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Capítulo 13 TEORIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA: POLÍTICA E ECONOMIA SEGUNDO OS ARGUMENTOS ELITISTAS, PLURALISTAS E MARXISTAS Carlos Pio Mauro Porto O PROBLEMA 1 Neste artigo, pretendemos enfocar algumas questões que estão intrinsecamente associadas ao campo de estudo definido pelo rótulo de teoria política contemporânea — TPC. Delimitaremos com clareza o período coberto pela TPC, assim como apresentaremos, sucinta- mente, as principais divergências que envolvem suas três correntes fundamentais: o elitismo, o marxismo e o pluralismo. Escolhemos, como questão central, a análise da relação entre os sistemas político e econômico, mais especificamente, de como os diferentes autores interpretam as afinidades e as incompatibilidades entre a democracia-representativa e a economia de mercado. Optamos por esse enfoque porque, em contraposição aos teóri- cos modernos, a relação entre democracia e sociedade — particu- larmente suas relações econômicas — constituiu um dos aspectos centrais dos debates dos autores contemporâneos. A defesa das li- berdades no manejo dos negócios privados ocorreu concomitante com a própria formação do Estado moderno. Não é, pois, produti- vo dissociar os processos de liberalização política e econômica, vis- 1 Devido aos propósitos meramente expositivos, não ocuparemos o leitor com referências bibliográficas e citações, como se requer de um bom trabalho acadêmico. No entanto, não será preciso muito requinte para que se perceba que tratamos, aqui, simplesmente de reproduzir de maneira organizada as idéias de diversos autores bastante conhecidos no campo da ciência política e da sociologia.

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Capítulo 13

TEORIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA: POLÍTICA E ECONOMIA

SEGUNDO OS ARGUMENTOS

ELITISTAS, PLURALISTAS E MARXISTAS

Carlos Pio

Mauro Porto

O PROBLEMA1

Neste artigo, pretendemos enfocar algumas questões que estão intrinsecamente associadas ao campo de estudo definido pelo rótulo de teoria política contemporânea — TPC. Delimitaremos com clareza o período coberto pela TPC, assim como apresentaremos, sucinta-mente, as principais divergências que envolvem suas três correntes fundamentais: o elitismo, o marxismo e o pluralismo. Escolhemos, como questão central, a análise da relação entre os sistemas político e econômico, mais especificamente, de como os diferentes autores interpretam as afinidades e as incompatibilidades entre a democracia-representativa e a economia de mercado.

Optamos por esse enfoque porque, em contraposição aos teóri-cos modernos, a relação entre democracia e sociedade — particu-larmente suas relações econômicas — constituiu um dos aspectos centrais dos debates dos autores contemporâneos. A defesa das li-berdades no manejo dos negócios privados ocorreu concomitante com a própria formação do Estado moderno. Não é, pois, produti-vo dissociar os processos de liberalização política e econômica, vis-

1 Devido aos propósitos meramente expositivos, não ocuparemos o leitor com referências bibliográficas e citações, como se requer de um bom trabalho acadêmico. No entanto, não será preciso muito requinte para que se perceba que tratamos, aqui, simplesmente de reproduzir de maneira organizada as idéias de diversos autores bastante conhecidos no campo da ciência política e da sociologia.

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to que ambos derivam do princípio de "no taxation without representation", que se encontra na origem da idéia de que o Estado deve responder às demandas da sociedade e a ela prestar contas. Tais vínculos entre o desenvolvimento do mercado e a formação do Estado moderno e da democracia representativa constituíram um dos temas fundamentais do debate contemporâneo, como veremos a seguir.

Portanto, o que estará em discussão são os próprios fundamen-tos do Estado moderno, cuja principal característica é a natureza, dita "racional-legal", da dominação que impõe aos habitantes de um determinado território. Por dominação racional-legal entenda-se que aqueles que obedecem às decisões públicas — do Estado — o fa-zem por considerar que, estando tais decisões submetidas às nor-mas aceitas por todos, realizam seus interesses essenciais enquanto membros da sociedade.

Sumariamente, o Estado moderno pode ser assim caracterizado: monopoliza o uso legítimo da força em um dado território; a partir desse recurso fundamental de poder, toma decisões que requerem obediência por parte de todos os habitantes do território; é consti-tuído por postos de comando e por uma estrutura administrativa, que são ocupados por membros da própria sociedade; dispõe de meios materiais que asseguram a gestão dos assuntos públicos; esta-belece um conjunto de regulações da vida social, ao qual os próprios ocupantes dos postos de comando e da estrutura administrativa estão submetidos; estabelece os instrumentos de acesso dos membros da sociedade aos postos de comando e à estrutura administrativa, assim como dos interesses de indivíduos e grupos sociais ao processo de decisão pública.2

Portanto, o Estado toma decisões para o conjunto da sociedade e dispõe dos meios para torná-las imperativas a todos. Por essa ra-zão, o Estado, ou melhor, sua estrutura de comando, é foco de in-tensa disputa entre os diversos interesses que possam ser afetados pelas decisões públicas. As regras de acesso a tais postos são, por-

2 O conceito de Estado moderno e de dominação política é, obviamente, derivado de Max Weber.

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tanto, fundamentais para definir os interesses a serem considerados e que disporão de capacidade de influência no processo decisório.

A despeito da centralidade das decisões públicas, alguns aspec-tos da relação entre Estado e sociedade constrangem a natureza de sua dominação. Em primeiro lugar, e como já foi dito, os ocupantes dos postos de comando do Estado moderno, assim como os inte-grantes de sua estrutura administrativa, estão submetidos ao con-junto de regulações que o próprio Estado estabelece. Isso protege os cidadãos — indivíduos e grupos — do uso indevido dos recur-sos de poder e dos meios materiais controlados pelos decisores.

Em segundo lugar, como o Estado depende de contribuições materiais dos cidadãos para financiar os seus gastos — os meios materiais de gestão —, obriga-se a estabelecer mecanismos de estí-mulo à acumulação privada de riquezas, para, posteriormente, po-der taxá-las.3 Mesmo alguns autores de orientação marxista reco-nhecem nos mecanismos de mercado a forma mais eficiente para promover tais estímulos, ainda que ressaltem a necessidade de regu-lamentações públicas para contrabalançar as desigualdades geradas pelo mercado.

