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Carlos Leite> Estrangeiros na sua Própria Terra [Mutações Urbanas e Mapeamento Cognitivo] Carlos Leite * 1 Introdução O artigo pretende expor algumas questões indagativas acerca da leitura perceptiva do território metropolitano contemporâneo. O território metropolitano é hoje fruto de gigantescas transformações decorrentes das mudanças da economia pós-fordista. A chamada cidade pós-industrial apresenta um território ao mesmo tempo fragmentado e retalhado. Vive-se hoje nas maiores metrópoles do mundo globalizado, realidades díspares que configuram também agendas e demandas locais. O território metropolitano então se configura repentinamente complexo e mutante, permeado por vazios urbanos e mudanças de usos e significados: emergem as mutações urbanas. Neste sentido, parece-nos urgente retomar criticamente a questão da percepção urbana, da cognição ambiental e do processo de cognição ambiental, originário das pesquisas pioneiras de Kevin Lynch na década de 60. 2 Não há mais possibilidade de se formar um mapa mental da cidade contemporânea aos moldes daqueles conceituados por Lynch. Que mapeamento cognitivo se pode construir em metrópoles tão fragmentadas e mutantes? Como mapear as escalas imensuráveis presentes em metrópoles como São Paulo? A percepção ambiental da metrópole atual exige novos parâmetros para sua análise e definição. Nossa intenção aqui é investigar algumas destas questões a partir de uma análise cruzada entre conceitos e imagens, para que se possa tentar elaborar este novo estatuto de mapeamento cognitivo de um território metropolitano hoje tão mutante. A fotografia é, desde os tempos de Lynch, instrumental rico na investigação do processo de cognição ambiental. Não se pretende uma investigação científica rigorosa, mas apenas lançar um “olhar estrangeiro” sobre estes territórios. Para tanto servimo-nos de alguns levantamentos fotográficos específicos que nos lançam de modo muito denso neste mapeamento metropolitano. São trabalhos de três fotógrafos que há anos se debruçam com muita ênfase sobre estes olhares inusitados destas metrópoles mutantes: * Arquiteto; Mestre e Doutor [FAU-USP]; Pós-doutorado [Cal Poly University]; Professor do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Estrangeiros na sua Própria Terra [Mutações Urbanas e Mapeamento Cognitivo] “As grandes contradições do nosso tempo passam pelo uso do território.” Milton Santos 1 São Paulo metropole contemporanea, cidade “glocal”, território fragmentado e retalhado [Imagens: Nelson Kon] 1

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Carlos Leite> Estrangeiros na sua Própria Terra [Mutações Urbanas e Mapeamento Cognitivo]

Carlos Leite*

1 Introdução

O artigo pretende expor algumas questões indagativas acerca da leitura perceptiva do território metropolitanocontemporâneo. O território metropolitano é hoje fruto de gigantescas transformações decorrentes das mudançasda economia pós-fordista. A chamada cidade pós-industrial apresenta um território ao mesmo tempo fragmentadoe retalhado. Vive-se hoje nas maiores metrópoles do mundo globalizado, realidades díspares que configuramtambém agendas e demandas locais. O território metropolitano então se configura repentinamente complexo emutante, permeado por vazios urbanos e mudanças de usos e significados: emergem as mutações urbanas.

Neste sentido, parece-nos urgente retomar criticamente a questão da percepção urbana, da cognição ambiental edo processo de cognição ambiental, originário das pesquisas pioneiras de Kevin Lynch na década de 60.2 Não hámais possibilidade de se formar um mapa mental da cidade contemporânea aos moldes daqueles conceituados porLynch. Que mapeamento cognitivo se pode construir em metrópoles tão fragmentadas e mutantes? Como mapearas escalas imensuráveis presentes em metrópoles como São Paulo? A percepção ambiental da metrópole atualexige novos parâmetros para sua análise e definição.

Nossa intenção aqui é investigar algumas destas questões a partir de uma análise cruzada entre conceitos eimagens, para que se possa tentar elaborar este novo estatuto de mapeamento cognitivo de um territóriometropolitano hoje tão mutante. A fotografia é, desde os tempos de Lynch, instrumental rico na investigação doprocesso de cognição ambiental. Não se pretende uma investigação científica rigorosa, mas apenas lançar um“olhar estrangeiro” sobre estes territórios.

