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Capitalismo, violência e decadência sistémica http://www.ihu.unisinos.br/noticias/533025-capitalismo-violencia-e- decadencia-sistemica "Podemos incluir um pequeno acrescento entre parênteses à célebre expressão de Voltaire para afirmar que a civilização (burguesa) não suprimiu a barbárie e sim que a aperfeiçoou. O capitalismo não deve ser assumido como uma etapa em última instância positiva na marcha do progresso humano e sim como uma desgraça, como um desastre, uma degeneração cuja não existência teria evitado numerosas tragédias", escreve Jorge Beinstein, economista e professor na Universidade de Buenos Aires, em artigo publicado pelo sítio resistir.info, 07-07- 2014. Eis o artigo. Da Líbia à Venezuela, passando pela Síria, México, Ucrânia, Afeganistão ou Iraque, no que já decorreu da década actual presenciámos o desdobramento planetário permanente da violência directa ou indirecta (terciarizada) dos Estados Unidos e dos seus sócios-vassalos da NATO. Toda a periferia foi convertida no seu mega objectivo militar. A onda agressiva não se acalma, em alguns casos combina-se com pressões e negociações mas a experiência indica que o Império não agride para se posicionar melhor em futuras negociações e sim que negoceia, pressiona, com o fim de conseguir melhores condições para a agressão. Estas intervenções quando têm "êxito", como na Líbia ou no Iraque, não concluem com a instauração de regimes coloniais "pacificados", controlados por estruturas estáveis, como ocorria nas velhas conquistas periféricas do Ocidente, e sim com espaços caóticos dilacerados por guerras internas. Trata-se da emergência induzida de sociedades-em-dissolução, da configuração de desastres sociais como forma concreta de submetimento, o que coloca a dúvida acerca de se nos encontramos diante de uma diabólica planificação racional que pretende "governar o caos", submergir as populações numa espécie de indefensão absoluta convertendo-as em não-sociedades para assim saquear seus recursos naturais e/ou anular inimigos ou competidores... ou, ao contrário, trata-se de um resultado não necessariamente buscado pelos agressores, expressão do seu fracasso como amos coloniais, da sua alta capacidade destrutiva associada à 1

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Capitalismo, violncia e decadncia sistmicahttp://www.ihu.unisinos.br/noticias/533025-capitalismo-violencia-e-decadencia-sistemica

"Podemos incluir um pequeno acrescento entre parnteses clebre expresso deVoltairepara afirmar que a civilizao (burguesa) no suprimiu a barbrie e sim que a aperfeioou. O capitalismo no deve ser assumido como uma etapa em ltima instncia positiva na marcha do progresso humano e sim como uma desgraa, como um desastre, uma degenerao cuja no existncia teria evitado numerosas tragdias", escreveJorge Beinstein, economista e professor naUniversidade de Buenos Aires, em artigo publicado pelo stioresistir.info, 07-07-2014.Eis o artigo.Da Lbia Venezuela, passando pela Sria, Mxico, Ucrnia, Afeganisto ou Iraque, no que j decorreu da dcada actual presencimos o desdobramento planetrio permanente da violncia directa ou indirecta (terciarizada) dos Estados Unidos e dos seus scios-vassalos daNATO. Toda a periferia foi convertida no seu mega objectivo militar. A onda agressiva no se acalma, em alguns casos combina-se com presses e negociaes mas a experincia indica que oImpriono agride para se posicionar melhor em futuras negociaes e sim que negoceia, pressiona, com o fim de conseguir melhores condies para a agresso.Estas intervenes quando tm "xito", como na Lbia ou no Iraque, no concluem com a instaurao de regimes coloniais "pacificados", controlados por estruturas estveis, como ocorria nas velhas conquistas perifricas do Ocidente, e sim com espaos caticos dilacerados por guerras internas. Trata-se da emergncia induzida de sociedades-em-dissoluo, da configurao de desastres sociais como forma concreta de submetimento, o que coloca a dvida acerca de se nos encontramos diante de uma diablica planificao racional que pretende "governar o caos", submergir as populaes numa espcie de indefenso absoluta convertendo-as em no-sociedades para assim saquear seus recursos naturais e/ou anular inimigos ou competidores... ou, ao contrrio, trata-se de um resultado no necessariamente buscado pelos agressores, expresso do seu fracasso como amos coloniais, da sua alta capacidade destrutiva associada sua incapacidade para instaurar uma ordem colonial ("incapacidade" decorrente da sua decadncia econmica, cultural, institucional, militar). Provavelmente encontramo-nos diante da combinao de ambas as situaes.Tambm possvel supor que oImprio, na sua decadncia, se encontra prisioneiro de um emaranhado de interesses polticos, financeiros, mafiosos... conformando uma dinmica auto-destrutiva imparvel que o obriga a desenvolver operaes irracionais se observamos o fenmeno com um certo distanciamento histrico, mas completamente racionais se reduzimos a observao ao espao da razo instrumental directa dos conspiradores, ao seu micromundo psicolgico (a razo da loucura como razo de estado ou astcia mafiosa impondo-se racionalidade no seu sentido mais amplo, superior).Ainda que esses desastres no representem necessariamente aces de verdugos impiedosos a destrurem parasos perifricos, o capitalismo uma totalidade global e o que aparece como a decadncia do centro imperial a manifestao decisiva mas parcial de um fenmeno planetrio que inclui a periferia presa na armadilha da sobredeterminao burguesa universal (decadente) das suas sociedades. A operao de destruio da Lbia lanando sobre o seu territrio ondas de mercenrios e bombardeamentos pde triunfar graas degradao do regime kadafista; o golpe neonazi de Fevereiro de 2014 naUcrniacapturou o governo de uma "repblica" resultante do desastre sovitico que a havia submergido num gigantesco apodrecimento seguido pela instaurao de um capitalismo mafioso; a desestabilizao da Venezuela orquestrada pelos Estados Unidos apoia-se em sectores das classes mdias conduzidos pela velha burguesia local que no foi eliminada depois de quinze anos de "revoluo" ("bolivariana" autoproclamada "socialista") eternamente a meio caminho... essas elites no foram varridas do cenrio ainda que fossem irritadas, enfurecidas pela ascenso social das classes baixas.Tudo isto nos conduz necessidade de estabelecer o momento da histria do capitalismo em que nos encontramos. Trata-se do bordel sangrento global preldio de uma nova acumulao primitiva bero de um futuro super-capitalismo ou dos golpes finais, desesperados, de uma civilizao