24
AS ABELHAS PRODUZEM SOL 2015

Capítulo de 'Estação de Serviço em Mercúrio

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Capítulo do livro 'Estação de Serviço em Mercúrio' de Nuno Brito. Enfermaria 6, Lisboa, 2015.

Citation preview

Page 1: Capítulo de 'Estação de Serviço em Mercúrio

As AbelhAs Produzem sol

2015

Page 2: Capítulo de 'Estação de Serviço em Mercúrio
Page 3: Capítulo de 'Estação de Serviço em Mercúrio

As AbelhAs Produzem sol (2015) | 91

Um marinheiro = dois marinheiros

Mãe, amiguei-me de um marinheiroe agora vou com ele para terrapeço-te que, enquanto isso, te mantenhas à superfícieou venhas a ela sempre que possas.

Trouxe-me um girassol, o caule e o pulso seguropareciam um só.

É um marinheiro terra-tenenteque me diz que o mar parece um deserto, e agora fui comprar linha douradae faço um lenço bordado para lhe dar –mãe, ele vai para terra firme, para o meio da terra firme, uma cidade perigosa, os vícios humanos, drogas, tentações,passo o dia a costurar a renda no lenço:os três pastorinhos, uma aparição mariana, os doze passos da vida de

Zapata,todas as figurinhas que me ensinaste a bordar, Não faltará uma pomba com as duas patas partidas – Símbolo de quê? – Vai perguntar o meu marinheiro, sou um Coala, mãe, e ele é uma árvore, e então abraço-me a ele, e o tempo passa e passa até que um cartógrafo venha fazer um mapa

do tempo que será a nossa toalha, na nossa mesa da cozinha, a casa humilde mas aportuguesada onde todos serão bem-vindos e onde haverá pão para todos, um pão para cinco ou um pão para cinquenta, mas sempre um pão.

Page 4: Capítulo de 'Estação de Serviço em Mercúrio

92 | nuno brito

Sei que sou agora também um marinheiro porque um marinheiro é sempre igual a dois marinheiros. Espera uma carta minha, nela vou contar-te tudo o que se passa nesse mar onde agora caminhamos, esse estranho mar cheio de pó, pode ser o Arizona, Oaxaca ou o vale

de Arouca,mãe, um dia eu e o marinheiro que também sou eu vamos nadar até ao meio dessa água enquanto isso peço-te: não te deixes ir ao fundovamos levar um pequeno coala e a árvore a que se agarracom sangue de pirata e seiva de pirata também dentro dele a música vai bombear o sangue para todo o corpo, vais segurar-lhe os dedos finos, as tuas memórias já lhe estão ancoradas

no peito, dentro dele memórias que nadam como cavalos marinhos no sangue

azul da nossa família sem nome ou história vais ver nos olhos dele os olhos da tua mãe e nas palavras dele um eco

que dança. Peço-te, mãe, enquanto estiver em terra firme não te deixes ir ao

fundo…Vai trazer-te uma caixa, lá dentro um girassol, uma granada e duas asas,

enquanto isso anda à superfície muitas vezes:

Que te puxe uma memória do futuro,que te puxem uns olhos que também são teus.

Page 5: Capítulo de 'Estação de Serviço em Mercúrio

As AbelhAs Produzem sol (2015) | 93

As abelhas produzem sol I

O ar está carregado de ferro e eletricidade, está húmido, da janela vejo que falam dois amantes, vão carregados de luz nas duas partes, cada um leva dela a parte que os voltará a unir, veem um homem que urina na parte exterior do elevador do metro, no cimento fica a mancha um pouco abaixo do grafiti que apareceu há poucas semanas, numa mancha de fundo cor-de-rosa onde está escrito a negro que tudo passa e tudo é prova. O planeta gira mais um pouco até que a luz chega aqui vinda do fundo, cortada por dois prédios e chega depois toda, num riso cheio, numa onda e depois noutra e noutra maior, a luz vem com os homens que vão descer rápido para o metro. Ainda está carregado, passam as camionetas na avenida, vindas dos bairros de oriente, carre-gadas das pessoas que são trabalhadores no ocidente, na outra parte da cidade, o movimento que não se detém. Agora em sentido contrário os carros que passam no verde, o elétrico ligado aos ferros e as pessoas que vão neles nas duas direções, o movimento impessoal dentro dos carros agora que chove e que a luz digna conduz para sul, para norte, no cruzamento que vejo da janela como um ponto – a luz que se dirige em todos os sentidos e trabalha, digna, trabalha, o semáforo verde e o vermelho ordena o trânsito e quando não funciona – já assistimos a três acidentes na mesma noite – a luz que regula o trânsito, vermelha verde vermelha, a luz que direciona, prevê, cuida, a luz que é homem e colocou a luz que trabalha, a luz que o homem criou. E agora na minha cama sinto o coração central do movimento, a luz que colocou outra luz para dirigir a luz, para criar a luz, não outra mas a mesma, a extensão do homem, o animal de riso cheio e que se estende, ouvimos a sirene, o cuidado – a polícia, as ambulâncias – quando ele se suspende, se abeira, se ri, vemos os reflexos rápidos, talvez num pequeno aparta-mento acima do nosso alguém esteja a escrever sobre a Supra Realidade

