrer nos encontramos confrontados

com a pergunta, muito mais antiga e bem conhecida: Deve o médico “dizê-la”? A pergunta se

coloca, de fato, já antes da situação, imaginada aqui, das resoluções práticas. Deveria o médico ter

dito ao paciente desde o início que o seu estado é clinicamente incurável e mesmo “final” no

sentido de que, no melhor dos casos, só admite adiamentos?

As respostas rápidas a estas questões demonstrariam insensibilidade ante sua complexidade

e a falta de nitidez em suas zonas escuras. Para minha própria pessoa, arrisco esta tese básica: em

última instância, teríamos que honrar a autonomia do paciente, ou seja, não conduzi-lo mediante

enganos a tomar sua própria decisão informada quando se trata da pergunta última.. a não ser que

queira ser enganado. Averiguar isto é uma parte da arte do verdadeiro médico, que não se aprende

na formação acadêmica. O médico tem que apreciar corretamente a pessoa do paciente, o que requer

um esforço nada desprezível da intuição. Uma vez convencido de que o paciente quer realmente a

verdade – o seu assim dizer-lhe por si só ainda não o demonstra –, o médico está moral e

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contratualmente obrigado a dá-la. O engano consolador, quando se o deseja perceptivelmente, é

limpo; da mesma forma que o engano para dar ânimo com interesse terapêutico direto, que

pressupõe, ao final das contas, uma situação na qual não se trate da suprema escolha. Mas quanto

ao resto, especialmente quando há que se escolher, o direito da pessoa madura à plena revelação

deveria ter – quando é exigido séria e crivelmente – a última palavra in extremis frente à misericórdia

e à toda classe de autoridade tutelar que o médico possa ter em nome do suposto bem de seu

paciente.

Este direito à revelação se estende, além dos requisitos da decisão informada, a uma

situação na qual não há que decidir nada. O que está em questão, então, não é o “direito de

morrer”, uma ocasião do campo prático, mas o direito contemplativo que corresponde à dignidade

humana sobre a própria morte, uma ocasião reservada não ao campo do fazer, mas ao do ser. Isto

requer uma explicação. Mesmo na ausência de opções terapêuticas que possam fazer entrar em

jogo um direito de morrer, o direito à verdade do paciente destinado a morrer é um direito por si

mesmo e, sem dúvida, um direito sagrado e completamente à parte de sua importância prática para

as disposições extra-médicas da pessoa para as quais a verdade daria ocasião. Algo do espírito do

sacramento católico da extrema unção é transportável aqui para a ética médica: o médico deveria

estar disposto a honrar o sentido essencial da morte para a vida finita (contra sua moderna

degradação em um destino inominável) e não negar a um mortal como ele seu privilégio de

estabelecer uma relação com o seu fim próximo.. de apropriá-lo à sua maneira, seja como entrega,

reconciliação ou recusa, mas com a dignidade do saber. Contrariamente ao sacerdote que atua em

nome de Deus, o médico, em seu papel puramente mundano, não está autorizado a impor este

saber ao paciente, mas tem que escutar sua verdadeira vontade enquanto possa ouvi-la por trás das

palavras. A verdade, e assim tem que reconhecer o filantropo, não é aqui (mais do que em qualquer

outro caso) uma coisa qualquer. A misericórdia pode permitir a indignidade no saber. Mas não

pode impô-la por sua própria conta. Em outras palavras, ao lado do “direito de morrer” está

também o direito de “possuir” a própria morte na consciência concreta de sua iminência (não só

no saber abstrato sobre a mortalidade em geral): de fato, nisto se aperfeiçoa o direito à própria vida,

já que inclui o direito à morte como “própria”. Este direito é verdadeiramente inalienável, mesmo

que amiúde a debilidade humana prefira renunciar a ele.. o que, por sua vez, é um direito que

merece respeito e concessão mediante engano compassivo. Mas a misericórdia não pode converter-

se em arrogância. Enganar o moribundo sem respeitar sua vontade manifestada de maneira crível

significa dar um calote na possibilidade própria de seu ser, de estar cara a cara com sua mortalidade

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quando está a ponto de tornar-se real para ele. Meu pressuposto aqui é que a mortalidade é uma

condição geral da vida e não uma ofensa externa e casual à ela.4

Mas voltemos ao direito de morrer. Aceitamos, pois, que o paciente sabe e optou contra o

prolongamento terapêutico de seu estado consagrado à morte e a favor de deixar que as coisas

sigam seu curso. Na medida em que se o colocou com sinceridade em condições de tomar a decisão

e se a concedeu, seu direito de morrer foi respeitado. Entretanto, emerge aqui um novo problema.