que entrou no ocaso?Proponho responder a essa pergunta utilizando aquela velha e to repetida frase deChurchillem plenaSegunda Guerra Mundialquando, ao terminar a batalha deEl Alamein, assinalou que esse facto era no "o comeo do fim (da guerra) e sim o fim do comeo" de um processo muito mais importante, decisivo. Encontramo-nos actualmente na presena do fim do comeo , vai-se concluindo a etapa preparatria do declnio ocidental que se prolongou durante vrias dcadas e comea a emergir o comeo do fim , o desmoronamento do capitalismo como civilizao que, como outras civilizaes em declnio, provavelmente percorrer uma trajectria temporal complexa de durao indeterminvel de antemo.Ainda que no possa deixar de assinalar diferenas decisivas com as civilizaes anteriores, como seu carcter planetrio (no limitado a uma regio), a massa de populao includa no processo (actualmente umas sete mil milhes de pessoas e no apenas umas poucas dezenas ou centenas de milhes) e o descomunal desenvolvimento das suas foras produtivas, com capacidade industrial e militar para destruir totalmente a vida no planeta. O que coloca de maneira radicalmente distinta o opo que enfrentaram todas as decadncias de civilizaes: superao ou afundamento num longo desastre do qual emergia mais adiante uma nova civilizao no espao anterior ou imposta por uma fora externa. Isto no a decadncia daBabilniadevastada pelos pntanos difusores de malria gerados pelo seu prprio desenvolvimento, nem da Roma imperial esmagada pelo parasitismo e a hipertrofia militar, resultado da sua dinmica imperialista marchando em direco ao abismo enquanto boa parte do resto da humanidade ignorava esses factos.[1]Violncia e decadncia sistmicaO fenmeno sobredeterminante a decadncia, demonstrada por numerosos indicadores como o declnio a longo prazo (desde os anos 1970) da taxa de crescimento econmico global activada pelo arrefecimento tendencial do crescimento dos pases centrais e a seguir pelo acompanhamento desta tendncia por um processo de hipertrofia financeira que se articula com um aparelho parasitrio sem precedentes: consumista, militar e burocrtico.Encontramo-nos diante de sociedades imperiais to decadentes que j no podem mobilizar militarmente a sua juventude como nosculo XX, ainda que a sua capacidade financeira e os seus avanos tecnolgicos lhe permitam contratar mercenrios em substituio das foras operativas tradicionais (a oferta de lumpens proveniente de todos os continentes directamente proporcional ao progresso da decadncia), utilizar armas como os drones e outros artefactos mortferos super refinados que estabelecem um fosso tcnico descomunal entre agressores e agredidos e, finalmente, esmagar com manipulaes mediticas suas vtimas directas e o resto do mundo.Estas "vantagens" so ao mesmo tempo expresses de poder e de fraqueza, de capacidade destrutiva mas tambm de descontrole ideolgico das suas prprias sociedades, da ilegitimidade interna das suas operaes, o que somado sua deteriorao econmica impede-os de passar da destruio reconstruo colonial dos territrios conquistados.As transformaes burguesas das sociedades europeias haviam gerado, desde os fins do sculoXVIII, a possibilidade de integrar o conjunto da populao s suas diferentes aventuras militares. Desse modo, o cidado-soldado e a guerra de massas substituram o mercenrio e os exrcitos das aristocracias. Os assassinos a soldo cederam lugar aos assassinos voluntrios ou forados que entregavam a sua vida no por dinheiro e sim pela defesa da "ptria", da "liberdade", etc.Mas a decadncia do capitalismo e a sua transformao, depois do aggiornamento burgus da China e do derrube daURSS, em sistema nico (ou seja, em dominao planetria, visivelmente amoral das elites parasitrias) deitou abaixo os mitos, as legitimaes que permitiam aos estados fabricar causas nobres para enviar morte o cidado comum.A perda de legitimidade do aparelho militar ocidental surge como um trao decisivo da decadncia, mas a reproduo imperialista continua e o exerccio da violncia contra a periferia retoma a velha tradio dos exrcitos mercenrios.Agora a propaganda do poder junto s suas populaes no tem como objectivo arrast-las ao campo de batalha (operao invivel) e sim, antes, obter a sua aprovao passiva ou diluir a sua recusa diante de aventuras fisicamente distantes apresentadas como fenmeno virtual, como um elemento mais do entretenimento brindado pela televiso e outros meios de comunicao.O desdobramento blico foi teorizado pela chamadaGuerra de Quarta Gerao, resultado das reflexes no alto nvel militar dos Estados Unidos posteriores derrota do Vietname, visualizada como "guerra assimtrica" onde a fora inimiga com baixo nvel tecnolgico e reduzida potncia de fogo, mas bem integrada populao, pde derrotar o exrcito imperial possuidor de um elevado nvel tecnolgico e um gigantesco poder de fogo.A nova doutrina militar aponta no para a simples destruio da fora militar inimiga e sim, principalmente, para o conjunto da sociedade que a sustenta. A desintegrao social (econmica, moral, cultural, institucional) passa a ser o objectivo procurado e esse processo pode-se dar ou no com intervenes directas e sim, antes, com combinaes variveis de intervenes externas (militares, mediticas, econmicas, etc) e aces de desestabilizao interna.Estabelece-se assim uma ampla variedade de cenrios de agresso. Num extremo podemos localizar as guerras do Afeganisto e Iraque, numa zona intermdia a Lbia, a Sria ou a Jugoslvia e, no outro extremo, as chamadas intervenes suaves ou revolues coloridas como no Paraguai, Honduras ou Ucrnia. Todas elas implicam o desenvolvimento intenso de aces violentas no comeo da operao, em algum momento da mesma ou como resultado da vitria imperialista. Mas estas guerras de configurao varivel no resolvem o problema da dominao colonial da periferia, o caos instalado entorpece, encarece ou por vezes torna impossveis os saqueios sistemticos.O atalho daGuerra de Quarta Geraoaparece como o que realmente : o mximo possvel de agresso num contexto de debilidade estratgica do agressor cujo resultado no s a caotizao perifrica como tambm a degradao interna. As operaes mafiosas em direco ao exterior acabam por consolidar prticas mafiosas dentro do aparelho dominante do Imprio, onde se propagam as camarilhas parasitrias, as tendncias irracionais, as loucuras elitistas, as rupturas das regras de jogo institucionais.Comeo do fim: o mundo depois de 2008-2013O sexnio 2008-2013 marca a transio entre o declnio relativamente suave e controlado do sistema, iniciado no princpio dos anos 1970, e a sua degradao geral de que estamos a presenciar os primeiros passos.A crise