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CAPA DA EDIÇÃO AMERICANA | TEXTO NÃO REVISADO

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CAPA DA EDIÇÃO AMERICANA | TEXTO NÃO REVISADO

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A LEITORA Livro 1

Traci CheeTradução Edmundo Barreiros

Mar de Tinta e Ouro

Você tem em mãos com exclusividade um trecho do primeiro volume da trilogia Mar de Tinta e Ouro, de Traci Chee.

Este texto não foi editado ou revisado. Por isso, pedimos a sua compreensão caso encontre eventuais erros. Para produzirmos este trecho de degustação, utilizamos a capa da edição original. A capa da edição brasileira ainda está por vir, aguardem!

O primeiro livro da trilogia, A leitora, chegará às livrarias em abril de 2017.

Boa leitura!

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Mar de Tinta e Ouro

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O livro

Houve uma vez, e um dia haverá. Esse é o começo de toda história.

Havia um mundo chamado Kelanna, um mundo maravilhoso e ter-rível de água e navios e magia. O povo de Kelanna era como você de muitas formas – eles falavam, trabalhavam, amavam e viviam –, mas era diferente em um detalhe importante: eles não sabiam ler. Nunca tinham ouvido falar da palavra escrita, nunca desenvolveram alfabetos nem regras de ortografia, nunca registraram suas histórias em pedra. Eles se lembra-vam delas com suas vozes e corpos, repetindo-as inúmeras vezes até que se tornassem parte deles; e suas lendas eram tão reais quanto suas próprias línguas, pulmões e corações.

Algumas histórias eram escolhidas e passadas boca a boca, atraves-sando reinos e oceanos, enquanto outras morriam rapidamente, repetidas algumas vezes e então nunca mais. Nem todas as lendas eram populares, e muitas delas viviam vidas secretas em uma única família ou pequena comu-nidade de crentes, que sussurravam as histórias entre si para que não fossem esquecidas.

Uma dessas histórias raras falava de um objeto misterioso chamado livro, que guardava a chave para a maior magia que Kelanna jamais con-hecera. Alguns diziam que ele continha feitiços para transformar sal em ouro e homens em ratos. Outros diziam que, com muitas horas e um pou-co de dedicação, você podia aprender a controlar o clima… ou mesmo cri-ar um exército. Os relatos diferiam nos detalhes, mas todos concordavam

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em uma coisa: apenas alguns poucos podiam acessar seu poder. Algumas pessoas diziam haver uma sociedade secreta treinada precisamente com esse objetivo, que trabalhava com afinco geração após geração, debruçan-do-se sobre o livro e o copiando, colhendo conhecimento como feixes de trigo, como se eles pudessem sobreviver apenas de frases e parágrafos dó-ceis. Eles se apropriaram das palavras e da magia por anos, ficando mais forte com elas a cada dia.

Mas livros são objetos curiosos. Eles têm o poder de aprisionar, trans-portar e, se você tiver sorte, até transformá-lo. Mas, no fim, livros – até os mágicos – são apenas objetos montados com papel, cola e linha. Essa era a verdade fundamental que os leitores esqueceram. Como o livro, na verdade, era vulnerável.

Ao fogo.À umidade.À passagem do tempo.E ao roubo.

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Capítulo 1As consequências de um roubo

Havia casacos-vermelhos na estrada. A trilha de cascalho que atravessava a floresta densa estava apinhada de gente, e os sol-

dados oxscinianos cavalgavam acima do mar de pedestres como lordes em um desfile: os belos casacos vermelhos impecáveis, as botas negras engrax-adas até brilhar. Na cintura, o cabo das espadas e a coronha das armas reluziam à luz cinzenta da manhã.

Qualquer cidadão respeitador da lei teria ficado feliz ao vê-los.– Nada bom – resmungou Nin, ajeitando a pilha de peles no braço. –

Nada bom, mesmo. Achei que esta cidade seria pequena o suficiente para que passássemos despercebidas, mas isso agora não parece provável.