Contudo, se a limitação dos poderes do Estado parece ser essen-cial para sua própria existência — de outro modo, correríamos o ris-co de perda de legitimidade das decisões —, surge um grave paradoxo para a definição das interações entre os processos políticos e econô-micos que ocorreu no âmbito do Estado capitalista democrático contemporâneo. Enquanto a necessidade de obediência às regras deixa evidente a importância da democratização dos processos de gestão dos assuntos públicos — o estabelecimento de mecanismos representativos —, a necessidade de promover estímulos à apropri-ação privada da riqueza social virá a constituir um entrave ao ideal

3 Aparentemente, esse não parece ser um constrangimento aos Estados socia-listas, posto que as próprias regulações impedem taxas de acumulação privada muito elevadas. No entanto, em um mundo em que a propriedade privada dos meios de produção encontra-se extinta, o Estado mantém-se obrigado a pro-mover estímulos ao trabalho por parte dos cidadãos, agora impedidos de acu-mular individualmente.

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de igualdade política, posto que alguns indivíduos e grupos acumu-larão mais recursos que outros, tornando desiguais suas capacida-des para influenciar nas decisões públicas.

Dessa forma, o dilema presente à forma de atuação dos estados capitalistas e democráticos, ou seja que visam realizar as liberdades econômicas e políticas, aponta para as incompatibilidades presentes entre os dos sistemas: enquanto o mercado econômico realiza a de-sigualdade material, a democracia assenta-se na idéia de que os indi-víduos dispõem de igual capacidade para fazer valerem os seus inte-resses.

ELITISMO

Para Pareto, toda sociedade humana estará sempre dividida em uma elite e uma "não-elite". A elite é composta por todos os indiví-duos que apresentarem o maior grau de capacidade, qualquer que seja o seu ramo de atividade. Os mais capacitados advogados, em-presários, médicos, ladrões etc. serão, pois, membros natos da elite. Os demais compõem a não-elite. Por sua vez, a elite é dividida em "elite governante" — composta por todos aqueles que influenciam as decisões do governo, direta ou indiretamente — e "elite não-governante".

Do ponto de vista da manutenção do equilíbrio social — ou seja, da estabilidade da dominação política vigente — , Pareto afirma que o essencial é que os membros da elite governante sejam aqueles que, além de serem membros natos da elite — qualidades superiores — , possuam características de personalidade adequadas para exercer o poder — resíduos.

Existem, no entanto, dois problemas básicos relativo ao equilí-brio social. O primeiro problema é que a elite governante também é composta por todos os indivíduos que são, formal ou informal-mente, agregados aos membros natos — a despeito de disporem ou não das qualidades necessárias ao exercício efetivo do poder políti-co. Com o passar do tempo, os elementos agregados à elite gover-nante passam a representar uma ameaça à estabilidade da ordem, à medida em que assumem os postos de comando sem disporem das qualidades requeridas para exercê-los. Esse tipo de "desvio" — ter-

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mo utilizado por Pareto — deve-se ao fato de que, na elite, alguns rótulos ou são hereditários ou podem ser derivados da riqueza, da família e dos contatos sociais mantidos por um determinado indiví-duo.

O segundo problema que determina as condições de estabilida-de da dominação da elite governante é derivado da eficiência do processo de "circulação de classes". Dadas as tendências naturais à redução das qualidades dos membros da elite governante, Pareto chama a atenção para o processo por meio do qual membros da elite governante são substituídos por indivíduos ou classes recém saídos(as) da elite não-governante e da não-elite e que lhe renovam as qualidades necessárias ao contínuo exercício da dominação. De outro modo, tais indivíduos com qualidades superiores e resíduos adequados ao exercício do poder se acumulariam nas classes inferi-ores — elite não-governante ou não-elite — e poderiam liderar mo-vimentos revolucionários contra a elite governante.

Para Mosca, a composição da elite política deriva do fato de que seus membros são aqueles que "possuem um atributo altamente valorizado e de muita influência na sociedade em que vivem" — isto é, possuem "qualidades que conferem certa superioridade ma-terial, intelectual e mesmo moral; ou são herdeiros de indivíduos que possuíam tais qualidades". A elite é, pois, uma minoria com interesses homogêneos e, devido a essa homogeneidade, de fácil organização. É justamente essa organização que explica sua capaci-dade de domínio sobre a massa.

Em cada sociedade e em cada estágio da civilização, a posse de determinado atributo é fundamental para determinar aqueles que exercerão o poder, ou melhor, que terão capacidade de influência política. A força física, que determina a preponderância dos que controlam o poderio militar; a renda auferida pela exploração da terra, que estabelece o domínio dos proprietários da riqueza; a cren-ça religiosa, que implica na centralidade da aristocracia clerical; o conhecimento especializado e a cultura científica, que fundamen-tam o domínio dos sábios. Essas determinações são exemplos de atributos altamente valorizados e capazes de tornar muito influen-tes politicamente aqueles que os detêm. Os guerreiros, os sábios, os

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proprietários de riquezas materiais, os sacerdotes, entre outros, re-presentam justamente o grupo que se apropria do atributo de poder essencial em cada sociedade, em um dado estágio civilizatório.

Como todas as sociedades encontram-se em eterno processo de transformação, tais atributos também mudam com o tempo e for-çam as elite políticas a uma constante adaptação. Essa mutação da elite pode se dar de maneira abrupta — por meio de sua substitui-ção completa — ou gradual, via incorporação de elementos repre-sentativos de novos valores.

Assim como exposto acima, e a despeito de suas diferenças, tan-to Pareto como Mosca prevêem a vigência de processos de renova-ção da elite dirigente. A estabilidade da ordem depende, portanto, da efetividade dos mecanismos de cooptação para promover a cons-tante renovação da elite, de maneira a renovar sua capacidade de domínio. Para ambos, na eventualidade de substituição da elite go-vernante, ou elite política, não é a massa que ascende, mas o grupo que foi capaz de mobilizá-la, uma nova elite.