A escolha do enfermo contra o prolongamento de seu estado era, entre outras coisas, também uma

opção contra o padecimento; inclui, pois, o desejo de que se lhe poupem sofrimentos – seja

mediante a aceleração do fim ou mediante minimização das dores durante o tempo que lhe falta,

com que o último às vezes repercute sobre o primeiro como consequência da forte administração

de drogas que isso exige. Aceitar tais desejos parece estar incluído no que já se concedeu ao paciente

com o “direito de morrer” como tal e a aceitação de sua decisão. A misericórdia impele à

semelhante concessão na medida em que o sofrimento do paciente é agudo. Todavia o

cumprimento destes desejos requer a colaboração, talvez inclua a ação exclusiva de um outro e,

neste ponto, a institucionalização geral da morte mediante hospitalização, junto com o estado de

desvalimento do paciente, cria problemas de um tipo mais grave. Deslocá-los para o cuidado

doméstico é na maioria das vezes inviável, e não podemos deixar de discutir o que se poderia fazer

ou suportar privadamente, na intimidade, sem a vigilância do amor compassivo.. mesmo este não

está isento de poderosas inibições externas e internas. Mas o hospital, em todo caso, situa o paciente

diretamente no âmbito público, ali submetido às suas normas e controles.

No que se refere à direta e intencionada aceleração do fim, por exemplo, mediante drogas

mortais, não se pode exigir do médico que tome alguma de suas medidas positivas com esta

finalidade, nem ao pessoal do hospital que colabore “olhando para o outro lado” quando algum

outro facilita os meios para o paciente. Não só a lei o proíbe (que pode ser modificada), mas e

muito mais ainda o sentido mais íntimo da profissão médica, que nunca pode atribuir ao médico o

papel de ministrante da morte, mesmo que seja a pedido do sujeito. A “eutanásia” como ato médico

é discutível somente nos casos de um resto de vida que se prolonga de forma inconsciente e é

mantida artificialmente, no qual a pessoa do paciente já tenha se extinguido. Mas se, no tocante aos

4 Para a fundamentação ontológica deste pressuposto, me permito remeter ao que tenho dito amiúde sobre a filosofia do orgânico, em alemão pela primeira vez em Organismo e Liberdade (1973): “Mas tenha-se em conta que junto com a vida vem a morte, e que a mortalidade é o preço que teve que pagar a nova possibilidade do ser... É um ser essencialmente revogável e destrutível, uma aventura da mortalidade, que a partir de uma matéria permanente e em suas condições – na condição a curto prazo do organismo metabólico – consegue de empréstimo os trajetos finitos de mesmidades individuais” [O princípio responsabilidade (1979) e, por último, “Evolução e Liberdade”, em Encrucijadas 13 (1983/1984)]: “Que a vida é mortal é, sem dúvida, sua contradição fundamental, mas faz parte inseparavelmente de sua essência e não se pode pensar separada disso. A vida é mortal não apesar de, mas porque é vida, por sua constituição mais primordial, porque esse modo irrevogável e garantido é a relação de conteúdo e forma na qual se baseia”.

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demais, excluímos a eutanásia exercida pelas mãos do médico para salvaguardar a integridade de

sua profissão, mesmo contra o direito de morrer de um paciente, temos que acrescentar que colocar

o paciente em posse do medicamento mortal fica muito pouco atrás de sua administração direta a

pedido dele. Se não outra coisa, isto contradiria a condição prévia do acesso privilegiado dos

médicos a tais meios... um privilégio colocado em risco pelo mais bem intencionado dos abusos.

