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Carlos Serra

PARA A HISTÓRIA

DA ARTE MILITAR

MOÇAMBICANA

(1505-1920)

CADERNOS TEMPO

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Editor: Cadernos Tempo

sob autorização de CARLOS SERRA Coordenação: SOL CARVALHO Capa:

MIGUEL CÉSAR Composição, Revisão, Fotolito e Impressão:

TEMPOGRAFICA (C) CARLOS SERRA e TEMPO I."

edição; NOVEMBRO/83 Tiragem: 5 000

exemplares N.° de registo; 0472/INLD/83

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Onde quer que se sentisse o poder colonial, aparecia alguma

forma de resistência, desde a insurreição armada até ao êxodo maciço. Mas em qualquer momento, era apenas uma comunidade limitada, pequena em comparação com a sociedade, aquela que se levantava contra o colonizador, enquanto que a própria oposição era também limitada, por ser dirigida somente contra um só aspecto da dominação, aquele aspecto concreto que afectava aquela comunidade naquele preciso momento.

EDUARDO MONDLANE (1977: 108)

Desde a resistência do Monomotapa à insurreição do Báruè, a história moçambicana orgulha-se dos gloriosos feitos das massas na luta pela defesa da liberdade e da independência. A derrota da histórica resistência do Povo deve-se exclusivamente à traição das classes feudais no poder, à sua cobiça e ambição, que permitiram que o inimigo dividisse o Povo e o conquistasse.

SAMORA MACHEL (Proclamação da Independência, 25 de Junho de 1975)

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ÍNDICE

1. Introdução .................................................................................... , .................. 7 2. Sobre a estrutura social ............................................................. , .................. 15 3. Sobre a geografia física ......................................................... , .................. 27 4. Sobre as causas das guerras ........................................................................... 33 5. Sobre a arte militar .......................................................................................... 39

5.1. NORTE 5.1.1. Equipamento ............................................... ................................. 45 5.1.2. Organização e técnica de combate

5.1.2.1. Nas lutas entre Moçambicanos ..................................... 48 5.1.2.2. Nas lutas contra os Portugueses ............. , .................. 52

5.1.3. Aprendizagem e treino .................................................................. 55 5.1.4. Amplitude das operações .... ..................................................... 56 5.1.5. Mecanismos de activação ........................................................... 58

5.2. CENTRO 5.2.1. Equipamento ...* ......................................................... , ................. 63 5.2.2. Organização e técnica de combate

5.2.2.1. Nas lutas entre Moçambicanos ...................................... 67 5.2.2.2. Nas lutas contra os Portugueses ................................. 70

5.2.3. Aprendizagem e treino ............................................................ 75 5.2.4. Amplitude das operações .......................................................... 76 5.2.5. Mecanismos de activação ............................................................. 79

5.3. SUL 5.3.1. Equipamento ................................................................................. 83 5.3.2. Organização e técnica de combate

5.3.2.1. Nas lutas entre Moçambicanos .................................... 87 5.3.2.2. Nas lutas contra os Portugueses ................................. 91

5.3.3. Aprendizagem e treino ............................................................. 103 5.3.4. Amplitude das operações ........................................................... 103 5.3.5. Mecanismos de activação ............................................................. 106

6. Conclusões ....................................................................................................... 109 7. Documentos ....................................................................................................... 119 8. Notas ................................................................................................................ 141 9. Referências bibliográficas ................................................................................. 151

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ABREVIATURAS

AAVV = Autores vários. C. S. = Carlos Serra. DA = Direcção de Agricultura. dir. = dir9cção. doe. = documento. DH = Departamento de História da Universidade Eduardo Mondlane. DPMAC = Documentos sobre os Portugueses em Moçambique e na Africa Central. ed = edição. et seq. = «et sequitur» = e páginas seguintes. idem = o mesmo, a mesma coisa, no mesmo lugar. in = em. loc. cit. = «loco citato» = obra citada e idêntica página. mimeo = mimeografado. op. cit. = «opere citato» = no trabalho citado. org. = organizado. pi. = plural. SCCI = Serviços de Centralização e Coordenação de Informações. s/d = sem data. sic = assim mesmo, tal e qual, textualmente. sing. = singular. UEM = Universidade Eduardo Mondlane. vol. = volume.

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1. INTRODUÇÃO

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a) Generalidades

Fragmentado no bolor dos documentos, desfigurado pela ideologia de quem o registou, delido mas preso ainda à memória velha dos vivos, o passado pode ser interpelado mas nunca totalmente reavido pelo historiador. O passado é como uma garrafa que se tivesse partido em milhares de factos-cacos dos quais o historiador encontra alguns e com eles reconstrói urna vivência pela síntese e pela hipótese.

Esta obra, investigada e escrita de Julho a Setembro de 1982, é, ao mesmo tempo, uma síntese e uma hipótese: uma síntese, porque concentra uma totalidade como a arte militar moçambicana de um certo período, num quadro construído com alguns factos retirados, na sua grande maioria, das fontes estritas portuguesas; uma hipótese, porque as relações que estabelece entre esses factos podem não ter sido as primitivas e, se o foram, não são absolutamente evidentes e verificáveis (assim parafraseámos, neste último parágrafo, Pirenne, citado por Schaff, 1971:274).

Síntese e hipótese construídas a partir deste presente socialista em acto que é Moçambique, parte libertada da humanidade. Porque, reparai: podeis pegar no passado para o recordar com prazer ou para o amaldiçoar ou para, o que é mais frequente por sair da lógica dialéctica da vida, fazerdes ambas as coisas. Mas façais o que fizerdes, será sempre pelo que agora sois, em cada jornada, em cada momento desta rampa ascendente em espiral que só por ilusão é presente porque na realidade é futuro, será sempre por cada etapa e por cada minuto do vosso ir sendo, no ir sendo geral da humanidade, que avaliareis essa vossa parte de trás que é o passado (fixai: nada na vida é mais tradicional do que a mudança).

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Parafraseando Marx, defendemos que só através da mais desen-volvida e variada organização social da história humana— a socie-dade socialista — se torna possível entender, nas suas particularidades, nos seus limites e nos seus erros, as formas de vida desaparecidas sobre cujos escombros ela se edificou e continua a edificar-se (1857:234). Só pela mediação da unidade nacional, essa gesta que o Povo moçambicano iniciou em 1962 guiado pela FRELIMO, só nas gloriosas tradições da guerra popular anticolonial e anti-imperialista cuja génese se deu no Chai em 1964, só na luta permanente contra o imperialismo e seus aliados internos, apenas na batalha pela constru-ção de uma sociedade livre da exploração do homem pelo homem podemos, verdadeiramente, compreender os interesses de uma parte da nossa nobreza avoenga, as suas contradições, o carácter loca-lizado da resistência anticolonial que levou a cabo, as suas hesitações, a sua cooptação com o colonizador; também só com um superior desenvolvimento das forças produtivas e na posse de uma concepção científica da realidade, avenidas que se rasgam no nosso País porque condições de melhoria da vida material e espiritual do nosso Povo, estamos aptos a perceber por que no passado, como este livro mos-trará, laboriosas cerimónias mágicas precediam o início das guerras ou por que as vitórias militares eram atribuídas à força da magia ou por que se julgou poder vencer-se o colonizador com mezinhas mágicas.

É nesse contexto, uno e multímodo, que o passado se torna com-preensão dos limites históricos e superação, pelo julgamento e pela prática social, das insuficiências e dos erros das gerações passadas.

b) Tema

Os Portugueses fixaram-se no nosso País em 1505 e só em 1920 terminou a resistência armada anticolonial no período pré-FRELIMO. Qual foi, entre esses dois acontecimentos, a organização militar dos Moçambicanos? E por que perdemos nas lutas contra o colonizador? O tema deste livro é a tentativa de resposta a essas duas perguntas.

Não existe, ao que saibamos, na nossa historiografia ou na estran-geira, qualquer trabalho sistemático e alargado a todo o País versando a arte militar dos nossos antepassados. Existem, é verdade, na histo-riografia estrangeira não portuguesa, alguns trabalhos limitados às

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áreas geográfico-culturais (se é legítima a expressão) em que habitual-mente trabalham certos investigadores, como, por exemplo, Liesegang para o Sul (1975, 1979), Isaacman para o Centro (1976) e Alpers para o Norte (1975). Mas nenhum desses historiadores pretendeu escrever sobre a arte militar moçambicana como resultante simul-tânea de um determinado tipo de organização social e de um deter-minado tipo de meio físico.

Quem mais sistematicamente escreveu sobre a nossa arte militar foram, como é natural, os Portugueses, especialmente Botelho. A clás-sica obra deste general e historiador colonial, em dois volumes (1934, 1936), apesar de dedicada à arte militar portuguesa, contém, todavia, muita informação interessante sobre a nossa.

c) Fontes

Como referimos em a), o livro foi em grande parte elaborado com base nas fontes escritas portuguesas. Isso deveu-se essencialmente a duas razões: em primeiro lugar porque a antiguidade do período nos levou a excluir à partida a hipótese de utilizar com êxito as fontes orais; em segundo lugar porque, se bem existam crónicas e memó-rias de outros estrangeiros, algumas das quais usámos (por exemplo, Salt, 1814; Stucky, 1899, 1944), as fontes portuguesas pareceram-nos ser aquelas que possuíam uma informação mais sistematizada, justa-mente porque foi contra os Portugueses, enquanto colonizadores, que os nossos avoengos empregaram a sua arte militar.

É evidente que o recurso às fontes portuguesas nos trouxe al-gumas servidões, porque, por um lado, foi necessário descascar as descrições da ideologia que as enfaixava com diferentes níveis, tona-lidades e interesses; porque, por outro lado, nem sempre nos foi possível saber onde começava a verdade e terminava a opinião, a ignorância, o conhecimento de outiva, a deturpação ou a apologia.

Mas, no conjunto e após termos rejeitado algumas fontes mais controversas, as que empregámos contêm material que nos parece merecedor de crédito. De resto, seria estultícia esquecer que jamais o colonialismo português poderia ter sobrevivido tanto tempo se os Portugueses não tivessem aprendido, década após década, século após século, a conhecer (e, portanto, também a descrever) a nossa realidade, em particular as nossas insuficiências, para nos vencer,

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manietar e explorar. E isso foi especialmente evidente no campo militar, onde relatos antigos, elaborados sem objectivos militares específicos, e relatos mais modernos (sobretudo de meados do século passado em diante), feitos por oficiais e altos funcionários portugueses e objectivamente dedicados ao estudo da nossa realidade político--militar, se conjugaram para permitir não apenas a vitória colonial, mas também e sobretudo a reprodução do facto colonial.

d) Conclusões

As conclusões a que chegámos são basicamente duas: a) a arte militar moçambicana revestiu características diferentes no Norte, Centro e Sul porque em cada um desses blocos geo-sócio-militares foram diferentes a estrutura social e o meio físico; b) quatro foram as grandes causas da nossa derrota ante o colonizador: em primeiro lugar, as contradições etno-políticas; em segundo lugar, a inexistência de uma concepção de luta prolongada; em terceiro lugar, a carência de espingardas modernas e de artilharia; em quarto e último lugar, a falta de um sistema de abastecimento e transporte.

e) Limites

Os limites deste trabalho são modestos: não fizemos um estudo da evolução da arte militar moçambicana no passado, empresa que, por ora, excluímos, mas, antes, um inventário comentado dessa arte. Por essa razão, o título do livro não é «A história da...», mas «Para a história da ...».

f) Aspectos técnicos

O texto está bastante povoado de chamadas bibliográficas e de notas remissivas, sobretudo daquelas.

As primeiras contêm regra geral entre parêntesis: a) o apelido do autor; b) a data original ou da 1." edição ou da última edição da obra ou documento que o autor escreveu; c) a página ou as páginas onde colhemos a informação citada. O leitor só tem de recorrer à

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bibliografia colocada no fim deste livro (unidade 9), na qual os apeli-dos dos autores se encontram dispostos por ordem alfabética e com as datas subjacentes, e integrar-se da (s) referência (s) bibliográfica (s) completa (s). Mas, se por exemplo, escrevemos «Santos afirmou que...», esse apelido já não figura no texto entre parêntesis. Se junto à data estiver um algarismo romano (suponhamos: Santos, 1609, I...), isso quer dizer que usámos o primeiro tomo de uma obra que tem dois ou mais. Por outro lado, nos casos em que utilizámos no texto, o que foi frequente, a data original de um documento ou da l.a edição de um livro (tendo nós, porém, consultado a edição impressa daquele e uma edição posterior ou em língua portuguesa deste), essa data surge na bibliografia colocada entre parêntesis rectos por baixo do apelido.

As notas remissivas, com números ascendentes fechados por pa-rêntesis, remetem o leitor ou para o esclarecimento de um vocábulo ou para uma informação adicional. Tal como no caso das chamadas bibliográficas, o leitor só tem de ir ao fim do livro e procurar nas notas (unidade 8) o (s) número (s) correspondente (s) para ficar elu-cidado.

g) Tributos

Em todos os livros há tributos a prestar. Neste, há-os para o Manuel Araújo, geógrafo atento, com quem discutimos algumas ques-tões desta obra; para o António Sopa, talentoso historiador do Arquivo Histórico de Moçambique, que gastou algumas horas do seu descanso para nos ajudar na consulta de duas fontes; finalmente e em especial, para a Mabel, sem quem dificilmente este livro teria sido escrito, e para o Miguel César, que pintou o desenho da capa.

O autor

29 DE SETEMBRO DE 1982

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2. SOBRE A ESTRUTURA SOCIAL

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Antes da chegada dos povos de língua Bantu, viviam em Moçambique

hordas de caçadores-recolectores (Bosquímanos ou San) e, provavelmente, pequenas comunidades de pastores de bovinos e carneiros (Hotentotes ou Coi), identificados pelos Portugueses no extremo sul do continente em fins do século XV (Velho, 1497:4-8). Os «Hotentotes» utilizavam arcos e flechas e lanças de madeira (Oliveira, 1973:53) e os «Bosquímanos», que para a caça e para a guerra empregavam arcos e flechas com pontas ervadas em pedra ou osso (Botelho, 1934,1:105; Oliveira, 1975:87), embora alguns arqueólogos aventem que só usavam mocas (referido em Oliveira, 1975:17), deixaram um bocado da sua vida de caçadores e, aparentemente, das suas lutas com os povos de língua Bantu, nas pinturas rupestres que executaram, por exemplo, nos planaltos de Manica e Tete (Oliveira, 1975).

Desde há cerca de 1700 anos, por grupos sucessivos, foram chegando ao nosso País agricultores e pastores Bantu, conhecedores da metalurgia e da olaria (DH,1982,1:49), que expulsaram ou, ao que parece com maior frequência, incorporaram os anteriores ocupantes (Fagan, 1965:48; Oliveira, 1975:15-17 e 1973:53; Morais, 1978:4).

Por outro lado, porventura a partir do século IX da nossa era, se não mesmo antes, começaram a fixar-se na costa oriental de África em geral e na costa de Moçambique em particular, pequenos grupos de Árabes que, através do comércio e de casamentos sucessivos com mulheres locais, deram origem a núcleos linguísticos suailizados e a comunidades politicamente estruturadas (Machado, 1970; Hafkin, 1973). É provável que mercadores

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árabes ou afro-árabes («mouros», na documentação portuguesa) visitassem o planalto zimbabueano ou, mesmo, lá vivessem (Rego e Baxter, 1962, 1:400; Beach, 1980:107).

Lentamente, três grandes tipos de organização social se foram ordenando: a linhagem, agrupando parentes cuja descendência se fazia por via paterna ou materna, com reduzido excedente económico, ausência de classes sociais, chefia política descen-tralizada (assentando menos na autoridade formal do que na responsabilidade e na preservação dos grandes valores clânicos) e relações de aliança ou de antagonismo com outras linhagens; a chefatura, com um quadro territorial onde uma linhagem sénior, mais antiga, subordinava outras, uma incipiente rede tributária tomando possível um excedente económico maior do que o da linhagem, divisão em castas ou em classes sociais embrionárias e abarcamento das esferas comerciais pelos chefes; finalmente, o Estado, cujo aparelho servia agora uma aristocracia comandando não só parentes mas especialmente súbditos a quem tributava numa vasta extensão territorial, em geral conquistada manii mili-tari. Daí a existência, nos Estados de conquista (1-a), de um sobreproduto social considerável, tornando possível uma administração centralizada, uma equipa de funcionários especializados e um exército permanente ou semipermanente; daí, ainda, o monopólio do comércio pelos reis. A expansão territorial do Estado pôde, em alguns casos, dar origem à formação de um Império, com um Estado dominando outros Estados, chefaturas e linhagens (1-b).

A organização segmentar das linhagens, nomeadamente das matrilinhagens, revestiu particular intensidade no Norte. Aqui, onde, segundo Santos, o governo era de «pouco tráfego» e «as diferenças poucas» (1609, 1:254), cada aldeia tinha um chefe (mais medianeiro do que chefe) chamado muene ou m'fumo (2), que, no caso de um conflito armado, nomeava um «chefe de guerra» (Machado, 1970:188,365). Mas, provavelmente devido à invasão no século XVI de povos oriundos das vizinhanças do Xire (Alpers e Ehret, 1975:515-519), acompanhada da fixação de pequenos núcleos ou do investimento de chefias nos territórios conquistados (Machado, 1970:94), foram emergindo no mundo atomizado das linhagens e dos segmentos de linhagem «alguns reis grandes e poderosos» (Santos, 1609, 1:257). Nasce-

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ram, assim, pequenas chefaturas, particularmente no continente fronteiro à Ilha de Moçambique, cujos chefes procuravam reter, como intermediários, as rédeas do comércio entre o litoral e o interior. De Memba a Morna, nas ilhas e numa ou noutra enseada abrigada, términos das rotas comerciais que ao litoral traziam o ouro, o marfim, as peles, as pedras preciosas e os escravos, fixaram-se as sedes de pequenas chefaturas islamizadas (Qui-tangonha, Sancul, Sangage e Angoxe, para só citar as principais). Xeques e sultões, dispondo de laços marítimos permanentes com chefaturas do mesmo tipo na costa oriental até Mogadíscio, preo-cuparam-se menos com a hegemonia das terras do que com o se-nhorio do comércio, o qual asseguraram, entre outras, através de lideranças religiosas sobre os chefes e os decanos linhageiros do litoral e do interior (ver Hafkin, 1973; Machado, 1970; Lobato, 1971:18).

No Centro do País, a sul e a norte do rio Zambeze (corredor estratégico para o trânsito das mercadorias apesar das dificuldades de navegação), constituiram-se poderosos Estados de conquista, como, por exemplo, Muenemutapua (3-a) a sul e Undi a norte, tendo o primeiro conseguido formar um extenso Império que se desmoronou, porém, nos fins do século XV ou nos princípios do século XVI (ver Silveira, 1518:538; Santos, 1609, 1:198-201, 219-223; Almeida, 1648:195; Randles, 1975:23--38; Langworthy, 1969). No que foi o Império do Muenemutapua, um dos processos que a aristocracia utilizava para testar a lealdade vassálica consistia no seguinte: todos os anos, segundo Barbosa, as comunidades recebiam a visita de mensageiros especiais («homens honrados», lhes chamou o cronista) transportando fogo régio e, à sua passagem, todos os fogos locais deviam ser apagados e reacendidos com aquele, porque «o lugar que assim o não quer fazer é acusado ante o rei por alevantado, e o rei manda logo seu capitão sobre ele que sempre para isso o traz ordenado, e os vai destruir, ou meter debaixo do mandado do rei, e por onde quer que vai há-de comer com toda a sua gente à custa dos lugares por onde quer que vão» (1518:362) (3-b).

No Sul, quer em Inhambane quer na baía do Maputo, entre as linhagens nasceram pequenas chefaturas, como Tinga Tinga, Inhamussa, Chamba, etc, em Inhambane e, aparentemente de

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maior nomeada, Nhaca, Tembe, M'fumo, Matola, Magaia, etc, na baía do Maputo. Aqui, os chefes, grandes proprietários de bovinos, guerreavam-se com frequência para açambarcar o comércio de marfim com os mercadores estrangeiros (Soares, 1730; Tereza, 1784; Smith, 1970).

Os contornos de todos os fenómenos que acabámos de relatar estavam em parte completados quando os Portugueses se fixaram no nosso País em 1505, construindo uma feitoria-fortaleza no litoral de Sofala cuja tranqueira estava já pronta em Outubro desse ano (Lobato, 1962:9,34). Trouxe-os sobretudo a mira do ouro e enquadrou-os o que Marx chamou o período da «acumulação primitiva de capital» (veja DH, 1982, 1:135-138, 141-142). Até 1530, grosso modo, estiveram em Sofala disputando aos Árabes e Afro-Árabes o abarcamento dos fluxos de ouro e marfim do interior (Lobato, 1962:10-11; Costa, 1977:20-21), utilizando inicialmente, no granjeio dos parceiros comerciais do sertão, intermediários afro-árabes e, depois, mas já em 1506, africanos locais, catequizados pelos padres católicos de Sofala, a que davam o nome de «línguas» (o mesmo que tradutores ou intérpretes) (Anhaia, 1506-a:382; Rego e Baxter, 1962-b:386). Data de 1506 o que parece ser a primeira notícia sistemática de presentes ou saguates dados a «uma rainha cafre mulher de um rei cafre que confina com a terra dos cafres (terra do Muenemutapua, talvez, C. S.)», consistindo os presentes numa camisa branca de algodão, num ramal de corais, noutro de «alanbares» (alarmares?), em três ramais de contas de estanho, numa «bacia de barbeiro» e «outra bacia de mijar» (sic) (Anhaia, 1506-b:384).

Entretanto, enquanto já grossas disputas irrompiam no sertão por cada rei pretender assegurar só para si o resgate com a feitoria portuguesa de Sofala (Silveira, 1518:568), os Árabes e Afro-Árabes sabotavam a canalização do ouro para a feitoria, desviando-o pelo Zambeze em direcção a Angoxe. Os Portugueses decidiram, então, penetrar no vale do Zambeze e garantir o controlo das próprias fontes produtoras. É nesse contexto que nasceram Sena, dando acesso a Manica e Tete, pela qual, através dos rios Mazoe e Luenha, afluentes do Zambeze, se atingia o planalto zimbabueano. Foi igualmente nesse contexto que tiveram início e se desenvolveram as primeiras grandes perturbações sociais nos Estados do interior, com o Muenemutapua queixando-

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-se de que «muitos que são mineiros para se isentarem dos seus encosses (chefes, C. S.), se acolhem aos ditos mercadores. E nesse particular há tão grande excesso que mais são os que servem do que tratam de seus ofícios» («Manomotapa», 1645), enquanto o rei do Quiteve, atribulado nas suas terras de Manica, «tem posto preceito aos seus, (para, C. S.) que não tirem ouro, e que cultivem, e semeiem muito mantimento que deste modo serão mais ricos, e terão mais paz e quietação» (Almeida, 1648: 193). Quer dizer: a aristocracia, que criara uma dependência estrutural em relação às mercadorias trazidas pelos estrangeiros dada a sua «função de bens de prestígio na estruturação e manutenção das relações de poder» (Costa, 1977:25-26), mercadorias--bens de prestígio que só podia adquirir em troca do ouro que obrigava os súbditos a extrair, via-se agora confrontada com o desmoronamento dramático das relações sociais de produção dos Estados que governava, motivo por que as procurou com desespero repor, mandando fechar, especialmente na segunda metade do século XVII, as minas que se tinham tornado os pilares da sua grandeza, a tal ponto que no Muenemutapua «(...) os delitos de traidor e feiticeiro que eram os maiores, são hoje inferiores ao de descobrir uma Mina, porque aqueles castigam-nos nos Autores, e passa o castigo deste a filhos e parentes. Chegando a coisa a extremo que basta sonhar-se numa terra pode nela (por nela haver, C. S.) uma Mina, para amanhecer despovoada. Mas já todos se livram do receio porque todo o Reino está como deserto. Quando digo está o Reino despovoado, entendo aquelas partes em que assistem Portugueses» (Anónimo, 1683).

Entretanto, os Portugueses iam fundando outras feitorias--fortalezas na costa de Moçambique, sempre disputando aos Árabes e Afro-Árabes, como o fizeram em Sofala (como o fizeram, enfim, de Inhambane ao Rovuma e, daqui para cima, tentaram fazer em Quíloa e Mombaça), o exclusivo da permuta com os mercadores africanos: nasceram, assim, Ibo, Ilha de Moçambique, Quelimane, Inhambane e Lourenço Marques ou, o que talvez seja mais correcto, «nasceram» sob domínio português, pois que, enquanto povoados, exceptuando talvez Lourenço Marques, já existiam sob domínio árabe ou afro-árabe. Fabulosas fortunas eram acumuladas em poucos anos, indo os novos-ricos viver depois na índia ou em Portugal. É isso que explica, na opinião

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de Costa, a verdadeira «caça aos cargos» de direcção das feitorias--fortalezas por parte da fidalguia portuguesa (1977:30-31), porque, como escreveu Mondaras citado por Lobato, «100 cruzados rendiam 3000» (1962:79) (3-c).

Em 1687 chegavam a Moçambique os primeiros mercadores indianos, ao abrigo de uma companhia comercial fundada em Diu sob patrocínio do vice-rei português da índia (esta era, na realidade, a verdadeira «metrópole mercantil» de Moçambique) (Serra, 1978:3 et seq.)- Começaram por se fixar na Ilha de Moçambique e, dia após dia, década após década, foram-se fazendo senhores de quase todo o trato a grosso e a retalho da costa e do interior. Depois de 1687, como notou Albuquerque, «(...) foram nos anos sucessivos, vindo mais e mais Baneanes, à proporção do aumento que a sua negociação foi tendo, porquanto enriquecidos, vieram muitos outros delegados da Companhia, acompanhados cada um deles, de dez ou doze outros Baneanes, a título de criados e cozinheiros e assim se tem ido sucedendo, de forma, que se não demoram aqui mais tempo que aquele que justamente lhes é preciso para se enriquecerem (...)■ Aqueles criados e cozinheiros ao abrigo de outros Baneanes a quem chamavam os seus grandes, ficavam ao depois na administração de Casas de Comércio, que os denominados Grandes deixavam estabelecidas quando se tiravam (retiravam, C. S.)» (veja Serra, 1978:4).

E enquanto os moradores portugueses, já dependentes dos Indianos para o suprimento dos tecidos da rica indústria têxtil indiana de Surrate a Cambaia, os perseguiam no entanto com fúria, chegando Miranda, entre outros, a propor drasticamente em 1766 que «Para evitar tão graves danos devia haver deles uma extinção geral (...)» (1766:63), embora as perseguições nem sempre lhes saíssem vitoriosas (e, a longo prazo, não sairam) pois os mercadores indianos compravam os governadores portugueses com ouro e patacas (Serra, 1978:5) (3-d), enquanto essa meandrosa luta pela hegemonia comercial se desenrolava no litoral, escrevíamos, no sertão da província de Nampula, por exemplo, amplificavam-se as rivalidades entre os chefes, cada um procurando tornar exclusivo seu o comércio com os mercadores estrangeiros e por isso Xavier observava em 1758 que os «Mujavos» (Ajaua ou Jauá) «(...) não podem vir à praia

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com o seu Marfim, sem (...) passarem pelas terras deles (Macua, C. S.), e (...) o ano passado estiveram os Macuas com os Mujavos desconcordados, não puderam estes vir às nossas terras, e por este respeito experimentou esta terra, e por consequência a Fazenda de Sua Majestade irremediável prejuízo (...)» (1758: 184; veja, ainda. Serra, 1978; DH, 1982, 1:89-95).

No Sul, em particular na baía do Maputo, os mercadores portugueses disputavam aos Ingleses e Holandeses o monopólio das trocas com os chefes locais, enquanto estes endureciam as medições de força, em surdo faz e desfaz de hegemonias, na porfia de quem fornecia mais pontas de elefante, rinoceronte e cavalo-marinho para receber o maior quinhão de tecidos indianos, de missanga e de lingotes de latão e cobre dos estrangeiros (DH, 1982, l:98).

Quando, de fenómeno em fenómeno, de troca em troca, de consequência em consequência, na segunda metade do século XVIII a escravatura se tornou a mais rendosa actividade comercial de Moçambique, procurando os estrangeiros agora já não tanto o ouro e o marfim mas quem produzia o ouro e o marfim, a mercadoria-produtor (DH, 1982,1:99-106), o xadrez político nortenho sofreu uma transformação: aos velhos decanos linhageiros sobrepuseram-se, em muitas áreas, em crescente número, os grandes chefes escravistas — caravaneiros. Viviam aqueles do zelo com que faziam respeitar os ancestrais valores do niimo (clã) e estes da força e do número de espingardas com as quais, em fulminantes incursões ao sertão, capturavam e traziam à costa safras de escravos acorrentados para trocarem por mais espin-gardas, tecidos, missanga e bugigangas diversas. Aos limites aca-nhados e parentais das famílias extensas sucederam-se os tumul-tuosos, mas tantas vezes efémeros, espaços políticos das chefaturas militares, cujas fronteiras eram demarcadas pelas es-pingardas, pela envergadura do saque e pelo prestígio dos caudilhos (Machado, 1970:363-364). Foram célebres, entre outras, as chefaturas de Matarica, Mataca, Muembe e Matipuire no Niassa; Chaca, Meto e Eráti em Nampula e Cabo Delgado; e, na Alta Zambézia, Namarrói e Guruè. Na costa, Angoxe transformou-se num «império comercial» cuja oligarquia subordinava 130 chefes em 1864 e punha em campo um exército estimado, decerto com exagero, em 35 mil guerreiros. Para manterem o comércio

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de escravos e sobreviverem à ocupação militar portuguesa iniciada em fins do século passado, alguns chefes organizaram confederações guerreiras, entre as quais se salientou a dos IMa-marrals (ver Machado, 1970; Hafkin, 1973; Alpers, 1969; Durão, 1902).

No vale do Zambeze, o período da escravatura foi assinalado pelo surgimento de poderosos Estados dominados por oligarquias familiares de Amuanamuzungo, «(...) mulatos, filhos da terra, que sabiam a língua» (Bocarro, 1635:583), tendo Barreto explicado no século XVII que «Vale a palavra Mozungos o mesmo que senhores, donde derivam a palavra Manumuzungos, que assim chamam os filhos de qualquer nação misturados com o sangue de Cafres, e monta tanto como filhos dos Senhores» (1667:442). Seus pais eram Portugueses, normalmente condenados a penas de degredo perpétuo em África, de que algumas centenas, em regra homiziados, viviam no sertão já em 1530 (Silveira, 1518: 570; Lobato, 1962:79) c Indianos de Goa, a quem os Portugueses chamavam Canarins ou Patrícios (veja Miranda, 1766:62); suas mães, muitas vezes filhas de reis e príncipes locais (Isaacman, 1976:68). Esses potentados mantiveram as instituições africanas, incluindo os chefes (Isaacman, 1969:154-161; 1976:66-67), fizeram-se senhores de poderosos exércitos de guerreiros-cativos munidos de espingardas e de artilharia (Subserra, 1853:293-294; Isaacman, 1976:62) e transformaram literalmente o vale do Zambeze num centro «produtor» e escoador de milhares de escravos destinados às ilhas francesas do Índico e às Américas. Dois dos mais importantes Estados geridos pelos Amuanamuzungo foram os de Massangano e Macanga (Newitt, 1973:220-223, 234-340).

Por outro lado, como consequência de extensos movimentos migratórios que se registaram nos princípios do século XIX na região sul-africana do Natal, no que ficou conhecido por mfecane ou (em Sotho) lifaqane (veja Omer-Cooper, 1966) formou-se em 1821, no sul de Moçambique, o Estado de Gaza (Liesegang, 1979:2), cuja aristocracia, através de uma poderosa organização política, administrativa e militar, conseguiu ao mesmo tempo fundar um vasto Império que se estendeu do Zambeze ao Incomáti (Toscano e Quintinha, 1935, 1:43-47; Liesegang, 1979; DH, 1982, 1:109-117).