Page 6: Capítulo de 'Estação de Serviço em Mercúrio

94 | nuno brito

ou a rechear o forno, a hippie e o cão a dormir. O nosso núcleo a ser formado dentro de ti, a continuação impessoal da luz. Agradeço o dia. As manchas de sol no homem e a dignidade da luz, caminhamos com decisão em todos estes movimentos que nos cruzam, o prédio vê-se de fora sem chamar qualquer atenção. Tocamos, acendemos pontas, temos na boca o animal invencível que tudo acende, o que nomeámos em todos os cruzamentos, que chamamos sobre todas as formas, o que regula, o que cria: o que acelera. Dois manifestos, uma carta de pedido de emprego, a jamaicana que sai a chorar do serviço de emigração, os dois chineses exaltados. Difícil imaginar que o movimento seja a nossa casa, na cama entre a estrela-almofada entrelaçamos as pontas num mesmo movimento. O verde, o vermelho, o verde outra vez, há também o amarelo, a mancha azul e vermelha silenciosa que às vezes, a meio da noite, nada no nosso quarto quando as patrulhas dos polícias param em frente da loja de conveniência. A estrela abraçada, as várias pontas que se cruzam, as células riem-se, as pontas cruzam-se e nadam na cama, ainda no cruzamento do sono com a vigília, as nossas células riem-se e dentro delas a luz trabalha e cresce. O verde, o vermelho, o verde outra vez. Em ondas o azul e vermelho do carro patrulha. Subtraído o vermelho, no fim fica só uma mancha azul.

Eu ouvi pela primeira vez Mahler no carro de um poeta que partiu. Ainda que a música procurasse reproduzir o movimento do mar, a luz vinha em ondas cada vez maiores.

A nadar em estrela na camaA Dignidade de que falava Pico.

Page 7: Capítulo de 'Estação de Serviço em Mercúrio

As AbelhAs Produzem sol (2015) | 95

Os beijos que vais dar

À Gisel

Na entrada e na saída do metro, nas carruagens, rápidos, longos, os beijos que vais dar na praia, na montanha, no carro, as mãos que vais dar, rápidos, longos, o Sol que tantas vezes se vai ver a ele próprio nos teus olhos, os beijos no elevador, no carro, na faculdade, que vais dar, as mãos rápidas, os braços que te vão abraçar, os sinos passados, fotogra-fias, as torres que vais subir, os espelhos todos em que te vais ver, segura, extremamente segura, linda, feia, obcecada, feliz, vazia, cheia, gorda, magra, dando-lhe as costas, experimentando vestidos, feliz, sentindo que a vida é um mergulho, dando a volta, que não há tempo, que há muito tempo, extremamente feliz, a euforia, o tédio, o que vais ver e dar, os sonhos abandonados, os sonhos realizados, a salitre depois do mergulho, o sol que vai ficar sempre dentro de ti e que tantas vezes se vai ver ao espelho em ti – e dentro, a corrente de vida segura, a felicidade extrema, a felicidade-mergulho ou a felicidade-estrela, as portas que vais abrir, a vida com todas as suas pegadas, dias vazios, dias citrinos, dias de chumbo, de calor ou de frio – mas dias de ganhar sempre e ganhar sempre contra ninguém, vais sentir neve nos olhos, neve nos pés, abraços nos polos, abraços no centro, um olhar para cima que te vai libertar, sentir-te protegida, abraçada, ter recordações que te vão magoar, que te vão fazer mais forte, que vais ter que esquecer, os beijos que vais dar – no metro, rápidos na subida do autocarro, atrás, dentro, fora dos prédios, a chuva e o vento que te vai bater, todas as cores que vais vestir, todas as formas que vais tocar, sentir, modelar, guiar e ser guiada, pela estrela ou como estrela. Mas pensa, guarda e mantém, em todos os momentos, que está sempre ao teu lado o Capitão Soninho, ao lado de todos os beijos e de todas as páginas que vais virar, marcar, reler, saltar rápido, comer – páginas, capítulos marcados, sublinhados,