Contudo, há uma diferença entre matar e deixar morrer (vimos que em relação ao primeiro

a vontade do paciente tem que ficar desativada, mas em relação ao último tem uma pretensão a

seguir) e, por sua vez, uma diferença entre permitir morrer e ajudar no suicídio. No caso do paciente

consciente que sofre, do qual falávamos, essa permissão deveria estar isenta do temor de represálias,

tanto legais (civis e penais) como profissionais, no caso de ceder ao firme desejo do paciente (não

a um rogo em um momento de desespero) de que, por exemplo, se desligue o respirador que o

mantém vivo sem outra expectativa a não ser a permanência nesse mesmo estado. Formalmente,

essa exigência é um direito dele e somente dele, em virtude de sua posição como mandante em

uma relação contratual de serviços; e a problemática jurídica surge somente da quase-cessão de

direitos a um administrador fiduciário institucional, que aparece dada com a hospitalização. Mas a

transmissão em um assunto de rotina médica permanece ligada à persistente intenção primária do

sujeito e não se estende a seu direito de voltar a pensar e adotar outra opção: não pode conduzir à

sua incapacidade de fato. Mas no tocante (para além da situação legal) à ética da suspensão do

procedimento de manutenção por desejo do paciente, só um sofista pode equiparar neste caso a

cessação da ação ulterior com a ação, ou seja, o deixar morrer com matar: ao fim e ao cabo, o

desvalimento que faz com que o paciente dependa da concessão do médico não torna pior o seu

direito em comparação com o do paciente com mobilidade que pode simplesmente levantar-se e

andar sem impedimentos. Tão pouco se pode reprovar a este o suicídio (a enfermidade é a

assassina), nem se pode obrigá-lo a viver; e ninguém condenará esse não obrigar como ajuda ao

suicídio (nem sequer quem considere erroneamente a conduta do paciente a esse respeito). Seria,

pois, tanto faltar com a equidade como ilógico castigar o paciente “preso” por sua impotência física

com a perda de direitos. Quando diz “basta!”, terá que ser atendido; e temos que superar os

obstáculos sociais que se opõem a isto.5

Mas o que acontece quando, em lugar de uma “cessação”, temos que julgar uma “ação”

como, por exemplo, a administração de drogas analgésicas, que representam uma ação positiva do

médico? Quando se fazem necessárias doses nocivas para erradicar uma dor constante e torturante,

5 A situação jurídica atual nos Estados Unidos parece ser que a semelhante “basta!” do paciente (intelectualmente competente) não se pode negá-lo sem dúvida, mas que o médico, sob a justiça do “erro artificial” imperante, estaria obrigado a suspender o tratamento e, com isso, o paciente já não teria que permanecer no hospital. Dado que isso o privaria da assistência médica e hospitalar que continua a necessitar para morrer de forma suportável, esta escolha da interrupção do tratamento, existente de forma abstrata, se vê bloqueada de fato por essa ameaça.

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a obrigação de aliviar pode entrar em conflito como juramento hipocrático de “não ferir”. Qual

obrigação tem prioridade? No paciente curável ou mesmo terapeuticamente influenciável de forma

positiva, sem dúvida a última: o médico tem que evitar as doses perigosas. Mas em um estado

terminal que já não é mais possível um tratamento curativo – isso me parece intuitivamente claro

– o grito que pede alívio supera a proibição do dano, e até mesmo aquela do encurtamento da vida,

deveria ser escutado. Em todo caso, o preço do alívio deve ser comunicado ao doente e que ele dê

o seu consentimento. O dano pode repercutir, como dissemos, sobre a expectativa de vida, o alívio

da dor pode encurtar a sobrevida dada: mas o faria a serviço da própria sobrevida, que ganha mais

qualidade do que a quantidade que perde. Acelerar deste modo o final, como efeito secundário do

objetivo, inteiramente distinto, de tornar suportável o resto de uma vida que não pode ser salva e,

nesse sentido, torná-la ainda mais “digna de ser vivida” é moralmente correto e deveria ser

considerado igualmente não reprovável por lei e pela ética profissional, ainda que acrescente outro

comportamento mortal à situação mortal já dada. A partir de um momento determinado, o médico

deixa de ser sanador e se converte em auxiliar da morte do paciente. A liberdade de ação que o

incumbe, tão cuidadosamente delimitada, não abre as portas para a “morte por compaixão” e me

parece exigir uma legislação sobre a eutanásia, não um refinamento do conceito de “erro médico”

na jurisprudência que retire de seu âmbito de aplicação semelhante alívio prestado a pedido. Nem

moral e nem conceitualmente se pode confundir com “matar” esse intercâmbio entre tolerabilidade

e duração do processo da morte, levada a cabo com o consentimento do paciente.