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Quando se atingiu o terceiro quartel do século passado, o nosso País apresentava a seguinte morfologia política: um Norte na sua maioria plasmado nas pequenas comunidades linhageiras, cujos vínculos eram mais parentais do que territoriais, temporariamente unificadas por grandes caudilhos sobretudo a partir da segunda metade do século XVIII; um Centro onde a derrocada do Império do Muenemutapua levou à proliferação de inúmeras linhagens, chefaturas e Estados independentes (Santos, 1609, 1:198--201, 219-223), aos quais se juntaram, entre fins do século XVIII e princípios do século XIX, os Estados escravistas sob domínio dos Amuanamuzungo. Esta a área que apresentou, estamos em crer, maior diversidade de perfis políticos; finalmente, um Sul caracterizado até 1820 pela existência de muitas linhagens e chefaturas que a formação do Estado de Gaza unificou num pode-roso e militarizado Império.

Por outras palavras: caminhar de Norte para Sul era um bocado como caminhar do mais simples e fragmentado para o mais com-plexo e centralizado, sendo o Centro uma concessão a ambos.

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3. SOBRE A GEOGRAFIA FÍSICA

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Consideraremos, nesta rubrica, quatro aspectos: o relevo, o clima, os rios e a vegetação.

0 nosso País tem quatro zonas de altitude: (A) Planície costeira até 200 metros de altitude (44 por cento do

território), ocupando quase toda a região a sul do rio Save e estreitando-se, gradualmente, do Save ao rio Rovuma.

(B) Planaltos médios, entre 200 e 600 metros de altitude (17 por cento do território), estabelecendo a transição entre a planície e as zonas mais altas. A maior parte dos planaltos médios situa-se nas províncias de Niassa (Marrupa), Cabo Delgado (planalto de Mueda) e Nampula, possuindo mais fraca representação na Zambézia (Alto Molócúè, partes do Guruè e de Milange), sendo um pouco mais extensa a sua localização nas províncias de Tete (Zumbo, Mutarara), Manica (escarpas de Ma-nica) e Sofala (planalto de Cheringoma, Chemba) e marcando fraquíssima presença a sul do rio Save (Libombos e algumas formações dunares do interior de Inhambane que não vão além de 270 metros de altitude).

(C) Alti-planaltos, entre 600 e 1000 metros de altitude (26 por cento do território). A sua maior representação ocorre nas províncias de Niassa (Maniamba), Nampula (Malema, Ribáuè), Tete (Marávia) e Manica (do norte do Mossurize ao Báruè). Na Zambézia, os alti-planaltos são mais retalhados, formando os contrafortes de Milange, Morrumbala, Guruè e Namulia. A sul do Save existem alguns retalhos nos pontos mais altos dos Libombos, cujo climax se atinge no monte MTonduine (805 metros), a norte da Namaacha.

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(D) Montanhas, de altitude superior a 1000 metros (13 por cento do território, dos quais um quinto acima de 1400 metros), constituindo retalhos especialmente nas províncias de Niassa (Maniamba e Lichinga), Nampula (Ribáuè), Tete (Angónia e Macanga), Zambézia (Milange e Guruè), Manica (Manica e Mossurize) e Sofala (Gorongosa) (SCCI, 1973:15-16; Araú:o, 1975: 12-13; Spence, 1965:21-22; Gouveia, 1954:29-41; DA, 1933:10).

É possível afirmar que entre um Norte essencialmente planáltico e um Sul quase plano, o Centro representa um misto de ambos.

Por outro lado, três climas diferentes podem ser considerados: o do Norte, influenciado pelos ventos de monção, com temperatura média anual de 25,5° (descendo com a altitude) e média anual de chuvas de 1000 mm; o do Centro, abrangendo grosso modo as províncias de Manica, Sofala (partes setentrionais de ambas), Tete e Zambézia, com as características meteorológicas mais variadas do País (devido à maior profundidade do continente e variedade do relevo), temperatura média anual de 24,5° nas terras baixas do litoral (diminuindo com a altitude) e queda de chuvas superior à do Norte e Sul, devido à associação das chuvas de monção, típicas do Norte, com as chuvas ciclónicas do Sul (1400 mm de valor médio no litoral, diminuindo com a distância à costa e aumentando com a altitude); finalmente, o clima do Sul, com regime meteorológico anti-ciclónico e de depressão, temperatura média anual de 22,5° (diminuindo com a altitude) e média anual de chuvas de 780 mm, diminuindo do interior para a costa desde 1000 a 600 mm (DA, 1933:21-25; SCCI, 1973:12-13).

A rede hidrográfica do País é extensa e complexa, correndo os rios geralmente de oeste para leste, para desaguarem no Oceano Índico. A orientação dos rios deve-se ao facto de as encostas do relevo se inclinarem justamente na direcção daquele oceano. Há mais rios do Save para norte. Na época das chuvas muitos deles tornam-se torrenciais nas regiões acidentadas e transbordam dos leitos quando correm em planície (DA, 1933: 10,21; Gouveia, 1954:63-78; SCCI, 1973:11-12; Araújo, 1975: 15-20).

O revestimento florestal é também complexo, não sendo fácil sintetizar os seus aspectos fisionómicos. A quase totalidade do País é coberta por associações mistas de floresta aberta com savanas e estepes (Brito, 1965:24; Guerreiro, 1965:46-48; SCCI,

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1973:19). Contudo, a vegetação lenhosa toma-se mais acentuada, quer no porte quer na densidade, à medida que se caminha para norte. A floresta aberta e a savana-bosque estão especialmente representadas nas províncias de Niassa, Cabo Delgado, Nampula e Zambézia; a savana arborizada, a savana arbustiva ou mista arbóreo-arbustiva e a savana herbosa localizam-se sobretudo nas províncias de Maputo, Gaza e Inhambane. As manchas de galeria florestal e os mangais ocupam uma relativa pequena parte do território, encontrando-se a primeira nas margens dos rios e nos vales abrigados e os segundos ao longo dos estuários dos rios (até onde chega a água salgada) (Lupi, 1906:237-242; Sousa, 1930 (28-35) e 1932 (13-20); DA, 1931:18-22; Botelho, 1936, 11:518; Machado, 1970:44-50, 467; Sautter, 1970:29; SCCI, 1973: 19).

Note-se, contudo, que o relevo, o clima, os rios e a vegetação não são imutáveis. Por exemplo, factores bióticos como as quei-madas e as derrubas alteraram e continuam a alterar considera-velmente a vegetação, a qual era muito mais abundante e fechada no passado. Dificilmente as formações primitivas são hoje encon-tráveis no País (4).

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4. SOBRE AS CAUSAS DAS GUERRAS

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Escrever sobre as causas das guerras que no passado se travaram em Moçambique não foi o objectivo desta obra e, se o tivesse sido, teríamos ocupado o dobro ou o triplo do espaço.

Mas julgamos que algumas breves considerações podem ser adiantadas.

É possível distinguir as guerras entre Moçambicanos das que opuseram estes aos Portugueses, embora seja difícil criar uma fronteira absoluta entre elas.

Várias foram as causas das guerras entre linhagens, chefaturas e Estados locais: defesa ou procura de terras mais férteis e das melhores áreas de caça, pressões de grupos recém-chegados, vinganças de sangue, punição de ultrajes, lutas inter-dinastias e inter-chefes pelo poder e/ou pelo controlo das minas de ouro, das coutadas de elefantes, das reservas de escravos e rotas comerciais, lutas entre chefes e súbditos, etc.

A penetração portuguesa a partir do século XVI acelerou, directa ou indirectamente, as lutas entre as diversas unidades políticas. Quantos, por exemplo, não morreram e não abandonaram a nossa Pátria, fugidos ou levados de barco para longe, para as Mascarenhas, para Zanzibar, Arábia, Portugal, índia, Américas, quando a escravatura se instalou entre nós e os diversos reis e pequenos chefes se passaram a combater com as armas fornecidas pelos negreiros na compita pelas maiores safras de escravos a levar à costa? Quantos livros e quantos dramas se não poderiam escrever e descrever por causa das disputas pelas capulanas, os espelhos, o álcool, as manilhas, os pentes e as missangas trazidas pelos mercadores, vorazes e felizes porque

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a ingenuidade «desta gente é tanta que dá ouro por vidro e por pano de estopa» (Gonçalo, 1559: 420)? Por exemplo, já nos primórdios da fixação portuguesa em Moçambique, o Muenemutapua e o Inhamunda, rei de Sofala, futuro rei do Quiteve e, segundo Silveira, antigo escravo do primeiro, se degladiavam porque, de acordo ainda com Silveira, referindo-se a Sofala em carta escrita ao vice-rei português da índia,

(...) a guerra toda entre eles não é senão sobre quem casará com a fortaleza e a terá à sua mão porque o Menamotapa não pede mandar a ela senão pelas terras do Ynhamude e este não quer deixar passar os mercadores daquele e manda-os matar e roubar e porque sabe que sem esta fazenda (capulanas, C. S.) não pode Menamotapa ter gente nem fazer-lhe a guerra (...) (1518:568).

Nas lutas entre Moçambicanos e Portugueses, duas grandes causas podem ser indicadas:

a) A própria penetração mercantil portuguesa, de que um dos efeitos descrevemos em epígrafe, traduzida quer nas tentativas dos Portugueses para se furtarem ao pagamento das taxas costumeiras de trânsito pelos territórios ou aos saguates de estilo (Bocarro, 1635:564-565; Lobato, 1962:78-79); quer na sua política preferencial de ajuda militar ou de permuta, favorecendo uns em detrimento de outros, o que assaz lhes convinha (Anónimo, 1784:102; Mártires, 1822:143-144); quer porque, boicotando no ex--Império do Muenemutapua o monopólio dos reis, instaram os camponeses, fornecendo-lhes capulanas, a comercializar o ouro directamente com eles, do que resultou, por um lado, deixarem os camponeses de produzir e abandonarem, segundo Almeida, os «seus costumes» (1648:192-193) e, por outro lado, ficar a nobreza ressentida, porque, como afirmou um nobre citado por Almeida, o «fato» (um dos designativos portugueses de outrora para capulanas) devia ser-lhe fornecido «na sua própria mão, que ele o mandaria dar aos que tivesse para pagar» (1648:193); quer pelas depredações levadas a cabo pelos comerciantes que tinham obtido terras e exércitos de cativos, bem como pelos seus sucessores, filhos mistos de Portugueses e/ou Indianos e de mulheres africanas locais («Manomotapa», 1635; Barreto, 1667: 452-454; Isaacman, 1976:27-54; Newitt, 1973:234-340); quer.

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ainda e sobretudo, pelas sequelas do comércio de escravos (Anónimo, 1784:95-96), no qual, contudo, se envolveu uma parte considerável do patriciado local.

b) A penetração combinada, militar e territorial-capitalista, ocorrida do fim do século passado em diante, a qual representou não apenas a perda da independência política para cada comuni-dade, cheíatura e Estado, mas também a imposição de regras sociais que, inerentes ao novo modo de produção a implantar pelo grande capital internacional, questionaram ao mesmo tempo o(s) modo(s) de produção pré-capitalista(s) e o poder dos reis e dos pequenos nobres (ver DH, 1982, II). Todo esse fenómeno, ao nível, por exemplo, das companhias que surgiram no País, foi traduzido numa alegoria chã por um «sapanda», coadjutor de um «inhacuacua» (chefe), quando, dirigindo-se a um «secretário dos Negócios Indígenas» que foi em 1908 ao vale do Zambeze ins-peccionar as causas da emigração dos camponeses, disse:

(...) antes de virem as companhias tinha as barbas pretas, vieram elas e tornaram-se brancas (...) (Branco, 1909:219).

Foi especialmente a partir da segunda causa que o nosso Povo identificou o agressor como um verdadeiro inimigo, portador que era de uma nova ordem económica e política, estrangeira e opressiva.

Mas, porque tudo na vida incuba um contrário ou arrosta obstáculos, a estreiteza histórica do(s) modo(s) de produção pré-capitalista(s), subordinando o homem às circunstâncias em lugar de o elevar, notou-o Marx, a seu soberano (1853:47), fez com que o inimigo fosse globalmente percebido e combatido apenas enquanto agressor localizado, afectando — como lapidarmente observou Mondlane — só esta ou aquela comunidade neste ou naquele «preciso momento» (1977:108). Ao mesmo tempo, muitos príncipes locais, em regra os de menor nomeada, minados por querelas que o comércio estrangeiro amplificara e institucionalizara década após década, julgaram ver no inimigo um «padrinho», um trunfo que os auxiliaria a manter senhorios políticos ou comerciais que outros ameaçavam, a recuperar antigos privilégios ou, ainda, a obter lideranças que anteriormente não possuíam. Daí que se tivessem aliado com o agressor, transformando em derrota global, na estrada mista da ilusão e da ambição, o que

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houveram por vitórias sobre os competidores. Como noutro contexto, mas não menor universalidade, escreveu um dia Ma-quiavel, florentino que os déspotas — diz-se — tanto leram na história, «(...) quando o inimigo se aproxima de uma cidade mergulhada em discórdia, ela pode-se considerar perdida, pois os mais fracos unir-se-ão de boa vontade ao inimigo atacante e o outro partido não poderá defender a cidade sozinho» (1515: 112).

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5. SOBRE A ARTE MILITAR

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Introduzimos cinco secções na descrição da arte militar mo-

çambicana: a) equipamento, b) organização e técnica de combate, c) aprendizagem e treino, d) amplitude das operações e e) mecanismos de activação.

A descrição foi desdobrada por três grandes blocos geo-sócio-militares: a) Norte, do rio Rovuma ao vale do Zambeze, b) Centro, do vale do Zambeze ao rio Save e c) Sul, do rio Save ao rio Maputo.

Não somos especialistas militares, mas apenas historiadores. Por isso as secções por que dividimos a descrição da arte militar moçambicana talvez estejam incompletas e sejam, mesmo, inadequadas.A própria ordem pode não ser a mais indicada.

Surgiu-nos, ainda, o problema de saber se devíamos escrever «arte militar», «ciência militar» ou, ainda, «arte e ciência militares». Optámos, em função do período histórico aqui abordado, por escrever «arte militar» e por adoptar o que Clausewitz chamou a definição estrita da arte militar: «No seu sentido mais estrito a arte da guerra é (...) a arte de saber servir-se, no combate, de determinados meios; arte esta cuja mais adequada denominação é a direcção ou condução da guerra» (1832:116; grifo no original).

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Vemos (...), em primeiro lugar, que em todas as cir-

cunstâncias há que considerar a guerra como um instru- mento político e não como algo independente; só deste ponto de vista se pode evitar entrar em contradição com toda a história da guerra. Em segundo lugar, este mesmo ponto de vista mostra-nos o muito que diferem as guerras, conforme a natureza dos seus motivos e das circunstâncias que as engendram. ....................... ............. Clausewitz, 1832:43

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5.1. NORTE

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EQUIPAMENTO

5.1.1.

Em 1609,, Santos escreveu que nas terras correndo ao longo do rio «Loranga» (provavelmente o Macuse, C.S.)„ área de Quelimane, as armas usadas eram arcos, flechas e azagaias (1609, 1:255).

Arcos, flechas, azagaias e machadinhas foram, em 1850, as-sinaladas por Gamito ao referir-se também a Quelimane (1850:50).

Na Alta Zambézia, em 1902, Stucky identificou lanças (com cabo longo para arremesso), azagaias (de cabo curto para luta corpo-a-corpo), arcos e espingardas (1944:45). Na mesma data, Durão noticiava a utilização considerável de espingardas em Milange (1902:11, 16-17).

Ainda na Zambézia, mais propriamente na antiga circunscrição de Moebase (hoje distrito de Pebane), em «tempos antigos» os guerreiros serviam-se de mocas com saliências («soti»), de azagaias e de catanas, tendo, posteriormente, incorporado a espingarda. Não utilizavam arcos e flechas, escudos ou fortificações como as da Maganja da Costa ou as do vale do Zambeze (Pires, 1922:151).

Para a actual província de Nampula, um autor anónimo assi-nalava em 1784 que as armas consistiam em lanças de arremesso (levando cada guerreiro quantas podia, embora sempre reservasse uma para se defender), bem como em espingardas «que lhes vendem os portugueses à surdina e nelas se acham bem destros» (1784:94), uso que Miranda já em 1766 noticiava para a caça ao elefante (1766:57).

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Anos depois, o viajante inglês Salt, que visitou Moçambique em 1809, referia pelejarem os guerreiros da província de Nampula com lanças, dardos (5), setas envenenadas e espingardas, possuindo destas um «considerável número» que recebiam dos Árabes e dos Portugueses. De acordo com Salt, os habitantes constituíam «uma espécie de povo mui valente e de formas musculares robustas e atléticas» (1814, 1:20-21).

Sobre Angoxe, ainda na mesma província, Lupi mencionava em trabalho datado de 1907 a existência de muitas espingardas, mas todas de carregar pela boca e, na sua maior parte, de pederneira. Fazia-se um consumo muito grande de pólvora, gastando-se, por cada tiro, dois decilitros e meio (1907:104). Contudo, um documento citado por Borges, indica que Mussa Momad Saibo («Mussa Quanto»), sultão de Angoxe, chegou a dispor de um exército armado com mais de seis mil espingardas automáticas (1980), número que nos parece, contudo, exagerado. Seja como for, a espingarda parece-nos ter sido muito mais utilizada no Norte do que em qualquer dos outros dois blocos geo--histórico-militares por que dividimos a descrição da arte militar moçambicana. Por exemplo, após as operações militares realizadas no Norte em 1912-1913, os Portugueses recolheram «dezenas de milhar de espingardas» (Botelho, 1936, 11:618).

Em Cabo Delgado, o arco, a flecha, o machado e, às vezes, a faca comprida ou uma moca de madeira dura e pesada, devem ter sido as armas primitivas. Depois, o armamento foi melhorado com a introdução da lança, do escudo e da espingarda. A lança e o escudo foram provavelmente incorporados após as razias feitas ao longo do vale do Rovuma pelos Maguanguara, uma fracção dos Nguni(6) que, tendo atravessado o rio Zambeze nos anos 30 do século passado, se estabeleceu em Songea e Lindi, na Tanzânia. Adquirida com a pólvora geralmente em Mocímboa da Praia, em troca de borracha, a espingarda tornou-se em Cabo Delgado, no fim do século passado, a principal arma de ataque e defesa (Dias, 1964, l:94, 98, 137; Dias & Dias, 1970, 111:321).

Como equipamento defensivo, importa ainda considerar a utilização de fortificações, uma prática que foi muito corrente no vale do Zambeze, como veremos mais à frente, mas que também existiu em algumas áreas do Norte. Supomos ter sido Santos o primeiro a fazer-lhes alusão, quando observou que, na

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costa, entre Quelimane e Angoxe, existiam no século XVII aldeias cercadas com tranqueiras, «grossos espinhos» e portas de alçapão, bem protegidas pela floresta (Gomes, 1648:167). Fortificações especiais, as aringas, tão típicas do vale do Zambeze, foram usadas pela aristocracia de Angoxe, segundo Botelho (1936, 11:164), Machado (1970:438, 447), Newitt (1973:288) e Hafkin (1973:369). Mas Santos (1609,1 e II), Lupi (1907) e Amorim (1910) não fizeram qualquer referência à utilização de aringas em Angoxe ou no Norte em geral.

Na Zambézia construiram-se ora fortificações muito simples, «sanzoros» (Stucky, 1899, ll:76), ora outras mais complexas, as «aringas», estas últimas especialmente na Maganja da Costa. Aqui, em meados do século passado, dois Portugueses fundaram o Estado da Maganja, cujo controlo, após a morte de ambos, passou para os comandantes militares africanos, que prosseguiram o que os fundadores tinham desenvolvido: o comércio de marfim e, sobretudo, o de escravos. Doze distritos de recrutamento deviam, cada um, fornecer mil homens ao exército. Dividia-se este, também, em doze regimentos («ensacas») comandados por «cazembes» e armados com espingardas e artilharia (dispuseram pelo menos de 14 bocas de fogo, umas de bronze e outras de ferro). A aringa-sede, provavelmente a maior que se construiu no País, foi erguida muito perto da sede administrativa da Maganja e consistia de uma sebe fechada por árvores de bom porte. Com acesso fácil à água, albergou mil casas e espaço para 20 mil guerreiros acamparem (Botelho, 1936, 11:557-562; Newitt, 1973: 286-294).

Mais para norte, em Cabo Delgado, protegidas pela vegetação cerrada, frequentemente espinhosa, e pelas escarpas alcantiladas a norte, sul e oeste do planalto de Mueda, em cujo topo em geral viviam, as comunidades aldeãs reforçavam essa defesa natural construindo as aldeias nos locais mais densos do mato e cercando-as com fortes paliçadas cujas portas de entrada trancavam todas as noites. Citado por Dias, 0'Neill afirmou ter visto em 1882, a norte de Nangade, aldeias escudadas por cercas herméticas de árvores e arbustos espinhosos cuja espessura variava entre 20 e 24 metros, sendo quase impossível franqueá-las. Além disso, os aldeões abriam covas no mato, ao fundo das quais colocavam estacas ponteagudas, disfarçadas com ramos e capim,

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e transformavam os carreiros de acesso às aldeias em autênticos labirintos onde os estranhos invariavelmente se perdiam. A Com-panhia do Niassa desistiu pura e simplesmente de ocupar o planalto, tendo os habitantes deste sido apodados de «criaturas corpulentas, guerreiras por educação, (...) aguerridos e traiçoeiros». Só em 1917 os Portugueses conseguiram o domínio da área (ver Dias, 1964, 1:82-83, 92-93; Dias & Dias, 1970, lll:295, 300, 323).

Um outro tipo de equipamento se usou no Norte: o de galva-nização. Por exemplo, uma fonte de 1822 mencionou o uso de cornetas(7), assobios» (apitos?) e tambores (Mártires, 1822: 157).

Em Angoxe, a convocatória para a guerra fazia-se através de sopro no chifre de palapala (sinónimo: palave) ou de etata (sinónimos: cudo, namegoma) (Machado, 1970:364) (8).

Em Pebane os tambores não só chamavam os guerreiros, como os acompanhavam nas operações militares, tocando em todas as paragens que aqueles efectuavam para, segundo Pires, «não deixar arrefecer a coragem» (1922.151) (9).

Finalmente, tudo leva a crer que não existiu no Norte um traje formal de guerra, como ocorreu no Sul. Na província de Nampula os guerreiros pintavam-se ou — como escreveu o cronista— punham «algumas divisas para se conhecerem nos combates e obrarem mais seguros» (Anónimo, 1784:96). Em 1907, Lupi não referiu as pinturas mas confirmou o Anónimo nas identificações: antes da partida para o combate, os aliados colocavam à volta da cabeça e nos braços uma tira a que chamavam «licáta», feita com tecido branco ou vermelho ou, ainda, com uma rama clara e flexível retirada da entrecasca de certas árvores (1907:100--101).

ORGANIZAÇÃO E TÉCNICA DE COMBATE 5.1.2.

Nas lutas entre Moçambicanos 5.1.2.1.

Quer nas lutas internas, quer nas que mantiveram com os Portugueses, os nortenhos nunca, segundo Lupi, praticaram o combate a descoberto em campina rasa ou a guerra das aringas. Os seus processos tácticos combinaram tanto a surpresa no

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ataque quanto, num extraordinário aproveitamento do terreno e se em luta contra inimigos mais poderosos, a prática de internamento e máxima dispersão das forças (1907:97).

0 ataque de surpresa às povoações, seguido de razia, e a emboscada caracterizaram as lutas entre as diversas unidades políticas do Norte.

Já em 1784,, um autor anónimo, apreciando à sua maneira a forma de combate, especialmente na província de Nampula, descreveu-a da seguinte forma:

Correm, acometem, matam, saqueiam, e destroem, sempre em debandada e sem dar quartel mais que às mulheres que cativam; (...) Com a mesma rapidez com que de golpe entram em qualquer povoação, saem logo depois do estrago feito (1784:84) (10). Tratava-se da «otimaca» ou da «uita» (talvez mais daquela), técnicas que descreveremos nesta unidade.

Também à sua maneira e sobre Nampula, Mártires escreveu nos princípios do século XIX: Na guerra usam de mil estratagemas, ciladas e traições para surpreenderem o inimigo, e jamais atacam em campo descoberto, se não estando certos da superioridade das suas forças, e fraqueza dos contrários (1822:157). Uma descrição pormenorizada da organização militar foi feita por Lupi no seu trabalho sobre Angoxe.

Distinguiu dois tipos de guerra: a «grande» e a «pequena». Numa e noutra as tropas concentravam-se na «n'ringa», local que não era, contudo, fortificado como no Centro do País. A «n'ringa» nunca se situava nos lugares povoados, para evitar aos habitantes a presença indesejável dos guerreiros, mas, sempre que possível, na fronteira com o território inimigo, junto a um rio ou a uma lagoa, onde se podia beber e cozinhar. A razia no campo inimigo garantia a alimentação, pois não existia um sistema formal de abastecimento. No acampamento (encostado à mata), avisando primeiro com uma campainha em ferro forjado («múlúpa a tíué»), um homem transmitia regularmente avisos e ordens. Após as cerimónias mágicas, a colocação das identificações e o grande batuque, o exército passava em expectativa a noite véspera do ataque, enquanto o cazembe, chefe de guerra, acompanhado do furriel, percorria constantemente o bivaque dando os últimos

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conselhos (obediência aos chefes, coragem, camaradagem e cas-tidade), os quais o capitão repetia (chamava-se a isto «cúma»). Cada chefatura tinha a seguinte hierarquia militar: capitão, cazembe, furriel e cabo. Mas chefaturas havia, como a dos Imbamela, que possuíam uma hierarquia mais complexa: capitão-mor da guerra, capitão, cazembe, furriel, madjessica, cónhoco, nicúru e cabo (Lupi, 1907:100-101). Houve porventura, assimilação de cargos da hierarquia militar portuguesa. No geral, de acordo com Machado, os Amuene de menos poder tinham só um «chefe de guerra» ou cazembe (1970:365). Em Cabo Delgado, o «chefe de guerra» chamava-se «wayangele» (Dias & Dias, 1970, lil:318).

Se eram várias as linhagens ou as chefaturas envolvidas na coligação, havia, de acordo novamente com Lupi, um «dono da guerra» («munéne á vita»). Nem todos os Amuene iam à guerra com os seus súbditos; mas, se fossem, mantinham-se a consi-derável distância do local de operações para não sujeitarem «as suas valiosas pessoas ao acaso dos combates» (Lupi, 1907:101).

A grande hoste de guerra possuía um centro («ntudu») e duas alas: a direita («m'ségure mono mulopuana») e a esquerda («m'ségure mono m'tiana»). No centro, marchava o «dono da guerra», acompanhado de Amuene subordinados e de outros homens de estatuto social elevado; nas alas, iam os cazembes, furriéis e cabos. Em caso de serem várias as linhagens e/ou as chefaturas coligadas, as três mais importantes constituíam o grosso de cada uma das partes da hoste. Centro e alas avançavam em coluna de marcha, com grandes intervalos ligados por patrulhas. Avistado o inimigo, o centro progredia lentamente e logo que as alas tivessem obtido posições vantajosas para o envolvimento, desencadeava-se o assalto, primeiro com fogo de espingarda e, a seguir, no caso de êxito, com arma branca. Se a investida com espingarda fracassasse, a hoste retirava com a máxima dispersão para pontos de refúgio antecipadamente escolhidos, sendo muito raro tentar-se uma segunda investida. A guerrilha pontuava, então, o prosseguimento das hostilidades. Mas se o inimigo fosse vencido à primeira, pequenas colunas perseguiam os fugitivos, matavam-se os homens, capturavam-se as mulheres e as crianças, incendiavam-se as palhotas e as árvores de fruto e levava-se

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tudo o que tinha utilidade. A submissão dos chefes vencidos era acompanhada de pesados tributos em géneros e em escravos (Lupi, 1907:101-102; ver ainda. Machado, 1970:364-365).

Havia três modalidades de «guerra pequena»: a «mápúara» (com uma variedade), a «otimaca» e a «uita». A primeira empre-gava-se na defesa de uma posição (em mato denso ou junto a rochas), sobretudo quando o inimigo tinha de atravessar terreno descoberto para a atingir. Os guerreiros dispunham-se em duas filas que disparavam e se deitavam alternadamente para carregar as armas e oferecer ao inimigo um alvo não só móvel quanto pequeno. Uma variedade da «mápúara» consistia em os atiradores se porem de lado após terem feito fogo para subtrair ao inimigo a maior porção possível de alvo (Lupi, 1907:102-103).

Na «otimaca», os guerreiros caminhavam de noite a passo, mas, mal rompesse o dia, já na vizinhança do inimigo, sendo desnecessária qualquer dissimulação, estugavam-no para entrar em grande velocidade na povoação adversária, atacando com arma branca, sem dar quartel, o centro da resistência, após o que, em caso de êxito, se seguia o saque. Foram especialistas dessa modalidade os montanheses de Namecói-muno(11), do Eráti. A sua mestria na técnica era tão grande e reconhecida que, no caso de entrarem numa coligação, não participavam na hoste geral, limitando-se a ocupar uma parte do território onde o emprego da «otimaca» pudesse ser útil aos aliados (1907:103--104).

Na «uita», os guerreiros rastejavam para o alvo apoiando no chão os joelhos e o cotovelo esquerdo enquanto seguravam a espingarda com a mão direita, numa progressão qualificada de «inexcedível» por Lupi, dada «a destreza com que são aproveitados Os mais pequenos abrigos que o terreno oferece» (1907:104). Após terem chegado audaciosamente o mais próximo possível do alvo para contrabalançarem o fraco alcance das espingardas, abandonavam com rapidez a linha de tiro feitos os primeiros dis-paros e «como que aproveitando o impulso que o recuo d'eles transmitiu aos corpos», procuravam abrigos nos quais, então, se dedicavam às demoradas operações de recarregar pela boca as armas (1907:104) (12).

Na Zambézia, Gamito notava em 1850 que a técnica de com-bate das populações consistia em «correrias e debandada»(1850:

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50), idêntica, portanto, à «otimaca» ou à «uita». Em Pebane, na mesma província, a hoste de guerra era organizada por alas, como em Angoxe, à frente das quais caminhava o «chefe de guerra», ficando comprometido o êxito das operações caso ele morresse ou ficasse prisioneiro. Ao ataque vitorioso sucedia-se a razia e a destruição pelo fogo. Os prisioneiros eram reduzidos ao estatuto de escravos para venda ou mantidos como reféns. Uma prática corrente consistia em cortar as cabeças dos inimigos mais proeminentes para serem, depois, remidas pelos familiares. Declarada a guerra, as comunidades precaviam-se escondendo as mulheres, os velhos e as crianças no mato, fazendo-os vigiar por guerreiros que os evacuavam na eventualidade de serem descobertos (Pires, 1922:151).

Em Cabo Delgado existiram, marcadas pelo factor surpresa, dois tipos de guerra: a) «livenda», acção localizada de retaliação por causa de um homicídio cujo autor ou cujos autores não fôra possível descobrir; b) «inondo», acção mais generalizada contra outras linhagens ou grupos. Esta última modalidade parece ter sido rara, dada a dificuldade que havia em penetrar-se nas aldeias fortificadas (Dias & Dias, 1970, 111:320-322).

Nas lutas contra os Portugueses 5.1.2.2.

Nas lutas contra os Portugueses, os nortenhos empregaram generalizadamente a emboscada, montada por forças muito móveis que praticavam com eficiência o internamento e a dispersão e tiravam extraordinário partido do acidentado do terreno e da vegetação fechada. Por essa razão tiveram os Portugueses mais dificuldade em proceder à ocupação militar do Norte, onde as campanhas só terminaram em 1917 com a penetração no planalto de Mueda. Se bem que as últimas operações de resistência militar anticolonial no período pré-FRELIMO se tivessem localizado no Centro em 1920, quando do que o inimigo chamou a «revolta do Báruè» (veja 5.2.2.2), o certo é que no Norte a resistência foi mais sistemática e vitoriosa (tornaremos a este ponto em 6).