No início deste século, o sociólogo Robert Michels realizou o primeiro estudo sistemático que se propõe a comprovar a "Lei de Ferro da Oligarquia". Mediante o estudo dos processos políticos internos ao Partido Social Democrata alemão, Michels procura ex-plicar tanto a dependência política das massas em relação às lideranças do partido, como as razões que fazem com que alguns indivíduos ascendam às posições de comando na estrutura partidária. Em linguagem mais contemporânea, é possível dizer que os líderes re-solvem os problemas de ação coletiva do partido, ou seja, pagam a maior parte dos custos para a obtenção dos bens coletivos que o partido prove e, por essa razão, são valorizados e mesmo considerados como imprescindíveis pelas massas. Os líderes sacrificam seu tempo e seus recursos pessoais para "fazerem o partido funcionar". No entanto, os líderes quase sempre distanciam-se das massas em razão de suas capacidades mais aguçadas e dos conhecimentos privilegiados de que dispõem. O fato de pagarem os custos de ação coletiva que fazem o partido existir sem o forte engajamento das massas também dá-lhes maior capacidade de influência nas decisões do partido. Ao final, essa maior influência dos líderes acaba

Elitistas, pluralistas e marxistas

por distanciar o partido das massas, o que, em si, representa a falên-cia da idéia de democracia interna. A conclusão de Michels é que, se nem os partidos políticos que advogam a plena democratização da sociedade conseguem organizar-se internamente de maneira demo-crática, seu objetivo de transformação radical da sociedade é irreali-zável. A democracia é, pois, uma utopia irrealizável.

O resumo acima foi propositadamente superficial. Nosso obje-tivo, nesta exposição apressada do argumento elitista, é apenas abrir espaço para a afirmação que se segue. Os autores elitistas procura-ram demonstrar que a democracia é inviável, baseados na idéia de que qualquer sociedade será governada por poucos. A comprova-ção desse fato, lógica e empiricamente, torna irrealizável a crença no "autogoverno das massas".

Para os elitistas, portanto, assim como para todo o pensamento derivado da construção rousseauniana — até mesmo o marxista —, democracia é sinônimo de "governo de todos". Não se aceita a idéia de "representação da vontade", ao mesmo tempo em que se acredita que não há uma vontade a ser realizada, pois há conflito de inte-resses nas sociedades.

Por outro lado, está presente em Mosca a noção de que, sendo a sociedade capitalista caracterizada pela proteção legal da riqueza acu-mulada por intermédio das interações econômicas, o recurso de po-der essencial dessas sociedades é derivado da posição econômica dos indivíduos. Quanto mais ricos, mais influentes politicamente. Segundo Tom Bottmore, Mosca aproxima-se assim incomodamen-te do argumento marxista que, como veremos adiante, salienta a transposição da desigualdade econômica que resulta das interações de mercado para a arena política. [SIC: Bottomore]

O mesmo tipo de associação entre desigualdade econômica e desigualdade política está presente em C. Wright Mills. Após minu-ciosa análise da sociedade norte-americana, Mills chega à conclusão que a elite do poder é composta pelos ocupantes dos principais car-gos nas hierarquias militar, administrativa do Estado e empresarial. Para esse autor, nas sociedades capitalistas democráticas, essas se-riam as principais estruturas de poder, cujas decisões afetam as vi-das da maioria da população. Ademais, os ocupantes dos postos de

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comando nessas três hierarquias fariam parte de uma mesma classe social, compartilhando valores e lealdades que tornam integrada a administração da sociedade. Portanto, essas hierarquias estariam in-terligadas tanto em razão da natureza interdependente das decisões tomadas em cada uma delas, que obrigaria consultas mútuas e favo-receria a obtenção de compromissos, como pelas conexões pessoais que se constituíam entre os ocupantes das posições de comando.

Em suma, o argumento elitista aplicado às sociedades democrá-ticas em economias de mercado aponta para uma concentração do poder político no topo das estruturas política, social e econômica. O ideal democrático — Rousseauniano — de autogoverno das mas-sas é, pois, descartado como utópico. Isso não significa dizer que, de maneira geral, o modelo elitista supõe dominações políticas está-veis. Ao contrário, a elite no poder será tanto menos estável quanto menos disposta a — e/ou capaz de — adaptar-se às transforma-ções em curso na sociedade. Portanto, é um modelo dinâmico e que prevê a possibilidade de profundos reordenamentos no aparato de-cisório estatal.

PLURALISMO

Vejamos agora o argumento pluralista e algumas críticas que lhe são contrapostas. Robert Dahl, o principal expoente do argumento pluralista — anti-elitista —, aponta para algumas dimensões da es-trutura de poder da sociedade norte-americana para questionar a noção, presente no elitismo, de que todo o poder está concentrado nas mãos de poucos atores políticos, dado por seu lugar na estrutura sócio-econômica. Há dois pontos-chaves na crítica Dahlsiana.

Em primeiro lugar, há um problema metodológico com o argu-mento elitista: para que se possa aceitar como verdadeira a existên-cia de uma "elite dirigente" em um dado país, é necessário que se demonstre como esse grupo efetivamente exerce a sua dominação política. É, no entanto, indispensável que esse seja um grupo coeso e identificável, que atue em uníssono e que seja vitorioso em todas as questões nas quais se envolver. Ainda sobre esse grupo, Dahl aponta para a necessidade de que sua composição derive de interesses reais compartilhados, ou seja, que não seja mero resultado do fun-

QUADRO 1

Filiação de indivíduos (†) de uma mesma sociedade (S), a diferentes grupos (A), (B), (C)

QUADRO 2

Distribuição de indivíduos (†), membros de uma mesma sociedade (S), de acordo com as questões que são objeto de

decisão pública (A), (B), (C), (D)

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D

B

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cionamento das regras democráticas. Quanto às decisões tomadas, elas precisam ser objeto de conflito com os demais grupos da socie-dade, para que se comprove o real exercício de poder por parte da elite.