Para tanto servimo-nos de alguns levantamentos fotográficos específicos que nos lançam de modo muito densoneste mapeamento metropolitano. São trabalhos de três fotógrafos que há anos se debruçam com muita ênfasesobre estes olhares inusitados destas metrópoles mutantes:*Arquiteto; Mestre e Doutor [FAU-USP]; Pós-doutorado [Cal Poly University]; Professor do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Estrangeiros na sua Própria Terra [Mutações Urbanas e Mapeamento Cognitivo]

“As grandes contradições do nosso tempo passam pelo uso do território.”

Milton Santos1

São Paulo metropole contemporanea, cidade“glocal”, território fragmentado e retalhado

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Nelson Kon é um fotógrafo-arquiteto que há algum tempo realiza imagens aéreas de São Paulo procurando buscar oregistro do inusitado, da fragmentação urbana a partir dos vôos de helicóptero. As suas imagens aqui presentes sãofruto de três trabalhos de pesquisa específicos: a apresentação “Fraturas Urbanas: Panorama da MetrópoleContemporânea” de Carlos Leite na Bienal 50 Anos em 2001 onde se registraram imagens de quatro territóriosmutantes específicos de São Paulo: a Orla Ferroviária; o Largo da Concórdia; as periferias com ocupação ilegal e oJardim Anália Franco, enclave de um bairro segregado, anticidade presente na Zona Leste da cidade.3

Alex MacLean, fotógrafo-piloto há 25 anos, realizou uma série de 440 imagens aéreas de cidades norte-americanas,metrópoles mutantes e áreas de espraiamento urbano – urban sprawl – para o livro e exposição “Mutations”,organizado por Rem Koolhaas e Stefano Boeri em 2001.4

Gabriele Basilico é considerado um dos maiores fotógrafos de paisagens urbanas do mundo, tendo se especializadoem registros de paisagens mutantes, áreas industriais e pós-industriais e cidades que sofreram transformaçõesdramáticas [Berlim, Beirute]. Suas mostras “Cityscapes” e “Interrupted City” mostram seu registro dasfragmentações urbanas.

2 Desarticulações

A noção de território tem variado ao longo do tempo. O conceito de território foi-nos passado pela modernidade e assimtem vindo até o presente, quando, claramente, já não satisfaz à dinâmica da vida contemporânea, à fragmentaçãoespacial das metrópoles e à realidade do mundo globalizado.

As novas tecnologias e a globalização econômica têm alterado os significados das nossas noções de geografia edistância. Após estudos exaustivos das alterações urbanas provocadas pelo processo de globalização, SaskiaSassen conclui que há, na verdade, uma geografia da centralização e não da dispersão ou descontinuidade, que nãorespeita fronteiras urbanas ou nacionalidades.5

No final do século XX, a globalização impôs ao território uma dinâmica até então inesperada. Deve-se ter emmente, porém, que mesmo nos lugares onde os vetores da globalização estão mais presentes, o território habitadoe com vida local mantém características próprias. Cria novas sinergias que se contrapõem à globalização. Vive-se,portanto, uma realidade de crise. Um conflito cultural da sociedade que se apresenta na escala do território.

Estes processos simultâneos – globalização e fragmentação – geram territórios contraditórios. Desconexões eintervalos na mancha urbana: “Geografias da desigualdade”, conforme Maria Adélia de Souza.6

São Paulo: território dilacerado, mutaçõesdinâmicas, contrastes e perda de referenciaisurbanas

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Na verdade, deixamos para trás a cidade moderna do século XX e nos deparamos, sem aviso prévio, com as metrópolesmutantes da contemporaneidade.

A metrópole contemporânea apresenta imensas áreas desarticuladas e dispersas pelo território. São áreas dotadas defluxos variados, em trânsito permanente, com fraturas que esgarçam o tecido urbano, estabelecendo aparentesemelhança entre partes dispersas. Conforme Brissac: “No espaço fragmentado e indeterminado da metrópolecontemporânea não se tem pontos ou posições.”7