O paciente em coma irreversível

Consideremos, por fim, o paciente em coma irreversível, o caso, pois, de um restante de

vida prolongado mediante assistência artificial no qual sequer permanece a ficção de um sujeito

decisório cuja suposta vontade um representante poderia dar cumprimento. Na falta de tal sujeito

virtual dotado da possibilidade de escolher por si mesmo, não se pode falar, em sentido estrito, de

um direito de morrer, porque de todos os direitos este pressupõe um possuidor que o reclama

eventualmente, mesmo que não possa exercê-lo por si mesmo. Não se poderia indicar

propriamente qual direito se preserva ou se lesiona com qualquer decisão: o da antiga pessoa ou o

do atual remanescente impessoal. (Dado que somente uma pessoa pode ser sujeito de direitos, teria

que ser a antiga pessoa aquela cujos direitos, por assim dizer “póstumos”, se poderia invocar

realmente. Uma declaração da vontade previamente redigida para um caso assim apoiaria

moralmente – se é que não também, neste momento, juridicamente – semelhante apelo.) Está

muito mais em questão a obrigação ou mesmo o direito de outros em perpetuar a situação dada, e

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alternativamente seu direito ou mesmo sua obrigação de dar-lhe um fim mediante retirada da ajuda

artificial. Razão e humanidade, se pode afirmar como consolo, favorecem angustiadamente a

segunda alternativa, seja como direito ou como obrigação: deixa morrer esta pobre sombra do que

foi outrora uma pessoa tal como seu corpo está disposto a fazer, e ponha fim à degradação de sua

existência forçada. Mas poderosas resistências, tanto internas como externas, se opõem a este

conselho da razão. Aqui está o espanto humano ante o ato de matar, que é como – sem dúvida,

erroneamente – pode ser interpretado o ato de deixar morrer neste caso, dado que a suspensão de

seu impedimento ativo implica, de todo modo, um ato da minha parte. Depois está a exigência

profissional de que o médico tem que estar ao lado da vida em qualquer circunstância. E, em

seguida, está a lei, que proíbe causar intencionalmente a morte e, no melhor dos casos, a um direito

de viver expandido de forma problemática – dado que já não há nenhum sujeito que reclame sequer

implicitamente um ou outro direito e o veja violado por uma negativa –; de todo modo, no debate

público, o caso do paciente em coma permanente se enreda com o “direito de morrer”, e se pode

ouvir citarem esse direito em apoio a uma exigência de não opor-se à morte. Por essa razão

incluímos o problema em nossas considerações.

Há duas escapatórias do beco sem saída ético-legal que descrevemos aqui. Uma é a

redefinição da “morte” e sua sintomatologia, segundo a qual um coma de determinado grau

significa morte: a chamada “definição de morte cerebral”,6 que (dado que a morte é um fato

consumado) retira todo o assunto do âmbito da decisão e o converte em mero assunto de

constatação no tocante ao cumprimento dos critérios da definição. Se cumprem, a interrupção dos

auxílios funcionais artificiais é não só permitida mas óbvia e mesmo obrigatória, dado que o

desperdício de caros recursos médicos em um cadáver não seria justificável. Ou talvez sim? Não

poderia a interrupção – ou seja, tornar o cadáver ainda mais plenamente cadáver – significar um

desperdício em outra direção? Não é o corpo do falecido, se a circulação permanece em

funcionamento, um valioso recurso médico por si mesmo, como banco de órgãos para possíveis

transplantes? A continuidade da irrigação sanguínea mantem os órgãos em um estado vivo e

assegura ao receptor definitivo um transplante de pleno valor, igual ao de um doador vivo. Em

relação a esse valor de uso, a declaração de morte conforme critérios de morte cerebral e a

manutenção da vida vegetativa do resto dos organismo (mediante respirador, etc, no caso de longa

duração também mediante alimentação artificial) não estariam de modo algum em contradição,

seriam muito mais partes coerentes de uma ação global com fins externos ao paciente: em favor de

um outro paciente ou mesmo da investigação médica. Precisamente esse benefício de uso externo

6 “Morte cerebral” e as questões associadas a ela são temas do capítulo precedente. Para o leitor desse capítulo se recordam brevemente as consequências pertinentes da “redefinição da morte”, extensamente discutida ali.

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foi alegado desde o princípio por defensores do “coma irreversível como nova definição da morte”.