desencadeada entre fins dos anos 1960 e princpios dos anos 1970 no foi superada como as anteriores, atravs de uma grande onda depressiva destruidora de empregos e empresas que, reduzindo salrios e concentrando a produo e a procura solvente, disparava um novo ciclo ascendente da economia. A era das "crises cclicas", descritas porMarx, havia concludo. Ainda queMarxexplicasse que essas crises recorrentes iriam acumulando desordem no sistema at que as foras entrpicas adquirissem uma dimenso tal que j nenhuma reconstruo capitalista seria possvel. Ficava assim prognosticada a crise geral do capitalismo, o esquema terico decorrente da lgica da sua dinmica de acumulao O que de modo algum podia ser prognosticado era o seu desenvolvimento histrico concreto, seus tempos, seus protagonistas de carne e osso, os atalhos e inovaes sociais que permitiram adiar ou precipitar o desenlace.A avaliao prospectiva deMarxera um cenrio muito geral que dava cabimento a uma ampla gama de futuros possveis. No se tratava de uma profecia apocalptica na qual se estabelece uma data ou como calcul-la, descries precisas de actores e coreografia, etc. Mas esse esquema terico permitia aMarxeEngelsexplicar, por exemplo, que "dado um certo nvel de desenvolvimento das foras produtiva, surgem foras de produo e de meios de produo tais que nas condies existentes provocam catstrofes, j no so mais foras de produo e sim e destruio"[2], o que abria a reflexo acerca do carcter auto-destrutivo da civilizao burguesa na sua etapa decadente mais avanada.E isso comeou a ser inegvel em torno de 2008-2013, ainda que muito antes desse perodo fossem aparecendo sinais de alerta a respeito quase sempre ignorados pelos grandes meios de comunicao e pelas cincias sociais. Quando se referiam a possveis desastres ambientais, sanitrios ou polticos atribuam-nos a manejos irracionais corrigveis no interior do sistema. A isso apegaram-se "a partir da esquerda" alguns adoradores masoquistas do capitalismo, propondo uma espcie de eternizao dos seus ciclos, tentando destacar na crise em curso os sinais da prxima recuperao do sistema. Mas esses sinais eram puras fantasias ou ento ladainhas conservadoras baseadas em que "sempre" o capitalismo havia conseguido superar suas crises, naturalmente custa dos trabalhadores o que normalmente entristecia o auditrio (e no muito o orador).Dentre os variados factores da decadncia destacam-se dois que so decisivos: a degradao (e hipertrofia) financeira e a degradao (e hipertrofia) militar.A partir de 1990 (aproximadamente), enquanto oProduto Mundial Brutovinha decrescendo suavemente em progresso aritmtica (desde os anos 1970), a massa financeira comeou a crescer em progresso geomtrica. Os produtos financeiros derivados, sua espinha dorsal, que nos fins dos anos 1990 representavam umas duas vezes oPBM, em 2008 passaram a representar umas 12 vezes oPBM mas a partir da a expanso estancou e tendeu a decrescer pouco a pouco.Durante a sua ascenso a especulao financeira foi a muleta parasitria que permitiu aos consumidores, empresas e estados doPrimeiro Mundocontinuarem a gastar e investir apesar de os rendimentos marginais da avalanche financeira serem decrescentes em termos de crescimento do produto bruto dos pases centrais. Cada vez era precisa mais droga financeira para obter cada vez menos expanso econmica at que finalmente, em 2008, o mecanismo quebrou: o peso financeiro tornou-se insustentvel e desencadeou-se um rodopio de auxlios estatais ao sistema financeiro a fim de impedir a sua derrocada.Mas estes auxlios no reactivavam a economia. Apenas travavam a derrocada financeira, fazendo aumentar as dvidas pblicas at o ponto de o estado norte-americano ter estado duas vezes beira do incumprimento (default), enquanto as dvidas pblicas mais as privadas do Japo chegaram em 2013 a 520% doPIB, a 510% na Gr-Bretanha, etc. A partir da, os auxlios esgotaram-se e oPrimeiro Mundoentrou no que, no melhor dos casos para ele, poderia ser descrito como um longo perodo de estancamento, recesses e crescimentos anmicos que no devem ser pensados como um planalto de arrefecimento estvel da produo, do consumo e do emprego e sim como um tobog descendente.O crescimento zero ou o declnio, ainda que suave, significam o aumento tendencial do desemprego e em consequncia a entrada num complexo fenmeno de desintegrao social.Por sua vez, a militarizao dos Estados Unidos no terminou com o fim daguerra fria. Aps um breve estancamento em fins dos anos 1990 recomeou a expanso das despesas militares. Foi de tal modo que em 2012 o seu volume real (somando todas as verbas com finalidade militar do estado, no apenas as doDepartamento da Defesa) chegou a um nmero equivalente a cerca de 9% doProduto Interno Bruto [3]. Aquilo que poderamos considerar como rea militar e de segurana deslizou do passado "clssico", povoado por militares e agentes profissionais de tipo tradicional adstritos directamente administrao pblica, para uma nova etapa com participao crescente de mercenrios, estruturas privadas contratadas pelo estado e uma multido de organizaes pblicas e privadas informais oscilando entre a legalidade e a ilegalidade, misturadas com negcios clandestinos (drogas, prostituio, trfico de armas, etc).Guerra de Quarta Gerao, lumpen-burguesia financeira e lumpen-militarismo converteram-se no ncleo duro ideolgico fsico de uma elite imperial degradada que alguns autores assinalam como lumpen-imperialista[4].Mas assim como a mega bolha financeira primeiro escorou o funcionamento do sistema e a seguir converteu-se num salva-vidas de chumbo, a degenerao militarista-mafiosa e sua doutrina nova surgiram como a tbua de salvao de estruturas militares e de inteligncia ineficazes diante de uma periferia aparentemente pronta a ser devorada mas que lhes escapava das mos. Contudo, essas esperanas eram ilusrias. A nica coisa que conseguiram foi destruir pases, fracassar na tentativa ou ambas as coisas ao mesmo tempo, acumulando despesas e dfices fiscais: a criminalidade converge com a estupidez.A "transio 2008-2013" significou uma mudana fundamental nas formas da guerra (sua degradao radical) que deixou a descoberto o carcter da mutao em curso do conjunto do capitalismo. Em meados dos anos 1950 e fazendo referncia ento recente prtica blica nazi,Johan Huizingaassinalava que historicamente a guerra sempre havia feito parte das civilizaes ou culturas "uma vez que uma comunidade (em guerra) reconhecia a outra (contra a qual fazia a guerra) como humana... e separava claramente e de maneira expressa a guerra da paz, por um lado, e da violncia criminosa, por outro. A teoria da guerra total