Em segundo lugar, o pluralismo inova, em relação ao elitismo, ao apresentar a idéia de que os grupos sociais são levados a buscar influenciar os decisores na medida em que os interesses fundamen-tais de seus membros estiverem sendo potencialmente ameaçados por decisões públicas. Os grupos agiriam, assim, em nome dos inte-resses compartilhados por seus membros. Mas, como os grupos são compostos por indivíduos autônomos, seria preciso entender os condicionantes da ação política individual para uma melhor com-preensão das interações políticas.

Diversos autores pluralistas exploraram os condicionantes da ação individual. O modelo básico que se pode derivar de suas análises aponta para um indivíduo:

1. com potencial de filiação simultânea a múltiplos grupos — ver Quadro l —, em razão da vasta gama de interesses que possui — ver Quadro 2; e,

2. desinteressado politicamente, exceto quando seu interesse ime diato está em questão.4

No Quadro l, os indivíduos situados nas interseções dos grupos, (espaços AB, AC, BC e ABC) são "multifiliados", ou seja, per- 11 tencem a mais de um grupo ao mesmo tempo. Os membros de um *!

único grupo são membros em potencial de outros grupos, assim como aqueles que estão fora dos três grupos acima representados. Não há, pois, no modelo pluralista, clivagens profundas na estrutura da sociedade que inviabilize as multifiliações. No entanto, para que um sistema baseado na idéia de multifiliações fosse plenamente possível, essas sociedades precisariam caracterizar-se por uma profunda homogeneidade cultural.

Por outro lado, o Quadro 2 demonstra como a doutrina pluralista percebe a volatilidade na composição dos grupos. De acordo com

4 Os dois quadros expostos foram apresentados por Hellen Milner.

as questões colocadas na agenda pública, os indivíduos agrupam-se em diferentes coalizões, contra e a favor. É possível adicionar a esse segundo modelo, um corte eminentemente de grupos, por intermé-dio do qual se poderiam prever alianças entre diferentes grupos, de acordo com a questão. Assim sendo, teoricamente, poder-se-ia ima-ginar que os grupos 1. se mantivessem coesos em todas as questões, caso do "grupo M" — o que poderia indicar, de certo modo, a existência de uma cliva- gem profunda na sociedade, distanciando esse tipo de grupo do suposto no modelo pluralista; 2. que se mantivessem relativamente coesos, como o "grupo N"; ou 3. que tivessem níveis baixos de coesão, como o "grupo O", que se divide em praticamente todas as questões.

Desse modelo de indivíduo, é possível sustentar que uma das características básicas dos sistemas políticos pluralistas é a intensi-dade moderada das interações políticas que nele se processam, devido à inexistência de desigualdades cumulativas, ou seja, de ganhadores e perdedores universais. Não se acumulariam desigualdades porque os indivíduos seriam membros de mais de um grupo de interesse ao mesmo tempo, o que implica em que a perda em uma determinada questão "A" pode ser compensada, não apenas com uma vitória na questão "B", mas também pela reversão da derrota na questão "A" em uma interação futura. Todo cidadão é um potencial aliado e um potencial adversário de qualquer outro, de acordo com a natureza da questão política em disputa. Os grupos de interesse são, portanto, mutáveis em sua constituição e poder político e é essa volatilidade na sua constituição que torna os resultados a um só tempo incertos e reversíveis. A ordem é contingente e as interações assemelham-se a um jogo.

Deriva-se do argumento pluralista que é preciso assegurar regras justas de interação política, para que se mantenha a disposição dos eventuais perdedores a continuar jogando. Para tanto, tais regras precisam maximizar os ideais de igualdade política e soberania po-pular, ou seja, 1. estabelecer capacidades semelhantes de influência política para

todos; e,

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2. vincular as decisões públicas à vontade da maioria.

Segundo os principais defensores dessa corrente — aqui incluí-dos Schumpeter, Dahl e Lindblom —, tais regras precisariam esta-belecer interações competitivas — eleições — entre os cidadãos para a constituição dos governos, isto é, para a ocupação dos postos de comando do Estado.

Os ganhadores das eleições constituem os governos e tomam decisões públicas, respeitadas as regras que asseguram os direitos de oposição. A noção de governo representativo é, pois, parte essencial do modelo. No entanto, os problemas comumente associados à re-presentação política seriam minimizados pelo caráter competitivo do sistema, visto que quanto mais acentuado o grau de competição pelos postos de comando, maiores os constrangimentos que for-çam os representantes atendam às demandas dos representados.

Ao conjunto de regras que realizem tais princípios, os pluralistas dão o nome de poliarquia e elas incluem: liberdade de expressão de interesses, de organização política, de voto, de informação, liberdade para concorrer e ser eleito para cargos públicos, direito a eleições livres e competitivas, e existência de instituições que tornem as políticas governamentais dependentes do interesse da maioria do eleitorado.5 Em sua essência, as regras da poliarquia objetivam assegurar direitos de contestação pública, isto é, de oposição a todos aqueles que são afetados pelas decisões do governo, ou seja, todos os cidadãos.

Como já foi observado, esse modelo baseia-se no fato de que o poder político dos cidadãos não deriva apenas de sua posição nas estruturas social e econômica. Pelo contrário, em sua formulação inicial, o pluralismo supõe que é a capacidade de convencimento dos candidatos aos cargos públicos o recurso essencial ao exercício de poder. Terão maior capacidade de realizar seus interesses aqueles que forem capazes de convencer a maioria da população da validade de suas propostas em relação às de seus concorrentes. Disso deriva

Elitistas, pluralistas e marxistas

o papel angular da liderança política, dos políticos profissionais, que se especializam na articulação das preferências individuais em uma vontade coletiva e na mobilização de contingentes eleitorais disper-sos e pouco interessados.

