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Carlos Moiteiro PUCPR

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POR UMA CULTURA DE HUMANIDADE: O PAPEL DO FILÓSOFO NOS GRUPOS DE TRABALHO DE HUMANIZAÇÃO DA SAÚDE

PÚBLICA BRASILEIRA

Carlos Renato Moiteiro* [email protected]

Introdução

Propostos e organizados em meio ao nascimento da Política

Nacional de Humanização da Atenção Hospitalar, criada pelo

Ministério da Saúde no biênio 2003-2004, os Grupos de Trabalho de

Humanização – também conhecidos pela sigla GTH – são uma

realidade incipiente, mas necessária, em todo o contexto da revisão

do atendimento em saúde pública do Brasil. Os GTHs surgem num

contexto de grandes transformações no cenário das políticas públicas

brasileiras, especialmente no campo da Saúde: a própria Política

Nacional de Humanização da atenção e gestão no Sistema Único de

Saúde – HumanizaSus – desenvolveu-se a partir da percepção de

falhas no processo de atenção em saúde, sobretudo, no que se

referia ao atendimento do grande público, majoritariamente das

classes menos favorecidas. Entretanto, outras questões vieram à tona

durante o processo de reflexão sobre o mesmo, como o tecnicismo

que se mantém no relacionamento entre agentes de saúde e

destinatários, que vem trazendo um desgaste gradativo na dimensão

da cordialidade e reciprocidade, pressuposto de toda relação humana.

Além disso, as (tão repercutidas) tensões sociais surgidas nos últimos

anos na questão da ética na política têm favorecido a construção de

um novo código social, que se fundamenta na participação plena – e

não apenas representativa – dos indivíduos no processo político das

* Programa de Pós-Graduação em Filosofia – PUCPR (especializando) / Irmandade Santa Casa de Misericórdia de Curitiba (agente de pastoral e secretário do GTH).

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instituições, tanto na esfera pública como também nos demais

campos de atuação social.

É importante frisar, todavia, que os GTHs, ao desenvolverem

suas atividades dentro de uma determinada realidade hospitalar-

institucional, não estão isentos de defrontar-se com problemas

referentes à macrovisão estrutural dos processos e dos objetivos a

serem atingidos, os quais muitas vezes estão em plena contradição

com aquele conceito de humanidade própria do senso comum e

orientado por uma visão padronizada, massificada e irrefletida sobre

o sentido de ser humano. Poderíamos nos perguntar, a partir de tal

afirmação: o que fundamenta esse “ideal de humanização”?

1. O conceito de Humano e Humanismo na PNH

Ao abordarmos a questão da humanização na saúde pública, é

importante levar em consideração os conceitos apresentados e em

que sentido eles apontam para uma re-significação do humano nas

tradicionais tecnologias da saúde ou apenas garantem a perpetuação

de mera visão normativo-jurisprudencial do atendimento a qualquer

usuário do sistema.

O Código de Ética Médica brasileiro, editado em 1988 pelo

Conselho Federal de Medicina, apresenta a seguinte conceituação

sobre o papel e finalidade do ato médico: “Art. 1º - A medicina é uma

profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade (...)”.

Esse conceito, porém, parece restringir-se a mera visão biotecnicista

do sentido de ser humano, assim como aponta Hans Jonas (1997,

p.99):

A medicina é uma ciência; a profissão médica é o exercício de uma arte baseado nela. Toda arte tem uma finalidade, quer levar a cabo algo; a ciência quer encontrar algo, geralmente a verdade sobre algo: este é seu objetivo imanente, no que poderia se deter. O objetivo de uma habilidade, ou seja, de uma téchne,

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está fora dela, no mundo dos objetos aos que modifica e aumenta com outros novos, precisamente artificiais1.

