Capoeira - Jogando Com Sua História

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  • 7/25/2019 Capoeira - Jogando Com Sua Histria

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    O TCC UIUCAMP

    Se 8c

    J2dSFEF 1181

    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    FACULDADE DE EDUCAO FSICA

    MARIANA SILVEIRA SERRA

    CAPOEIRA

    Jogando com sua histria

    Campinas

    2 6

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    TCCIUNICAMP

    Se 8C

    MARIANA SILVEIRA SERRA

    CAPOEIRA:

    Jogando com sua histria

    Trabalho de Concluso de Curso Graduao)

    apresentado Faculdade de Educao Fsica

    da Universidade Estadual de Campinas para

    obteno do ttulo de Licenciado em Educao

    Fsica.

    O ientador: Hermes Balbino

    Campinas

    2 6

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    MARIANA SILVEIRA SERRA

    CAPOEIRA:

    Jogando com sua histria

    Este exemplar corresponde

    redao final do

    Trabalho de Concluso de Curso Graduao)

    defendido por Mariana Silveira Serra aprovado

    pela Comisso julgadora em: 2711112006.

    Campinas

    2006

    Hermes Balbino

    Orientador

    Jos Julio Gavio de Almeida

    Componente

    d

    Banca

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    Dedico este estudo ao meu filho Luca, o maior presente que

    Deus poderia ter me dado ..

    Ele a estrela que ilumina meus pensamentos, restaura

    minhas foras, e me d a vontade

    e

    que preciso para sempre

    seguir em frente e jamais fraquejar diante das dificuldades

    apresentadas pela vida.

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    gradecimentos

    Agradeo, antes de tudo e todos, a Deus por ter me presenteado com a

    capacidade de assimilao

    de

    conhecimentos, o que permitiu que ingressasse e, ainda,

    conclusse esta Universidade.

    Encabeando a grande lista de pessoas s quais devo agradecimentos

    etemos

    est meu filho Luca a maior razo pela existncia deste trabalho pois,

    por

    diversas vezes,

    estive muito prxima

    da

    desistncia. Contudo, aqueles lindos olhinhos azuis transbordando

    amor e carinho conseguiram me trazer muita inspirao e fazer com que eu conseguisse me

    tornar mil e tenninar, s custas de muito trabalho, esta monografia.

    Deixo aqui um imenso "obrigada" ao meu marido, parceiro, companheiro,

    amigo Rafael. Uma pessoa linda que surgiu na minha vida e que me ajudou a resgatar minha

    auto-estima, minha autoconfiana e me fez perceber que sou capaz de realizar todos os meus

    sonhos e alcanar todos os meus objetivos .E, ainda,

    o pai do meu filho

    Minha me Ftima, minha irm Caro , meu irmo Gustavo .. a base da minha

    vida Estas so as pessoas responsveis pela mulher que me tornei.

    Os

    nicos que

    acompanharam de perto todas as minhas conquistas, meus fracassos, minhas dificuldades,

    minhas alegrias, tristezas .. e sempre estiveram firmes e fortes para o que se fizesse necessrio

    em minha

    vida.

    Tenho-lhes profunda gratido e no existe nada nesse mundo que possa pagar

    tudo o que fizeram por mim esses anos todos.

    No poderia deixar

    de

    agradecer aos meus amigos, todos eles .. os irmos que

    escolhemos para viver momentos inesquecveis na vida. E, entre eles, gostaria de colocar o

    Hermes, meu orientador .. uma pessoa a quem devo muito respeito tanto por ser um profissional

    admirvel como por ser

    um

    ser humano extremamente amvel.E tambm ao Henrique pela

    grande ajuda prestada e tambm pelas risadas.

    Um ax pro meu Professor de capoeira e querido amigo Trinca, o qual me

    apresentou a esta encantadora arte das pernas para o ar

    E agora, um agradecimento especial ao meu pai Haroldo, falecido h 20

    anos .. mas que tenho a certeza

    de

    sua presena em todos os momentos da minha vida

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    SERRA Mariana S Capoeira jogando com sua histria. 2006. 68f. Trabalho de Concluso de

    Curso

    de

    Graduao-Faculdade

    de

    Educao Fsica. Universidade Estadual de Campinas

    Campinas 2006.

    RESUMO

    Este estudo realizado a partir de uma reviso de literatura e anlise argumentativa buscou

    dialogar com diversos aspectos da Capoeira esta riqussima manifestao da cultura corporal

    que possui caractersticas muito prprias e entendimentos muito subjetivos.

    Etimologicamente temos alguns pressupostos

    que

    apontam a palavra

    capoeira

    como oriunda do

    Guarani capuera

    ou

    capera - mato mido ralo ou ainda cpuera roa que deixou de

    existir mas ainda existem outras prerrogativas acerca deste assunto. Sua gnese at os dias

    atuais ainda muito controversa. Acerca disto neste estudo alguns apontamentos foram

    realizados com o intuito de se estabelecer

    um

    melhor entendimento sobre as fragmentaes

    ocorridas ao longo de sua histria a partir de uma disputa pela simbologia tnica da Capoeira a

    qual

    resultou

    em

    uma fragmentao de sua prtica estabelecendo formas diferentes de sua

    expresso. Suas novas significaes justificadas pelas relaes preconceituosas c

    discriminatrias

    que

    pennearam a sociedade especialmente a partir da abolio da escravido

    so tangenciadoras

    das

    diferentes expresses da Capoeira na contemporaneidade que

    se

    encontra dividida

    em

    Capoeira regional - de Mestre Bimba e Capoeira Angola - de Mestre

    Pastinha. Ainda buscamos entender

    os

    momentos onde a Capoeira e a educao fsica

    estabeleceram uma aproximao gerando uma relao

    que

    pennanece at os dias aluais.

    Palavras-Chaves: Capoeira; Manifestao cultural; Educao Fsica; Histria

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    SERRA, Mariana. Capoeira: playing with its history. 2006. 68f. Trabalho de Concluso de

    Curso (Graduao)-Faculdade

    de

    Educao Fsica Universidade Estadual de Campinas,

    Campinas, 2006.

    ABSTRACT

    This study, carried through from a revtston

    of

    literature and n argue analysis, it

    searched to dialogue with diverse aspects

    of

    the Capoeira, this valuable manifestation

    of

    the corporal culture that has proper characteristics and subjective agreements. About the

    origin of the therm Capoeira we have some estimated that they point this word as

    deriving

    of

    the Guarani "capuera" or "capera" - small, thin weeds or, still, "cpuera" -

    field that left to exist, but still exist olher prerogatives about of lhis subject. Its origin

    until the current days still is very confuse. About of lhis, in lhis study, some notes had

    been carried through with the intention

    of

    establishing one better agreement on the

    occured spallings throughout lhe history from a dispute for lhe ethnic symbology of lhe

    Capoeira, which resulted

    in

    a spalling of this practice, establishing different forms

    of

    this

    expression. Its new meanings justified fiam lhe prejudiced and discrintinatory relations,

    lha especially had passed by lhe society from lhe abolition of the slavery, are related to

    the different expressions

    of

    the Capoeira n the current time that is divided in regional

    Capoeira -

    of

    Bimba Master and Capoeira Angola -

    of

    Pastinha Master. Our study has

    still tried to understand lhe moments where lhe Capoeira and lhe physical education had

    established an approach generating a relation that remains until the current days.

    Keywords: Capoeira; Cultural manifestation; Physical Education; History;

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    igura

    igura

    Figura 3

    igura 4

    igura 5

    igura 6

    igura 7

    igura 8

    Figura

    9

    LISTA

    DE

    FIGURAS

    Negros trazidos ao Brasil ............................................................................... .

    Rotas do trfico .............................................................................................. .

    Escravos produtivos lavra de

    diamantes

    1848 ......................................... .

    Escravos de ganho vendedor de frutas ........................................................ .

    Escravos domsticos cocheiro ....................................................................

    Escravos de aluguel contrato 1849 ........................................................... .

    Nagoas e Guaiamus ........................................................................................ .

    Campo de combate Mtodo Zuma ................................................................. .

    As Seqncias de Bimba ................................................................................ .

    14

    15

    18

    18

    18

    18

    33

    35

    39

    igura 1

    Mestre Bimba e o Governo ............................................................................. 41

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    LIST

    E

    SIGL S E BREVI TUR S

    CBC Confederao Brasileira de Capoeira

    CBP Confederao Brasileira de Pugil ismo

    POR

    Centro e Preparao e Oficiais da Reserva do Exrcito

    FIC

    Federao Internacional de Capoeira

    FEF

    Faculdade de Educao Fsica

    UNIC MP Universidade Estadual de Campinas

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    SUMRIO

    1 Introduo......................................................................................................................... 10

    2 Escravos e capoeiras ......................................................................................................... 14

    2.1 A Capoeira e os injustiados ........................................................................................ 14

    2.2 A explorao do homem pelo homem .........................................................................

    17

    2.3 A

    materializao

    da revolta . .... ........................ ....... .... .... ..... .... .... ...... ..... .... . .....

    2

    2.4

    Liberdade de

    papel ....................................................................................................... 22

    3 Comeando o jogo............................................................................................................. 25

    4 Negros e Mestios............................................................................................................... 30

    4.1 Das Maltas ..................................................................................................................... 30

    4.2 Bimba Bamba... .......................................................................................................... 34

    4.3 E salve Mestre Pastinha e a Capoeira angola ................................... ...................... 42

    5 No jogo de dentro.............................................................................................................. 45

    5.1 O preconceito a relao identitria e a Capoeira ............................... ...................... 45

    5.2 A Capoeira aproximando-se da Educao Fsica...................................................... 47

    5.3 A Capoeira angola e a resistncia ............................................................................... 52

    6 Consideraes finais ..... ..... ..... ........................ ............... .... .... ..... .... .... .... . . .... ....... . 56

    7 Referncias ............................................................................................... 58

    8 Anexos................................................................................................................................ 65

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    lO

    Introduo

    A Capoeira

    1

    uma

    manifestao da cultura corporal envolta por encantos ... e

    cantos .. e palmas e instrumentos ..

    uma

    arte que no

    se

    permite rotular: possui caractersticas muito prprias e

    manifestaes muito subjetivas. carregada de histria, carregada de energia, carregada de

    d

    .

    2

    man mga.

    Torna-se muito atraente devido as suas diversas possibilidades: cantar o

    jogo

    e

    a histria, tocar os instrumentos

    da

    charanga

    3

    , danar ao som do berimbau, lutar pela vida, jogar

    com a alegria, brincar com o corpo, encenar, esconder, aparecer, ludibriar, criticar, resolver,

    exaltar, extravasar os sentidos e sentimentos... E foram estas possibilidades que me levaram a

    pratic-la.

    Durante muito tempo namorei a Capoeira observando as rodas que cruzava

    pela cidade e sempre me encantando com o ambiente mgico e envolvente ilustrados. Foi ento

    que, em 2003 resolvi procurar uma academia de Capoeira para ter

    minha

    iniciao neste

    maravilhoso universo.