Essa desarticulação do território pode ser vista nos arquipélagos de bairros que se margeiam, fragmentos de todasas escalas, alguns inteiros e quase homogêneos, saídos de uma superposição de diferentes épocas históricas eestruturas urbanas que se cruzam sem definir espaços homogêneos. Sem limites claros. A fragmentação territorialcompreende uma rede desconexa de vazios urbanos, terrenos vagos e enclaves territoriais. Misturam-se a cidadeformal e a cidade informal, ilegal, de modo aleatório e disperso. Coexistem zonas abandonadas e áreas deocupação intensa e desordenada. A arquitetura reflete essa instabilidade, ainda segundo Brissac:

“...formas fragmentadas e perdidas em reflexos espelhados, espaços simulando transparência, estruturas variáveisou móveis que provocam inquietação e estranhamento. Construções que refletem as mudanças contínuas e osdeslocamentos abruptos da urbe contemporânea.”8

A cidade perde seus limites, eixos, simetria; a arquitetura perde seus símbolos, seus monumentos. No seu lugarsurge a fragmentação do território. Um dos maiores problemas para a compreensão dessas novas formas que oterritório adquire é, justamente, a imensidão de sua escala. Uma escala que não mais permite aos moradores dacidade percebê-la com um mínimo de clareza. Não há mais possibilidade de se formar um mapa mental da cidadecontemporânea aos moldes daqueles conceituados por Kevin Lynch.

3 Fluxos

A internacionalização da produção capitalista, dentre outros fatores intra-urbanos, vem determinando, nas últimasdécadas, novos padrões de organização territorial metropolitana. A nova dinâmica do território, mais complexa,determina a sua descontinuidade, gera os espaços residuais – o terreno vago - e faz emergir uma organização, atéentão inédita, da fluidez e rede de fluxos nesse território.

Os fluxos, e não apenas as empresas físicas, passam a constituir unidades de trabalho e decisão na metrópolecontemporânea. A localização dos agentes econômicos e sociais é, agora, determinada por uma rede de fluxos. Deinformações e capital. A rede de fluxos estabelece conexões e mutações contínuas no território. Os fluxossubstituem as localidades fixas. Surge uma inexorável descontinuidade territorial.

São Paulo: vazios urbanos, periferias ocupadasilegalmente, dispersão e enclaves de anti-cidades

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Assim, a forma típica da mobilidade contemporânea são os fluxos. O movimento na cidade moderna – tão valorizadopelo modelo dos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAM´s) - é substituído pelos fluxos na cidadecontemporânea. As cidades e a sua arquitetura atuam como os pontos nodais dos fluxos internacionais, onde serefletem as interconexões globais.

Há uma concentração de atividades em pontos urbanos dispersos. Surge, assim, o abandono de grandes áreas urbanase o aumento da necessidade de locomoção entre esses nós urbanos produtivos. O território passa a ser constituído de“vastos enclaves urbanos, praticamente autônomos, ligados diretamente aos sistemas de fluxos informacionaiscorporativos...”9

Esses nós, presentes no espaço da rede de fluxos, cada vez mais se assemelham programaticamente. Ali, ocorremfunções e programas semelhantes, que podem se reproduzir e se conectar por diversos territórios distintos do globo.Koolhaas, por exemplo, descreve os aeroportos de hoje como os paradigmas desse novo território global: cidadescomeçam a se parecer com aeroportos e estes se tornam “uma concentração de ambos, o hiper-global e o hiper-local” onde se pode desfrutar e adquirir coisas que pertencem a quaisquer lugares do mundo - as cidades genéricasglobalizadas - e, ao mesmo tempo, conseguir coisas que são da cultura local. São típicos nós da rede de fluxosglobal, ao mesmo tempo em que pontos na rede do território metropolitano disperso.10

Por outro lado, na espacialização dessa rede de fluxos não há escala precisa. Pode ser local, global ou urbano-regional. A rede de fluxos espalha-se por um território dinâmico, de desenho líquido, mutante. Conforme Borja eCastells: “Esta nova cidade metropolitana deve ser entendida como uma rede, ou um sistema, de geometria variável,articulada por nós, pontos fortes de centralidade, definidos por sua acessibilidade.”11

Outro olhar possível pode nos levar ao questionamento da inexorabilidade dessas redes. Pode-se, perfeitamentepensar num sistema híbrido, onde a metrópole abarca, ao mesmo tempo, um território que possui duas lógicasdistintas e complementares. Uma, determinada pelo sistema de redes de fluxos e outra, de caráter local, do espaçoda convivência dos cidadãos, das relações humanas que sempre existiram nas cidades. O espaço local, “banal”,como diria Milton Santos:

“O território, hoje, pode ser formado de lugares contíguos e de lugares em rede...Mas além das redes, antes das redes,apesar das redes, depois das redes, com as redes, há o espaço banal [sic], o espaço de todos, todo o espaço, porque asredes constituem apenas uma parte do espaço e o espaço de alguns...De um lado, temos uma fluidez virtual, oferecidapor objetos criados para facilitar essa fluidez e que são, cada vez mais, objetos técnicos. Mas os objetos não nos dão

Metropoles mutantes, territórios homogêneos,escala imensurável: imageabilidade dispersa[Los Angeles]

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senão uma fluidez virtual, porque a real vem das ações humanas, que são cada vez mais ações informadas, açõesnormativas.”12

4 Terreno vago

A definição de terreno vago na sua origem francesa, “terrain vague”, surge com precisão em um texto, hoje clássico, doarquiteto e crítico catalão Ignasi de Solà-Morales, publicado na série “Any” de debates conceituais. Nesse texto, elecoloca a dificuldade da tradução precisa para outras línguas do termo. Por um lado, a palavra francesa “terrain” conotauma qualidade urbana generosa, maior do que um simples “terreno”, como normalmente se empregaria o seu uso emportuguês. Maior e menos precisa porção de área urbana. Por outro lado, a palavra francesa “vague” traz, pelas suasorigens latinas, dois significados complementares. O primeiro refere-se a vácuo, vazio, não ocupado, mas também àlivre, disponível. Sem uso, porém com liberdade de expectativas. O segundo significado advém do latim “vagus”:indeterminado, impreciso, sem limites claros, incerto, vago. Pode-se ainda buscar referência de significado em “terrenobaldio”: o terreno a ser utilizado.13

Assim, a relação entre todos os significados dá uma conotação abrangente ao termo terreno vago na sua dimensãourbana. À conotação negativa impõe-se a esperança do potencial presente. Área sem limites claros, sem uso atual,vaga, de difícil apreensão na percepção coletiva dos cidadãos, normalmente constituindo uma ruptura no tecidourbano. Fratura urbana. Mas também área disponível, cheia de expectativas, com forte memória urbana, a memóriade seu uso anterior parece maior que a presença atual, potencialmente única, o espaço do possível, do futuro. Apossibilidade do novo território metropolitano.

Tais espaços residuais surgem, normalmente, do processo de mudança do modo de produção capitalista e de seusreflexos no território metropolitano. São conseqüência direta das mutações urbanas. O terreno vago é, usualmente,resultante do processo de desindustrialização metropolitana do final do século XX. As grandes transformações queos territórios metropolitanos vêm sofrendo ao passar de cidade industrial para pós-industrial, de serviços,abandonando imensas áreas de atividades secundárias, explicam, em grande parte, o surgimento dos terrenosvagos.

Terrenos baldios e galpões desocupados junto aos antigos eixos industriais. Antigas áreas produtivas, hojeinoperantes. Massas arquitetônicas do passado industrial, atualmente vazias, em processo de deterioração física(os moinhos presentes na orla ferroviária paulistana). Mas também surgem das mal planejadas intervençõesrodoviaristas, como as áreas residuais presentes no tecido urbano tradicional cortado por gigantescos sistemas devias. Cicatrizes urbanas. Terras de ninguém.

Pode-se colocar o terreno vago como resultante também de um processo metropolitano de “palimpsesto”. As mutaçõesurbanas recorrentes, que se sobrepõem umas às outras, sem lógica histórica, geram, no território “consolidado”camadas urbanas de novos usos e programas e, nos seus interstícios territoriais - spaces in between -, terrenos vagos.

Vazios urbanos, “terrain vague”, terras deninguèm: o território metropolitano se pontuapela ruptura e esgarçamento dinâmico,lançando novos desafios ao seu mapeamento,representabilidade e processamentoperceptivo-cognitvo. Qual memória desteslugares-mutantes? Qual imagem se guarda?Que percepção se produz? Como construir umadequado mapeamento cognitivo do territóriosem fortes referenciais, em constantemutação?

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A metrópole atual, permeada por terrenos vagos, determina uma rede desconexa de espaços residuais, vazios urbanos.Um território permeado por fraturas urbanas. Os cidadãos perdem, então, o senso da totalidade, da abrangência daurbe, do seu território.

