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Capítulo 1. Avaliação de necessidades em saúde 1 Capítulo 1. Avaliação de necessidades em saúde 1.1. Introdução Em Portugal, o Programa Nacional de Cuidados Paliativos (DGSa, 2005) considera destinatários destes cuidados os doentes que cumulativamente: não têm perspetiva de tratamento curativo, têm rápida progressão da doença e expetativa de vida limitada; têm intenso sofrimento; têm problemas e necessidades de difícil resolução, que exigem apoio específico, organizado e interdisciplinar. Segundo o Programa Nacional, os Cuidados Paliativos (CP) não são determinados pelo diagnóstico, mas pela situação e necessidades do doente. Na fase inicial do desenvolvimento dos CP, estes dirigiam-se, essencial e unicamente, aos doentes do foro oncológico, nas fases mais avançadas da sua doença. Na sequência das alterações que a Organização Mundial de Saúde (OMS) introduziu no conceito de cuidados paliativos, centrando a sua prática nas necessidades dos doentes e não no seu prognóstico, também os alvos dos cuidados paliativos mudaram, preconizando-se, atualmente, que estes cuidados e os recursos específicos, estejam vocacionados para cuidar de doentes oncológicos, com SIDA, insuficiência terminal de órgãos (coração, rins, fígado, pulmão), demências, doenças cérebro-vasculares, esclerose lateral amiotrófica, doenças do neurónio motor, fibrose quística, entre outras (Capelas & Neto, 2010 p. 794). Se os cuidados paliativos constituem uma resposta organizada à necessidade de tratar, cuidar e apoiar ativamente os doentes, na fase final da vida, será necessário encontrar formas de avaliar essas mesmas necessidades, de uma forma geral, até porque a opinião do doente pode ser diferente da opinião dos seus profissionais de saúde ou dos familiares que cuidam dele. Algumas pessoas estão mais preocupadas com sintomas físicos, tais como a dor, e outras com o impacto que a doença tem no seu dia-a-dia; outros, ainda, podem estar angustiados com a incerteza da sua situação, com preocupações religiosas ou espirituais, ou com o impacto da doença na sua família (WHO, 2004 p.12).

Capítulo 1. Avaliação de necessidades em saúderepositorio.ul.pt/bitstream/10451/7387/2/652076_Tese_2.pdf · Avaliação de necessidades em saúde 1 ... Segundo o Programa Nacional,

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Captulo 1. Avaliao de necessidades em sade

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Captulo 1. Avaliao de necessidades em sade

1.1. Introduo

Em Portugal, o Programa Nacional de Cuidados Paliativos (DGSa, 2005) considera

destinatrios destes cuidados os doentes que cumulativamente: no tm perspetiva de

tratamento curativo, tm rpida progresso da doena e expetativa de vida limitada; tm

intenso sofrimento; tm problemas e necessidades de difcil resoluo, que exigem apoio

especfico, organizado e interdisciplinar.

Segundo o Programa Nacional, os Cuidados Paliativos (CP) no so determinados pelo

diagnstico, mas pela situao e necessidades do doente.

Na fase inicial do desenvolvimento dos CP, estes dirigiam-se, essencial e unicamente, aos

doentes do foro oncolgico, nas fases mais avanadas da sua doena. Na sequncia das

alteraes que a Organizao Mundial de Sade (OMS) introduziu no conceito de cuidados

paliativos, centrando a sua prtica nas necessidades dos doentes e no no seu prognstico,

tambm os alvos dos cuidados paliativos mudaram, preconizando-se, atualmente, que estes

cuidados e os recursos especficos, estejam vocacionados para cuidar de doentes oncolgicos,

com SIDA, insuficincia terminal de rgos (corao, rins, fgado, pulmo), demncias,

doenas crebro-vasculares, esclerose lateral amiotrfica, doenas do neurnio motor, fibrose

qustica, entre outras (Capelas & Neto, 2010 p. 794).

Se os cuidados paliativos constituem uma resposta organizada necessidade de tratar, cuidar

e apoiar ativamente os doentes, na fase final da vida, ser necessrio encontrar formas de

avaliar essas mesmas necessidades, de uma forma geral, at porque a opinio do doente pode

ser diferente da opinio dos seus profissionais de sade ou dos familiares que cuidam dele.

Algumas pessoas esto mais preocupadas com sintomas fsicos, tais como a dor, e outras com

o impacto que a doena tem no seu dia-a-dia; outros, ainda, podem estar angustiados com a

incerteza da sua situao, com preocupaes religiosas ou espirituais, ou com o impacto da

doena na sua famlia (WHO, 2004 p.12).

Captulo 1. Avaliao de necessidades em sade

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A maioria das investigaes tem sido centrada nas pessoas que vivem com neoplasia. As

preocupaes comuns a muitos doentes incluem a necessidade de comunicar com os seus

familiares e os profissionais de sade, de lidar com a incapacidade, a dor, a dispneia, a

ansiedade e a depresso. Os familiares e cuidadores relatam, frequentemente, a necessidade de

suporte nos cuidados da pessoa doente e a de lidar com a ansiedade e a depresso. Dados

recentes revelam preocupaes comparveis e, possivelmente, maiores necessidades nas

pessoas que sofrem de doenas no neoplsicas (WHO, 2004 p.12).

No entanto, enquanto que a evoluo da doena neoplsica pode, frequentemente, ser prevista,

existe uma grande incerteza em muitas doenas crnicas comuns. As pessoas com

insuficincia cardaca ou com DPOC, por exemplo, podem viver com maior incapacidade e

durante mais tempo e morrem depois de uma rpida deteriorao e subitamente, sem estarem

espera (WHO, 2004 p.12). As trajetrias das doenas no-neoplsicas podem dar a

impresso de dificultar a estratgia dos servios a dispensar, no entanto e, apesar da incerteza

do prognstico, isso no quer dizer que as necessidades dos doentes e familiares sejam menos

importantes (WHO, 2004 p.13).

O declnio funcional, nos meses anteriores morte, foi descrito por vrios investigadores,

entre os quais Glaser e Strauss, que, em 1968, definiram trs trajetrias possveis para a morte

(Glaser, 1968 citado por Sands, 2010 p.74). Mais recentemente, Lunney et al (2003)

operacionalizaram essas trajetrias tericas num estudo (Established Populations for

Epidemiologic Studies of the Elderly-EPESE), descrevendo o padro geral de declnio

funcional em quatro trajetrias de funo e bem-estar, ao longo da vida e de acordo com o

tipo de doena (figura 1). Estas trajectrias so:

1. A trajetria de morte sbita de que so exemplos o trauma e o enfarte do miocrdio;

2. A trajetria da doena oncolgica com um elevado nvel funcional inicial e com um

declnio rpido num curto perodo de tempo, facilitando a deciso de indicao para cuidados

paliativos;

3. A trajetria das insuficincias de rgos com limitao da funo e do bem-estar, a longo

prazo, mas com episdios graves e intermitentes, exigindo, por vezes, internamentos de

urgncia e podendo levar a uma morte repentina;

Captulo 1. Avaliao de necessidades em sade

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4. A trajetria das demncias / fragilidade - com funcionalidade muito diminuda e um

declnio prolongado, condicionando problemas na prestao de servios abrangentes e

coordenados;

morte

Falncia de rgo

m

boa

Fu

n

o

Tempo

morte

Fragilidade

m

boa

Fu

n

o

Tempo

morte

Morte sbita

m

boa

Fu

n

o

Tempo

morte

Doena terminal

m

boa

Fu

n

o

Tempo

Figura 1 Trajetrias funcionais no fim da vida. Adaptado de Lunney (2002)

O importante na definio destas trajetrias funcionais possveis que as necessidades fsicas,

sociais, psicolgicas e espirituais dos doentes e dos seus cuidadores variam

consideravelmente de acordo com o tipo de trajetria de doena (Lynn, 2001).

Segundo Sands et al (2010, p.75), a informao epidemiolgica individual sobre a

funcionalidade e o performance status pode ajudar a responder a questes, tais como Ser

possvel que eu tenha que ficar acamado sem conseguir falar ou levantar-me?, Ser que

preciso de algum que cuide de mim?, Serei capaz de ficar em casa?. Apesar de parecer

redundante, para muitos mdicos, distinguir as diferenas entre o declnio funcional e os

cuidados necessrios de um doente com doena de Alzheimer e um doente com leucemia

mielide aguda, o que certo que, para os doentes e seus cuidadores, estas diferenas no

so to bvias. Por isso, os indivduos beneficiam de informao sobre trajetrias funcionais,

em vez de serem deixados entregues s suas prprias concluses, baseados no que observam

ou no que consultam na literatura e nos media (Sands, 2010).

Apesar do prognstico ser reconhecido como uma das trs principais competncias mdicas,

em conjunto com o diagnstico e o tratamento, muitos clnicos no o realizam (Hutchinson,

1934 citado por Glare et al, 2010). Segundo Christakis & Iwashyna (1998), num inqurito

realizado a cerca de 700 mdicos americanos (internistas, cardiologistas, gastrenterologistas,

pneumologistas, hematologistas, entre outros), quase 60% considerava-se com formao

Captulo 1. Avaliao de necessidades em sade

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inadequada para estabelecer um prognstico. A maioria referia dificuldades tcnicas

(formulao complicada) ou operacionais (inquietao na comunicao do resultado). As

razes para considerarem stressante esta tarefa estavam relacionadas com a dificuldade da

formulao, propriamente dita, com a perceo de que os doentes desejavam muita certeza e

preciso da previso e, ainda, com o facto de se sentirem intimidados pelo julgamento dos

doentes e dos seus colegas, se o prognstico falhasse. Assim, muitos evitavam fazer

prognsticos, esperando, geralmente, serem interrogados, particularmente se se tratassem de

situaes clnicas atpicas ou com uma evoluo mais incerta do que a habitual.

A dificuldade ainda maior se se tratar de doenas no neoplsicas, j que a esmagadora

maioria dos trabalhos publicados sobre a arte de prognosticar analisa populaes de doentes

oncolgicos. Apesar de as fases avanadas das doenas no oncolgicas (insuficincias de

rgo, SIDA, demncias e outras doenas neurodegenerativas) merecerem menos ateno

editorial, tm surgido, nos ltimos anos, publicaes de referncia no mbito do prognstico

ps-encefalopatia anxica, na insuficincia cardaca, na insuficincia renal crnica sob dilise

e na insuficincia heptica (Tavares, 2010 p.45).