    Desde ento, j sabia que existiam dois estilos diferentes: a Capoeira angola e a

    Capoeira regional, mas, de fato, no tinha o conhecimento necessrio para discernir sobre qual

    estilo contemplaria minhas expectativas e ento, acabei optando pela Capoeira regional pelo

    simples fato da proximidade com a minha residncia.

    Durante este tempo todo em que tenho praticado a Capoeira, a insatisfao com

    as respostas que me foram dadas sobre sua histria e a necessidade

    de

    entender os motivos que

    levaram a sua fragmentao em diferentes estilos sempre me acompanharam. E, a partir disso,

    aliei a necessidade de

    dar um

    tempo no treinamento fsico

    da

    Capoeira devido ao meu estado

    de

    gravidez com a vontade

    de

    me envolver mais com esta parte terica, a qual sempre julguei

    de

    fundamental importncia para a formao de

    um

    bom capoeirista e, ainda,

    de

    um profissional

    da

    1

    0 termo Capoeira com a inicial maiscula ser usada como referncia manifestao cultural.

    2

    A mandinga entendida como a malcia, a esperteza inerente capoeira.

    3

    Charanga o nome dado ao conjunto de instrumentos musicais que compem uma roda de capoeira.

    Hoje, os mais utilizados so os berimbaus (berra-boi, mdio e viola), o pandeiro, o atabaque e o agog.

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    rea de educao fsica, o qual deve galgar conhecimentos variados sobre diversas manifestaes

    da

    cultura corporal.

    Para isto, no presente estudo, vamos buscar contemplar, como objetivos gerais,

    a composto

    de

    um quadro analtico da histria

    da

    Capoeira desde seu surgimento at sua

    contemporaneidade e verificar quais foram os elementos que desencadearam o processo de

    fragmentao desta manifestao.

    Como objetivos especficos, pretendemos verificar se, em algum momento, a

    Capoeira e a

    educao fsica

    estabeleceram algum tipo

    de

    aproximao e se hoje

    em

    dia possuem

    ou podem possuir algum tipo

    de

    relao.

    Para a contemplao dos objetivos propostos acima temos, no item nmero

    dois, um breve panorama da escravido no Brasil e o posicionamento dos escravos diante da

    situao. Como ponto fundamental deste item, temos as informaes relativas ao processo de

    abolio da escravido e a situao ps

    Lei

    urea encontrada pelos ex-escravos no pas que foi

    um

    momento crucial na histria da Capoeira onde esta recebeu uma conotao marginal e

    criminosa por parte do Estado, marca que, como ser visto, carregar por um longo tempo.

    No item seguinte, Comeando o jogo passaremos a tratar

    da

    Capoeira em si,

    fazendo uma anlise

    de

    sua gnese e, a partir da, abrir

    um

    caminho para o entendimento

    da

    Capoeira gerada a partir de

    um

    referencial gnico respaldado por uma disputa tnica,

    influenciando fortemente suas manifestaes como tratado no captulo que se segue

    Negros e

    Mestios.

    Este item tem uma importncia fundamental, pois neste momento que as informaes

    tratadas nos itens dois e trs se cruzam e determinam as fragmentaes que a Capoeira sofreu no

    decorrer

    de

    sua histria j indicando um caminho a ser percorrido para que

    se

    chegue na Capoeira

    na contemporaneidade.

    No item cinco temos a justificativa das fragmentaes apresentadas a part ir das

    relaes de preconceito e identidade e ainda uma anlise sobre os caminhos seguidos pela

    Capoeira e como ela se expressa nos dias de hoje.

    Para tal, foi feito um estudo terico de bibliografias sobre Capoeira, escravido

    e preconceito. A busca foi feita entre as bibliotecas da Unicamp por meio de palavras-chave

    encontradas em monografias, dissertaes, teses e artigos. Tambm foram utilizadas pginas da

    internet encontradas a partir de sites de busca que abordam os mesmos temas sugeridos.

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    Aps a coleta e estudo dos materiais foi elaborada uma reviso de literatura e

    anlise argumentativa gerando um dilogo entre os temas citados que suscitaram no estudo que se

    encena a

    seguir.

    Para um melhor entendimento do leitor devemos esclarecer que para o termo

    capoeira existem diversos significados,

    mas

    um dos

    mais

    aceitos no que conceme

    nomenclatura da manifestao em questo que capoeira era o nome dado s reas de mata

    rasteira que faziam a circunvizinhana das fazendas para onde os negros fugiam e travavam lutas

    mortais

    contra

    os Capites-do-Mato

    4

    ,

    que

    saam em seus encalos. Muitas

    vezes derrotados,

    esses

    Capites-do-Mato voltavam com a desculpa

    de

    que 'haviam sido pegos pelos negros n

    capoeira'

    local onde se davam os embates.

    Em estudo realizado por Antnio L C. S. Pires, etimologicamente esta a idia

    defendida por Macedo Soares e Henrique de Beaurepaire, - que pressupem ser uma palavra

    oriunda do Guarani

    capuera

    ou

    capera -

    mato mido, ralo ou, ainda,

    cpuera

    roa que

    deixou de existir.

    Outros etimologistas se basearam no canto da ave capoeira para dar nome ao

    jogo, uma vez que seus praticantes, tambm escravos, utilizavam o assobio tal qual o canto do

    pssaro para se comunicarem (SILVA, 2002, p. 28).

    Ainda existem pressupostos que desvinculam a etimologia da capoeira do meio

    rural e o vincula ao meio urbano. Oliveira (1951, apud PIRES, 1996) refere-se a capoeira a partir

    da idia de que os negros fugidos das fazendas se abrigavam num local chamado

    capoeira

    (capoeira grande). Este era um ponto de passagem praticamente obrigatrio aos fugidos, pois se

    interpunha entre as cidades e as capoeiras e, neste local abrigavam-se os desordeiros, malfeitores

    e escravos fugidos os quais saam para a cidade durante a noite com o intuito de saquear e roubar.

    Eram, ento, chamados de

    capoeiras

    pessoas que se escondiam na

    capoeira.

    Los Rios (1986, apud PIRES, 1996) remete-se

    capoeira como advinda da

    juno de c - material oriundo da mata (para os indgenas) e

    p

    - cesto. Da

    cap

    -

    grandes cestos usados pelos escravos para carregar e descarregar mercadorias. Em sua hiptese, a

    capoeira enquanto luta teria nascido de disputas na estiva durante o lazer entre companheiros de

    trabalho e, dessas disputas de habilidades, teria nascido o jogo do escravo carregador de

    Cap.

    Os capites-do-mato eram negros livres e pobres que eram usados pelos senhores das fazendas para a captura e

    represso

    fuga dos escravos uma vez que esses eram conhecedores das formas de fuga e dos terrenos em torno.

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    3

    Edson Carneiro, embora no negue os aspectos rurais

    da

    capoetra, no se

    detinha apenas neste contexto:

    Pode ser que capoeira, gente, venha de capoeira mato, do negro que fugia e dizia e diz-se

    ainda: foi pra capoeira, meteu-se na capoeira, caiu na capoeira, e no s do negro que

    fugia, mas tambm do recruta, desertor do exrcito e da armada que procurava fugir das

    autoridades policiais empenhadas em agarr-los. E diz-se tambm do gado que foge.

    m

    capoeira poderia ser tambm

    um

    sinnimo de negro fugido, calhambora, quilombola.

    Ainda hoje so sinnimos de gente penosa, faquistas, assassinos e ao mesmo tempo

    vivos, esperto, ligeiros, corredor, destro em evitar que os outros lhe peguem, enfim,

    capoeira CARNEIRO 1975, apud PIRES, 1996, p. 191).

    Toma-se impossvel dissertar sobre Capoeira sem antes conhecer um pouco

    sobre o panorama histrico que permeia sua origem. No se pode desvincular a Capoeira do

    processo escravocrata vivido pelos negros africanos em solo brasileiro durante cerca de 380 anos.

    Processo este marcado por muita explorao e humilhao

    e

    mesmo dentro desse contexto

    desumano os

    negros

    ainda

    conseguiram

    fazer valer sua raa.

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    4

    2 Escravos e

    c poeir ss

    2 1 A Capoeira e

    s

    injustiados

    Cerca de quatro milhes de negros africanos foram anancados de suas

    t

    as e

    escravizados pelos portugueses

    no

    Brasil - Colnia. Os colonizadores europeus no se

    propunham ao trabalho braal sob hiptese alguma atitude justificada por uma nobreza auto

    outorgada.

    Como principais grupos tnico-culturais que aportaram no Brasil entre a

    segunda metade do sculo XV at o sculo XVIII podem-se destacar: Bantos - como os angolas

    congos e cabindas os Sudaneses - como os

    iorubs

    jejs h us e minas e os Mals - de

    tradies muulmanas.

    Figura

    I: Negros

    trazidos ao Brasil

    Fonte:

    Libertria

    2006)

    5

    capoeiras

    com a

    inicial minscu

    la tz meno aos pralicantes da capoeira antes de sua legalizao. Refereindo-me

    aos praticantes aps sua legalizao usarei o termo capoeirista.

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    5

    Engana-se quem pensa que esta prtica de traficar negros africanos era ilegal:

    ela integrava a poltica oficial dos estados polticos mercantis europeus e tambm o brasileiro,

    interessados nos pesados impostos cobrados sobre os grandes lucros advindos desse comrcio

    anexo A). E foram exatamente esses lucros que, combinados necessidade de mo-de-obra nas

    colnias americanas, fizeram com que algumas das maiores companhias de comrcio

    6

    da Europa

    se interessassem

    em

    participar dessas atividades.

    No Brasil, as principais regies receptoras de escravos foram aquelas em que a

    economia estava em pleno desenvolvimento: a regio do

    acar

    litoral nordestino e, a partir

    do sculo XVIII, a regio do ouro -

    em

    Minas Gerais.

    Abaixo, as principais rotas do trfico de escravos para as Amricas:

    Figura : Rotas do trfico

    Fonte: Libertria 2006)

    OC

    , ._ ~ f ~ V f ; t - , . : . ~

    -: t

    ...

    6

    As companhias de comrcio

    eram

    associaes de comerciantes em

    que

    cada membro participava com uma parte do

    capital, juntos conseguiam empreender projetos inviveis

    iniciativa individual, sendo o lucro dividido

    proporcionalmente aos investidores.

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    16

    Os

    negros eram trazidos ao pas

    em

    condies totalmente desumanas. Muitas

    veLes

    amarrados uns aos outros, navegavam desta maneira por cerca de um ms ou mais nos

    pores dos navios negreiros. Muitos

    no

    conseguiam aportar com vida devido

    fome, as

    p e ~ t e s

    aos maus-tratos (anexo B). Os que conseguiam chegar ao Bra

    sil

    eram batizados fora no

    catolicismo e expostos e leiloados como produtos de consumo nos Mercados de Escravos, onde

    lhes eram examinados os dentes, a musculatura e at

    as

    genitlias. Contudo, os leiles de negros

    traficados no eram a nica maneira de se obter um escravo. Diversos tipos de transaes

    comerciais existiam (anexo C).