A mais antiga referência às lutas contra os Portugueses na documentação colonial parece ser a de Santos, missionário jesuíta (13) que escreveu uma das mais completas monografias etnográficas da África Oriental e de Moçambique, impressa pela primeira vez em 1609.

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Contou ele que na província de Nampula existiam alguns «reis grandes e poderosos, cafres(14) gentios de cabelo crespo, os quais pela maior parte são macuas de nação». Um desses chefes, Mauruça, raziava frequentemente os estabelecimentos portugueses no Mossuril e nas Cabaceiras já antes de 1585 (1609, 1:257-258, 260-261).

Um dia, os Portugueses decidiram queimar a povoação de Mauruça, pelo que juntaram forças e para ela se dirigiram «uma tarde de sol posto com muito segredo, sem dizerem para onde iam, com propósito de caminhar de noite, e de madrugada darem sobre o Mauruça» (1609, 1:262-263).

O que se cumpriu. Queimou-se a povoação, fez-se grosso botim de escravos entre os habitantes, mas de Mauruça nem sombra, pois que ele e vários guerreiros «se foram embrenhar pelos matos», escondendo-se num local onde armaram uma emboscada. Vinham os Portugueses de regresso, cuidando que «tudo estava seguro». Tinham, até, dado as espingardas aos escravos, para viajarem mais leves nas machilas que outros escravos carregavam. E dessa maneira retornavam à Ilha de Moçambique, «como quem caminhava por terra segura», quando as hostes de Mauruça, que os esperavam «com mais ordem e melhor cuidado»

tanto que os tiveram a bom lanço, deram subitamente sobre eles com tanto ímpeto e raiva, que a todos mataram, sem ficarem mais do que dois ou três portugueses e alguns cafres (...) (1609,1:263).

Protegidos pelo capim, senhores do seu espaço ecológico que usavam como arma, os valorosos guerreiros da província de Nampula flagelaram ininterruptamente as unidades montadas dos Portugueses quando estas ali penetraram em 1896. As «guerrilhas namarrais» — assim as intitulou Botelho, historiador da arte militar portuguesa — conseguiram derrotar as primeiras investidas do inimigo, matando homens e cavalos, e pejar de tiros e pânico as que se lhes seguiram (Botelho, 1936,11:520-536). Eis como Botelho descreveu a técnica de combate oposta aos Portugueses:

Aqui o inimigo, muito conhecedor das armas de fogo, (...) oculta-se no mato, donde fuzila o adversário, e longe de morrer numa posição que defenda com cons-

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tâncía, ora ataca num ponto ora noutro, assemelhando-se os seus processos de luta aos que adoptam as guerrilhas (1936,11:518).

A mesma técnica, na descrição mais aprofundada de um outro autor:

Fuzilavam o adversário, ocultando-se no mato, perseguindo as colunas sem desfalecimento, flagelando-as com golpes repetidos (...), procurando a aniquilação do inimigo pelo desgaste e desmoralização da tropa, pelo cansaço físico, pelo desaire das perdas sofridas, pela frustração da ausência de vitórias espectaculares e compensadoras, e pela impossibilidade de manutenção e demora em terras abandonadas e desprovidas de recursos (Machado, 1970: 467).

Cansar o adversário foi um estratagema muito utilizado por «Mussa Quanto», sultão de Angoxe. Assim, quando os Portugueses organizavam exércitos para o aprisionar, Mussa internava--se no sertão com os seus guerreiros para, como observou Botelho, paralisar pelo cansaço os esforços dos perseguidores (1936, ll:604).

A guerrilha desorientou, também, a enorme coluna militar portuguesa que se dirigiu ao Niassa em 1899 para atacar o rei Mataca. Constituída por milhares de sipaios e de carregadores das Companhias (como a Boror e a Zambézia), por oficiais e praças portuguesas e por alguns arrendatários individuais de terras, a coluna viveu intensos momentos de medo e desorganização. O administrador do Prazo Licungo da Boror, Stucky, que redigiu uma crónica da campanha, deixou uma elucidativa descrição após mais uma emboscada com espingardas efectuada contra a coluna a norte do Guruè:

Estamos encravados no meio do capim. Nada se vê: isto é que é o diabo. Onde ficou a coluna? Marcha impossível para brancos; subidas e descidas sucessivas; (...) Há feridos? É-me impossível ver qualquer coisa. Respondemos com fogo de salva, talvez inútil, pois nada vemos (..). O capim é tão alto que estou na impossibilidade de ver os meus vizinhos imediatos (1899,1:81).

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E depois de nova emboscada, já em terras de Mataca: É sempre a mesma táctica por parte do adversário. Bem abrigado na floresta ou no capim altíssimo, faz fogo, apenas a uns metros dos sipaios e safa-se rapidamente sem ser visto e fora da vista (1899,11:47). Em Cabo Delgado, os bravos guerreiros do planalto de Mueda opuseram aos Portugueses a vegetação cerrada, o terreno acidentado, a emboscada e as suas fortes paliçadas (Dias, 1964, l:92).

APRENDIZAGEM E TREINO 5.1.3.

É muito escassa a informação documental escrita sobre a aprendizagem e o treino militares. Maior atenção prestaram os Portugueses ao que chamámos, nesta obra, mecanismos de acti-vação, ou seja, o conjunto de crenças e de práticas destinadas a estimular o brio e a coragem na guerra. E essa atenção parece explicar-se pelo facto de nenhuma guerra se fazer sem o bene-plácito da magia protectora (como nenhuma caçada, nenhuma viagem).

É inegável terem os nossos antepassados atribuído uma grande importância à magia e aos tabus, na convicção de que a vitória se obtinha pelo seu respeito e a derrota pela sua ignorância, se bem diferissem, aparentemente, os motivos por que chefes e súbditos davam substância à crença (veja 5.1.5.).

Contudo, a riqueza e a variedade das técnicas militares que acabámos de descrever não decorriam, naturalmente, da medicina de guerra ou do mágico que a ministrava.

Os sucessivos combates constituíam, decerto, uma boa escola de treino. Mas era indispensável, antes das guerras, ensaiar as grandes etapas das campanhas e adequá-las às características do inimigo a combater.

Vimos que nos acampamentos precedendo as pelejas se transmitiam constantemente ordens e avisos. Ignoramos, porém, o seu conteúdo.

É provável, contudo, tal como sucedeu no Centro e Sul, que o teatro dançado tivesse sido a verdadeira escola da guerra. Nele, profundamente enraizados nos outros sentidos culturais, se encenariam e treinariam os grandes arquétipos dos diferentes movimentos tácticos, a cargo dos guerreiros mais experimentados

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e valentes. É possível, entre outros, entender nesse sentido a afirmação de Pires de que nas danças de guerra em Pebane apenas intervinham os guerreiros mais experimentados (veja 5.1.5.).

Como escreveu Montesquieu, «(...) entre os antigos, tudo, até a dança, fazia parte da arte militar» (1734:25).

AMPLITUDE DAS OPERAÇÕES 5.1.4.

A estrutura fortemente segmentar das comunidades nortenhas, que os senhorios militares surgidos com o comércio de escravos não dissolveram (Santos, 1609, 1:254; Durão, 1902:12; Amorim, 1910:251-331; Dias & Dias, 1970, 111:12, 292-297), o carácter com frequência individualizado desses senhorios desenvolvidos especialmente a partir do século XVIII (Machado, 1970: 363-364), a frouxidão das hierarquias e das lealdades dinásticas, amplificada nas lutas pela hegemonia comercial e pelos territórios de caça ao escravo (Machado, 1970:363-364; Lobato, 1971:19--20) e a própria natureza do terreno (acidentado) e da vegetação (fechada), contribuíram para que a organização militar se tivesse plasmado, por excelência, nas lutas entre Moçambicanos, no pequeno (de dez a 100 homens, talvez) e no médio (até 500, o máximo) grupos de combate, apesar de Lupi ter mencionado a «multidão armada» que ia à guerra (1907:100), provavelmente referindo-se às lutas contra os Portugueses. Mesmo na «guerra grande», onde, por vezes, entrava em jogo a aliança temporária de várias linhagens e/ou chefaturas, o exército-tipo não deve ter possuído mais de 1000 homens de armas. Contudo, intervieram maiores efectivos nas lutas contra os Portugueses e já no século XVIII uma fonte afirmava que a 6 de Janeiro de 1776 o grande chefe Mori-muno atacou o Mossuril à frente de um exército de «8 mil cafres bem armados» (Anónimo, 1784:96), se bem que o número seja exagerado. Importantes efectivos foram postos em campo contra os Portugueses em particular a partir de 1886, quando, face às operações inimigas de ocupação militar generalizada, os nortenhos procuraram defender o(s) seu(s) modo(s) de produção e a sua independência política.

Por outro lado, o pequeno e o médio grupos de combate estavam adequados ao grande objectivo das guerras, as quais

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visavam, em regra, não a ocupação de territórios para neles se exercer uma determinada soberania ou se cobrarem tributos, como aconteceu no Centro e no Sul, mas antes, expulsar ou causar ao inimigo ou aos inimigos um prejuízo geral doloroso, como, por exemplo, talar os campos, queimar as palhotas, deitar abaixo as árvores de fruto e, sobretudo, capturar mulheres e fazer escravos (Mártires, 1822:155; Lupi, 1907:102; Machado, 1970:364). Mesmo as maiores chefaturas e as confederações provisoriamente organizadas para obterem uma maior eficácia quer na defesa quer na caça ao escravo não se furtaram a esse padrão.

A formação de um exército com efectivos militares consideráveis foi ainda impedida pela inexistência de um sistema formal de abastecimento. Quando em guerra, cada uma das facções roubava no território da outra o alimento de que carecia (Lupi, 1907:100). Mas, dada a pobreza dos excedentes alimentares e porque a razia suscitava sempre desforras sangrentas, não só as batalhas eram limitadas no tempo e no espaço, quanto as operações não podiam nem prolongar-se por muitos dias nem repetirem-se. De resto, a guerra sofria ainda severos limites de vária natureza: por um lado, numa economia onde os excedentes alimentares eram débeis, jamais poderia ter existido o guerreiro profissional; por isso se era guerreiro quando havia guerra e caçador, artesão, ferreiro, pescador ou agricultor quando ela acabava; por outro lado, a consecução da guerra dependia não só dos augúrios do adivinho oficial (Machado, 1970:365; Dias & Dias, 1970, 111:318), como das posições da Lua e, até, estando a hoste já em caminho, da visão de algum animal de mau agoiro que poderia fazer os guerreiros desistir da operação (Anónimo, 1784:93-94).

Finalmente, um outro factor que limitava os efectivos militares, por impedir a junção dos vários exércitos locais, apesar das alianças que por várias vezes referimos, era justamente o contrário dessas alianças: a desconfiança que opunha os chefes, a luta de posições e de interesses que os minava. No mundo da escravatura, constantemente alimentado pelos comerciantes da costa, a paz ou a aliança representavam unicamente modalidades de guerra. Com frequência, muitos Amuene pequenos mantinham-se subordinados ou aliados ou amigos enquanto durava a força, o número de espingardas, a regularidade do fornecimento de pólvora

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e a vida do Muene grande. Suprimidas essas condições no todo ou em parte, a chefatura, em que um certo princípio territorial se sobrepusera ao espaço dos valores clânicos da família extensa, partia-se imediatamente numa imensidade de muenatos indepen-dentes, acantonados no perímetro estreito das suas parentelas e no vigiar atento e cioso dos disputados carreiros do comércio sertanejo (Machado, 1970:363-364; Lupi, 1907:110; Lobato, 1971: 18). Foi essa permanente centrifugação do político, caldeada na tensão dos interesses e das armas de fogo e inibidora de verdadeiras e estáveis alianças militares, a principal causa que permitiu aos Portugueses, aqui como em todo o País, vencer a longa, apesar de tudo, resistência anticolonial (tão mais demorada no Norte quão mais atomizado foi o poder político, ideia que desenvolveremos nas conclusões) e obter, mesmo, certo tipo de alianças que colhiam raízes em algumas das mais profundas tradições de lealdade africana. Assim, Mucapera-muno, chefe de nomeada de Corrane, particularmente ameaçado pelo xeque de Sangage e pelo sultão de Angoxe (Medeiros, 1981:30), não só se aliou aos Portugueses, não só lhes consentiu a construção do posto militar de Corrane, como, inclusive, fez um pacto de sangue com um dos oficiais portugueses da ocupação, Neutel de Abreu. Celebrado o pacto, Neutel passou a dispor nas operações coloniais da hoste de guerra de Mucapera-muno, armada com enormes espingardas de pederneira e espesso cano. Cru e cínico mediu Neutel a dimensão do pacto:

O que é certo é que este acto deu maravilhoso resultado na ocupação do Distrito, quer poupando muitos contos de réis ao Estado, quer poupando vidas de soldados (Lo-bato, 1971:19). Pela sua cooptação, Mucapera-muno recebeu, já velho, uma pensão do Estado português e, um ano depois da sua morte em 1932, os Portugueses colocaram-lhe na campa uma lápide de gratidão (Lobato, 1971:20).

MECANISMOS DE ACTIVAÇÃO 5.1.5.

Na província de Nampula, segundo um cronista anónimo do século XVIII, a guerra era precedida de um ajuntamento de guerreiros chamado «massassa» (15), no qual executavam ceri-mónias mágicas, sem o que

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nunca saem a campo; porque no mesmo somente afiançam a Vitória segundo as conjecturas que formaram ou observações que com ele fizeram (Anónimo, 1784:93).

No Mossuril, também na província de Nampula, após a formação do grupo de combate o chefe passava-lhe revista, untando a testa, a retaguarda de uma orelha e o peito de cada guerreiro com o óleo da invulnerabilidade, em cuja composição — afirmou um autor — entravam as cinzas do coração de um inimigo morto em luta. Já a caminho da guerra, na frente do grupo, trajado de vermelho, marchava o contra-feiticeiro que, detectado o inimigo, lhe disparava uma espingarda com o cano carregado de mezinhas. Esse contra-feiticeiro era o responsável pelo resultado da guerra e, em caso de derrota, tinha de pagar duramente as consequências (Camizão, 1901:4).

Ainda na província de Nampula, mais particularmente em Angoxe, antecedia qualquer peleja uma cerimónia em que se fazia «murrápo mácué» (literalmente: lavar com remeda). Depois de se terem lavado, os guerreiros executavam pequenas incisões na testa, nos braços e no peito, nas quais o «chamuila» (curandeiro de guerra) colocava um cautério leve, «mácué» (óleo da invulne-rabilidade), o qual retirava do «muila» (rabo de guerra feito da cauda de um antílope ou de um equídeo como a zebra) e do «ên'hanga» (corno da guerra, chifre de antílope ou de ongonhe). Executada a cerimónia e colocadas as identificações (já referidas no «equipamento»), realizava-se o grande batuque propiciador, onde os cantos corais e os movimentos atingiam grande efeito, embora inferiores na imponência, segundo Lupi, aos batuques do Sul. A castidade era uma norma a ser observada antes da realização de qualquer combate. Este, nas modalidades em que se fazia uso de espingardas, iniciava-se, por exemplo no Mossuril, com um tiro simbólico de mezinhas disparado pelo «chamuila» através da «chamirête», espingarda sagrada (Lupi, 1907:100--101, 104).

Em Pebane, província da Zambézia, também várias cerimónias assinalavam o início das hostilidades. Efectuada a convocatória pelos tambores, realizavam-se então diversas danças, nas quais apenas intervinham os que já tivessem lutado e morto inimigos (Pires, 1922:151).

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Em Cabo Delgado, só após a observância de tabus alimentares e sexuais se podia iniciar a guerra. Igualmente aqui os guerreiros recebiam uma droga mágica («ntela») destinada —acreditava-se — a imunizá-los contra os golpes do adversário. A vitória militar atribuía-se à «ntela» e ao poder sobrenatural do ministrador e a derrota à quebra dos tabus (Dias & Dias, 1970, 111:318).

Era inegavelmente grande a importância da magia enquanto ordenadora superlativa de crenças. Os próprios Portugueses procuraram por vezes fazer dela uma arma, notou-o Hafkin, jogando com o facto de os guerreiros africanos suporem que as tropas portuguesas empregavam também a feitiçaria. Tratava-se do que aquela historiadora americana chamou «tácticas psico-militares» (1973:317-318).

Havia sempre, entre os recursos do arsenal mágico local, um adivinho para avaliar da oportunidade e do desfecho eventual dos combates. As conclusões do adivinho mereciam inteira credibilidade aos guerreiros. Contudo, parece ter existido uma fronteira muito clara entre as crenças dos guerreiros (as crenças, enfim, das massas) e os objectivos dos chefes. Assim, em Angoxe, por exemplo, porque a guerra era um «negócio sério», escreveu-o Lupi, e dela decidiam apenas os Amuene e seus conselheiros militares, a actividade dos adivinhos sofria um controlo rigoroso: obrigados a obter resultados ou, se de confiança, seguindo uma orientação que lhes fora previamente dada, «adivinham precisamente o que se quer ver adivinhado» (1907:135).

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5.2. CENTRO

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EQUIPAMENTO

5.2.1.

Tão variado foi o equipamento do Centro quanto díspares os testemunhos que o mencionaram. Um dos mais antigos, se não o mais antigo desses testemunhos parece ser o de Veloso, que nos primórdios do século XVI, dando notícias de um aventureiro chamado António Fernandes, que atingiu o planalto de Zimbabué, afirmou empregarem-se, em terras do Muenemutapua, arcos, flechas ervadas, azagaias e «ticados» (16) (1514—1515: 30). Em 1518, descrevendo o «grande reino de Benamatapa», Barbosa referiu a existência de azagaias e de arcos pequenos que permitiam, porém, arremessar as flechas a grandes distâncias. Embora nesse «reino» nobres e plebeus se vestissem com capulanas e peles de animais, os «honrados (nobres, chefes, C. S.) trazem daquelas peles arrastando pelo chão à maneira de rabos por estado e galantaria. (...) trazem espadas em bainha de pau adornadas com ouro e outros metais, trazem-nas da banda esquerda como nós (Portugueses, C. S.) em cintas de panos pintados que para isso fazem com quatro ou cinco nós com suas borlas penduradas» (1518:359-360). De acordo com Andrade, em memória de 1790, os guerreiros do Muenemutapua estavam armados com arcos, flechas e azagaias (1790, l:95). Em 1861, descrevendo a «Chidima» (província de Tete, margem sul do Zambeze, grosso modo entre Chicôa e o rio Luenha), centro do Estado do Muenemutapua, Pacheco mencionou arcos, flechas, seis qualidades de machadinhas, facas de vários tamanhos que se usavam à cintura e grandes azagaias. Acrescentou ainda que

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parecia ser «infinito» o número de espingardas existentes, mas ressalvou serem elas especial privilégio dos príncipes, que as empregavam igualmente na caça (1861:20).

Para o vale do Zambeze em geral (se bem, parece-nos, inci-dindo nas terras do que fora o Império do Muenemutapua), Almeida citou azagaias, arcos e flechas, machadinhas e escudos. Estes tinham três palmos de largo, «tábuas leves como cortiça» e um pau que as atravessava interiormente de alto a baixo e encabava num ferro que os guerreiros pregavam no chão quando necessário.

Em memória de 1758, Xavier escreveu que nos Estados de Muenemutapua, Sofala e Butua (17), especialmente neste, o arma-mento consistia em arcos e flechas, azagaias de cabos curto e longo, machados, punhais, «paus tostados» a que chamavam «gorimondos», flechas de mão (18) e escudos de couro cru (sendo estes apenas empregues pelos guerreiros BaRozui do Butua). Ainda segundo o mesmo autor, temia-se a espingarda e julgava-se que a pólvora estivesse enfeitiçada (1758:178) (19-a), o que não é inteiramente verdadeiro pois pelo menos já em 1521, Inhamunda, presumível futuro rei do Estado do Quiteve, estava na posse de espingardas obtidas no comércio com os Portugueses de Sofala, com as quais barrava o acesso a essa fortaleza-feitoria aos mer-cadores de Manica, Báruè e Muenemutapua (Randies, 1975:44--45). E, segundo Bocarro, a maior parte dos nobres africanos do vale do Zambeze tinha em 1613 «melhor armazém de espingardas do que pode haver na feitoria do capitão» (capitão português de Sena CS.) (1635:572). Mais ainda: Chombe, por exemplo, nobre do médio Zambeze, possuía em 1613 na sua fortificação não só 150 arcabuzes, que recebera dos Portugueses por troca com milho e mulheres, como também duas roqueiras, canhões de ferro que disparavam pedras (Bocarro, 1635:572), cuja origem, porém, não pudemos apurar.

Arcos, flechas, lanças de cinco palmos, broquéis ou escudos circulares de pele de boi e porretes fortes de três palmos, termi-nados em grossa cabeça, que prostravam de morte o inimigo, constituíam o armamento de Manica (Anónimo, 1787). Em Sofala, segundo Gama, apenas se usavam arcos e flechas (1796:22), o que talvez não corresponda à realidade.

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A norte do Zambeze, em território Marave («Bororó», escreviam os Portugueses) próximo de Sena, os «Cafres Muzimbas» (19-b) serviam-se de machadinhas, flechas, azagaias e escudos muito grandes («com que se cobrem todos» — afirmou o cronista), de arcaboiço em madeira leve e revestimento em pele de animais selvagens (Santos, 1609, 1:235).

A fortificação representou um tipo de equipamento defensivo muito generalizado no Centro do País. Existem em Moçambique, particularmente nas províncias de Tete e de Manica, em locais altos de onde se pode abarcar a planície, restos de amuralhados cujas pedras foram, remotamente, argamassadas com «daga», substância mineral que se misturava com terra dos morros de muchém e com água e que, depois, se secava ao sol (Oliveira, 1973:47-53). Construções típicas da aristocracia de Zimbabué e do Muenemutapua, as madzimbabue (casas de pedra) parece terem sido substituídas na segunda metade do século XVI por construções em madeira (Beach, 1980:95), não se sabendo ainda hoje exactamente porquê (Oliveira, 1973:57-59; Beach, 1980:95).

O certo é que Santos, uma das mais abalizadas fontes seiscentistas para a história de Moçambique, apenas mencionou o fortim de madeira e, este, a norte do Zambeze, em área exterior ao que foi o Império do Muenemutapua. Assim, ao descrever os «Cafres Muzimbas», afirmou estar a sua povoação principal protegida por uma forte cerca de madeira com seteiras, que um valado fundo e largo circundava. Em caso de ataque, os defensores recorriam a um variado arsenal de armas, algumas bastante drásticas como «azeite» (20) e água a ferver e, ainda, ganchos de ferro com que «pescavam» e içavam os adversários até às aberturas das seteiras para os abaterem (1609, 1:233, 238-239).

Implicando muitas vezes complexas manobras de assalto, a fortificação em madeira foi igualmente referida para o vale do Zambeze por Bocarro (1635:544-545, 559, 571-577), Almeida (1648:204) e Pacheco (1861:20). Por exemplo, Almeida notou que as povoações ao longo do vale do Zambeze estavam geralmente fortificadas com tranqueiras de grossos paus tendo, espetadas nas pontas, muitas caveiras de leões, leopardos, lagartos e outros animais para, asseverou o cronista, «meter terror e espanto aos que vêm de fora». As portas das tranqueiras eram de alçapão e estavam cobertas de espinhos (1648:204).

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No médio Zambeze, pequenas chefaturas Atonga e cativos fugidos dos «Prazos» fortificavam-se entre os matos cerrados da região («mussitos» ou «mucitos» se chamavam a essas fortifi-cações), onde, segundo Barreto, «só pássaros poderão voar ou cobras romper». Dessas bases, utilizando a guerrilha, os zambezianos partiam para assaltar as caravanas comerciais dos Portugueses que atravessavam o sertão (Barreto, 1667:449; Alvim, 1770:149). Fortificações especiais («aringas») foram utilizadas pelos guerreiros das numerosas forças coligadas quando da grande «revolta do Báruè», a qual começou em Março de 1917 e se estendeu da Gorongoza ao Zumbo como protesto contra o trabalho forçado na estrada Tete-Macequece, os maus tratos dos sipaios e as requisições de carregadores e soldados para lutarem no Norte contra os Alemães no decorrer da 1.a Guerra Mundial (Isaacman, 1976:257-290; Alberto e Toscano, 1942:259-262). As alcáçovas dos «Prazos» (21-a) foram provavelmente copiadas dos modelos africanos pela primeira geração de colonos portugueses («Muzungos», como eram apelidados) que, a troco de missanga, capulanas, álcool, ajuda militar, espingardas e pólvora, acabaram por se fazer senhores de terras, camponeses e cativos.

Os cães constituíram um outro género de «equipamento». Assim se lhes referiu Almeida:

Têm outro Rancho, de cachorros, estes sempre andam, diante do arraial, algum espaço adiante, e pelas ilhargas, são como exploradores (...) tomando faro do inimigo. Estes ainda que estejam de paz andam de noite, à roda das mozindas (povoações, CS.) vigiando (1648:207).

Não há memória, para o Centro como para o resto do País, de se terem usado couraças, elmos, catapultas, balistas ou aríetes.

Resta, finalmente, considerar o equipamento de galvanização, nomeadamente instrumentos de música e estandartes.

De acordo com Almeida, havia dois tipos de instrumentos musicais: os de sopro e os de percussão. Entre os primeiros, o principal era o chifre de palapala («parapanda», escreveu o cronista) (21-b), com o qual se davam os sinais de avanço e recuo; entre os segundos, empregavam-se tambores de vários tamanhos, fazendo «boa consonância e estrondo militar», dos quais um

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(«funda») pertencia exclusivamente ao «capitão geral» da guerra e alguns outros («enoçassas») eram do rei, servindo para os toques de arremetida (1648:207).

Como estandartes, espetadas em paus, os guerreiros utilizavam peles de leopardo, leão, búfalo e elefante. Cada guerreiro era identificado segundo o símbolo anima! do estandarte (Almeida, 1648:207). Com respeito à identificação, assinale-se que no decor-rer da «revolta do Báruè» os guerreiros empregaram palavras--senhas e tiras de pano vermelho amarradas à cabeça para evitar a infiltração de inimigos nas fileiras (Isaacman, 1976:274).

ORGANIZAÇÃO E TÉCNICA DE COMBATE 5.2.2.

Nas lutas entre Moçambicanos 5.2.2.1.

Fazendo fé nos documentos consultados, foram cinco as técnicas de combate no Centro: a) assédio e defesa de fortificações, b) afrontamento em campo aberto, c) surtida de surpresa no arraial do adversário ou de madrugada às povoações para colher inadvertido o inimigo, d) emboscada e e) «terra queimada». Nas lutas entre Moçambicanos parece terem predominado as duas primeiras e, da terceira, a surtida de madrugada.

No tocante à primeira modalidade, julgamos que ela foi indis-tintamente empregue quer nas lutas entre Moçambicanos quer nas que travaram com os Portugueses. Parece-nos que estes, ao penetrarem no vale do Zambeze a partir de 1530, não só se inspiraram nos modelos das alcáçovas africanas para construir as suas, como, também, contribuíram para o seu alastramento. Já no século XVI o Muenemutapua Lucere se queixava ao Vice--Rei da índia dos mercadores portugueses espalhados pelas suas terras, porque

(...) em fortificações que fazem particulares guarne-cidas com seus cafres e com outros naturais que se levan-tam contra seus encosses e se acolhem à sua sombra, fazem grande dano nos naturais, matando-os, ferindo-os, furtando-lhes filhos e filhas e vacas da sua criação (...) («Manomotapa», 1645).

Aproveitando à sua chegada ao vale do Zambeze as muitas disputas que opunham partidos e reis no decadente Império do Muenemutapua, os Portugueses, com arcabuzes e roqueiras, não

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só procuraram manipulá-las em favor dos seus interesses mercantis, trocando saguates de capulanas e missanga por favores em minas de ouro e dentes de elefante, como passaram a ser crescentemente procurados pelos querelantes para as resolver, não só por causa das armas que possuíam e tão decisivas eram no desfecho das batalhas, como também por causa das capulanas e da missanga, porque no sertão a guerra fazia-a e, mesmo, ganhava-a, quem mais capulanas e missanga tivesse para aliciar chefes e agenciar exércitos. Foi nesse contexto que, com frequência, lutando contra inúmeras oposições, o Muenemutapua solicitou auxílio aos Portugueses para atacar príncipes que recusavam a sua soberania ou que, não pertencendo aos seus territórios, os vinham no entanto talar. Um exemplo deste último caso deu-se em 1597. Tendo um exército marave invadido terras do Muenemutapua pelo rio Luia e atacado as de algumas mulheres do monarca, este conseguiu auxílio de uma força militar portuguesa para ir cometer a fortificação do invasor, a qual, segundo Bocarro, era de madeira alta, grossa e forte, dispondo de seteiras e tendo em redor um valado com 25 palmos de altura e outros tantos de largo. O ardil para se penetrar no fortim de Chicanda — assim se chamava o comandante marave — consistiu na confecção de grandes «cestos» abertos à retaguarda e com seteiras na protecção cimeira, em cada um dos quais foram colocados 50 homens. Avançando com os cestos a modos de couraças, os atacantes foram-se chegando à tranqueira do adversário, com os Portugueses disparando tiros de arcabuz pelas seteiras e os africanos, flechas. O conflito estendeu-se por todo um dia, terminando na madrugada do dia seguinte com a rendição dos sitiados (Bocarro, 1635:544-545).

O combate a descoberto foi também muito praticado. Por exemplo, durante a luta que opôs Matusianhe ao Muenemutapua Lucere na primeira metade do século XVII, certo dia o primeiro, com um exército computado, certamente com exagero, em 20 mil homens avançando num dispositivo em foice

foi cometendo e cercando o exército do Manamotapa, com grande grita, estrondo de cornetas e tambores, que parece que se vinha o céu abaixo (Bocarro, 1635:560). O mesmo dispositivo em foice ou em meia-lua foi referido

por Xavier num relato de 1758 quando, descrevendo aparente-

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mente os Estados de Butua, Muenemutapua e Sofala, com realce para o primeiro, afirmou que o exército atacava com um núcleo central («viate») flanqueado por dois corpos laterais («mulomo acumba») progredindo em meia-Iua. Ao que parece, competia aos «mulomo acumba» atacar o inimigo e ao «viate» preencher as vagas dos mortos na dianteira e, sobretudo, em matar «a todo o que atrasa o pé, ou foge» (1758:178). No tocante ao Muenemutapua, a informação de Xavier deve estar correcta, pois em 1794 um outro cronista observou que a formação de combate naquele Estado consistia também num corpo central («guro») flanqueado por vários pelotões («muromo»), os quais eram socorridos pelo corpo central em caso de desaire ou retirada (Anónimo, 1794:222) (22). Mas, no tocante a Sofala, aceitando-se que Xavier se lhe referiu de facto, levantam-se dúvidas pois em 1796, ao mencionar as lutas na fronteira entre Madanda e as «terras do Landim» (23) («por que estes querem conquistar, e os outros defendem o que é seu»), Gama descreveu um processo de combate muito mais simples:

de ambos os Exércitos saem alguns cafres a saltar, e a dispararem flechas uns contra outros, até que um dos dois pequenos partidos recue, ao depois vão reforçando até que um dos Exércitos entre a recuar, e se acontece isto, o Exército que se julga vencedor segue ao contrário, e vai roubando tudo quanto pode encontrar pelos caminhos, e povoações por onde passam (1796:22).