Coventry et al (2005) realizaram uma reviso sistemtica, com o objetivo de analisar os

instrumentos e variveis preditivas que pudessem auxiliar os clnicos a melhorar a capacidade

de prognosticar nos doentes com doenas no neoplsicas. Identificaram apenas onze estudos,

em ambiente hospitalar e comunitrio. Os modelos de prognstico que pretendem estimar a

sobrevida inferior a seis meses, em doentes com neoplasia tm, geralmente, um fraco poder

discriminativo nos doentes com doenas no neoplsicas, o que reflete a natureza imprevisvel

da maioria destas doenas. No entanto, foi identificada uma srie de variveis genricas e

especficas de doena com valor preditivo, para poder auxiliar os mdicos a identificar os

doentes com pior prognstico e necessidades de cuidados paliativos. Contudo, so ainda

necessrios modelos de prognstico simples e bem validados que forneam aos clnicos

medidas objetivas de status paliativo em doentes com doenas no neoplsicas (Coventry et al,

2005).

Tradicionalmente, os cuidados paliativos so, maioritariamente, destinados a doentes com

neoplasias, em parte porque a evoluo destas doenas mais previsvel, sendo mais fcil

Captulo 1. Avaliao de necessidades em sade

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reconhecer e planear as necessidades destes doentes e dos seus cuidadores. Como

consequncia, existe a perceo de que os CP so relevantes nas ltimas semanas de vida

(quando os tratamentos curativos deixam de ser benficos) e devem ser fornecidos apenas por

servios especializados. De facto, as pessoas doentes e os seus familiares tm problemas

durante os anos da sua doena e necessitam de ajuda sem ser propriamente a partir de uma

data facilmente definvel, antes de morrer. O conceito de oferta de CP, apenas em fim de

vida, no se ajusta a vrias doenas e a OMS considera que os CP so uma interveno a ser

potencialmente oferecida durante o tratamento curativo, devendo ser desenvolvido e utilizado

para colmatar necessidades de populaes idosas e, tambm, de populaes mais jovens ou

crianas que tm doenas com risco de vida (WHO, 2004 p.14-15).

O aumento significativo da populao de doentes com insuficincia cardaca, DPOC, acidente

vascular cerebral e demncias levou Stewart & Mcmurray (2002) a descrever a "paralisia do

prognstico que ocorre quando os clnicos, em face de trajetrias incertas de certas doenas,

no se definem quanto a questes de fim de vida, tendo como consequncia a ausncia de

cuidados paliativos progressivos no fim de vida (Murray et al, 2005) e um planeamento de

decises por vezes desadequado.

Se a indicao para cuidados paliativos baseada em necessidades, mais do que no

prognstico, e sabendo-se da dificuldade de prognosticar, interessa ento definir o conceito

de necessidade.

Segundo Fortin (2009, p. 70), o conceito o elemento essencial em qualquer investigao,

dado que ele que estudado e no a prpria populao. No domnio da sade, o conceito

pode definir-se como uma atitude ou um estado de esprito manifestado por indivduos face a

acontecimentos particulares e serve para ligar o pensamento abstrato e a experincia sensorial,

porque ele resume e categoriza as observaes empricas.

O conceito de necessidade, to vulgarmente utilizado nas ltimas dcadas, foi alvo de anlise

cuidadosa apenas recentemente. H 30 anos, Soper (1981) referia que ''existem poucos

conceitos to frequentemente invocados e ainda to pouco analisados como o das

necessidades humanas. Stevens (1998, citado por Asadi-Lari et al, 2003), identifica o

interesse da avaliao de necessidades em vrias fases: a abordagem sociolgica da dcada de

Captulo 1. Avaliao de necessidades em sade

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1960 foi substituda pelo planeamento racional e alocao de recursos baseados nos dados

epidemiolgicos, na dcada de 1970; na dcada de 1990, a reforma do Servio Nacional de

Sade ingls introduziu necessidade como alvo da alocao de recursos e, desde o incio do

sculo XXI, o foco tem sido centrado sobre a "ao colaborativa", j que a necessidade de

cuidados de sade deve ser coletivamente identificada pelas partes interessadas ".

Existem diferentes abordagens tericas para compreender as necessidades humanas e as

principais foram definidas pela hierarquia das necessidades de Maslow (1954) e pela

taxonomia das necessidades de Bradshaw (1972, citado por Higginson, 2007). Segundo

Maslow, psiclogo e filsofo americano, a motivao humana resulta de uma hierarquia de

necessidades (figura 2). Essas necessidades comeam num nvel fisiolgico mais bsico (sede,

fome, entre outras) e progridem para nveis superiores de necessidades de segurana,

necessidades de pertena e estima, culminando em necessidades de autorrealizao. Abraham

Maslow (1954) argumentou que s quando o nvel inferior de necessidades era satisfeito

surgia motivao para enfrentar as necessidades de nvel superior. A aplicao desta teoria

pode ser til para compreender que cuidados paliativos e alvio de sintomas devem preceder

necessidades mais bsicas como a fome, a sede ou a habitao. No entanto, o modelo de

Maslow implica uma ordenao linear simplista das necessidades, o que nem sempre se aplica.

Por exemplo, no necessariamente verdade que necessidades mais elevadas, tais como a

valorizao de relaes ou a arte no sejam importantes mesmo que necessidades de nvel

inferior no estejam ainda satisfeitas (Higginson, 2007).

Necessidades fisiolgicas bsicas

Necessidades de segurana

Necessidades sociais

AutoestimaAutoestima

AutorrealizaAutorrealizaoo

Figura 2 - Hierarquia de necessidades, segundo Maslow

Captulo 1. Avaliao de necessidades em sade

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Segundo John Bradshaw (1972, citado por Higginson et al, 2007), socilogo americano, as

necessidades so consideradas no contexto de quem as define, sendo divididas em quatro

categorias:

Necessidade sentida o que o indivduo sente que necessita, isto , a necessidade na

perspetiva da pessoa que a tem.

Necessidade expressa o que o indivduo diz que precisa. i. e. a necessidade sentida

transformada em ao; tambm chamada demanda em alguns contextos (Wright et al,

1998).

Necessidade normativa necessidade que identificada de acordo com uma norma (ou

padro definido); tais normas so geralmente definidas por especialistas e correspondem

ao que os profissionais pensam que o indivduo necessita.

Necessidade comparativa problemas que emergem por comparao com as

necessidades noutras reas ou situaes.

Esta taxonomia valiosa no contexto de cuidados paliativos, porque salienta quem avalia e

quem define a necessidade. Por exemplo, muitos doentes com doena progressiva no so

capazes de expressar ativamente as suas necessidades de cuidados paliativos ou de alvio de

sintomas. Assim sendo, analisando as necessidades expressas de cuidados paliativos,

provvel que subestimem o nvel de necessidade. No entanto, se tivermos em considerao

apenas as necessidades normativas, dependentes do conhecimento dos profissionais,

atendendo a que os conhecimentos de cada profissional podem ser muito variados, as

necessidades tambm podero ser subestimadas (Higginson et al, 2007).

Qualquer que seja a definio utilizada para necessidade, dever ser operacionalizada a forma

de avaliar essa necessidade. Por essa razo, Stevens & Raftery (1994) definiram necessidade,

no contexto dos cuidados de sade, como "a capacidade de beneficiar de cuidados de sade".

Reconhecendo a taxonomia de Bradshaw (1972), Stevens & Raftery (1994) combinaram

diferentes abordagens para determinar o que necessidade, adicionando um componente

importante o de beneficiar de cuidados de sade. Assim, para cada necessidade ser

reconhecida, por definio, dever existir uma soluo eficaz de cuidados de sade, de outra

Captulo 1. Avaliao de necessidades em sade

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forma poder ser uma necessidade, mas no relacionada com cuidados de sade. Nesta

definio, particularmente relevante no que concerne aos objetivos dos cuidados paliativos,

necessidade equivalente a capacidade de beneficiar (Higginson et al, 2007). E esse

benefcio no ser restritamente clnico, mas abrange outras dimenses que podero incluir

confiana, cuidados de suporte e alvio dos cuidadores (Stevens & Gillam, 1998).

1.2. Importncia da avaliao de necessidades em cuidados paliativos

Segundo Wright et al (1998), a avaliao de necessidades em sade fornece a oportunidade

para:

Descrever os padres de doena na populao local e as diferenas regionais;

Aprender mais sobre as necessidades e prioridades da populao local;

Destacar as reas de necessidades no satisfeitas e oferecer um conjunto claro de

objetivos para satisfazer essas necessidades;

Decidir como usar racionalmente os recursos para melhorar a sade da populao e a

maneira mais eficaz e eficiente; influenciar a poltica, a colaborao entre parceiros,

ou a investigao de prioridades de desenvolvimento;

Monitorizar as necessidades de sade, permitindo, ainda, facilitar a promoo da

equidade na prestao e utilizao dos servios de sade e diminuir desigualdades de

fornecimento de cuidados de sade.

Reconhece-se, consequentemente, a importncia de avaliar as necessidades de sade, em vez

de reagir s demandas de sade (Wright et al, 1998).

Segundo Higginson et al (2007), existem vrias formas de se abordar as necessidades em

sade, em geral, ou, em particular, em cuidados paliativos. Idealmente, devem ser utilizadas

as seguintes abordagens, em combinao:

Abordagem epidemiolgica - faz triangular trs fontes de informao: dimenso da

necessidade (determinada pela informao disponvel sobre a incidncia e prevalncia

dos problemas ou sintomas), disponibilidade dos servios e eficcia e custo-eficcia

dos potenciais servios. Esta forma de abordagem poder ter algumas limitaes j

que depende da disponibilidade e rigor da informao e, por isso, poder incluir as

duas abordagens seguintes:

Captulo 1. Avaliao de necessidades em sade

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Abordagem corporativa corresponde avaliao direta das necessidades e

prioridades da populao. Wrigtht et al (1998) defendem que seja posta a questo: O

que querem os doentes?, como elemento principal numa avaliao de necessidades.

Os mtodos a utilizar podero ser vrios: painis de consulta, grupos focais (focus

groups), inquritos (surveys) ou sondagens de opinio. No entanto, embora a avaliao

de necessidades deva ser abrangente, existem desafios muito especficos para garantir

o envolvimento significativo de populaes paliativas. Uma das dificuldades deste

tipo de avaliao o da escolha da populao alvo. E disso exemplo o estudo de

Currow et al (2008) que descreve as necessidades no atendidas de 644 doentes com

DPOC, no atravs dos doentes mas dos seus cuidadores, em luto.

Abordagem comparativa a avaliao comparativa de necessidades salienta os

contrastes entre populaes de diferentes reas.

Atualmente, a literatura disponvel para escolher o mtodo mais apropriado de avaliao de

necessidades, mesmo nos pases desenvolvidos, ainda reduzida (Higginson et al, 2007).

Em Portugal, Capelas (2009), aplicando metodologia recomendada e utilizando os dados

demogrficos portugueses, relativos ao ano de 2007, divulgados pelo Instituto Nacional de

Estatstica, calculou que, nesse ano, cerca de 62 000 doentes tiveram necessidade de cuidados

paliativos e, para estes doentes, estimou as necessidades das respetivas equipas e unidades de

cuidados paliativos. Em termos de camas, Capelas considerava podermos estar prximos dos

10% das necessidades, o mesmo no acontecendo com as equipas de outras tipologias

(equipas domicilirias e equipas de suporte intra-hospitalar), com implementao ainda mais

limitada.