Passamos a ser, então, nas nossas cidades,”estrangeiros na sua própria terra.”14

O terreno vago é, assim, símbolo dessa vida metropolitana atual. Seu paradigma.

5 Cidades Genéricas

Dentre as várias facetas que se vão produzindo através do atual processo de globalização, encontra-se a presença, noâmbito do território, das contradições das cidades globais e suas realidades locais. Em cidades como São Paulo hoje severifica esta situação de modo dramático. Surgem enclaves globais em meio ao território fragmentado local: cenáriosurbanos globalizados por uma arquitetura homogênea e globalizada, controlados e privatizados, que fornecem umaimagem ilusória de familiaridade conectada à rede global de fluxos econômicos. Conforme Lima, “sob o impacto daglobalização, não só mudaram a dinâmica, o tamanho e a escala das cidades contemporâneas nos níveis local, nacionale global, como também mudou a maneira como nós a experianciamos”.15

Não se pode deixar de comentar, mesmo que rapidamente, o surgimento avassalador nos EUA do chamado “neo-urbanismo”. Pregando uma alternativa à vida urbana nas grandes metrópoles, com postulados teóricosconservadores e desenho urbano pré-moderno, o neo-urbanismo encontra um surpreendente sucesso popular juntoà classe média americana. Sem dúvida, impulsionado pela pujança da maior economia do século XX, em francocrescimento desde o início da década de 90, ele surge como alternativa ao desenho urbano dos novos subúrbiosamericanos. Retrato fiel dessa nova face do urbanismo americano, talvez cruel, frente a mediocrização espacialpromovida, seja aquele revelado no filme “O Show de Truman”, de Peter Weir ou “Beleza Americana”, de SamMendes.

Trata-se, na verdade, de respostas estéticas ao processo de ocupação urbana do território americano periférico debaxíssima densidade – urban sprawl – que cria uma imensa paisagem homogênea e dispersa, onde a locomoçaose dá através do uso intensivo do veículo particular, o lazer em parques temáticos disneyficados e os rarosencontros sociais em malls. Geram-se espaços urbanos cenográficos e genéricos que “sinalizam a criação delugares da fantasia aonde as percepções [parecem] ser projetadas por intenções do mercado”.16

Não bastassem as decorrentes condições de ocupação desmedida do ambiente natural – que finalmente começa a serquestionado pelo movimento do “smart growth” – este processo gera um padrão de sociabilidade anti-urbano esegregador, promovendo o que o geógrafo Michael Dear chama de “privatopia”.17

Cidades genéricas se multiplicam e geram formasglobalizadas/americanizadas de ocupação doterritório: habitar, estacionar, viver são padrõesgenericos e repetitivos pelas cidades “glocais”

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E como o processo de globalização neste inicio de século se confunde muitas vezes com um processo de“americanização”, este modelo de vida classe-média suburbana se repete no Brasil – Alphavilles e etc. – e nomundo todo, invadindo até mesmo a Europa, com toda uma cultura de vida urbana tradicionalmente diversa desta emuito mais rica e intensa, e as novas e impressionantes expansões urbanas das cidades asiáticas. Ou seja, emergeum padrão que Koolhaas chamaria de cidades genéricas.18

As nossas metrópole periféricas ganham contrates ainda mais fortes, já que, além dos processos acima descritos,apresentamos concomitantemente, as nossas periferias com ocupações ilegais de áreas de proteção ambientalatravés de um espraiamento urbano não planejado, ilegal, mas real. E, novamente, este padrão se repete em SãoPaulo ou Lagos, Nigéria.

Assim, a globalização oferece mais um elemento contra a imageabilidade das cidades pelos seus cidadãos: ageneralidade dos seus espaços.

6 Mapeamento Cognitivo

Em meio a este caos urbano de nossas maiores metrópoles, as conceituações acerca da imagem da cidade, dapercepção ambiental e das formas de seu mapeamento cognitivo, parecem ganhar mais força do que à época emque foram pioneiramente lançadas pelo urbanista Kevin Lynch em 1960. Talvez nunca dantes as imagens dascidades estivessem sendo tão preciosas, mesmo que questionadas. Por um lado, por aqueles que as transformaramem marketing e as utilizam para vender um produto atrativo a investimentos, turismo e como exemplos de boaadministração pública e modelos de novo urbanismo genérico. Por outro lado, para atestarmos o quão complexo oterritório metropolitano contemporâneo se configura para que possamos construir a sua imegeabilidade.