Contudo, deveria resultar imediatamente que a intervenção de um interesse e, mais ainda, o do

interesse de outro paciente, não só retira da definição sua pureza teórica, mas também situa sua

aplicação em uma perigosa zona obscura de tentação bem intencionada. Expus no capítulo anterior

minhas graves objeções contra este tipo de “solução” do problema do coma, ou seja, contra sua

dissolução em uma questão semântica decidida mediante a definição: uma definição ad hoc, ou seja,

recortada na medida da situação especial e de sua confusão prática, carregada de suspeita de uma

motivação de uso e, dando assim, razão para temores referentes ao uso alheio ao sujeito a que a

definição se presta, dos quais a obtenção de material fresco para o transplante de órgãos é só o

mais evidente. Não é desnecessário dizer que minhas advertências – muito concretas – foram vãs

(ainda que meu artigo “Contra a corrente” seja reeditado várias vezes nas antologias de ética

médica). Alguns desses temores, precisamente os mais óbvios, se tornaram já prática geral em meio

ao progresso irresistível: “Extração de órgãos de ‘cadáveres doadores’ sob respiração artificial,

levada a cabo depois da declaração de óbito com este fim. Em um caso notório, um pouco distinto, o

caso Quinlan,7 a definição mesma se revelou insuficiente para resolver a situação do desafio do

coma irreversível: porque quando se suspendeu a respiração artificial com permissão judicial,

começou surpreendentemente a respiração espontânea, de maneira que, segundo os critérios de

morte cerebral da “definição de Harvard” (amplamente aceita na América do Norte) a paciente

não estava morta, mas ainda assim seguia em coma profundo... e a questão da manutenção artificial

das funções (por exemplo, a introdução de líquidos nutrientes) voltou a se colocar com a dureza

originária, sem se poder decidir agora recorrendo à definição ad hoc. O deslocamento do plano

moral ao técnico diminui nossa capacidade de dar resposta à pergunta em seu conteúdo existencial.

Mas há uma outra escapatória ao beco sem saída que não é a semântica definidora sobre

vida e morte: abordar diretamente a questão de se é justo prolongar tão somente mediante nossa

intervenção artificial o que talvez – no estágio atual de nossos conhecimentos ou de nossa

ignorância – possa chamar-se ainda “vida”, mas só é esse tipo de vida graças inteiramente à nossa

arte. Aqui estou de acordo com a já citada decisão papal, que reza: “Quando se considera que a

7 O famoso caso de Karen Quinlan, que se arrastava desde há muitos anos: a jovem, em coma profundo, foi mantida em vida organo-vegetativa mediante respiração, alimentação e outros serviços auxiliares artificiais. A pedido dos pais, o tribunal autorizou (ademais, sem invocar a definição de morte e o óbito) a interrupção da respiração artificial. Se produziu a respiração espontânea. Os pais insistiram, então, que se prosseguisse com a alimentação artificial, cuja interrupção requereria um nova sentença judicial. É questionável que os pais tivessem podido consegui-la. Em qualquer caso, sem ela haveria que prosseguir, conforme ao direito vigente, com a alimentação artificial e demais serviços auxiliares enquanto o organismo, que respirava por si mesmo, mantivesse em marcha, graças a eles, seu metabolismo e demais atividades vitais. Até a finalização desse artigo, o corpo da jovem vegeta nesse estado inconsciente. Contudo, estão em curso modificações da situação jurídica independentes do falecimento, conforme as quais, em casos similares, com o consentimento dos parentes próximos, se pode suspender a manutenção sem decisão judicial especial. [Em junho de 1985, Karen Ann Quinlan faleceu depois de dez anos de coma. H.J.]

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inconsciência profunda é permanente, não são obrigatórios os meios extraordinários para manter

a vida. Se pode suspender seu emprego e deixar morrer o paciente”. A clara possibilidade de morrer

em tais circunstâncias limites não necessita uma redefinição de morte e do momento de produzir-

se. Dou um passo a mais e digo: não só se pode suspender tais meios extraordinários, se devem

suspendê-los; em favor do paciente, ao qual se deve permitir morrer; a suspensão da manutenção

artificial não é facultativa, mas obrigatória. Porque, ao fim e ao cabo, algo como um “direito de

morrer” se constrói em nome de e para a proteção da pessoa que o paciente foi um dia, e cuja

memória se vê diminuída pela degradação de tal “sobrevivência”. Este direito “póstumo” à

recordação (por extralegal que o seja) se converte em um mandamento para nós que, por um

domínio unilateral e total sobre este bem jurídico, nos convertemos em guardiões de sua

integridade e mandatários de sua pretensão. Mas se isto é demasiado “metafísico” para convencer

nossa consciência positivista acerca do que é nossa obrigação, um sóbrio princípio de justiça social

– sem dúvida externo ao paciente, mas ilustrativo para o legislador – faz com que esta razão íntima

venha em ajuda à obrigação de desconectar: a divisão equânime dos escassos recursos médicos

(sem contar o próprio paciente entre eles!).