Agachada nos arbustos ao lado dela, Sefia examinou os outros com-pradores, que carregavam cestas ou arrastavam carrinhos barulhentos for-rados de aniagem para seus filhos, os pais gritando bruscamente pelas cri-anças sujas de terra se elas se afastassem muito. Em seus trajes desgastados pela estrada, Sefia e Nin teriam se misturado muito bem, não fossem os casacos-vermelhos.

– Eles estão aqui por nós? – perguntou Sefia. – Não achei que as notícias fossem se espalhar tão rápido.

– Elas viajam depressa quando você tem um rosto tão bonito quanto o meu, menina.

Sefia deu um riso forçado. Velha o suficiente para ser sua avó, Nin era uma mulher atarracada com cabelo emaranhado e um rosto duro como

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couro cru. A beleza não era o que a tornava memorável.Não, Nin era uma mestra do crime, com mãos que pareciam mágicas.

Elas não eram nada de especial à primeira vista, mas a mulher podia tirar a pulseira do pulso de uma mulher com um toque delicado como um sopro. Podia abrir fechaduras com um movimento dos dedos. Era preciso ver as mãos de Nin em ação para conhecê-la de verdade. Do contrário, em sua capa de viagem de pele de urso, ela parecia um pouco com uma pilha de terra: seca, marrom, pronta para se desfazer na umidade da floresta tropical.

Desde que fugiram de casa em Deliene, o mais ao norte dos cinco reinos insulares de Kelanna, elas mantiveram a discrição enquanto seguiam de um lugar para outro, sobrevivendo do que podiam encontrar na na-tureza. Mas nos invernos mais duros, quando a coleta era fraca e a caça ainda pior, Nin ensinava Sefia a abrir fechaduras, bater carteiras e até rou-bar grandes peças de carne sem ninguém perceber.

E por seis anos, elas não tinham sido pegas.– Não podemos ficar aqui – suspirou Nin, ajeitando as peles nos

braços. – Vamos descarregar isso na próxima cidade.Sefia sentiu uma pontada de culpa no estômago. Era por sua causa

que estavam fugindo. Se ela não tivesse sido tão arrogante duas semanas antes, ninguém as teria notado. Mas ela tinha sido estúpida. Excessiva-mente confiante. Tentara roubar uma bandana nova para si mesma – toda verde-água com estampa em ouro, muito mais elegante do que a sua ver-melha desbotada – mas o negociante de tecidos percebera. No último se-gundo, Nin enfiara o lenço no próprio bolso e levara a culpa para livrar Sefia, e elas deixaram a cidade com os casacos-vermelhos nos calcanhares.

Tinha sido por pouco. Alguém podia ter reconhecido Nin.E agora elas tinham de deixar Oxscini, o Reino da Floresta que fora

seu lar por mais de um ano.– Deixe que eu faço isso – disse Sefia enquanto ajudava Nin a ficar

de pé.A mulher franziu o cenho e olhou para ela.– Perigoso demais.Sefia puxou levemente a pele no topo da pilha nos braços de Nin.

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Metade delas eram animais que ela mesma abatera e esfolara, o suficiente para ajudá-las a pagar as passagens para sair de Oxscini, se elas conseguis-sem entrar na cidade para negociá-las. Nin as mantivera em segurança por todos aqueles anos. Agora era a vez de Sefia.

– Pode ser mais perigoso esperar – disse ela.O rosto de Nin se turvou. A mulher nunca explicara exatamente

como conhecera os pais de Sefia, mas Sefia sabia que tinha sido porque havia alguém atrás deles. Eles tinham algo que seus inimigos queriam.

E que agora estava com Sefia.Pelos últimos seis anos, ela carregara tudo o que possuía nas costas:

todas as ferramentas de que precisava para caçar, cozinhar e acampar, e, no fundo, lentamente criando buracos no couro, a única coisa que ela tinha dos pais – um lembrete pesado de que eles tinham existido e agora estavam mortos. Suas mãos se apertaram nas alças da mochila.