O conceito chave desenvolvido por Lynch é o de que as pessoas formam uma imagem mental do ambienteconstruído através de seus atributos urbanos e arquitetônicos:

“...no processo de orientação, o elo estratégico é a imagem do meio ambiente, a imagem mental generalizada domundo exterior que o indivíduo retém. Esta imagem é o produto da percepção imediata e da memória daexperiência passada e ela está habituada a interpretar informações e a comandar ações. A necessidade deconhecer e estruturar o nosso meio é tão importante e tão enraizada no passado que esta imagem tem uma granderelevância prática e emocional no indivíduo”.19

Tais imagens mentais formam as imagens coletivas e estas podem ser analisadas através de elementoscaracterísticos que lhes são comuns, atributos urbanos que levam os usuários a formarem suas representaçõesespaciais cognitivas: percursos, limites, distritos, nós e marcos referenciais.

Cidades genéricas se multiplicam e geram formasglobalizadas/americanizadas de ocupação doterritório: comprar e conviver [?], recrear, viver sãopadrões genericos e massificados

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Estes postulados teóricos ajudaram a formar, posteriormente, os conceitos de percepção ambiental e de mapeamentocognitivo, sejam eles objeto de estudo de arquitetos e urbanistas, geógrafos ou de psicólogos ambientais. Tais estudosprocuraram avaliar as leituras perceptivas que os habitantes fazem dos espaços urbanos, através do pressuposto básicoda existência de uma representação mental interna inerente a todo indivíduo, que lhe possibilita, além da percepçãoimediata multisensorial do ambiente, acrescentar-lhe significado e valores que formarão sua avaliação ambiental e oconduzirão, conseqüentemente, a ações, comportamentos do indivíduo no ambiente, formando assim um completoprocesso de cognição ambiental.

É dentro deste quadro de estudos interdisciplinares, realizados por diversos autores, mas tendo sempre umdenominador comum, qual seja, o pressuposto de representação mental interna enquanto aparato cognitivo doselementos do ambiente externo e de suas relações, que evoluiu o conceito de mapeamento cognitivo, processo noqual a mente humana adquire, codifica, armazena, relembra e decodifica informações advindas do ambienteespacial. 20

As cidades possuiriam imagens próprias e seus habitantes criam imagens mentais de suas cidades ao percorrê-lase vivenciá-las. Tais imagens mentais poderiam ser pesquisadas e, em sendo analisadas, revelar imagens “públicas”ou “coletivas” que, por sua vez, identificarão atributos urbano-arquitetônicos positivos ou negativos, marcosreferenciais para a coletividade ou paisagens urbanas pobres e sem significado. Mais ainda: estas pesquisasserviriam como instrumental para uma implementação de um adequado desenho urbano que de fato responda aosanseios da população usuária.

8 Argumentos

A grande questão que se coloca então é como estruturar este processo de mapeamento cognitivo no atual territóriourbano, fragmentado, complexo e dinâmico, sem marcos referenciais definidos. Como fazer a leitura deste territórioretalhado cuja imageabilidade parece ser frágil e dispersa, que não mais permite estruturar legibilidade?

Conforme Brissac:

“Hoje têm-se sujeitos individuais inseridos em um conjunto multidimensional de realidades radicalmentedescontínuas. Um espaço abstrato, homogêneo e fragmentário. O espaço urbano perdeu situabilidade...o problemade mapeamento, de posicionamento do indivíduo neste sistema global complexo, é também de representabilidade:embora afetados no cotidiano pelos espaços das corporações, não temos como moldá-los mentalmente, ainda quede forma abstrata. Ocorre uma ruptura radical entre a experiência cotidiana e esses modelos de espaços abstratos.”21

Consequentemente, tem-se a necessidade de uma nova representabilidade e de um novo mapeamento do território queexigem novos parâmetros metodológicos, mais flexíveis, que abarquem a dinâmica deste território dinâmico, instável.

Como fazer a leitura deste território retalhadocuja imageabilidade parece ser frágil e dispersa,que não mais permite estruturar legibilidade?