    Arrematados, ou trocados, ou comprados, ou doados por algum Senhor,

    seguiam viagem at sua nova morada

    e,

    marcados a ferro quente, perdiam-se de si mesmos.

    Definitivamente, seus corpos no lhe pertenciam mai s. Suas identidades no

    mais existiam. Suas vidas haviam sido roubadas, a nica coisa que lhes restava era a esperana da

    liberdade que, diante

    de

    tanta dor e sofrimento, em alguns adormecia mas,

    em

    muitos outros

    tantos, ebulia incessantemente.

    Os negros recm-chegados eram postos juntos aos outros que tiveram a mesma

    sorte. Homens e mulheres dividindo

    as

    senzalas que,

    na

    maioria

    das

    vezes, eram pequenas para o

    tanto de pessoas que haviam de se alojar, sujas, sem ventilao .. Enfim, sem a mnima condio

    de acalanto para sequer alma viva. Este fato pode ser notado a partir da descrio de

    um

    engenho

    feita por Padre Antnio Vieira, datada de

    1633:

    r gen te toda da cor da

    mesma

    noite, traballulndo vivamente, e geme

    ndo

    tudo

    ao

    mesmo tempo sem momento de

    trguas

    nem

    de descanso:

    quem vir em

    fim

    toda a

    mquina e aparato

    confuso

    e estrondoso daquela Babilnia,

    no

    poder duvidar, ainda

    que tenha

    visto

    Etnas

    e Yesvios,

    que

    uma semelhana

    do

    inferno

    Liberlria,

    2006)

    Tinham apenas o direito de obedecer e servir. Trabalhavam de sol a sol nas

    fazendas de seus senhores.

    Os

    que tinham mais sorte conseguiam

    um

    dia por semana para o

    descanso , dia este, que utilizavam para o cuidado com a subsistncia.

    Numa mesma propriedade, havia diversos tipos de negros diferentes. Diversos

    idiOmas, diversas culturas, diversos hbitos. Propositadamente. Desta maneira, os escravos

    encontravam mais obstculos para a comunicao e interao, dificultando a organizao de

    revoltas e motins

    em

    massa.

  • 7/25/2019 Capoeira - Jogando Com Sua Histria

    18/69

    7

    Contudo, de modo contrrio ao esperado, os negros souberam aproveitar muito

    bem essa diversidade cultural.

    Ao

    invs de haver o isolamento, houve a unio. E, desta mistura de

    conhecimentos e tradies, eis que surge o objeto deste trabalho: a Capoeira.

    2.2

    explorao do homem pelo homem

    No perodo da escravido, existia toda uma estrutura organizacional entre o tipo

    de trabalho desenvolvido pelos escravos.

    De

    acordo

    com

    suas habilidades e/ou caractersticas

    pessoais, eram destinados execuo de uma determinada atividade. Esta diviso dava-se da

    seguinte maneira:

    Escravos Produtivos:

    Trabalhavam nas lavouras ou nas minas. Era um trabalho rduo que ia da

    aurora ao escurecer. Segundo Charles

    R

    Boxer (1981), a vida mdia desses escravos era estimada

    entre sete e dez anos de trabalho. Deste grupo faziam parte, preferencialmente, homens jovens,

    com porte fsico avantajado e de pele mais escura. Tambm os recm-chegados da frica. Eram

    chamados de boais .

    Escravos de Ganho: Eram os que iam pelas ruas a fim de prestar servios ocasionais e que

    deviam,

    ao

    fim do dia, entregar a seus senhores uma quantia previamente fixada. Neste caso, o

    proprietrio se desobrigava de atender s necessidades bsicas do escravo,

    na

    medida em que este

    dispunha de seu tempo com maior liberdade.

    Escravos Domsticos: Trabalhavam dentro das casas de seus senhores desenvolvendo diversos

    tipos de servio: criados de quarto, amas de crianas, mucamas, cozinheiras, costureiras,

    cocheiros entre outros. A maioria dos escravos domsticos eram mulheres, pois grande parte

    do

    servio disponvel tinha caractersticas femininas para os padres da poca. Eram, tambm.

    chamados de ladinos e, em geral, recebiam um tratamento um pouco melhor .

    Escravos de Aluguel: Eram os escravos alugados por seu senhor a terceiros. Normalmente

    aqueles que realizavam, com propriedade, algum ofcio como a carpintaria, sapataria, culinria

  • 7/25/2019 Capoeira - Jogando Com Sua Histria

    19/69

    Figura

    3:

    Escravos produtivos- lavra de di m ntes 1868

    Fonte: Biblioteca Nacional (2006)

    l/. .

    ?);; ' *'

    t

    J. d4,

    ~ c . / . . J t

    Figma 4 Escravo de g nho vendedor de frutas

    Fonte: Biblioteca Nacional (2006)

    : ~ o r ; n ~ : 1 tfn : prr ,r,.. : . n ~ r ; ; ; \I'Y. il 1

    .

    . f i:

    Figura

    5:

    Escravos domst icos - cocheiros

    Fonte: Biblioteca Nacional (2006)

    I8

    Figma 6: Escravos de aluguel Contrato - 1 49

    Fonte: Biblioteca Nacional (2006)

  • 7/25/2019 Capoeira - Jogando Com Sua Histria

    20/69

    19

    Como se pode observar, o escravo era tratado como mercadoria, pois inspirada

    no Direito Romano, a lei portuguesa considerava-o coisa do seu senhor , ou seja, classificava-o

    como mercadoria ou pea . Podia ser vendido, alugado, emprestado, submetido, enfim, a

    todos os atos decorrentes do direito de propriedade.

    Independentemente do tipo de trabalho executado, no deixavam de ser

    escravos e de, durante todo o tempo, serem lembrados disso por seus senhores, por seus feitores,

    pelos capites-do-mato ou por qualquer outro que no estivesse na condio da escravido.

    Quando os escravos tomavam alguma atitude que desagradasse de alguma

    maneira seus senhores ou aquele que estivesse hierarquicamente acima deles, eram duramente

    castigados. Esses desagrados eram muitas vezes descabidos. e at inventados para que os

    escravos fossem, propositadamente,

    puni os

    desta maneira estavam sempre a amedront-los e

    intimid-los, dando o exemplo aos outros para que no reagissem de maneira alguma

    absolutamente nada.

    Dentre as diversas formas de punio aos escravos, a mais comumente usada

    eram os Aoites - chicotadas ministradas

    no

    corpo do escravo fadado ao castigado, geralmente

    nas costas, com um chicote de couro. Eles eram amarrados com os braos para cima num tronco

    que se localizava numa regio de destaque,

    as

    vistas dos escravos, com o intuito de serem sempre

    lembrados que, a qualquer momento, poderiam ser aoitados. No obstante, permaneciam

    amarrados por dias a fio, dependendo da vontade de seus senhores debaixo de forte sol, de chuva,

    de vento, de frio e nos ferimentos, era jogado um preparado de gua com sal - a salmoura.

    Muitos no resistiam essa tortura e morriam. Aos que resistiam, no raro saam do tronco com

    algum tipo de seqela: cegueira, desnaturao e at paralisia devido a machucados na coluna pela

    fora das chicotadas. Mas no s no tronco eram aoitados: tambm poderiam sofrer esse tipo de

    violncia enquanto amarrados em si mesmos - as mos aos ps. Permaneciam desta maneira

    vontade dos Senhores.

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    20

    2.3

    materializao

    d

    revolta

    Cansados deste tratamento monstruoso e desumano ministrado a eles, os

    escravos passaram a fugir de seus Senhores e comearam a se organizar em outras moradas as

    quais chamavam de Quilombos. Estes escravos refugiados nos Quilombos eram chamados de

    quilombolas

    [

    ..

    ] Foi incontestavelmente, a unidade bsica de resistncia do escravo. Pequeno ou

    grande, estvel ou de vida precria, em qualquer regio

    em

    que existisse a escravido l

    se encontrava ele como elemento de desgaste do regime servil. O fenmeno no era

    atomizado, circunscrito determinada rea geogrfica, como a dizer que somente em

    determinados locais, por circunstncias mesolgicas favorveis, ele poderia afirmar-se.

    No. O quilombo aparecia onde quer que a escravido surgisse. No era simples

    manifestao tpica. Muitas vezes surpreende pela capacidade de organizao, pela

    resistncia que oferece; destrudo parcialmente dezenas de vezes e novamente

    aparecendo, em outros locais, plantando a sua roa, construindo suas casas,

    reorganizando sua vida e estabelecendo novos sistemas de defesa. O quilombo no foi,

    portanto, apenas um fenmeno espordico. Constitua-se em fato normal dentro da

    sociedade escravista. Era a reao organizada de combate a uma forma de trabalho

    contra a qual se voltava o prprio sujeito que a sustentava. MOURA, 1981, p.38).

    Como pudemos perceber a partir do trecho acima, os quilombos representaram

    o alicerce da resistncia escrava

    e

    nele foi depositada a esperana de uma vida digna.

    Nestes locais escondidos e fortificados no meio das matas, os negros viviam de

    acordo com sua cultura africana, plantando e produzindo em comunidade.

    Pouco

    sabido sobre a

    sua organizao poltica, contudo, aproximava-se muito da cultura africana: Estado chefiado por

    um lder supremo.

    No Brasil, centenas de quilombos existiram espalhados, principalmente, pelos

    atuais estados da Bahia, Pernambuco, Alagoas, Gois, Mato Grosso e Minas Gerais. O de maior

    impacto foi o Quilombo dos Palmares localizado na Serra da Barriga, atual estado de Alagoas.

    Estima-se que cerca de vinte mil quilombo las integravam os mocambos

    7

    de Palmares m 1670,

    contudo, este dado no pode ser afirmado, pois a populao do Quilombo flutuava ao sabor das

    conjunturas.

    7

    Os mocambos eram ncleos de povoamento dos Quilombos.

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    2

    Devido ao alto preo dos escravos africanos, diversos ataques foram

    ministrados ao Quilombo a fim de recuperar os escravos fugidos. Contudo, a resistncia oferecida

    pelos quilombolas dificultava seu extermnio.

    No ano de 1677, com o intuito de restabelecer o controle sobre a regio, foi

    proposto a Ganga Zumba, o ento lder

    de

    Palmares um tratado de paz, oferecendo liberdade aos

    nascidos no Quilombo e a apropriao de algumas terras. Tendo Ganga Zumba tendido para a

    aceitao do acordo, muitos quilombolas se revoltaram e o lder do Quilombo foi envenenado.

    Assume o controle do Quilombo Zumbi, sobrinho de Ganga Zumba, com idias

    totalmente contrrias a qualquer compromisso mais estreito com as autoridades portuguesas.