Nin se remexeu inquieta e olhou para trás, para o coração da floresta.– Não gosto disso – disse ela. – Você nunca vai sozinha.– Você não pode entrar lá.– Podemos esperar. Há uma aldeia a cinco dias de viagem daqui.

Menor. Mais segura.– Mais segura pra você. Ninguém sabe quem eu sou. – Sefia empinou

o nariz. – Posso entrar na cidade, vender os produtos e sair antes do meio-dia. Vamos andar duas vezes mais rápido se não tivermos de carregar essas peles por aí.

Nin hesitou por um bom tempo, seu olhar astuto indo das sombras nos arbustos aos vislumbres de vermelho na estrada. Por fim, ela deu um aceno.

– Seja rápida – recomendou. – Não espere pelo menor preço. Só precisamos do suficiente para pegar um barco para fora de Oxscini. Não importa para onde.

Sefia sorriu. Não era todo dia que ganhava uma discussão com Nin. Ela pegou com dificuldade a pilha pesada dos braços vigorosos de Nin.

– Não se preocupe – disse ela.Nin franziu o cenho e deu um puxão na bandana vermelha que Sefia

usava para prender o cabelo.

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– É a preocupação que nos mantém em segurança, menina.– Vou ficar bem.– Ah, você vai ficar bem, é? Sessenta anos desta vida e eu estou bem.

Por que isso?Sefia revirou os olhos.– Porque você é cuidadosa.Nin deu um aceno e cruzou os braços. Era uma imagem tão perfeita

de sua personalidade mal-humorada que Sefia tornou a sorrir e lhe deu um beijinho rápido no rosto.

– Obrigada, tia Nin – disse ela. – Não vou decepcioná-la dessa vez.A mulher fez uma careta, esfregando o rosto com as costas da mão.– Sei que não vai. Venda as peles e volte direto para o acampamento.

Tem uma tempestade se formando, e quero ir embora antes que ela chegue.– Sim, senhora, não vou decepcioná-la. – Virando-se, Sefia olhou

para o alto e percebeu a umidade no ar e a velocidade das nuvens que cruzavam o céu. Nin sempre sabia quando vinha chuva; dizia que era o frio em seus ossos.

Sefia saiu cambaleante, erguendo as peles nos braços magros. Estava quase no limite das árvores quando a voz rouca de Nin a alcançou outra vez, rápida com um alerta.

– E não se esqueça, menina. Tem coisa pior que os casacos-vermelhos lá fora.

Sefia não olhou para trás enquanto deixava o abrigo para se juntar às outras pessoas na estrada, mas não conseguiu evitar um arrepio com as palavras de Nin. Elas tinham de evitar as autoridades devido à reputação de ladra de Nin, mas essa não era a razão porque viviam como nômades.

Ela não sabia muito, mas ao longo dos anos compreendera o seguinte: seus pais estiveram em fuga. Tinham feito todo o possível para mantê-la isolada, a salvo de algum inimigo sem rosto e sem nome.

Não fora suficiente.E agora a única coisa que a mantinha em segurança era sua mobil-

idade, seu anonimato. Se ninguém soubesse onde ela estava nem o que carregava, ninguém iria encontrá-la.

Sefia ajeitou a mochila mais alto nos ombros, sentindo o peso bater

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contra a parte baixa das costas, e insinuou-se discretamente no interior da multidão.

Quando chegou aos limites da cidade, os braços latejavam devido ao peso das peles. Ela passou cambaleando pelas docas, onde pequenos barcos de pesca e navios de mercadores estavam amarrados a atracadouros oscilantes. Além da enseada, estavam ancorados os cascos vermelhos dos navios da Marinha Real oxsciniana, com canhões espetados nos conveses.

Cinco anos antes, um punhado de barcos patrulha teria sido sufi-ciente, mas agora eles estavam em guerra contra Everica, o Reino de Pedra recentemente unificado, e haviam aumentado as restrições ao comércio e a viagens. Sefia e Nin não podiam chegar à costa em conflito de Everica, e mesmo a faixa do Mar Central entre os dois reinos estava repleta de escar-amuças e corsários sedentos de sangue. Para os cidadãos comuns, os barcos sentinelas podiam ser protetores, mas para Sefia, que nunca fora comum, eles eram guardas de prisão impedindo sua fuga.