Page 8: Capítulo de 'Estação de Serviço em Mercúrio

96 | nuno brito

limpos, abandonados, livros que vais esquecer numa paragem, num autocarro, ou que vais querer incendiar, poemas que vais deixar em sítios a que não voltas – acidentes voluntários ou involuntários, conquistas, perdas que não existem, ajustes – páginas rápidas, demoradas, relidas, reescritas, apagadas, riscadas, escritas nas margens, escritas no fundo, escritas por cima: sempre escritas por cima com o privilégio de renovar, em várias cores e fundos. Em muitos espelhos te vais sentir desejada, sozinha, cheia, desejada com mais força, um diadema verde, o cabelo liso, puxado para trás, apanhado, comprido, curto, pintado, frisado nos dias de verão e a mudança percetível e palpável na libido do planeta que sempre gira sem que nos demos conta enquanto mudam ainda mais rápido as linhas da tua mão, a cada nascimento e decisão – endireitar umas, fortalecer outras, encaminhar, orientar – encaminhar com mais força a vitória, que se for verdadeira, nunca aceitará que haja um único homem derrotado. E em todas elas vais sentir o Capitão Soninho ao teu lado, a dar-te a segurança quando mais precisares de segurança e a dar-te o sono quando quiseres dormir, a vigília quando mais precisares dela. Calor, segurança e milagres quando deles precisares. Sempre, o Capitão, com a estrela debaixo do braço, nos caminhos, túneis, autoes-tradas, carris, funiculares, elétricos, desertos, decisões, Caminho enfim: num único símbolo resumido; em todo ele, em todos eles, o Capitão ao teu lado com a estrela debaixo do braço e nos seus olhos refletidos os beijos que vais dar – enquanto o Sol se vê a si mesmo, em nova e maior escala, como quem nada nos teus olhos, vindo em raios rápidos outra vez enquanto dormes. Escrevo rápido contigo no colo.

Page 9: Capítulo de 'Estação de Serviço em Mercúrio

As AbelhAs Produzem sol (2015) | 97

Flan napolitano

Os satélites azuis giram à volta do átomo, tornam-se cor de baunilha quando adormecem sem deixar de girar. À volta do núcleo são quentes como animais, adoçam a pele que é um começo… À volta do núcleo as células riem-se como marinheiros na luz molhada. Na rota que fazem, a luz bombeada por um sol interno, um grande sol central. O sangue bombeado pelo coração. – A tua pele sabe a luz – dizia Crocodilo, mais tarde. Cada vez mais quente a pele procura outra pele: um limite maior, um começo maior.

Podia adivinhar a obsessão seguinte e no ato de a prever, evitá-la. Um novo caminho com uma obsidiana quente no bolso. Violeta de Gand vê o homem do outro lado da rua. As manchas (porquê?) na pele e debaixo na carne. É uma observadora atenta, está a criar um homem porque o vê. Sente segurança… A corrente do sangue que avança seguro. Na sua respiração sente a respiração do homem que está do outro lado. Debaixo da sua pele os satélites azuis: dançam se o núcleo dançar, fogem se o núcleo fugir, morrem se o núcleo morrer. Riem-se, agora riem-se com mais força.

A tua pele sabe a luz.Se giravam à volta do átomo era porque aí queriam estar – o mesmo

era dizer que eram completamente imprevisíveis, honestos e livres: entregues aos braços, habitavam o desejo desde o núcleo, soprados de vida, tudo aquilo que gira dentro, que nos liga ao que está fora. Os saté-lites azuis nos músculos dos remadores do navio de Argo. Cada estrela um remador que avança pelo céu e debaixo da pele. A constelação agora debaixo da pele. O navio de Argo seguro na corrente sanguínea.