    Desta maneira inicia-se uma nova fase do Quilombo: saindo de cena estratgias de defesa passiva

    e adentrando o cenrio estratgias altamente ofensivas, semelhantes s guerrilhas, oferecendo

    ataques-surpresa a engenhos com o intuito de libertar escravos e fazer a apropriao de armas. E.

    para isso, lanavam mo da Capoeira como meio de ataque/ defesa.

    Com esta nova poltica implementada por Zumbi, as autoridades portuguesas

    se viram diante de uma forte presso: precisavam, a qualquer custo, retomar o controle sobre os

    escravos fugidos. Para isto, contrataram o bandeirante paulista Domingos Jorge Velho que, como

    Dcio Freitas (1971, p. 124) coloca em sua obra

    Palmares a guerra dos escravos Os

    bandeirantes foram, pois, uma tropa de choque a servio do colonialismo portugus, e no outra

    coisa e sua sanguinria ferocidade, sua incrvel resistncia fome e seu ntimo conhecimento

    do serto faziam deles o elemento humano ideal para o combate aos palmarinos .

    Em

    Janeiro de 1964, aps diversas investidas frustradas, Jorge Velho obtm o

    sucesso na empreitada que envolveu seis mil homens bem armados. Capturando um quilombola

    chamado Antnio Soares e com a falsa promessa de liberdade, Jorge Velho recebe deste a

    informao sobre o paradeiro de Zumbi que, numa emboscada, morto no dia 20 de Novembro

    de 1695 e tem sua cabea decepada e exposta em praa pblica na cidade de Recife, no alto de

    um mastro, para servir de exemplo a outros escravos.

    Vale ressaltar que os Quilombos no foram a nica forma de resistncia

    apresentada pelos escravos. Cada um, sua maneira, sempre procurava meios de manifestar sua

    insatisfao diante da situao, nem que o preo disto fosse a prpria vida. O ndice de suicdios

    ente os escravos era imenso, obrigando os senhores a estabelecer relaes de condescendncia

    para com seus escravos a fim de no perder mo-de-obra.

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    22

    2 4 Liberdade e papel

    O processo de abolio da escravido ocorreu paulatinamente. Deu-se atravs

    do reflexo de diversos acontecimentos que transcorreram ao longo da histria como a resistncia

    negra, os movimentos abolicionistas

    8

    e

    principalmente, por questes econmicas envolvendo o

    Brasil e a Europa. Estes interesses europeus estavam ligados ao capitalismo em ascenso. A

    escravido no poderia ser aceita como forma de trabalho, pois no existia um salrio e, desta

    forma, no haveria meios de fazer a aquisio de qualquer tipo de produto.

    Havia tambm no Brasil e na Europa os ideais iluministas em voga, herdados

    da Revoluo Francesa, preconizando a igualdade ente todos os homens. Mas, seja

    por

    razes

    econmicas ou ideolgicas, o fato que a Inglaterra, pas com o qual o Brasil mantinha suas

    maiores relaes comercias, passou a pressionar sistematicamente o pas para que o trfico de

    escravos e a escravido fossem extintos.

    Cedendo

    as

    presses inglesas, D. Joo VI assinou, em Janeiro de 1815, um

    tratado que proibia o aporte de navios negreiros em terras brasileiras provenientes da costa

    africana localizada acima da Linha do Equador

    e

    caso fossem pegos, a Inglaterra teria o direito

    de afund-los como se fossem navios piratas. No satisfeitos com este tratado, no ano de 1845 a

    Lei Bil Abardeen pautada em acordos anteriores, em total desrespeito soberania brasileira, dava

    plenos poderes Inglaterra para afundar navios com bandeira brasileira que transportassem

    escravos.

    O aumento do risco do trfico negreiro fez com que os traficantes de escravos

    abandonassem a prtica e com a baixa natalidade e o alto custo do trfico interno adotada como

    medida paliativa motivada pela falta de escravos para negociao, em 1850 o Imprio proibiu de

    vez o aporte de navios vindos da frica trazendo escravos atravs da

    Lei Eusbio de

    Queirl A

    partir de ento vrios outros projetos colaboraram para que a escravido fosse suprimida: m 28

    8

    Os movimentos abolicionistas se davam a partir de grupos que, enquanto fora social organizada, visavam ao fim

    da escravido. Destes grupos eram pertencentes pessoas das mais variadas classes, profisses e credos. Criaram um

    partido poltico em prol da abolio, fundaram rgos de imprensa explicitamente ligados a questes abolicionistas e

    usavam de diversas formas de manifestaes para levantar a causa. Tiveram seu apogeu entre as dcadas

    de

    1860 e

    1880. Biblioteca Nacional, 2006)

    9

    Eusbio de Queirs era ministro vinculado

    ao

    Partido Conservador que fomentava a idia de o pas proibir, por si

    s, o trfico negreiro para que sua soberania no fosse afetada.

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    de Setembro de 1871 Visconde do Rio Branco apresentou o projeto de Lei do Elemento Servil, a

    qual ficou conhecida por

    Lei do Ventre Livre

    Esta lei no s dava a liberdade para os filhos de

    escravos nascidos a partir daquela data como tambm criava os direitos do escravo e

    regulamentava os castigos.

    Outras leis foram sendo promulgadas em decorrncia das presses

    internacionais e das correntes abolicionistas: Em 1885 a

    Lei dos Sexagenrios

    previa a libertao

    de escravos com mais de sessenta anos. Poucos escravos, porm, puderam se beneficiar desta lei,

    uma vez que a expectativa de vida dos mesmos era muito baixa.

    As rebelies de escravos se intensificaram com a eminncia da liberdade, bem

    como os movimentos abolicionistas e neste cenrio catico, Princesa Isabel, Regente do Imprio

    na ausncia de

    D.

    Pedro

    II

    assinou, no dia 13

    de

    Maio de 1888, com pena de ouro, a Lei urea,

    lei esta que abolia a escravido no Brasil.

    A Lei urea, com intuito nico de abolir a escravido no Brasil, deixou as

    margens da misria uma gama de ex-escravos. Sem emprego e moradia muitos continuaram a

    servir seus antigos senhores. E, ento, eis que surge uma nova classe no pas: a dos ex

    escravos, os quais foram marginalizados e subjugados pelas elites. E, neste contexto marginal, se

    evidencia a Capoeira, causando temor na classe dominante pelo simples fato de conhecerem o

    poder dos capoeiras, que pde ser mostrado

    na

    Revolta dos Mercenrios

    10

    .

    Tanta preocupao causou

    os

    ex-excravos solta pelas cidades que, em 11 de

    Outubro de 1890, o novo Cdigo Penal da Repblica, Captulo XIII Dos vadios e

    capoeiras-

    enquadra a Capoeira como delito ou contraveno criminal.

    Temos em Marinho (1945, apud SILVA, 2002, p. 46):

    Art. 402 - Fazer nas ruas e praas pblicas exerccios de agilidade e destreza corporal,

    conhecidos pela denominao de capoeiragem: andar em correrias, com armas ou

    instrumentos capazes de produzir uma leso corporal, provocando tumulto ou desordens,

    ameaando pessoa certa ou incerta ou incutindo temor ou algum mal.:

    Pena: De priso celular de dois a seis meses.

    Pargrafo nico - considerada circunstncia agravante pertencer o capoeira a algum

    bando ou malta. Aos chefes ou cabeas se impor a pena em dobro.

    Art. 403 - No caso de reincidncia ser aplicado ao capoeira, no grau mximo a pena do

    art. 400 (pena de um a trs anos em colnias penais que se fundarem em ilhas martimas,

    10

    A Revolta dos Mercenrios um episdio pouco conhecido na Histria do Brasil. Os mercenrios eram soldados

    estrangeiros que lutavam a favor de um exrcito de outra nacionalidade mediante pagamento de um soldo.Em 1928,

    os mercenrios revoltados pelo no pagamento por parte da Coroa, causam uma sublevao militar a qual foi contida

    pelos capoeiras a pedido do Exrcito Brasileiro.

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    ou nas fronteiras

    o

    territrio nacional, podendo para esse

    fim

    serem aproveitados os

    presdios militares existentes .

    Pargrafo

    n o

    Se for estrangeiro ser deportado depois de cumprir a pena.

    Art 404 - se nesses exerccios de capoeiragem perpetrar homicdios, praticar leso

    corporal, ultrajar o pudor pblico e particular, e perturbar a ordem, a tranqilidade e a

    segurana pblica ou for encontrado com armas, incorrer cumulativamente nas penas

    cominadas para tais crimes.

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    omeando

    o jogo

    No se sabe onde, no se sabe quando e, instiga-nos saber a

    origem da

    Capoeira. Existem alguns pressupostos sobre a Capoeira ser brasileira, outros sobre ser africana e

    at indgena.

    Em sua obra A negregada Instituo - os capoeiras no Rio de Janeiro escrita

    em 1993 e publicada em 1994, Carlos Eugnio Lbano Soares apresenta algumas teorias sobre a

    origem da Capoeira. Atribui o pioneirismo destes estudos Plcido de Abreu, um militante

    republicano, escritor e praticante

    da

    Capoeira nascido

    em

    Portugal, autor da obra s Capoeiras

    datada de 1886:

    um

    trabalho difcil estudar a capoeiragem desde a primitiva porque no bem

    conhecida a sua origem. Uns atribuem-na aos pretos africanos, o que julgo um erro, pelo

    simples fato que na frica no conhecida a nossa capoeiragem e sim alguns

    sortes de

    cabea. Aos nossos ndios tambm no se pode atribuir porque apesar de possurem a

    ligeireza que caracteriza os capoeiras, contudo, no conhecem os meios que estes

    empregam para o ataque e a defesa. O mais racional que a capoeiragem criou-se,

    desenvolveu-se e aperfeioou-se entre ns. (ABREU, 1886 apud SOARES, 1993, p.

    10).

    Esta pnme1ra linhagem de escritores categorizada como

    cronistas.

    Deste

    grupo ainda faz parte Alexandre Mello Moraes Filho, o qual iniciou sua obra quando da represso

    movida pelo governo provisrio de Deodoro da Fonseca e que passaria

    histria como a morte

    da Capoeira no Rio de Janeiro (SOARES, 1994, p. 10). Sua obra traz a idia base da

    apoeira

    como luta nacional :

    Como a febre amarela, que no sabemos por que espanta tanta gente e quer-se a todo

    transe debelar, a capoeiragem, que uma

    luta nacional

    [grifo nosso], degenerando em

    assassinatos, tem merecido perseguio sem descanso, guerra sem condies.