Falamos antes das penosas decisões sobre a vida e a morte a que nos obriga a escassez de

meios. Isto se dará com especial probabilidade nos caros aparatos (mais o espaço hospitalar e o

pessoal de limpeza) cuja aplicação mantenedora tem que ser permanente. Nossa consideração

anterior se referia à admissão inicial nessas instalações quando a demanda delas supera a oferta

(nosso exemplo era a máquina de diálise). Para as decisões que forem necessárias, as normas de

prioridade tem que ser tão “justas” quanto possamos escaloná-las. Mesmo aquelas melhor

formuladas tenderão sempre a ser imperfeitas, dada a natureza do caso. O primeiro exemplo

histórico de tal regra de seleção foi o sumário de ajuda de emergência da triagem que os hospitais

de campanha franceses seguiram na massiva carnificina da Primeira Guerra Mundial. Em condições

não catastróficas, a gradação de exigências mais fortes e mais fracas será uma questão complexa e

sempre discutível que, amiúde, -- dado os muitos elementos imponderáveis – só se poderá decidir

com uma certa arbitrariedade no extremo superior da escala. Mas mesmo que tenha que continuar

sendo discutível qual caso merece mais consideração em um espectro de competidores, não é

discutível qual merece a mínima consideração em seu extremo inferior e simplificador: aquele que

menos possa se beneficiar dos escassos recursos existentes, ou seja, o que tenha menor expectativa

de êxito. Uma vez admitido isto, fica a questão de se tal princípio de seleção se estende, para além

da admissão, ao curso restante das coisas e, posteriormente, se aplica também à manutenção do

paciente no tratamento se aparecer um candidato “melhor”. Em geral, tem-se que dizer que não,

reconhecendo aqui um direito de precedência a aquele que primeiro o recebeu. Uma vez em marcha

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o tratamento, seria uma monstruosidade inominável revogar a ajuda outorgada em favor de

quaisquer interesses externos, enquanto o paciente segue desejando-a. Da mesma forma que o lugar

do indivíduo no mundo não é intercambiável uma vez nascido, a vaga outorgada ao paciente não

está disponível para ser rematada ao melhor apostador. Mas ao comatoso irreversível já não o

alcança monstruosidade alguma, como tampouco benefício algum, e “seu” proveito do tratamento

é literalmente zero se este “seu” se refere a um sujeito que possa colher um benefício. Nenhuma

vontade por sua parte deseja o prosseguimento, uma vez que já a admissão originária teve lugar

sem o concurso de sua vontade. Neste caso limite único, o critério do “menor proveito” pode

ganhar força fática e dispor eticamente a interrupção do que se iniciou para não negar a outros uma

manutenção em vida da qual poderiam tirar proveito. Para mim, como deixei claro, esta

consideração é secundária frente aos méritos internos do caso, que contemplo com razão suficiente

e obrigatória para o encerramento do procedimento, inclusive como a autêntica razão. Mas como

é notório que este espaço interno não está por cima das opiniões em disputa, a justiça social

distributiva – um princípio mais pragmático e, por isso, com um assentimento mais amplo

assegurado – pode ser invocada com o mesmo efeito. A meu ver, isto é o que Platão chamava

“segunda via” (deuterous plous): o segundo melhor caminho.

A tarefa da medicina

Uma reflexão sobre o “direito de morrer” não deve concluir com este caso especial que, na

melhor das hipóteses, pertence de maneira marginal ao tema. O caso do paciente em coma é raro

e demasiado extremo por si só para servir de paradigma, mesmo se o deixar morrer se possa

contemplar aqui como um – pelo menos latente – interesse jurídico da pessoa. (Havíamos aceito

isto em sentido “retrospectivo”.) O verdadeiro e atual lugar de tal direito, e o cenário de conflitos

e lutas espirituais que traz à lume, é a muito mais frequente e movediça zona escura do paciente

terminal plenamente consciente que reclama para si a morte, mas que não pode dá-la a si mesmo.