destacava o historiador renunciou ao ltimo resto ldico da guerra (ou seja, a toda regra de jogo) e com isso cultura, ao direito e humanidade em geral"[5].No meu entender, a ruptura hitleriana em relao prtica e teoria da guerra, ou seja, a "guerra total" e seus genocdios, foi uma antecipao, um primeiro ensaio em plena crise capitalista do que actualmente surge comoGuerra de Quarta Gerao. No primeiro caso tratou-se de uma monstruosidade precoce, pioneirismo "alemo" mas com antecedentes na cultura mais reaccionria dos Estados Unidos. Autores comoDomenico Losurdoestabeleceram de maneira rigorosa as evidentes razes ideolgicas estado-unidenses do nazismo[6]. Esse desastre exprimia a doena de uma civilizao que ainda dispunha de reservas sistmicas (morais, produtivas, institucionais, etc) para recompor-se e que ainda no havia sofrido uma metstase geral. O tumor hitleriano foi extirpado parcialmente e o mal pde sobreviver ocultando-se nas sombras espera de uma nova oportunidade. Nos julgamentos deNuremberga, os crimes de guerra (a violao das regras do jogo da guerra moderna) foram condenados selectivamente da maneira difusamente contida.Em fins dos anos 1930Hermann Rauschningescreveu uma obra essencial para entender o funcionamento do fenmeno: "La revolucin del nihilismo". O autor acertou ao assinalar que "a essncia da dominao nazi o niilismo", a negao simultaneamente criminosa e suicida da realidade humana, mas equivocou-se completamente quando prognosticou que "esse fanatismo produzido e difundido pela maquinaria do poder to vazio, to artificial e inautntico que todo esse gigantesco aparelho poderia ruir de um dia para o outro por causa de um s acontecimento sem deixar qualquer rastro de vida autnoma"[7].Rauschningno soube (ou no quis) aprofundar o bisturi at o fundo, se o fizesse teria sido obrigado a colocar no banco dos rus o conservadorismo burgus no seu conjunto e, a partir da, os aspectos destrutivos (e auto-destrutivos) da civilizao ocidental qual se orgulhava de pertencer.Agora, quando vemos o cancro fascista propagar-se tranquilamente por toda a Europa ao ritmo da crise, desde o avano irresistvel daFrente Nacionalem Frana at a vitria neonazi na Ucrnia, passando pela Holanda, Blgica, Crocia, Hungria, os pases blticos, Grcia, etc, no podemos deixar de constatar o enraizamento profundo do mesmo no s na tragdia dos anos 1920-1930-1950 como tambm em histrias muito mais antigas, em fanatismos religiosos, em genocdios coloniais e outras prticas sociais de grande crueldade (o nazismo clssico no era superficial nem inautntico, fundia suas razes na longa trajectria criminal do Ocidente).Mas o mais significativo e terrvel foi a reinstalao sem maiores escndalos da doutrina hitleriana da guerra total, rebaptizadaGuerra de Quarta Geraoe por vezes adocicada como "golpes gentis" ou "suaves" ou sob a delirante apresentao de guerras ou bombardeamentos "humanitrios". Agora j no se trata de uma experincia pioneira e em certo sentido menos surpreendente, "anormal", e sim de um vale-tudo aceite pelo conjunto das elites imperialistas. O facto de que a forma capitalista de fazer a guerra haja sofrido tal transformao est estreitamente vinculado (faz parte da) transformao do capitalismo num sistema destruidor de foras produtivas estendendo-se ao contexto ambiental com suas terras, mares, montanhas, animais, etc a apontarem para a aniquilao de todo o patrimnio histrico da humanidade, de toda a acumulao de civilizaes.Retorno origem?Poderamos estabelecer paralelos entre a conjuntura actual e as origens da modernidade.Robert Kurzps em evidncia as origens militares do capitalismo. Por volta do sculo XVI, segundoKurz, "no foi a fora produtiva e sim, pelo contrrio, uma contundente fora destrutiva que abriu o caminho modernizao, a saber, a inveno das armas de fogo. A produo e mobilizao dos novos sistemas de armas no eram possveis no plano de estruturas locais e descentralizadas que at ento haviam marcado a reproduo social, requeriam sim, em diversos planos, uma organizao completamente nova da sociedade. As armas de fogo, sobretudo os grandes canhes, j no podiam ser produzidas em pequenas oficinas, como as pr-modernas armas de ponta e gume. Por isso desenvolveu-se uma indstria de armamentos especfica, que produzia canhes e mosquetes em grandes fbricas"[8].

Um bom exemplo disso a presena em pleno sculo XVI do clebreArsenal de Veneza, fbrica militar muito admirada na sua poca, provavelmente a primeira indstria moderna, que inspirou muitos empreendimentos militares e civis posteriores e cuja organizao produtiva baseada numa diviso eficaz de tarefas esboava o modelo que vrios sculos depois, no incio da revoluo industrial, foi descrito porAdam Smith.Foi efectivamente em torno dos desenvolvimentos militares que se foram gerando redes comerciais e financeiras que permitiam aos prncipes e demais senhores da guerra lanarem suas aventuras.As mesmas estavam destinadas s lutas intestinas das aristocracias e represso das massas camponesas. Contudo, o seu objectivo principal era a pilhagem da periferia, o que disparou decisivamente e alimentou durante sculos a emergncia e consolidao do capitalismo, seus mercados centrais, sua cincia, sua arte e sua expanso industrial e tecnolgica (existe, por exemplo, uma abundante literatura quanto incidncia da inundao de ouro e prata proveniente das colnias americanas na transformao burguesa da Europa)[9].Foi a aliana militar-parasitria, entremeada de mercenrios, aristocracia militarizada, comerciantes-bandidos, usurrios de alto nvel, etc que constituiu a plataforma de lanamento da conquista da periferia, permitindo que uma relativamente pequena economia guerreira realizasse uma pilhagem desmesurada em relao sua dimenso inicial. No sculo XVI o produto bruto do Ocidente apenas superava os 10% do que poderamos considerar como produto bruto mundial, contra 23%-24% para a China ou 27%-28% para a ndia[10].Houve uma primeira tentativa: asCruzadas, quando aproximadamente nos sculos XII e XIII os ocidentais lanaram uma sucesso de invases ao rico Oriente Prximo, ocupando parte do seu territrio[11].Mas essa colonizao fracassou apesar da enorme crueldade aplicada. Os povos invadidos dispunham de uma capacidade militar que lhes permitiu expulsar o invasor por meio do que poderamos chamar guerra de longa durao. A disparidade militar entre invasores e invadidos no foi suficientemente grande para garantir a derrota definitiva das vtimas.A situao foi-se alterando a partir do sculo XV e experimentou uma grande viragem no sculo XVI, quando o Ocidente adquiriu uma superioridade tcnico-militar decisiva sobre o resto do mundo.