    Entretanto, na Europa o tifo, a difteria, o clera e mais epidemias produzem anualmente

    grandes destroos e a cincia no cogitou nunca do seu extermnio, mas de preveni-las;

    os jogos de destreza e fora so regulados em seu exerccio, disciplinados pela arte, no

    havendo quem

    se

    oponha, seno aos abusos. (MORAES FILHO, s.d. apud SOARES,

    1994, p. 10

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    A partir

    de

    Mello Moraes

    foi que

    se deu incio o resgate

    do

    tema

    Capoeira

    o

    qual foi inserido no contexto das ginsticas blicas por Coelho Neto. Este no apenas reala

    suas caractersticas ginsticas como tambm a celebra como a verdadeira educao fsica no

    Brasil, que deve ser ensinada em todos

    os

    lugares onde a educao seja importante. Mas, para

    isso, era preciso apagar todo seu histrico degenerativo de crimes e violncias

    e

    ainda, eliminar a

    navalha

    11

    de seu meio. Abaixo, um relato marcante de Coelho Neto em O Bazar 1928:

    m

    1910, Germano Haslocher, Luiz Murat e quem escreve essas linhas, pensaram

    em

    mandar um projeto mesa da cmara dos deputados tornando obrigatrio o ensino da

    capoeiragem nos institutos officiais e nos quartis, desistiram, porm, da idia porque

    houve quem a achasse ridcula, simplesmente porque tal jogo era .. brasileiro (NETO,

    1928 apud PIRES, 1996, p. 222, como no original).

    Nas primeiras dcadas

    do

    sculo XX h uma crescente sobre

    as

    discusses que

    permeiam a origem da Capoeira. Assunto tambm abordado pela imprensa, mais particularmente

    por um artigo publicado na revista Kosmos

    datado de 1906, assinado por L.C., o qual faz

    minuciosa representao nacional da Capoeira a partir de um embasamento racial:

    Porque, quando, e como nasceu a capoeira? Na transio provavelmente do reinado

    portugus para o Imprio livre, pela necessidade do independente, phisicamente fraco de

    se defender ou agredir o ex-possessor, robusto, nos distrbios, ento freqentes

    em

    tavernas e matulas, por atrictos constantes de nacionalidade, tendo a sua gnese em dois

    pontos diversos ( .. ) criou-a o esprito inventiva do mestio porque a capoeira no

    portuguesa, nem mesmo negra, mulata, mestia, cafuza, e mameluca, isto ,

    cruzada, mestia ( .. ) a navalha do fadista da mouraria lisboeta, alguns movimentos

    sambados e simiescos do africano e, sobretudo, a agilidade, a levipidez felina e pasmosa

    do ndio nos saltos rpidos, leves e imprevistos L. C., 1906, apud PIRES, 1996, p. 221,

    como no original).

    Atravs dos pressupostos citados, podemos perceber a tendncia desses autores

    em colocar a mestiagem como sendo o que de fato brasileiro tomando-a smbolo racial

    representativo da identidade nacional sendo esta, composta pelas misturas oriundas dos negros

    africanos, os brancos portugueses e os ndios. Neste contexto inserem a Capoeira como mestia,

    portanto, legitimamente brasileira, negando o que do negro africano, ocasionando

    um

    enfraquecimento da Capoeira enquanto um smbolo de resistncia e tentando minimizar sua

    memria escrava apontando para um caminho racista para a construo de uma cultura nacional.

    Para ilustrar esta tentativa de legitimar a Capoeira como sendo brasileira,

    podemos nos remeter

    Alusio de Azevedo que, em sua obra O Cortio deixa bem clara esta

    11

    A navalha um elemento que foi agregado capoeira do sculo XX a partir dos fadistas vindos de Portugal.

  • 7/25/2019 Capoeira - Jogando Com Sua Histria

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    27

    idia

    ao

    fazer a descrio

    do

    personagem Firmo, usando os traos definidores da raa

    representante

    do

    nacionalismo:

    [ .. ]

    um

    mul to [grifo nosso] pachola, delgado de corpo e gil como um cabrito, s de

    maadas, e todo ele se quebrando nos seus movimentos de capoeira.( .. ) Pernas e braos

    finos, pescoo estreito, porm forte; no tinha msculos, tinha nervos (AZEVEDO,

    1991, p 49).

    Silva (2002) nos atenta que h, nesta descrio, a naturalizao das

    caractersticas do personagem, o que absolutamente compreensvel pelo fato de Alusio de

    Azevedo pertencer ao gnero literrio naturalista, expressando-se atravs

    do

    seu embasamento

    nas teorias biologizantes.

    Ainda encontramos traos das vises biologizantes em autores como Slvio

    Romero, o qual inicia o pressuposto da origem africana da Capoeira, juntamente com Manuel

    Raimundo Querino, na mesma poca em que Plcido de Abreu iniciava a defesa da Capoeira

    brasileira , final

    do

    sculo XIX, No creio

    que

    o jogo s ~ j brasileiro, mesmo porque

    conhecido com possveis familiares na Amrica Central (ROMERO, 1981 apud PIRES, 1996, p

    216).

    Romero referia-se a outros tipos

    de

    danas, lutas e rituais encontrados em

    outros pases das Amricas os quais tambm receberam negros escravizados advindos da frica

    como a mani oubombosa de Cuba e a alagya de Martinica (SOARES, 1994).

    Para reforar a idia, anos mais tarde,

    j

    em meados do sculo XX, Luiz da

    Cmara Cascudo trataria dessa temtica a partir das informaes colhidas por um viajante

    portugus- Neves e

    Souza-

    que forneceu dados sobre diferentes manifestaes encontradas no

    continente africano semelhantes Capoeira como a Bssula - luta de pescadores da regio de

    Luanda, a

    Dana da Zebra

    ou

    n

    Golo

    12

    da regio

    de

    Mocupe e Mulondo, atual sul de Angola.

    Manuel Raimundo Querino, profundo conhecedor das manifestaes da cultura

    africana no Brasil, filho de escravos da Bahia e descendente de uma longa linhagem de

    sacerdotisas do candombl e aristocratas africanos discordara veementemente da Capoeira

    enquanto ginstica nacional , introduzida por Coelho Neto: defendia a origem escrava e africana

    12

    De acordo com SOARES, o n'Golo tratava-se de [ .. ] uma dana cerimonial de iniciao[ .. ] Realizada durante as

    festas do mufico, rito de puberdade das moas do grupo, executada dentro de um grande crculo de pessoas da

    tribo, que batendo palmas marcam a cadncia. Dentro da roda, dois jovens realizam a dana da zebra, ou n'Golo, na

    qual, imitando movimentos de animais, tentam atingir o rosto do oponente com o p .

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    28

    desta manifestao, indo em total dissonncia com as produes da poca, onde o racismo

    cientfico tomava seu pice, abrindo caminho idia

    culturalista

    da Capoeira. E, a partir de

    Querino, temos o incio do paradigma culturalista

    13

    , apesar de deixar transparecer resduos de

    uma viso biologizante da cultura:

    O angola era em geral pernstico, excessivamente loquaz de

    gestos amaneirados, tipo completo e acabado do capadcio e o introdutor da capoeiragem no

    Brasil (QUERINO, 1988 apud PIRES, 1996, p. 217).

    Com essa afirmativa, conseguimos identificar uma

    naturalizao da cultura

    pois Querino atribui as origens da Capoeira aos negros escravos vindos de angola, fazendo uma

    generalizao de seus trejeitos.

    Pires (1996) nos traz um importante esclarecimento sobre o entendimento de

    Querino. Adverte-nos de que precisamos estar cientes de que Querino classifica como angolas

    os negros vindos da regio de Angola esquecendo-se, no entanto, que esta classificao

    se

    dava a

    partir do Porto de embarque dos negros. Os angolas eram aqueles que embarcaram no Porto de

    Luanda bem como os minas os que embarcaram no Porto de So Jorge da Mina. Isto significa

    que nem sempre os negros embarcados eram de uma mesma etnia apesar de apresentarem, na

    maioria das vezes, um mesmo tronco lingstico.

    Seguindo os rastros deixados por Querino, Edison Carneiro surge como o ponto

    alto da pradigma culturalista tendo seus trabalhos, sido de fillndamental importncia para a

    construo dos smbolos culturais dos negros no Brasil. Carneiro ainda estabelece o pensamento

    folclorista

    da Capoeira, no buscando uma Capoeira do passado, uma lembrana da escravido,

    contudo, no deixando completamente de lado o memorialismo, Os capoeiras da Bahia

    denominam o seu jogo de vadiao - e no passa disto a capoeira, tal como se realiza nas festas

    populares da Cidade. Os jogadores se divertem fingindo lutar. (CARNEIRO, 1975 apud

    SOARES, 1994).

    Este novo enfoque, a Capoeira enquanto manifestao popular, exemplar da

    expresso ldica do povo d as diretrizes para o tema a partir da dcada de 30, os quais so

    reforados por Cascudo, o qual

    j

    foi citado acima, e sofrendo sua saturao com Waldeloir

    Rego, defensor da capoeira brasileira, em sua obra

    Capoeira

    e

    Angola: ensaio scio-

    etnogrfico

    datada de 1968, que seria uma sntese sobre tudo o que fora escrito sobre o tema.

    13

    O paradigma culturalista veio enfraquecer o modelo biolgico e a diferena passa a ser pensada enaunto diferena

    cultura l (MAGGIE, 1991, apud PIRES, 1996, p. 218)

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    O tambm folclorista General Couto de Magalhes foi um dos poucos a

    defender a ongem indgena da Capoeira, traando uma ligao direta com o fato de sua

    etimologia mais aceita ser advinda do Guarani. Magalhes defende a valorizao da cultura

    indgena como alicerce da construo

    da

    identidade nacional. No podemos negar a influncia

    indgena na construo dessa identidade, contudo, o enfoque dado por Magalhes sobre a

    Capoeira era de primitividade, ao animalesca, gerando uma desvalorizao da cultura indgena

    enquanto civilizao organizada e desqualificando a Capoeira enquanto manifestao cultural

    (PIRES, 1996,

    p.

    223).

    A partir de todas estas discusses que permearam o tema desde meados do

    sculo XIX at o sculo XX podemos observar que, na inteno de se estabelecer uma identidade

    para a Capoeira, segundo Pires (1996,

    p.

    227)

    Os intelectuais manipularam as categorias de cor, cultura e nacionalidade o que revela os

    mecanismos de manipulao das tradies culturais que obedecem aos espaos

    permitidos pelas ideologias raciais. Dessa forma, eles inscreveram a capoeira como

    smbolo tnico na sociedade brasileira.

    Esta discusso sobre a origem da Capoeira nos conduz a fazer uma anlise

    sobre o processo de ruptura que esta sofreu entre seus praticantes que passaram a se auto-

    categorizar entre angoleiros e regionais devido s diferenas ideolgicas induzidas pelos

    intelectuais acima abordados que, na nsia de estabelecer a Capoeira enquanto parte integrante da

    cultura nacional, acabaram por fragmentar sua prtica.

    Esta fragmentao acabou sendo sustentada pela simbologia tnica embutida na

    prtica da Capoeira: Os regionais so pautados na origem mestia, portanto, brasileira da

    Capoeira enquanto os ditos angoleiros na origem puramente negra, ou seja, africana.