Porém, da crença inicial de que o poder econômico não se tradu-ziria automaticamente em poder político, e de que a poliarquia não estaria submetida às determinações dos grupos já privilegiados nas interações econômicas, alguns autores pluralistas evoluíram para uma autocrítica do modelo. Diante disso, seriam necessárias reformas estruturais para evitar a sobredeterminação das decisões políticas pelo sistema econômico. Os governos democráticos, segundo as próprias análises de Dahl e Lindblom,6 precisariam controlar a ca-pacidade de influência dos interesses do empresariado, que desfru-taria, segundo o termo cunhado por Lindblom, de uma posição pri-vilegiada nas sociedades capitalistas democráticas. Ou seja, algum poder econômico estaria traduzido em poder político, e isso precisa ser evitado por meio da intervenção deliberada do Estado.

Diversas críticas foram feitas ao argumento pluralista. Para fins ana-líticos, separamos as críticas à metodologia das críticas ao paradigma.

São duas as principais críticas metodológicas ao pluralismo. A primeira, formulada por Theodore Lowi, em 1964, aponta para a não-refutabilidade empírica do pluralismo como deficiência que deriva de seus pressupostos normativos. De acordo com Lowi, como os teóricos pluralistas supõem que são os grupos os atores funda-mentais dos processos políticos, suas análises empíricas são dirigi-das para as questões que provocam a mobilização política de gru-pos, o que, por sua vez, confirma as previsões iniciais de que os grupos são os atores fundamentais.

A segunda crítica metodológica ao pluralismo foi formulada por Bacharach e Baratz. Esses autores salientam que, antes de questio-nar como se exerce o poder político nas sociedades democráticas, é

5 Cf. R. Dahl, Poliarchy — participation and opposition, New Haven/Londres, Yale University Press, 1970, p. 3,

6 Cf. Dahl. Dilemmas of pluralist democracy, autonomy and control, New Haven e Londres, Yale University Press, 1982; e Charles Lindblom, Politics and markets, Nova York, Basic Books, 1977.

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preciso identificar os grupos beneficiados pelas estruturas vigentes — social, política e econômica —, isto é, pelo status quo. Isso porque os beneficiários da estrutura de poder vigente dispõem de instrumentos para evitar que algumas questões prejudiciais aos seus interesses tornem-se objeto de deliberação pública. Os pluralistas, ao passarem ao largo dessa face "oculta" do poder, identificariam apenas as formas superficiais de seu exercício, mas não aquelas subliminares e que im-plicam o verdadeiro domínio da agenda pública — as "não-decisões".

Entre as críticas ao paradigma pluralista, gostaríamos de ressaltar aquelas formuladas por Lowi, por Schmitter e por Lijpart. Lowi aponta para interações — no âmbito do sistema político norte-americano — que não obedecem aos postulados da teoria pluralista. Segundo seu principal argumento, as interações políticas são determinadas pelo comportamento dos atores envolvidos e esse comportamento deriva da natureza das políticas públicas em questão. Portanto, a cada tipo de política — distributivas, redistributivas e regulatórias, segundo sua tipologia —, corresponderia um padrão distinto de comportamento político. O padrão de comportamento previsto pelos pluralistas seria, de acordo com Lowi, característico apenas das interações que se produzem em torno de políticas regulatórias. Nas demais, os atores políticos agiriam de maneira atomizada — distributivas — ou seguindo os determinantes de classe — redistributivas.

Phillippe Schmitter chama a atenção para a interdependência entre o tipo de estrutura política de um dado país e seu estágio de desen-volvimento econômico capitalista. Segundo seu argumento, o plu-ralismo não é uma forma de estruturação das interações políticas capaz de durar para sempre: o próprio funcionamento das economias avançadas gera necessidades e imperativos políticos que implicam em uma maior proximidade entre os interesses públicos e privados, mesmo em sistemas políticos originalmente pluralistas. O modelo corporativo é, nessa perspectiva, resultante da própria evolução do capitalismo democrático.

Por fim — no último exemplo de crítica ao pluralismo antes da análise do argumento marxista —, Arendt Lijphart identifica siste-mas políticos democráticos estáveis em sociedades caracterizadas

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Elitistas, pluralistas e marxistas

pela existência de clivagens sociais importantes. Países notavelmente democráticos como Áustria, Suíça e Holanda, entre outros, seriam caracterizados por divisões sociais profundas, que tornam os cidadãos primordialmente vinculados a grupos e não à nação. A existência de democracias estáveis em nações socialmente divididas, por si só, contraria os pressupostos pluralistas, segundo os quais a estabilidade de regimes democráticos dependeria: 1. de uma base cultural homogênea, para assegurar, a um só tempo, tanto a manutenção das lealdades primárias dos cidadãos para com o Estado — e não a um grupo social qualquer — como um padrão associativo baseado em multifiliações individuais; e 2. de uma estrutura autônoma de papéis sociais — para promover a dispersão das identidades coletivas e reforçar comportamentos po- líticos moderados.7 Como explicação para essa "anomalia", Lijphart apresenta um modelo de interação política fundado não na compe- tição, mas antes na cooperação entre as elites que representam cada uma das clivagens. Desse modo, o sistema político consociacional é capaz de atender aos interesses de grupos políticos e sociais com interesses distintos e mesmo contraditórios, e garantir tanto o res- peito a valores e direitos democráticos, como a paz social.

7 Um bom exemplo dessa estrutura de papéis sociais é o sistema educacional. Se os membros de diferentes grupos forem "educados" a partir dos valores presentes em um sistema educacional homogêneo, maiores as chances de que se desenvolvam interações políticas moderadas, No caso contrário, isto é, se cada grupo social tiver o direito de estabelecer os valores que orientaram o sistema educacional ao qual serão orientadas as novas gerações, maiores as chances de que se reforcem as diferenças e que as interações políticas se desenvolvam sob hostilidade e desconfiança entre os membros de diferentes grupos. O mesmo tipo de raciocínio pode aplicar-se a outras estruturas de papéis sociais como a imprensa, os partidos políticos, e os grupos de interesse.

