Carneiro Da Cunha Conhecimento Tradicional

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    forte que a biodiversidade e os conhecimentos tradicionais associadosdevero tornar-se um elemento cada vez mais importante para os pa-ses megadiversos.

    A importncia disso para o Brasil evidente: estamos na vigsimaquinta hora para nos equiparmos a fim de construir uma economia euma poltica que deem a devida importncia diversidade biolgica.Isso implica um conjunto estruturado de polticas. Estruturado signifi-ca que todos os seus componentes devem estar presentes. Primeiro, hque montar um programa significativo de pesquisa de recursos genti-cos no Brasil. A pesquisa e a tecnologia desenvolvidas pela Embrapa ti-veram peso decisivo no sucesso empresarial da agroindstria no Brasil. necessrio agora, antes que desapaream as florestas, o desenvolvimen-to de cincia e tecnologia para conhecer e valorizar a biodiversidade.Est na hora, mais do que na hora, de montar uma Embrapa da Flores-ta. J houve uma tentativa nessa direo, no governo Fernando HenriqueCardoso, que deu com os burros ngua, sobretudo, ao que parece, pelavenalidade de alguns de seus promotores. Resultou disso o que, emManaus, se conhece como o elefante branco da CBA: o prdio gran-dioso do Centro de Biotecnologia da Amaznia. O Centro de RecursosGenticos (Cenargen) da Embrapa outro instituto que, com muitomaior sucesso, h anos pesquisa recursos genticos. Mas, em nenhumdos dois casos se deu a devida ateno para outro componente, que nosd vantagens comparativas extraordinrias. Esse outro componente oconhecimento tradicional, particularmente rico na medida em que detido, mantido e expandido por populaes muito diversas entre si.

    A articulao desses dois componentes esbarra em srios problemas.Srios mas no insolveis. Para dizer as coisas rapidamente e semrebuos: qumicos, farmaclogos, agrnomos, bilogos em geral, compoucas e honrosas excees, no levam a srio a contribuio do conhe-cimento tradicional e certamente no se dispem facilmente a repartir

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    com seus detentores os louros e benefcios das descobertas. Para isso,usam uma casustica que j expus em outra ocasio e no repetirei aqui(Carneiro da Cunha, 2009). Mas, da parte das populaes tradicionais,tambm h restries. Uma bioparanoia instalou-se entre elas j h al-guns anos, com forte encorajamento oficial. O resultado uma suspeiogeneralizada de qualquer pesquisador. O receio de serem espoliadas e asexpectativas por vezes desmesuradas que se criaram tornam o acordo daspopulaes no mnimo problemtico.

    Dado esse passivo, como construir uma relao de confiana entrecientistas e populaes tradicionais? A resposta no simples, e eu cer-tamente no a tenho em suas mltiplas dimenses. No entanto, h al-gumas dessas dimenses em que a antropologia pode intervir, e dessasque vou tratar aqui.

    Conhecimento tradicional

    O tema do conhecimento tradicional est hoje por toda a parte noBanco Mundial, na Organizao Mundial da Sade, na FAO, na OMPI,na Unesco, e tambm em outros crculos menos oficiais: o chefde cozi-nha Alex Atala (alis, em grande parte responsvel pelo sucesso interna-cional do jambu) me disse que a contribuio culinria mais importan-te da Amaznia foi o tucupi.

    A nfase no mainstreamingdos conhecimentos tradicionais em algu-mas reas, como medicina e farmacologia, e nos cuidados com ambien-

    tes delicados o chamado saber ecolgico. Mas essa uma ateno, alis,duplamente salutar, a produtos mais do que a processos de produo deconhecimento. Digo duplamente salutar porque, enquanto importantereconhecer e aproveitar os sucessos dos vrios sistemas de conhecimen-tos, creio que se devam manter separados os processos de conhecimento.

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    provavelmente mais fecundo para o avano do conhecimento queas trocas entre sistemas de conhecimentos se restrinjam a um escambode produtos, de achados e descobertas, de procedimentos de cuidadoscom ambientes naturais, sem que, por mais que possam reciprocamentese inspirar, se dissolvam os protocolos de pesquisa e verificao de unsnos protocolos dos outros. O que interessa a todos , no fundo, a convi-vncia dos diversos sistemas de conhecimentos.

    Na interface, as trocas de informaes sempre foram intensas, semque para isso fosse necessrio abandonar ou fundir os regimes. Tradu-es esto sempre ocorrendo. Bastar um exemplo corriqueiro na Ama-znia e provavelmente no Brasil todo: nos quintais das casas mais recu-adas de seringueiros, comum se encontrarem plantas medicinais comnomes exticos, como elixir paregrico ou arnica.