    A capoeira Regional, por ser produzida a partir de uma relao mais prxima

    aos discursos desportivos, passa a ser vista,

    no

    correr do sculo XX, como uma

    forma de embranquecimento cultural , frente capoeira Angola que, seria a

    representao da pureza e por isso, da negritude (PIRES, 1996,

    p.

    225).

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    30

    4

    Negros

    e

    Mestios

    Desde o incio da capoeiragem h conflitos tnicos que permeiam o

    desenvolvimento da manifestao em questo levando, em diversos momentos de sua histria, a

    fragmentaes.

    Como visto no captulo anterior, os conflitos tnicos bem como os ideolgicos

    podem ser considerados os principais aspectos que do sustentao a essas divises que, antes

    mesmo de existirem os Regionais e os Angoleiros

    -

    assunto abordado mais frente - em

    meados do sculo XIX j existiam

    as

    Maltas dos Nagoas e Guaiamus

    4 1

    Das Maltas

    As maltas eram grupos formados por capoeiras os qums se segregavam por

    motivos tnicos, ideolgicos, geogrficos e polticos na cidade do Rio do Janeiro do sculo XIX e

    se constituram na unidade fundamental de atuao dos praticantes de capoeiragem:

    Durante o Segundo Imprio, a capoeira chegou ao auge,

    foi

    verdadeiramente aquela

    poca a do seu pleno domnio e mximo desenvolvimento [ ] Foram formados os

    partidos aguerridos, as maltas como eram chamados: Conceio da Marinha, Moura

    apa[ ] REVISTA KOSMOS, 1906, apud SOARES, 1994, p 39).

    Por volta da poca da Abolio, a nomeao e formao das maltas vinham

    sofrendo alteraes tanto nas nomenclaturas quanto nos campos de atuao: as maltas foram

    conquistando terreno na cidade e em seus arredores e foram fundindo-se umas s outras at, por

    fim, terminarem em apenas duas: Nagoas e Guaiamus

    J na poca da Proclamao da Repblica, a cidade do Rio de Janeiro se via

    totalmente dividida em dois grandes grupos rivais, definindo um alinha divisria que mantinha

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    nagoas e gumamus em lado opostos e em permanente conflito pelo controle geogrfico e

    ideolgico:

    Dividiam-se em dois partidos - o dos guaiamus e dos nags, ou nagoas, cada qual mais

    ou menos localizado numa parte da cidade. Aludia-se frequentemente zona dos

    guaiamus e zona dos nagoas, como se fossem territrios intransponveis para uma ou

    outra faco. (MORAIS, 1985, apud SOARES, 1994, p. 40).

    Entre as maltas tambm existia a preferncia poltica que acabou por se

    constituir numa maneira de proteger a existncia da capoeira uma vez que as perseguies

    policiais eram freqentes:

    Estava no domnio pblico a razo principal da impunidade que eles gozavam.

    Era

    que

    chefetes polticos de algumas parquias no se vexavam de proteg-los, em

    compensao por servios que prestavam por ocasio das eleies [ .. ] E isso aprecia

    encontrar tal ou qual confrrmao nesta circunstncia: quando subiam os liberais eram

    mais frequentemente presos os nagoas, acontecendo o inverso se iam para o poder os

    conservadores[ ..] (MORAIS, 1985, apud SOARES, 1994, p. 41).

    A partir do trecho transcrito acima da obra de Evaristo de Morais Da

    Monarquia para a Repblica podemos perceber que os capoeiras faziam o papel de cabos

    eleitorais e guardies dos polticos na poca das eleies. Podemos entender tal conduta dos

    capoeiras a partir da idia da troca de favores , uma vez que o capoeira auxiliava o poltico em

    sua proteo e empreitada

    e

    em contrapartida, estes polticos ofereciam proteo a eles. Ainda

    fica implcito no trecho que os guaiamus defendiam uma poltica liberal enquanto os nagoas uma

    poltica conservadora.

    Entrando no ponto onde podemos encontrar as diferenas apresentadas pelas

    duas maltas, com uma busca etimolgica, podemos notar que a particularidade tnica entra em

    cena mais uma vez. Segundo o dicionrio

    de

    Macedo Soares,

    Nag

    =

    Nagoa

    adjetivo; gente da

    nao nag da costa dos escravos da frica Ocidental. Guaiamum caranguejos

    14

    .

    Ainda encontramos em SOARES, 1994, pp. 45-46, outros estudiosos destas

    etimologias como Morais e Silva que se aproxima muito da definio de Macedo

    Soares-

    Nag:

    negro iorubano que usava trs lanhos no rosto// lngua dos nags e Guaiamu: caranguejo/siri

    14

    Reduzi a definio dada por Macedo Soares o qual, em seu dicionrio, toma as palavras de frei Vicente do

    Salvador, cronista do Brasil colonial do sculo XVII, para recuperar a terminologia indgena: H muitas castas de

    caranguejos, no

    s

    no mar e nas praias entre os mangues, mas tambm em terra ente os matos, uns

    de

    cor azul

    chamados guaiamus [ .. ] (MACEDO SOARES, 1889 apud SOARES, 1994, p. 45).

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    32

    de uma s unha , Agenor de Oliveira atribui a corruptela em tupi-guarani Qua ya o que mora

    no buraco, o indivduo do buraco e tambm pode significar

    Guara m um

    indivduo negro,

    escuro .. encontrado nas praias e pntanos da Ilha do Governador e do continente . A partir de

    Oliveira, Soares tece um comentrio relevante,

    No incuo lembrar

    que

    de acordo com a geografia da capoeira, ressaltada por Plcido

    de Abreu a rea dos guaiamus correspondia antiga parcela pantanosa da cidade, regio

    em que

    proliferavam

    os

    crustceos

    como os do mesmo nome

    (SOARES, 1994

    p.

    46).

    Em Soares, 1994, podemos perceber que a geografia das maltas nos ajuda a ter

    um entendimento

    de

    sua constituio e ideologias.

    Os

    guaiamus ocupavam a zona central da

    cidade do Rio de Janeiro e os nagoas ocupavam a circunvizinhana. A partir deste dado,

    conseguimos entender o processo de composio das maltas: a rea central, tambm conhecida

    por Cidade Velha, onde havia maior densidade demogrfica na poca, era dominada pelos

    guaiamus. Esta malta tinha como membros os crioulos, mestios, navalhistas. Os nagoas

    ocupavam

    as

    regies mais distantes e menos povoadas, regies estas que, tradicionalmente,

    recebiam

    os

    escravos recm-chegados. Por este motivo, identificava-se um maior nmero de

    capoeiras africanos nesta malta.

    No s geograficamente

    as

    maltas se diferenciavam. Existiam diversos aspectos

    pelos quais seus integrantes faziam questo

    de

    se contrapor. Diferenciavam-se at pela cor e

    estilos das vestimentas.

    Os guaiamus eram designados pela cor vermelha, advinda da indiaria pela

    pintura com o urucum e pela predileo portuguesa.

    Os nagoas ficavam com o branco que, segundo plcido de Abreu significava

    pureza, alegria, dedicao aos santos no martirizados .

    Segundo anlise feita por Soares,(1994, p.48), a partir destes dados temos o

    apontamento de

    uma tendncia: [

    ..

    ] nagoa teria relao com africanos e baianos, seguidores da

    religio dos orixs, ou pelo menos prximos. Guaiamum seria uma tradio nativa, crioula ,

    natural da terra, ligada aos escravos nascidos no Brasil .

    Na gravura que se segue, temos claramente um negro para ilustrar

    os

    nagoas e

    um mulato para designar os guaiamus.

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    Figura 7: Nagoas e Guaiamus

    Fonte: SOARES 1994)

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    34

    4.2 Bimba Bamba ..

    A Capoeira Regional teve como criador e defensor Manoel dos Reis Machado -

    o Mestre Bimba. Nascido em

    23

    de Novembro de 1899 em Salvador/BA, Mestre Bimba teve sua

    iniciao na Capoeira aos doze anos

    de

    idade. Aprendeu a arte como ela se apresentava n poca:

    pelas ruas da cidade, tida como manifestao de marginais. Desta maneira teve a oportunidade de

    apreender a Capoeira em seu todo - enquanto forma de luta, vadiao, divertimento, defesa

    pessoal, expresso ldica, folclrica, entre outras.

    Segundo anlises das obras referentes Mestre Bimba feitas por Silva (2002,

    p.101) o Mestre diferenciava a Capoeira entre aquela praticada nas rodas (a de exibio e

    fruio), a dos ringues (modalidade esportiva) e a das ruas (marginal) .

    Mestre Bimba ministrava aulas de Capoeira, clandestinamente, na dcada de 20

    s pessoas ligadas ao seu crculo de relaes e com o passar do tempo, sua Capoeira foi tomando

    dimenses maiores e ampliou-se o nmero de participantes pertencentes s camadas mais

    elevadas de Salvador.

    Bimba foi-se distanciando da Capoeira original pelo fato de consider-la uma

    luta ineficiente. E, desta maneira, foi fazendo as modificaes necessrias para que surgisse a

    Luta Regional Baiana cujo prprio nome nos revela a caracterstica primeira na qual Bimba

    intencionava inserir a Capoeira. A luta regional baiana era uma mistura da Capoeira

    tradicionalmente praticada com alguns golpes e posies oriundas do batuque modalidade n

    qual seu pai merecia grande destaque.

    Podemos encontrar na Luta Regional Baiana influncias de Annibal

    Burlamaqui, o pioneiro em propor, em 1928, uma metodizao da Capoeira admitindo sua

    origem escrava, Nascendo a capoeiragem nasceu o primeiro esforo para a liberdade dos cativos

    no Brasil e, sendo assim, a sua origem , pois, santificada . (BURLAMAQUI, 1928, apud

    SILVA, 2002

    p.

    77).

    O mtodo proposto por Burlamaqui foi chamado de

    Mtodo Zuma:

    [

    ..

    ] Zuma a quarta parte de meu segundo nome, como tambm porque uma feliz

    coincidncia faa com que se perceba a letra Z

    no

    centro de campo de luta que adaptei

  • 7/25/2019 Capoeira - Jogando Com Sua Histria

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    35

    para meu methodo de capoeiragem, diferenciando-o dos campos de sports communs

    (BURLAM QUI, 1928 apud SILVA, 2002, p. 78, como no original).

    Este mtodo se assemelhava muito

    ao

    Boxe, pois se dava a partir de assaltos

    com durao de trs minutos e intervalos de dois, at se completar uma hora e casou houvesse

    empate na contagem dos pontos, o combate seguiria at a queda mortal (nocaute). A luta se daria

    numa rea determinada por dois crculos tendo, o maior deles, um raio de 4 metros

    e

    o menor,

    um raio de cinqenta centmetros, onde se daria o embate. Dentro deste campo, uma letra

    Z

    que

    serviria de rota para a apresentao dos lutadores. O Juiz permaneceria entre os crculos maior e

    menor.