Abatalha de Lepanto(1571) provou a superioridade tcnica ocidental sobre oImprioOtomano. A eficcia doArsenal de Venezaesteve por trs dessa vitria[12]. Meio sculo antes os espanhis haviam utilizado sua esmagadora superioridade tcnica para arrasar oImprio Asteca, que no conhecia a plvora nem as armas metlicas.Essa superioridade militar do Ocidente no foi produto do acaso, apoiou-se no vertiginoso desenvolvimento da sua cincia militar. Durante os sculos XV e XVI, a engenharia militar esteve no centro noRenascimentoeuropeu, herdava a engenharia militar medieval que por sua vez mantinha vnculos com a cincia militar da antiguidade greco-romana.Bertrand Gillerelata que "quando em 1328Felipe V de Valoisconcebeu o projecto de partir para as cruzadas,Guyde Vigevanoconverteu-se no seu conselheiro militar e escreveu para o rei um tratado sobre mquinas de guerra ... que pode ser considerado como um dos principais antecedentes da cincia militar posterior".Gilledestaca que "certas ilustraes do tratado apresentam analogias surpreendentes com algumas imagens de antigos manuscritos gregos e romanos" que, junto com outros desenvolvimentos medievais, demonstram segundo o autor uma clara continuidade cientfico-tcnica no tema militar desde a Grcia e Roma at chegar aos sculos XV e XVI[13].A continuidade histrica da "procura" (o militarismo) para essa cincia remonta primeiro Idade Mdiaeuropeia. Uma das suas caractersticas principais foi o sobredimensionamento dos seus dispositivos blicos, a excessiva proliferao de organizaes militares conduzidas por prncipes aspirantes a imperadores e titulares de "imprios" comoCarlos Magno, passando por senhores da guerra de toda dimenso, bandos de mercenrios, etc. Militarismo feudal entrelaado historicamente com aAntiguidadeeuropeia guerreira e imperialista, constatemos s que, como observaJames O'Donnellem relao ao imprio romano j em decadncia: "depois de chegar ao trono no ano 284 o imperadorDioclecianoe seus sucessores puderam restaurar as fronteiras romanas e a ordem romana multiplicando por cinco ou dez o nmero de soldados e funcionrios.Dioclecianoaumentou o nmero de soldados para 400 mil e mais tarde chegou a alcanar os 650 mil"[14].No seu livro"Matana e cultura" [15]Victor Hansondesenvolve a longa trajectria belicista doOcidentee, ao referir-se s suas vitrias militares do sculo XVI, assinala que "o dinamismo militar europeu era um contnuo daAntiguidade clssica, no uma consequncia casual da idade da plvora e do descobrimento doNovo Mundo... desde a Grcia at o presente... as afinidades demonstradas pelas sociedades ocidentais na sua forma de fazer a guerra tornam-se assombrosamente duradouras" e acrescenta a seguir: "as falanges macednias, tal como o exrcito deCortes, a frota crist que combateu emLepantoe a companhia de fuzileiros britnicos que defendeuRorque's Drift(1879, frica, as tropas coloniais foram derrotadas pelos zulus) dispunham de um armamento muito superior ao dos seus adversrios".No se trata s de superioridade tcnica e sim da extrema crueldade na sua "forma de fazer a guerra", o que leva o autor (apesar da sua admirao para com o Ocidente) a assinalar que: "alguns estudiosos equiparamAlexandre MagnoaCsar... ou aNapoleo, com os quais compartilhava sua vontade de ferro, seu gnio militar inato e a busca de um imprio mais poderoso do que os recursos naturais da sua terra nativa permitia.Alexandre, com efeito, mantm afinidades com eles, mas com ningum se parece mais que comAdolf Hitler". O paralelo inevitvel entre as falanges gregas, as legies romanas, os cruzados, as tropas coloniais espanholas, inglesas, francesas e os exrcitos hitlerianos estabelece o fio condutor "ocidental" de uma longa sucesso de guerras, conquistas e matanas.A acumulao primitiva do capitalismo baseou-se, com xito, no saqueio desmesurado da periferia e com recursos naturais gigantescos, relativamente "infinitos" dado o nvel tcnico e a capacidade de rapina dos imperialistas europeus daquele tempo. Mas essa desmesura impossvel actualmente, o planeta demasiado pequeno para as necessidades do que seria um novo processo de acumulao capaz de potenciar o parasitismo ocidental at gerar uma espcie de super-capitalismo global.As potncias centrais so suficientemente grandes para destruir o planeta (o que significaria sua auto-destruio) e por isso, por causa do seu gigantismo, que no se podem salvar, iniciar um novo ciclo ascendente devorando recursos humanos e naturais, ainda que para sobreviver como imprio precisem alimentar-se das suas vtimas. Isto assinala uma diferena qualitativa essencial com o que ocorreu h cinco sculos. Agora a violncia imperialista no a de um monstro vigoroso, na sua infncia ou juventude, e sim a de um monstro velho e obeso.Ocidente preciso associar conceitos artificialmente dissociados como "civilizao ocidental", "civilizao burguesa", "Imprio" (ocidental) e "capitalismo". O capitalismo surge como um fenmeno histrico com razes geogrficas ocidentais bem delimitadas que carregavam uma pesada herana cultural especfica. OOcidenteemergiu como um empreendimento imperialista colectivo, agrupando vrios estados, expandindo-os globalmente e ao mesmo tempo envolvidos em ferozes disputas intestinas. A unificao chegou, aps um longo percurso de muitos sculos, no final daSegunda Guerra Mundialsob o comando de uma super-potncia no europeia: os Estados Unidos.O irromper da guerra de 1914, mas especialmente a ruptura russa de 1917, assinalou o incio do declnio ocidental ainda que a tendncia tenha parecido reverter-se nos anos 1990 com o derrube daURSSe em certo sentido, antes, a partir da reconverso capitalista da China. Mas no foi assim, da desintegrao sovitica aps uma dcada de desastres surgiu a Rssia como potncia militar-energtica cada vez mais autnoma ainda que mantendo laos comerciais e financeiros estreitos com oOcidentee do aburguesamente chins no nasceu um pas subdesenvolvido dcil aos interesses norte-americanos como a ndia ou o Mxico e sim uma potncia perifrica tambm com importantes margens de autonomia.A deteriorao geral da dominao ocidental, da sua hierarquia imperialista, ou seja, do capitalismo como sistema mundial, engendrou o fenmeno da despolarizao, do descontrole perifrico. A China e a Rssia mas tambm o Iro, e os jogos mais ou menos independentes de alguns estados "progressistas" daAmrica Latinailustram o processo. Os brbaros do sculo XXI organizam-se sem tutela romana ou a negociarem com a Roma moderna j no como simples vassalos, mas essa Roma no pode reproduzir-se como tal, seu parasitismo no pode sobreviver sem os tributos crescentes dos seus sbditos perifricos, necessita cada vez mais sangue das suas vtimas (petrleo barato, ltio, ouro, cobre, salrios miserveis, maiores vantagens comerciais, mega-transferncias financeiras, etc) enquanto as vtimas vo encontrando caminhos para reduzir