A crítica de Jonas a tal conceito biotecnicista funda-se numa

análise do ser humano como um ente para além das raias do

meramente bioquímico. O Ministério da Saúde parece também ter

compreendido a questão em si nesse mesmo âmbito. Em sua carta de

orientação à formação dos GTHs propõe uma definição ampliada de

humano, a partir de seu conceito de humanização: “Por humanização

compreendemos a valorização dos diferentes sujeitos implicados no

processo de produção de saúde. Os valores que norteiam essa Política

são a autonomia e o protagonismo dos sujeitos, a co-

responsabilidade entre eles, os vínculos solidários e a participação

coletiva no processo de gestão” (BRASIL, 2006, p. 3). Nota-se,

portanto, que o MS abrange para além do sentido “bio-restritivo” de

humano e humanização, apontando-a como um processo de

promoção, incentivo, acompanhamento e valorização dos diferentes

indivíduos inseridos no processo de promoção da saúde (a saber:

usuários – pacientes e comunidade –, colaboradores e gestores). Daí

ela ser uma política, e não mais um programa destinado ao

atendimento e resolução de problemas pontuais na qualidade da

saúde da população; e, por seu papel de política, leva a profundas

implicações – dentre elas, a necessidade da inserção concreta dos

cidadãos nas decisões a serem tomadas em referência à gestão dos

recursos e sua correta distribuição; o imperativo de que se promova

uma educação de base mais ampla e voltada efetivamente para a

conscientização da comunidade acerca de seu papel social no

gerenciamento e na elaboração de propostas para o atendimento em

saúde; a transversalidade e transdiciplinaridade que deve ser 1 “La medicina es una ciencia; la profesión médica es el ejercicio de un arte embasado en ella. Todo arte tiene una finalidad, quiere llevar a cabo algo; la ciencia quiere encontrar algo, muy en general la verdad sobre algo: éste es su objetivo inmanente, en el que podría detenerse. El objetivo de una habilidad, en cambio, de una téchne, está fuera de ella, en el mundo de los objetos a los que modifica y aumenta con otros nuevos, precisamente artificiales.”

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garantida a fim de se atingir todas as esferas da saúde pública, desde

o Ministério da Saúde até as unidades referenciais do Sistema Único

de Saúde, pressupondo um construir coletivo, que envolva

concretamente todos os personagens que atuam na saúde.

O primeiro aspecto a ser levado em consideração nessa análise

do MS é o de que a palavra humanização, conforme o mesmo o

concebe, está diretamente ligada às relações que se estabelecem

entre as pessoas que interagem na vida em sociedade; a Política

Nacional de Humanização vem, portanto, em primeiro lugar, propor

uma renovação das relações interpessoais. O segundo aspecto está

inserido na proposição mesma de uma gestão democrática, que deve

estender-se entre todos os sujeitos envolvidos no processo: a

instituição hospitalar, o seu público e a comunidade em geral, bem

como junto aos funcionários, entre os mesmos e com seus gestores.

Entretanto, aquilo que não foi considerado como problema

primeiro da questão da Humanização na saúde pública brasileira, e

que nenhum desses dois parâmetros responde essencial e

analiticamente, é o questionamento profundo do que pode vir a

significar, sem condições de normalização, as palavras Humano e

Humanização. Posto que, se há algo a humanizar, é devido à

desumanização prévia desse mesmo algo, que nos leva a várias

perguntas sobre tal: O que se deve humanizar? O homem, a

estrutura, a sociedade? E por que se encontra desumanizado? Ou

ainda: qual o referencial que pode garantir que algo está humanizado

ou não, ou que existe um humano arquetípico com a possibilidade de

orientar tal humanização? O grande obstáculo que tal política

enfrenta, na verdade, é filosófica (se não metafísica): aprender a

olhar o ser humano percebendo-o como primeiro referencial de sua

visão. Em última análise, a exigência própria de que o ser humano

alcance sua realização plena.

Nesse sentido, propõe-se olhá-lo como um valor em si mesmo,

deontologicamente, e não como mero produto de uma sociedade

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produzida historicamente por meio do conflito de saberes e poderes

diversos. E dentro desse âmbito é que deve-se compreender a

novidade da proposta do Ministério da Saúde. Ao apresentar uma

política nacional, quer unir esforços para que a visão tecnicista não

prevaleça nos serviços prestados na saúde pública, mas que se

desenvolva um processo de valorização da pessoa humana em todas

as suas dimensões. O problema da Humanização na saúde pública

trata-se de um problema especificamente ético. De uma crise ética

que já vem de longa data atingindo as instituições de atendimento

hospitalar, quer pela especificidade de sua área de atuação (técnica e

marcadamente científica), quer pela complexidade de suas

estruturas. Mas antes de tudo, é problema metafísico, de uma

metafísica desgastada e impensada que precisa retornar ao palco das

discussões e dar ao ser humano novo sentido e vigor. É nesse

momento que se faz indispensável recuperar a dignidade humana,

vendo na ética a chave para que tal objetivo possa ser alcançado com

êxito.