Os astros dentro do corpo, só mensageiros de um Sol cada vez maior – a mensagem era só a chegada de cada mensageiro – o chegar seguro de cada mensageiro e a sua rota também mensagem.

Page 10: Capítulo de 'Estação de Serviço em Mercúrio

98 | nuno brito

Não diziam nada quando chegavam.Uma constelação mulher, a luz azul da saia.

Pontilhado o seu corpo no céu. Se ela quiser entrar no barco que avança pede aos remadores que parem.

Uma galáxia homem aproxima-se, o fio das estrelas que forma a ereção. A cauda dos cometas mais acesos. Ali uma galáxia autista minga se ninguém a vier salvar. Os remos do navio de Argo avançam como ambulâncias.

Quem a beijar dirá que a pele sabe a luz, a uma janela sempre aberta, a suor, a partida, a estrada. Um olfativo diria «nunca os satélites dançaram tanto» – nunca as células se riram tanto –, a mesma dança no corpo, a mesma dança no céu.

Viu-se ao espelho, mas num homem – quando os olhos são o espelho da alma e os amigos o espelho de deus. Não o vidro trabalhado para refletir, o eco das formas e cores que lhe apresentam. Um homem – ali à frente, a comer um flan napolitano – entre uma paragem de autocarros, a banca de um vendedor de batatas fritas. O óleo quente, a ferver – parece uma explosão. Eu sou aquele (pensa Violeta de Gand).

Eu sou aquele (enquanto olha para Crocodilo), quero que ele esteja dentro de mim.

Temos países, economia, controlo ideológico da economia, alguém que a controla – segue leis, ouço as vozes daqueles que as fizeram – mas quero que ele esteja dentro de mim.

Um pudim negro. Os dentes brancos do roedor – podia ser uma alegoria, desenvolvê-la, ser seduzida pela minha ideia. Aceitar o chamamento de um brinquedo interno e aí ficar, na injeção paralisante, inibidora que é esta minha ideia. Parece que estou a nadar, mas estou a tornar-me uma concha: a pérola sedutora da minha ideia. Fecho-a e neste fechar (ao mundo) não ver o espelho. Fechar lento.

Giro à volta do que quero. Ali a linha dos satélites a formarem um veio azul. A potência do pulso. O meu coração gira à tua volta. E na sedução desta frase adormecer. Prever o futuro é unicamente construir

Page 11: Capítulo de 'Estação de Serviço em Mercúrio

As AbelhAs Produzem sol (2015) | 99

o futuro. O homem com manchas na cara é agora o meu espelho. Despersonalização, identificação: O sentimento de pertença a um núcleo… Há um novo animal que seduz: um homem que chamaram Crocodilo. Acabou de sair da prisão. (começa a fábula) Submergem os seus olhos nas águas sujas de uma vida estanque, uma história imóvel, breve, toda a potência bloqueada (uma vida menor). Olhos desvitali-zados, seguem um pathos natural que ele parece não controlar: inibir toda a potência, submergi-los, afogá-los numa memória, a conse-quência natural. Não que se fechem para sempre, só que pareçam sempre fechados – abertos só para dentro. Eu sou ele (pensamento de Violeta). Vagueia o Crocodilo entre a barraca das batatas fritas e a paragem de autocarro. Submergido num lago interno. Estanque – comer, ir para um novo sítio, começar do zero. Violeta observa-o. Presa potente, sente os satélites mudarem de cor, vermelho-deserto, giram, giram mais rápido, mudam de cor, na expansão do desejo estão mais quentes – eu sou a expansão do meu desejo, habito-o. Observa o seu espelho – eu sou ele – as suas manchas na pele feitas de mudança, na prisão chamavam-lhe crocodilo.

É assim: meteu-se com gente errada. Os satélites parados, inibidos – mas agora dança numa água nova –, satélites de água giram à volta dos átomos da água. Giram e por isso são água.