    Mas, se interessa que no se chegue a um sistema fusion de conhe-cimentos, se interessa que as trocas se atenham a resultados que cadasistema vir a usar em seu prprio regime, isso no significa que no sejaimportante entendermos cada um desses sistemas. Note-se que usei apalavra fusion de propsito, para evocar a culinria.

    Num artigo sobre o assunto, falei da falta de imaginao com que serepresentam os regimes de conhecimentos tradicionais, a comear pelacolocao no singular de algo que necessria e felizmente plural (Car-neiro da Cunha, 2009). Cabe aos antroplogos entender e dar a entenderessa pluralidade, como cabe aos antroplogos entender e dar a enten-der os efeitos sobre os povos tradicionais da falta de imaginao ociden-tal. Para tanto, a tarefa dos antroplogos o exato oposto do que foi

    dito acima: contrariamente aos outros especialistas, eles no podem seater aos produtos e resultados. A sua tarefa muitssimo mais ampla.Evans-Pritchard talvez at hoje a mais completa etnografia de um sis-tema de conhecimento. Cabe refletir sobre o escopo do que ele descrevee que ultrapassa largamente a tese de uma racionalidade semelhante

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    nossa (seja l o que a nossa for). Pois, diga-se logo de uma vez, a unida-de da Cincia com c maisculo um construto para ingls ver. a facepara o grande pblico de uma instituio fracionada e complexa. Deoutro lado, a autoridade sobre a interpretao do mundo que a Cinciareivindica mais ampla do que jamais foi a do Papa se assenta no seuimpressionante sucesso tecnolgico, cujos custos ambientais e sociais sagora esto sendo postos na equao.

    Um bom exemplo o da clebre Revoluo Verde, globalizada a par-tir dos anos 1960. A Revoluo Verde, que comeou no Mxico no fi-nal da Segunda Guerra e salvou a ndia de uma fome desastrosa no anode 1970, focou-se no desenvolvimento de cultivares de arroz, trigo emilho de altssimo rendimento. Esse sucesso inegvel teve seus custos.Um deles foi a homogeneizao macia de cultivares. Um cultivar (subs-tantivo masculino) , de acordo com a definio legal, constante da Leide Proteo de Cultivares, de 1997, uma variedade de qualquer gneroou espcie vegetal superior que seja claramente distinguvel de outroscultivares conhecidos por margem mnima de descritores, por sua de-nominao prpria, que seja homogneo e estvel quanto aos descritoresatravs de geraes sucessivas e seja de espcie passvel de uso pelo com-plexo agroflorestal (cf. Arajo, 2010). Essas variedades de rendimentomximo foram, a partir da Revoluo Verde, disseminadas em ecossiste-mas diversssimos, cujas peculiaridades de clima e de solos que torna-vam problemtica a adoo desses cultivares adaptados a outros climas esolos eram atropeladas pelo uso intensivo de fertilizantes e defensivosagrcolas. essa a razo do Brasil ter acedido honra duvidosa de se

    tornar, a partir de 2009, o maior consumidor mundial de agrotxicos,com mais de 6 bilhes de dlares de consumo (Arajo, 2010: 18).A homogeneizao de cultivares acarretou uma grave eroso genti-

    ca, j que grande variedade de cultivares desenvolvidos ao longo de s-culos pelas populaes locais foi em larga medida apagada pela adoo

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    dos cultivares-padro de alto rendimento e grandes insumos. Outro efei-to da Revoluo Verde foi a industrializao da agricultura, com o se-questro para os grandes laboratrios da capacidade de fornecer semen-tes e cultivares em geral.

    No Brasil, o grande salto de produo agrcola observado a partir dadcada de 1970 deu-se sobretudo s custas do avano da fronteira agr-cola sobre a Amaznia. Como j previsto na poca da discusso da Leide Cultivares, houve, a partir de 1997, um aumento de preos das se-mentes e uma concentrao empresarial no campo da pesquisa e da pro-duo de sementes este, um aspecto que claramente ocorreu nos anosque se seguiram implantao da lei (Arajo, 2010: 23). Ficou em mai-or desvantagem competitiva a agricultura familiar: com efeito, a partici-pao da agricultura familiar decresceu significativamente entre 1996 e2006. E isso atingiu at os cultivos mais tradicionais e de subsistncia.Em 1996, a mandioca era produzida sobretudo em propriedades carac-terizadas pelo Pronaf como de agricultura familiar. Dez anos mais tarde,a produo de mandioca em propriedades de agricultura familiar haviabaixado de 73,2% para 48,7%.