a pilhagem graas precisamente ao enfraquecimento do parasita (o que no impede em certos casos que brbaros pilhem-se entre si).Algumas precises podem nos ajudar a entender melhor o que est a ocorrer.Em primeiro lugar, o facto de que a consolidao dos estados burgueses centrais tem estado (e continua a estar) estreitamente associada expanso e consolidao colonial, extraco macia de riquezas da periferia, permitiu e continua a permitir a integrao das sociedades centrais e a permanncia do seu guardio estatal-militar. O fim ou o enfraquecimento grave da referida explorao assinalaria o eclipse desses estados e das suas bases sociais.Em segundo lugar, a comprovao de que o capitalismo um sistema baseado num encadeamento de hierarquias fortemente autoritrias, desde a empresa em ascenso at chegar ao centro do poder mundial atravs de uma complexa articulao de estados, grupos econmicos, instituies internacionais, meios de comunicao, etc. A hierarquia imperialista do capitalismo inerente ao mesmo, a sua forma histrica, concreta, de reproduo. Nunca foi uma articulao pacfica e sim um conjunto violento e instvel onde a autoridade ganha e conservada com guerra, presses, armadilhas, etc. Mas at ao fim daSegunda Guerra Mundialessa hierarquia jamais pde estruturar-se em torno de um nico centro estatal, super-imperialista, de poder. Desde o incio da modernizao e sua sombra colonial encontramo-nos perante sucessivas rivalidades e guerras inter-imperialistas.A fantasia da globalizao regida por uma s potncia mundial, apesar de insinuar concretizar-se nos longnquos anos 1990, foi-se desvanecendo na dcada seguinte. A submisso da Europa e do Japo chefia estado-unidense continua a basear-se na degradao de ambos os scios menores; factos recentes como os da Lbia, Sria e Ucrnia so bons exemplos disso. Mas acontece que o chefe imperial tambm se degrada, o que introduz a incerteza quanto ao futuro dessa convergncia central. Pelo seu lado, a periferia vai-se descontrolando precisamente quando mais necessrio o seu controle (super-explorao) para a reproduo do parasita. Em consequncia o imprio enfurece-se, desespera-se, resgata toda a sua memria racista no s para expulsar ou reduzir escravido os intrusos perifricos que se instalam nos territrios imperiais como tambm para converter seus pases de origem em zonas de caa livre.Esta ltima etapa ilumina toda a histria anterior do sistema, destri seus mitos decisivos, deixa a descoberto sua falsidade essencial. Sobretudo o mito do capitalismo como progresso, como etapa superior na sucesso de civilizaes, ou seja, como a mais potente negao da barbrie.Boa parte das ideologias anti-capitalistas dos sculos XIX e XX apresentavam a superao do capitalismo como uma espcie de continuidade a um nvel superior, de negao inicial, revolucionria, apoiada nos xitos "positivos" do velho mundo (o projecto de ruptura albergava condicionamentos culturais que asseguravam a reproduo de aspectos decisivos da civilizao burguesa).Mas a degenerao em curso desse sistema retira o vu ideolgico e mostra o seu verdadeiro rosto. Os feitos aparentemente positivos da sua tecnologia (em que o captulo militar decisivo) surgem inscritos num contexto de conquistas coloniais com centenas de milhes de assassinatos, com liquidaes de criaes culturais, qualificadas com desprezo como atraso ou subdesenvolvimento, depredando at extino uma ampla variedade de recursos naturais.Podemos incluir um pequeno acrescento entre parnteses clebre expresso deVoltairepara afirmar que a civilizao (burguesa) no suprimiu a barbrie e sim que a aperfeioou. O capitalismo no deve ser assumido como uma etapa em ltima instncia positiva na marcha do progresso humano e sim como uma desgraa, como um desastre, uma degenerao cuja no existncia teria evitado numerosas tragdias. O balano histrico da sua evoluo globalmente negativo, muitos dos seus progressos cientficos e tecnolgicos teriam sido obtidos seguindo provavelmente outros ritmos e caminhos mas em contextos sociais menos terrveis.Hegel, nas suas lies de filosofia da histria, estabelecia que o desenvolvimento da liberdade, componente da marcha daCivilizaoentendida como encadeamento de civilizaes, como a evoluo do progresso universal, nascia penosamente noOriente(ou seja, na periferia) para realizar-se integralmente no Ocidente com a vitria mundial da sua civilizao, da modernidade burguesa[16]. A soberba eurocntrica impedia-o de perceber que a liberdade perifrica (embrionria, em desenvolvimento) havia sido arrasada, abortada, liquidada por umOcidenteparasitrio e depredador concretizando a maior matana da histria humana e sua civilizao sanguinria s podia afirmar-se repetidamente por meio da fora bruta, dos seus dispositivos militares contra os povos oprimidos da periferia (e quando foi necessrio tambm contra suas prprias populaes como o demonstrou o fascismo europeu do sculo XX, agora em pleno renascimento).A subestimao, o desprezo ocidental, sua viso desumanizante das culturas perifricas, constitui uma pea chave da sua ideologia imperial estruturada durante muitos sculos de saqueio. A animalizao da imagem do homem do "resto do mundo" fez parte da construo psicolgica que facilitou ao colonizador doOcidentea realizao dos grandes genocdios legitimados como obra civilizadora. A ignorncia ou desprezo das riquezas culturais da periferia, da criatividade das suas bases sociais, do potencial de autonomia das suas comunidades camponesas no s armadilhou o crebros das elites ocidentais como tambm uma boa parte dos seus inimigos internos. Foi assim queGramscipde chegar a afirmar que na velha periferia pr capitalista "o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e gelatinosa" ao passo que noOcidenteexistia uma robusta sociedade civil[17]o que no permite explicar como fizeram, por exemplo, as populaes andinas da Amrica para sobreviver culturalmente ao genocdio inicial da conquista seguido por mais de cinco sculos de opresso e pilhagem ocidental, ou outras proezas culturais dos perifricos da sia e da frica. necessrio entender que o declnio em curso do mundo ocidental se converte em degenerao do seu tecido ideolgico e econmico planetrio, ou seja, do capitalismo como totalidade universal. Desde os anos 1970 sucederam-se as iluses quanto s emergncias capitalistas no ocidentais, desde o milagre japons, passando pelos tigres e drages dasia(Coreia do Sul, Formosa, etc) at chegar China. Em todos esses casos era evidente que as expanses industriais exportadoras que lideravam os desenvolvimentos "milagrosos" se apoiavam nas necessidades dos mercados ocidentais ou de mercados perifricos fortemente dependentes dessas procuras. Em consequncia, a deteriorao dos referidos mercado golpeia os capitalismos no ocidentais. Alm disso, factos como a hipertrofia globalizada das redes financeiras estabeleciam um s espao mundial estreitamente