Um outro dispositivo, segundo Almeida, consistiu na colocação do exército em quadrado, semelhando este uma «fortaleza» hermeticamente fechada pela junção de todos os escudos dos guerreiros. Com a bagagem no meio e um rancho de cães bate-dores farejando o inimigo, a «fortaleza» deslocava-se ou detinha-se consoante as ordens dadas. Estas eram-no pelo «capitão-geral», que, nos casos mais graves, pedia recurso aos Afumu. Velhos e sentados debaixo de árvores, eles diziam ao capitão-geral o que devia fazer para a guerra ser ganha (1648:206-207).

Por outro lado, Andrade notou que no Muenemutapua a dis-posição do exército para combate consistia na «ordem das Catervas, e Centúrias dos Romanos» (1790, l:45), o que, à letra, deve significar grandes contingentes de guerreiros organizados em companhias.

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Uma outra modalidade de combate no Centro foi a surtida de surpresa. Por exemplo, um autor que ficou anónimo escreveu em crónica de 1787 que na região de Manica o ataque contra o adversário se fazia

num súbito assalto que dão muito de madrugada para surpreender a gente no melhor do sono (1787).

Nas lutas contra os Portugueses 5.2.2.2.

Nas lutas contra os Portugueses foram especialmente empre-gadas as fortificações, a emboscada, o combate a descoberto e a «terra queimada». Com frequência, uma sábia dinâmica de combinações levava à associação da defesa em fortificações (ou do seu assédio) com a emboscada ou com a surtida célere no arraial do adversário, o que presupunha um acompanhamento permanente das reacções do inimigo, da sua força, do seu enervamento, das suas hesitações, do seu medo e do seu cansaço. Foi Santos um dos primeiros a fornecer testemunhos dessa articulação de tácticas ao descrever as lutas que opuseram «Azimba» (24) e Portugueses.

Contamo-las (25): Quando corria o fim do século XVI, um exército de Azimba

atacou a norte de Sena, na margem esquerda do Zambeze, um dos chefes que colaborava com os Portugueses. Derrotado, o chefe solicitou auxílio a Sena e os Portugueses da vila juntaram as suas forças (na sua maior parte compostas por guerreiros fornecidos por chefes africanos vassalos) e, com arcabuzes e dois «berços» (bocas de fogo), partiram para as terras onde se encontravam os Azimba («vizinho tão mau» — penalizou-se Santos).

Mas os Azimba estavam protegidos por uma alcáçova muito forte e o comandante português resolveu fazer as coisas com cautela: mandou assentar o arraial ao longo de uma ribeira próxima da fortificação dos adversários e despachou estafetas com recado ao capitão de Tete para o vir ajudar.

Vinham os de Tete caminhando em resposta, os guerreiros negros atrás e os confiantes portugueses em «machiras e andores» muito mais à frente, quando os Azimba, que os tinham detectado por seus «espias», apanharam e mataram os Portugueses numa emboscada, voltando de pronto («secretamente».

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escreveu o cronista) à sua fortificação. Quando o grosso das forças chegou ao local da emboscada e viu o que restava da vida e das bagagens de seus chefes, fez imediatamente marcha-atrás e regressou a Tete.

Entretanto, os guerreiros que se pretendera sitiar fizeram uma ruidosa exposição dos despojos da luta contra os Portugueses diante do arraial dos de Sena (que continuavam aguardando pelos de Tete), envergando seu chefe a batina de um padre que viajara na coluna de Tete, ao mesmo tempo que na mão esquerda segurava o cálice do padre e, na direita, uma lança.

Aterrorizados, os Portugueses resolveram retornar a Sena quando caísse a noite. Mas fizeram-no tão precipitadamente, que os Azimba os descobriram no engenho e, saindo da fortificação, carregaram sobre eles e os mataram em grande número, incluindo o próprio capitão.

Isso, segundo Santos, passou-se em 1592. No ano seguinte, o capitão de Moçambique resolveu tirar

desforra. Com 200 Portugueses, 1500 guerreiros africanos e algu-mas peças de artilharia, montou o seu arraial no mesmo sítio onde estivera montado o de seus predecessores.

Começou o capitão por mandar bater com a artilharia a tran-queira dos Azimba, do que nada resultou «porquanto era de madeira grossa e terraplenada pela parte de dentro de entulho mui largo e forte, que os Azimba fizeram com a terra que tinham retirado da cava (do valado, construído em volta da tranqueira)».

O capitão resolveu, então, entulhar uma parte do valado. Executada a operação, passaram os guerreiros pela parte entulhada com machados para cortar os troncos da paliçada. E estavam a cortá-los, apesar das flechas lançadas pelas seteiras da tranqueira, quando os sitiados puseram em jogo novas armas. Assim, começaram a deitar «azeite» e água a ferver sobre os sitiantes, queimando-os e pelando-os, ao mesmo tempo que lançavam pelas seteiras ganchos de ferro «à moda de fisgas» e com eles feriam ou içavam os atacantes até à ponta dos troncos para os matar.

Perante semelhante amostra de armamento, o capitão achou assisado mandar recolher as suas queimadas forças ao arraial e todo aquele dia, segundo o cronista, «se gastou em curar os feridos e escaldados».

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No dia seguinte, o capitão ordenou a confecção de cestos de madeira e verga muito altos, mais altos do que os troncos da defesa adversária, e mandou que os pusessem defronte dos troncos para que os soldados portugueses fizessem fogo por cima deles e os guerreiros Azimba não ousassem pelejar à superfície da tranqueira e lançar «azeite» e água a ferver sobre os atacantes.

Estava quase montado o ardil, deconidos eram já dois meses de guerra, quando os Portugueses, temerosos, inventaram junto do capitão a história de que tinham recebido cartas de Sena escritas por suas mulheres, nas quais estas os chamavam por temerem um ataque à vila.

O capitão acreditou no que lhe foi dito e deu ordem para se levantar o arraial e se regressar a Sena. Mas a mudança não foi feita com o segredo que os Portugueses desejaram e os Azimba, saindo a terreiro, investiram sobre eles e os mataram em grande número (Santos, 1609:233-240).

O mesmo Santos deixou um outro testemunho da articulação de fortificações com a emboscada, desta vez com os Portugueses sitiados em lugar de sitiar. A história passou-se na província de Tete, quando os Portugueses andavam à procura das minas de prata da Chicôa.

Foi assim (26): Havia meses que os Portugueses se encon-travam na Chicôa numa furiosa busca de prata, cujo paradeiro (se é que alguma vez existiu) não lhes era, por mais que tentassem, comunicado pelos naturais. Ainda por cima, para se alimentarem, os forasteiros roubavam-lhes, à força das armas, géneros e vacas.

Fartos de prepotências e roubos, os habitantes da Chicôa decidiram pôr termo à presença portuguesa nas suas terras. Começaram por cultivar uma amizade estudada, como a de quem não se importava de a manifestar mesmo se espoliado e agredido, com o que se agradaram os pesquisadores de prata. Depois que viram estar aquela amizade acreditada, disseram-lhes que iriam, por fim, revelar-lhes o local onde se encontravam as minas.

Assente o dia da revelação, ficaram 40 Portugueses numa fortificação que tinham construído e partiram os restantes com a gente da Chicôa. Mas ao passarem num local de mato cerrado.

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três mil guerreiros sairam-lhes ao encontro e mataram quase todos os Portugueses, tendo os sobreviventes procurado, céleres, refúgio na fortificação.

A esta puseram cerco os guerreiros, decididos a matar à fome os sitiados. Assim estiveram alguns meses. Até que os Portugueses, desesperados e esfomeados, resolveram fazer uma surtida ao exterior. Mas os guerreiros da Chicôa cairam sobre eles e os mataram a todos (1609, 1:216-217).

Várias descrições da combinação da defesa em fortificações com outros tipos de luta foram igualmente fornecidas por Bocarro em 1635. Uma delas incidiu na resistência de Chombe, rei de um território do médio Zambeze, às imposições dos Portugueses (27).

Pretenderam os Portugueses que Chombe lhes pagasse tributo (dois mil alqueires de milho) e lhes entregasse os escravos que, fugidos, se refugiavam nas terras do monarca. Ao que Chombe respondeu dizendo que nem milho nem escravos daria e que se os Portugueses lhos quisessem tomar à força, que viessem, pois também ele folgaria de provar a mão na luta.

Com cem espingardas e cerca de seis mil guerreiros dos chefes colaboradores Quitambo e Samacanqua, decidiram os Portugueses castigar, nas palavras de Bocarro, o «atrevimento e soberba resposta do Chombe».

Em chegando ao forte do rei, mandaram construir «muitas portas de cana tecida» e, protegidos por essas paliçadas móveis, os guerreiros africanos chegaram-se à tranqueira, mas foram recebidos por forte tiroteio, pois Chombe tinha duas roqueiras e mais espingardas do que o inimigo.

Retirando, os Portugueses ordenaram a construção de uma paliçada junto a uma lagoa, cuja água alimentava a de Chombe («meia légua de comprido e dois tiros de espingarda de largo»), onde se encontravam para cima de oito mil pessoas.

A guerra pasou a revestir, durante algum tempo, as carac-terísticas de uma luta de trincheiras.

Entretanto, em nova surtida, divididas em três batalhões, as tropas comandadas pelos Portugueses tentaram cometer o forte de Chombe por três partes, mas debalde, pois os sitiados «o defenderam valorosamente, acudindo a todas três partes com tanta cópia de espingardas e flechas que parecia estarem todos juntos em cada parte».

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E outras surtidas fracassadas se seguiram, apesar dos reforços recebidos de Sena e do contributo de mais 40 espingardas. Os defensores conseguiram sempre apagar o fogo posto na tranqueira.

Dois meses e meio depois, Chombe foi vencido. O inimigo fechou-lhe o acesso à água, construiu grandes cavalos de madeira na garupa dos quais foi abatendo os que apareciam à superfície da paliçada ou saíam para ir buscar água, armou-se com paredões de cana e, durante quatro dias, assaltou continuamente a tranqueira do rei, conseguindo fazer-lhe arder três secções. Atrás dos montes de cadáveres que entulhavam os rombos, os sitiados vivos lutaram heroicamente até onde puderam, sem água e já quase sem munições. Quando se renderam, foram feitos escravos e levados para Sena. Mas Chombe conseguiu fugir com alguns guerreiros, prosseguindo, no mato, uma guerra de guerrilhas contra os colaboradores dos Portugueses.

Porque pelejara, escreveu Bocarro, «com muita coragem e fidelidade», Quitambo, o chefe colaborador, ficou com as terras e o que restava do forte de Chombe. Mas ficou, também—supremo prémio —, com a obrigação de pagar aos Portugueses uma renda periódica de 100 manchilas e duas mil panjas de milho para sustento dos «gastos de conquista, que era a mesma obrigação que Chombe tinha, e não quis pagar». Aos guerreiros, foram distribuídas capulanas (1635:569-577).

Casos de combinação de defesa em aringas, ataques às dos Portugueses e emboscadas deram-se no Báruè, em 1902 e na já várias vezes mencionada revolta de 1917 (Botelho, 1936, 11:588-595; Alberto e Toscano, 1942:259-262; Isaacman, 1976: 264, 282, 285). Embora os Portugueses afirmassem que a «revolta do Báruè» terminara no mesmo ano em que tivera início (1917) (Alberto e Toscano, 1942:262), o certo é que, segundo Isaacman, uma pequena força de resistentes atacou periodicamente bases inimigas até 1920 (1976:282), nos derradeiros momentos de luta armada pré-FRELIMO do Povo moçambicano.

Nas lutas contra os Portugueses, também se empregou o combate a descoberto. Por exemplo, quando 650 invasores, arma-dos com mosquetes, arcabuzes e artilharia e trazendo camelos da costa arábica, penetraram em 1572 no vale do Zambeze com a intenção de chegar à corte do Muenemutapua, dez a doze mil

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guerreiros (número decerto exagerado) de um rei do médio Zambeze atacaram-nos numa campina rasa com um dispositivo táctico em meia-Iua. Este tipo de ataque foi repetido várias vezes (Botelho, 1936, 11:187-193). Veremos, quando descrevermos o Sul, que o dispositivo em meia-Iua foi igualmente praticado no Estado de Gaza. Destruir os alimentos e entulhar os poços na retirada, constituiu mais uma forma de luta oposta aos Portugueses (técnica da «terra queimada»), tendo sido usada, por exemplo, pelo exército do Estado de Quiteve quando o inimigo, após o fracasso da primeira tentativa feita em 1572 para chegar ao Muenemutapua, o procurou fazer em 1573 por Sofala. Além disso, a técnica foi apoiada por emboscadas sucessivas, tornando dolorosa a caminhada dos esfomeados invasores (Santos, 1609, 1:101; Botelho, 1936, 1:203). A «terra queimada» foi também utilizada ao que julgamos na «Chedima» (província de Tete), território do Muene-mutapa, quando em 1597 um exército marave, ao sentir-se perseguido por forças coligadas ao Muenemutapua e dos Portugueses

(...) de caminho foi queimando todos os mantimentos que achava, de modo que indo-lhe os nossos (Portugueses, C. S.) no alcance não acharam que comer, e constrangidos da fome se tornaram todos, deixando de seguir o inimigo (Bocarro, 1635:543).

APRENDIZAGEM E TREINO 5.2.3.

O teatro dançado era a grande escola popular de aprendizagem e treino das técnicas de guerra que acabámos de apresentar. Autêntica academia militar ao ar livre, nele, segundo Almeida, se encenavam e reproduziam com regularidade as batalhas travadas, com ênfase para as arremetidas e as retiradas. Cada guerreiro conhecia muito bem os processos de luta de outras regiões (1648:207).

Mas, aparentemente, a aristocracia dispunha de uma moda-lidade privativa de treino, que fazia conjugar com o divertimento. Era o «pemberaa>

que é escaramuçarem com azagaias nas mãos, remetendo uns aos outros, e ameaçando com elas, como quando pele-jam na guerra (Bocarro, 1635:541-542).

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O «pemberar> congregava os grandes não só do Estado, mas, por vezes, dos Estados, chefaturas e linhagens subordinados. Segundo Santos, em Setembro de cada ano o próprio rei do Quiteve participava no simulacro de guerra ricamente vestido, tal como outros nobres, com os melhores panos de seda ou de algodão e ostentando na testa uma fita larga cheia de cadilhos tecidos (1609, l:65). No Muenemutapua, este, de acordo com Bocarro, «está sentado vendo esta escaramuça» (1635:542).

Passatempo com riscos, o «pemberar» terminava invariavel-mente no oitavo dia da lua com a morte, imposta pelo Muene-mutapua e oferecida aos grandes espíritos, de um dos nobres com quem se indispusera (Bocarro, 1635:542).

AMPLITUDE DAS OPERAÇÕES 5.2.4.

No Estado do Muenemutapua, por exemplo, segundo uma fonte quinhentista citada por Randles, cada homem levava para a guerra a sua própria alimentação de campanha (1975:88). Embora certa-mente de pequena monta para facilitar a mobilidade, constitui, porém, um dado novo em relação ao Norte, pois aqui a alimentação não era levada pelo guerreiro, mas simplesmente pilhada em território inimigo. Quanto à aristocracia, essa fazia integrar na coluna de guerra alguns bois dos seus rebanhos (Randles, 1975:88), o que, parece-nos, não estava ao alcance de qualquer simples guerreiro.

Exceptuando esse caso de o régio alimento se deslocar por si próprio, era impossível no Estado o transporte de grandes quantidades de alimentos (carne seca, farinha, etc.) por se ignorar quer a tracção animal quer os meios mecânicos de transporte (dado desconhecer-se a roda não havia, por exemplo, carroças). No Butua, contudo, o boi foi usado como montada e animal de carga (Randles, 1975:75), mas não há notícia da sua utilização em operações militares.

Nessas circunstâncias, as operações não podiam durar mais de quatro dias, como notaram Alcáçova (1506:394) e, décadas depois. Barros, citado por Randles (1975:88), nem as batalhas mais de três horas, segundo um autor do século XVIII (Anónimo, 1794:222). Por outro lado, a inexistência de cavalos reduzia, naturalmente, a extensão geográfica das operações, como sublinhou Barros, de novo citado por Randles (1975:88), embora se saiba

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por Bocarro que o Muenemutapua Lucere esteve para receber do português Diogo Simões Madeira, espécie de condottiero do Zambeze e antepassado dos «Prazeiros», um cavalo de saguate, o qual o rei denegou na altura por, argumentou, ser verão, estarem as terras áridas e rarear a água (1635:588). Por não haver, portanto, cavalos, parece excessivo o efectivo atribuído por Bocarro ao exército de Matuzianhe que atacou em 1609 o Muenemutapua Lucere (20 mil homens, reveja 5.2.2.1). O efectivo médio nos Estados de maior envergadura devia orçar pelos três mil homens, número indicado por um autor setecentista para o exército do Muenemutapua, porque, segundo afirmou, «é o muito que pode pôr em campo, e o tem sempre junto a si» (Anónimo, 1794:223). Além do mais, as operações militares estavam condicionadas pela existência de capulanas, as quais serviam para pagar os soldos dos guerreiros, como tivemos ocasião de verificar na unidade 3 através de uma referência de Silveira (reveja 1518: 568; consulte, ainda, Costa, 1977:25-26; Lobato, 1962:83). Isso explica a grande dependência do patriciado local em relação aos mercadores, bem como a intensificação das guerras pelo exclusivo das relações com eles e, também, a crescente preponderância política dos Portugueses ao nível do aparelho de Estado do Muenemutapua (veja Costa, 1977).

Mas certas batalhas, nomeadamente as de fortificações, podiam arrastar-se por vários dias e, mesmo, meses. Por outro lado, as operações polivalentes, nas quais a luta de posições nos fortins alternava com o grande combate a descoberto, a emboscada, o golpe de mão, etc, estendiam-se com frequência por vários territórios, durando, igualmente, dias e meses (reveja o que escrevemos em 5.2.2; verifique, ainda, Bocarro, 1635:542-545, 569--583, 592-594). Nesses casos, porém, eram transpostos os limites que os recursos alimentares permitiam e, por essa razão, o saque surgia como alternativa de emergência (Bocarro, 1635:556, 559, 562, 564).

Todavia, independentemente das diversas limitações impostas não apenas aos efectivos como, também, à duração das campanhas militares, há uma característica que deve ser realçada, por ser nova no confronto com o Norte: queremos aludir à prática mais sistemática da actividade guerreira assinalada pelo autor anónimo de 1794 (em epígrafe citado por duas vezes), quando

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ele escreveu que o Muenemutapua tinha o exército «sempre junto a si» (1794:223). Aliás, já Barbosa assinalava em 1516, nomeando o Muenemutapua, que «este rei traz continuadamente no campo um capitão seu a que chamam Sono com grande soma de gente de armas entre a qual gente traz cinco ou seis mil mulheres que também tomam armas e pelejam: com a qual gente este seu capitão anda assentando e pacificando reis que se levantam ou querem levantar contra seu senhor» (1518:361-362) (não pôde provar-se a célebre referência às amazonas, única na cronística e no epistolário coloniais). A prática sistemática da actividade guerreira parece ter estado da mesma forma presente na organização da guarda pessoal do rei do Quiteve e do próprio Muenemutapua: o primeiro, por exemplo, dispunha de 200 ou 300 guarda--costas («infices»), também executores judiciais, que usavam uma corda grossa à volta do pescoço e da cintura e, como armas, uma machadinha de ferro e uma maça de pau do comprimento de um côvado (Santos, 1609, l:72, 222).

A existência de uma actividade guerreira mais perene tinha a sua razão de ser. No Norte das linhagens e dos chefes militares, carente em geral de uma estrutura política de base territorial, onde os chefes governavam menos súbitos do que parentes, a guerra não visava, por norma, a ocupação de territórios e a imposição de tributos às populações subjugadas: ou se causava ao inimigo um prejuízo geral doloroso, como tivemos ocasião de escrever em 5.1.4, ou se procurava expulsá-lo sendo invasor. Mas no Centro, onde Estados de conquista tinham sujeitado as populações pela guerra e pelo tributo num quadro territorial que assumiu, pelo menos uma vez, a configuração do Império, como o do Muenemutapua, a guerra destinava-se sobretudo a perpetuar a exploração das comunidades subjugadas. Daí, pois, a serni--profissionalização ou, mesmo, profissionalização da actividade bélica, acompanhada do pré que a capulana representava.

Não quer isso dizer que por tudo e por nada a aristocracia procurasse fazer uso do exército, como Barbosa deixou suben-tender no caso do Muenemutapua, entre outras razões porque não era fácil mantê-lo. Os Amuenemutapua, por exemplo, tinham por costume, pelo menos no século XVII, tentar economizar nas despesas e nos riscos que um exército sempre comportava, investindo também na ideologia: é assim que nos seus palácios

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se educavam os filhos dos nobres de suas terras («massacoriras»), futuros chefes, inculcando-se-lhes, até aos 20 anos, o respeito e, asseverou Bocarro, a castidade (1635:538; ainda, Santos, 1609, 1:220). Mas como a educação nem sempre dá frutos, os sequiosos de independência eram muitos no Estado e as aflições dos Amuenemutapua sem fim. Por essa razão, na razão última do decréscimo da centralização política, das lealdades dinásticas e dos tributos, o exército era amiúde chamado a intervir em todo o Estado e, mesmo, no que fora o antigo Império, para resolver pelas armas o que a buscada pedagogia da fidelidade não resolvia junto dos jovens e nobres vassalos educados na corte (veja Bocarro, 1635). Por essa razão se compreende, também, a crescente preponderância política dos Portugueses, que, estudando as rivalidades, começando depois a distribuir saguates e baptismos, acabaram por se fazer conselheiros militares, senhores de terras e de minas e responsáveis pela eleição dos Amuenemutapua, a pontos de, em 1667, Barreto afirmar que «agora põem e depõem Reis todas as vezes, que querem» (1667:454; veja ainda: Anónimo, 1683; Morais, 1726; 24-25), o que de facto aconteceu já em 1629 com Capranzine, deposto e substituído por seu tio Mavura, que, numa parada a 24 de Maio daquele ano, se reconheceu vassalo do rei português (Gomes, 1648:191). Para coroar a hipoteca aos estrangeiros, não só uma guarda pessoal de 20 soldados portugueses «protegia» o Muenemutapua, quanto «O Rei para ser conhecido por tal (...) é costume (...) ser baptizado (...)» (Xavier, 1758:201).

MECANISMOS DE ACTIVAÇÃO 5.2.5.

Não bastavam a força, a coragem, as armas tradicionais e a habilidade táctica para vencer uma guerra: fazia-se ainda intervir a força surpreendente e propiciadora do contra-feiticeiro.

Por todo o lado se acreditava chegar ele onde nem o homem nem a técnica chegavam.

Os inimigos afrontavam-se tendo cada um, à testa do seu exército, o respectivo contra-feiticeiro. Pode até dizer-se que o primeiro afrontamento ocorria entre eles. Por exemplo, quando os Portugueses tentaram chegar ao Muenemutapua em 1572, avançando pelo vale do Zambeze acima com um padre na dianteira de crucifixo arvorado para-notou Botelho — «dar ânimo aos

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soldados», os Atonga («Mongazes», lhes chamaram os Portu-gueses) ripostaram com uma contra-feiticeira que, também à frente do exército, transportava a tiracolo uma cabaça com pós mágicos. Porém, a artilharia pôde mais do que os pós mágicos e um tiro de «falcão», peça dos séculos XVI e XVII, despedaçou aquela de quem os guerreiros tanto tinham esperado. Mas os Portugueses não conseguiram chegar ao Muenemutapua (Botelho, 1936, 1:191-201).

O mundo da magia entrou igualmente em 1917 no arsenal activador do levante do Báruè: grande consumo de feitiços de guerra fizeram os que lutaram contra os Portugueses, acreditando que, com o seu uso, poderiam transformar em água as balas disparadas pelas espingardas do inimigo (Isaacman, 1976:264).

Uma segunda componente dos mecanismos de activação foi já .mencionada em 5.2.3: o teatro dançado.

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5.3 SUL

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EQUIPAMENTO

5.3.1.

Em 1497, descrevendo a viagem de Vasco da Gama pela costa de Moçambique, Velho observou que em Inhambane «as armas desta gente são arcos muito grandes e flechas e azagaias de ferro e há nesta terra segundo nos pareceu muito cobre. (...) há nesta terra estanho que eles trazem numas guarnições de punhais e as bainhas deles são de marfim (...)» (1497:12). Em 1560, Fernandes escrevia que «Todos trazem arcos e flechas e azagaias pequenas» (1560:484). Em 1730, Soares notava que em Inhambane os «Macomatis» («Chope» ou «Chopi») (28) e os «Butongas» («Bi-Tonga») utilizavam arcos e flechas ervadas. Por outro lado, os «Landins», que, segundo Soares, viviam na baía do Maputo mas que se tinham estendido até Sofala, possuíam azagaias, escudos de couro de boi e uma espécie de machados para a luta corpo-a-corpo (1730; Smith, 1973:568).

Descrevendo em 1796 as lutas entre «Landins» de Inhambane e guerreiros de Sofala, Gama afirmou que os primeiros empregavam azagaias e escudos confeccionados com pele de búfalo (1796:22).

Azagaias e escudos foram igualmente mencionados por Botelho em 1835, armas decerto usadas pelos «Tsonga» (embora o autor não se lhes refira explicitamente), cuja penetração em Inhambane data do século XVIII (1835:102; Smith, 1970:117).

Um quadro mais diversificado, ainda sobre Inhambane, deu-o Cardoso em 1883. Assim, os Bi-Tonga serviam-se de espingardas, embora trouxessem sempre consigo duas ou três azagaias; os «Mindingues» (Chope) dispunham de arcos e flechas; finalmente,

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os «Landins» (Tsonga) possuíam dois tipos de azagaia: a de folha estreita e cabo comprido para arremesso e a de folha larga e cabo curto, a que chamavam «mestra», para a luta corpo-a-corpo. Os Tsonga tinham, ainda, cacetes pesados e curtos, terminados em bola («inguinhos»), que arremessavam com destreza ao inimigo, bem como escudos ovais de pele de boi, búfalo ou zebra. Muito velozes na carreira, desprezavam as armas de fogo por, segundo Cardoso, «acharem cobardia matar de longe e sem luta» (1883:180).

Após a invasão Nguni em 1820 (Junod, 1934,1:427) e a formação do Estado de Gaza em 1821, cuja sede esteve primeiro em Bilene, depois em Mossurize (Manica) e, a partir de 1889, na lagoa Suli, a cerca de três quilómetros de Mandlacazi (Toscano e Quintinha, 1935,1:57, 109-110), os Chope, para se defenderem dos ataques levados a cabo pelos regimentos de Ngunguniane, construíram fortificações com grossos troncos de árvore, chamados «cocolenes» (Toscano e Quintinha, 1935,1:112; Wheeler, 1968:588) ou «chocholo» (Rita-Ferreira, 1974:155). Foram célebres os cocolenes de Banhine, Chirrime, Mangunze, Cabéne e Macupulane (Toscano e Quintinha, 1935,1:112-115).

Sobre a baía do Maputo, Tereza escreveu em 1784 que a azagaia era a única arma utilizada, trazendo-a os guerreiros as mais das vezes às costas e lançando-a, quando em combate, a distâncias de 20 ou 30 passos. As hastes tinham de seis a sete palmos de comprimento. Por outro lado, quando havia um ataque, como na Inhaca, por exemplo, imediatamente se dava o alerta pelos tambores, sendo rápido o efeito por haver muitas povoações próximas umas das outras (1784:172, 162).

Depois que se formou o Estado de Gaza e, também, o Império, o armamento passou a englobar as seguintes peças: varapau («n-honga»), moca, azagaia («tlhari», «fumo»), de que havia uma para arremesso e outra para a luta corpo-a-corpo (esta introduzida, segundo Rita-Ferreira, pelos Nguni; veja 1974:173) e, também de origem Nguni, segundo Junod e Liesegang (respectivamente 1934,1:427-428; 1975:6), o escudo de placa giratória («chitlangu»), de forma oval, confeccionado com pele de boi e pintado com uma ou várias cores para distinguir os regimentos (Junod, 1934,1:429-432; Rita-Ferreira, 1974:207). Através de um mecanismo engenhoso, o escudo funcionava com uma placa gi-

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ratória, desviando as azagaias do inimigo se elas atingissem os cantos; mas se penetrassem no centro, o pau à volta do qual rodava a pele amortecia-as (Junod, 1934,1:430, 432; Rita-Ferreira, 1974:207).

O «chitlangu» era eficaz contra as azagaias, mas não, natural-mente, contra as balas de espingarda. Ora, o inimigo — os Portu-gueses e mesmo os Ingleses como veremos a seguir — não utili-zava azagaias, mas espingardas de repetição e artilharia. Não admira, pois, que a aristocracia de Gaza tivesse procurado apetre-char os seus regimentos com espingardas. Os autores divergem, contudo, sobre a quantidade possuída: Junod referiu algumas cen-tenas (1934, 1:432), Omer-Cooper duas mil (1966:62) e Enes men-cionou «milhares» para o combate de Marraquene, mas duas a três mil para o de Coolela (1945:85, 428). Pelo menos por duas vezes Ngunguniane recebeu armas e munições da British South Africa Company (BSAC), companhia majestática fundada pelo capitalista inglês Cecil Rhodes e que governou a Rodésia do Sul, hoje Zim-babwe, até 1922 (DH, 1980:110-111). Considerando Ngunguniane como o verdadeiro detentor dos territórios entre os rios Limpopo e Zambeze e procurando uma saída para o mar, a BSAC tentou aliciar o monarca assinando com ele em 1890 um acordo pelo qual Ngunguniane recebeu 1000 espingardas Martini-Henry, 30 mil cartuchos e uma pensão anual de 500 libras; em 1891, aparente-mente quando da ratificação do acordo, mais espingardas foram enviadas ao rei, mas os Portugueses interceptaram-nas e afun-daram-nas em Inhampura, na foz do Limpopo. O dirigente de Gaza tentou, igualmente, mas sem êxito, obtê-las da Companhia de Moçambique. Mas em 1893 um incêndio suspeito fez arder um paiol junto de Mandlacazi, destruindo 800 das 1000 espingardas recebidas da BSAC, enquanto, no mesmo ano, mais 200 se perdiam em campanha militar contra os Chope de Inhambane (Alberto e Toscano, 1942:191-192, 198-199; Enes, 1945:443; Wheeler, 1968:594; Rita-Ferreira, 1974:156).

O traje de guerra também foi, segundo Liesegang, introduzido pelos Nguni (1979:6). O traje-tipo compunha-se de um capacete («chintlonto») cónico, encimado por penas de avestruz e de outras aves e assente num gorro de pele de lontra; de colares à volta do pescoço, ao que parece com significado mágico; de um saiote («mandlovo») feito de peles e caudas de pequenos animais;

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de cintos de crinas brancas de boi que guarneciam os bicípites e as barrigas das pernas; de um cinto grande que rodeava os rins; finalmente, de braceletes confeccionadas com pevides negras («timbavu»), do tamanho de cerejas e oriundas do Norte, que rodeavam os tornozelos e, também, as barrigas das pernas (Junod, 1934, 1:428-429; Rita-Ferreira, 1974:207). Mas nem todos possuíam ou podiam possuir as mesmas peças. De resto, com todas as suas variações, o traje completo só seria provavelmente usado nas grandes cerimónias oficiais. Era tão quente que os guerreiros tinham por hábito trazer consigo, utilizando-a a modos de lenço, uma espátula de osso com a qual retiravam o suor que escorria da cara e do corpo (Junod, 1934, 1:429; Rita-Ferreira, 1974:207). Semelhante tipo de traje parece ter sido apenas característico do Sul, onde justamente terá predominado uma concepção mais sistemática da actividade guerreira.