A avaliao de Capelas (2009), utilizando a abordagem epidemiolgica de necessidades,

justificada pela implementao apenas recente deste tipo de cuidados em Portugal. As

primeiras iniciativas surgiram apenas no incio dos anos 90 (Servio de Medicina Paliativa do

Hospital do Fundo 1992) (Marques et al, 2009). E, ao longo de vinte anos, surgiram, em

Portugal, vinte unidades/equipas de Cuidados Paliativos (APCP, 2011), o que

manifestamente insuficiente para a populao portuguesa. Assim sendo, de esperar que os

doentes no oncolgicos tenham uma resposta ainda mais limitada neste tipo de cuidados.

Captulo 1. Avaliao de necessidades em sade

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No havendo, em Portugal, dados gerais da caraterizao dos doentes tratados em Cuidados

Paliativos, sabe-se que o doente no oncolgico tem ainda um acesso muito limitado,

correspondendo, na anlise de Tavares et al (2008), a 9,2% dos doentes tratados.

Mesmo em pases onde a prtica de cuidados paliativos est consistentemente implementada,

constata-se uma integrao de doenas no oncolgicas muito inferior esperada, se tivermos

em conta a prevalncia dessas patologias e as necessidades dos doentes e dos seus cuidadores.

No Reino Unido, Partridge et al (2009) avaliaram os profissionais de servios de tratamento

de doenas respiratrias crnicas e constataram que apenas uma minoria referia um acesso

fcil a cuidados paliativos. Cerca de 20% dos servios tinham polticas formais para

atendimento de pacientes com doena respiratria crnica, chegando ao fim da vida, mas

87,9% dos entrevistados no tinham nenhum processo formal para iniciar as discusses de

final de vida com os doentes com doena respiratria terminal.

Por outro lado, em Portugal, reconhecida a necessidade de formao em Medicina Paliativa

mas existe, ainda, uma enorme relao entre o prognstico e a oferta de estratgias paliativas.

No estudo de Carneiro et al (2010), realizado a 50 profissionais de uma enfermaria de

Medicina Interna, 98% consideravam que a maioria dos seus doentes beneficiava de

estratgias especializadas, nesta rea, mas 57,1% dos inquiridos achavam fundamental a

elaborao de um prognstico prvio oferta de estratgias paliativas, o que poderia ser

comentado, de acordo com Stewart & Mcmurray (2002), como um exemplo de "paralisia do

prognstico.

H muitas barreiras extenso dos servios especializados de cuidados paliativos para

doentes com doenas no-neoplsicas. Segundo Coventry et al (2005), estas barreiras incluem

a preocupao de que tal expanso possa levar ao agravamento dos recursos financeiros,

comprometendo a capacidade das equipas existentes, especializadas em cuidados paliativos

para prestar cuidados a doentes com neoplasia. Alm disso, pouco se sabe sobre a aceitao

deste grupo de doentes pelos servios especializados de cuidados paliativos. Mas, talvez, a

principal barreira para aumentar a acessibilidade dos doentes no-neoplsicos aos cuidados

paliativos esteja relacionada com a relutncia dos mdicos e / ou a incapacidade de definir o

Captulo 1. Avaliao de necessidades em sade

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status paliativo e a previso de tempo at morte, neste grupo de doentes (Field & Addington,

1999).

Os princpios e os valores atuais dos programas pblicos de cuidados paliativos

fundamentam-se no direito humano1 qualidade de cuidados em final de vida (WHO, 1994),

justificando o desenvolvimento de medidas de apoio a pessoas em situaes de

vulnerabilidade, respeitando os seus valores e preferncias.

Assim, e enquanto, em Portugal, os Cuidados Paliativos existentes, no satisfizerem as

necessidades, poderemos pensar em aplicar uma abordagem corporativa - avaliao direta das

necessidades e prioridades da populao e que, tal como Wrigtht et al (1998) defendem,

coloque a questo O que querem os doentes?, como elemento principal, numa avaliao de

necessidades.

Se o movimento de cidados por melhores Cuidados Paliativos, em Portugal, considera que

ter acesso aos cuidados paliativos, em Portugal, continua a ser muito difcil (APCP, 2011),

como poderemos avaliar necessidades em cada cidado? Que instrumento de avaliao

escolher?

Partindo do princpio de maior paralisia do prognstico em doenas no neoplsicas,

consideramos que seria importante avaliar as necessidades numa populao no neoplsica.

Sendo a insuficincia respiratria crnica (IRC) a evoluo esperada de uma das doenas

com maior prevalncia - a Doena Pulmonar Obstrutiva Crnica (DPOC) e de outras doenas

respiratrias crnicas, musculoesquelticas ou da parede torcica, com menor prevalncia mas

impacto semelhante, consideramos que o alvo do nosso estudo deveria ser esta falncia de

rgo.

1 Patients have the right to relief of their suffering according to the current state of knowledge and Patients

have the right to humane terminal care and to die in dignity

Captulo 1. Avaliao de necessidades em sade

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1.3. Avaliao de necessidades no doente com insuficincia respiratria crnica

A IRC definida por presso parcial arterial de oxignio (PaO2) inferior a 8,0 kPa (60 mmHg),

com ou sem presso arterial parcial de dixido de carbono (PaCO2) superior a 6,7 kPa (50

mmHg) a respirar ar ambiente ao nvel do mar (GOLD, 2010), uma complicao grave de

vrias doenas pulmonares, sendo a DPOC a mais comum. A IRC pode ainda ser causada por

bronquiectasias, doena intersticial pulmonar (DIP), doenas neuromusculares (DNM),

sequelas de tuberculose e doenas da parede torcica, entre as quais a cifoescoliose a mais

frequente (Fauroux et al, 1992; Chaileux et al, 1996; Zielinski, 2000). Nos ltimos anos tem

sido crescente a prevalncia da sndrome de obesidade hipoventilao (SOH) como causa de

IRC (McKim et al, 2011; Janssens et al, 2003).

De um modo geral, a IRC irreversvel e requer tratamento com oxigenoterapia de longa

durao (OLD) e/ou ventilao domiciliria (VD), sendo os critrios de prescrio definidos

por recomendaes nacionais (DGS, 2006) e internacionais (Consensus, 1999). semelhana

de outros pases europeus (Fauroux et al, 1992; Gustafson, 2007), no existe, ainda, em

Portugal, um registo nacional de insuficientes respiratrios crnicos, sabendo-se, no entanto,

que, em 2002, a prevalncia estimada de doentes com necessidade de VD era de 9,3 por

100000 habitantes (Lloyd-Owen et al, 2005) e que os custos2 diretos e indiretos tm sido

significativos (Borges et al, 2009) e crescentes (DGSb, 2005; DGS, 2011 p. 7).

A trajetria de doena na insuficincia de rgo, como o caso da IRC, na DPOC, carateriza-

se por uma deteriorao progressiva, durante um longo perodo, a presena de agudizaes

graves, que requerem internamentos e que, em alguns casos, podem levar morte, alternando

com perodos de estabilidade mas com sintomas (Soler-Catalua et al, 2005). O mesmo tipo

de evoluo pode ter outras patologias causadoras de insuficincia respiratria tais como as

sequelas de tuberculose, a patologia do interstcio pulmonar, a cifoescoliose e as

bronquiectasias (Zielinski, 2000).

2 Custos directos valor dos recursos dos cuidados de sade destinados ao diagnstico e tratamento; custos

indirectos consequncia econmica da incapacidade, ausncia laboral, mortalidade prematura e custos para o

doente e cuidadores.

Captulo 1. Avaliao de necessidades em sade

13

A maioria da investigao tem sido desenvolvida na rea da DPOC, o que, em parte, se

explica pela sua prevalncia, j que corresponde quinta causa de mortalidade, mais

frequente nos pases de altos recursos, entre os quais Portugal se inclui, e 11. causa de

incapacidade, no mundo (Mathers & Loncar, 2006; Sands et al, 2010 p.60-61). A grande

carga3 econmica e social da DPOC (Pauwels & Rabe, 2004) justificou mesmo um programa

especfico, apoiado pela OMS, e desenvolvido em todo o mundo, desde 2000 (GOLD -

Global Initiative for Chronic Obstructive Lung Disease), e que foi a fonte inspiradora do

Programa Nacional de Preveno e Controlo da Doena Pulmonar Obstrutiva Crnica,

desenvolvido em 2005 (DGSb, 2005).

A concentrao de esforos cientficos na DPOC tem ainda fundamentao acrescida se se

tiver em considerao que est previsto o seu aumento nas prximas dcadas, no s pela

exposio continuada aos fatores de risco, mas tambm devido maior longevidade da

populao mundial (GOLD, 2010).

A anlise das tendncias nas taxas de mortalidade da DPOC complicada porque tm sido

feitas mudanas nos rtulos de diagnstico4 (Seamark et al, 2007). No entanto, tem sido

analisada em alguns estudos. Recentemente, Soriano et al (2000) avaliou, no Reino Unido, a

sobrevida de um doente com DPOC, sendo aos cinco anos aps diagnstico de 78% nos

homens e 72% nas mulheres com doena ligeira, mas diminuindo para 30% nos homens e

24% nas mulheres com doena grave.

Segundo Curtis (2008), na DPOC, difcil identificar os doentes que tm uma probabilidade

de morrer dentro de seis meses. Os modelos prognsticos, utilizados no estudo SUPPORT

(1995), baseados na Acute Physiology and Chronic Health Evaluation II documentam essa

dificuldade. Estes modelos mostraram que, nos cinco dias que precederam a morte, nos

doentes com neoplasia do pulmo, tinha sido feita uma previso de 10% de probabilidade de

3 Carga da doena estimada a partir dos indicadores de incidncia, prevalncia, durao e mortalidade.

4 At 1968, na oitava reviso da Classificao Internacional de Doenas (CID), os termos bronquite crnica e

enfisema eram amplamente utilizados. Nos anos 70, o termo DPOC substituiu os termos anteriores, em alguns

pases mas no em todos, o que teve como consequncia uma maior dificuldade de comparar a mortalidade da

DPOC nos vrios pases. A situao melhorou com a nona e dcima revises do CID, pois a DPOC e doenas

obstrutivas das vias areas foram integradas na categoria DPOC e condies associadas (cdigo 490496 da

CID9 e cdigo J4246 da CID10). (GOLD, 2010, p. 9).

.

Captulo 1. Avaliao de necessidades em sade

14

sobreviver aos seis meses, enquanto que, nos doentes com DPOC, a previso de probabilidade

de sobreviver era de 50% (Claessens et al, 2000).