    Conservao do germoplasma

    A uniformizao de cultivares e sementes gerou um problema de segu-rana alimentar. Com efeito, a diversidade gentica garante alternativascaso uma praga ou peste venha a dizimar um cultivar. O exemplo hist-

    rico mais conhecido o da peste das batatas entre 1844 e 1850, queteve consequncias particularmente dramticas na Irlanda. A batata originria dos Andes e foi introduzida na Europa pelos espanhis, ondeobteve um sucesso sem precedentes a partir do sculo XVIII. No entan-to, na Europa, somente poucas variedades eram cultivadas. A peste da

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    batata e motivos de ordem poltica e social mataram um milho de irlan-deses, alm de povoarem os EUA com mais um milho de imigrantes.

    A diversidade gentica portanto estratgica na agricultura, e estameaada pela homogeneizao dos cultivares. Para minimizar a perdana diversidade agrcola e tentar conservar recursos genticos, foram cria-dos cerca de 1.300 bancos de germoplasma no mundo inteiro. Essesbancos esto encarregados de conservar em condio de germinar se-mentes ou tecidos do maior nmero possvel de variedades. Mas, emcondies de laboratrio, ou seja, isolado dos seus ecossistemas, essegermoplasma no evolui e, em particular, no coevolui com pragas edoenas ou outras mudanas, por exemplo climticas, que afetam asplantas. Esses ataques induzem novas defesas qumicas nas plantas, queso de extremo interesse. Da decorre a importncia da conservao insitu e, mais especificamente, da conservao ditaon-farm. a conserva-o de que se incumbem naturalmente as agricultoras e os agricultorestradicionais, quando mantm diversidade de variedades de cultivares emseus roados.

    Apresentado desta forma, com argumentos de produtividade e gera-o de PIB, o processo que descrevemos aparece de forma puramentetecnocrtica, que tende a persuadir o pblico de sua inevitabilidade. Masobliteram-se assim as dimenses polticas e sociais do processo. Aquifalaremos apenas de algumas delas.

    A definio de cultivar, nos termos da UPOV (International Unionfor the Protection of New Varieties of Plants, que defende uma espciede patenteamento de novas variedades), ao exigir estabilidade e homo-

    geneidade, comea por alijar os agricultores tradicionais da produo desementes e cultivares, que passa a ser prerrogativa da indstria. Descrito-res que garantam estabilidade permitem que s os laboratrios cientfi-cos possam comprovar a pureza, a linhagem de um cultivar. Bonneuile Thomas analisam com mincia latouriana os mecanismos pelos quais

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    a competncia para o fornecimento de material agrcola passa a ser mo-nopolizada pela cincia. Isso apesar dessas sementes e desses cultivaresterem no mais das vezes sua origem em domesticaes, observaes, se-lees e melhoramentos obtidos por agricultores.

    s nos anos 1990 que se esboa uma reao a essa excluso e secomeam a preconizar formas participativas de pesquisa. Em 1996, oCGIAR, o grupo de Centros de Pesquisa Internacional Agronmica ins-titudo pela Revoluo Verde, inova e cria um grupo de trabalho para aseleo participativa (Bonneuil & Demeulenaere, 2007: 128). Tenta-seassim resgatar uma prtica anterior industrializao da agricultura, emque camponeses e botnicos amadores eram tambm produtores e dis-tribuidores de sementes e variedades agrcolas.

    Contra a tendncia centralizadora dominante, com segmentao esequestro do conhecimento, vrios atores, sobretudo na Frana e na It-lia, se organizaram de forma rizomtica. Um exemplo a rede de se-mentes camponesas, que tem hoje equivalentes no Brasil. Houve a umaunio sui generisde consideraes propriamente culturais e de conside-raes de economia poltica. O sabor do po, o gosto pela coleo devariedades antigas de trigo, o domnio das sementes e o controle sobre oprocesso de produo do po do comeo ao fim, a troca livre, a pesquisasem as restries de propriedade intelectual, tudo isso pesou na rede decamponeses-padeiros que se formou. Essa rede converge com movimen-tos sociais como o SlowFood, de valorizao do terroir, de contestao expanso abusiva dos direitos de propriedade intelectual mediantecopyleftou afins (Bonneuil & Demeulenaere, 2007).