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A CRÍTICA MARXISTA

Assim, os próprios autores pluralistas passaram a reconhecer que as desigualdades produzidas pelas interações de mercado afetam a distribuição de recursos políticos entre os cidadãos e, por conse-guinte, minam as bases sobre as quais se assentam os valores de igualdade política e soberania popular. Cria-se então a possibilidade de que as regras e instituições da poliarquia não sejam capazes de exercer convenientemente a função de regular a vida social de acor-do com a vontade expressa pela maioria da população. Isso sendo verdade, decisões públicas seriam tomadas sem o devido controle por parte daqueles que a obedecerão, em uma possível violação dos pilares racionais-legais da dominação política.

Segundo a abordagem marxista clássica — tal como formulada por Karl Marx e Friedrich Engels no século XIX —, o poder político está concentrado nas mãos daqueles que detêm posições dominantes na economia capitalista. Como afirma o Manifesto comunista, a centralização da produção pela burguesia correspondeu a uma cen-tralização da política, na qual o poder político do Estado nada mais é do que o poder organizado de uma classe — a burguesia — para a opressão de outra— o proletariado. Marx e Engels ressaltam assim o caráter coercitivo e parcial da dominação do Estado, questionando a possibilidade de realização legítima da vontade popular com a permanência da economia de mercado. A teoria comunista clássica pressupõe, portanto, a abolição da propriedade privada como con-dição necessária à realização de qualquer princípio democrático. Os escritos de Marx e Engels também sugerem que a base material da sociedade — as relações de produção e as forças produtivas — de-termina, "em última instância", a superestrutura — as relações po-líticas, jurídicas, ideológicas etc.8

8 Posteriormente, Marx e Engels apresentaram diversas qualificações a essa for-mulação de que a base econômica determina toda a superestrutura política e cultural de uma sociedade. Por exemplo, em carta a Joseph Bloch, em 1890, Engels afirma que a interpretação de suas idéias e as de Marx — segundo a qual o elemento econômico é o único fator determinante — é uma interpre-tação abstrata e sem sentido. Engels afirma ainda que vários elementos da

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Já neste século, autores marxistas desenvolveram interpretações distintas, muitas vezes antagônicas, sobre as formulações da teoria marxista clássica. De um lado, desenvolveu-se o marxismo-leninismo, principalmente a partir da Revolução Russa de 1917, mantendo a ênfase de Marx no caráter coercitivo da dominação do Estado e a incompatibilidade entre democracia e economia de mercado. Essa interpretação mais "ortodoxa" do marxismo clássico será a base do movimento comunista, tal como institucionalizado na III Interna-cional, sob forte influência dos soviéticos. De outro lado, diferentes vertentes constituíram o que se convencionou chamar de "marxis-mo ocidental", desenvolvido por autores que, a partir das experiên-cias dos países capitalistas mais desenvolvidos, ultrapassaram a ên-fase inicial nos fatores econômicos para ressaltar a autonomia e o papel de elementos superestruturais, como a política e o Estado.

Na constituição do marxismo ocidental, o teórico marxista itali-ano Antônio Gramsci é uma das referências mais importantes. Ao questionar as razões que levaram ao fracasso a revolução socialista na Europa ocidental, Gramsci conclui que a derrota dos trabalha-dores deveu-se à adoção de uma estratégia política equivocada, pois sociedades "orientais", como a Rússia do início do século, seriam distintas das sociedades "ocidentais", como a Itália e demais países capitalistas avançados da Europa. Tal distinção não é uma mera di-visão geográfica, mas indica diferentes tipos de formação econômica e social, em função, sobretudo, do peso da sociedade civil, entendida como o conjunto dos "aparelhos privados de hegemonia" — isto é, os partidos, os sindicatos, as escolas, a mídia, enfim, as organizações ditas privadas que não fazem parte do aparelho estatal. Segundo Gramsci, em sociedades menos complexas, a luta pelo poder desen-volve-se em torno do aparelho do Estado — o Estado restrito —, enquanto que em sociedades ocidentais o fundamental passa a ser a disputa pela hegemonia na sociedade civil. Portanto, em lugar da estratégia de "guerra de movimento", típica de sociedades orientais,

superestrutura exercem uma influência muitas vezes determinante para o re-sultado das lutas históricas.

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onde os movimentos políticos concentram todas suas forças para conquistar um objetivo — a administração do Estado — , a estraté-gia política correta no ocidente deveria ser a "guerra de posições", a disputa de posições na "robusta cadeia de fortalezas e casamatas" da sociedade civil.

Gramsci amplia o conceito de Estado para além da esfera da coerção da sociedade política — burocracia administrativa, exército, polícia, tribunais — , incorporando também a esfera da direção na sociedade civil — a hegemonia cultural e política. Em contraposi-ção a algumas formulações do marxismo clássico e do marxismo-leninismo, Gramsci ressalta não só a autonomia da política e do Estado com relação à base material, mas também sua capacidade de superar o elemento econômico. Ao combater posições "economi-cistas", o autor italiano afirma que a pretensão de apresentar qual-quer flutuação da política como uma expressão imediata da base econômica deve ser combatida teoricamente como um "infantilis-mo primitivo".

Adam Przeworski define o marxismo como uma análise das con-seqüências das formas de propriedade para os processos históricos. Portanto, os marxistas ressaltam como a base material afeta o resul-tado das lutas políticas, enfatizando, em particular, como as desi-gualdades geradas pelo mercado determinam a distribuição de po-der. Todavia, a relação entre os sistemas político e econômico é de-finida de várias maneiras por diferentes autores marxistas. Como vimos, o que caracteriza o marxismo ocidental é a ênfase na autono-mia e no papel de elementos superestruturais, como a política e o Estado. Apesar dessa ênfase, os autores marxistas mantêm a noção de que as formas de propriedade — economia — têm um impacto direto na constituição da democracia representativa e do Estado — política.

Um dos debates principais da teoria marxista contemporânea refere-se a este problema básico: como reconhecer a autonomia do Estado e da política e ao mesmo tempo manter o pressuposto de que a base econômica e material "determina" a distribuição de po-der na sociedade? Mais especificamente: como compatibilizar a au-tonomia das regras e instituições da democracia representativa e a

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ênfase no poder da classe economicamente dominante? Como "domina a classe dominante" em regimes pluralistas e democráticos?