A identificao de marcadores validados para ajudar a prever a mortalidade da DPOC

claramente desejvel, mas no necessariamente simples, provavelmente reflexo da quantidade

de comorbidades, causas de morte e complexidade dos mecanismos subjacentes associados

DPOC. O fator prognstico mais amplamente utilizado em doentes com DPOC o FEV1

(Forced Expiratory Volume in one second). No entanto, cada vez mais claro que as

ferramentas de prognstico que melhor integram uma avaliao das comorbidades

demonstram desempenho superior ao do FEV1 sozinho. O ndice BODE (B: ndice de massa

corporal; O: obstruo do fluxo areo; D: Dispneia e E: capacidade de exerccio) um

exemplo recente de um instrumento multidimensional que evidencia uma grande promessa no

prognstico e previso de doentes com DPOC (Sin et al, 2006). Infelizmente, mesmo os

melhores modelos de sobrevivncia aos seis meses para doentes com DPOC (RocKer et al,

2007) tm uma capacidade limitada para prever a morte para doentes individuais e assim a

morte inesperada ocorre frequentemente (Hansen-Flaschen, 2004; Patel et al, 2011).

Os recentes esforos para identificar modelos de prognstico especficos para doentes com

DPOC, melhoraram a acuidade5 do prognstico, mas no conseguem prever a sobrevida

individual, a curto prazo, o que alis tambm acontece para doentes com neoplasia (Celli et al,

2004). Assim sendo, a maior incerteza do prognstico dificulta no s as discusses sobre o

prprio prognstico mas tambm a escolha dos cuidados a fornecer aos doentes com DPOC,

comparativamente com os doentes com neoplasia. Por outro lado como os mdicos tm

dificuldade em discutir o prognstico num cenrio de incerteza, no surpreendente que eles

tambm se debatam com a dificuldade de saber quando levantar questes sobre os cuidados a

administrar no fim de vida. Mesmo assim, os profissionais so responsveis por cuidar dos

doentes com DPOC grave, promovendo o ensino sobre os cuidados de fim de vida e

garantindo que os doentes recebam cuidados de acordo com as suas preferncias, para tal

necessrio percorrer um caminho com os doentes e os seus familiares em busca dos valores e

objectivos dos cuidados a fornecer, tendo em ateno a qualidade de vida actual e

eventualmente futura (Shanawani et al, 2008; Escarrabill et al, 2009).

5 Acuidade - diferena entre o valor estimado e o valor real.

Captulo 1. Avaliao de necessidades em sade

15

Um outro aspeto a ter em considerao na deciso de seleo de uma populao de estudo

baseia-se em investigao recente comparando os sintomas nos doentes com DPOC e nos

doentes com neoplasia do pulmo. Os sintomas dos doentes com DPOC so mais graves e os

servios so limitados e sem cuidados de fim-de-vida (Edmonds et al, 2001; Elkington et al,

2005; Gore et al, 2000; Habraken et al, 2009).

reconhecido por vrios autores que o clnico tem um enorme desafio quando procura

encontrar um equilbrio ajustado a cada doente de forma a conseguir motivar para os

autocuidados sem provocar angstia (Seamark et al, 2007). A grande dificuldade reside no

facto de, frequentemente, no existir um ponto de transio entre o tratamento activo e os

cuidados paliativos de suporte, e por isso a deciso geralmente baseada no julgamento de

clnicos experientes (Seamark et al, 2007) o que de alguma forma uma tarefa difcil e por

isso justifica mais investigao nesta rea.

Na primeira dcada do sculo XXI, apesar da DPOC ser alvo de maior investigao,

comparativamente com outras patologias, tambm causadoras de IRC, a comunidade

cientfica debruou-se tambm, nos aspetos relacionados com o fim de vida, nos doentes com

insuficincia respiratria em ventilao domiciliria, no que respeita a qualidade de vida

(Carone et al, 1999; Windisch et al, 2003), a sobrecarga na vida real (Vitacca, 2007) e a

perceo da famlia (Vittaca et al, 2010), entre outros.

Segundo Escarrabill et al (2009), a melhor oferta de cuidados deve incluir: tratamentos

mdicos, de eficcia comprovada; tratamentos que assegurem o conforto; assistncia

coordenada e global, plano teraputico prvio; cuidados individualizados, tendo em conta as

preferncias do doente; utilizao atenta dos recursos do doente e da famlia; suporte para

fazer o melhor cada dia, tendo tambm em conta a presena de comorbilidades. Para planear

este modelo de cuidados, parece-nos importante a deteo das necessidades do doente, nas

vrias fases da doena.

Ter em considerao as necessidades do doente poder ser uma forma de contornar a

paralisia do prognstico, identificada por Stewart & McMurray (2002), e , tambm, uma

forma de envolver o principal interessado: o doente.

Captulo 2. Reviso da literatura

16

Captulo 2. Reviso da literatura

2.1. Instrumentos de avaliao de necessidades de cuidados paliativos

A pesquisa de um instrumento para avaliao de necessidades tem sido desenvolvida por

vrios investigadores, j que a sua aplicao poder ter interesse no s na prtica clnica

diria, para avaliao de necessidades individuais transversais e longitudinais, mas tambm na

organizao dos cuidados de sade, na avaliao da qualidade de cuidados e, ainda, em

investigao. Duas das mais recentes revises sobre instrumentos de avaliao de

necessidades (Wen & Gustafson, 2004 e Richardson et al, 2007) identificaram vrios

instrumentos disponveis, alguns deles com informao detalhada sobre o seu

desenvolvimento e as suas propriedades psicomtricas. No entanto, ambos os autores

concluiram que os dados sobre a capacidade de resposta e o impacto da administrao desses

instrumentos era escasso. Por outro lado, a maioria dos estudos desenvolvidos nesta rea

(avaliao de necessidades) tinha sido feita em doentes oncolgicos.

Tratando-se de encontrar um instrumento de avaliao de necessidades e escolhendo uma

abordagem corporativa, com avaliao direta das necessidades e prioridades da populao,

defendida por Higginson et al (2007), mas tendo, tambm, em considerao que o instrumento

de avaliao abrangesse as dimenses consideradas de importncia em doentes com

insuficincia respiratria, optmos pela escolha de um instrumento que pudesse vir a ser

aplicado, tanto numa populao geral, como, tambm, especfica, para doentes com

insuficincia respiratria.

No existindo, at presente data, em lngua portuguesa, um instrumento de medida com

estas caractersticas e de forma a identificar os principais instrumentos de medida de

necessidades em cuidados paliativos, que permitissem responder questo quem necessita

de cuidados paliativos? foi desenvolvida uma estratgia de pesquisa que incidiu sobre as

seguintes bases eletrnicas de dados: Medline (sem limite/2010) e Cochrane Database of

Systemic Reviews. A estratgia de pesquisa desenvolvida para as bases de dados mencionadas

foi a seguinte: #Palliative care needs tool.

Captulo 2. Reviso da literatura

17

Foram obtidos os resumos dos estudos identificados pela estratgia de pesquisa, de forma a

selecionar quais os estudos a ser includos na anlise. Dos 77 trabalhos identificados6, foram

seleccionados 18, tendo sido identificados nove instrumentos de avaliao de necessidades em

CP (cujos critrios de seleo se encontram referidos no quadro 1):

Needs Assessment Toll: Progressive Disease Cancer (NAT:PD-C) (Waller, 2008;

2009; 2010);

Palliative Care Outcome Scale (POS) (Hearn, 1999; Slater, 2004; Serra-Prat, 2004;

Stevens, 2005; Harding, 2010);

Needs of social nature Existencial concerns Symptoms Therapeutic interaction

(NEST 13+) (Emanuel, 2000; Emanuel, 2001; Scandrett, 2010);

Problems and Needs in Palliative Care questionnaire-short version (PNPC-sv) (Osse,

2004; 2007);

Hamilton Chart Audit Tool (H-CAT) (Slaven, 2007);

Supportive Care Pathway (SCP) (Main, 2006);

Symptoms and Concerns Checklist (SCC) (Lidstone, 2003);

Resident Assessment Instrument for Palliative Care (RAI-PC) (Stel, 2003);

Support Team Assessment Schedule (STAS) (Higginson, 1993; Lagabrielle, 2001).

Para a anlise dos questionrios disponveis, foi tida em considerao a opinio da Associao

Europeia de Cuidados Paliativos (Caraceni et al, 2002) sobre as caractersticas ideais dos

instrumentos de avaliao a utilizar em cuidados paliativos:

1) Simplicidade. A populao de doentes em medicina paliativa , muitas vezes, frgil, tem

deteriorao da sade e apresenta sintomas mltiplos. Para alm de apresentar, com

frequncia, compromisso cognitivo de gravidade varivel;

2) Validade. necessrio avaliar as propriedades psicomtricas dos instrumentos a utilizar,

para que eles meam efectivamente aquilo que suposto medirem. A validao deve ser

efetuada numa populao que pertena rea especfica de interesse e deve ter sido sujeito a

validao na lngua e cultura a que se destina, s dessa forma so permitidos estudos

multicentricos internacionais.

6 A reviso de literatura encontra-se resumida em anexo I - disponvel em CD-R. A maioria dos trabalhos

excludos correspondiam a investigao qualitativa na rea dos cuidados paliativos, alguns artigos eram de

opinio e os restantes correspondiam a investigao em doenas especficas, no tendo sido considerados de

interesse para este estudo.

Captulo 2. Reviso da literatura

18

Dos nove instrumentos disponveis, cujos critrios de seleo se encontram expostos no

quadro 1, o NEST - Needs of social nature Existencial concerns Symptoms Therapeutic

interaction, desenvolvido por Linda Emanuel et al (2001), foi considerado o instrumento de

medida mais apropriado por reunir mais condies necessrias ao estudo que nos

propnhamos realizar. Os restantes oito instrumentos foram excludos pelos seguintes

motivos:

Questionrio desenvolvido com populao exclusivamente com doena oncolgica:

NAT: PD-C; POS; PNPC-sv; H-CAT; SCC.

Questionrio exclusivamente preenchido por profissionais de sade e no pelo doente:

NAT:PD-C; H-CAT; SCP; SCC.

Questionrio excessivamente longo: PNPC-sv; SCC.

Questionrio referindo sintomas vrios mas excluindo o sintoma principal na IRC

(dispneia/cansao): NAT:PD-C; POS; PNPC-sv.

Publicao sem referncia s propriedades psicomtricas do instrumento: NAT: PD-C;

H-CAT; SCP; STAS.