    H indcios de que a orientao dominante de patenteamento ouproteo de material biolgico esteja agora a ponto de ser revertida (cf.Traditional Knowledge Bulletin, 21 de julho de 2010). A excluso daspopulaes tradicionais na criao de variedades tambm est sendorepensada: um programa como o Community Biodiversity Develop-

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    ment and Conservation and Biodiversity Use and Conservation in AsiaProgramme (CBDC-BUCAP), que trabalha com comunidades campo-nesas e instituies governamentais em cinco pases produtores de arrozda sia (Buto, Laos, Filipinas, Tailndia e Vietnam), obteve resultadossignificativos. No Laos, por exemplo, 600 camponeses desenvolveram114 novas variedades de arroz em nove anos, um nmero muito superiorao que foi produzido em laboratrios cientficos.

    O projeto Pacta e conexos

    Participo de um projeto colaborativo, Populaes tradicionais, agrobio-diversidade e conhecimentos tradicionais associados na Amaznia bra-sileira (Pacta), sob a responsabilidade de Laure Emperaire e de Mauro

    Almeida. Inicialmente, esse projeto estudou agrobiodiversidade nomdio e alto Rio Negro e no alto Juru, e procurou estabelecer meca-nismos de proteo adequada.

    O alimento de base na regio do Rio Negro , como se sabe, a man-dioca, consumida sob dzias de formas. Mandioca e maniva no RioNegro, maniva , a rigor, a parte epgea ou externa da planta e mandio-ca, o tubrculo significa ali o que em outras regies se chama de man-dioca brava ou simplesmente mandioca. A macaxeira, conhecida emoutras regies como mandioca mansa ou aipim, no s de introduorelativamente recente no Rio Negro, como at frequentemente classi-ficada parte, com batatas e cars, como fruta.

    Avalia-se que a mandioca foi domesticada na Amrica Tropical a par-tir de ancestrais silvestres. Essa domesticao deu-se provavelmente naregio sudoeste da Amaznia (Olsen & Schaal, 1999). Anlises genti-cas recentes (Lotard et al., 2009) reforam essa hiptese e apontam paraesse nico foco de domesticao. O Rio Negro poderia ter sido um cen-

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    tro secundrio de diversificao. Os vestgios mais antigos de mandio-ca, restos macrobotnicos e gros de amido, foram encontrados no valede Zaa no norte do Peru, e so datados entre 8400 e 6000 antes dopresente (AP). Em Parmana, no Orenoco, foram registrados ndiciosindiretos do cultivo de mandioca com a presena de pedras de ralar(grater chips), datadas de 4000-3000 AP. No mdio Amazonas, na re-gio de Monte Alegre, so cermicas para torrar (griddles) datadas de3600 AP que apontam para o cultivo da mandioca (Piperno & Pearsall,1998). O que emerge deste breve levantamento que h pelo menos4000 anos o cultivo da mandioca era bastante difundido nas terras bai-xas do continente. Os trabalhos preliminares de Perry (2002) apontampara antigos processos de seleo levando a diversos tipos de amido.Hoje, a mandioca representada na Amaznia por uma importante di-versidade de variedades, elaborada e mantida tanto no contexto de po-pulaes indgenas quanto tradicionais, mas com um foco predominantede diversidade no Rio Negro.

    Em vrios pontos da Amaznia, por exemplo no Peru (Boster), naGuiana (Rival e Duputi), na Venezuela (Zent, Heckler, Freire), semfalar do alto e mdio Rio Negro (Chernela, Emperaire, Pinton), regis-traram-se nmeros altssimos de variedades de mandioca, todos eles co-lhidos em populaes indgenas amaznicas, entre elas Tukano, Bar,

    Aguaruna, Piaroa, Waypi, Macuxi e Palikur. Como a propagao damandioca feita por estacas, ou seja, clones cujo material gentico spode variar por mutao, a hiperdiversidade de mandiocas constituaum mistrio. Parte da explicao residia nos seguintes elementos biol-

    gicos: com sua domesticao, a mandioca no perdeu sua capacidade deflorir e manteve suas caractersticas de fecundao cruzada. No s man-tm a reproduo sexuada, que permite renovao gentica, como ne-cessita de outros indivduos para tanto. Polinizada por insetos, sobretu-do abelhas, as frutas que contm as sementes estouram e se dispersam.

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    Essas sementes carregam um apndice apetitoso para formigas, que seencarregam de enterr-las em seus ninhos, operando assim uma segun-da disperso (Pujol et al., 2007; Rival & McKey, 2008). Ficam dormen-tes por vrios anos e germinam apenas com calor e luz do sol.

    Em suma, a mandioca est biologicamente adaptada forma de cul-tivo tradicional em toda a Amaznia, em que a derrubada anual de no-vas roas seguida de queima e coivara, e em que antigas capoeiras soreaproveitadas para novas roas aps alguns anos de regenerao da mata.