Na entrada da praça da cidade, ela fez uma pausa para estudar a dis-posição do mercado, à procura de becos que pudesse usar caso precisasse de uma saída rápida. Em torno do perímetro havia lojas facilmente iden-tificadas pelos brasões acima das portas: um cutelo e um porco para o açougueiro, uma bigorna para o ferreiro, espátulas de madeira cruzadas para o padeiro. Mas era o aglomerado de barracas cobertas no centro da praça que atraía multidões. Em dias de mercado, mercadores itinerantes e fazendeiros locais vinham de um raio de quilômetros, vendendo de tudo, de rolos de tecido a sabões perfumados e bolas de cordel.

Sefia caminhava desviando de ambulantes que anunciavam manga e maracujá, sacas de café e peixes prateados. Através da multidão de compra-dores, ela notou fechos soltos em pulseiras e jaquetas com bolsas de moeda protuberantes, mas agora não era hora de roubar.

Ela passou pela banca de notícias, onde um membro da guilda dos jornalistas, uma mulher com um boné de aba curta e tarjas marrons nos braços, a saudou com mais notícias da confusão no exterior:

– Outro navio mercante perdido para o capitão Serakeen, perto da costa liccarina! A rainha ordenou uma escolta naval adicional para embaix-adores em viagem a Liccaro! – A seus pés, a lata de coleta tilintava com o

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plink! plink! de moedas de cobre.Sefia estremeceu. Enquanto Everica e Oxscini combatiam no sul, o

reino desértico e calcinante de Liccaro tinha seus próprios problemas: Ser-akeen, o Flagelo do Leste, e sua frota de piratas brutais. Ele aterrorizava os mares em torno da pobre ilha, pilhando cidades costeiras e extorquindo outras, atacando comerciantes e navios de suprimentos que traziam ajuda para um reino que não tinha um rei havia gerações. Ela e Nin mal con-seguiram escapar de um dos navios de guerra de Serakeen quando deix-aram Liccaro havia mais de um ano. Ela ainda se lembrava do fogo que irrompia dos canhões distantes, das explosões de água dos dois lados do barco.

Enquanto se dirigia à barraca do peleteiro, abrindo caminho em meio ao mar de pessoas em camisas de trabalho e calças velhas, vestidos compri-dos de algodão e casacos com abas pontudas, um brilho de ouro atraiu seu olhar: uma luz não maior que uma poça, ondulando sob os saltos das botas da multidão. Ela sorriu. Se olhasse com muita atenção, iria desaparecer, por isso ela contentou-se em saber que estava ali, nos limites de sua visão.

Sua mãe sempre lhe dissera que havia uma energia oculta no mundo, uma luz fervilhante logo abaixo da superfície. Sempre estava ali, girando invisível ao seu redor, e de vez em quando borbulhava, do mesmo modo que água brota de uma fissura na terra, um brilho dourado visível apenas àqueles especialmente sintonizados com ele.

Como sua mãe. Sua linda mãe, cuja pele acobreada assumia um tom de bronze nos meses de verão, que lhe dera a mesma compleição esguia, a mesma graça incomum, a mesma sensação especial de que havia mais no mundo que suas formas físicas.

Quando Sefia tinha levantado o assunto com Nin, sua tia ficara mal-humorada e em silêncio, recusando-se a responder a qualquer pergun-ta ou sequer a manter uma conversa casual pelo dia inteiro.

Ela nunca havia mencionado aquilo outra vez, embora isso não a tivesse impedido de vê-lo.

Quando a pequena poça de luz começou a se esvair, um homem pas-sou à sua frente. Cabelo negro rígido com traços grisalhos, a curva dos ombros acentuada por um suéter enorme. Ela olhou outra vez.