***

Crocodilo avança por uma estrada que não existia quando entrou na prisão (ou então surgiram novas casas, novos locais comerciais e agora não a reconhece). Caminha, ninguém o espera. Pode ir para uma casa onde tem familiares num grau afastado, ir a casa de antigos amigos, pedir um emprego a este ou aquele. Vai até à central de camionetas. No caminho vê uma casa pintada de cor-de-rosa, uma cruz no telhado ao lado de uma antena enferrujada (parece um filtro). É um tabernáculo, uma sede de seita religiosa com contornos obscuros, um germinal de fantasmas aborrecidos nas reuniões de domingo. Sai música de dentro

Page 12: Capítulo de 'Estação de Serviço em Mercúrio

100 | nuno brito

do tabernáculo, e na parede está escrita uma frase: És pó e pó voltarás a ser. Crocodilo olha para a frase pintada a negro no fundo cor-de-rosa. Os seus astros aceleram, satélites rápidos, há tanto tempo não sentia isso. Ri-se sozinho, descontrolado, há tanto tempo que não se ria e agora sorri um riso animal, sincero, cheio. A expansão torna-o doentio, ri-se sozinho. (fábulas mas com pessoas, os animais mais honestos, até o falso moedeiro era honesto) e aqui Crocodilo ri-se. Riso paralisante, assimbólico embora dentro dele possamos ver uma alegoria nova. Riso que se torna negro e duro como um pudim negro. Quero comer este pudim com os meus dentes brancos, mas este pudim está fora de prazo. Foi feito no tempo de Homero. E eu com tanta fome. Eu que sou pó e vou voltar a ser pó só quero comer este pudim negro, é o meu destino, procurar todas as trevas, comer os pudins mais negros. Procuro os pudins mais antigos, cozinhados nas águas estanques do Nilo. Germinal de bactérias do Antigo Império. Pudins negros onde não entra a luz, onde não há nenhuma esperança. Pudins obscuros, comple-tamente negros. Preciso de botas negras para comer este pudim. Tenho fome de negro. Posso entrar nesse tabernáculo com um único livro sagrado, carcomido, as páginas amarelas. Obsessão, sair dela. Entrar no templo e trincar os braços gordos dos fiéis. É um crocodilo de instintos rápidos. E ali, a dois quilómetros da prisão, o pastor dessa igreja tele-fona para a polícia. E no mesmo dia voltar à prisão. Ideia sedutora a da perda. Ou então continuar a caminhar. Começar uma vida nova. Ou então ser pó (e voltar a ser pó), comer o pudim negro feito de pó (o pó mais negro) e a água suja da literatura mais morta. Pudim negro e alegórico de tudo o que é antigo e mau. O pudim dos erros humanos. O pudim cozinhado pelos piores traidores, falsificadores de moedas, ladrões, piratas alexandrinos, assaltantes de pirâmides, traficantes de relíquias, homens que destroçaram e acabaram com outros homens, o pó mais negro dos homens mais negros. Na parede cor-de-rosa a frase cada vez mais viva, como um néon bailarino as letras dançam. Mas Crocodilo, resumo: era um cocainómano, foi preso por assaltar uma carrinha de transporte de valores. À prisão vinha vê-lo a sua irmã.

Page 13: Capítulo de 'Estação de Serviço em Mercúrio

As AbelhAs Produzem sol (2015) | 101

Uma vez por semana. Trazia-lhe algum dinheiro que dava para conti-nuar a consumir. Mas a irmã trazia cada vez menos dinheiro. Ele fazia pequenos trabalhos, limpar as celas dos outros, ir-lhes fazer recados. Feudalismo na prisão. E aí começa a fábula, já estava a dever muito dinheiro, isso aumentava a dependência. E o aviso, uma semana para pagar. A sua irmã vem, pede-lhe dinheiro mas ela não tem. Agora a irmã tem de olhar pela vida dela. Não consegue o dinheiro da dívida dentro da semana. Implora-lhe. Nesse mesmo dia vê o que acontece aos que não a liquidam. Água a ferver em cima do corpo, os deve-dores castigados no pátio da prisão. O grande balde de ferro. A água a ferver. Os gritos. Falta um dia, está desesperado, amanhã vão chamá-lo. Nesse dia um ultimato, diz que vai fazer tudo, pede mais dois dias. Não consegue dormir. Chamam-no, levam-no para o pátio, despem-no. A partir desse dia, e pelas queimaduras com que ficou no corpo, a pele áspera, as manchas para sempre, passaram a apelidá-lo de Crocodilo. Mais dois anos e quatro meses e saiu. Aí estava em frente ao taberná-culo religioso. Continuou até à central de camionagem. Entrou num autocarro aleatório. Chegou ao destino. Não reconheceu pelos vidros a cidade onde tinha chegado. Resultava bem. Saiu da central, caminhou pela cidade. Contou as moedas que tinha no bolso. Estava ao lado de uma paragem de autocarro. Viu a vendedora de pudins na barraca ao lado da paragem. Flans napolitanos, tinha fome, comprou um. Estava com o copo de plástico na mão, o pudim a meio. O pudim da cor do Sol. Do outro lado da rua o sangue ri-se ao chegar aos dedos: antecipa já a chegada de outros dedos. Crocodilo prevê que alguém vem falar com ele.