intercomunicado. Portanto, a impossvel desfinanciarizao do capitalismo constitui um bloqueio comum do qual no podem escapar nem o centro nem a periferia. Esta ltima, alm disso, quando embarca na prosperidade burguesa fica submetida ao modelo consumista, s pautas ideolgicas ocidentais que tm efeito destrutivo devastador (familiar, comunitrio, ambiental).Em meados de 2008, em plena exploso financeira,Richard Haass, presidente doCouncil on Foreign Relationsdos Estados Unidos, publicou um artigo onde lanava o sinal de alarme: a unipolaridade estava condenada morte e no tendia a ser substituda pela multipolaridade, estava comeando a emergir um mundo no polarizado que o autor carregava de imagens caticas[18]. Haass percebia que o fim da hierarquia imperialista, unipolar desde 1991 e multipolar em toda a histria anterior do sistema (includo o perodo de auge do imprio britnico) podia chegar a ser uma espcie de "fim do mundo", de ruir da "civilizao", ou seja, de desarticulao do capitalismo como cultura universal e naturalmente adiantava algumas medidas correctivas que permitiriam atenuar o suposto desastre.Haasstinha razo quando advertia que a no polaridade albergava o fantasma do fim da "civilizao" (burguesa).George W. Bushe depoisBarack Obamatentaram impedir esse futuro introduzindo correctivos militares que acabaram por agravar a enfermidade do imprio propagando o caos onde lhes foi possvel.Por sua vez, potncias perifricas como a Rssia e a China no esto em condies de reordenar, no sentido burgus do termo, a desordem causada pela decadncia ocidental atravs do desenvolvimento de novos espaos capitalistas hierarquizado em substituio dos velhos espaos agonizantes. No so foras negentrpicas do sistema e sim zonas capitalistas resistentes submersas, tambm elas, na decadncia global. Tentam travar as bofetadas do imprio contra os seus interesses, mas ao resistir, revidar ou avanar sobre os flancos dbeis do adversrio contribuem para a "desordem" geral, bloqueiam as tentativas de recomposio do domnio ocidental do mundo e desse modo agravam a degenerao global do capitalismo.A insurgncia global como necessidade histricaAs elites dominantes da China e da Rssia, tambm as do Brasil, ndia ou Iro, acreditam na possibilidade de desenvolverem seus capitalismos nacionais, fazem o que podem para no afundarem no desastre ao qual o Ocidente as quer condenar. Mas o carcter global, profundamente inter-relacionado do sistema de que fazem parte, condiciona suas astcias.Todos esses tropees e empurres entre o centro e a periferia contribuem para criar um panorama global rarefeito que a qualquer momento pode redundar em guerras e situaes pr blicas a nvel regional, ameaando por vezes transformar-se em confrontaes mundiais como ocorreu em 2013 devido situao sria e em 2014 com a ucraniana.Karl Polanyidescrevia a longa "pax europea" (salpicada de conflictos menores) que vigorou desde o fim das guerras napolenicas at 1914, resultado segundo ele do papel harmonizador, apaziguador de conflitos, cumprido por alguns factores ocultos dentre os quais destacava a "haute finance", os crculos financeiros europeus mais elevados que, pondo-se acima dos interesses polticos e nacionais, amarravam compromissos, negcios atravessando pases e consequentemente acalmando as disputas inter-imperialistas[19].MasPolanyis olhava a superfcie do fenmeno. Na realidade os negcios da "haute finance" fundavam-se na vertiginosa acumulao de capitais proveniente principalmente da rapina imperialista do mundo, um de cujos pilares essenciais era a aco dos estados ocidentais, o desenvolvimento dos seus aparelhos militares (fonte decisiva de negcios) e da consequentes megalomanias "patriticas" das respectivas burguesias nacionais rivais.Polanyiassinala que "osRothschildno estavam sujeitos a um governo; como uma famlia, incorporavam o princpio abstracto do internacionalismo; sua lealdade era entregue a uma firma, cujo crdito se havia convertido na nica conexo supranacional entre o governo poltico e o esforo industrial numa economia mundial que crescia com rapidez"[20]. Na realidade o papel "pacificador" dosRothschildfazia parte de um jogo duplo perigoso mas muito rentvel. Por um lado excitavam as bestas alentando suas ambies (e de imediato entregavam-lhes a conta) e por outro acalmavam-nos quando ameaavam fazer um desastre. Mas essa sucesso de excitantes e calmantes aplicadas a bestas que absorviam drogas cada vez mais fortes terminou como tinha que terminar: com uma gigantesca exploso (Agosto de 1914).Transferindo-nos para o mundo actual necessrio afirmar que a globalizao dos negcios no estabelece um manto transnacional pacificador e sim exactamente o contrrio, sobretudo nos centros globais de poder poltico-militar incentivando megalomanias criminosas. no interior do sistema global decadente que se desenvolvem as iluses, esperanas e rebeldias da periferia. A iluso de assegurar capitalismos autnomos sob as bandeiras da restaurao da "identidade russa" ou do "socialismo de mercado" chins ou de um socialismo a meias como na Venezuela ou de uma sociedade baseada no islo como no Iro ou de capitalismos "progressistas" como no Brasil, Argentina ou Equador. Mas tambm a resistncia ao invasor no Afeganisto ou na Lbia at chegar guerra prolongada pelo socialismo dasFARCna Colmbia, aos protestos sociais na Europa, etc. Esse grande quebra-cabeas no constitui uma insurgncia global nem muito menos um movimento em vias de articulao e sim um processo sumamente heterogneo onde se apresentam erupes efmeras, ciclos de longa durao, tentativas de desenvolvimento capitalista relativamente autnomo, rebelies anti-capitalistas, etc que podem ser vistos de diferentes maneiras. Uma delas a de uma grande turbulncia perifrica que se vai expandindo em meio a contradies de todo tipo a anunciarem ao mesmo tempo cenrios futuros de insurgncia popular contra o sistema e o seu contrrio: o afundamento em degradaes prolongadas. nesse espao complexo no qual as potncias ocidentais tentam arrasar, isolar, demonizar, triturar, que se reproduz um gigantesco proletariado universal, vrios milhares de milhes de camponeses, operrios, marginais, comerciantes miserveis, etc condenados morte ou sobrevivncia infra-humana pela dinmica decadente do sistema. Constituem uma realidade plural que se ope naturalmente homogeneizao escravizante doOcidentetentando preservar e/ou construir identidades, espaos de liberdade, sobreviver, viver dignamente.Os prximos anos diro se a partir dessa massa proletria irrompe a insurgncia global que desdobrando-se na sua pluralidade ir convergindo na segunda ofensiva contra o imprio. A primeira ocorreu no sculo XX a partir daRevoluo Russa, convertendo-se numa rebelio global que se prolongou durante cerca de seis dcadas abarcando desde a China at Cuba, passando pela Arglia, Vietname, Nicargua.