2. Uma nova compreensão de Humano e Humanidade

Em sua problematização acerca do possível sentido de humano,

presente na carta Sobre o Humanismo (Über der Humanismus,

1946), o pensador alemão Martin Heidegger, partindo da reflexão

sobre o pensar e o agir da ocidentalidade hodierna, aponta para uma

crítica ao conceito de humanismo engessado pelos diversos sistemas

filosóficos, a fim de apresentar premissas para uma definição de

humano que ultrapassa toda metafísica e está, inclusive, além de

uma ética, posto que se baseia em uma ontologia fundamental.

A carta trata de responder a um pergunta formulada por

monsieur Jean Beaufret, interlocutor francês que tivera a intenção de,

tendo tomado contato com o fenomenólogo durante a Ocupação,

questioná-lo acerca de um novo sentido possível à palavra

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humanismo. Heidegger, contudo, não apresenta à resposta sobre o

humanismo uma afirmação tão facilitada e determinativa; para o

fenomenólogo, antes de se falar sobre o humano é preciso

compreender a própria essência (Wesen) do homo humanus, tarefa à

qual a tradição ocidental se esquivou com sua ontologia

transcendental, a partir de Platão. De acordo com Heidegger, só é

possível falar do humanus a partir de sua abertura para o mundo, a

clareira (Lichtung), ponto de encontro entre o homem e a

possibilidade de ser. O homem está lançado à faticidade do mundo –

sua indeterminância é a sua marca maior; nessa perspectiva, o viver

será a própria construção do viver, já que não há paradigmas pré-

estabelecidos que direcionem o homem a algum objetivo metafísico

de sua existência. Heidegger aponta para uma crítica à concepção de

humano como não-beligerante, não-atroz, não-irracional a partir da

perspectiva iluminista de racionalidade. Em SH, Heidegger não inicia

sua devolutiva já discursando sobre a pergunta de monsieur

Beaufret; antes, pretende fazer uma reflexão sobre o pensar e o agir,

para que assim as premissas necessárias para a posterior análise que

irá empreender possam surtir o efeito necessário.

Heidegger inicia seu texto contrapondo o agir tékhne, o qual o

Ocidente salientou demasiada forma, com o agir como consumar.

Para Heidegger, o simples pensar foge à téchne; é expressão livre do

ser; não deve ser categorizado, ao mesmo tempo em que a

linguagem deve ser re-abilitada para se re-encontrar como “casa” do

ser, como Êthos. Frente à desconstrução pós-moderna da linguagem,

Heidegger afirma que seu esvaziamento é o próprio afastar-se do

Sein, e este é que ameaça o homem. A linguagem, quando

transformada em mera téchne, distancia-se consideravelmente de

sua essência, que reside em fazer morada para a verdade do ser,

para que o ser se manifeste enquanto Dasein. O próprio agir é

“desdobrar alguma coisa à plenitude de sua existência”, e só pode ser

consumado aquilo que já é. O intermédio da essência do homem e de

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sua ação em relação ao ser dá-se pelo pensar. O pensar é a porta da

casa do ser, isto é, da linguagem. Tome-se conta que, em tal

acepção, o ser está além das compreensões cristãs, teológicas ou

lingüísticas.

O ser é a condição da existência, e o agir do pensar é o próprio

pensar, porque assim o pensar conserva em si o ser. Mas é o ser que

requisita o pensar: “pensar é l’engagement par l’Être pour l’Être” – ou

seja, sendo o ser sujeito e objeto dessa posse, em novas condições

diversas do que a sistemática ocidental nos legou por subjetivo e

objetivo. O ser a(d)-presentado, para Heidegger, é a conjunção

actus-potentia – cíclica e de fundo aristotélico – como pré-

estabelecido de todas as coisas. O Sein, termo alemão

correspondente ao verbo ser (que toma centralidade na ontologia

fundamental heideggeriana), é sempre pré, é a condição, e só é

possível pensar no Sein a partir do pensar, por meio da linguagem.