Nicos Poulantzas procurou construir uma teoria marxista do Estado capitalista que, a partir das relações de produção, explicasse como ele assume suas diferentes formas nos países capitalistas avan-çados — por exemplo, as diferenças entre Estados autoritários e Estados democráticos parlamentares. Segundo Poulantzas, o Estado tem um papel de "organização": representa e organiza as classes dominantes, principalmente o interesse político, a longo prazo no âmbito do "bloco no poder". Esse papel só é possível porque o Estado detém uma "autonomia relativa" em relação a tal ou qual fração deste bloco. Poulantzas argumenta que a política do Estado é resultado das contradições de classe inseridas em sua própria estrutura. Assim, apesar de reconhecer a autonomia relativa do Estado — sua independência em relação a frações específicas da classe eco-nomicamente dominante —, Poulantzas argumenta que o Estado organiza e defende os interesses dessa classe como um todo.

Ralph Miliband também buscou compreender as diferentes relações entre política e economia, nos marcos do Estado capitalista. Recorreu a um referencial teórico considerado oposto ao marxis-mo, a teoria das elites, definindo a elite estatal como o conjunto [de] pessoas que ocupam as posições dirigentes em cada uma das insti-tuições que compõem o sistema estatal. Para explicar a relação entre Estado e classe economicamente dominante, o autor afirma que os membros da elite estatal são os "agentes" do poder econômico pri-vado, ou seja, da classe dominante. Apesar de a participação dos empresários nas instituições do sistema estatal ser minoritária, eles conseguem fazer com que a política do Estado os favoreça porque a elite estatal age de acordo com seus interesses, de acordo com sua composição social — seus membros pertencem geralmente às clas-ses médias e altas — e com as relações de parentesco e amizade. A classe dominante governaria por meio da elite estatal.

Poulantzas e Miliband desencadearam um dos debates mais im-portantes na teoria marxista contemporânea. Ao polemizar nas pá-ginas da New Left Review, os autores discutiram algumas de suas de-savenças: Poulantzas ataca a ênfase de Miliband nas "relações inter-

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pessoais" entre os indivíduos que integram o aparelho do Estado; Miliband responde criticando o "superdeterminismo estrutural" de Poulantzas, ou seja, a idéia de que relações objetivas do sistema esta-tal definem sua atuação, ignorando-se o papel dos indivíduos que ocupam posições administrativas.

Do debate, é possível distinguir, para fins analíticos, as correntes de pensamento marxista contemporâneas que ressaltam as estrutu-ras econômicas, políticas e sociais — as abordagens "macro" — e as que ressaltam as relações e comportamentos dos indivíduos — os "micro-fundamentos". Mais recentemente, o autor alemão Claus Offe desenvolveu uma nova abordagem macro, de cunho estrutura-lista, concebendo o Estado como mediador das crises capitalistas geradas pela contradição básica entre a crescente socialização da produção e a continuidade da apropriação privada. Segundo Offe, as funções do Estado surgem a partir do problema de como recon-ciliar acumulação econômica e legitimação política. Para o autor ale-mão, os administradores do Estado reproduzem as relações capita-listas não porque são agentes da burguesia — como em Miliband —, mas porque dependem da atividade econômica. Os administradores dependem do mercado porque ele produz rendimentos ao Estado via tributação e porque o apoio público entra em declínio se a acu-mulação não acontecer.

Também em períodos mais recentes, alguns autores do campo marxista desenvolveram teorias que enfatizam os micro-fundamen-tos. O chamado "marxismo analítico" buscou vincular as perspecti-vas e as preocupações do marxismo com metodologias e aborda-gens de outras tradições teóricas. Autores como Adam Przeworski e Jon Elster têm insistido na importância da teoria da escolha racional e do individualismo metodológico para a superação das abordagens funcionalistas no pensamento marxista. Só assim o marxismo seria capaz de superar a falta de uma teoria sobre as ações das pessoas que fazem a história devido à ênfase nos aspectos macrossociais e estruturais.

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CONCLUSÕES

Este ensaio teve como objetivo principal discutir o campo tradi-cionalmente identificado como teoria política contemporânea. Esse campo engloba três escolas principais de pensamento, o elitismo, o pluralismo e o marxismo que foram aqui apresentadas como tipos ideais. Dentro dessa perspectiva, suas principais formulações foram contrapostas a argumentos críticos "por dentro", isto é, de autores identificados a elas, e "por fora", de escolas que a ela se opõem. Duas foram as questões centrais que permearam a discussão: como cada uma des-sas correntes refere-se ao "problema da representação política" — à natureza própria dos regimes democráticos contemporâneos — e como apresentam a relação entre economia de mercado e democra-cia.

Seria o Estado contemporâneo apenas a expressão dos interes-ses existentes na sociedade, não representando suas ações mais que a resultante das interações entre diferentes grupos sociais e econô-micos na arena política? Ou seria o Estado, de certa forma, autôno-mo em relação à sociedade, e, à despeito do rótulo de democrático, suas ações expressariam tão-só os interesses próprios daqueles que ocupam os postos de direção? O poder material reproduz-se sem constrangimentos no sistema político-democrático, tornando-o fa-chada para encobrir a dominação de cunho econômico, ou o jogo do poder estabelece as condições de acumulação de riquezas?

Que não hajam respostas definitivas a essas questões é algo que nos obriga a considerar como complementares as três correntes de pensamento aqui discutidas. Enquanto categorias analíticas estan-ques, elitismo, pluralismo e marxismo têm pouco a acrescentar à com-preensão das sociedades capitalistas democráticas. Seguem-se dessa afirmação duas certezas que precisamos reconhecer como válidas. Em primeiro lugar, é certo que a distribuição do poder material afeta o sistema político, mas o poder material não provém apenas da posse de propriedades, no sentido tradicional. Sindicatos de traba-lhadores, por exemplo, dispõem de capacidade para mobilizar re-cursos materiais que não podem ser desprezados. Por outro lado, estabelecer a simples transposição de recursos materiais para a are-

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na política significa pouco quando observamos os que possuem tais recursos não compartilharem, necessariamente, dos mesmos inte-resses políticos.