H meio sculo estavam na moda na Europa ocidental autores que denunciavam a perda de hegemonia da regio, superada por superpotncias extra-regionais como aURSS, os Estados Unidos ou o Japo. Um desses textos, de grande xito editorial, foi"El rapto de Europa"[21]deLuis Diez del Corral. Sua tese era que naes extra europeias estavam a roubar Europa, ou j haviam roubado, sua maior criao cultural: a modernidade.Deslumbrado pelo mito grego, o autor no reflectiu o suficiente acerca do seu significado histrico:Zeusrapta Europa, princesa doOriente Prximoenganada pelo deus que mimetizado como touro a induz a mont-lo, do que se aproveita para sequestr-la e lev-la sua ilha. A origem doOcidentehistrico o engano e o roubo. Seu prprio nome, Europa, o de trofu, produto do roubo. Em ltima instncia, se o mundo no ocidental se apropriasse da modernidade ocidental no estaria a fazer outra coisa seno recuperar o capital mais os juros das riquezas que o ladro lhe havia sacado durante sculos: ouro, prata, petrleo, cereais, centenas de milhes de vidas humanas. Na realidade, o planeta hoje est completamente modernizado. Para uns (o centro do mundo) isso significa desenvolvimento capitalista, poder, privilgios, ao passo que para o resto do mundo quer dizer subdesenvolvimento capitalista, misria, frustraes.De qualquer forma, a "apropriao perifrica da modernidade" um anzol envenenado, a iluso de reproduzir os supostos xitos culturais da civilizao burguesa de modo independente ou a enfrentar oOcidente. Quando o escravo imita o amo ou pretende regenerar sua comunidade adoptado-adaptando seus fundamentos ideolgicos, o que consegue bloquear a criatividade revolucionria da sua base social. Como o demonstra a experincia histrica do sculo XX[22], quando acredita ter encontrado o fio deAriadneque lhe permitir sair do labirinto, aferra-se ao mesmo e marcha triunfalmente rumo sada... Na realidade agarrou a cauda do diabo o qual, astutamente, o conduz rumo a paragens ainda mais sinistras.Mas a modernidade entrou no estado de decrepitude e a libertao das suas vtimas centrais e perifricas s pode ser alcanada por meio da negao absoluta do capitalismo, sua completa destruio, para a partir das suas cinzas construir um mundo novo. Nada autoriza a supor que essa proeza a maior da histria humana seja inevitvel. A regenerao ps capitalista historicamente necessria ainda que no constitua um fenmeno inexorvel imposto por supostas leis da histria. Trata-se de uma tarefa que exige um gigantesco esforo voluntarista animado por ideias resultantes de prticas insurgentes, rebeldias mais ou menos radicalizadas, ensaios, erros, fracassos, xitos efmeros ou duradouros.Notas[1]As decadncias de civilizaes anteriores e as reflexes contemporneas sobre as mesmas, na medida em que conseguiam uma viso de certa amplitude associavam as referidas decadncias com futuras renovaes ou instalaes de novas civilizaes no mesmo territrio. A nvel mundial, enquanto uma civilizao decaa outras permaneciam ou emergiam. Agora, dado o potencial auto-destrutivo do capitalismo global, surge a possibilidade histrica do "fim da histria" no no sentido idlico (sinistro) do mundo liberal feliz que Francis Fukuyama nos propunha h algumas dcadas e sim como desastre universal.[2]Marx e Engels, "La ideologa alemana", Ediciones Progreso, Mosc, 1974.[3]Em 2012 as despesas doDepartamento da Defesachegaram a cerca de US%700 mil milhes. Se s mesmas forem adicionadas as despesas militares que aparecem integradas (diludas ou ocultas) em outras reas do Oramento (Departamento de Estado, USAID, Departamento da Energia, CIA e outras agncias de segurana, pagamentos de juros, etc) alcanar-se-ia um nmero prximo dos US$1,3 milhes de milhes. Esse nmero equivale a 50% das receitas oramentais previstas ou 100% do dfice oramental. Essas despesas representaram quase 60% das despesas militares globais e se lhes somarmos as dos seus scios daNATOe de alguns pases vassalosextra-NATOcomo a Arbia Saudita, Israel, Colmbia ou Austrlia estaramos entre 75% e 80% da despesa global (Ref: Jorge Beinstein, "Capitalismo del Siglo XXI. Militarizacin y decadencia", Ed. Cartago, Buenos Aires 2013).[4]Narciso Isa Conde, Estados neoliberales y delincuentes , Aporrea, 20/01/2008,[5]Johan Huizinga, "Homo ludens" (1954), Emec Editores, Buenos Aires, 1968.[6] Domenico Losurdo, "Las raices norteamericanas del nazismo", Enfoques Alternativos, n 27, Octubre de 2006, Buenos Aires.[7]Hermann Rauschning, "La rvolution du nihilisme", Gallimard, Paris, 1980.[8]Robert Kurz, Los orgenes destructivos del capitalismo , 1997,[9]Em outros textos apresentei um conceito deAnouar Abdel Malek, no meu entender essencial para compreender o fenmeno. Trata-se do "excedente histrico" acumulado durante sculos peloOcidenteem resultado de um saqueio universal sem precedentes, um patrimnio imperialista baseado na destruio do contexto ambiental e de civilizaes de todos os continentes (Anouar Abdel Malek, "Political Islam", Socialism in the World, Number 2, Beograd 1978.[10]Angus Maddison,"The World Economy: Historical Statistics", OECD 2003.[11]Ren Groussetqualificou-a como "a primeira expanson colonial do Ocidente". Rene Grousset, "Las cruzadas", EUDEBA, Buenos Aires, 1965.[12]"O poder veneziano baseava-se na sua capacidade para fabricar armas de acordo com os modernos princpios da especializao e da produo capitalista", assinalaVictor Davis Hanson. E acrescenta que "trs anos depois de Lepanto o monarca francsHenrique III, que se encontrava em Veneza, visitou oArsenalque, para seu assombro, montou, equipou e lanou uma galera em uma hora!Em condies normais, recorrendo a princpios de construo naval, financiamento e produo em massa comparveis unicamente aos do sculo XX, oArsenalera capaz de lanar uma frota inteira de galeras no espao de uns poucos dias",Victor Davis Hanson, "Matanza y cultura. Batallas decisivas en el auge de la civlizacin occidental", Fondo de Cultura Econmica-Turner, Mxico D.F. / Madrid 2006.[13]Bertrand Gille, "Les ingnieurs de la Renaissance", Herman, Paris 1964.[14]James O'Donnell, "La ruina del imperio romano", Ediciones B, Barcelona 2010.[15]Victor Davis Hanson, op cit.[16]G.W.F Hegel, "La Raison dans l`Histoire", Union Gnrale d`Editions, 10/18, Paris 1965.[17]Antonio Gramsci, "Cuadernos de la crcel", Ed. Era, Mxico, 1999.[18]Richard N. Haass, "The Age of Nonpolarity. What Will Folow U.S. Dominance", Foreign Affairs, Mai/June 2008.[19]Karl Polanyi, "The Great Transformation.The Political and Economic Origins of Our Time", Bacon Press, Boston, Massachusetts, 2001.[20]K. Polanyi, op. cit.[21]Luis Diez del Corral, "El rapto de Europa", Alianza Editorial, Madrid 1974.[22]Desde os fantasmas burocrticos da histria sovitica at chegar ao realismo burgus dos dirigentes chineses passando pelos diversos nacionalismos mais ou menos "socialistas" ou capitalistas doTerceiro Mundo.

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