    Figura 8: Campo de combate Mtodo Zuma.

    Fonte: SILVA (2002, p. 82)

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    36

    Contudo, anteriormente a Burlamaqui, h registro de uma pnme1ra

    sistematizao da Capoeira assinada por O.D.C

    15

    .

    1907:

    O Guia

    d

    Capoeira ou Gymnastica

    brazileira

    que tinha o intuito de incorporar a Capoeira como luta ou ginstica nacional:

    [ ] levantar a Gymnastica Brazileira do abatimento em que jaez(ia), nivelando-a como

    singularidade ptria,

    ao

    socco inglez, savatta franceza, lucta allem, s corridas e

    jogos to decantados em outros pazes. Nossa briosa mocidade hoje descinhece pal mor

    parte, os trabalhos e termos da art antiga, e por isso ns resolvemos publicar o presente

    guia (O.D.C., 1907, apud SILVA, 2002,

    p

    72, como

    no

    original).

    Nesta obra O.D.C. deixa clara sua concepo de capoeira enquanto luta de

    defesa pessoal quando faz uso das seguintes palavras, [ .. ] ensinando a qualquer pessoa o meio

    de deffender-se de possveis agresses sem o auxlio de armas e s com

    os recursos naturaes dos

    braos, cabea e ps [ .. ] .

    Aps essa breve explanao sobre o surgimento de sistematizaes e

    metodologias para a Capoeira, retomamos

    Luta Regional Baiana. Para Silva (2002), o intuito de

    Mestre Bimba com a criao desta era de elevar o

    status

    da Capoeira. E, para que isso ocorresse,

    retirou o ensino e prtica da Capoeira das ruas, local de marginalidade e contraveno,

    transferindo-a a um local fechado: a academia. Passou a estabelecer regras ticas e morais aos

    seus alunos como no fumar, no beber, estudar possuir um trabalho

    16

    .

    A partir disso, podemos perceber que o mestre foi justamente ao encontro de

    todas

    as

    premissas de educao moral e cvica que regiam o ensino formal da poca, incluindo as

    ordens disciplinares em que se pautava a educao fsica. Vemos, ainda, que Mestre Bimba

    demonstrou uma enorme [ ] capacidade de compreender o momento histrico onde estava

    inserido e se adequar a ele (SILVA, 2002, p 103).

    Foi ento que, em 1937, mestre Bimba conseguiu o registro oficial do

    Centro

    e

    Cultura Fsica e Capoeira Regional o qual funcionava na ilegalidade desde 1932,

    autorizando-o a ministrar suas aulas. Com sua academia regulamentada Bimba no tardou em

    15

    Em Pires, 1996, h uma hiptese de que O.D.C. seria Coelho Neto que preferira no

    se

    identificar por causa dos

    valores atribudos Capoeira na poca: Actualmente o capoeira representado pelo desgraado vagabundo, trouxa,

    cachaa, gatuno, faquista ou navalhista (O.D.C., 1907, apud SILVA, 2002,

    p

    72, como

    no

    original) e tambm pela

    funo que exercia: [ ... ]

    um

    distincto official do exrcito brazileiro, mestre em todas as armas, professor de militares

    e habilssimo

    na

    gymnastica deffensiva ou verdadeira arte

    do

    capoeira (O.D.C., 1907 apud SILVA, 2002,

    p

    73,

    como

    no

    original).

    16

    Nota-se uma preocupao em desvincular a imagem do capoeira

    ao

    do malandro vagabundo.

  • 7/25/2019 Capoeira - Jogando Com Sua Histria

    38/69

    7

    divulgar sua metodologia para o ensino-aprendizagem da Capoeira Regional, a

    Seqncia de

    Ensino

    ou, como ficou conhecida at os dias de hoje, a

    Seqncia

    e

    imba

    entendida por Silva

    (2002), como

    uma

    codificao organizada por ele para repassar sua experincia adquirida no

    d

    . ' .

    17

    mun o capoemst1co .

    Para Mestre Itapoan

    Raimundo

    Csar Alves de Almeida

    18

    -

    Mestre

    Bimba

    dizia que:

    Esta seqncia uma srie de exerccios fsicos completos e organizados em um nmero

    de lies prticas e eficientes, a fim

    de que o principiante em capoeira, dentro do menor

    tempo possvel, se convena do valor da luta, como um sistema de ataque e defesa

    (ALMEIDA, 1982, apud SILVA, 2002, p. 104).

    Podemos acompanhar a seqncia pedaggica proposta por Bimba nas

    ilustraes e explanaes que se seguem sobre elas:

    Aluno 1

    Meia Lua de frente

    Meia Lua de frente

    com

    armada

    A

    Ro

    Aluno 1

    Queixada

    Queixada

    Cocorinha

    Beno

    A

    Ro

    PRIMEIRA SEQNCIA DE BIMBA

    Aluno 2

    Cocorinha

    Cocorinha com

    negativa

    Cabeada

    SEGUNDA SEQNCIA DE BIMBA

    Aluno 2

    Cocorinha

    Cocorinha

    Armada

    Negativa

    Cabeada

    17

    Adotarei a definio de SILVA, 2002, para o termo mundo capoeirstico sendo, este o universo cultural produzido

    pelos praticantes desta manifestao cultural no vinculados ao meio universitrio .

    18

    Mestre ltapoan, dentista por profisso, comeou a praticar a capoeira em 1964 com Mestre Bimba e

    hoje, um

    dos maiores conhecedores deste smbolo da Capoeira. Foi quem escreveu e divulgou a biografia do Mestre.

  • 7/25/2019 Capoeira - Jogando Com Sua Histria

    39/69

    Aluno

    Martelo

    Martelo

    Cocorinha

    Beno

    R

    o

    Aluno

    Goldeme

    Goldeme

    Arrasto

    R

    o

    Aluno

    Giro

    Joelhada

    Negativa

    R

    o

    TERCEIRA SEQNCIA

    E

    BIMBA

    Aluno 2

    Banda

    Banda

    Armada

    Negativa

    Cabeada

    QUARTA SEQNCIA DE BIMBA

    Aluno 2

    Bloqueio

    Bloqueio

    Galopante

    Negativa

    Cabeada

    QUINTA SEQNCIA DE BIMBA

    Aluno 2

    Cabeada

    Negativa

    Cabeada

    8

  • 7/25/2019 Capoeira - Jogando Com Sua Histria

    40/69

    Aluno 1

    Meia Lua e

    compasso

    Cocorinha

    Joelhada

    Ro

    Aluno 1

    Armada

    Armada

    Negativa

    Cabeada

    Aluno 1

    Beno

    Ro

    SEXT SEQNCI

    DE

    BIMB

    Aluno 2

    Cocorinha

    Meia Lua e

    compasso

    Negativa

    Cabeada

    STIM SEQNCI

    DE

    BIMB

    Aluno 2

    Cocorinha

    Cocorinha

    Beno

    Ro

    OIT V SEQNCI DE BIMB

    Aluno 2

    Negativa

    Cabeada

    Figura 9: As seqncias de Bimba

    Fonte: Unicar Portugal 2006)

    39

    Podemos perceber que a metodologia

    se

    assemelha aos mtodos

    ginsticas no que conceme execuo de movimentos descontextualizados de seu

    sentido como forma de aprender o movimento e fortalecer o corpo. Contudo, quando

  • 7/25/2019 Capoeira - Jogando Com Sua Histria

    41/69

    40

    inseridos no jogo

    de

    Capoeira, passavam a fazer total sentido

    e

    com isso, Bimba

    conquistou grande sucesso no ensino-aprendizagem da Capoeira com estas seqncias.

    A Metodologia de Bimba ainda possui alguns outros movimentos

    como a ponte

    e a queda de rim

    20

    alm de uma outra seqncia de golpes conhecida

    por

    Cintura Desprezada

    tambm conhecida por

    Bales

    ou

    Golpes Ligados.

    A partir da

    Cintura Desprezada a polmica sobre a pedagogizao e a descaracterizao da Capoeira

    tomou propores maiores, pois esta seqncia lana mo

    de

    golpes de outras lutas para

    sua composio, gerando descontentamento dos praticantes da Capoeira Tradicional.

    Bimba ainda foi o responsvel por inserir o ritual do

    Batizado

    na

    Capoeira. Este ritual consiste na demonstrao do aprendizado do aluno em uma roda de

    Capoeira tendo, este, que jogar com um membro mais antigo e conseguir operacionalizar

    os ensinamentos obtidos durante seis meses

    de

    treinamento. Superada esta primeira fase

    que se legitimava neste ritual, o aluno recebia um leno

    2

    como forma de graduao. Na

    continuidade da formao dos capoeiristas por Mestre Bimba, mais trs meses de

    treinamento que

    se

    dividiam ente dois na academia e um na mata da Chapada do Rio

    Vermelho em Salvador/BA, treinamento este que Mestre Bimba considerava importante

    pelo fato de terem de vivenciar emboscadas e aprender a manejar armas brancas como

    porretes, foices e faces.

    Atravs desta prtica conseguimos visualizar uma grande proximidade

    que Mestre Bimba tinha com os treinamentos militares, uma vez que Bimba ministrou

    aulas no Centro de Preparao de Oficiais da Reserva do Exrcito CPOR) de Salvador,

    durante trs anos a partir de 1939. Podemos, ainda, ver esta influncia na maneira como

    ministrava suas aulas na academia:

    [ .. ] era emocionante v-se aquela figura, que era o Mestre, todo vestido

    de branco desde s primeiras horas da tarde, com um apito pendurado no

    pescoo ..) multando os formando que chegassem atrasados .. ) A multa

    correspondia em pagar para os formados antigos, uma ou mais cervejas

    [ .. ] ALMEIDA, 1982, apud SILVA, 2002, p. ll3).A partir deste

    trecho escrito por Mestre Itapoan, j citado anteriormente,

    podemos verificar o distanciamento

    de

    Bimba relacionado

    19

    A ponte um elemento proveniente da ginstica artstica inserida por Mestre Bimba no contexto

    capoeirstico que usada como elemento de ligao ente movimentos e/ ou golpes.

    20

    A queda de rim um movimento utilizado para fazer reverncia ao comandante da roda e tambm para

    anunciar o incio do jogo. Tambm pode ser usado como elemento de ligao a outros movimentos ou

    golpes.

    21

    O leno usado por Mestre Bimba pode ser entendido como uma influncia dos navalhistas portugueses

    que usavam um leno

    de

    seda pura no pescoo para

    se

    protegerem do fio da navalha, pois esta seria

    incapaz de cortar o tecido.

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    41

    aos preceitos morais quando a multa faz-se atravs de bebidas

    alcolicas, aproximando a Capoeira da vadiao - fator este

    que o Mestre demonstrava querer desvincular e, ao mesmo

    tempo, vemos uma aproximao ao militarismo, o qual

    exercia extrema influncia nas prticas fsicas da poca,

    quando vemos Bimba com um apito pendurado no pescoo ,

    como diz no excerto acima.