A escolha do NEST foi ainda justificada pelas seguintes razes:

Foi construdo e validado numa amostra mista de doentes oncolgicos e no oncolgicos de

grandes dimenses (988 doentes) e com 10,9% de doentes com DPOC;

Revelou um grau elevado de fidelidade ( 0,63-0,85) e validade (Emanuel, 2000; Emanuel,

2001; Kissane & Street, 2010 p. 411);

Facilitou a identificao de um conjunto importante de necessidades comparativamente com

a avaliao clnica convencional (Scandrett et al, 2010);

Tem apenas 13 perguntas, pois foi preocupao dos autores torn-lo conciso mas abrangente

e multidimensional no que respeita aos domnios avaliados: Necessidades sociais:

financeiras, acesso a cuidados, necessidades dos cuidadores e proximidade; Existenciais:

angstia, espiritualidade, estabilidade e utilidade; Sintomas: fsicos e mentais e

Teraputicas: relacionamento, informao e objectivos dos cuidados;

Tem a vantagem de ser preenchido pelo doente, podendo ser utilizado em questionrio-

entrevista;

Tem a possibilidade de ser aplicvel em doentes com uma grande diversidade de

diagnsticos, circunstncias sociais e locais de cuidados (Grudzen et al, 2011);

Captulo 2. Reviso da literatura

19

Quadro 1- Sumrio das caratersticas dos instrumentos de avaliao de necessidades selecionados aps reviso da literatura Instrumento

Estudos

Publicados

Origem

Populao

validao

Quem

preenche

instrumento

N. itens

(tipo de

resposta)

Demora

preenchimento

Dimenses no

abrangidas

Fidelidade

Needs Assessment Toll:

Progressive Disease

Cancer

(NAT:PD-C)

(Waller, 2008; 2010

e 2010)

Austrlia

50 doentes

oncolgicos

11 PS

PS 17 (sim/no

ou 3 pontos) lista de sintomas

sem referncia a

dispneia

Palliative Care Outcome

Scale (POS)

(Hearn, 1999;

Slater, 2004;

Serra-Prat, 2004;

Stevens, 2005;

Harding, 2010)

Reino

Unido

148 doentes

oncolgicos

e PS

Doente ou

PS

10 (escala

Likert 0-4) +

1 pergunta

aberta

7 minutos

lista de sintomas

sem referncia a

dispneia;

espirituais

Cronbach 0,65-

Doentes

0,70 - PS

Needs of social nature

Existencial concerns

Symptoms Therapeutic

interaction (NEST 13+)

(Emanuel, 2000;

Emanuel, 2001;

Scandrett, 2010)

EUA

988 doentes

onc. e no onc.

Doente ou

PS

13

(0-10 pontos) Cronbach

0.63 - 0.85

Problems and Needs in

Palliative Care

questionnaire-short

version (PNPC-sv)

(Osse, 2004, 2007)

Holanda

94 doentes

oncolgicos

Doente 33

(sim/no) lista de sintomas

sem referncia a

dispneia

Cronbach 0,67 -0,89

Hamilton Chart Audit

Tool (H-CAT)

(Slaven, 2007)

Canada

222 doentes

onc. e no onc.

falecidos

PS sem perfil

especfico de

CP

15 minutos

espirituais

Supportive Care

Pathway (SCP)

(Main, 2006)

Reino

Unido PS

Symptoms and Concerns

Checklist (SCC)

(Lidstone, 2003)

Reino

Unido

480 doentes

oncolgicos

Doente 31 (escala

Likert 0-3)+1

pergunta aberta

5 minutos Cronbach 0,85

Resident Assessment

Instrument for Palliative

Care (RAI-PC)

(Steel, 2003) EUA 151 doentes

K

0.76 - 0.95.

Support Team

Assessment Schedule

(STAS)

(Higginson, 1993;

Lagabrielle, 2001)

Reino

Unido

50 doentes onc.

ou com SIDA

Doentes,

Cuidadores e

PS

16 (escala

Likert 0-4)

informao no disponvel; Onc. Doentes oncolgicos; PS Profissionais de sade;

Captulo 2. Reviso da literatura

20

2.2. Instrumentos de avaliao em doentes com insuficincia respiratria crnica

No existem instrumentos de avaliao de necessidades, especficos para uma populao de

doentes com IRC ou mais especificamente para doentes com DPOC.

Em 2003, Windisch et al. desenvolveram um instrumento para avaliao de qualidade de vida

em doentes com IRC - Severe Respiratory Insufficiency (SRI), a verso original alem e foi

traduzido e validado em castelhano (Lpez-Campos et al, 2006), holands (Duiverman et al,

2008) e ingls (Ghosh et al, 2011). O questionrio apresenta 49 questes abrangendo sete

dimenses: 1) sintomas respiratrios, 2) funcionamento fsico 3) sintomas acompanhantes e

sono, 4) relacionamento social 5) ansiedade 6) bem estar psicolgico e 7) funcionamento

social.

Em 2010, Vitacca et al. desenvolveram um questionrio de 35 questes para cuidadores, de

doentes ventilados no domiclio, em luto. O questionrio avalia seis domnios especficos 1)

controlo de sintomas; 2) conhecimento e controlo da doena; 3) sobrecarga familiar; tempo

gasto para atendimento; encargos financeiros; 4) processo de morrer; 5) problemas mdicos

(consultas, internamentos) e 6) problemas tcnicos (relacionados com a ventilao). Apesar da

pertinncia e interesse deste estudo, no foram testadas as propriedades psicomtricas deste

questionrio (Windisch, 2010).

Apesar da importncia destes dois questionrios no mbito da IRC, nomeadamente nos

doentes ventilados no domiclio, a sua utilizao no nos permitiria rastrear as necessidades

dos doentes em cuidados paliativos.

A escolha do questionrio NEST teve em considerao o facto de ter sido construdo com

base numa populao mista de doentes neoplsicos e no neoplsicos entre os quais 10,9%

dos doentes tinham DPOC (108 doentes), por outro lado foi pedida a opinio autora e

consubstanciada esta deciso, aquando do pedido de autorizao para a sua utilizao (anexo

1 e 2 correspondncia com a autora, 16 Julho 2010).

Captulo 2. Reviso da literatura

21

2.3. O questionrio NEST

O NEST (Needs at the End-of-Life Screening Tool ou Needs of a social nature; Existential

concerns; Symptoms; and Therapeutic interaction) foi desenvolvido por Linda Emanuel e

colaboradores e o projecto recebeu a aprovao Institucional dos Conselhos de Reviso da

Harvard Medical School e do Dana-Farber Cancer Institute em Boston, em colaborao com

38 hospitais de seis locais geogrficos (Emanuel et al, 1999; 2000; 2001).

Aps a construo e validao do questionrio, ocorrida entre 1999 e 2001, procedeu-se sua

reviso em 2006 (Buehler Center on Aging, 2006 - anexo 3) e aplicao em 2010 e 2011.

2.3.1. Caratersticas e estrutura do questionrio NEST

O questionrio foi construdo para ter um alcance abrangente, podendo ser utilizado em

avaliaes sequenciais e num grupo vasto de diagnsticos, sendo, no entanto, suficientemente

breve para poder ser administrado cabeceira da cama.

O questionrio NEST consiste num instrumento de avaliao e triagem de necessidades,

constitudo por 13 perguntas que exploram as necessidades econmicas, o acesso aos

cuidados, a prestao de cuidados, a angstia relacionada com a doena, os sintomas fsicos e

mentais, a proximidade, a espiritualidade, os relacionamentos, o sentido de vida, a

comunicao doente/clnico, a informao e os objetivos dos cuidados.

A forma de pontuao de cada resposta numrica. O formato de resposta do NEST o de

uma escala com diferenciao semntica, com palavras-ncora nos extremos e deriva de uma

escala tipo Likert, uniformizada para uma escala de 0-10, sendo que o score 0 corresponde a

menor intensidade e 10 corresponde a maior intensidade de necessidades.

A interpretao das respostas feita mediante uma chave de scores diferentes, de acordo

com cada questo (Buehler Center on Aging, 2006). Ultrapassado esse score, a resposta

considerada significativa. O sistema de pontuao do NEST realizado item a item,

contribuindo para definir um perfil das reas de fora ou vulnerabilidade do doente - perfil de

Captulo 2. Reviso da literatura

22

necessidade, no sendo avaliado o seu score total (ndice de necessidade) (McDowell, 2006

p.15).

Sendo o NEST uma escala de avaliao numrica de 0-10, as suas pontuaes significam

intensidade de uma necessidade e so variveis qualitativas ordinais pelo que o valor

atribudo no uma quantidade real.

2.3.2. Aplicao do questionrio NEST

O NEST administrado em formato de papel, podendo ser preenchido pelo doente

(autoadministrado) ou ajudado por profissional de sade (questionrio-entrevista). No

existe verso eletrnica deste instrumento. Em 2010, Scandrett et al testaram-no como

ferramenta-de-cabeceira para detetar e documentar as necessidades e para orientar

intervenes a doentes internados com neoplasia (em hospitais, no hospcios) e, em 2011,

Grudzen et al testaram-no num servio de urgncia em doentes com mais de 65 anos, com

doenas neoplsicas e no neoplsicas (incluindo insuficincia respiratria, cardaca, renal,

heptica, AVC e demncia). Em ambos os estudos foi administrado sob a forma de

questionrio-entrevista. No estudo de Scandrett et al (2010), a segunda aplicao do teste, no

final do internamento, foi parcialmente efetuada por entrevista telefnica (nas primeiras 48

horas, aps alta).

Nos estudos de Emanuel et al (2000 e 2001), Scandrett et al (2010) e Grudzen et al (2011) no

h informao disponvel quanto percentagem de dados omissos ou dificuldade na

interpretao dos resultados.

O tempo de preenchimento do questionrio no foi referido nos dois estudos em que foi

avaliada a sua viabilidade (Scandrett et al, 2010 e Grudzen et al, 2011). No entanto, a sua

aplicao foi feita sob a forma de questionrio-entrevista, sendo, ainda, complementada por

perguntas adicionais (NEST13+7) no estudo de Scandrett et al.

7 Anexo II- disponvel em CD-R.

Captulo 2. Reviso da literatura

23

Apesar de se tratar da aplicao do questionrio NEST num servio de urgncia Grudzen et al

(2011) referem uma elevada percentagem de doentes excludos (38,4%) no teste de rastreio

cognitivo (six-item screener de Callahan et al, 2002) que consideraram necessrio para a

participao no estudo. No entanto este pr-requesito no tem sido unanimemente utilizado na

aplicao de instrumentos de avaliao em CP, nem o tinha sido no estudo de Scandrett

(2010).

Como j foi anteriormente referido, a sua aplicao j foi testada em dois ambientes:

internamento e servio de urgncia.

No estudo de Scandrett et al (2010) foi, ainda, testada a sua capacidade de avaliao de

resposta (pr e ps interveno).

O instrumento de avaliao NEST foi projetado para auxiliar as equipas de sade a avaliar e

resolver as necessidades relacionadas com a doena, habitualmente no avaliadas pela

avaliao convencional. Depois de desenvolvido e validado, foi testado em doentes com

neoplasia, no Northwestern Memorial Hospital (Estados Unidos da Amrica), detetando

sofrimento relacionado com a doena, dificuldades de acesso aos cuidados, satisfao quanto

aos objetivos do atendimento e necessidade de cuidadores. O objetivo principal dos autores

com a utilizao deste instrumento proporcionar uma avaliao individual e global de cada

pessoa doente, com doena crnica ou em risco de vida. O NEST no est traduzido noutra

lngua nem foi validado noutro pas. A sua viabilidade foi testada, em 2010 e 2011.