Mas a linguagem não é somente instrumento para a ex-tração do ser;

é antes a própria casa do ser, lugar de sua manifestação, de seu des-

re-velamento. Nesse sentido, Heidegger re-situa a ação, que deve

des-pojar-se de seu mecanismo e imbuir-se de ser. O que está em

jogo aqui é a verdade do ser, a aletheia, a-letheia, não-

esquecimento, a condição de existência.

A partir de tais formulações, Heidegger procura destituir a

existência e o pensar de sua mecanicidade, de sua tékhne, deixando-

o livre para a escuta. O Ocidente sistematizou o pensar numa

vontade de dominação, transformando-o em técnica, em praxis e

poesis, enquanto o afastou da escuta do ser. Até mesmo a linguagem

e suas expressões apresentam nuances quanto da possibilidade do

junto ao ser: a mobilidade da fala aponta para uma proximidade sua

com o Ser; a correctibilidade da escrita, por outro lado, permite sua

facilitação junto ao ente.

Tendo tecido tais considerações caberia, segundo Heidegger,

redimensionar a palavra Humanismo, assim como propõe a pergunta

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de Beaufret. O fenomenólogo critica os –ismos, que corresponde a

toda forma de dominação cultural que não é des-coberta existencial,

que não está atrelada à manifestação. O ser encarrega-se da

essência do pensar; isso significa: entre o ser e o pensar existe uma

dialética de amorosidade, de erótica, porque o ser fecunda o pensar,

e o pensar presenteia o ser. Antes de uma redefinição de

Humanismo, Heidegger propõe que é preciso reencontrar o humano

em sua relação com o ser. É ao se pôr em atitude de escuta que o

homem alcança o ser e ouve seu apelo manifesto. O silêncio reabilita

a palavra, refaz a casa para que homem e ser co-habitem. E refletir

sobre a relação homem e ser é existencialmente refletir sobre o papel

de cuidador destinado ao homem. No cuidado, o homem re-encontra

sua essência, sua humanitas.

Todos os humanismos anteriores fundamentaram-se em uma

metafísica – desde a humanitas romana, passando pelo cristianismo,

até Marx e Sartre. Mas é preciso reinterpretar aqui o que Heidegger

entende por metafísica: toda visão fixa que determine a totalidade a

partir de um ente, quer seja a natureza, Deus, a história ou o mundo

é, de certa forma, uma metafísica. Heidegger renega-se às

categorizações: o significado deve estar aberto, porque o homem é

abertura. Mais além: todo humanismo proveniente dessas visões

metafísicas costumam apresentar uma definição de homem bem

imprópria do ponto de vista ontológico, como “animal racional”.

Segundo Heidegger, definir o homem a partir da animalidade não

significaria negar ou relativizar sua humanidade? Tal definição foge

das expectativas do ser: o ser espera que o homem o des-cubra e se

des-cubra na verdade do ser, a-letheia, para, daí sim, re-encontrar a

originalidade de sua humanidade, ou seja, a humanitas do homo

humanus. Heidegger aponta a essência do homem para a ec-

sistência, em seu ser-para-fora, ser-manifesto, ser-na-clareira-do-

ser, que é ser onde o Sein se abre enquanto re-velação. Tal análise é

ontológico-historial, e não determinativa. É preciso olhar a analítica

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existencial aqui exposta com olhos de um construtor, que percebe a

importância de cada tijolo, apesar de os blocos serem tão iguais entre

si. O esforço de Heidegger está na explicitação dessa verdade que a

linguagem não determina, mas pode aproximar.

O homem é pastor do ser. A pobreza de um pastor, aos quais

só resta o cuidado – sua função – permite que o homem se aproxime

do ser para cuidar de ser e, cuidando do ser, possa ser com o ser.

Todavia, ainda que o homem avizinhe-se do ser, more com o ser, ele

não possui o ser. Isso porque o ser, nessa análise específica, não é

passível de posse. O ser é abertura, é clareira: espaço de sua

manifestação; a própria possibilidade de ser. Apesar da tautologia,

toda a qualificação substantivo-verbal dessa afirmação possibilita a

re-descoberta do homem enquanto construtor, jardineiro da

existência. Sua humanidade reside aí: em ser o possibilitador da

construção e o construtor da possibilidade de sua própria existência.