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Mas não era ele. A forma do crânio estava errada. A altura estava errada. Ele não compartilhava de suas sobrancelhas retas nem dos olhos de lágrima, negros como ônix. Tudo estava errado. Nunca era ele.

O pai dela estava morto havia seis anos; a mãe, dez, mas isso não a impedia de vê-los em estranhos completos. Não detinha a pontada em seu coração quando se lembrava, outra vez, que eles estavam mortos.

Ela sacudiu a cabeça e piscou rapidamente enquanto se aproximava do peleteiro, onde uma mulher irritada estava remexendo peles de chinchi-la com uma das mãos enquanto segurava o braço do filho pequeno com a outra. O menininho estava chorando. Ela o apertava com tanta força que seus dedos enrugavam a pele rosada da criança.

– Você nunca mais saia de minha vista! Os impressores vão pegar você! – Quando ela sacudiu o braço dele, seu corpo inteiro se agitou.

A peleteira, uma mulher simples com braços finos, debruçou-se sobre a banca, enfiando as mãos em uma pilha de peles de raposa.

– Soube que outro menino desapareceu esta semana, perto da costa – sussurrou ela, olhando para os lados para ver se havia alguém escutando. Semioculta atrás de sua braçada de peles, Sefia fingiu estar mais interessa-da nos envelopes de papel com os produtos na barraca ao lado, cada um pintado com a imagem das especiarias em seu interior: cominho, coentro, funcho, cúrcuma...

– Viu? – A voz da mãe ficou mais aguda. – Isso é terra de impressor!O pulso de Sefia se acelerou. Impressores. Até a palavra soava sinistra.

Ela e Nin ouviam fragmentos de notícias sobre eles havia alguns anos. Segundo a história, meninos estavam desaparecendo por todos os reinos insulares de Kelanna, um número grande demais para terem fugido. Havia conversas sobre garotos sendo transformados em assassinos. Você os recon-heceria se os visse, diziam as pessoas, porque eles teriam uma queimadura em torno do pescoço, como uma coleira. Essa era a primeira coisa que os impressores faziam – marcar os meninos com tenazes em brasa – de modo que todos tinham a mesma cicatriz.

Pensar nos impressores fez com que Sefia curvasse os ombros, perce-bendo de repente como estava nos exposta naquele mar de estranhos, que observavam e sussurravam. Ela olhou para trás e captou um vislumbre de

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vermelho entre as barracas. Casacos-vermelhos. Eles estavam vindo em sua direção.

Assim que a mulher e o filho se afastaram, Sefia jogou as peles em cima da banca. Enquanto a peleteira as examinava, Sefia se remexia com impaciência, olhando ao redor para a multidão agitada, levando a mão às costas com frequência para se assegurar de que o misterioso objeto rígido ainda permanecia dentro da mochila.

Alguém lhe deu um tapinha no ombro. Sefia enrijeceu e se virou.Atrás dela estavam os casacos-vermelhos.– Você viu esta mulher? – perguntou um deles.O outro estendeu uma folha de papel amarelado que se enrolava nas

extremidades. Um desenho esmaecido. Os traços da mulher procurada estavam parcialmente encobertos e indistintos, mas não havia como con-fundir a curva de seus ombros, a capa de pele de urso emaranhada.

Sefia sentiu como se tivesse sido jogada em águas escuras.– Não – disse baixo. – Quem é ela?O primeiro casaco-vermelho deu de ombros e seguiu para a barraca

de especiarias.– Você viu esta mulher?O outro deu um sorriso tímido.– Você é nova demais para se lembrar dela, mas há trinta anos ela

era a ladra mais famosa nas Cinco Ilhas. Eles a chamavam de a Chaveira. Alguém a algumas cidades daqui disse que a viu, mas quem sabe? Provavel-mente, ela já está morta há muito tempo. Não se preocupe.

Sefia engoliu em seco e balançou a cabeça afirmativamente. Ela reconhecia a história. Os casacos-vermelhos tornaram a se embrenhar na multidão.