Captulo 3. Validao e adaptao transcultural de instrumentos

24

Captulo 3. Validao e adaptao transcultural de instrumentos

Neste captulo, desenvolvem-se os fundamentos tericos que condicionaram a metodologia

utilizada neste estudo.

3.1. Validao de instrumentos

Para validar um questionrio necessrio verificar se o instrumento tem as caratersticas

psicomtricas adequadas para o qual o instrumento foi projetado. Avaliar as propriedades

psicomtricas de um instrumento um critrio essencial para determinar a qualidade da sua

medio (McDowell, 2006).

As duas caratersticas mtricas essenciais para avaliar a preciso de um instrumento so a

fidelidade e a validade. O objetivo principal da validao diz respeito ao significado ou

interpretao dos scores do instrumento. Este conceito de validao, que reflete a ideia de

concordncia com um critrio, habitualmente utilizado em epidemiologia e pressupe a

noo de sensibilidade e especificidade (Macdowell, 2006 p. 30). Um instrumento pode ser

fiel porque mede uma varivel de uma forma constante mas invlido se no mede os

fenmenos que suposto medir (Fortin, 2009). A capacidade de resposta e a viabilidade so

duas outras propriedades mtricas que tambm contribuem para a validade de um instrumento

(Andrews et al, 1994).

A avaliao das propriedades psicomtricas de um instrumento d consistncia aos resultados

obtidos e, desta forma, podem ser comparados com os obtidos em outros estudos que

utilizaram os mesmos instrumentos. A validao de um instrumento um processo contnuo e

dinmico, que adquire mais consistncia medida que mais propriedades psicomtricas so

medidas em culturas diferentes, com diferentes populaes e indivduos (McDowell, 2006).

3.1.1. Conceito de fidelidade

A fidelidade refere-se preciso e consistncia das medidas obtidas com a ajuda de um

instrumento de medida. Reporta-se capacidade do instrumento medir de uma vez para a

Captulo 3. Validao e adaptao transcultural de instrumentos

25

outra um mesmo objeto de forma constante reprodutibilidade das medidas (Fortin, 2009 p.

348-350).

Existem diversos critrios para avaliar a fidelidade dos instrumentos de medida. Os principais

so a estabilidade, a consistncia interna e a equivalncia.

A estabilidade ou fidelidade temporal ou consistncia externa refere-se ao grau de

concordncia entre duas medidas colhidas em dois momentos diferentes (Aguiar, 2007

p. 62). Considera-se um instrumento como sendo estvel, quando as duas medidas,

efetuadas nas mesmas condies e junto dos mesmos indivduos, do resultados

idnticos. Apesar de alguns autores recomendarem intervalos de duas a quatro

semanas, entre as duas medies (Fortin, 2009 p.349), numa populao de cuidados

paliativos habitual optar por intervalos inferiores, de forma a repetir a medio em

condies semelhantes.

A estabilidade do instrumento de medida avalia-se por meio da tcnica de teste-

reteste e a relao entre os dois conjuntos de scores exprime-se por um coeficiente de

estabilidade. Um coeficiente de correlao elevado (> 0,70) significa que as medidas

mudaram pouco, de uma vez para a outra (Fortin, 2009 p. 350).

A fidelidade interna ou consistncia interna designa a concordncia existente entre

todos os enunciados individuais que constituem o instrumento de medida. Refere-se

homogeneidade de um conjunto de enunciados que servem para medir diferentes

aspetos de um mesmo conceito. Quanto mais os enunciados so correlacionados,

maior a consistncia interna do instrumento. A consistncia interna assenta no

princpio de que o instrumento unidimensional, isto , que mede um s conceito.

A tcnica correntemente utilizada para apreciar o grau de consistncia interna de um

instrumento o clculo do coeficiente alfa () de Cronbach. O alfa () de Cronbach

permite determinar at que ponto cada enunciado da escala mede um dado conceito da

mesma forma que os outros. O coeficiente alfa () funo do nmero de enunciados

de uma escala e mais elevado se a escala comporta vrios enunciados. O valor dos

coeficientes varia entre 0,00 e 1,00; um valor elevado indica uma grande consistncia

interna (Fortin, 2009 p. 350-351).

Captulo 3. Validao e adaptao transcultural de instrumentos

26

A equivalncia de um instrumento aprecia-se em duas circunstncias: quando se

utilizam duas formas equivalentes de um mesmo instrumento (as formas equivalentes

so utilizadas para evitar o efeito de aprendizagem) e quando um fenmeno

observado por diferentes pessoas (fidelidade inter-juzes) (Fortin, 2009 p.351-352). No

caso do questionrio NEST, no existem duas formas equivalentes deste instrumento e

o instrumento foi construdo para ser preenchido exclusivamente pelo doente, pelo que

a avaliao da equivalncia no ser efetuada.

3.1.2. Conceito de validade

A validao corresponde ao grau de preciso com o qual o conceito representado por

enunciados particulares num instrumento de medida. Um instrumento vlido se ele mede

bem o que suposto medir (Fortin, 2009 p. 354-355). Importa avaliar a validade de contedo,

a validade de critrio e a validade conceptual.

Validade de contedo refere-se ao carcter representativo dos enunciados utilizados

num instrumento para medir o conceito ou domnio em estudo. A validade de

contedo est diretamente ligada definio terica do conceito, definio precisa

do objeto de estudo e determinao dos indicadores que servem para avaliar os

comportamentos a observar (Fortin, 2009 p. 355-356; McDowell, 2006 p. 30). A

avaliao da validade de contedo especialmente relevante quando o instrumento

est a ser desenvolvido, sendo de menor importncia quando j foi validado e utilizado

em diferentes reas (Agra et al, 1998). Pode ser avaliada atravs de entrevistas

cognitivas aos respondentes, de forma a verbalizarem as suas reaes a cada uma das

questes e assim entender como foram percebidas (McDowell, 2006 p. 31).

A validade de critrio refere-se correlao entre um instrumento de medida e um

outro instrumento (critrio) que mede o mesmo fenmeno. O primeiro instrumento

pode predizer um resultado que produzir um outro instrumento que mede o mesmo

conceito, no mesmo momento. A validade de critrio pode ser dividida em

concomitante e preditiva, referindo-se a primeira ao estado atual e a segunda ao estado

futuro.

Captulo 3. Validao e adaptao transcultural de instrumentos

27

A validade concomitante refere-se correlao entre duas medidas do mesmo

conceito, tomadas ao mesmo tempo junto dos indivduos (Fortin, 2009 p. 356).

Idealmente, o estudo decorre em uma populao no selecionada, aplicando o

instrumento a estudar e o goldstandard. Como alternativa, aplica-se o instrumento a

indivduos com e sem o problema, selecionados atravs do goldstandard. A aplicao

do instrumento desta forma permite estabelecer a sua sensibilidade e especificidade

(McDowell, 2006 p.31-34). A validade concomitante seria avaliada no NEST se

estivesse disponvel em lngua portuguesa um instrumento goldstandard ao qual o

NEST seria comparado. Mas, para a avaliao da validade concomitante, pode, ainda,

comparar-se a escala de medida com dados clnicos (Fortin, 2009 p.357), pelo que

poder ser explorada a correlao entre certos enunciados e dados sociodemogrficos

e clnicos, colhidos data do preenchimento do questionrio. A validade preditiva

refere-se capacidade de um instrumento poder prever uma situao futura, a partir de

um resultado atual. O desenho transversal deste estudo no permite este tipo de

validao.

A validade conceptual ou validade de construto diz respeito capacidade de um

instrumento medir o conceito ou o construto definido teoricamente (estrutura terica).

Para estimar a validade conceptual, utiliza-se a anlise estrutural, os grupos de

contraste, a validade convergente e a validade divergente.

Um grau elevado de validade conceptual ou estrutura terica deve poder mostrar que

a estrutura terica est de acordo com a teoria subjacente (Vallerand, 2000 citado por

Fortin, 2009 p.358) a anlise fatorial um mtodo que permite reter agrupamentos de

conceitos fortemente ligados entre si (fatores) e til para determinar se os enunciados

de uma escala de medida se reagrupam em torno de um s fator. A anlise de

componentes principais poder ser realizada para descobrir e sumarizar o padro de

intercorrelaes entre as variveis.

O mtodo dos grupos de contraste consiste em aplicar uma escala de medida a dois

grupos de indivduos diferentes em que se espera que obtenham scores opostos com a

varivel medida (Fortin, 2009 p.358).

Captulo 3. Validao e adaptao transcultural de instrumentos

28

Validade convergente e validade divergente para avaliao da validade

convergente correlacionam-se entre si dois ou mais instrumentos, medindo o mesmo

conceito. Para estabelecer a validade divergente correlacionam-se os resultados

obtidos por meio de dois ou mais instrumentos, medindo conceitos diferentes

(Mcdowell, 2006 p. 34-35).

Para a interpretao dos coeficientes de correlao, Macdowell (2006 p. 35) alerta

para a dificuldade de correlacionar um instrumento com outro j que, habitualmente,

surgem alguns problemas lgicos. Como o instrumento que se quer correlacionar no

foi geralmente desenhado para reproduzir a ou as escalas com o qual est a ser

comparado, no de esperar que a correlao seja perfeita e, por isso, sugere que se

fundamente com que tipos de variveis se deve relacionar, logicamente, o instrumento

de medida e qual a magnitude esperada para esse coeficiente de correlao, antes de se

proceder ao teste emprico de validao.

O coeficiente de correlao pode variar de -1.0 (indicando uma associao inversa) at

+1,0, tendo 0,0 o significado de no existir qualquer associao. Como existem

sempre erros de medio aleatria, a correlao mxima nunca pode atingir 1,0.

Quando os coeficientes de fidelidade dos instrumentos so conhecidos, a correlao

observada pode ser comparada com o mximo teoricamente possvel8, ajudando na

interpretao do coeficiente obtido entre duas escalas.

3.1.3. Conceito de capacidade de resposta

A capacidade de resposta do instrumento tambm uma forma de avaliao de um

instrumento e corresponde sensibilidade do instrumento detetar a mudana, ao longo do

tempo e aps uma determinada interveno, omitindo a mudana aleatria. A forma mais

consensual de avaliar essa capacidade de resposta ou sensibilidade tem como numerador a

mudana de pontuao (tipicamente antes e aps o tratamento) e, como denominador, o

desvio padro da medida em linha de base ou o erro padro dos scores (McDowell, 2006 p.

42). O desenho transversal deste estudo no permite este tipo de avaliao do instrumento.

8 Correlao mxima esperada teoricamente entre dois instrumentos - raiz quadrada do produto das suas

fidelidades (McHorney, 1995 citado por Macdowell, 2006 p. 35).