3. A crise do humanus

Apesar da difícil linguagem assumida pela fenomenologia

heideggeriana, sua re-significação de humano a partir de uma

analítica ontológica da finitude existencial aponta para outros rumos

que não aqueles traçados pela tradição ocidental. Para Heidegger, só

há uma maneira de atingir a extensibilidade do conceito de humano,

que parte do conceito de ser: é “a maneira existencial-ontológica”

(SLOTERDIJK, p. 24), como fora oferecida pelos pré-socráticos e

bloqueada pelos dois mil anos posteriores da cultura platônico-cristã.

Ainda, a palavra humanismo para Heidegger, conforme aponta Peter

Sloterdijk em seu texto Regras para o parque humano, perdeu seu

sentido justamente porque seu sentido era deveras deficitário. Tome-

se em nota aqui a objeção heideggeriana à definição de homem como

animal racional, que, segundo Sloterdijk, é rejeitada em vistas à

diferenciação ontológica existente entre homem e animal: enquanto o

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homem tem acesso ao mundo (na amplitude em que a palavra

acesso pode aqui apresentar), os demais seres apenas estão nesse

mesmo mundo. Apesar de Sloterdijk, nesta questão, trabalhar a

partir de outros conceitos, podemos retomar aqui o conceito que

Heidegger apresenta em seu livro Ser e Tempo (ST), o Umwelt, a

saber, o mundo acessível e tangenciável ao homem. Que é certo que

essa oikeíosis, apropriação, do homem em relação ao mundo lhe é

peculiar e inacessível àqueles entes que apenas estão no Welt

(mundo material, físico) não resta dúvidas; porém, qual a

fundamentação que permite tal diferenciação entre homem e animal?

A resposta é simples: a linguagem, casa do ser, que possibilita ao

homem, “chamado pelo próprio ser” (Id, p. 26) para pastoreá-lo.

Essa é a tarefa essencial do ser humano, a saber, “corresponder ao

ser” (Id, p. 27), e corresponder na clareira, ou seja, no lugar de

abertura do ser, que pode vir-a-ser o mundo.

Mas Sloterdijk, em sua concepção e revisão do conceito de

clareira, parece não compactuar com a visão pacífica que Heidegger

estabelece da clareira, esse lugar de concretização do ser e de

apropriação do mundo pelo homem. Para ele, não há como dissociar

a clareira de seu aspecto eminentemente combativo: a vida também

é campo de batalha, e isso se deve, sobretudo, porque ec-sistir é

abertura. As coisas não estão pré-determinadas ou, ainda, não há

porque pensar uma pré-determinação das coisas a não ser a partir de

uma vontade de submissão.

Nesse sentido, Sloterdijk pergunta-se: até que ponto esse

humanismo – desde aquele humanismo literário, passando pelos

expoentes contemporâneos (cristianismo, marxismo e

existencialismo) até a própria re-significação heideggeriana – não

teria se estabelecido como uma dominação, como certa moral dos

fracos, nos dizeres de Nietzsche, a encobrir a verdadeira faticidade

das realizações humanas como tragicamente sustentadas por

relações de poder? E se não há mais como supor um humanismo a

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partir de suas formulações e formações literárias; se é preciso definir

o homem e se defini-lo significa indefini-lo, acolher sua

indeterminação biológica e sua moralidade por construir; ainda, se a

própria moralidade não passa de “regras para o parque humano” das

domesticações, qual o projeto de humanidade que se pretende

instaurar?

Nesse ponto, nossa visão até aqui voltada para uma

antropologia filosófica reorienta-se para o questionar sobre o próprio

agir médico-clínico (na perspectiva global dos profissionais de saúde

em geral). Para que tipo de homo humanus a clínica hodierna,

sobretudo dentro dos padrões e problemas sócio-educacionais

brasileiros, deve orientar-se? Como pensar com o mínimo de

coerência possível um cuidado em saúde para o que o humanismo

proposto pela PNH não seja forçado a enganar-se e contradizer-se na

medida em que ainda mantém-se no agir techné, desconsiderando a

integralidade do ser do humano e, dessa forma, contribuindo para

sua desumanização? Se o humano é um indeterminado, biológica e

historicamente, que humanidade se quer apresentar para uma re-

posição do humano no atendimento em saúde?

Heidegger não dá uma resposta final sobre o que é o humanus.