É ele – e não o corpo privado de toda consciência – aquele cuja necessidade coloca os angustiantes

problemas éticos. Ainda assim, a ambos lhes é comum que, para além do espaço dos “direitos”,

colocam a questão da tarefa última da arte médica. Eles nos forçam a perguntar: a mera contenção

postergadora ante o umbral da morte está entre os autênticos objetivos e obrigações da medicina?

No que concerne aos objetivos servidos de fato pela complacente arte, temos que constatar que,

em um extremo do espectro, a outrora definição estrita dos objetivos médicos se ampliou muito,

e hoje em dia inclui serviços especialmente cirúrgicos, mas também farmacêuticos) que não estão

“medicamente indicados”, como a contracepção, o aborto, a esterilização por motivos não-

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médicos ou a mudança de sexo, para não falar da cirurgia plástica a serviço da vaidade ou das

vantagens profissionais. Aqui o “a serviço da vida” se estendeu, mais além das velhas tarefas de

curar e aliviar, ao papel de um “técnico de cabeceira” geral para variados fins de escolha social ou

pessoal. Sem haver um estado patológico, hoje, é suficiente para o médico que o cliente (= paciente)

exija os serviços correspondentes e a lei os permita. Nosso juízo a respeito não é o caso aqui.

Mas no extremo superior, patologicamente crítico, do espectro, que é onde tem seu lugar

nosso “direito de morrer”, a tarefa do médico segue permanecendo submetida às augustas

obrigações tradicionais. Por isso, é importante definir uma e só mesma “obrigação para com a

vida” que subjaza a todas elas e determinar, a partir daí, até que ponto pode ou deve chegar a arte

médica em seu entendimento das mesmas. Já estabelecemos a regra de que mesmo uma obrigação

transcendente de viver por parte do paciente não justifica que ele venha a ser forçado pelo médico

a viver. Mas atualmente o próprio médico está forçado a tal coação, em parte pela ética da profissão

e em parte pela lei vigente e pela jurisprudência predominante. Em consequência da hospitalização

do enfermo (especialmente do enfermo de morte), que se converteu em regra, também o médico

– uma vez que tenha conectado o paciente aos aparatos de manutenção da vida no hospital – está,

por assim dizê-lo, enjaulado com ele e já não é alguém que opera livremente de fora. É

notoriamente mais fácil conseguir uma autorização judicial que force o tratamento (exemplo: os

filhos das “Testemunhas de Jeová”) que uma para interromper o tratamento de manutenção

(exemplo: caso Quinlan). Por isso, em defesa do direito de morrer, temos que afirmar novamente

a verdadeira vocação da medicina para liberar tanto o médico como o paciente da atual servidão.

O fenômeno, de nova geração, da impotência do paciente conectado ao poder das técnicas que

retardam a morte sob tutela pública, exige semelhante reafirmação. Creio que se pode alcançar a

unanimidade em torno do fato de que a administração fiduciária que a medicina faz tem a ver com

a totalidade da vida ou, em uma maior aproximação possível a ela, com sua condição de ainda-

desejável. Manter sua chama ardendo, não suas brasas acesas, é seu verdadeiro mandamento, por

mais que tenha que proteger também as brasas. O que menos pode fazer é causar dor e humilhação

que só sirvam para o indesejado atraso de sua extinção. Como quer que se venha traduzir tal

confissão de princípios na prática legal, será sem dúvida um difícil capítulo por si só; e por melhor

que façamos nossa tarefa, isso não transcorrerá por sua natureza mesma sem zonas obscuras, nas

quais em cada caso concreto terá que tomar decisões prementes.8 Mas, uma vez afirmado o

8 A história alemã faz com que não seja supérfluo dizer aqui expressamente que nem o assassinato de doentes mentais nem qualquer outra erradicação da “vida indigna” entra, nem de longe, nas possíveis zonas de penumbra dessa confissão de princípio: são inequivocamente crimes, e se algo como a “utilidade pública” tem algum direito nesta tarefa, só o tem no sentido de que marca sua tarefa como digna de pena capital.

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princípio, existirá maior esperança de que o médico volte a ser um servidor humano, ao invés de

um senhor tirânico do paciente, por sua vez tiranizado por ele.

Assim, pois, é em última instância o conceito de vida, e não o de morte, aquilo que rege a

questão do “direito de morrer”. Voltamos ao começo, onde encontramos o direito de viver como

fonte de todos os direitos. Correta e plenamente entendido, inclui também o direito de morrer.

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