A Chaveira.O velho apelido de Nin.Ela aceitou o primeiro preço oferecido pela peleteira e jogou as moe-

das de ouro na bolsa ao lado de um fragmento de quartzo rutilado e os últimos rubis de um colar que roubara em Liccaro. Aquilo seria suficiente? Tinha de ser.

Ela guardou a bolsa, esfregou o fundo da mochila mais uma vez e

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enfiou-se na multidão, acotovelando os outros compradores em sua pressa de deixar a cidade.

Quando chegou à floresta, começou a correr, quebrando arbustos, prendendo-se em galhos, desajeitada e lenta devido ao peso da mochila.

Teriam sido aqueles estalidos na folhagem o som de sua própria pas-sagem, ou os sons de uma perseguição?

Sefia olhou rapidamente para trás, imaginando o rangido de botas de couro, a batida de pés.

Ela correu mais rápido, o objeto duro e retangular batendo dolorosa-mente contra a base de sua espinha. A floresta ficou quente e úmida ao seu redor.

As notícias viajam rápido. Ela precisava chegar a Nin. Se os casa-cos-vermelhos sabiam que a mulher estava em Oxscini, não havia como dizer quem mais também sabia.

O acampamento estava apenas vinte metros à frente quando, sem avi-so, a floresta ao seu redor ficou em silêncio. Os pássaros pararam de cantar. Os insetos pararam de zumbir. Até o vento parou de sussurrar. Sefia con-gelou, todos os seus sentidos em alerta, o som de sua respiração alto como um serrote de lenhador na vegetação rasteira imóvel. Sua pele se arrepiou.

Então veio o cheiro. Não o fedor pútrido de esgoto, mas um cheiro limpo demais, como cobre. Um cheiro cujo gosto ela podia sentir. Um cheiro que ela podia sentir formigar na ponta de seus dedos.

Um cheiro que ela conhecia.Através das árvores, ela ouviu a voz de Nin, baixa e contida, a mesma

voz que usava quando estava enfrentando uma caça grande e agressiva, pronta para atacar.

– Então você finalmente me encontrou.

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© Topher Simon Photography

Traci Chee é uma geek de letras apaixonada pela arte dos livros e pelos livros de arte, poesia e arte com papel. Ela estudou literatura e escrita criativa na Universidade da Califórnia, e tem um diploma de mestrado em Artes pela Universidade Estadual de São Francisco. Traci cresceu em uma cidadezinha habitada por mais vacas do que pessoas e se sente mais à vontade em meio às montanhas, fazendo trilhas e descobrindo lagos escondidos no plateau. A leitora é seu livro de estreia.

Traci Chee

O selo jovem da V&R Editoras

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Sefia é uma sobrevivente. Depois que seu pai é brutalmente assassinado, ela foge para a selva com sua tia Nin, que a ensina a roubar, caçar e rastrear suas presas. Mas, quando Nin é seques-trada, deixando Sefia absolutamente sozinha, nenhuma das suas habilidades de sobrevivência poderá ajudá-la a descobrir o seu paradeiro, ou mesmo se sua tia ainda está viva. A única pista tan-to para o desaparecimento de Nin como para o assassinato de seu pai é um estranho objeto retangular que ele deixou para trás: um livro, item maravilhoso e desconhecido por sua sociedade de analfabetos. Com a ajuda dele e de um estranho misterioso, que esconde segredos nefastos, Sefia parte numa jornada para resgatar sua tia e descobrir o que realmente aconteceu no dia em que seu pai foi morto – e para punir os responsáveis.

Eu me senti enfeitiçada pela obra desde a primeira página. Mar de Tinta e Ouro: A leitora é uma fábula imersiva sobre piratas e pistoleiros, com uma escrita maestral.Traci Chee compôs um belo romance sobre o poder das histórias, povoado por personagens fantásticos em um uni-verso majestoso. Este é um livro que certamente ficará na sua memória.

– Renée Ahdie, autora do bestseller #1 do New York Times,A fúria e a aurora

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