Não há notícia de a organização militar de Gaza ter contemplado o uso de fortificações. A frágil sebe que rodeava os povoados do Sul destinava-se a protegê-los não contra os inimigos humanos, mas, antes, contra aqueles a que Junod chamou os «inimigos espirituais»: os feiticeiros, de quem se devia sempre recear a manipulação de sortilégios malignos («cu hi ringa hi ma-ringo»), razão por que a construção das sebes e, especialmente, da entrada principal, obedecia a cuidadosas operações de contra--feitiçaria (1934, 1:300, 309). Contudo, ao penetrarem no Império de Gaza os Portugueses construíram aringas e, em alguns casos, levaram chefes aliados também a construi-las, para se defenderem das incursões de Ngunguniane, na eventualidade de este pretender punir a colaboração, como, de facto, pretendeu, como veremos mais à frente (Andrade, 1895:327; Enes, 1945:393-394, 426; Junod, 1934,1:447). A prática, contudo, não foi adoptada e durou apenas enquanto decorreram os combates.

Como equipamento de galvanização, existiram, segundo Junod, dois instrumentos: o grande tambor «muntchintchi», utilizado, entre outras funções, para chamar os guerreiros em caso de batalha iminente; para uma convocatória mais rápida, emprega-va-se o «chipalapala», chifre de impala, inhala ou piva (1934, 1:410-411) (29-a).

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ORGANIZAÇÃO E TÉCNICA DE COMBATE 5.3.2.

Nas lutas entre Moçambicanos 5.3.2.1.

Aparentemente, antes da chegada dos Nguni em 1820 a arte militar era simples e não há notícia do envolvimento de grandes contingentes militares. Dois ou três inimigos mortos em combate, observou Junod, representavam um feito militar de envergadura. Os pequenos exércitos colocavam-se em linha recta para se afrontarem (Tereza, 1784:172; Junod, 1934,1:43-44, 427). Quando os regimentos de Manicusse ou Sochangane, avô de Ngunguniane, chegaram às planícies de Maputo, avançando em meia-lua e ata-cando com a precisão de um relógio, os exércitos das chefaturas locais foram facilmente vencidos: primeiro os de Maputo e Tembe, depois o de Matota e por aí adiante (Junod, 1934, 1:427).

Aos poucos e poucos foi introduzida e/ou adoptada a concepção mais desenvolvida e permanente da arte militar Nguni. Ao mesmo tempo, os guerreiros das chefaturas vencidas passaram a fazer parte dos regimentos Nguni, competindo-lhes efectuar o ataque na vanguarda. Ficaram, por isso, conhecidos por «Ma-buiandlela» (os que preparam o caminho) (Junod, 1934, 1:428).

Todo o homem apto foi considerado um soldado que se devia incorporar no exército sempre que este fosse convocado (Junod, 1934, 1:433). Os jovens prestavam serviço militar aos 15 anos, possivelmente até mais cedo, servindo de início como carregadores (Liesegang, 1979:7) e vigias de flancos (Toscano e Quin-tinha, 1935, 1:127).

O exército («impi», pi. «tiimpi») estava dividido em batalhões («mabutju ou «meboco») organizados por classes de idade, for-mando cada agrupamento dessas classes de idade um «butju» (Junod, 1934,1:433), comandado por um «ndjuna», que era assis-tido por oficiais chamados «liphini» (Liesegang, 1979:7). No tempo de Ngunguniane, o grande comandante-em-chefe («ndjuna muculu ua impi») foi Maguiguane (Toscano e Quintinha, 1935,1:125). Um batalhão subdividia-se em várias companhias («mintlaua» ou «mabandla») (Junod, 1934,1:433).

Cada regimento tinha o seu grito de guerra particular, o qual consistia na imitação do som do animal por que o regimento se identificava (Junod, 1934,1:433). Havia 24 regimentos até 1897 ou 1898 (Liesegang, 1979:6).

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A organização dos batalhões fazia-se não apenas numa base etária, mas, também, numa base regional (Botelho, 1936,11:431--432; Rita-Ferreira, 1974:203-204; Liesegang, 1979:7). Supomos que a organização do segundo tipo foi particularmente utilizada contra os Portugueses. Por exemplo, quando estes chegaram a Chicomo e Magul, Ngunguniane mandou mobilizar «mabutju» que, no caso de Magul, estavam a dois dias de marcha (Botelho, 1936,11:431-432). Dada a extensão do Império de Gaza e em vista da dificiente rede de comunicações, o recrutamento regional permitia, decerto, acorrer mais rapidamente ao local de combate. Uma vantagem adicional na luta contra os Portugueses consistiria em tornar o abastecimento alimentar menos sujeito a riscos, podendo os guerreiros da área onde se realizasse a batalha utilizar os laços familiares e linhageiros para obter comida.

Feita a mobilização para a guerra através de sopro no ch’pala-pala, os guerreiros afluiam rapidamente à povoação do chefe, onde formavam em círculo («biia mucumbi» ou «aca mucumbi») nos respectivos batalhões (Junod, 1934,1:433). Na sua máxima força, o exército de Gaza devia totalizar 40 mil homens, dispondo cada regimento de 1300 a 1600 guerreiros (Rita-Ferreira, 1974:205).

Depois de executadas as cerimónias de motivação (canções de luta, danças e recepção da medicina de guerra), os guerreiros partiam para o combate.

A ordem de combate era organizada fazendo-se avançar pri-meiro os rapazes, com os batedores («tinlhori» ou tinlholi») à cabeça. Aos mais jovens competia cercar a posição inimiga e fazer o assalto. A retaguarda compunha-se do que se chamava o «peito do chefe» («chifuba cha nhimpi»). O chefe conduzia a retaguarda, protegido pelos batalhões de veteranos (Junod, 1934, 1:444-445).

A extraordinária organização militar do exército correspondia ao alto grau de centralização política e administrativa que os monarcas de Gaza imprimiram não só ao Estado como ao Império. Mas as consequências dessa dupla pressão foram adversas para Gaza, pois em 1883, Cardoso, após uma expedição de espionagem a terras de Muzila, escrevia que «(...) a pressão exercida sobre os povos conquistados e submetidos a Muzila os trás descontentes a pontos de se queixarem, não sendo por isso muito difícil alargar o nosso território (dos Portugueses, C. S.) em Sofala

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e Inhambane, uma vez que se lhes dê protecção» (1883:185). Esta situação, como outras idênticas (ou, se de substância diferente, indo desaguar no mesmo resultado), foi, de facto, mais tarde aproveitada pelos Portugueses na luta contra Ngunguniane (ver, por exemplo, o fim deste ponto e 5.3.2.2). Por outro lado, é muito possível que a mencionada pressão administrativa, política e militar, amplificada por impostos gravosos e, dada a frequência dos raids militares, pelo abandono quase generalizado da agricultura nas terras mais controladas por Muzila (Cardoso, 1883:182-183), tivesse contribuído para estimular a emigração, que tantos reflexos teria para a história futura de Moçambique, começada ao que parece em 1860 para o Natal (África do Sul), depois que, segundo Junod, alguns africanos enviados pelos Ingleses a caçar elefantes na baía do Maputo disseram aos locais que eles poderiam ganhar muito dinheiro trabalhando em Pieter-maritzburg (1934,1:266).

Mas que tipo de guerra houve entre os Moçambicanos do Sul? Somos tentados a crer que a grande organização militar que descrevemos anteriormente apenas foi utilizada, em pleno, nos dois grandes momentos da história de Gaza: quando da formação simultânea do Estado e do Império e quando das lutas contra os Portugueses entre 1894 e 1897. Quer dizer: na ascensão e na queda. De permeio, a manutenção militar do Império teria sido assegurada menos por grandes batalhas campais do que por súbitas erupções nos povoados, invariavelmente acompanhadas da captura de mulheres, de rapazes para o exército e de gado (Junod, 1934,1:446-447; Rita-Ferreira, 1974:214). Isso talvez se possa explicar por três razões: em primeiro lugar, porque a força militar dos dirigentes de Gaza era tão grande e eficiente que nenhuma chefatura se re-atrevia a enfrentá-la em campo aberto (Toscano e Quintinha, 1935,1:249); em segundo lugar, porque a técnica militar Nguni se foi impregnando dos «pequenos métodos» locais de combate, o que o próprio Junod reconheceu (1934,1:446), fenómeno que, de resto, acompanhou a gradual absorção dos conquistadores pelos conquistados. Em 1887, por exemplo, Andrade, citado por Rita-Ferreira, estimou existirem Já só dois mil Nguni, concentrados principalmente em Mossurize e Chaimite (1974:152-153) (29-b); em terceiro lugar porque, feita a ocupação e instalada a rede administrativa, se tornou des-

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necessário à aristocracia de Gaza recorrer aos «grandes proces-sos», sempre dispendiosos em homens e recursos, quer para debe-lar pequenas rebeliões populares ou palacianas, quer para preencher as provisões régias em mulheres, guerreiros e gado. De resto, foi técnica Nguni, após a conquista de uma chefatura, deslocar os seus homens para com eles conquistar outras, sendo o governo destas atribuído aos primeiros vencidos (Toscano e Quintinha, 1935,1:110).

Contudo, nas lutas que os batalhões de Gaza tiveram de enfrentar, antes de reempregarem os «grandes processos» contra os Portugueses, devem ser salientadas as travadas em Inhambane, cujas características foram inegavelmente originais no Sul. Assim, quando Ngunguniane se dispôs a conquistar os Chope e contra eles enviou o seu exército, estes enfrentaram-no inicialmente pela guerrilha, aproveitando as matas que havia na região, tendo, pelo menos uma vez, levado os atacantes a bater em retirada, dizimados pela fome e pelas doenças; depois, ergueram cocolénes e num deles resistiu Sipadanhana, jovem que se criara na corte de Muzila, pois a aristocracia de Gaza tinha, tal como os Amuenemutapua, o costume de educar os filhos dos príncipes conquistados, o que no caso de Sipadanhana não surtiu, pelos vistos, resultado. Apesar de vencido após ter feito uma surtida em campo aberto, Sipadanhana teria conseguido fugir, indo solicitar auxílio aos Portugueses, enquanto outros guerreiros e chefes prosseguiam a luta em muitos cocolénes, conseguindo, na ilha de Baul, infligir uma pesada derrota aos regimentos de Gaza (Toscano e Quintinha, 1935,1:112-116; Rita-Ferreira, 1974:154-155). Estes conflitos que opuseram Gaza a Inhambane constituíram, certamente, uma das causas da vitória dos Portugueses, que sempre souberam tirar partido das desavenças entre os chefes locais para vencer uns com o auxílio de outros. Assim, por exemplo, começaram primeiro, com artilharia e outro armamento moderno, por auxiliar Gaza contra os Chope. Depois, como as sucessivas campanhas de Gaza tivessem debilitado os de Inhambane, limitaram-se, para lutar contra Gaza, a recrutar, observou Rita-Ferreira, entre «os aliados numerosos e decididos» (1974:155), que eram, justamente, os Chope. Isto passou-se numa região onde já no século XVIII,

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devido às múltiplas querelas entre os chefes, o colonizador tinha, entre os Afumu existentes, «onze feitos pelo feitor» (Soares, 1730), quer dizer, onze chefes eleitos, fabricados pelos Portugueses.

Nas lutas contra os Portugueses 5.3.2.2.

Contra os Portugueses a batalha-tipo travou-se regra geral com o exército disposto na planície em meia-lua, avançando os bata-lhões para cercar e asfixiar o inimigo, enquanto formações de atiradores, protegidos pelas árvores e morros de muchém ou co-zidos ao capim, faziam fogo constante preparando terreno ao combate corpo-a-corpo. Se o fogo do inimigo era forte, os guerreiros deitavam-se momentaneamente e aguardavam uma pausa no tiroteio. Se a pausa se verificasse, lançavam-se de novo ao ataque (Enes, 1945:87, 356-359, 428-429; Rita-Ferreira, 1974:166).

Parece poder sustentar-se que na maior parte das grandes bata-lhas não intervieram as tropas de éllte de Gaza, mas, antes, as das chefaturas subjugadas (Rita-Ferreira, 1974:211-212; Enes, 1945:430-431, XXXII). No combate travado ao amanhecer de 2 de Fevereiro de 1895 em Marracuene, no qual participaram os mabutju de Mahazule (da Magaia) e de N'uanamtibiane (da Zi-zacha) (Junod, 1934,1:490), guerreiros de escol de Ngunguniane estiveram no local e poderiam ter intervido (Junod, 1934,1:446), dando à batalha o selo da vitória, como reconheceu o próprio Enes, comissário-régio e comandante-em-chefe das forças portuguesas, ao afirmar que «não teria ficado vivo um soldado português» (1945:84; reabordaremos Marracuene mais à frente). Mas segundo Rodney, citado por Rita-Ferreira, não o fizeram por nesse sentido terem recebido ordens de Ngunguniane, que desejava uma solução negociada do conflito, à margem da confrontação militar (1974:160). O envolvimento da fina-flor militar de Gaza só se verificou, ao que parece, em Magul (Enes, 1945:XVIII, XIX, XXXII), justamente em território melhor controlado pela aristocracia gazense, cujo domínio efectivo, no vasto império criado, se exercia menos a sul do Incomáti do que a norte e leste do rio (Junod, 1934,1:490; Enes, 1945:35-39).

Embora o grande combate a descoberto tivesse predominado nos momentos mais decisivos da luta contra o inimigo, alguns chefes secundários do Império empregaram também a emboscada.

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se bem que localizadamente e fora, decerto, de qualquer coordenação pelo Estado-Maior de Gaza. Isso sucedeu, por exemplo, em 1895 na foz do Incomáti, quando um chefe-comerciante e seus homens de armas, tirando partido do denso mato da Maçaneta, flagelaram com espingardas durante meses os barcos dos Portugueses que por ali passavam transportando tropas e armamento, de nada valendo o uso que o inimigo contra eles fez de canhões--revólveres, metralhadoras, granadas, lanternetas e espingardas de repetição (Enes, 1945:64-65).

Da mesma forma, N'uanamtibiane da Zichacha (ou, ainda, Zizacha, Zihlahla) e Mahazule de Magaia (ou Mazuaia) empreenderam surtidas nocturnas em Marracuene, quando dos primeiros confrontos com os Portugueses, depois que estes decidiram ocupar o Império, tendo conseguido, pelo menos uma vez, na madrugada de 2 de Fevereiro de 1895, penetrar fulminantemente no quadrado inimigo. Eis, longo, embrulhado no apodo de «traição», o relato de Enes:

(...) sem que no bivaque se desse por tal, e sem que agora mesmo se possa reconstruir exactamente a cena, negros ágeis e subtis como cobras, que se tinham entranhado nas moitas avizinhadas das sentinelas, de rojo, coleantes, sem fazer estalar um ramo ou rumorejar um folhedo, devem ter fulminado algumas delas com azagaiadas certeiras; outros, mascarados com os capotes e os bonés do piquete que saíra a talar o campo e não voltara, terão passado sorrateiros pelos postos, falando-lhes em português como se fossem praças tresmalhadas desse mesmo piquete que reuniam ao corpo; ainda outros, talvez os mais numerosos, conseguiram insinuar-se pelas abertas da linha de vigilância, cosidos com a terra, cobertos com a vegetação e a noite: agrupados depois estes traiçoeiros assaltantes junto à margem do Incomáti, avançaram para a face direita do quadrado, na sua parte formada pelos pelotões de caçadores 3, para abrir uma primeira brecha na desprotegida muralha dos peitos humanos, que eles já sentiam palpitar ao alcance das azagaias. Tudo isto foi instantâneo, mais pronto do que um grito de alarme. As tropas só se sobressaltaram ao distinguirem, já ali ao pé, um tropel de

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gente que vinha correndo e gritando: Camaradas, não façam fogo! camaradas angolas! (1945:82; grifos no original). Desarticulado o sistema defensivo do adversário (em quadrado), a surtida acabou, no entanto, por se gorar, devido à não intervenção dos mabutju de Ngunguniane, como se gorou o apelo à solidariedade dos mercenários angolanos que o inimigo fez alinhar nas suas fileiras. Passada a surpresa inicial e recomposto o seu quadrado, os Portugueses puderam, então, dizimar os Moçambicanos com as suas espingardas e as suas metralhadoras (Enes, 1945:84). Na madrugada seguinte, contudo, o inimigo sofreu ainda várias flagelações (Enes, 1945:81-82, 92, 96).

Referindo-se especialmente às chefaturas do que chamavam «terras de Coroa», as quais se estendiam até ao Incomáti e eram menos controladas por Gaza, os oficiais portugueses reconheceram que a agilidade, o conhecimento do terreno e a sua «habitual táctica de emboscadas e surpresas» asseguravam, aos guerreiros das chefaturas nomeadas, vantagens que poderiam ter sido — tíisse-o Enes — decisivas. E acrescentou: «A lição que os estrategistas indígenas tiraram do combate de Marracuene foi apenas que era preciso atacar os brancos de noite e no mato» (1945:96; grifo no original). Semelhante técnica não colhia as suas raízes unicamente.nem principalmente na pequena monta das chefaturas envolvidas. Quer dizer: o «pequeno processo», na aparência mais fácil, da surpresa e do ataque camuflado, não constituia só a expressão militar da pequena unidade política e do poder limitado dos chefes, até porque, como afirmou Enes, no local do combate «havia vestígios frescos do pisar de multidões (...) denotando que os assaltantes tinham vindo de diversas procedências juntar-se em Marraquene(...). 0 Estado-Maior calculou-os em cerca de três mil» (1945:86). 0 que chamamos «pequeno processo» era, também, apesar do conhecimento dos «grandes processos» Nguni de afrontamento em campo aberto com efectivos consideráveis, uma opção táctica tendente a contrabalançar a superioridade tecnológica do inimigo; era, ainda, o resultado de um correcto aproveitamento dos recursos da natureza, nomeadamente da vegetação higrófita (mangal e galeria florestal) que existe, por exemplo, nas margens do Incomáti (Sousa, 1930:33), justamente onde na margem direita, os guerreiros de N’uanamtibiane e Mahazule atacaram os Portugueses.

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Mas estes principiaram, especialmente depois das lutas de Marracuene, quer antes de entrar em combate, quer mesmo quando em bivaque, a rodear o seu dispositivo em quadrado (de três ou quatro fileiras de atiradores) com chapas de zinco e arame farpado, aumentando dessa forma o efeito da artilharia e das espingardas de repetição, ao mesmo tempo que, passando à ofensiva, iam construindo dezenas de postos fortificados e, aproveitando as numerosas rivalidades existentes entre os príncipes locais, organizavam coalizões com muitos deles para, em fases sucessivas, ao mesmo tempo manipulando a desunião e bloqueando o que mais temiam — a unidade ou o que Enes disse ser o perigo da «federação espontânea» (1945:97) —desbravarem um caminho que ia e foi desembocar em Mandlacazi, capital do Império de Gaza.

A partir de Marracuene, já em terras melhor senhoreadas por Ngunguniane, em todas as grandes batalhas a táctica moçambicana consistiu no ataque de frente em meia-lua e na busca do corpo-a-corpo com a azagaia de foíha larga e cabo curto (Enes, 1945:356-359, 428-431, VII), oferecendo os regimentos, como notou Botelho, um «formidável alvo» às espingardas de repetição e metralhadoras dos Portugueses (1936, ll:494). Por exemplo, mesmo tendo sabido com antecedência da chegada das tropas inimigas, o exército de Gaza foi enviado a combatê-las nas planícies de Coolela, quando podia ter tentado, entre outras alternativas, como sublinhou Enes, defender o vau de Manguanhana ou a encosta de Mandlacazi (1945:438).

A técnica do ataque Nguni era, na realidade, impressionante. Primeiro, os guerreiros formavam em arco de círculo, na formação de combate com que sempre atacavam (Enes, 1945:356); a seguir, sentavam-se sobre os calcanhares, como se em concentração (Enes, 1945:356, XXVIII); depois, principiavam o avanço com «passo ginástico, rápidos e ordenados» (Enes, 1945:428); estugavam-no finalmente para cair em turbilhão sobre o inimigo, como aconteceu, por exemplo, em Magul, onde Ngunguniane fez intervir nove regimentos:

E aí em Magul acometerarn com alma e com certeza de vitória, antecipado factor do êxito. Com alma e autêntico penacho honrando brilhantemente as plumas que lhes flu-tuavam sobre a cabeça. Saudemos os bravos que, na ver-

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dade, o merecem! Para compreendê-lo basta que cada um de nós ponha na sua ideia a imagem de um quadrado cercado de espingardas em tripla e quadrupla fileira a expedir balas com a ânsia vertiginosa de quem defende a vida, em transes de perdê-la. E dessa imagem, que silva nos ouvidos, faísca nos olhos e penetra nas carnes, poderá concluir que soma enorme de coragem não será precisa para se arrojar, sem escudos que valham, contra essa máquina horrenda de morticínio (Enes, 1945:XXX).

Já a 8 de Agosto de 1895 o oficial português Orneias tinha ficado estupefacto com a precisão, a regularidade e a beleza de uma extraordinária manobra militar que viu executar em Mandla- cazi, quase cinco meses antes de a capital de Gaza ter sido queimada pelos Portugueses (veja «Documentos»).

Por que perderam os nossos antepassados? Por que insistiram Ngunguniane e Magiguane no combate de frente em campo des-coberto?

A principal causa da derrota dos nossos antepassados residiu não no arame farpado e no zinco que protegeram os «quadrados» e os bivaques portugueses, não na inteligência táctica do inimigo (o que não significa subestimá-la), nem mesmo na sua superioridade tecnológica: residiu, antes, nas numerosas e intermináveis querelas dos chefes (29-c). Aí, na crueza irremediável desse espaço político, amplificado pelo descontentamento geral que reinava no Império de Gaza, nasceu a derrota militar. Analisemos um bocado essa problemática.

Antes de elaborarem o seu «plano de operações», os Portu-gueses estudaram a situação política do Império. Aparentemente, a primeira missão de espionagem organizada para o efeito data de 1882, cujo relatório, da autoria de Cardoso e publicado um ano depois, mencionava, numa das suas conclusões, um descontenta-mento considerável entre as populações (reveja 5.3.2.1). A espio-nagem prosseguiu quando em 1887 foi colocado na corte de Ngu-nguniane o conselheiro português Almeida, igualmente secretário da Companhia de Moçambique, que se juntou a um mundo de conselheiros de outros cobiçosos interesses quer directamente políticos, quer religiosos (veja, por exemplo, do ponto de vista português, a história desses conselheiros em Toscano e Quintinha, 1935,1:131-161).

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Não admira, pois, que, quando Enes preparou a «plano de operações» português nos primeiros anos de 1895, tivesse sido exclusivamente guiado pelo conhecimento de que, «no enorme país que se estende desde o Incomáti até o Inharrime, e ainda pela margem esquerda do Save», uma parte das populações se encontrava insatisfeita com o regime de Gaza (1945:161). O «plano» estabeleceu, por isso, três grandes linhas de actuação:(a) deviam ser cortadas e dificultadas as comunicações entre as diversas regiões do Império, prestando-se especial atenção ao domínio do Limpopo; (b) deviam ser ameaçadas as populações mais dispostas a aceitar a presença portuguesa, de forma a que os seus chefes não sentissem «pretextos» ou «necessidade» de juntar os seus exércitos ao de Ngunguniane caso este os convocasse; (c) devia animar-se «os descontentes a revoltarem-se contra o seu soberano e a unirem-se às nossas forças» (1945:161). Esses, os princípios da «guerra psicológica» que orientaram o que Enes, comandante das forças portuguesas, chamou o «factor moral», o qual se resumia a impor ao Império de Gaza à consciência da superioridade miiitar portuguesa (1945:V-IX).

De facto, a espionagem portuguesa trabalhou bem: em menos de dois anos e meio (desde a batalha de Marracuene a 2 de Fevereiro de 1895 ao combate de Macontene a 21 de Julho de 1897) (Rita-Ferreira, 1974:158, 166), após 77 anos de existência, o Império de Gaza foi destruído.

Vejamos, rapidamente, alguns momentos fundamentais do que, nas nossas fraquezas, concedeu a vitória ao colonizador.

Entre, grosso modo, 1860 (dois anos após a morte de Sochangane) e 1863, os seus dois filhos, Muzila e Maueue, envolveram--se numa guerra longa («mubango»), tendo Muzila, a 1 de Dezembro de 1861, solicitado auxílio aos Portugueses, o que estes, «compreendendo a importância do acontecimento» (Rita-Ferreira, 1974:140), logo forneceram entre moradores, soldados portugueses e, sobretudo, guerreiros das «terras da Coroa». Na batalha travada perto do Limpopo a 16 de Dezembro de 1861, 50 mil homens de Maueue foram derrotados pela fuzilaria das espingardas distribuídas a caçadores de elefantes (Rita-Ferreira, 1974:140). Finalmente, ao que parece com a ajuda de guerreiros das «terras da Coroa»

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ao serviço dos Portugueses e, também, de João Albasini, Muzila derrotou o irmão em 1863, garantindo o acesso ao trono (Rita-.Ferreira, 1974:140-141) (29-d).

Anos depois, a 23 de Agosto de 1885, na antiga Praça 7 de Março (hoje, Praça dos Trabalhadores) da também antiga Lourenço Marques, uma clara exibição de discórdia foi massivamente apresentada ao colonizador por alguns chefes das «terras da Coroa». Com efeito, súbditos das chefaturas de Xerindja, Zizacha, Mahota e Manhiça, que tinham sido instados a «cumprimentar» um novo governador português, envolveram-se num «ajuste de contas», cuja origem não apurámos mas de que resultou ficar a praça «juncada de cadáveres e de muitos feridos» (Alberto e Toscano, 1942:173-174).

As desavenças não acabaram e, quando do ataque a Lourenço Marques em 1894, Mahazule da Magaia acabou por abandonar N'uanamtibiane da Zizacha e Nuanguduane da Moamba (Botelho 1936, il:444).

Começaram, então, as operações portuguesas de ocupação militar e foi, também, levado à prática o princípio de vencer pela divisão, acentuando-a ou fomentando-a. É assim que N'uanamtibiane, cujo exército lutara contra os Portugueses no combate de Marracuene em 1895, teria sido surpreendido, ao refugiar-se em Nlhalalène, pelos guerreiros de Segahule da Matola (cooptado com o inimigo), que lhes causaram uma grande hecatombe (Junod, 1934, 1:446-447). Mas Enes apresentou uma versão algo diferente: após ter-se aliado com os Portugueses e instado a fazer alinhar o seu exército nas fileiras daqueles, Nuanguduane da Moamba teria optado por uma posição mais calculista, vendo primeiro qual o resultado das operações de Marracuene. Após apreciar de longe o fracasso de N'uanamtibiane para, com outros, vencer os Portugueses, enviou então um grupo de combate atacá-lo quando, descoroçoado, voltava às suas terras, ao mesmo tempo que fazia deslocar um outro grupo para lhe assaltar a sede da chefatura. Num caso ou noutro o resultado parece ter sido terrível, quer na morte de homens e de mulheres, quer na captura de gado (1945: 92-93).

O inimigo descobriu que «o terrível castigo trouxera à situação do distrito o enorme benefício de atear uma guerra de ódios entre indígenas» (Enes, 1945:93). No seguimento do jogo de interesses

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suscitado pelo conflito, Segahule mandou pedir a Enes as terras de N'uanamtibiane, ao mesmo tempo que se escudava dos ataques da Zizacha e seus aliados fazendo uma série de hábeis alianças; o chefe de Xerindja, que alinhara ao lado dos Portugueses, jun-tava-se à Moamba de Nuanguduane, que, entretanto, jogava quer do lado de Ngunguniane, quer do lado dos Portugueses (Enes, 1945:35-36, 97-98). Da divisão dos chefes em campos hostis e no faz e desfaz das alianças foi o invasor colhendo trunfos para a luta contra Ngunguniane. Assim, segundo Enes, se «quinze dias antes não dispunha de um negro para levar um recado a Angoane, ficou tendo debaixo da mão três a quatro mil guerreiros indígenas, fiéis por interesse próprio» (1945:98).

E quanto mais os Portugueses iam progredindo e internando-se no coração do Império de Gaza, quer com as modernas armas militares do imperialismo, quer com as velhas, mas sempre novas, armas políticas recolhidas no vasto alfobre das lutas interchefes — mais estas determinavam a eficiência daquelas. Assim, contornando os embates de fundo, fazendo a economia dos grandes esforços, o inimigo foi manietando os pequenos e médios chefes anticoloniais opondo-lhes outros que com eles tinham conflitos e/ou a quem não desagradava o saque recompensador, sancionado e protegido das vindictas pelo recurso à tutela das armas portuguesas (veja, por exemplo, Couceiro, 1895:319-320, 323-324). Só nesse contexto de rivalidades, apenas na ausência da Pátria se pode compreender quer a terrível indiferença de muitos chefes ante a incineração com petróleo, executada pelos Portugueses, dos bravos moçambicanos caídos em combate, quer o facto de o inimigo ter podido atribuir as baixas que teve à conta de mortos por uma Pátria que era nossa. Isso sucedeu em Marracuene:

Os cadáveres dos revoltosos foram queimados numa fogueira nutrida com petróleo que impregnou a atmosfera de vapores nauseabundos. Os nossos mortos tiveram sepultura em covas bem fundas, a poucos passos do lugar onde tinham morrido pela pátria, à beira do Incomáti (Enes, 1945:87).

A cooptação com os Portugueses tomou-se tão aguda e grave que, quando emissários da casa reinante de Gaza foram ao Xai- -Xai recrutar guerreiros, não só estes lhes foram recusados como foi o facto comunicado ao inimigo pelos chefes locais, que recebe-

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ram, como prémio, armamento e munições (Enes, 1945:449-450). Após o combate de Coolela, no qual não participaram os seis melhores regimentos de Gaza, comandados alguns pelos próprios tios de Ngunguniane (Toscano e Quintinha, 1935, 1:291), chefes do Xai-Xai foram

saudar as tropas vencedoras e oferecer-lhes o auxílio das zagaias que lhes obedeciam, ao mesmo tempo que ofereciam as suas terras para a instalação de um posto militar (Enes, 1945:510-511).

Foram ainda as rivalidades, agora entre os seus próprios co-mandantes militares, que minaram o plano gizado por Ngunguniane para punir os chefes coligados com os Portugueses, pois ele sabia, como qualquer grande político sabe de coisas desse género, que a verdadeira arma do inimigo era a defecção. O plano, elaborado por ele com o concurso de N'uanamtibiane da Zizacha e Mahazule da Magaia (ambos refugiados em Gaza desde Julho--Agosto de 1895), previa que uma expedição englobando nove regimentos, devia, durante nove meses, não aniquilar os Portugueses, mas, antes, «reduzi-los à impotência, tirando-lhes o apoio dos seus aliados negros» (Junod, 1934, 1:447). Assim, três regimentos dirigir-se-iam ao Estado Suázi, com cujo dirigente Ngunguniane fizera uma aliança; três outros passariam o rio a oeste do Sábiè e encaminhar-se-iam para sul, através de Movene; os três restantes, nos quais participariam N'uanamtibiane e Mahazule, deveriam atacar Ntimane, Xirindja, Moamba e Matola. Os nove regimentos encontrar-se-iam em Ncobotluène, a sul da baía do Maputo, onde se juntariam ao exército do chefe de Maputo, aliado de Ngunguniane. O plano acabou por se esboroar devido aos desentendimentos dos responsáveis da expedição punitiva (Junod, 1934,1:447).

A 15 de Novembro de 1895 os Portugueses chegavam a Mandiacazi. No mesmo dia, a capital régia foi primeiro saqueada pelos guerreiros dos seus chefes aliados e, depois, queimada (Rita--Ferreira, 1974:161).

Como sublinhou Junod, «a principal causa da incapacidade militar de que os Negros deram provas durante esta campanha foi o ciúme que continuamente reinou entre as diversas tribos (•••)» (1934,1:447).