    Cultura e agricultura convergem de outros modos tambm para aproliferao de variedades de mandioca. Por um lado, h um gosto emtodos esses povos pelas colees, e em todos eles a agricultora tira prest-gio e orgulho do nmero de variedades que cultiva. Isso vale no s paraa mandioca, mas para outros cultivos tambm. A curiosidade por novasvariedades manifesta. Outro elemento, ligado ao anterior, a rede derelaes, atestada pela diversidade que se obteve ao longo dos anos.

    As mudas de plantas, em geral, e as estacas de manivas, em particular,so obtidas de parentes e de amigos, em viagens, casamentos, festas; sotambm obtidas, no caso do Rio Negro, pelos prstimos de mission-rios ou agncias do governo. As manivas so, portanto, produtoras e pro-dutos de relaes sociais, e sua origem lembrada. No mdio Rio Ne-gro, Laure Emperaire fez o recenseamento da origem das manivas devrias agricultoras e ps em evidncia tanto a riqueza das trocas quantoa importncia nessas trocas do seu capital social. O diagrama abaixo(tirado de Emperaire & Oliveira, 2010: 183) apresenta redes sociais as-sociadas circulao das plantas em Tapereira (TA), Esprito Santo (ES)

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    No mdio Rio Negro uma etiqueta estrita regula a transferncia demanivas quando a doadora no parente da donatria. Nunca se negammanivas. Se uma recm-chegada abre sua primeira roa, poder contarcom manivas da me ou da sogra, mas poder tambm pedir a uma es-tranha, que frequentemente lhe doar uma parte de sua roa para arran-car, fazer farinha e tirar estacas. Mesmo uma roa de pessoa recm-che-

    gada ter pelo menos trs variedades no primeiro ano.H tambm as preferncias organolpticas, ou seja, as prefernciaspelo gosto de uma variedade acima do de outra, mas elas no so sufici-entes para dar conta do nmero de variedades de mandioca. A farinhado mdio Rio Negro feita de uma mistura de mandioca amarela, que

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    se costuma deixar pubar, ou seja, fermentar na gua, e de mandioca bran-ca, que possui mais amido. Quando indagadas, as agricultoras no ex-pressam preferncia pelo gosto de variedades especficas de mandiocabranca e amarela para o preparo da sua farinha. Embora mencionemque a farinha da cada microrregio seja diferente (e, por definio, sem-pre de pior qualidade do que a prpria), essa diferena parece ter mais aver com o preparo e as propores de mandioca branca e amarela doque com variedades preferidas localmente. Alm disso, por maior queseja a diversidade de variedades cultivadas em uma roa, h uma pre-ponderncia clara de duas ou, em geral, trs variedades (das quais umaser branca e outra amarela), que ocupam a maior parte da superfciededicada s manivas. As outras variedades esto ali pelo gosto da cole-o, mas no ocupam um espao de dimenses comparveis.

    Entre os Barasana da Colmbia e os Achuar do Equador, o que po-deramos chamar do complexo do cultivo e do processamento da man-dioca foi estudado em detalhe. Christine Hugh-Jones foi pioneira emmostrar a centralidade simblica da preparao dos vrios derivados damandioca entre os Barasana; duas dcadas mais tarde, Anne-ChristineTaylor e Philippe Descola mostraram os cuidados e os riscos (que pare-cem excessivos) associados a seu cultivo entre os Achuar. Fica claro quea mandioca tem uma importncia que transcende suas virtudes alimen-tcias ou gustativas. No mdio Rio Negro entende-se que as mandiocasda roa formam uma sociedade em si, que a dona da roa deve favorecere estimular de vrias maneiras: por exemplo, cultivando perto delas ou-tras plantas para companhia e servios, seja para aban-las, para execu-

    tar msica ou faz-las danar. No surpreende assim que a farinha daprpria roa tenha um valor afetivo acentuado. Uma senhora na comu-nidade Esprito Santo tinha deixado de trabalhar na empresa, ou seja,na extrao de piaava para um patro. Os trabalhadores de piaava soaviados a crdito no estilo tradicional do barraco amaznico. No tm

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    possibilidade de plantar e cuidar de seus roados e so obrigados a com-prar farinha do patro, em geral, importada de Manaus. Comentandosua deciso de sair da empresa, essa senhora deu uma justificativa quelhe parecia irretorquvel: s faltava ter de criar meus filhos com a fari-nha do patro!.