Captulo 3. Validao e adaptao transcultural de instrumentos

29

3.1.4. Conceito de viabilidade

A dificuldade de implementar a utilizao rotineira de um instrumento de medida, na prtica

clnica, relaciona-se com a viabilidade desse instrumento. Apesar de no haver consenso

sobre o significado de viabilidade ou de como ele deve ser medido Slade et al (1999),

consideram importante analisar esta propriedade psicomtrica e definem uma escala vivel

como simples, rpida de preencher, relevante, aceitvel, disponvel e valiosa. Para tal so

necessrias certas caractersticas particulares do instrumento que se repercutem na:

infraestrutura necessria para a recolha de dados (motivao e treino do pessoal que a utiliza)

e para a anlise dos resultados que, por sua vez, permitiro gerar mudanas nos cuidados

clnicos a administrar ou nos planos dos servios onde esse instrumento vai ser implementado.

Andrews et al (1994) identificaram trs dimenses de viabilidade: aplicabilidade, aceitao e

praticabilidade. A aplicabilidade o grau em que uma medida avalia dimenses de

importncia para o avaliador. A aceitabilidade descreve a facilidade com que um avaliador

pode utilizar uma determinada medida. A praticabilidade refere-se aos requisitos de treino e

complexidade da pontuao, relatrio e interpretao dos resultados. Quando so avaliados

estes parmetros, compreendem-se as possveis barreiras implementao e os ingredientes

necessrios para a sua aplicao com sucesso clnico dirio.

De certa forma o conceito de viabilidade corresponde ao conceito de utilidade analisado por

outros autores que consideram necessrio analisar o tempo de preenchimento, o nmero de

respostas preenchidas, a facilidade do preenchimento, a necessidade ou no de ajuda de

terceiros no preenchimento, bem como outros aspetos de interesse para o clnico que utiliza o

questionrio e que esto relacionados com o formato do questionrio, a clareza das perguntas,

o registo, a codificao e interpretao dos resultados e a perceo do seu uso na prtica

clnica (Argimon & Jimnez, 2004; Wen & Gustafson, 2004; Richardson et al, 2005).

Captulo 3. Validao e adaptao transcultural de instrumentos

30

3.2. Adaptao transcultural de um instrumento

3.2.1. Equivalncia transcultural

A adaptao transcultural de um questionrio de estado de sade para utilizao num pas

diferente daquele onde o questionrio foi desenvolvido (pas, cultura, e/ou linguagem) precisa

de ser feita de forma metdica, para que se mantenha a equivalncia entre a verso original e

a verso traduzida.

Se o questionrio vai ser utilizado numa cultura diferente, os itens devem ser bem traduzidos

linguisticamente, mas tambm devem ser adaptados cultura-alvo, de forma que se mantenha

a validade de contedo do instrumento, ao nvel conceptual. S desta forma se assegura que o

impacto de uma doena ou do seu tratamento seja descrito de forma semelhante em estudos

multinacionais. O termo "adaptao transcultural" utilizado para englobar um processo que

tem em considerao a lngua (traduo) mas, tambm, problemas culturais de adaptao no

processo de preparao de um questionrio para utilizao num ambiente diferente do original

(Beaton et al, 2000).

A traduo de uma escala deve permitir a comparao dos conceitos entre respondentes

pertencentes a culturas diferentes (Fortin, 2009). Segundo Hulin (1987, citado por Fortin,

2009 p.396), este gnero de comparao possvel se o significado que dado aos conceitos

da escala original e que validado noutra lngua for o mesmo para as duas culturas

comparadas. O objetivo obter medidas equivalentes. O que procurado a equivalncia das

medidas. Para que tal acontea deve ser procurada equivalncia, entre a verso original e a

verso traduzida, em quatro reas (Beaton et al, 2000):

Semntica: as palavras escolhidas significam o mesmo? Existem vrios significados

para o mesmo item? Existem dificuldades gramaticais na traduo?

Idiomtica: os coloquialismos ou expresses idiomticas so difceis de traduzir. Se

necessrio, um comit de traduo deve formular uma expresso equivalente na verso

a traduzir;

Captulo 3. Validao e adaptao transcultural de instrumentos

31

Experimental /experiencial: os itens podem abranger atividades que no so

praticadas no pas de destino e, assim, mesmo que seja traduzvel, deve ser substitudo

por um item semelhante;

Conceptual: por vezes, as palavras tm significados conceptuais diferentes, consoante

as culturas. Por exemplo, o conceito de famlia pode ser mais expandido ou nuclear.

O que se pretende no uma traduo literal mas uma traduo que conserve o significado

dos conceitos.

Um outro aspeto a ter, ainda, em considerao a de que o questionrio final deve ser

compreendido por uma pessoa com 12 anos de idade (equivalente ao sexto ano de

escolaridade), j que esta a recomendao geral para questionrios (Beaton et al, 2000).

3.2.2. Processo de traduo

Para obter uma adaptao transcultural de um instrumento em outra lngua a Task Force for

Translation and Cultural Adaptation (Wild et al, em 2005) sugere o mtodo de traduo-

retrotraduo utilizado por tradutores bilingues, devendo ser seguidos os seguintes passos:

traduo na lngua-alvo, por tradutores bilingues independentes, preferencialmente um

da rea de sade, com a intenso de obter duas tradues que captem o significado

conceptual, mais do que serem tradues literais;

anlise de discrepncias, por peritos, com conciliao sobre hbitos lingusticos e

preferncias e criao de uma verso de traduo consensual na lngua alvo;

reviso de erros gramaticais ou outros, sempre que feita uma nova traduo para a

lngua alvo;

anlise de compreenso e aceitabilidade, aps aplicao da verso traduzida num teste

piloto. Este passo tem como objetivo resolver problemas que possam resultar no no

preenchimento, eventualmente relacionados com palavras ou frases com que os

utilizadores do questionrio possam no estar familiarizados;

retrotraduo sem conhecimento da verso original; com eventual repetio, caso seja

necessrio fazer alteraes verso traduzida na lngua alvo;

comparao da verso retrotraduzida com a original, analisando a equivalncia

semntica;

Captulo 3. Validao e adaptao transcultural de instrumentos

32

relatrio, especificando as escolhas feitas em todo o processo de traduo e pedido de

aprovao ao autor;

Captulo 4. Estudos de validao de questionrios

33

Captulo 4. Estudos de validao de questionrios

Neste estudo foram aplicados dois instrumentos o NEST e o MOS-SF36.

4.1. Validao do questionrio NEST

O NEST (Needs at the End-of-Life Screening Tool ou Needs of a social nature; Existential

concerns; Symptoms; and Therapeutic interaction) foi desenvolvido por Linda Emanuel e

colaboradores e o projeto recebeu a aprovao Institucional dos Conselhos de Reviso da

Harvard Medical School e do Dana-Farber Cancer Institute, em Boston, em colaborao com

38 hospitais de seis locais geogrficos (Emanuel et al, 1999; 2000; 2001).

A validao do NEST englobou trs fases:

Na primeira fase - construo do questionrio - realizou-se uma sondagem com 15 focus

groups e 6 entrevistas em profundidade (in-depth interviews), com uma grande variedade de

pessoas envolvidas em cuidados de fim de vida, incluindo doentes internados em hospcios,

doentes em reabilitao hospitalar, doentes afroamericanos e hispnicos, cuidadores de

doentes terminais, cuidadores que estavam em luto recente, indivduos idosos, mdicos,

enfermeiras de cuidados intensivos, prestadores de servios em unidades de cuidados

paliativos ou domicilirios, assistentes sociais hospitalares cuidando de doentes terminais e

prestadores de cuidados religiosos. Utilizando anlise de contedo informal de gravaes dos

grupos focais e entrevistas, bem como uma extensa reviso da literatura, foram encontradas as

dimenses consideradas de maior importncia na experincia dos doentes em fim de vida

(Emanuel & Emanuel, 1998). O quadro conceptual estudado descreve um conjunto de

caratersticas fixas do paciente, de dimenses modificveis da experincia do doente e uma

srie de intervenes a proporcionar que pudessem modificar a experincia do doente e

influenciar os resultados.

As dimenses modificveis incluram: sintomas fsicos, sintomas psicolgicos e cognitivos,

relaes sociais, necessidades econmicas, necessidade de cuidados, esperana e expectativa e

sentimentos espirituais e existenciais. As intervenes a efetuar pelo sistema de cuidados

Captulo 4. Estudos de validao de questionrios

34

incluam fatores de base familiar, social, servios mdicos e institucionais e ainda fatores

econmicos.

De vrias escalas padro e questionrios foram adaptadas uma srie de perguntas. As questes

relacionadas com sintomas foram adaptadas do Wisconsin Brief Pain Inventory, do Medical

Outcomes Study (MOS) SF-36 e do European Clinical Oncology Group (ECOG), as questes

relacionadas com medidas de desempenho e apoio social foram adaptadas da escala MOS

Social Support Scale. O instrumento desenvolvido para a entrevista inclua 135 questes e foi

pr-testado com 18 doentes e 15 cuidadores (Emanuel et al, 1999). Cada uma das questes

tinha vrias opes de resposta, em 10 domnios: (1) caractersticas do doente; (2) estado de

sade e sintomas; (3) interaes sociais; (4) comunicao com o mdico / enfermeiro; (5)

significado pessoal; (6) responsabilidades nos cuidados; (7) planos e preferncias; (8)

sobrecarga econmica dos cuidados; (9) perceo de entrevista; e (10) atitudes sobre a

eutansia e suicdio medicamente assistido. O questionrio foi posteriormente sujeito a

reviso por peritos e refinamento.

Na segunda fase - validao do questionrio (Emanuel et al, 2000) - foram selecionados

1.131 doentes elegveis (maiores de 18 anos, mentalmente competentes e falando ingls), de

cinco reas metropolitanas e uma rea rural (representativas da diversidade geogrfica dos

Estados Unidos), atravs de 383 mdicos selecionados aleatoriamente (atravs de registo de

mdicos centrais e listas de membros de vrias sociedades e especialidades, incluindo

oncologistas, cardiologistas, pneumologistas, gastrenterologistas e internistas), a quem foi

pedido que referenciassem para o estudo doentes com uma expetativa de vida de seis meses

(portadores de qualquer doena exceo de infeo VIH/SIDA).

Dos 1.131 doentes elegveis, aps a primeira entrevista, 988 foram entrevistados (taxa de

resposta de 87,4%). Dos 682 doentes que se mantiveram vivos 4 a 6 meses aps a primeira

entrevista (69%), 650 foram novamente entrevistados (95,3% de taxa de resposta). Dos 988

entrevistados 59,4% tinham mais de 65 anos e 51,5% eram mulheres. A patologia terminal

mais frequente foi a neoplsica (em 51,8% dos doentes) seguida da doena cardaca (18,0%) e

DPOC (10,9%). A maioria (96%) estava em ambiente ambulatrio, 4% estavam

institucionalizados (incluindo hospitais, hospcios e clnicas com enfermagem). As entrevistas

Captulo 4. Estudos de validao de questionrios

35

ocorreram entre maro de 1996 e julho de 1997 e foi utilizado um questionrio de 52 questes,

na primeira entrevista, e de 58 questes, na segunda entrevista.