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A divisão atingiu a própria casa reinante de Gaza. Num Conse-lho de Estado («Band'lha») convocado por Ngunguniane antes do saque e incêndio da capital, o monarca terá afirmado, após lamentar a derrota de Coolela e o licenciamento indevido de regimentos pelos chefes desleais:

Não são os brancos que me vencem, são as vossas traições!... Quem avisou as tropas do Chicomo de que eu tinha licenciado, temporariamente, as minhas melhores impis?!...

Agora aí tendes o resultado da vossa obra. Estou ven-cido e, se não puder fugir para o Transvaal, onde tenho amigos, serei preso! Mas, mais tarde, verão quem é melhor: se eu, ou os portugueses!... Os meus melhores chefes, os meus parentes mais che-gados, foram os que me prepararam esta miserável situação. Mas não faz mal, terão o pago a seu devido tempo. Os brancos vingar-se-ão em vocês todos, das despesas, perda de vidas, e maçadas que tiveram. Vocês não compreendem estas coisas! Os guerreiros da nossa casta vão sempre até ao fim. Se morressem, morriam no seu posto; se vencessem era uma glória para os Mangunos (Toscano e Quintinha, 1935,1:295-297; grifos no original).

Interrogado por um príncipe presente ao Conselho de Estado sobre por que não mandara comparecer na corte os traidores para serem fuzilados, Ngunguniane teria respondido que era tarde de mais para o fazer e que, além disso, « os mais culpados são irmãos de meu pai!...» (Toscano e Quintinha, 1935,1:297) (30). Agora, a outra questão: por que insistiram Ngunguniane e Magiguane no combate de frente em campo descoberto perante um adversário munido de armamento moderno? Segundo Liese-gang, o mais dedicado historiador de Gaza, a resposta encontra-se nos valores cultural-militares Nguni, os quais faziam a apologia da bravura, do combate em campo aberto e do desprezo pela morte em combate. Esses valores teriam, por exemplo, impedido Gaza de empregar a guerrilha nas lutas contra os Portugueses (1975:12).

Não percebemos muito bem por que razão deveriam esses valores, só por si, conduzir fatalmente os guerreiros ao grande combate a descoberto e não a outro ou a outros tipos de luta.

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Não existiram no Norte e no Centro valores que estimulavam a coragem e o desprezo pela morte em combate? Claro que sim. Argumentar que o incitamento à bravura ou o desprezo perante a morte determinavam o combate aberto Nguni equivale a defender, por exemplo, que a guerrilha nortenha era determinada por valores como a cobardia, o que, naturalmente, é inadmissível.

Qualquer valor, em qualquer parte deste mundo, ontem, hoje e amanhã, é, ele-próprio, determinado por algo que ao mesmo tempo o engloba e por ele é avalizado: o modo de produção. O Império de Gaza era fruto da imposição de um pastoralismo guerreiro, conquistador e predatório a chefaturas e linhagens que praticavam, já Tereza o mostrara no fim do século XVIII, uma economia mista, aparentemente harmoniosa, de agricultura e pecuária (1784). A conquista Nguni imprimiu-lhes, em circunstâncias históricas singulares, uma extensa territorialidade permanentemente tributada e/ou raziada em géneros agrícolas (mas não só) que complementavam um espaço económico, político e cultural de que o gado bovino era centro. É significativa, a esse respeito, a profecia do u’meban, grande hino militar:

Uimeban, Uimeban Uime a panse come jab Uimeban ………. Áhô …. jue tradução livre): Em vão colimas! Em vão trabalhas a terra! Nossas serão as colheitas quando passarmos com a guerra a guerra triunfante (Rita-Ferreira, 1974:210).

Não menos significativo é o facto de os centros de povoamento do Estado de Gaza terem estado localizado em áreas isentas de mosca tsé-tsé: Mossurize ou Mussapa a norte do Save (1836--1838, 1862-1888) e vale do Limpopo e áreas adjacentes (1839--1862, 1889-1895) (Liesegang, 1979:3).

Meio de produção que garante elevadas quotas proteicas pela carne, o sangue, o leite e seus derivados, alimentação apropriada

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aos guerreiros em constantes deslocações (Rita-Ferreira, 1974: 86), pastoreado pelas crianças que, atingida a adolescência, nsaiavam as primeiras escaramuças que as habilitavam a ingres- ar nos regimentos (Rita-Ferreira, 1974:215), intocável pelas mulheres por se suspeitar poder o fluxo menstrual adoentá-lo Junod, 1934,11:44-45), bem móvel facilmente perdido e adquirido na guerra (Maquet, 1962:170-171)—o gado bovino, enquanto meio de produção e valor cultural, foi a chave da organização militar Nguni, cuja base geral foi idêntica à de tantas outras sociedades pastoris de África (Maquet, 1962:170-171), mas que características históricas específicas tornaram superlativa na África Austral, após a formação de Estados e Impérios saídos do mfecane Nguni (mencionado em 3), de que um exemplo foi, justamente, o de Gaza-Nguni.

A organização militar de Gaza, tributária de efectivos consi-deráveis e garantia de um modo de produção embutido nos grandes espaços, não nasceu, certamente, para assegurar êxitos em emboscadas sistemáticas ou em modestas incursões de pilhagem de gado aos territórios inimigos. Nasceu, sim, para responder à manutenção de um vasto Império e dela fizeram parte, como condições naturais de reprodução da aristocracia militar gazense, o grande combate, a grande expedição de captura de gado, mulheres e rapazes para o exército e, ainda, o tributo.

Portanto, não foram os valores, em si, que impediram a grande Gaza aristocrática de utilizar a emboscada contra os Portugueses. Foi o seu modo de produção, simultaneamente modo de produção e de reprodução da vida, das clivagens sociais, de determinados valores políticos, culturais, etc, que configurou o tipo peculiar de luta dos guerreiros Nguni ou ngunizados e a ética militar que os impregnou. Porém, o que escrevemos só é verdadeiro se con-siderado no seu sentido mais extremo. Já referimos que a técnica de combate entre Moçambicanos se teria como que padronizado, após os grandes embates iniciais, na surtida de surpresa aos povoados (veja 5.3.2.1). Mas perante um inimigo mais poderoso em tecnologia militar, a velha estrutura bélica Nguni veio de novo à superfície, justamente porque era a mais suprema garantia de defesa de um modo de produção questionado até aos alicerces pelos Portugueses (e que foi mesmo empregue pelos ngunizados), pesassem não só os longos anos de erosão pelos «pequenos

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métodos» locais de combate (adequados à pequena monta das chefaturas), como, também, a «dissolução dos costumes» a que aludiu Rita-Ferreira (consumo de álcool, de estupefacientes, etc.) (1974:212-213).

Mas como a vida sempre se produz e reproduz num meio físico determinado, matéria-prima do modo de produção, não podemos deixar de reconhecer que também ele condicionou a organização militar Nguni. De facto, parece ter havido, nas lutas contra os Portugueses, uma clara correspondência entre o tipo de terreno (planície, regra geral), o tipo de vegetação (savana) e o tipo de combate (em campo aberto e frontal) (31).

APRENDIZAGEM E TREINO 5.3.3.

A nossa informação sobre um sistema formal de aprendizagem e treino militares limita-se ao que afirmou Cruz, citado por Rita--Ferreira: em épocas recuadas praticava-se no Sul um jogo de dardo que deve ter desempenhado um papel importante na aprendizagem da arte militar (1974:215).

Supomos, contudo, que, tal como se verificava no Norte e no Centro, o teatro dançado permitia a encenação dos grandes ar-quétipos tácticos. Isso sucedia por exemplo em Inhambane, onde a maior parte do conteúdo das danças consistia, segundo Fernandes, em

representar os autos da guerra todos, assim cercos como ser cercado, batalhas campais, vencer, ser vencidos (...) (1562:80).

AMPLITUDE DAS OPERAÇÕES 5.3.4.

A história de Gaza parece ter sido fortemente marcada por inúmeras guerras e constantes deslocações de grandes massas de guerreiros, apesar das tentativas efectuadas pela aristocracia Nguni para criar uma identidade para-étnica quer através de uma sólida organização político-administrativa, quer através da difusão de uma cultura comum a todas as comunidades.

As guerras e as mobilizações de guerreiros tornaram-se mais frequentes e intensas quando os Portugueses decidiram ocupar militarmente o Sul.

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A enorme rede tributária criada no Império permitia, decerto, sustentar campanhas militares de envergadura, as maiores que se teriam registado nos anais da história militar moçambicana.

Mas a intensificação das guerras suscitadas pelas rebeliões, pelas lutas de acesso ao trono (Muzila versus Maueue), pelas deslocações à procura de novas terras de pasto para o gado e, ainda e sobretudo, pelas operações contra os Portugueses, ultra-passou as capacidades produtivas do Império e fez com que a depradação cumprisse perigosamente na prática as vezes de um sistema formal de abastecimento, o qual nunca existiu segundo Rita-Ferreira e Liesegang (respectivamente, 1974:213; 1979:8).

O Império não estava preparado, como jamais esteve qualquer Império, para enfrentar o contínuo saque a que foram expostas as povoações, quer em gado, quer em géneros agrícolas. No que respeita ao gado, cujo valor proteico parece ter sido muito impor-tante para o exército de Gaza (Rita-Ferreira, 1974:186), a pilhagem foi tão radical, que em muitas regiões ele desapareceu. Isso explica, segundo Junod, por que razão nas transacções matrimoniais do Sul o gado bovino foi, entre 1820 e 1860/70, substituído pelas enxadas e pelas contas (1934,1:266). No respeitante ao saque de géneros agrícolas, o resultado foi que certas comunidades ou deixaram de cultivar arroz ou substituíram o cultivo de milho pelo de meixoeira, esta menos preparada para resistir à escassez e à irregularidade das chuvas, mas com a vantagem, asseverou Rita-Ferreira, de não ser apreciada pelos Nguni (1974:186--187) (32).

Por outro lado, as próprias depredações do exército comandado pelos Portugueses, quando do início da guerra em 1895, vieram agravar bastante a situação. Tanto assim foi que as populações, como notou Orneias, «chamam já aos soldados gafanhotos, baça em língua de Inhambane, tanto pelo número, que lhes parece imenso, como pela devastação que causam comendo tudo por toda a parte» (1895:163).

Não admira, pois, que os alimentos tivessem faltado justamente quando Gaza deles mais precisou para lutar contra os Portugueses, nomeadamente de Setembro de 1895 em diante, depois que o inimigo, tendo penetrado no Império por duas frentes e contando já com algumas vitórias no seu activo, se preparava

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para atingir Mandlacazi. É assim que, segundo Junod, estando 25 a 30 mil guerreiros de armas acampados havia semanas na capital à espera de ordens de Ngunguniane, «o grosso dos batalhões Tongas, não tendo que comer, dispersou-se» (1934,1:490). Mas, de acordo com Toscano e Quintinha, peio menos os seis melhores regimentos de Ngunguniane estiveram dois meses em Maguanhana, próximo de Mandlacazi, e, na opinião de Rita-Fer-reira, os batalhões estiveram na capital de Gaza muito mais tempo: desde fins de 1894 até quase Outubro de 1895 (1974:213). O licenciamento das tropas pode em parte ser atribuído a uma tentativa de os elementos descontentes da casa real de Gaza forçarem Ngunguniane a fazer as pazes com os Portugueses, como pode deduzir-se das afirmações do monarca apresentadas no fim de 5.3.2.2. Mas a escassez alimentar deve ter igualmente contribuído para o licenciamento.

A falta de alimento foi imputada por Enes a uma praga de gafanhotos que desvastou em 1894/95 as culturas das férteis regiões de Gaza, contribuindo, ao que parece, para que muitas mulheres palmilhassem os arredores de Mandlacazi à procura de comida para os guerreiros (1945:431; ver ainda Orneias, 1895: 162-163). Na difícil situação, os bois abatidos destinavam-se somente, segundo Rita-Ferreira, ao consumo dos chefes e os guerreiros contentavam-se com gafanhotos, que os seus mufanas apanhavam nas redondezas, ou comiam o que suas famílias traziam de longas distâncias. Observou ainda Rita-Ferreira que, no decorrer da longa espera, metade dos guerreiros andava invariavelmente à procura de comida (1974:187). Quando os Portugueses chegaram à capital de Gaza a 11 de Novembro de 1895, apenas um regimento ali estava para lhes fazer frente (Galhardo, 1895:357).

Contudo, antes da praga de gafanhotos em 1895, já Cardoso em 1883, após uma viagem de espionagem a terras de Muzila, observava que

As consequências das contínuas excursões que sofrem os súbditos de Muzila, são o abandono da agricultura e de quaisquer outros trabalhos, e daí a pobreza que se encontra em quase toda a parte (1883:183).

Por isso, embora as consequências da praga de gafanhotos não possam ser subestimadas, pensamos que ela se limitou a

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tornar mais agudo o déficit alimentar, de profundas consequências políticas, que começou a desenhar-se em 1820 e teve, entre outros de natureza diversa, o seu epílogo não tanto na fome de 1895 em Mandlacazi quanto na queda do Império em 1897.

MECANISMOS DE ACTIVAÇÃO 5.3.5.

Após a formação do Império de Gaza diversas cerimónias se institucionalizaram exercendo uma influência muito grande em todos os sectores da sociedade. As principais estiveram associadas com os cânticos, as danças e a aplicação do remédio da guerra.

Um dos hinos guerreiros, desafio lançado ao inimigo e cantado pelos homens de Mafumo, tinha a seguinte letra:

Hi ta cu iini? A ba te hiba bona, bhanu ba matico' (Que diremos? Que venham e nos vejam, os homens do país inimigo') (Junod, 1934,1:437).

Um outro hino exprimia o receio de os bois serem roubados pelo inimigo:

N'uambotene' ndi file'0...o...o'Tihomu tem' (Meu amigo'estou morto'0h...oh...oh! Os nossos bois!) (Junod, 1934,1:437).

Entre as danças de guerra, a «guila» ou «guiia» era uma representação dos actos de coragem daqueles que, em batalha, tinham morto inimigos. Nelas, a música misturava-se com a poesia dramática, épica e lírica, estimulando o ardor combativo. Como escreveu Junod,

O instinto guerreiro é excitado ao mais alto grau por estes coros patrióticos e estas representações dramáticas (1934, 1:439).

Mas não bastavam as danças e os cânticos para estimular o ardor guerreiro: importava ainda receber a medicina de guerra, confeccionada com plantas ou produtos animais. Bebida ou as-pergida, geralmente aspergida, a medicina levava os combatentes a persuadirem-se de que ganhavam a imunidade e que as balas ou os atravessariam sem dano ou se achatariam de encontro ao corpo, caindo depois, lassas, no chão; mas se voltassem costas ao inimigo, o efeito mágico quebrava-se e os guerreiros ficavam, então, à mercê das balas e dos golpes adversários (Junod, 1934, 1:440).

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Aparentemente os Portugueses tentaram, pelo menos uma vez, tirar partido psicológico da magia. Assim, tendo conseguido a aliança de Chibanza, chefe subalterno de Magude mas grande fabricante de feitiços temido em todo o Império de Gaza, fizeram-no alinhar no combate de Magul. Antes do início da peleja, Chibanza aproximou-se dos guerreiros de Ngunguniane e, sem ser por eles importunado ou ferido, insultou violentamente o primeiro e os segundos, particularmente o primeiro, após o que disparou a espingarda e regressou ao quadrado português. Soube-se, depois, que os guerreiros de Ngunguniane tinham acreditado possuir Chibanza uma mezinha infalível trazida de Hlanguene (território da Companhia de Moçambique), que lhe permitia volatilizar-se à frente dos inimigos (Toscano e Quintinha, 1935, 1:264-265; Enes, 1945:357-358).

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6. CONCLUSÕES

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Depois de termos estudado os diversos elementos constitutivos

do tema que acabamos de apresentar, importa, agora, reanalisá-los no seu conjunto.

A arte militar no Norte, Centro e Sul revestiu características diferentes porque diferentes também foram, em cada um desses grandes blocos geo-sócio-militares, a estrutura social e o meio físico.

No Norte, a estrutura social fortemente atomizada não foi dissolvida pela emergência de alguns poderosos senhorios políticos de cunho territorial, desenvolvidos especialmente a partir de meados do século XVIII com o comércio de escravos. Nessa sociedade onde a linhagem ou o segmento de linhagem constituíram o eixo geral a partir do qual ela se ordenou, se aliou e, com mais frequência, se dividiu, nessa sociedade típica dos «pequenos espaços», geradora de reduzidos excedentes alimentares e, portanto, menos afectada pelas clivagens sociais, a lide guerreira não podia, naturalmente, destacar-se da produção. Cada produtor era, em determinadas épocas, em certas circunstâncias, perante necessidades específicas, um guerreiro adicional que, após curtas operações, retomava a sua actividade produtiva. A esse tipo de sociedade como que corresponderam idealmente o relevo acidentado e a vegetação cerrada, equipamento defensivo natural e pródigo. Não admira, pois, que o golpe de mão ao povoado e a emboscada, a cargo de grupos muito móveis de guerreiros, destinados não a delimitar mandos territoriais sobre populações tributáveis mas a danar ou a expulsar o inimigo, fossem as técnicas de combate mais adequadas à estrutura social e ao meio físico descritos. Também não supreende que não se

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tivessem desenvoívido determinados símbolos ostentatórios da guerra campal (estandartes, por exemplo), o traje formal, inibidor da aguda mobilidade exigida no ataque fulminante e na retirada célere, e, ainda, certas armas de defesa como o escudo, típico da luta corpo-a-corpo. E compreende-se, da mesma forma, por que a espingarda se pôde tornar na mais social e ecologicamente adaptada arma da guerrilha nortenha, com reflexos a outros níveis, por exemplo na compensação matrimonial, cujas transacções só poderiam efectuar-se com a sua presença (Durão, 1902:11; Dias & Dias, 1970,111:257).

No centro, a estrutura social tornou-se mais complexa e polivalente. O político revestiu aí diversas gradações entre o atomizado e o centralizado, embora com predominância deste último. À linhagem e à chefatura, juntaram-se o Estado e, tem-porariamente, o Império, configuradoras de grandes espaços. Em sociedades divididas em classes sociais, onde ao estatuto de parente se impôs a pouco e pouco o de súbdito, os tributos cobrados pelas classes dominantes tornaram possível um excedente alimentar maior, o qual se reflectiu quer numa concepção mais sistemática da actividade guerreira quer na amplitude acrescentada das operações militares. E isso justamente porque a guerra visava agora não só danar ou expulsar o inimigo, mas também e sobretudo perpetuar uma soberania territorial sobre populações subjugadas e tributadas. O equipamento militar diver-sificou-se e incorporou o escudo, dois tipos de lança, a espingarda, a fortificação, o estandarte, mesmo o cão batedor. À variedade de formações políticas juntou-se igual variedade no relevo e na vegetação. Por consequência, foram igualmente variadas as técnicas de combate, as quais incluíram desde a guerrilha ao grande combate em campina rasa, passando pela luta de fortificações. É nesse contexto que o Centro se prefigurou como uma transição entre o Norte e o Sul.

No Sul, à «época» das linhagens e das chefaturas sucedeu-se a «época» do grande Império da Gaza, que as englobou numa ampla territorialidade tributada e consecutivamente raziada por um pastoralismo militar agressivo. A uma maior centralização política e a uma mais acentuada clivagem social (veja, por exemplo, Liesegang, 1979) correspondeu um maior excedente alimentar e, portanto, uma concepção mais perene, em relação ao Centro,

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da actividade guerreira. Os exércitos passaram a conter efectivos consideráveis e o desenvolvimento da organização militar foi como que sublimado pela complexidade do traje de guerra. À plenitude da centralização política uniu-se a plenitude da planície sem fim e da vegetação muito aberta. No grande Império e no grande espaço plano e aberto, percorrido pelos gados e pelos exércitos, se plasmou, como sua bissectriz natural, o grande combate a peito descoberto.

Em síntese, parece possível concluir-se que a complexidade social e militar aumentou de Norte para Sul. Por consequência, seria lógico inferir que quanto mais complexas foram a sociedade e a arte militar, maior foi a resistência oposta ao colonizador e maior, portanto, a dificuldade deste em a vencer. Mas a verdade parece ter sido outra. Com efeito, se fizermos as contas a partir do início sistemático em 1886 da ocupação militar portuguesa, a resistência no Sul durou de 1895 a 1897 (Rita-Ferreira, 1974:157-167); no Centro, houve dois períodos: de 1886 a 1904 e de 1917 a 1920 (Isaacman, 1976:169-327); no Norte durou ininterruptamente de 1886 a 1917, embora de 1913 a 1917 ela tivesse estado sobretudo concentrada no planalto de Mueda (Machado, 1970:427-537; Hafkin, 1973:359-403; Dias, 1964, l:92--93).

Quer dizer: a vitória colonial foi mais fácil quando o inimigo se defrontou com formações políticas centralizadas e mais difícil quando se defrontou com formações políticas descentralizadas. Mas há nisso menos contradição do que à primeira vista parece. De facto, sempre que lutou contra um Estado ou um Império, o inimigo pôde tirar partido da cooptação entre os múltiplos «ressentimentos» etno-políticos jamais anulados pela força militar e político-administrativa da facção aristocrática dirigente. A colaboração de classe entre facções descontentes da aristocracia e a burguesia militar portuguesa surgiu, aqui, em toda a sua nudez, como tivemos ocasião de mostrar quando analisámos o Império de Gaza. A secessão foi, na realidade, a principal arma política dos Portugueses. Mas onde o poder político se encontrava mais atomizado e horizontalizado e onde, portanto, menos prevalecia a dominação política de tipo territorial-tributário, o inimigo teve mais dificuldades em encontrar aliados «ressentidos». Em Cabo Delgado, por exemplo, a inexistência de uma estrutura política

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de integração «vertical» não permitiu, é verdade, que os homens das diversas linhagens se unissem para formar um grande exército. As linhagens não tinham chefes, mas pequenos decanos media-neiros e depositários da tradição. Contudo, a vitória portuguesa sobre uma ou duas linhagens não aniquilava, pelo menos não aniquilou durante muitos anos, a realidade sempre viva e recur-rente da multirresistência linhageira. Quer dizer: foi mais fácil ao inimigo vencer uma linhagem do que o princípio da organização linhageira. Por essa razão só em 1917 foi ocupado o planalto de Mueda, após esforços baldados de mais de duas décadas da Companhia do Niassa, fundada em 1891, para o conquistar (Dias, 1964, 1:92-93).

Todavia, esse fenómeno não pode ser absolutizado, pois, em última instância, todo o País estava minado pela dissensão etno-política. Foi essa dissensão, escrevemo-lo mais uma vez, a principal causa da nossa derrota ante o colonizador. Por outras palavras: o inimigo venceu porque nós não tínhamos uma Pátria, uma Nação.

Mas desenvolvamos um bocado a questão do porquê da nossa derrota militar. Temos que quatro foram as grandes causas dessa derrota: em primeiro lugar, as contradições etno-políticas; em segundo lugar, a inexistência de uma concepção de luta prolongada; em terceiro lugar, a carência de espingardas modernas e de artilharia; em quarto e último lugar, a falta de um sistema de abastecimento e transporte.

O inimigo soube habilmente tirar partido das contradições etno-políticas, pondo os nossos antepassados a lutar uns com os outros. Foi aí que tomou forma, que se cristalizou o facto colonial. Os nossos antepassados ganharam, é verdade, muitas batalhas. Mas ganharam-nas amiúde de forma isolada. O colonizador era geralmente combatido enquanto afectava, num dado momento, a vida e o território de um Estado, de uma chefatura ou de uma linhagem. Para além desse perímetro os Portugueses perdiam o seu estatuto de inimigos, justamente porque os outros, os das outras linhagens, chefaturas, etc, com quem não havia relações de aliança, eram considerados tão estranhos e inimigos como o colonizador, colonizador que os nossos antepassados não foram capazes, fechados como estavam nos seus cantões, de identificar como o verdadeiro inimigo que a todos afectava.

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Ano após ano os Portugueses foram estudando e catalogando as rivalidades do nosso Povo. Por exemplo, após ter visitado Milange, o director da Companhia da Zambézia escreveu o seguinte:

A região é espantosamente povoada (...) Armada até aos dentes, ter-me-ia causado desagradáveis surpresas, se a autoridade não estivesse tão dividida e os muenes não vivessem sempre em guerra entre si (...). Se um dia os angurus conseguirem ter um chefe prestigioso, a região há-de causar sérias dificuldades (...) (Durão, 1902:12-13).

Estudadas e catalogadas as contradições, os Portugueses empregaram-nas com êxito na ocupação militar. Quando da guerra do Báruè de 1902, por exemplo, a «infantaria indígena» por eles organizada era composta de soldados de quase todo o País, agrupados segundo a região de origem e o clã (Botelho, 1936, ll:585). Por outro lado, um historiador calculou que na «revolta do Báruè» de 1917 foram utilizados pelos Portugueses cerca de 30 mil voluntários do antigo Império de Gaza, englobados com salários mensais e promessas de saque em gado, mulheres e crianças (Isaacman, 1976:278-279). Aliciar mercenários com o saque e/ou a promoção a régulos constituiu uma das tácticas mais frequentemente manipuladas pelo inimigo: é assim que, por exemplo, após a batalha de Macontene de 21 de Julho de 1897, na qual Magiguane lutou heroicamente até à morte, 554 prisioneiras de guerra foram atribuídas aos sipaios, enquanto dois destes eram ainda promovidos a régulos das terras do Chibuto (Alberto e Toscano, 1942:233).

O inimigo chegou mesmo a elaborar teses sobre como fazer face à resistência anticolonial. Foi o caso, por exemplo, de um governador da Zambézia que, na primeira metade deste século, escreveu o seguinte:

(...) é facílimo prevenir todas as possíveis complicações empregando num ponto sipaios provenientes de local distanciado de 50 a 60 quilómetros (Lupi, 1909:59).

Por outras palavras: as contradições entre os nossos antepas-sados conferiram ao inimigo a possibilidade objectiva de dominar, como dominou, o colonizado com o próprio colonizado. Aconteceu mesmo que o colonizador recrutou Angolanos para lutar contra os Moçambicanos (Botelho, 1936, ll:585).

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Foram igualmente as contradições que impediram a coorde-nação nos esforços da luta anticolonial e a sua expressão numa prática de luta prolongada. É certo que houve algumas tentativas sérias, em particular no Centro, para criar amplas coligações anti-coloniais, as quais, aparentemente, traziam implícito o princípio da luta prolongada. Mas também elas acabaram por ser minadas pela deserção e pela cooptação (Isaacman, 1976:257-290), justamente porque o inimigo nunca foi, de facto — reafirmamo-lo —, encarado como um inimigo comum, contra quem se deveria não só unir esforços, mas, ao mesmo tempo e sobretudo, uni-los até ao fim, até ao fim do inimigo. Amiúde, o colonizador surgiu como um trunfo oportuno para um chefe se vingar de certos agravos (Newitt, 1973:340) ou para, não o sendo, sê-lo. Mesmo quando a resistência foi mais longa a vitoriosa, como sucedeu no Norte, área por excelência da guerrilha, mesmo aí as vitórias militares dos nossos antepassados deram-se em espaços restritos para além dos quais, sem a segurança da identidade clânica, já os guerrilheiros não podiam manobrar por serem considerados inimigos. Quer dizer, o guerrilheiro apenas podia ser peixe na água da sua linhagem e, com mais dificuldade, da sua chefatura. E quando as linhagens e as chefaturas se coligaram, também aí a resistência se quebrou quer pela prisão ou morte dos seus chefes (a resistência terminava regra geral quando desaparecia quem a dirigia) (Machado, 1970:363-364), quer porque, então, os Portugueses tinham feito intervir a cooptação (Lobato, 1971:19). A luta prolongada, como estratégia, era, por consequência, historicamente impossível (33).

A vitória dos Portugueses foi ainda possível pelo tipo de espingardas que os nossos antepassados empregaram e pela ine-xistência de artilharia. Havia, decerto, muitas espingardas, intro-duzidas e comercializadas especialmente a partir de meados do século XVIII, quando a escravatura se tornou mais intensa e o princípio dos negreiros consistia em fornecer armas para os chefes locais capturarem escravos. Alguns nobres africanos puderam, mesmo, mandar fabricá-las. Assim, segundo Isaacman, Hanga, príncipe herdeiro do Báruè, possuía nos primórdios deste século pequenas fábricas de espingardas e munições em Mungári e Missongue, onde igualmente se fabricaram mechas, iluminantes e balas de canhão (1976:116).

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Mas a maior parte das espingardas era, porém, de carregar pela boca e de pederneira, como sublinhou o oficial português Lupi, que, com evidente regozijo, acrescentou: «felizmente» (1907: 104). Há notícia de terem sido também empregues armas automáticas, mas temos sérias reservas sobre a sua generalização e não acreditamos, por exemplo, na informação de que Mussa Momad Saibo («Mussa Quanto») chegou a dispor de seis mil espingardas automáticas (Borges, 1980).

As espingardas de carregar pela boca («canhangulos», «espera pouco»), se foram inegavelmente úteis e contribuíram para pro-longar a resistência, trouxeram aos guerreiros, porém, pesadas servidões: por um lado, desfechado o primeiro tiro, o guerreiro tinha de recuar para qualquer lugar abrigado a fim de proceder às demoradas operações de recarregamento da arma (portanto, isto constituía uma vantagem para o inimigo); por outro lado, era sempre muito difícil adquirir munições e pólvora, situação que se agravou a partir de 1897 ou 1898 quando o então comissário-régio português Albuquerque proibiu a venda de armas e pólvora (Lupi, 1907:105). Saliente-se, a propósito, que a proibição constituiu, segundo Lupi, uma das causas da decadência comercial na Zambézia (1909:196), onde em 1889 as armas e a pólvora eram os «artigos com que se fazem, quase exclusivamente, as permutações do interior» (Amorim, 1889:142).

Que podiam as «espera pouco» contra as peças de montanha, os canhões Gruson de tiro rápido, os canhões-revólveres Hotchkiss, as metralhadoras Nordenfedh, as espingardas automáticas Kropatscheck e outras peças que os Portugueses utilizaram (Enes, 1945:284)?

Por outro lado, só em raros casos puderam os Moçambicanos dispor de artilharia. Usaram-na sobretudo os Amuanamuzungo do vale do Zambeze, mas ela pouco lhes pôde ser útil devido às rivalidades que os minaram e derrotaram (Isaacman, 1976:62; Newitt, 1937:340).

E, finalmente, atolados em rivalidades, praticando uma oposição localizada, munidos regra geral de espingardas de carregar pela boca, sem artilharia, como poderiam os nossos antepassados ter ganho ao inimigo se, ainda por cima, não dispuseram com que manter regularmente as campanhas de resistência, ou seja, de um sistema formal de abastecimento e transporte?

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7. DOCUMENTOS

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Os documentos que inserimos a seguir (dois por cada um dos três blocos geo-sócio-militares) destinam-se a ilustrar os diversos processos de combate do nosso Povo na resistência que opôs ao colonizador, com excepção de um (doe. 1 do Sul); que relata uma cerimónia militar realizada em Mandlacazi, última capital do antigo Império de Gaza.

São da nossa autoria os títulos dos documentos 1 do Norte e 2 do Sul; os restantes, reproduzidos em parte (doe. 1 do Centro) ou na íntegra, pertencem aos próprios trabalhos de onde os documentos foram extractados. Por baixo dos títulos colocámos as datas em que as batalhas ou as operações militares se registaram.

Como os leitores facilmente verificarão, todos os documentos estão fortemente marcados pela óptica e pelo vocabulário carac-terísticos do colonizador.