    Talvez mais determinantes na produo da hiperdiversidade da man-dioca sejam as regras seguidas com as manivas que se acrescem ao valordado experimentao e pesquisa. Quando se arrancam mandiocas equando se transferem manivas de uma roa mais velha para outra re-cm-brocada, no se deve jogar fora nenhuma estaca. As que no seroaproveitadas so enfiadas no permetro da antiga roa. Por outro lado,no se desprezam as novas manivas que brotam depois da queimada deuma roa e que, como vimos, so uma recombinao gentica provindade reproduo sexuada. So as manivas dos antigos, produzidas porantigas agriculturas. Essas manivas so estudadas experimentalmentedurante pelo menos dois anos. No primeiro ano, antecipa-se que a raizser profunda e retilnea e no se podero tirar concluses sobre as ca-ractersticas da mandioca. Mas j se podem observar o caule e as folhas eat tentar classificar a maniva com o nome de uma das variedades co-nhecidas. J se observou que esses nomes no recobrem uma unidadegentica, ou seja, classificam-se plantas geneticamente diferentes entresi sob o mesmo nome. Como se costuma, supostamente por comodida-de na hora de arrancar, plantar manivas de mesma variedade em gruposconexos, resulta que na realidade a diferena entre indivduos vizinhospode se manter embora tenham caractersticas comuns. Ou seja, embo-

    ra a polinizao ocorra com maior probabilidade entre vizinhos, estespodem ser mais diferentes do que aparentam e, assim, produzirem varie-dades inditas.

    Experimentao com novas variedades resultantes de reproduosexuada j foi observada tambm entre os Macuxi, os Waypi e os

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    Palikur. Em suma, pode-se dizer que a hiperdiversidade das mandiocasresulta em larga medida do valor que se confere s colees, daquele quese atribui a uma roa diversa, da sua importncia como produto e pro-dutor de relaes sociais, mas tambm do valor atribudo pesquisa,experimentao e seleo realizadas por agricultoras em vrios pontosda Amaznia.

    Essa pesquisa no ainda reconhecida. Pelo contrrio, agentes porvezes cheios de boa vontade de Secretarias da Agricultura tentam imporprticas mais convencionais, mais legveis pelo Estado (J. Scott, 1998).Os agricultores baniwa que se instalam na sede do municpio de SantaIsabel so levados sabe-se l por qu a fazerem roas quadrangularesem vez das roas ovais que esposam o terreno. Vimos um desses tcni-cos insistir no espaamento regular de tantos metros entre duas manivas,ignorando acintosamente o profundo conhecimento do pblico de agri-cultores aos quais se dirigia.

    Este seria o momento de rgos de pesquisa governamentais estabe-lecerem parcerias de pesquisa e seleo com comunidades locais, comofoi feito na sia do Sudeste para o arroz e na Frana para o trigo. Essasparcerias deveriam manter, repito, seus protocolos separados, reforan-do-se uns aos outros pelos seus resultados.

    Enquanto isso no ocorre, pelo menos para fazer reconhecer a im-portncia desse conhecimento e proteg-lo, as diversas associaes domdio e alto Rio Negro pediram ao Iphan (Instituto do PatrimnioHistrico e Artstico Nacional) que inscrevesse o seu sistema agrcolacomo patrimnio imaterial. Note-se que no so variedades especficas

    de plantas cultivadas que se pede para proteger, e sim o sistema agrcolana sua integralidade e com suas mltiplas dimenses e prticas. umainovao significativa o Iphan ter aceito esse pedido no fim de 2010 einscrito o sistema agrcola do Rio Negro no livro dos saberes do Patri-mnio Imaterial.

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    Sistemas de conhecimento xamnico

    At agora tratamos de conhecimentos exotricos, acessveis a todos, co-muns, desde que a idade e o gnero sejam adequados. So conhecimen-tos transparentes aos seus usurios, o modo natural de se fazer as coisase, quando algum de fora usa o termo conhecimento, no so eles quevm mente. Mas quando nsfalamos de conhecimento, o que elesen-tendem, em muitas das sociedades indgenas amaznicas, o conheci-mento reservado, privativo e frequentemente, embora nem sempre,esotrico. Para os grupos de lngua Tukano, por exemplo, conhecimen-to diz respeito, acima de tudo, s histrias que os ancestrais transmiti-ram a cada cl e que cada homem ensina a seus filhos e netos homens.

    s mulheres no, pois elas esto destinadas, ao se casarem, a mudar degrupo lingustico e de aldeia. Os falantes de Tukano parecem, portanto,considerar o contedo informacional um patrimnio central. Comodescreve Cristiane Lasmar, eles tm profundo reconhecimento pelossalesianos que, com espantosa generosidade, lhes ensinaram desde rezasat a histria universal (C. Lasmar, 2005).