Não pretende definir; aliás, toda definição é fadada à domesticação,

justamente por que o humano, ou a concepção de humano que se

quer traçar, não é mais que uma escolha, orientada pelo ser, que o

homo humanus faz de sua própria humanitas.

4. Por uma filosofia de humanização

Chega-se, portanto, à consideração final acerca do que é o

humano quando se está disposto a debater as múltiplas e infindáveis

facetas que compõem o humano em todas as suas dimensões:

biológico-genética, biológico-ambiental, sócio-antropológica, sócio-

política, lingüística e existencial. Cada uma dessas facetas é

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fundamental para que se considere o ser humano não apenas como

um corpo produtivo, nem tampouco como um sujeito fadado à

subjetivação, mas como um Dasein, um ser-aí, imbuído de memória,

história e existência, para além do bioquímico de sua constituição. Na

análise de José Serra (bem heideggeriana, por sinal), é somente

quando se dá conta de todo esse complexo, de fundo e matiz

lingüística, que se entende a verdadeira concepção do que é

humanizar (SERRA, 2006, on-line):

O que diferencia o ser humano da natureza e dos animais é que seu corpo biológico é capturado desde o início numa rede de imagens e palavras, apresentadas primeiro pela mãe, depois pelos familiares e em seguida pelo social. É esse "banho" de imagem e de linguagem que vai moldando o desenvolvimento do corpo biológico, transformando-o num ser humano, com um estilo de funcionamento e modo de ser singulares. O fato de sermos dotados de linguagem torna possível para nós a construção de redes de significados, que compartilhamos em maior ou menor medida com nossos semelhantes e que nos dão uma identidade cultural. Em função disto, somos capazes de transformar imagens em obras de arte, palavras em poesia e literatura e sons em fala e música, ignorância em saber e ciência. Somos capazes de produzir cultura e a partir dela, intervir e modificar a natureza. Por exemplo, transformando doença em saúde. [...] Então, o que é humanizar? Entendido assim, humanizar é garantir à palavra a sua dignidade ética. [...] Um hospital pode ser nota 10 tecnologicamente e mesmo assim ser desumano no atendimento, por terminar tratando as pessoas como simples objetos de intervenção técnica, sem serem ouvidas em suas angústias, temores e expectativas (informação considerada desnecessária e perda de um tempo precioso) ou sequer informadas sobre o que está sendo feito com elas (o saber técnico pressupõe qual é o bem do paciente, independentemente de sua opinião).

Talvez a grande carência da formação dos agentes de saúde na

atualidade – e, em específico, na cultura ocidental – resida

justamente nessa carência, nesse abismo que se abre frente à

grandiosidade do sentido de ser humano e a simples técnica que é

transmitida nas escolas de formação específicas e mesmo na

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academia. Perde-se assim a compreensão da natureza mesma do ato

médico, que vai deveras além do cuidado sobre um corpo em pane. É

preciso remontar a Hipócrates e Galeno, para os quais não bastava

curar apenas o corpo dos males, mas também a mente de suas

paixões desordenadas – o que chamaríamos hoje de psicopatologias.

O paciente que encontra-se na clínica, na maca, no consultório, é um

horizonte de possibilidades, um universo-em-si. O olhar do

profissional da saúde não pode, portanto, ser outro do que aquele

olhar de espanto filosófico em respeito ao tudo e nada da existência,

do Tu e do Outro. Como tornar essa reflexão tão ampla possível? Eis

o grande desafio da filosofia e do filósofo em qualquer área, não só

na saúde pública, como em toda sociedade que pretende-se

verdadeiramente humanizada.

Bibliografia BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo

Técnico da Política Nacional de Humanização. Grupo de Trabalho de Humanização. 2. ed. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2006.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. HumanizaSUS : documento base para gestores e trabalhadores do SUS. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2006.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM nº 1246/88. Código de Ética Médica. 5. ed. Brasília: CFM, 1999.

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 11 ed. Trad. de Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis (RJ): Vozes, 2002. V. 1. (Col. Pensamento Humano).

___________. Sobre o humanismo. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995.

JONAS, Hans. Técnica, medicina y ética: sobre la práctica del principio de responsabilidad. Barcelona (ES): Paidós, 1997.

SERRA, José. Construção de uma filosofia/cultura de humanização. Disponível em <www.portalhumaniza.org.br> [24.11.2006].

SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.

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