NORTE Doe. 1

Namarrais atacam e vencem Portugueses (19/20 de Outubro de 1896)

Convém relembrar que os processos de combate usados pelos povos desta região da Macuana diferem essencialmente dos que usam no sul e centro da Colónia, como a seu tempo frisámos. Aqui o inimigo, muito conhecedor das armas de fogo, pois que, segundo o testemunho dos nossos antigos governadores, já delas fazia uso nos fins do século XVIll, oculta-se no mato, donde fuzila o adversário, e longe de morrer numa posição que defenda

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com constância, ora ataca num ponto ora noutro, assemelhando-se os seus processos de luta aos que adoptam as guerrilhas. Nestas condições a táctica dos quadrados, que nos dera tantas vitórias no sul, não tem aqui as mesmas probabilidades de êxito. Demais, o terreno é em geral muito fechado de mato, de sorte que faltam os campos de tiro espaçosos, onde o efeito do fogo possa fazer-se sentir, e para que as colunas consigam avançar com segurança é indispensável que as precedam bandos de auxiliares, que a machado abram os caminhos. De longe a longe encontra-se uma ou outro clareira ou maxamba onde as tropas, mais desafrontadas, logram algum repouso.

Ainda outra dificuldade com que aqui se luta, é a carência de guias e intérpretes de confiança, como também já os antigos governadores faziam sentir, por experimentarem algumas vezes e duramente tal falta. Os nossos desconhecem em geral a língua macua, tornando-se necessário recorrer aos mouros, mais ligados aos povos do interior do que a nós pelos seus sentimentos re-ligiosos. Demais, Mouzinho de Albuquerque excitara contra si a má vontade de muitos influentes pelo rigor com que fazia cobrar as contribuições e impedia o contrabando. Assim, alguns que a princípio pediam o castigo dos régulos, bandéavam-se depois com eles e até lhes forneciam pólvora a ocultas. Houve sempre casos destes em Africa.

Deu-se como objectivo à coluna a povoação do Ibraímo, lendário chefe namarral, ao qual sucedera seu sobrinho Nampepa, e a da rainha Naguema. Esperava-se que, uma vez tomados estes dois importantes centros, os régulos subordinados dos anteriores apressar-se-iam a solicitar a paz, submetendo-se.

A expedição, concentrada em Natule, o nosso posto mais avan-çado no sertão, abalou pelas 7 horas da manhã de 19 de Outubro de 1896. As tropas iam na disposição própria para formar quadrado, como dissemos ao tratar da táctica de marcha adoptada pela primeira vez nas campanhas de Lourenço Marques e Inhambane no ano anterior. As faces da coluna dupla na marcha, ou do quadrado no estacionamento, eram formadas pela 1." companhia de guerra indígena; a guarda avançada e a da retaguarda, ou os lados da frente e de trás do quadrado em estação, eram providos por Caçadores 4. Na frente da coluna dupla ia um pelotão de cavalaria; outro formava a retaguarda.

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A expedição avançava lentamente, porque o comboio era moroso e distanciava-se cada vez mais, o que constituía grande perigo para as tropas.

Cerca das 10 horas da manhã, marchando-se com dificuldade por um caminho estreito, estabeleceu-se contacto com o inimigo, que a ocultas fuzilava os nossos, sendo necessário fazer avançar o pelotão de Caçadores 4, de guarda avançada, e formar os seus homens em cordão, na frente da coluna, que então logrou avançar um pouco mais desafogadamente, desembocando na maxamba da Mujenga pouco depois das 11 horas.

Tendo formado quadrado com a face da frente a noroeste, o tiroteio do inimigo, invisível, mas perto, desencadeou-se como saraivada, causando-nos logo vinte e uma baixas. Nestas circuns-tâncias e nada se conseguindo com o fogo das nossas fileiras, fez-se entrar em bateria no ângulo mais flagelado uma das peças, ao mesmo tempo que o pelotão de cavalaria, em linha, apesar da espessura do mato, carregava o adversário, desalojando-o. Mal os nossos recolheram ao quadrado, as guerrilhas namarrais romperam de novo fogo, ferindo o próprio governador-geral e outros oficiais. Recorreu-se então ao expediente de mandar ocupar por esquadras de landins e caçadores uns morros de mochém que existiam nas proximidades do quadrado, constituindo-se ao mesmo tempo uma trincheira que o envolvia e servia de abrigo aos nossas. Assim se conseguiu a segurança, que se ia tornando muito necessária.

Ao mesmo tempo que isto se passava com a coluna, o comboio era atacado, não conseguindo a sua testa atingir a Mojenga antes das duas e meia da tarde.

A água faltou por completo, porque os poços que se encon-traram quási nenhuma tinham, e os guias não davam indicações certas, tornando-se impossível cozinhar o rancho.

À noite o fogo, que afrouxara pela tarde, aumentou de inten-sidade, tendo vindo em auxílio dos namarrais a gente do Marave e do Matibane, o que obrigou as tropas a uma continuada e fatigante vigilância.

A situação ia-se tornando comprometedora, tanto mais que se averiguou que o guia atraiçoara a coluna, levando-a àquele ponto, onde se cria que não poderia resistir. Isto obrigou Mouzinho, que projectava avançar na manhã

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seguinte para Naguema, a retirar para Natule às 4.30 da madru-gada, levando à frente o comboio e debaixo dum intenso fogo, que não deixou de perseguir implacávelmente a coluna senão a alguns quilómetros do termo da marcha que se atingiu perto das 10.Vi horas. A guarda da retaguarda teve muitas vezes de conter pelo fogo o adversário, que chegou a aproximar-se a 100 metros. (...) (Botelho, 1936, 11:518-521) Doe. 2

Diário de campanha da expedição contra o Mataca

(1899)

Marchámos até ao meio-dia um pouco às cegas; enganámos mesmo de caminho e somos obrigados a dirigir-nos na S. E. para encontrar água. É sempre a mesma coisa; cada vez que há dois guias, cada um deles vai do seu lado, quando se chega a um entroncamento. Bivar, que marcha à minha direita continuou à direita, enquanto que o meu guia foi para a esquerda. Obrigados, pois, a retrogradar, de maneira que só chegámos às 4 horas da tarde para acampar!... naturalmente sem comer, pois a coluna teve mais de duas horas de atraso devido à teimosia do guia. Se nós continuássemos alguns dias com um tal regime a maior parte dos soldados seria inutilizada.

O nosso acampamento é situado ao pé do pico Nhanhélé, num sítio magnífico para uma emboscada. O sanzoro é feito depressa e nós dormimos dum olho.

13/8. Nada de suspeito nos arredores, levantámos o campo às 7 horas e marchámos até às 11 horas. Alto entre duas serras, exactamente no limite do Kouemba. Todavia nada faz prever a presença do inimigo.

14/8. Seguimos as colinas, direcção N. E. Mal tínhamos feito alguns quilómetros ,logo à saída dum barranco, alguns tiros estalando à minha direita e de Bivar, nos fazem sobressaltar. Enfim... o inimigo descobre-se São os cipais do Bivar que estão engajados. Um vivo tiroteio responde aos tiros dos Lomués? Faço formar imediatamente os meus cipaios em atiradores — deitados— e espero não sem ansiedade o resultado desta escaramuça... Mas o fogo cessa depressa.

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Estamos encravados no meio do capim. Nada se vê: isto é que é o diabo. Onde ficou a coluna?

Não posso ficar assim: Vou às notícias com 2 cipais ao encontro da gente do Bivar que me informa que os Lomués fugiram para o cume das serras. Resultado: um cipai ligeiramente ferido, mas a bandeira dum cazembe (chefe de guerra), ficou completamente esburacada e mesmo queimada; isto quer dizer que todos os tiros foram feitos à queima roupa. É bom ficarmos prevenidos.

Seguimos pois um caminho (se tal se pode chamar assim) na serra. Marcha impossível para brancos; subidas e descidas sucessivas; dificuldades enormes para a artilharia; deve-se des-manchar as peças...

Pelas 1 hora da tarde parto um pouco adiante para ir buscar um pouco de água. Apenas era entrado de alguns cem metros no mato, tão espesso que nada se via a dois passos e que a gente parecia mergulhada num poço, quando novamente um violento tiroteio nos faz parar imediatamente... Tiros à queima roupa sobre os cipais da frente, a alguns metros de mim. Há feridos? Ê-me impossível ver qualquer coisa, pois nada vemos, mas mesmo que nada faça, sempre afugentará os Lomués!...

O capim é tão alto (mais de 2 metros) que estou na impos-sibilidade de ver os meus vizinhos imediatos. Marcha-se como num labirinto; é preciso mandar cortar o capim com espadas, para poder avançar. Não sei como farão os soldados ...e a artilharia, sobretudo.

Breve intervalo, e depois novos tiros (...). (Stucky, 1899, 1:80-81).

CENTRO Doe. 1

(...) do que suecedeu a D. Pedro de Sousa, com os Zimbas (1593)

(...) D. Pedro de Sousa, capitão de Moçambique, determinou castigar os zimbas, destruil-os e lançal-os da visinhança de Sena. E para isto passou de Moçambique aos rios de Cuama no anno seguinte de 1593, levando consigo alguns soldados da dita for-

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taleza, com que chegou a Sena. E depois de se informar do estado em que os zimbas estavam, ordenou logo todas as cousas neces-sárias para esta guerra e ajuntou perto de duzentos portuguezes e mil e quinhentos cafres, e passando a outra banda do rio Zambeze foi marchando por terra até chegar á fortaleza dos zimbas, onde assentou arraial (...), e d'aqui mandou bater o muro da fortaleza com algumas peças de artilheria que levou consigo para esse effeito, mas nenhum damno lhe fez, porquanto era de madeira grossa e terreplanado pela parte de dentro de entulho mui largo e forte, que os zimbas fizeram com terra que tinham tirado da cava.

Vendo D. Pedro que sua artilheria não fazia damno ao muro dos inimigos, determinou de os entrar e render á força de braço, e para isso mandou entulhar um pedaço de cava; o que fez com muito trabalho e perigo dos nossos, porque os zimbas de cima do muro frecharam e mataram alguns. Entulhado este pedaço de cava, passou muita gente por elle com machados nas mãos até o pé da tranqueira, e começando de cortar n'ella, foi tanto o azeite e agua fervendo que os zimbas lançaram de cima do muro sobre os que cortavam, que se escaldaram e pellaram quasi todos, e particularmente os cafres, que andavam nus, de maneira que não havia quem ousasse chegar ao pé da tranqueira, assim por medo do azeite fervendo, como de uns ganchos de ferro compridos, á moda de fisgas, que os zimbas lançavam pelas seteiras do muro fora, e com elles feriam e aferravam em todos os que chegavam perto, e puxavam de dentro por elles com tanta força que os chegavam aos buracos das seteiras onde lhe davam feridas mortaes. Pela qual causa mandou o capitão que se recolhesse toda gente ao arraial e descançasse, e todo aquelle dia gastou em curar os feridos e escaldados.

O dia seguinte mandou o capitão colher muita madeira e verga de que se fizeram grandíssimos cestos, tão altos, e mais que as tranqueiras dos inimigos, e mandou que os pozessem defronte dos muros e que os enchessem de terra, para que os soldados pelejassem de cima d'elles com as espingardas, e os zimbas não ousassem andar por cima do muro, nem lançar azeite fervendo sobre os que cortassem a tranqueira. Estando este ardil de guerra já quasi ordenado, n'esse mesmo tempo se ordenou outro de paz ou covardia, da maneira seguinte. Havia dois mezes que esta guerra durava, pelo que os moradores d'estes rios, (que alli estavam

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mais por força que por sua vontade, por estarem fora de suas casas e mercancias que é todo o seu trato, e não guerras) fingiram algumas cartas, como que lhe vieram de Sena, de suas mulheres, em que lhe davam conta do aperto em que estavam por causa de um cafre levantado que diziam vinha com muita gente para roubar Sena, sabendo que os portuguezes não estavam n'elle, pelo que acudissem logo a suas casas. Esta maranha fingida foi logo divulgada pelo arraial, e os moradores de Sena se foram ao capitão e lhe requereram que largasse o cerco dos zimbas e acudisse ao que mais importava, e senão que elles haviam de acudir a suas casas e deixá-o.

Vendo D. Pedro sua determinação e cuidando que as novas das cartas eram verdadeiras, largou o cerco e mandou passar a gente uma noite da outra banda da ribeira, para se tornar a Sena. Mas não se poude fazer esta mudança com tanto segredo que não fosse logo sentida pelos zimbas; os quaes sahindo da sua fortaleza com grande Ímpeto e grita, deram sobre o arraial, onde mataram alguma gente que n'elle ainda estava, e tomaram a maior parte dos despojos e artilheria que ainda não estava recolhida.

Com este desbarato e desgosto se tornou o capitão para Sena, e d'ahi para Moçambique, sem fazer o que desejava, e o Zimba ficou melhorado e mais soberbo que d'antes, e com tudo isso depois commeteu pazes aos portuguezes de Sena, dizendo: que elle nunca quizera guerra com os portuguezes, antes desejara sempre sua amizade e commercio, mas que os portuguezes foram os que fizeram a elle guerra injusta, sem lhe ter feito aggravo algum, e que elle os matara em sua justa defensão, como era obrigado. Estas pazes cuido que se lhe concederiam pelo bem que d'elles vinham aos portuguezes d'este rio. N’este estado ficaram as cousas d'esta terra quando d'ella me parti para Moçambique. (Santos, 1609, 1:238-240)

Doe. 2 Da entrega que Dom Estevam de Ataíde fez da conquista a Diogo Simões Madeira, e da guerra que se fez ao Chombe, cafre levantado (1613)

(...)

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Depois que dom Estevam se foi, ficou Diogo Simões em Sena negociando-se para conseguir a conquista, tendo ordem e carta do visorei dom Hieronymo de Azevedo, em que lhe dizia que podendo ir avante na conquista o fizesse. Pelo que sahiu de Sena com este intento, determinando ir tomar posse das minas, sobre que tanto tinha trabalhado, como fica dito. Começou de navegar pelo rio acima aos dez de agosto de 1613, e chegando ás terras do Chombe, cafre poderoso e vassallo do forte de Sena, mandou--Ihe dizer que pagasse o foro que devia d'aquelle anno a sua Ma-gestade, das terras que possuía, que eram duas mil panjas de milho, que são como alqueires, para provimento d'esta conquista, como era obrigado; e assim mais mandasse entregar os escravos dos portuguezes de Sena e Tete, que estavam fugidos na sua terra. Ao qual recado responder o Chombe que nem milho, nem escravos lhe havia de dar, e que se lh'os quizesse tomar por força, que também elle folgaria de provar a mão com o novo conquistador. (...) Vendo Diogo Simões a soberba e o desprezo com que o tractava, sem o querer reconhecer por capitão da conquista, e entendendo que não estava alli seguro nas suas praias, mandou retirar todas as embarcações, que estavam com as proas em terra, e foi-se com ellas para um ilhéu que defronte estava no meio do rio. E não contente o Chombe de ter desobedecido ao capitão, determinou declarar-se de todo por levantado e desobediente, e para effeituar seu damnado animo, mandou secretamente passar alguma gente sua ao ilhéu em que Diogo Simões estava, para dar n'elle e nas suas embarcações, e roubar o fato que n'ellas ia para as despezas da conquista. Mas não quiz Deus que este bárbaro visse o cumprimento de seus maus pensamentos; porque os nossos, que vigiavam as praias, viram uma embarcação sua, em que os inimigos passavam ao ilhéu, e Diogo Simões lh'a mandou tomar; mas a gente do Chombe que na praia estava a quiz defender, resistindo aos nossos com muito pelouro e frechas, mos-trando-se claramente desobedientes aos portuguezes. 0 que mais claramente fizeram no dia seguinte, porque indo Diogo Simões continuando a sua viagem pelo rio acima, os vassalos do Chombe o foram perseguindo e varejando com muitas espingardas por terra ao longo do rio, em espaço de dez léguas, e chegando a um logar chamado Bandar, se puzeram n'elle, por ser alli o rio mais estreito, para lhe impedirem a passagem; e d'alli mandaram dizer

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a Diogo Simões que se queria passar que lhe desse muito fato (tecidos, fazendas, CS.). Vendo Diogo Simões sua soberba e atrevimento se foi logo a elles, e pondo as proas em terra de-sembarcaram os nossos e deram nos inimigos, e os puzeram em fugida, matando e ferindo-lhe alguns; e tão escaldados ficaram d'este recontro que os nossos lhe deram, que nunca mais os seguiram, e Diogo Simões foi fazendo d'alli por diante sua viagem pacifica até á povoação de Tete, onde tomou conselho com os moradores da terra e seus capitães, se seria mais serviço de sua Magestade castigar o Chombe, que estava levantado e impedia os caminhos e a navegação pelo rio de Tete para Sena, ou ir logo a Chicova sobre as minas de prata; e todos foram de parecer que se castigasse primeiro o Chombe e se franqueasse o rio, e depois se faria o caminho para a Chicova. Diogo Simões mandou logo fazer um assento d'este conselho pelo escrivão da conquista, e se negoceou das cousas necessárias para esta empreza, e partiu de Tete a dez de Dezembro com cem espingardas pelo rio abaixo em embarcações, e mandou ir por terra dois mil cafres vassallos de Tete, e a gente do Mongás, e o Quitambo, cafre poderoso, que por todos seriam seis mil cafres, os quaes se foram com Diogo Simões á entrada das terras dos inimigos, e dormindo alli (...). No dia seguinte se foi a nossa gente chegando ao logar do Chombe, mas antes que chegasse a elle obra de uma légua mandou Diogo Simões fazer muitas portas grandes de cana tecida, que os cafres levavam diante de si como muro, e assim foram caminhando até se abarbarem com o forte do inimigo, o qual os recebeu com mór surriada de espingardaria e mosqueteria de que os nossos levavam, porque tinha o Chombe cento e cincoenta espingardas e mosquetes, e duas rouqueiras, com que pelejou todo aquelle dia até noite, trabalhando muito por fazer retirar a nossa gente do seu forte, e não se alojar perto d'elle; mas os nossos, com toda esta resistência, pelejando sempre, fizeram suas tranqueiras onde quizeram junto a uma lagoa de agua, met-tendo muita d'ella dentro na tranqueira, apezar dos inimigos que a defendiam; porque também elles bebiam da mesma agua. Este forte do Chombe era de meia légua de comprido e dois tiros de espingarda de largo, e todo cercado de muro de madeira grossa, com cava alta em roda, e a terra da cava encostada á madeira como vallo, e sobre ella havia muitas setteiras por onde os inimigos

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tiravam seguramente, sem serem vistos dos nossos. Tinha muitos baluartes com seus revezes do mesmo feitio do muro, d'onde o defendiam de modo que lhe não podiam os nossos chegar sem serem mortos ou feridos.

Dos encontros que Diogo Simões teve com o Chombe, e do socorro que lhe veiu de Sena.

Tanto que a nossa gente se alojou com suas tranqueiras feitas, logo Diogo Simões se resolveu em combater o inimigo, e para isso no dia seguinte ordenou sua gente em três batalhões, e commeteu o forte por três partes com muita coragem, e todos pelejaram esforçadamente, mas não no puderam entrar, porque os inimigos o defenderam valorosamente, acudindo a todas três partes com tanta copia de espingarderia e frechas que parecia estarem todos juntos em cada parte; e a razão d'isto era porque o Chombe tinha mais de oito mil homens de peleja consigo, mui esforçados, e estava mui provido de pólvora e munições que os portuguezes e filhos de terra lhe tinham dado e vendido a troco de negras, e de milho, e de outras veniagas que o cafre lhe dava, e d'esta maneira surreticiamente e pela calada se foi enchendo de armas de fogo, para se ensoberbecer agora e fazer forte contra os nossos. A isto se havia de acudir com muito cuidado, porque os cafres, que antigamente se assombravam do estouro de uma espingarda, hoje tiram com elles; e os mais dos cafres grandes d'estas partes tem melhor almazem de espingardas do que pôde haver na feitoria do capitão.

Vendo Diogo Simões a grande resistência dos inimigos, mandou recolher sua gente, e logo no dia seguinte tornou a commettel-os, por vêr se os podia cansar, amiudando-lhe a bateria da mesma maneira por três partes; mas elles se defenderam com a mesma resistência, sem os poderem entrar por parte alguma.

Na noite logo seguinte, succedeu que fugiu um cafre do nosso arraial para o Chombe, e lhe disse que as nossas tranqueiras estavam com mui pouca gente, porque os mais dos soldados sahiram d'ellas á boca da noite e se foram a buscar de comer e roubar os logares visinhos, (o que se determinou fazer, mas não se fez, por Diogo Simões o não consentiu, nem quiz dar licença para isso) e cuidando o Chombe que o nosso arraial

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estava sem gente, como lhe disse o cafre que fugiu para elle, mandou fazer prestes a sua gente para em rompendo a manhã dar no nosso arraial, e sempre lhe fizera muito damno, se Diogo Simões não fora avisado por uma negra christã, que estava no forte do Chombe, a qual fugiu d'elle na mesma noite, e se veiu para as nossas tranqueiras, e contou a Diogo Simões o que passava no forte, e elle avisou logo do caso a todos os capitães, assim portuguezes como cafres, e mandou que todos estivessem com as armas na mão, e com muito silencio ate os imigos chegarem ás nossas tranqueiras, e em chegando todos juntamente dessem santiago sobre elles.

Vindo a manhã, os inimigos foram sahindo do seu forte com tanto alvoroço que lhes parecia tinham a victoria na mão, cuidando achariam pouca gente nossa e essa desapercebida; e assim desor-denadamente commetteram as nossas tranqueiras, d'onde no mes-mo ponto lhe sahiram os nossos com santiago na boca, e tanto impeto que em breve tempo os inimigos largaram o campo e armas, e muitos as vidas; e foi tanta a pressa com que se recolheram que não atinavam com as portas, nem cabiam por ellas; onde os nossos lhe mataram mais de mil homens. Isto foi em dia do glorioso archanjo São Miguel. Com este desbarate ficou o Chombe tão medroso que logo no mesmo dia mandou pedir pazes a Diogo Simões, as quaes lhe não concedeu, pelos partidos injustos que nellas pedia; antes todos os dias pela manhã e tarde havia escaramuças, em que se feriam muitos e morriam alguns de ambas as partes.

Vendo Diogo Simões como o Chombe estava fortificado, e que o não podia entrar, pela muita gente e munições que tinha, mandou pedir ao capitão de Sena, que então era Diogo Pires Brandão, que lhe mandasse alguma gente de soccorro para o ajudar a desbaratar este levantado. O que logo fez o Brandão, mandando--Ihe quarenta espingardas, entre portuguezes e filhos da terra, indo por capitão d'elles Christovam de Brito Godins, fidalgo e esforçado cavalleiro, que os annos atraz tinha vindo da índia por capitão de uma companhia de soldados para esta conquista. Mandou-lhe mais todos o scafres vassallos de Sena em companhia do Samacanqua, cafre poderoso e amigo de Sena que ao todo seriam três mil cafres. Com este soccorro sahiram de Sena, os portuguezes

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por mar, e os cafres por terra ao longo do mesmo rio, e chegando a um logar do Chombe, a que chamam Nayo, deram os nossos cafres n'elle, e o destruíram, e lhe tomaram muitas negras e despojos que acharam, e d'aqui foram continuando seu caminho até chegarem ao forte do Chombe, onde querendo assentar arraial separado de Diogo Simões junto a outra lagoa de agua, o Chombe lhe sahiu a defender com tanto animo, que lhe queimou parte das tranqueiras que tinham feito. Ao que Diogo Simões acudiu com sua gente, e fez recolher os inimigos, dando logar aos de Sena para fazerem suas tranqueiras, como fizeram.

Como a gente de Sena descansou do caminho, logo Diogo Simões se apparelhou para commetter o inimigo por três partes, a saber: a gente de Sena que desce por uma parte e o Quitambo por outra, e elle com a gente de Tete pela parte da agua, onde estava alojado. Com esta ordem commetteram o forte por três partes, pondo-lhe o fogo em todas ellas; mas os inimigos o apagaram logo e se defenderam com muito animo, ferindo, e matando alguma gente nossa. Por este respeito pareceu bem a Diogo Simões não lhe dar mais combates, visto morrerem os nossos ao pé do seu forte, sem lho poderem entrar, pela grande resistência que tinha; mas foi-lhe dando alguns rebates e escaramuças no campo, a que os cafres sahiam fora. E d'esta maneira lhe fazia gastar as munições que tinham e lhe matava muita gente fora á espingarda, onde não havia muro, nem vallos que os defendessem; e n'isto se gastaram dois mezes e meio. (Bocarro, 1635:569-574)

SUL Doe. 1

De Aires de Ornelas a sua mãe Residência de Gaza, junto a Manjacaze, 14 de Agosto de 1895

Querida Mãe Aqui estou com o conselheiro Almeida e mais dois oficiais, um secretario dele e outro comandante do pelotão de lanceiros que trouxe de escolta. Chegamos a 4 à noite depois de 11 horas de marcha desde o Chicomo, e a 6 o régulo mandava-nos cumprimentar por cerca de 200 dos seus chefes, dizendo que só podia ele vir no dia 8, pois tinha morrido nessa noite uma das suas

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mães, viuva de Muzila. A 8 veio com efeito à nossa residência. É o Almeida o único português que tem conseguido que ele o

visite sempre primeiro; é, como naturalmente devia ser, um dos funcionários do Ultramar de quem os outros dizem mais mal e a quem o Mariano tem feito tanta guerra; mas, de todos os que conheço, e quem tem mais bom senso e mais conhecimento dos negócios daqui. Mas fechemos este parêntesis e tratemos de dar uma ideia do espectáculo que presenciei nesse dia, espectáculo que bem poucos europeus tem visto e com certeza o mais extraordinário a que tenho assistido.

Pelas 9 horas da manhã, do mato que fecha a elevação onde está o Curral do Gungunhana, vinha saindo uma multidão de gente descendo para a grande langua do Manguanhana.

Ao chegar à planície, tudo isso fez alto, formando uma densa linha negra que nos fechava o horizonte. Lentamente se foi ela aproximando de nós; pouco a pouco iam-se percebendo e destinguindo os vultos quando se partiu em 6 colunas, 2 delas muito profundas, ladeadas, cada uma, por duas mais pequenas. Eram as duas mangas de guerra dos Impafumane (homens altos) e Zinhome M'Chope (pássaros brancos), dividida cada uma em três troços (mabange) na força de perto de 3000 homens cada uma, ostentando toda a gala e a riqueza selvagem do magnífico traje de guerra vátua. Vinham armados só de cacetes, prova das suas intenções pacíficas, e toda essa massa imensa avançava para nos cercando a Residência sem ruido sequer, manobrando com uma precisão e regularidade que fariam inveja a europeus. A cerca de 500 metros de nós destaca-se para a frente o bobo ou jogral do exército, literalmente coberto de peles de tigre (leopardo, C. S.), com um imenso capacete de penas negras na cabeça, dando cabriolas, ladrando como um cão, cantando como um galo. Já estavam as mangas juntas à residência, e as seis colunas formaram linha em semi-círculo em volta de nós, vindo para a frente até 15 ou 20 metros um grupo de cerca de 100 homens. Entre estes vinha o Gungunhana que conheci logo, apesar de nunca lhe ter visto retrato algum; era evidentemente o Chefe duma grande raça. Desse grupo adiantou-se um dos principais orando por bastante tempo, dando-nos as boas vindas em nome do régulo

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e da sua nação e terminando pela saudação vátua: bahete! que repetida pelas milhares bocas que nos cercavam produzia o efeito duma descarga de fuzilaria.

Então o régulo adiantou-se, sentámo-nos e trocaram-se os mais cordiais cumprimentos. É um homem alto, pouco mais baixo do que eu, e sem ter as magníficas feições que tenho notado em tantos dos seus, tem-nas sem dúvida betas, testa ampla, olhos castanhos inteligentes, e um certo ar de grandeza e superioridade. Ao levantar-se fez-se de novo ouvir o estrondoso bahete! e formando outra vez as mangas em coluna, mandou-as entoar o canto de guerra. Aqui devia eu parar! Nada no mundo pode dar uma pálida ideia da magnificência do hino, da harmonia do canto, cujas notas graves e profundas vibradas com entusiasmo por 6000 bocas faziam-nos estremecer até ao íntimo. Que majestade, que energia naquela música, ora arrastada e lenta, quase moribunda, para ressurgir triunfante num frémito de ardor, numa explosão queimante de entusiasmo! E à medida que as mangas se iam afastando, as notas graves iam dominando, ainda por largo espaço, reboando pelas encostas e entre as matas do Manjacaze! Quem seria o compositor anónimo daquela maravilha? Que alma não teria quem soube meter em três ou quatro compassos, a guerra africana com toda a acre rudeza da sua poesia? Ainda hoje nos «cortados ouvidos me ribomba» o éco do terrível canto de guerra vátua, que tantas vezes o esculca chope ouviu transido de terror, perdido por entre as brenhas destes matos nos quais vivo há um mes. (...) (AAVV, 1947:221-223; grifos no original)

SUL Doe. 2

Batalha de Magul (7 de Setembro de 1895)

(...) Assim que a coluna parou, unindo-se-lhe os cavaleiros, apertou-

se e consolidou-se o quadrado, e adiante das suas quatro faces desenrolaram-se linhas de arame, que cortassem o ímpeto duma primeira investida. As quatro metralhadoras firmaram-se nos cantos, abriram-se os cunhetes de munições e deram-se

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instruções para o combate Entretanto, para além das primeiras árvores da mata, manobravam as mangas rebeldes. Não se dis-tinguiam bem, mas cobriam enorme área, com as suas massas compactas. Tão poderosas se mostravam que os comandantes Andrade e Couceiro entreolharam-se e disseram a meia voz: Parece que é gente demais! Formidável seria o seu embate se chegassem a um corpo-a-corpo; à cautela fortaleceu-se mais o quadrado dispondo os soldados em três filas, a primeira das quais poria joelho em terra. Cada face ficou tendo... 17 homens de frente! Olhada de longe pelos cafres, a pequena hoste parecer-lhes--ia uma moita de espinhos, de ferro, sim, mas que as zagaias poderiam esfuracar de lado a lado para desencovar as vidas. Figurava apenas, na vasta planície, uma nòdoazita clara com cintilações metálicas nos bordos: fazia a vista dum penedo aflorando na amplidão do mar. Qualquer guerreiro ágil pular-lhe-ia por cima; uma só manga que estendesse os braços musculosos bastaria para estrangulá-la; chegaria uma armadilha de hipopótamo para a sepultar inteira. Se aquilo era poder que afrontasse o Gungunhana! Houve chefe generoso que pensou em abandonar aquele magote de vítimas aos rapazios das aldeias, para aprenderem a matar homens sangrando burregos. A horda nem teve pressa da segura carnagem; quedou-se lá em cima, parada, agachada como o gato vigiando indolentemente o rato, com o focinho repousando nas patas.