    Pode-se assim suspeitar que a introduo da noo de propriedadeintelectual e o prprio uso do termo conhecimentos no jargointercultural sejam causas da esoterizao geral de todos os tipos de in-formaes. Mas a interpretao patrimonial Tukano do que seja por ex-celncia conhecimento no se estende necessariamente a outras socie-dades amaznicas.

    Valeria a pena explorar at que ponto generalizvel o que se

    depreende do estudo de Eduardo Kohn entre os Quichua do Equador.Infere-se desse estudo que a fonte do conhecimento , acima de tudo, aexperincia visual e sonora. Tanto assim que, ao relatar uma caada,quem conta o faz imitando os rudos e as breves vises da presa queexperimentou. No comunica sua experincia como um relato com au-

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    toridade em si, e sim os dados brutos da experincia. como se trans-mitisse o discurso relatado dos prprios sentidos. H indcios, quemencionei em meu ensaio sobre cultura e cultura (M. Carneiro daCunha, 2009), de que tambm nos Yanomami o conhecimento di-retamente ligado, de uma forma que Berkeley apreciaria, s experin-cias sensoriais.

    Ora, h vrias sociedades indgenas amaznicas usurias de substn-cias que alteram (provisoriamente) os sentidos. difcil sabermos asconsequncias dessa experincia concreta e rotineira da relatividade dapercepo sensorial. Mas podemos imaginar que induza a admitir a exis-tncia de mundos mltiplos. Em muitas dessas sociedades desenvolvem-se instrumentos para a explorao e o conhecimento desses outros mun-dos e dos modos de se relacionar com eles. Esses instrumentos so osxams. Do mesmo modo que no podemos ver alguns seres diminutosseno atravs das lentes adequadamente polidas do microscpio, outrosmundos so acessveis de forma privilegiada pelos sentidos alterados,aperfeioados, treinados, polidos em suma, do xam.

    Em tese detalhada e fascinante sobre a formao dos saberes sha-ranaua, Pierre Dlage insiste na diferena entre conhecimento ostensi-vo, direto, validado pela prpria experincia, e o conhecimento defe-rencial, ou seja, aquele validado pela autoridade de quem o transmite e,em ltima anlise, da fonte de que provm. A diferena entre esses doistipos de conhecimento, o ostensivo e o deferencial, linguisticamentemarcada no s na lngua sharanaua, como em muitas outras lnguasindgenas entre elas todas as outras lnguas pano, mas tambm no

    tukano, no yaqui, no quechua, no guarani (Dlage, 2009: 106).Mais uma vez, deve-se ter cuidado nas generalizaes. Muitas outrassociedades amaznicas so singularmente seculares. As de lngua j, porexemplo (deixo os Bororo de fora, cuja lngua no j e que, emboraculturalmente prximos dos J, so extremamente diferentes deles no

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    quesito do panteo). Os Timbira e outros J no consomem substnciasalucingenas e no esto particularmente interessados em seres invis-veis ou outros mundos. Seu xamanismo pobre contrasta com a exube-rncia xamnica como a dos Marubo, descrita por Pedro Cesarino(2008).

    Mas, mesmo nessas sociedades de estilo secular, h indcios de umapercepo sui generisdo mundo. A diferenciao, recorrente nas lnguasindgenas, entre o propriamente dito e o parecido, semelhante etvs.ranano tupi, mpeyvs.gahoknas lnguas j, o kuin dos Pano etc. , apontapara a importncia da topologia nessas sociedades. A noo de transfor-mao, de metamorfose, cujo paradigma entre os bichos a transforma-o da lagarta em borboleta (Dlage, 2009: 130), contrasta com essapreocupao em distinguir o propriamente dito daquilo que lhe se-melhante. Semelhana aparente vs. dessemelhana na identidade, pare-cena enganosa vs. engano da diferena, esses temas so particularmen-te produtivos nos sistemas de conhecimento amerndios.

    O que chamo aqui de sistema de conhecimento xamnico no pare-ce, primeira vista, suscetvel de grande aproveitamento por outros sis-temas de conhecimento (mas no desprezemos sua importncia no tu-rismo espiritual na Amaznia). s quando usa suplementarmentefolhas medicinais que a farmacologia ocidental se interessa por ele. Noentanto, esses sistemas encerram enorme interesse para a antropologia epara a filosofia das cincias em geral.