Violeta de Gand observa-o: ele sou eu. É o meu espelho, um reflexo, também eu. Ali o crocodilo come o flan, fora de prazo talvez, mas de um passado melhor. Um flan renascentista da cor do Sol. O caramelo torrado derrete-se na boca de Crocodilo. A baunilha parece drogá-lo. Os satélites de dentro giram mais rápido. Do outro lado da rua a mulher que o observa como alguém que já lhe pertence, que é

Page 14: Capítulo de 'Estação de Serviço em Mercúrio

102 | nuno brito

seu, e vê naquele momento algo que já passou há muito tempo na vida dos dois. O flan napolitano, o seu sabor transformado na memória.[1]

[1] A personagem principal deste texto é desenvolvida no conto: «Crocodilo: Narrativa de duas faces como as moedas do Vaticano» em Créme de la Creme, Porto, 2011.

Page 15: Capítulo de 'Estação de Serviço em Mercúrio

As AbelhAs Produzem sol (2015) | 103

Pink cigarette

À Anezinha.

Quero impregnar-me de gente, de

paisagem portuguesa.

Luiz Pacheco

Nesta terra as mulheres crescem à sombra,como os cogumelos, o musgo ou a razão,em ponto de cruz a saudade vai sendo domesticada,o mais honesto e obediente animal puxado por uma trela douradafeita de medo e outras coisas que ligamo seu viso tem a expressão de todose é nestas caras quentinhas que descem ainda as lágrimas de Erosmudando por dentro o nome do continente, outra cara, possível começosem nome, sem coisa nenhuma, é às vezes o salque cai destas caras que tempera o prato, porque todo o sal não chegapara compensar o amargo que veio morar para a bocacansada de saber que a linguagem não chegaporque eles fugiram, cada um em seu barco:os filhos.

Nesta terra as mulheres crescem à sombrae têm sombra nos olhos, que o eco veio pintara lápis de cor por cima da paisagem humanaque se aloja debaixo de tudo o que a alma espelha,veias, artérias, vasos, curvas fininhas que o tempo vai moldandoa anatomia rasgando o cosmos à escala humana, soprando-o para longe

Page 16: Capítulo de 'Estação de Serviço em Mercúrio

104 | nuno brito

transbordo que a sede cria,e enquanto as filhas vão ao poço, sol, risos, perfeita anatomiaas sombras crescem. Pequeninas rendinhas em baústerços, santinhos, livros de areia, um dente de leiteo fio de ouro a que está ligado,e são de sombra os seus gestos porque quando se movemsão os braços de outros que ganham vida e retiram à paisagema natureza para pôr nela a arte, a civilização, a linguagem e a vitóriaa mais alemã invenção,e o seu sorriso é uma espécie de deuse quanto mais se enrola na paisagem mais deus éaté parece que a razão dorme dentro delas,e a razão dorme dentro delas – o capitão do navio dá-lhes duas opçõesou embarcam no barco do amor ou embarcam no barco do amormas vão ter ainda de o criar para o atravessar, e partir as árvores, da

madeira, fazer o barco e calafetá-lo e dar-lhe um nome, e batizá-lo, porque tudo aquilo em que se toca também se é

a sede vai-lhe toda para os olhos,urgente era que as sombras saíssem, como o fumo adocicado dos

pulmõespara dentro doutros pulmões.