A presa é que foi desafiar o captor. Os angolas e os carre-gadores avançaram em ordem dispersa até à beira do terreno alagado, e uma fuzilaria mais ruidosa que danosa anunciou que estava ali o Couceiro para realizar as suas ameaças impávidas do dia 3. Os cafres, desdenhosos, não responderam, mas resolveram sair do arvoredo para a planície, não a pelejar mas a impedir que lhes fugissem os já vencidos. Primeiro moveram-se, lá muito fora do alcance das balas e onde a vista mal chegava, pequenos grupos destacados em atiradores, e entraram até meio corpo no mar de capim alto e seco; depois abalaram-se as mangas, distanciadas umas das outras. No quadrado, os oficiais tinham os binóculos assestados; os soldados apontavam com as mãos e contavam: uma,... duas,... sete,... treze. Eram treze mangas: calculou-se que sumariam seis mil e quinhentos homens. Não marchavam em direcção ao quadrado, não, que os selvagens também

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têm a sua estratégia. Fizeram uma marcha de flanco pela esquerda do inimigo, em boa ordem, compassadamente, sempre metidos no capim, e estenderam-se em arco de círculo, ameaçando a retirada para o Incoluana. Operado este movimento envolvente, pararam e... sentaram-se. Nem um gesto, nem um tiro. Nenhuma precipitação! A fleuma da força, a serenidade da confiança, a solenidade do triunfo. Apenas se agitavam chefes dando ordens. Por que se teriam sentado os cafres? Ou porque calculassem, sabiamente que lhes aproveitava mais a defensiva, porque se o quadrado se movesse para atacá-los abalaria e desconjuntaria os seus muros de peitos; ou porque dissessem para si que os brancos seriam desbaratados pelo sol, pela fadiga, pela sede se permanecessem à torreira, a pé firme, sob as armas, ou porque planeassem acometê-los improvisadamente de noite, como em Marraquene, o certo é que deram mostras de não querer sair daquela desesperadora atitude espectante. E ai da coluna se tem perseverado nela! Os oficiais chegaram a inquietar-se. Ir buscar combate ao meio do capim, — que até poderia, incendiado, cercá-los de labaredas, — com uma linha de fogos de dezassete homens de largura, era encontrar certeira ruína. A esperar, esperar que se cansasse paciência de preto, fundir-se-ia ao calor a desabrigada hoste; e na retirada nem pensar! O alvitre menos precário era certamente aguardar os acontecimentos, e entretanto melhorar a posição. Assim se fêz. Cortou-se a ramaria de duas grandes árvores que bracejavam ali perto, e com ela, enleada por arames espinhosos, improvisaram-se grosseiras abatizes, que seriam mais um empecilho suscitado para demorar os cafres debaixo das descargas repetidas das Kropatschecks, e que, para logo, lhes davam a ideia de que os brancos estavam resolvidos a não arredar dali, nem para a investida nem para a fuga. Entretanto, os cavaleiros destacaram-se como em observação, para atraí-los, e mandaram-lhes as balas perdidas das suas carabinas. (...)

Avançaram primeiro alguns negros dispersos, depois surdiram do capim as mangas, e toda a linha se moveu a um tempo, estendida, envolvente, mas vagarosa. Os cavaleiros retiraram, apearam-se meteram-se nas fileiras. Nuvenzinhas brancas reben-taram aqui e ali; depois uniram-se em espessa barra de fumo acinzentado, e sibilaram balas aos ouvidos dos soldados. Acen-

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tuava-se o ataque: era hora e meia. Os oficiais correram as faces repetindo as instruções: que ninguém disparasse senão à voz fogo, que os deixassem chegar perto para se não perderem balas, que se fizessem pontarias baixas. Os cafres iam ganhando terreno; lá estavam eles, mais distintos, parecendo mais altos; as crepitações longínquas da fuzilaria amiudavam-se e faziam estampidos, os projécteis imitavam silvos de ventania. Já estariam a trezentos metros; mais perto agora, a duzentos. Caiu morto um sargento, que subiu a uma caixa para ver mais longe; a metralhadora do tenente Miranda, nervosa como êle, rompeu fogo; começaram as espingardas a disparar-se como por si; condensou-se o fumo na atmosfera sem correntes. Na face mais exposta ao ataque houve um momentâneo pânico, e algumas praças baixaram-se para atirar deitadas: Andrade e Couceiro levantaram-nas pelas golas das fardas, exortaram-nas. As bocas das espingardas erguiam--se maquinalmente para o ar; as espadas dos oficiais baixavam-nas. 0 capitão Couceiro foi ferido no rosto, junto do olho esquerdo (...); estalejavam as metralhadoras, detonava incessante a fuzilaria, mas fumarada espessa, caliginosa, cegava o quadrado, que já não sabia se teria os cafres nas pontas das baionetas. Cessar fogo! ordenaram as cornetas.

Adelgaçada a nuvem, distinguiram-se os cafres já perto. Tinha--os detido a chuvada de projécteis, fazendo-os coserem-se com a terra, mergulharem no capim, abrigarem-se com as árvores e os ninhos de formiga; mas tanto que viram uma aberta arroja-ram-se para a frente, sustentando o tiroteio mas buscando a luta corpo-a-corpo. Se chegassem com as pontas das zagaias aos peitos do quadrado, rompê-lo-iam com o embate, esmagá-lo-iam com o tropel: ordenou-se fogo vivo, recomendou-se pontarias baixas. Parou novamente e abateu-se a onda negra, mas os seus arremessos foram abrindo vagas nas fileiras. O quadrado, todo envolto em rolos de fumo, parecia uma nuvem de tempestade rastejando a desfazer-se em raios, e os cafres nem encará-la podiam; mas depois esmoreceram e por fim pararam as descargas. Outra vez fora necessário interromper o fogo, porque já os pulmões não respiravam senão vapores de pólvora e para se perceber o estado do combate; nessa pausa soube o comando que duas metralhadoras estavam inutilizadas, uma por desarranjo nas molas do movimento, outra porque uma bala lhe amolgara a cartucheira

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inferior. O próprio capitão Andrade forcejou, debalde, para debelar a terrível contrariedade, e nesse lance foi varado atras dele um artilheiro, que lhe entregava cartuchos. Já então havia muitos corpos estiraçados no chão, nos intervalos das filas ou entre os volumes de carga; a areia tinha poças e rastos de sangue, passavam no ar gemidos de dor.

Os cafres voltaram ao ataque com mais confiança, tomando impulso de mais perto. Estavam a menos de cem metros. O seu chefe de guerra, que se fizera conhecido pela intrepidez com que se expunha às balas à frente das mangas, surdiu rápido detrás duma árvore, e, exortando os seus guerreiros com a voz sonante e o gesto enérgico, atirou-se para a frente, num soberbo arranco, seguido por um golpe de gente desordenada mas impetuosa, que parecia gritar Munf! Munf! E não se viu mais nada. A metralhadora de Sanches de Miranda e depois toda a linha de fuzilaria despediram ao encontro dessa avalanche humana uma tromba de projécteis; escureceu o ar, e o quadrado continuou a pelejar percebendo apenas que ainda rostos enfurecidos de selvagens e lâminas puídas de zagaias não tinham rompido a barreira fumacenta que o cingia para lhe anunciar o extermínio. E as descargas sucederam-se às descargas, até que as fizeram parar as notas vibrantes da corneta do comando.

Onde estavam os impávidos assaltantes? O chefe, o intrépido Tope, esse sim, via-se; lá estava à frente das hostes! Estava, porém, a cinquenta metros da face do quadrado, estendido de costas numa poça de sangue. Mais adiante percebiam-se vultos negros prostrados, alguns caídos sobre outros em montões, muitos dispersos; havia vultos que se arrastavam ou que se estorciam. Lá ao longe corria gente por meio do capim, confusamente, com uma rapidez delirante. Depressa, saíam os indígenas a perseguirem-na! Saíram os angolas e os carregadores, como matilha solta das trelas; mas estes, poucos saltos dados para a frente, hesitaram, recuaram, receando que os grupos dos mortos fossem ciladas de vivos, e entretanto sumiram-se de todo os fugitivos. Apenas seguraram os feridos, entre os quais o próprio filho de Magioli. Contaram muitos cadáveres, apesar de não se atreverem a procurar os que o capim escondia, tristes documentos dum inteiro desbarato. Soube-se depois que eram mais de trezentos.

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e que a fuga repentina, desapoderada, de tamanhas multidões arrogantes fora devida, ainda mais do que a essas perdas, à morte do chefe Pope (...)• (Enes, 1945:355-360; grifos no original)

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8. NOTAS

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(1-a) O Estado de conquista foi uma das três modalidades de Estado consideradas

por Friedrich Engels ao estudar a sua origem na Antiguidade entre os Gregos, Romanos e Germanos. Eis a síntese das conclusões a que cheogu: «Já estudámos, uma a uma, as três formas principais de como o Estado se erigiu sobre a. ruína das gens (grupo formado por indivíduos reclamando-se de um antepassado comum em linha masculina, CS.). Atenas apresenta a forma que podemos considerar mais pura, mais clássica; ali, o Estado nasceu directa e fundamentalmente dos antagonismos de classe que se desenvolviam mesmo no seio da sociedade gentílica. Em Roma, a sociedade gentílica converteu-se numa aristocracia fechada, entre uma plebe numerosa e mantida à parte, sem direitos mas com deveres; a vitória da plebe destruiu a antiga constituição da gens, e sobre os escombros instituiu o Estado, onde não tardaram a confundir-se a aristocracia gentílica e a plebe. Entre os Germanos, por fim, vencedores do Império Romano, o Estado surgiu em função directa da conquista de vastos territórios estrangeiros que o regime gentílico era impotente para dominar. Como, porém, a essa conquista não correspondia uma luta séria com a antiga população, nem uma divisão de trabalho mais avançada; como o grau de desenvolvi-mento económico de vencidos e vencedores era quase o mesmo — e por conseguinte persistia a antiga base económica da sociedade — a gens pôde manter-se, ainda por muitos séculos, sob uma forma modificada, territorial (...)» Engels, 1884:224-225.

(1-b) A tipologia apresentada é provisória e pouco exaustiva. Por outro lado, deve atender-se ao facto de que a linhagem se manteve como comunidade aldeã de base nas chefaturas, nos Estados e nos Impérios.

(2) Os dois títulos, pertencentes ao universo político do Zambeze para norte, não podem, quanto a nós, ser hierarquizados de forma absoluta, pois em muitas regiões tomava-se por «m'fumo» (pi. «afumu») o que, noutras, se tomava por «muene» (pi. «amuene»). Ambos os vocábulos designavam o chefe da linhagem e, por extensão, no caso dela existir, da chefatura. As fontes portuguesas não referem o vocábulo «muene» até, grosso modo, meados do século passado. A partir daí, nomeadamente na província da Zambézia, ele já surge com frequência.

(3-a) «Muene» = senhor ou chefe; «mutapua» vem de «tapa» = capturar, pilhar, devastar, raziar, sendo «tapua» a forma passiva. Portanto, «mutapua» = cativo ou vassalo e «muenemutapua» = senhor ou chefe dos vassalos ou cativos submetidos pela guerra (veja Randles, 1975:17). O título tem, desde o século XVI, surgido com várias grafias: Benabotaque, Menamotapam, Monomotapa, Manamutapa, Manomotapa, Monomutapa, Be-namotapa, Mwenemutapa ou muenemutapa, Mwanamutapa ou muanamutapa, etc. A mais antiga referência ao título na documentação escrita portuguesa

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parece datar de Outubro de 1506, quando os Portugueses anunciaram a chegada a Sofala de «uns cafres de dentro de benabotaque para com eles assentar paz e amizade» (Lobato, 1962:48, grifo no original). A segunda mais antiga referência, igualmente na documentação portuguesa, pertence porventura a Alcáçova, quando, em Novembro de 1506, escreveu: «E este rei que agora, reina em Ucalanga é filho de Macomba rei que foi do dito reino e há (tem, C, S.) nome de Quesaryngo Menamotapam que é como dizer rei fuão (fulano, C. S.) porque o nome de rei é Menamotapam e o reino Ucalanga» (1506:391-392). Tentando resolver o problema da multiplicidade das grafias, Beach propôs a erradicação dos prefixos (nomeadamente «mwene», «mwana» e «munhu») e recomendou só o uso de «Mutapa» para designar o Estado. Ficaria, então, «Estado de Mutapa» (1980:356), o que a nada de novo conduz. O verdadeiro problema está em designar uma formação política com o título dinástico (ou com uma parte dele) de quem a governava, porque, por exemplo, escrevemos «Estado do Báruè» e não «Estado do Macombe» (designando este último vocábulo o título dinástico do rei). Os Portugueses empregaram inicialmente o termo «Ucalanga» para nomear o «reino» do Muenemutapua e, mais tarde, «Moca-ranga» (Santos, 1609, 1:199), corruptela de «Caranga», termo que remete para uma realidade étnica imprecisa e que imprecisa permanece quando se pretende captá-la na expressão «Shona (Chona) — Caranga». Para não fugirmos à tradição, designámos também o Estado ou Império pelo título do rei ou do imperador, mas utilizando a grafia que julgámos ser mais aceitável.

(3-b) A propósito da «hospitalidade forçada» que as comunidades tinham de dar sempre que o Muenemutapua mandava o seu exército punir os «alevantados», é interessante registar um processo idêntico mencionado por Cunha ao descrever os «Usos e Costumes do povo do Mossuate» (isto é, suázi): «O régulo quando quer castigar o chefe de alguma povoação, ou mesmo a gente que ali reside, manda estar n'ela durante quinze dias ou um mês, conforme o delito, uma manga de manjas (regimento de soldados, C. S.) que comem à vontade dos mantimentos d'aquela gente e lhe matam o melhor gado que possuem, uma espécie de ocupação militar a expensas dos habitantes» (1883:163). Por outro lado, chamamos a atenção do leitor para o facto de que actualizámos a grafia neste, como em outros extractos que aparecem ao longo do texto. Por vezes substituímos certas palavras por outras para melhorar a compreensão das passagens. Apenas mantivemos a grafia original nos extractos mais longos insertos na unidade anterior a esta (unidade 7).

(3-c) Cruzado era uma antiga moeda portuguesa equivalente a 400 réis. Veja Hoppe, 1970:320.

(3-d) Pataca era uma antiga moeda espanhola de prata. No século XVIII valia seis cruzados (2400 réis), loc. cit.

(4) Segundo guerreiro, o fogo e a derruba dos camponeses contribuíram para, século após século, reduzir em extensão e densidade a floresta fechada, dando origem a povoamentos cada vez mais abertos que as gramíneas foram invadindo. A situação tornou-se muito mais grave com a agressão imperialista que, encetada no fim do século passado, introduziu no País as serrações e as culturas industriais (coqueiro, sisal, cana-de--açúcar, café, algodão, etc). Os abates indiscriminados sem repovoamento desnudaram o solo, expuseram-no à irradiação solar e aos ventos, fizeram diminuir a infiltração das águas, aumentar a evaporação e o escoamento artificial (por isso os cursos de água se tornaram torrenciais), etc. Um exemplo eloquente é o da província de Nampula, de grande densidade populacional, área por excelência do sisal e do algodão, onde a desarborização extensiva trouxe consigo a lavagem artificial do solo, a queda da

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fertilidade deste, a diminuição do nível freático e a erosão (veja 1959, 1965). Porque, como escreveu Marx, «cada progresso da agricultura capitalista é um progresso não apenas na arte de explorar o trabalhador, mas ainda na arte de despojar o solo» — citado em Camatte, 1977:107.

(5) Lanças de arremesso. Assim, as «lanças» nomeadas no texto seriam destinadas ao combate corpo-a-corpo.

(6) Alternativa de «Zulu», termo para designar os povos que viveram na costa sul-oriental de Africa. Ambos continuam a ser motivo de controvérsia (veja, por exemplo, Marks, 1972:126-144). Os Portugueses usavam o vocábulo «Vátuas», corruptela de «Báthua» (ou «Batua»), designação Ronga para Nguni, Ngoni ou Vangunes (consulte, por exemplo. Enes, 1945: 43). Já nos parece menos defensável que «Báthua» (ou «Batua») venha de «Bantu», como pretenderam Toscano e Quintinha, 1935, 1:43.

(7) Chifres. Veja a continuação do texto. (8) Os sinónimos foram extraídos de Dias, 1981:166, 179. (9) Parece-nos pouco aceitável tão ruidosa declaração de hostilidade num bloco

geo-sócio»-militar onde o ataque de surpresa constituía uma regra. Veja, porém, a nota 12.

(10) Passagens como as do autor anónimo reflectem uma modalidade de ataque típica do Norte. Mas reflectem, também, o característico tom colonial de atribuir aos Moçambicanos, como a qualquer colonizado, uma «ferocidade» e uma «sanguinolência» sem limites.

(11) Os Portugueses tinham por costume, ao descrever o Norte, acrescentar o sufixo «muno» (chefe, no seu significado mais lato) ao nome do príncipe ou do rei.

(12) No Mossuril, segundo Camizão, se um muene decidisse iniciar uma guerra com outro muene, mandava avisar este através de um mensageiro («mamuhupe»). O muene reptado ou aceitava a peleja ou a recusava e, neste caso, enviava pelo arauto uma mulher e uma azagaia (veja Camizão, 1901:4). Tão curiosa modalidade de combate com pré-aviso contradiz o carácter de surpresa que a guerra assumiu no Norte, mas mais nenhum dos autores por nós consultados a mencionou. Há, entre outras, duas formas de resolver a questão: a) Não aceitar como certa a referência, por contrariar um padrão de ataque por surpresa mencionado por muitos autores; b) Aceitá-la e tê-la à conta de um processo tendente a prevenir excessivas perdas de vidas e de bens numa economia de débil excedente económico; o combate assumiria, então, as proporções moderadas, controladas e ritualizadas de um duelo. É porventura nesse sentido que deve tomar-se a afirmação de Pires de que os tambores tocavam em todas as paragens que os guerreiros de Pebane faziam antes de enfrentar o inimigo. Se pudéssemos contar com mais testemunhos idênticos aos de Camizão, seríamos levados a refundir as nossas conclusões sobre o padrão de luta no Norte, o que, porém, não contraditaria a base económica da organização social nortenha.

(13) Geralmente os relatos dos missionários são os mais fidedignos entre as fontes portuguesas. Despidos da sua ideologia, nomeadamente da religiosa, constituem importantes reservatórios de informação polivalente (económica, política, médica, alimentar, etc), até porque os missionários falavam línguas nacionais. A obra de Santos é, na realidade, uma das mais importantes fontes da nossa história.

(14) «Cafre» vem de «Caffir», designação por que os Árabes nomeavam os africanos não muçulmanos (Botelho, 1934, 1:104). Na sua memória de 1518, Barbosa escreveu que «Entrando desta terra de Çofala contra o sertão, está o rio (sic) que chamam Benamatapa que é muito grande: o qual reino é de gentios, a que os mouros chamam Cafres» (1518:358). Os Portugueses adoptaram o vocábulo por corruptela e carregaram-no, gradualmente, de um forte sentido pejorativo e etnocentrista.

(15) O cronista ora escreveu, por exemplo, «(...) Morimuno (...) forma Massassa (...)» (1784:95-96), ora «(...) os xeques de Quitangonha e Sincul

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estavam amassassados; isto é: juntando gente (...)» (1784:99). Em Emacua, «mushasha» ou «musasa» designa pequenas construções de palha, palhoças (Prata, s/d:251). Em Eshuabo, a palhoça (construída, por exemplo, como habitação provisória junto dos campos de arroz do litoral da Zambézia) diz-se «m'çassa». Portanto é provável que o cronista conhecesse o significado real do que chamou «Massassa», mas tivesse preferido usá-lo por metonímia enquanto facto consumado (guerreiros reunidos, «guerreiros amassassados»).

(16) Não nos foi possível apurar o significado da palavra. É presumível, contudo, que o autor tivesse pretendido referir-se a cacetes, armas que foram utilizadas no Centro do País.

(17) 0 Estado do Butua (ou Abutua) estava localizado no actual Zim-babwé. No século XVIII senhoreava Sofala, Manica e o próprio Estado do Muenemutapua (Randles, 1975:53-58).

(18) Tanto se pode interpretar no sentido de autênticas flechas lançadas manualmente sem arco, como no de lanças para arremesso.

(19-a) A impotência dos nossos antepassados perante uma tecnologia militar impossível de vencer só com azagaias, arcos e flechas e escudos, está patente na carta seiscentista de Almeida, quando este descreve as lutas que opuseram em 1572 os Moçambicanos do médio Zambeze a uma importante força militar portuguesa que pretendia chegar ao Muenemutapua. Assim, confrontados os nossos guerreiros com os canhões que disparavam pedras (roqueiras), os mosquetes e os arcabuzes dos Portugueses e «vendo tantos mortos e feridos tornaram para trás e foram ter com o seu Rei, dizendo-lhe que não podiam pelejar com aquela gente que eram grandes feiticeiros, que aqueles pilões (roqueiras, C. S.) falavam que só com um grito que davam abriam no corpo um buraco, e sem mais outra coisa morria a gente, resolveu-se o Rei e veio dar obediência (...)» (1648:28). Mas a lição foi depressa aprendida e os reis procuraram adquirir espingardas aos Portugueses pelo comércio, como o seguimento do nosso texto mostra.

(19-b) Provavelmente grupos Nianja, subordinados a Lundo ou Rundo (nas línguas Bantu, tanto pode usar-se o «I» como o «r»), importante chefe Marave. O autor devia ter escrito «Azimba» ou «Ba-Zimba» (plurais). Para a história do Império Marave em geral e do Estado Undi em particular, veja Langworthy, 1969.

(20) Gordura animal ou vegetal, provavelmente vegetal. Descrevendo Sofala, por exemplo. Santos observou que «Em todas estas terras há muito gergelim, muito alvo e bom de que se faz azeite, e dele comem ordinariamente todos, como em Portugal se come o da oliveira» (1609, l:50).

(21-a) Os chamados «Prazos» constituíram inicialmente terras que os Portugueses e Goeses conquistaram, compraram ou receberam como saguate pelo auxíli.0 que prestaram a este ou àquele príncipe. A partir de 1609 a monarquia portuguesa procurou legalizar a posse dessas terras (Lobato, 1962:102) e foi nesse contexto que o termo surgiu. Pretendeu-se que as terras fossem concedidas para usufruto durante duas ou três vidas (por exemplo, do pai, da filha e/ou da neta), mediante uma pensão anual. Findo o prazo de concessão, as terras deviam revoltar à Coroa portuguesa. Também se procurou que os foreiros casassem só com mulheres europeias. Mas a realidade histórica mostra, por um lado, que os foreiros raramente pagavam as pensões e, por outro lado, que as suas companheiras eram sobretudo mulheres africanas. Produto da penetração colonial e filhos de sucessivos casamentos interraciais, os potentados da Macanga e Massangano, por exemplo, acabaram por criar um universo sócio-cultural hostil à tutela portuguesa e que nada tinha a ver com o «Prazo» enquanto instituição jurídica vazada na lei colonial.

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(21—b) Na sua «Etiópia Oriental», Santos observou que entre os instrumentos musicais do Estado do Quiteve havia «umas cornetas de uns animais bravos que chamam paraparas (palapalas, C. S.) e por razão d'este nome chamam às cornetas parapandas (...)» (1609, l:75).

(22) Confrontando o que Xavier e o autor anónimo escreveram, podemos supor tratar-se de uma mesma realidade captada através de variações linguísticas regionais. Por outro lado, parece-nos interessante revelar a hierarquia militar existente no Estado do Muenemutapua, de acordo com o citado autor anónimo: Nadinanga (general), Mamdãbere (tenente-general), Gueveros (coronéis e tenentes-coronéis), Nhanbeze (capitão) e Munhais (praças) (1794: 222).

(23) 0 vocábulo parece não possuir um objecto preciso. Um dos primeiros cronistas portugueses a usá-lo foi Soares, ao referir-se aos «Macomates ou Landins» de Inhambane (1730); mais tarde, empregaram o vocábulo, Xavier («Landins Bila») (1758:177) e Gama (1796:22). Embora geralmente empregue para designar agrupamentos étnicos do Sul (Tsonga ou Tonga-Xangana), também o foi para nomear, por exemplo, os guerreiros da Maganja da Costa e, mesmo, os soldados angolanos que lutaram ao lado dos Portugueses nas campanhas de ocupação militar colonial. O seu verdadeiro objecto era provavelmente, por metonímia, todo o guerreiro valente.

(24) Aqui, já Santos escreveu o vocábulo no plural; reveja a nota 19-b. (25) Para evitar as constantes indicações de páginas da obra usada na longa

descrição que se segue no texto, a referência bibliográfica ou, mais correctamente dito, a chamada bibliográfica só surge no fim dessa descrição.

(26) Idem. (27) Idem. (28) «Chope(í)» parece ser oriundo do verbo Nguni «Cu tchopa» = atirar com o

arco; logo, «tchopi» = atiradores de arco ou archeiros, termo pelo qual eram conhecidos os grupos populacionais que viviam a leste do Limpopo. Também se utilizaram os termos «mindongues» e «mendongues» para designar os mesmos grupos, corruptelas de «vandonge», habitantes de «Tonge» (leia-se «Tongue») (Cabral, 1975:105). Quer «Chope(i)» quer «Tsonga» (escravo ou servo) são designações que só surgiram no século XIX, com a chegada dos Nguni (Smith, 1973:568). Essa a razão por que não são mencionados no relato de Soares sobre Inhambane (1730).

(29-a) As identificações dos animais cujos chifres eram empregues como cornetas foram levadas a cabo com o auxílio de Dias, 1981:101, 104, 165.

(29-b) Contudo, quatro anos antes da afirmação de Andrada, Cardoso escreveu que «os vatuas acham-se espalhados por todo o território de Muzila, estando contudo um pouco mais concentrados para os lados do Bilene» (1883:183).

(29-c) A aristocracia JMguni de Gaza, tal como os Amuenémutapua, tinha por hábito «criar na capital real os herdeiros dos chefes conquistados ou avassalados» (Rita-Ferreira, 1974:154). Também aqui o processo não resultou.

(29-d) Mas, segundo Junod, a guerra civil entre Muzila e Maueue durou mais de dez anos (1934, 1:38-39).

(30) As afirmações de Ngunguniane devem-se a um relato feito a Toscano e Quintinha pelo príncipe Uanhanhâna Cossa, irmão mais velho de Chonguéla Cossa, residente em Magude. O citado príncipe desejava ser o chefe da «Cossine» e estava em litígio com o irmão, que pretendia o mesmo, pelo que aquele se dirigiu a Mandlacazi para Ngunguniane interceder por ele. Foi enquanto esteve na corte real de Gaza que Uanhanhâna Cossa escutou não só as afirmações transcritas, bem como outras (veja op.cit, pp. 284-296). A crueza das afirmações do imperador, o ataque frontal aos Portugueses, as previsões justas que fez e o perfeito clímax

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que a situação descrita representa em relação aos factos por nós narrados, levam-nos a tomar por fidedigno o relato de Uanhanhana Cossa, que acabou, afinal, dado o estado de espírito de Ngunguniane, por não ver satisfeitas as suas ambições.

(31) Todavia, pelo menos no tocante à guerrilha, Machel e Slovo salientaram que o fundamental não é o meio físico, mas o Povo. Quer dizer: não são as montanhas e a floresta cerrada, por exemplo, que fazem o êxito da guerrilha, mas o apoio popular (veja Machel, 1976:42; Slovo, 1978:103).

(32) No tocante ao abandono do cultivo de arroz, Franco escreveu que, junto ao Save, era o próprio Muzila quem não autorizava o cultivo, embora não tenha esclarecido o motivo da interdição (1883:209). O autor da informação era um médico integrado na expedição de espionagem portuguesa às terras de Muzila, expedição que foi comandada por Cardoso e se realizou em 1882/1883.

(33) Esteve (e está ainda) bastante generalizada a teoria de que as rivalidades étnicas ou «tribais» foram a principal causa da vitória colonial. É difícil, de facto, negar a importância dessas rivalidades. Contudo, por razões de ordem vária que não cabe no âmbito deste livro analisar, há fenómenos de não menor importância, de não menor peso que têm sido menosprezados ou marginalizados no estudo da vitória colonial, como seja o da luta de classes nas formações sociais africanas. Em Moçambique, a refracção das contradições sociais surge já nos mais antigos documentos coloniais. Em 1645, por exemplo, o próprio Muenemutapua observava (como vimos na unidade 2) que «muitos mineiros para se isentarem de seus encosses (chefes, CS.) se acolhem aos ditos mercadores (Portugueses, CS.) (...)» (ra-veja «Manomotapa», 1645). Na realidade, entre outros indicativos da luta de classes, os exércitos de mercenários comandados pelos Portugueses, Amuanamuzungo e, mesmo, por «alguns nacionais apotentados», foram preenchidos com milhares de camponeses que, para se furtarem às consequências dos milandos locais, iam «vender o corpo aos portugueses, e filhos de Goa, Patrícios, e (a, C S.) alguns nacionais apotentados por doze xuabos que são 12 braças de pano (...)» (Miranda, 1766:77). Muitos dos citados milandos provinham de acusações de feitiçaria e não é sem razão que, por exemplo, os reis do Quiteve procuravam monopolizar o exercício dessa terrível e eficiente arma ideológica, sendo «proibido pelo rei da terra que ninguém seja feiticeiro (mais propriamente contra-feiticeiro, C. S.) sem sua licença, porque somente ele e seus amigos quer que usem desta ciência. E todo o cafre que fôr feiticeiro sem licença de el-rei, tem pena de morte e perda de seus bens, mulher e filhos, metade para el-rei, e metade para quem o acusar (...). Esta pena de perder os seus bens para el-rei é muito comum entre estes cafres por quaisquer delitos (...)» (Santos, 1609, 1:90-91). O labelo de feiticeiro podia recair — e recaía com frequência—-sobre quem produzisse mais do que os outros (veja Monclaros citado por Randles e as próprias considerações deste em 1975:74), porque se alguém produzisse mais do que os outros acreditava-se que isso só podia suceder à custa desses outros. É interessante verificar como ao igualitarismo aldeão, sempre pronto a expulsar o individualismo inovador num meio onde as técnicas eram simples e a pobreza campeava (Santos, 1609, 1:86), se juntava, por um lado, a crença, alimentada pela própria aristocracia, de que era desta que dependia a fertilidade das terras, a chuva e o bem-estar geral, o que, nos casos de chegada tardia da chuva, escreveu Santos serem os camponeses tão crédulos «que vendo quantas vezes o rei lhe não dá o que lhe pedem, não se desenganam, antes de novo lhe levam maiores ofertas, e n'estas idas e vindas gastam muitos dias, até que vem alguma conjunção de chuva, com que ficam os cafres satisfeitos, tendo para si que o rei lhe não concede o que lhe pedem, senão depois de o terem bem peitado, e importunado: e o mesmo rei assim o diz, para os sustentar em seu erro». (1609, 1:69); se juntava, por outro lado, a obrigatoriedade da prestação de rendas em trabalho e

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géneros (veja, por exemplo, Santos, 1609, l:70; Conceição, 1696, citado em DH, 1982, l:70), com cujo produto o patriciado alimentava o comércio (Costa, 1977:23-24), o exército (Silveira, 1518; Costa, 1977:26) e os convidados das recepções oficiais (Santos, 1609, 1:62-63), sem que para os camponeses houvesse qualquer melhoria da sua situação material como contrapartida do que tinham de retirar à força de trabalho e... à sua ilimitada capacidade de crença. 0 igualitarismo de base era assim, a premissa da sobrevivência da classe dominante, classe que impunha e controlava, também, o pensamento dominante. Contudo, lá estavam os milandos, nomeadamente os milandos por acusação de feitiçaria, a revelar, para além do mundo das acusações gerais e ingénuas que o débil domínio da natureza promovia e reproduzia (Santos, 1609, 1:86-87; Almeida, 1648: 205-206), as contradições que opunham dominantes e dominados, contradições que os dominados saldavam, com frequência, por uma crítica, por uma acção prática contra a ordem estabelecida. Portanto, quando os camponeses se «isentavam de seus encosses» para colaborarem com os Portugueses, isso explica-se não só como «procura de novos quadros sociais que permitissem formas de realização individual sobretudo para os mais jovens, impossíveis no quadro das relações de parentesco oferecido pelas comunidades de base. (...) Pôr-se ao serviço dos mercadores constituía um sinal de protesto contra a ordem «tradicional», como brilhantemente viu Costa ao analisar o Estado do Muenemutapua (1977:55), mas explica-se também, explica-se ao mesmo tempo como exemplo prático de luta em sociedades onde a clivagem social era uma realidade, em sociedades onde o estatuto de parentesco era determinado pelo estatuto de classe. Pensamos, pois, que a vitória colonial assentou basicamente na conjunção histórica de três grandes factores: a) contradições étnicas, b) contradições de classe e c) contradições dentro da aristocracia dominante. Estamos conscientes de que a expressão «contradições etno-políticas» apenas tem utilidade enquanto projecto, enquanto imagem impressiva e pedagógica para captar essa tripla, complexa e variável realidade (e enquanto inadequação: por que não é a realidade étnica uma realidade política?).

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9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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