Para avaliar a validade de construto foi feita anlise fatorial exploratria que identificou 12

fatores discretos (explicando 55% da varincia; p mximo de Spearman = 0,24), dos quais 8

fatores preencheram os critrios para representar as dimenses mensurveis (correspondendo

a 46% da varincia). Estes 8 fatores foram: relao doente-clnico; conexo social; cuidados

necessrios; sofrimento psicolgico; espiritualidade / religiosidade; aceitao pessoal; sentido

de propsito e comunicao com o mdico. Os Eingenvalues variaram entre 1,45-6,30 e de

Cronbach entre 0,63-0,85.

No follow-up foram tambm evidenciadas as mesmas dimenses, exceto no que diz respeito

s duas primeiras dimenses (relao mdico-doente e conexo social), transformadas num

fator combinado - interao clnica (Eigenvalue entre 1,83-7,92; de Cronbach entre 0,64 -

0,86) conforme se expe no quadro 2.

Quadro 2 Consistncia interna e fidelidade das dimenses do NEST *

Sondagem inicial Eingenvalue Coeficiente de Cronbach

1. Relao doente-clnico 6,30 0,77

2. Conexo social 4,20 0,85

3. Cuidados necessrios 3,01 0,79

4. Sofrimento psicolgico 2,83 0,70

5. Espiritualidade / religiosidade 2,65 0,71

6. Aceitao pessoal 1,76 0,63

7. Sentido de propsito 1,56 0,65

8. Comunicao com o mdico 1,45 0,83

Sondagem 4-6 meses depois

1. Interao clnica 7,92 0,85

2. Conexo social 4,51 0,86

3. Cuidados necessrios 2,92 0,80

4. Sofrimento psicolgico 2,60 0,73

5. Espiritualidade / religiosidade 3,55 0,83

6. Aceitao pessoal 2,00 0,69

7. Sentido de propsito 1,83 0,64

Nota: Eingenvalues 1 foram interpretados como identificadores de dimenses subjacentes.

Foi necessrio coeficiente Cronbach > 0,60 para um fator representar uma dimenso

mensurvel. * verso original: 52 questes na primeira sondagem e 58 questes na segunda

sondagem (Emanuel et al, 2000).

Captulo 4. Estudos de validao de questionrios

36

O modelo multidimensional foi subsequentemente testado com anlise fatorial confirmatria

para avaliar a qualidade do ajuste e do fator de invarincia de acordo com o grupo etrio, sexo,

nvel de educao, grupo tnico e geogrfico.

Ainda para avaliar a validade de construto foi procurada associao entre as dimenses, tendo

sido examinadas associaes entre pares de dimenses e associaes entre as dimenses

individuais e as variveis sociodemogrficas ou caractersticas dos cuidados de interveno,

atravs de anlise de regresso logstica. Para poder quantificar as dimenses foi necessrio

uniformizar a escala de resposta para cada questo de cada dimenso. Para examinar as

associaes entre dimenses, cada dimenso foi dicotomizada na sua mediana. Foram testadas

associaes entre cada dimenso, usando-a como uma varivel dependente, e as dimenses

restantes, utilizando-as como variveis independentes. Da mesma forma, foram testadas

associaes entre cada dimenso e outras variveis independentes, entre as quais: idade do

doente, gnero, raa, grupo minoritrio, religio, estado civil, rendimento, educao, presena

ou ausncia de neoplasia, durao da doena, experincia prvia do doente com a morte

(prestao de cuidados, decises de fim-de-vida) e pedido de tratamento adicional para dor.

Quanto s associaes entre pares de dimenses, a comunicao com o mdico e a

relao doente-clnico foram associadas (odds ratio [OR] 2,79). Uma melhor

comunicao com o mdico correlacionou-se com uma melhor aceitao pessoal

(OR 1.10), e uma melhor relao doente-clnico correlacionou-se com menor

sofrimento psicolgico (OR 0,84). Os doentes com maior espiritualidade

/religiosidade (OR 1,38) foram associados com os que apresentavam maior sentido

de propsito (OR 1.36), e os doentes com maior aceitao pessoal foram mais

propensos a ter medidas melhores nessas dimenses (OR 1.11 e OR 1.20

respetivamente).

Quanto s associaes entre as dimenses individuais e as variveis

sociodemogrficas, foram poucas as caratersticas com associao significativa. No

entanto, destacaram-se algumas associaes: os doentes casados ou que viviam com

um parceiro (OR 3,37) e aqueles que tinham menos de 65 anos (OR 1,44)

apresentavam maior conexo social. A aceitao pessoal foi maior entre os

doentes que consideravam o enfermeiro o seu clnico principal, em oposio a um

mdico (OR 2,79). As doentes do sexo feminino (OR 1,67), os grupos minoritrios

Captulo 4. Estudos de validao de questionrios

37

(OR 1.70), e os mais instrudos (OR 1,77) foram mais propensos a considerar a

relao doente-clnico boa. Por outro lado, as doentes do sexo feminino (OR 1.42) e

os doentes mais jovens (OR 1.59) relataram maior sofrimento psicolgico (Emanuel

et al, 2000 p. 427).

A anlise de resultados iniciais e quatro a seis meses depois foram realizadas separadamente

para fornecer uma avaliao da estabilidade ao longo do tempo, para as dimenses do

construto obtidas - validao de estabilidade com teste-reteste.

Nesta fase do estudo, demonstrou-se a concordncia entre os domnios teorizados no quadro

conceptual (Emanuel & Emanuel, 1998) e as dimenses identificadas aps anlise fatorial da

sondagem efetuada aos doentes, com apenas duas excees, dado que emergiram duas

dimenses novas: espiritualidade / religiosidade e sentido de propsito, sendo que j tinha

sido colocada a hiptese relacionada com "crenas espirituais e existenciais. Alm disso,

uma outra hiptese colocada no quadro conceptual "esperanas e expectativas" no foi

considerada como dimenso distinta, embora a aceitao pessoal fosse identificada.

Segundo Emanuel et al (2000), os resultados da validao do NEST indicaram que as oito

dimenses eram relevantes para os doentes nos diferentes grupos sociodemogrficos e

continuavam a ser relevantes ao longo da trajetria de vida. O modelo de oito fatores

mostrou-se adequado para diferentes idades, gneros, nveis de ensino, etnias e grupos

geogrficos.

Posteriormente, selecionaram-se e desenvolveram-se as questes para o questionrio NEST

(Emanuel et al, 2001). Foram realizadas modificaes no questionrio, de forma a estar

adaptado ao contexto clnico. Da anlise e modificaes efetuadas, resultou um questionrio

com 13 questes. Finalmente, para facilitar a utilizao cabeceira do doente, foi criada

uma mnemnica, englobando os quatro temas centrais dos cuidados paliativos, incluindo as

letras do acrnimo NEST: Necessidades (sociais), Existenciais, Sintomas e questes

Teraputicas. A mnemnica NEST teve em considerao a afirmao de Cicely Saunders

(1959, citada por Emanuel, 2001), de que cuidar de doentes deve incluir uma avaliao das

suas necessidades sociais, espirituais, fsicas e mentais.

Captulo 4. Estudos de validao de questionrios

38

A seleo das perguntas foi baseada numa combinao das suas caratersticas psicomtricas e

operacionais e no julgamento clnico de um grupo de foco (focus group).

Em relao s propriedades psicomtricas foram utilizados os factor loadings

(coeficiente de saturao) para a escolha dos itens. Quanto maior o peso de cada fator,

maior a possibilidade do item ter sido selecionado.

No que respeita s caratersticas operacionais, foram escolhidos os itens que

mostraram maior sensibilidade ou capacidade de detetar a dimenso subjacente. Esta

anlise foi feita comparando quantas vezes uma resposta positiva a qualquer item de

uma determinada dimenso coincidiu com uma resposta positiva a outros itens dentro

dessa dimenso. Foi dada prioridade sensibilidade mais do que especificidade,

pois, embora fosse importante a preciso duma questo com alta especificidade,

pretendia-se que o NEST fosse predominantemente um instrumento de triagem.

O grupo focal foi composto por trs mdicos de cuidados paliativos e hospcios e uma

enfermeira de cuidados paliativos. Foi feito um julgamento clnico para ajudar a

selecionar quais os itens capazes de fornecer informao significativa numa consulta

clnica. A redao de cada item foi adaptada ao ambiente clnico. Por exemplo, os

pronomes foram alterados de acordo com a consulta clnica. Sempre que possvel

simplificou-se o texto, sem alterar o seu significado e foram feitas algumas

combinaes de itens com o objetivo de maximizar o factor loading, a sensibilidade e

o significado clnico.

O formato de resposta de todos os itens NEST foi aumentado, dos 4 a 5 pontos da escala de

Likert original, para uma escala uniforme de 0 a 10. Esta alterao foi feita, no s para

maximizar o poder discriminatrio mas, tambm, para aplicar uma escala j familiar em

alguns contextos clnicos, como, por exemplo, na monitorizao da dor. A formulao das

respostas foi ainda ajustada para se adequar escala de 0 a 10, sendo os scores mais elevados

indicadores de maior gravidade/necessidade.

A primeira publicao do questionrio NEST, apresentando as 13 questes selecionadas, data

de 2001 (Emanuel et al, 2001). Em 2006, foi publicada a sua reviso (Buehler Center on

Captulo 4. Estudos de validao de questionrios

39

Aging, 2006)9. Nessa nova verso esto includas as instrues e os respetivos scores de cada

item, tendo ainda sido feita alterao da ordem de algumas perguntas. Nesta nova verso

NEST 13+10

, o questionrio de rastreio pode ainda ser complementado por 48 questes

adicionais, caso a resposta a cada pergunta ultrapasse o score considerado significativo, e,

ainda, utilizando a escala de ESAS (Bruera et al, 1991) no caso das perguntas n. 5 (sintomas

fsicos) e ou n. 6 (sintomas psicolgicos) ultrapassarem os scores considerados significativos.

Na terceira fase, foi feita a avaliao da viabilidade do NEST, como instrumento de rastreio

de necessidades, complementada ou no pelas perguntas adicionais do NEST13+ (Scandrett et

al, 2010). O estudo foi aprovado pela University Northwestern e Hospital Northwestern

Memorial, em Chicago, EUA, e consistiu num ensaio clnico controlado em 451 doentes

internados num servio de oncologia, pelo menos durante dois dias, com mais de 21 anos e

em condies fsicas para participar na entrevista.

No primeiro dia de internamento, foi feito o preenchimento do NEST ou NEST13+, a todos

os doentes. s equipas dos doentes no intervencionados (149 doentes) no foi fornecida

informao sobre os resultados do NEST13+, s equipas dos doentes intervencionados (159

doentes) o entrevistador forneceu os resultados do NEST13+ e respetivas recomendaes

clnicas de acordo com as dimenses que tinham ultrapassado os