Estas mulheres seriam modelos se as estátuas de sono não dormissem dentro delas

se não fossem só alma,o planeta chama-as do centro, as rugas vão rasgando a sua pelemas elas riem pouco,e há poucos jovensestão todos no meio da Europa, Lisboa, Portoem Lisboa está a arte e no Porto está a artee no Couço está a arte e em todo o lado está a artese não fossem só alma teriam visto mais vezes o marnão são filhas da revolução nem são filhas de ninguém

Page 17: Capítulo de 'Estação de Serviço em Mercúrio

As AbelhAs Produzem sol (2015) | 105

os seus filhos estão todos na taberna e são mais velhos que elasà noite estas sombras limpam com um guardanapo o beiço dos velhosporque lhes desce azeite pelos queixos, e esses guardanapos podiam ser

a página cemde uma História Contemporânea, edição de luxo, a meio da investi-

gação os eruditosfolheavam o guardanapo em Lisboa onde está a arte ou no Porto onde

está a arte.

Exportamos marmelada para a Austrália ou para os armazéns de retalho da capital

que importa se toda a geografia é interior? Enquanto dormem até de deus são mães

e entre as suas pernas as almofadas (penas de pato, segredos ou outros novelos).

As suas casas são feitas de queda, de verticais os muros ganham contornos,

a mais cara renda que são os dias a virformas breves, novas formas, dias que inchamparecem areia soprada pelo fogocom que se faz o vidro e se embacia o espelho um dia também ele será inventado pelas mãos quentes de um artesão

etruscoantes mesmo de haver as moedas para o comprare que levarão os nossos filhos para longe,para o Canadá, Luxemburgo, Cantões,nos navios, nas bagagens, nos aviões, todos com o seu preçocalafetado por dentro e por fora, impregnado na paisagemclaves de sol pontilham a paisagem, por cima do trigo, a picotado.

As sombras destas mulheres às vezes são música, entra nos búziosnão só por nos lembrarem que elas provêm do sol,

Page 18: Capítulo de 'Estação de Serviço em Mercúrio

106 | nuno brito

como tudo o que parte, mas por nos erguerem como o caule de um girassol,

a sua voz é a sua seiva, está dentro da nossa espinha, é o nosso equilíbriouma balança onde se pesam as palavras que ficaram por dizer.

Futura-tetambém a rede quer dormir mas não é da natureza das redes dormireme a rede pede que lhe cortem as pontas, que tragam uma tesoura,e alguém corta as pontas, mas as pontas crescem com mais força, como

uma estrela-do-mar, a tesoura é também informação e acrescenta--se à rede, tudo é soma nesta nova anatomia

Coisas que entramabre as portas, vem muita gente atrás e todos querem entrar em ti,entrar é ser gente, crescer é ser rede,homens e redes nunca dormem verdadeiramente.

Em Manchester as fábricas enchem-se de música, e no Couçocresce o trigo dos latifúndios e todos estes homens precisamde equadores ao mesmo tempo que precisam de polose todas estas mulheres precisam de um pouco mais de calornão só para deixarem de ser sombrasmas para saberem que por descarrilarem se fazem novos caminhosnas carruagens vai este gadojá não de ferro nem de vento são os caminhos em que é feita a viagemsem pontes de aço, betão ou de cimento, só ultrapassagem.

No Portugal dos Pequeninos os filhos que se vão perder em todos os continentes

das suas perdas novos filhos nascerão: filhos da revolução. Qual?na natureza nada se apagana natureza não existe amanhãmas o homem põe a manta da civilização por cima da natureza

Page 19: Capítulo de 'Estação de Serviço em Mercúrio

As AbelhAs Produzem sol (2015) | 107

e por baixo da manta fica o escuro e alguns animais sem expressãoàs vezes fica também o riso,a razão fica a sobrevoar a mantae ficam mulheres debaixo da mantadanças primitivas, ecos, sonhos,capitães de mar nenhum ficam tambémdebaixo da manta a razão de ser da literatura,definir poesia é dar as mãossó a gente e paisagem não desce para baixo da manta da razãoe as mãos aquecem agora mais.