    Talvez tenha sido a partir desta aproximao com o militarismo

    reinante na poca e a vinculao da Capoeira valores ticos (apesar do trecho acima

    refutar esta afirmativa) que mestre Bimba tenha conquistado e aberto o espao da

    Capoeira Regional tendo conquistado at o apoio do ento Presidente da Repblica

    Getlio Vargas quando este, num encontro no Palcio do Governo em 1953, proferiu as

    seguintes palavras: A Capoeira o nico esporte verdadeiramente nacional

    Figura 10: Mestre Bimba e o Governo

    Fonte:

    Capoeira Gerais 2006)

    Mestre Bimba veio a falecer no dia

    05

    de Fevereiro de 1974 devido

    um

    enfarto fulminante aps sua ltima roda de Capoeira. Este fato deu-se em Goinia

    para onde foi com a famlia seguindo uma falsa proposta feita pelo Governo de que teria

    excelentes condies para disseminar a Capoeira Regional. O Mestre foi enterrado em

    Goinia e, em 1978, seus restos mortais foram levados Salvador onde se encontram at

    hoje. Deixou

    13

    filhos, milhares de alunos e um lema: A Capoeira a arte do bem-

    viver (Associao de Capoeira Mestre Bimba, 2006).

  • 7/25/2019 Capoeira - Jogando Com Sua Histria

    43/69

    42

    4 3 salve

    Mestre

    Pastinha

    e a

    Capoeira

    angola

    Vicente Ferreira Pastinha nasceu no dia 05 de abril de 1889 na cidade

    de Salvador/BA. Teve sua iniciao na Capoeira aos dez anos de idade atravs dos

    ensinamentos de um negro Angolano chamado Benedito.

    Mestre Pastinha optou por aprender a Capoeira devido ao fato de

    sempre levar a pior nas brigas que aconteciam com um garoto mais velho, o qual vivia

    perseguindo-o e que morava em sua rua. Aps aprender alguns fundamentos, certo dia,

    numa das investidas de briga

    do

    garoto, Pastinha lanou mo dos conhecimentos que

    adquiriu com Benedito e conseguiu, pela primeira, nica e ltima vez, levar a melhor

    diante do garoto. Por este motivo, Pastinha passou a nutrir admirao por esta forma de

    luta e afirmava que:

    [ ..] esse jeito de lutar de brincadeira, como ainda fazemos hoje, era a

    maneira do escravo se exercitar, disfarando-se de bailarino na frente

    do feitor, [ .. ] capoeirista mesmo muito disfarado, ladino,

    malicioso. Contra a fora, s isso mesmo (REIS, 1997 apud SILVA,

    2002, p. 116 .

    Atravs desta passagem, podemos notar a defesa de Mestre Pastinha

    quanto

    origem escrava da Capoeira que acabou sendo sufocada pela esportivizao e

    branqueamento de tal manifestao.

    Pastinha comeou a ensinar a Capoeira muito cedo, primeiramente na

    Escola da Marinha, posteriormente, entre 1910 e 1922 no Mirante do Campo da Plvora

    e, por fim, no Cruzeiro de So Francisco a partir de 1922. No final da dcada de 20,

    Mestre Pastinha abandonou a Capoeira retomando apenas no incio da dcada de 40, e

    at hoje no se sabe o motivo. Segundo observaes feitas por Pires, 1996, este

    afastamento pode ter ocorrido por motivos particulares.

    Na tentativa de resgatar a Capoeira original, alguns Mestres como

    Livino, Mar, Aberr, Amouzinho entre outros costumavam

    se

    reunir na Ladeira da

    Pedra, no bairro da Liberdade, em Salvador para jogar Capoeira. Esta roda tambm era

    conhecida como

    Roda da Gengibirra

    onde, segundo palavras do prprio Mestre

    Past inha [ .. ] L era uma roda com os maiores mestres da

    ahia[

    .. ], l s tinha mestre,

    nada de aluno, s mestre[ .. ] (FILHO, 1997 apud SILVA, 2002, p. 120).

  • 7/25/2019 Capoeira - Jogando Com Sua Histria

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    43

    At ento, a roda da Gengibirra era administrada por Amouzinho, que,

    no dia 23

    de

    fevereiro

    de 1941

    passa a frente da roda para Mestre Pastinha como

    podemos ver com seu prprio depoimento:

    Aberre ento me convidou para ir apreci-lo jogar na Gengibirra, com o que

    eu concordei. Em vinte e trs de fevereiro de 1941 fui a esse lugar como

    prometera a Aberre e com surpresa, o Sr. Amouzinho, dono daquela capoeira,

    apertando-me a

    mo

    disse-me: hpa muito

    que

    o esperava para lhe entregar esta

    capoeira para o senhor mostrar. Eu ainda tentei me esquivar desculpando-me,

    porm terminando a palavra o Sr. Antnio Mar disse-me: no h jeito no

    Pastinha, voc mesmo quem vai mostrar isso aqui FILHO, 1997, apud

    SlL VA 2002, p. 119).

    Na nsia de legitimar a Capoeira Angola como a forma original e

    tradicional da Capoeira em confronto com a Regional, que ganhara espao, Mestre

    Pastinha tomou a frente da Roda da Gengibirra que, em determinado momento que no

    se sabe ao certo quando, passou a se chamar I Centro Desportivo de Capoeira Angola

    Enquanto a Capoeira Regional tinha o apoio Governamental, a Capoeira Angola tinha o

    apoio

    dos

    intelectuais da poca como Edison Carneiro, Carib e Jorge Amado fator, este,

    encorajador para

    que os

    angoleiros seguissem em frente na empreitada de legitimar a

    Capoeira Angola enquanto smbolo da legtima Capoeira.

    Com a morte de Amouzinho em 1944, Mestre Pastinha passou a dar

    um rumo diferente

    ao

    Centro. Onde era um local apenas de fruio da Capoeira entre

    os

    conhecedores da arte, passou a ser um local de ensino desta prtica, o que no agradou

    aos demais capoeiristas que abandonaram a Gengibirra. Passando por momentos difceis,

    Pastinha muda-se do bairro da Liberdade passando por diversos locais at se fixar, em

    1950, na Ladeira do Pelourinho, nmero dezenove.

    No se sabe ao certo quais foram os reais motivos pelo qual houve a

    ruptura entre os angoleiros, contudo, a partir dos manuscritos do Mestre Noronha,

    podemos considerar esta possibilidade:

    [ ..] Centro de Capoeira Angola foi no Morro da Ladeira da Pedra Liberdade

    cujo Centro esta entegue au SNR Vicente Pastinha que este da Ladeira do

    Pirolinho

    n

    19. Foi o nico da nossa confiana nossa na pica foi registrado

    por Vicente Pastinha e fez muito aluno e nos ficamo izolado do Centro porque

    os grande amigo hero os dono ate a propia mulher hera a dona uma tal Nice a

    origem do nosso afastamento do centro do Perolinho

    n 19

    nos dono no

    tivemos direito a

    nada[

    ..] COUTINHO,

    1993

    apud SILVA, 2002, p. 121,

    como

    no

    original).

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    44

    De acordo com as palavras de Mestre Noronha, pudemos verificar que

    o motivo da ruptura tenha sido uma guerra de poderes que se deu entre os fundadores do

    Centro que ento, resolveram se desligar de Pastinha, o qual [ ] passou a encabear

    novas mudanas para que a Capoeira Angola se adaptasse ao momento histrico

    (SILVA, 2002, p. 121), fator este que causou desagrado a outros membros como Mestre

    Noronha e mestre Livino, os quais fundaram o

    Centro de Capoeira Angola Conceio

    da Praia

    Mestre Pastinha seguiu com os ensinamentos da Capoeira Angola no

    tendo a proximidade pedaggica militarista vigente na poca. Buscava dar grande nfase

    s mincias do jogo, ao ritmo, aos rituais para que a Capoeira primeira ainda se fizesse

    presente nas rodas: Angola, capoeira me. Mandinga de escravos em nsia de liberdade;

    seu princpio no tem mtodo; seu fim

    inconcebvel

    ao

    mais sbio capoeirista

    22

    .

    A partir desta explanao sobre os principais tipos de Capoeira que se

    desenvolveram no decorrer dos anos, podemos chegar concluso de que todas as

    vertentes tiveram papel fundamental na legitimao da identidade da Capoeira enquanto

    smbolo nacional, independente de suas origens mais remotas. O papel de bandidagem,

    malandragem e vadiao no mais couberam a esta manifestao, uma vez que passou a

    ser legalizada desde 1937. Contudo, at os dias de hoje, a Capoeira vem sofrendo

    modificaes que se fazem

    de

    acordo com o momento histrico.

    22

    Estes dizeres ficavam fixados na parede da academia de Capoeira de mestre Pastinha, segundo Reis

    (1997, p. 142).

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    45

    5 No jogo de dentr0

    3

    As diversas fragmentaes e ressignificaes que a Capoeira sofreu ao

    longo de sua trajetria podem ser entendidas como uma questo de sobrevivncia desta

    manifestao.

    Otvio Ianni (1992) encontrado em Abib (2004, p. 17) nos traz a idia

    da apropriao de padres, signos e valores como forma de se armar para a defesa, a

    resistncia e a emancipao. Esta situao, quando transposta para o mundo

    capoeirstico, nos auxilia no processo de entendimento de suas fragmentaes que foram

    fruto de um preconceito pautado nas suas origens e no seu desenvolvimento, o qual se

    deu entre os negros e mestios, escravos ou libertos tendo, como ponto comum, o

    pertencimento classe mais inferior da sociedade, estigmatizada pela classe branca,

    elitizada e dominante, justificando os caminhos tomados pela Capoeira na

    contemporaneidade.

    5.1 O Preconceito a relao identitria e a Capoeira

    Agnes Heller (2000) define o preconceito como sendo um tipo

    particular de juzo provisrio

    e

    sendo este provisrio, tem a chance de se modificar

    atravs das experincias sociais e individuais. Seguindo a mesma linha de Heller, temos

    Sant' Anna (2001) que coloca o preconceito como parte integrante dos fenmenos sociais

    e

    ainda, dos fenmenos psicolgicos. Sendo assim, Sant ' Anna conceitua o preconceito

    como sendo

    uma opinio preestabelecida, que imposta pelo meio, poca e

    educao. Ele regula as relaes de uma pessoa com a sociedade.

    Ao regular, ele permeia toda a sociedade, tomando-a uma espcie

    de mediador de todas as relaes humanas. Ele pode ser definido,

    tambm, como uma indisposio, um julgamento prvio, negativo,

    23

    O jogo

    de

    dentro uma forma de se jogar a Capoeira. aquele jogo que explora os mnimos espaos,

    baixo, minucioso e cheio de armadilhas.

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    46

    que se faz