Uma segunda certeza que precisa ser reconhecida é que, em al-guma medida, qualquer Estado é autônomo. A necessidade de se criar uma entidade distanciada para resolver controvérsias envol-vendo os cidadãos, entre si ou nas suas relações com o próprio Es-tado, tem levado a reformas mais e mais abrangentes do sistema político, ao menos desde os primeiros levantes de proprietários de terra contra o direito — arbitrário — de taxação da Coroa britânica, ainda no século XII.

A variedade de temas, escolas de pensamento, e possíveis certe-zas que caracterizam o debate contemporâneo é certamente mais abrangente e rica do que o exposto nos limites deste ensaio. Acredi-tamos, no entanto, que o enfoque adotado, particularmente a ênfase na relação entre economia de mercado e democracia, permite desta-car as grande[s] questões da teoria política em períodos mais recentes.

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NOTAS BIOGRÁFICAS

Alberto Carlos Almeida — Doutor (IUPERJ), coordenador da Empresa Júnior Analítica dos alunos do Curso de Graduação de Ciências Sociais e professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.

Alexandre Barros— PhD (Chicago), é presidente da Earlj Warning: Oportunidade e Risco Político / Relações Governamentais.

Carlos Pio — Doutorando (IUPERJ), coordenador de graduação do curso de Relações Internacionais e professor do Departa-mento de Relações Internacionais da Universidade de Brasí-lia.

Eduardo Viola — Professor titular do Departamento de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, pesquisador nível IA do CNPq e membro da Comissão Nacional de População e Desenvolvimento.

Eli Diniz— Professora titular do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisadora associada do IUPERJ. Publicou, recentemente, Crise, reforma do Estado e governabilidade, Brasil 1985-1995.

Estevão de Rezende Martins — Doutor (Munique), professor do Departamento de História da Universidade de Brasília, é consultor geral legislativo no Senado Federal.

Fabiano Santos—Doutor (IUPERJ), professor e pesquisador do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro.

Franco César Bernardes — Doutorando em ciência política (IUPERJ), foi professor da PUC/Rio de Janeiro e é consul-tor da Escola Nacional de Administração Pública.

Gláucio Soares—Doutor (Washington), professor titular da Uni-versidade de Brasília, responsável pelo projeto integrado de , pesquisa sobre <rViolência no Distrito Federal e no Entorno", foi diretor da Escola Latino-americana de Sociologia e professor nas universidades da Califórnia — UCLA e UCB —, MIT, Cornell, entre outras.

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Notas biográficas

Jessé Souza— Doutor em sociologia (Heidelberg), pós-doutora-do (New School for Social Research), professor adjunto do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília. É autor do livro Patologias da modernidade: Um diálogo entre Marx e Weber\ é organizador dos livros Multiculturalismo e racismo: Uma comparação entre Brasil e Estados Unidos; e Simmele a Modernidade (no prelo).

José Augusto Drummond—Doutorando (Wisconsi), coordena-dor da Empresa Júnior Analítica dos alunos do Curso de Graduação de Ciências Sociais e professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.

Mateus Faro de Castro — Doutor (Harvarei), coordenador do Curso de Mestrado em Relações Internacionais e professor adjunto do Departamento de Relações Internacionais da Uni-versidade de Brasília, publicou, recentemente, com Antônio Augusto Cançado Trindade, A sociedade democrática no final do século.

Maria Izabel Valladão de Carvalho— Doutora (USP), professora adjunto do Departamento de Relações Internacionais da Universidade de Brasília

Maria das Graças Rua—Doutora em ciência política (IUPERJ), pro-fessora adjunto do Departamento de Relações Internacionais da Universidade de Brasília.

Mauro Porto — Doutorando (Califórnia, San Diego), professor assistente do Departamento de Relações Internacionais da Universidade de Brasília.

Octaciano Nogueira — Professor adjunto do Departamento de Ciência Política da Universidade de Brasília, autor dos livros O poder legislativo no Brasi/e. Partidos pó//ticos no Brasil.

VenícioA. de Lima — Doutor (Illinois-Urbana), coordenador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política do Centro de Estu-dos Avançados Multidisciplinares da Universidade de Brasí-lia.

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SUMÁRIO

Apresentação

Capítulo l

A política como ciência ou

em busca do contingente perdido Fabiano Santos

Capítulo 2

A atividade profissional do cientista político. Carreiras acadêmicas e não acadêmicas e as novas oportunidades oferecidas pelo mercado de trabalho

José Augusto Drummond & Alberto Carlos Almeida

Capítulo 3

Executivo e burocracia Jessé Souza

Capítulo 4

Relações entre os poderes Legislativo e Executivo Estevão de Recende Martins

Capítulo 5

O estudo do Judiciário

Marcus Faro de Castro

Capítulo 6

Crise ou falência: Partidos políticos ontem e hoje

Maria Isabel Valladão de Carvalho

Capítulo 7 Sistemas eleitorais e seus efeitos políticos Octaciano Nogueira

Sumário

Capítulo 8

Comportamento político e cultura política Gláucio Soares

Capítulo 9

Não existem pessoas loucas, existem apenas pessoas com 197 gostos diferentes ou cuidado com os defensores do interesse público, lobbies e pressões na democracia liberal Alexandre Barros

Capitulo 10

Os mídia e a política Venício A. de Uma

Capítulo 11

Análise de políticas públicas: Conceitos básicos Maria das Graças Rua

Capítulo 12

Governabilidade e democracia

Eli Diniz

Capítulo 13

Teoria política contemporânea: Política e economia segundo os argumentos elitistas, pluralistas e marxistas Carlos Pio & Mauro Porto

Capítulo 14 Escolha racional e novo institucionalismo:

Notas introdutórias

Maria das Graças Rua & Franco César Eernardes

Capítulo 15

Os novos desafios da governabilidade na sociedade de informação globalizada Eduardo Viola

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