Page 20: Capítulo de 'Estação de Serviço em Mercúrio

108 | nuno brito

Ajax ou deus pastoral

Um lugar para a sedeonde não haja água, só desejo de a ter e por isso vínculo,só as saias da sede que alguém desenhou a subirem devagaruma mão de homem, sede do seu joelhosobe as coxas A mão procura a parte mais quente da sedetodo o corpo pede novas formas de beberentre as pernas da sede o homem lambe o seu sexoa saia curta ficou à cinta, por baixo dela a cabeçao homem lambe a sede – ambos são seres personificadosa cuequinha de algodão para o ladopode ser no miradouro do Adamastoronde Churchill pediu para sair do táxi – olhou para a nuvem com a

boca abertabebeu um bocado da chuva mas queria beber a nuvem toda,como disse o taxista, cheio do sonho americano, se eu fosse homemestava agora com uma ereção só de ver Churchill a olhar para Almada.Enquanto os submarinos passam o Canal da Mancha, todos os minis-

tros no bunker, ele foi comprar charutos a Picadilly,deve estar a chegar, não deve estar em Portugal a beber nuvens,o Fim da Guerra precisa dele e a Paz também precisa dele.Com a boca cheia de chuva olha para Almada, para o ponto onde vai

estar o Cristo Rei,está lá só um homem que é uma estátua de sono, substitui-se por outra

estátua,

Page 21: Capítulo de 'Estação de Serviço em Mercúrio

As AbelhAs Produzem sol (2015) | 109

mete-se uma saia – relva na cabeça, um bocado de gel – e vira-se a estátua para a América.

Não existem eles nem nós: se virmos o desenho que fazno espaço-tempo este prazer, por baixo da saiao tornozelo-sede – os dedos-sede, sem filtrosligados por um fio de Mão Aberta – a mão sede onde dorme um

helicóptero um inseto suicida que choca com outros no ar quando há fogo cruzado –tenho medo porque tenho mãos – a nossa Possibilidade inclui essa Vozque nos chama.

Antes de entrar no táxi Churchill olha para o relógio – seis e meia –, Portugal a acordar, vê as traseiras de uma pastelariaespreita pelas frinchas , os pasteleiros com as grandes seringas culináriasa injetarem o creme dentro das bolas de Berlim e dos éclaires, dos

outros bolinhoscomo o mais perverso voyeur da indústria alimentarespreita os pastéis de nata a saírem do forno todo ele treme de euforia ao ver os bolos de arroza serem amassados, os bolinhos húngaros de chocolate e manteiga.

***

A mão da sede, em jeito de abandono, pede ao homem:

Traduz o meu corpo para a linguagem dos rios,se me queres dar um prazer verdadeiro, traduz tuAjax ou Deus Pastoralque sabes todas as línguasque estás entre todos os povos,traduz tu Ajax ou deus pastoral

Page 22: Capítulo de 'Estação de Serviço em Mercúrio

110 | nuno brito

a minha sede em águaas linhas da minha vida em riosda minha medula faz nascentes de ribeiros frescos– põe dois pastores em cada lado e um guarda-riosmais a sua família feliz e o doce lar em que habitame que eles velem a minha descida pelas montanhas –,desço por ti, fertilizo-te a terrados meus joelhos faz barcos,das rótulas as velas, dos ossos dos dedos: canoas, o tronco secoe do meu sopro os que nela andem e que neles remem.

Que os aldeões vejam o rio engrossar o seu leitona medida proporcional da sua sedee na medida proporcional da sua sede abram poços,traduz, pois, Ajax ou deus pastoral os meus olhos negrosem poços fundos, para que eles venham com os seus baldesbeber-me um pouco maise a sede que sou eu esteja neles e que a procura que é a sede,e és tu e todos, esteja entre nós,fontes límpidas de Minos, rio seguro que nós somosa descer contínuo, no fundo deles põe um martradu-lo do leite do meu sexo quando me lambes e dás prazerAjax ou deus pastoral – tu tradutor que me lambesvês agora o mar que criaste do teu desejovês essa onda que te molha os pés, coalha-se em espumaé só uma onda que ri,um pouco atrás no paredãonum banco atrás dos namoradosalguém me desenhou para velar por ti.

Page 23: Capítulo de 'Estação de Serviço em Mercúrio

As AbelhAs Produzem sol (2015) | 111

As abelhas produzem sol II

As pessoas segregam futuro queremos aquilo que as pessoas segregam:a vigília das montanhas, o vento mais quente do sul,a manhã húmida e a certeza da expansão,os raios de sol e o riso como ponte a parte mais quente da sede antes de haver água.

As abelhas produzem solo Sol produz açúcaras pessoas segregam futuro,

Queremos aquilo que as pessoas segregam.

Page 24: Capítulo de 'Estação de Serviço em Mercúrio