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Na verdade, as cidades permanecem atraentes justamente por serem detentoras de uma ordem complexa, que advémde sua transformação ao longo do tempo. Tornaram-se, como já vimos, muito mais dinâmicas e complexas, porém não“inexoravelmente caóticas”. O território das cidades, apesar das transformações abruptas, permanece como detentor doespaço de convivência. Conforme Milton Santos:

“... o que ele tem de permanente é ser nosso quadro de vida. Seu entendimento é, pois, fundamental para afastar orisco de alienação, o risco da perda do sentido da existência individual e coletiva, o risco de renúncia ao futuro.”22

Se o futuro se cria, planeja, e nossa imagem de cidade é fundamental para a nossa vida urbana, resta-nos abraçarcom coragem dois desafios enormes e urgentes: construir uma novo arcabouço de mapeamento cognitivo destascidades e trabalhar para redesenhá-las com maior coerência, restaurar padrões de navegabilidade e identificaçãourbanas.

8 Notas1 SANTOS, Milton. O Retorno do Território. In: SANTOS, M.; SOUZA, M. A. A., SILVEIRA, M. L. (Organizadores). Território: Globalizaçãoe Fragmentação. São Paulo: Hucitec/ANPUR. [s/d] , p.15.

2 LYNCH, Kevin. City Sense & City Design: Writings & Projects of Kevin Lynch. (Eds.: Banerjee, T. & Southworth, M.). Cambridge: MITPress. 1991

3 LEITE, Carlos. Fraturas Urbanas: Panorama da Metrópole Contemporânea. In TJABES, Pieter. Rede de Tensão. NúcleoContemporâneo. Bienal 50 Anos, pp. 102-105. São Paul: Fundação Bienal de São Paulo, 2001.

4 KOOLHAAS, R.; MAU, Bruce. S, M, L, XL. Nova Iorque: The Monacelli Press. 1998 (1995).

5 SASSEN apud. GUST (Ghent Urban Studies Team). The Urban Condition: Space, Community, and Self in the ContemporaryMetropolis . Rotterdam: 010 Publishers. 1999.

6 SOUZA, M. A. A. Geografias da desigualdade: globalização e fragmentação. São Paulo: [s/r]. [s/d], p.21.

7 PEIXOTO, Nelson Brissac In: <http://www.pucsp.br/artecidade/indexp.htm> Acessado em 01.05.05

8 Id. Ibid.

9 SANTOS, Milton. Op. cit., pp. 16/17.

10 KOOLHAAS, Rem. Op;. cit., p.53.

11 BORJA, J.; CASTELLS, M. The Local & the Global : Management of Cities in the Information Age. Londres: Earthscan. 1998.

12 SANTOS, Milton. Op. cit., p.16.

13 SOLÀ-MORALES RUBIÓ. Terrain Vague In: Anyplace, 118-123: Cambridge: MIT/Any. 1995., p.119-120.

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14 Id. Ibid., p.121.

15 LIMA, Zeuler. Enclaves Globais em São Paulo: Urbanização sem Urbanismo? In: <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq059/arq059_02.asp> Acessado em 01.05.05

16 CASTELLO, Lineu. When Perception Gets Desgned by the Market. In: <http://www.isocarp.org/Data/case_studies/cases/cs01_1549/ISOCARP2001b.htm > Acessado em 01.05.05

17 DEAR, Michael. The Postmodern Urban Condition. Malden MA / Oxford UK, Blackwell, 2000, p. 144.

18 KOOLHAAS, Rem. Op. cit.

19 LYNCH, Kevin. Op. cit.

20 Para definições completas acerca do tema, ver SOUZA, Carlos L. Cognição ambiental & desenho urbano: APO de um espaçourbano com enfoque dos aspectos perceptivos - O caso da Nova Av. Faria Lima. São Paulo: FAUUSP. (Dissertação de Mestrado).1997.

21 BRISSAC, Nelson. Op.cit.

22 SANTOS, Milton. Op. cit., p.5.

NOTAS:

>Todas as imagens são de autoria dos arquitetos citados e foram retiradas de seus respectivos sites.

>O trabalho é resultante de palestra proferida no Seminário Geografia e Percepção Ambiental, UEL, Londrina, 2005.

>O autor agradece à FAPESP.

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edição gráfica>