    A f na cincia est disseminada tanto no grande pblico quanto namaioria dos cientistas das cincias fsicas e biolgicas. Essa unanimida-

    de, no entanto, no abarca os filsofos das cincias, aqueles que, passa-da a era do positivismo, esto debatendo, entre outras coisas, se as teoriascientficas so verdadeiras, se apenas so suficientemente adequadas aomaterial emprico, se cada teoria estabelece seu prprio mundo, suaontologia, e por a vai.

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    A filosofia da cincia que marcou a primeira metade do sculo XXteve seu apogeu nas dcadas de 1920 e 30, no chamado Crculo de Vie-na, em torno de figuras como Carnap, Reichenbach, Neurath e Schlick.Quase todos os seus expoentes (Schlick foi assassinado em 1936 por umde seus estudantes, nazista, embora ele no fosse judeu) emigraram paraos EUA a partir dessa poca. A ambio e a nfase iniciais desse grupoeram estabelecer com rigor os fundamentos e os procedimentos do quedeveria ser uma teoria cientfica digna do nome. Assim, at a dcada de1960, a filosofia da cincia se dedicava sobretudo racionalidade e aosmtodos da cincia. Quando Lvy-Bruhl, Evans-Pritchard e Lvi-Straussdiscutem sobre o pensamento respectivamente pr-lgico ou selvagem, a essas concepes da racionalidade e mtodos que eles se referem, soelas os padres e os juzes diante dos quais eles argumentam. Ora, essespadres foram h meio sculo erodidos e, em ltima anlise, destitu-dos. S para dar um exemplo: enquanto Popper exigia que uma teoria,para merecer o nome de cientfica, pudesse dar origem a experimentosque a refutassem, pudesse em suma ser mostrada falsa, Kuhn, ao mos-trar historicamente a incomensurabilidade das diversas teorias cientfi-cas ou cincias normais, faz ver que nenhuma atende realmente aoquesito de Popper.

    As questes que a filosofia da cincia se coloca preponderantementedesde os anos 1960 (e que levou alis o prprio Carnap a reformularvrias vezes suas posies) so muito mais antropolgicas em pelo menostrs sentidos. Primeiro, so mais coladas s prticas reais de cincias espe-cficas, como fsica, qumica, biologia, psicologia; segundo, podem ad-

    mitir ontologias especficas a cada teoria por exemplo, que o mundoda fsica quntica no seja habitado pelos mesmos entes da fsica relati-vista. ( espantoso, alis, quanto as mais importantes teorias fsicas dife-rem em suas ontologias: o espao e tempo absolutos da fsica newtoniana

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    no existem na teoria da relatividade, sem que todas essas diferenas demundos invalidem os resultados espetaculares a que ambas conduziram).

    Lvi-Strauss, ao comparar o pensamento selvagem ao pensamentodomesticado, disse que a magia uma variao (excessiva, exaustiva)sobre o tema da causalidade, e que nessa medida prefigura e antecipa acincia. Poderamos hoje dizer que os sistemas de conhecimentos ditostradicionais, na medida em que exploram as possibilidades de ontologiasdiversas e mundos alternativos, prefiguram questes e merecem anliseda filosofia da cincia mais contempornea.

    exatamente por essas razes que a descrio minuciosa dos siste-mas de conhecimentos ditos tradicionais da maior importncia para aantropologia e a filosofia da cincia. Cabe antropologia entender pro-cedimentos, protocolos, direitos associados, tipos e vocabulrios de co-nhecimento, epistemologias dos diversos tipos e muito mais.

    Nota

    1 Este artigo reproduz a conferncia proferida em 8 de novembro de 2010, por oca-sio da XII Jornada de Cincias Sociais na Unesp, em Marlia. Uma primeira ver-so desta havia sido apresentada trs meses antes como conferncia inaugural da27 Reunio Brasileira de Antropologia, em Belm, em 1 de agosto de 2010. Umaverso muito prxima deste artigo foi recentemente publicada na coletneaManuelaCarneiro da Cunha: o lugar da cultura e o papel da antropologia (Rio de Janeiro,Azougue Editorial, 2011), organizada por Claude Lpine, Lilia M. Schwarcz eAndreas Hoffbauer.

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    ABSTRACT: New relations and partnerships should be created between thesystems of traditional knowledge and science, based on a more contempo-rary approach to philosophy of science. Whereas anthropology must lookfor an understanding of those systems, science must practice a barter of re-sults avoiding the colonization of them. We analyze here the example of theprocesses of conservation of the agricultural diversity on farm in the NegroRiver region.

    KEY-WORDS: Science and traditional knowledge, agricultural diversity onfarm, Amazon, manioc, shamanism, Negro River.

    Recebido em maio de 2011. Aceito em setembro de 2011.

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