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Texto obtido na Internet (http://www.geocities.com/ROGELSAMUEL/Solidaodecroce.html) em 13/11/07 como sendo de Carpeaux OTTO MARIA CARPEAUX Solidão de Croce Enquanto uns jovens esportivos, fantasiados de correspondentes de guerra, se entusiasmavam com as "chuvas de bombas" sobre Nápoles, pensei num homem muito velho, o homem mais solitário da cidade castigada e deste mundo castigado. Ainda menino, escapou, como por milagre, ao terremoto que lhe roubou os pais e todos os irmãos; está acostumado, desde então, a meditar sobre as catástrofes, cidadão, ele próprio, dessa paisagem histórica de Nápoles que já viu as catástrofes históricas dos gregos, dos romanos, dos godos e longobardos, dos árabes, normandos, suábios, franceses e espanhóis; de modo que aquele homem não se surpreende com a derrota que ele profetizou, citando os versos dum poeta alemão: "Não convém jubilar. Não haverá triunfo. Muitas derrotas, só. Sem dignidade." O contraste, admito, é eloqüência baratíssima: o homem de gênio, encarnando as tradições milenárias da sua cidade de Nápoles, onde conhece, como nenhum outro, a história dos bairros, das ruas, das casas, das famílias, de cada pedra,

Carpeaux - Solidão de Croce

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Estudo de Otto Maria carpeaux sobre Croce , suas idéias e inserção em seu tempo

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Texto obtido na Internet (http://www.geocities.com/ROGELSAMUEL/Solidaodecroce.html) em 13/11/07 como sendo de CarpeauxOTTO MARIA CARPEAUX

Solido de Croce

Enquanto uns jovens esportivos, fantasiados de correspondentes de guerra, se entusiasmavam com as "chuvas de bombas" sobre Npoles, pensei num homem muito velho, o homem mais solitrio da cidade castigada e deste mundo castigado. Ainda menino, escapou, como por milagre, ao terremoto que lhe roubou os pais e todos os irmos; est acostumado, desde ento, a meditar sobre as catstrofes, cidado, ele prprio, dessa paisagem histrica de Npoles que j viu as catstrofes histricas dos gregos, dos romanos, dos godos e longobardos, dos rabes, normandos, subios, franceses e espanhis; de modo que aquele homem no se surpreende com a derrota que ele profetizou, citando os versos dum poeta alemo:

"No convm jubilar. No haver triunfo.

Muitas derrotas, s. Sem dignidade."

O contraste, admito, eloqncia baratssima: o homem de gnio, encarnando as tradies milenrias da sua cidade de Npoles, onde conhece, como nenhum outro, a histria dos bairros, das ruas, das casas, das famlias, de cada pedra, ele, o maior dos crticos literrios, o maior dos filsofos vivos, o maior dos historiadores vivos, a maior autoridade espiritual da Itlia e talvez do mundo atual, olhando a derrota da sua cidade e da sua ptria pelo ativismo diletante dos semicultos. No trgico?

No, isto no trgico. Cumpre protestar contra a linguagem daqueles mesmos jornalistas de guerra e de paz, que chamam "trgico" a cada acidente de automvel. Os acidentes da reportagem, na guerra e na paz, no so trgicos, so simplesmente tristes. Benedetto Croce, porm, no uma figura triste. uma figura trgica; porque ao seu destino no falta o elemento da culpa.

O que triste na vida quase octogenria de Croce o seu destino de grande mestre abandonado sucessivamente por todos os discpulos. Na sua dialtica hegeliana, cheia de oposies dialticas, inspiraram-se romnticos e classicistas, livres-pensadores e tradicionalistas, conservadores e liberais, marxistas, sindicalistas, fascistas; e, enfim, todos os abandonaram. Visto do alto daquela sua colina de Npoles, o mundo est cheio de apstatas. Sou tambm apstata, eu que aprendi do velho mestre o mtodo do pensamento dialtico e o rigor da sua crtica, sem aderir a nenhuma das suas opinies; e, todavia, seguir o seu prprio caminho talvez seja a mais alta fidelidade aos mestres. Da minha capacidade ilimitada de admirar os que so realmente grandes, deduzo o direito da crtica mais severa. Admirando a imensa riqueza espiritual de Croce, no desconheo o contraste entre a agudeza do seu exame negativo e a pobreza deste em resultados positivos. Perante o olhar implacvel de Croce, o mundo real da arte, da histria, da vida, desaparece.

E isto explica a impotncia desse alto esprito no mundo das realidades. Era admirado, querido e temido como nenhuma autoridade espiritual desde Tolstoi; e, por aqueles que agiram conforme os seus preceitos, foi logo abandonado.

O problema central da filosofia hegeliana, o da relao entre a teoria e a prtica, o problema que transformou os "jovens hegelianos" de Berlim em conservadores reacionarssimos ou em marxistas revolucionrios, tambm o problema central do velho hegeliano de Npoles. Encontrando no congresso filosfico de Oxford, em 1930, o comunista russo Lunatcharski, Croce confessou-se, com orgulho, o mais velho marxista italiano, citando o verso de Tasso: "un di quei che la gran torre accese". Mas a torre do capitalismo no foi a nica incendiada por esse poderoso esprito negativo. O problema hegeliano da realizao do esprito tornou-se-lhe o seu problema: como pode o esprito conseguir o poder? Para resolver tal problema, juntou ao romantismo, com o que o seu patrcio Vico tinha descrito as vicissitudes cclicas da histria, o duro realismo clssico de Machivelli: o esprito s pode vencer, na histria, pela fora. Mas estava sempre longe do comodismo das adeses. Na sua Itlia das autoridades artificiais, nunca encontrou a verdadeira fora, a fora do esprito, nos poderes estabelecidos. Croce, esprito essencialmente negativo, estava sempre em oposio.

Benedetto Croce foi sempre um homem solitrio. Nunca ensinou, o grande mestre, numa Universidade. Nunca pertenceu a uma academia, seno quela Academia Pontaniana de Npoles, que ele fundara e sustentava, da qual era a alma e da qual foi, em 1934, vergonhosamente excludo. A sua nomeao para senador do reino no obedeceu ao reconhecimento do mrito pessoal, tendo sido mera conseqncia legal da sua condio de pessoa que pagava os maiores impostos na sua provncia. Contudo, essa condio de homem riqussimo Benedetto Croce, latifundirio e grande burgus no explica satisfatoriamente a sua altiva independncia em face de todos os poderes do Estado e das massas. preciso saber que o socialismo italiano foi sempre o mais violento de todos, quase anarquista, em reao a um Estado que isto tambm seria til saber hoje revestido de todas as aparncias do parlamentarismo e da liberdade liberal, era, j antes do fascismo, um dos Estados mais reacionrios da Europa, Estado de polcia, e de uma polcia que sabia atirar. Benedetto Croce, porm, figura ridcula de burgus gordssimo, no conhecia o medo. Estava sempre numa oposio irreconcilivel.

Por volta de 1890, na Itlia "liberal" de Crispi, Croce era adepto dos ideais conservadores de Cavour e da "Direita Histrica". Na Itlia policial de 1900, quando as ruas de Milo estavam cheias de cadveres de operrios fuzilados, Croce tornou-se socialista, marxista "un di quei che la gran torre accese"(1). Na Itlia de 1910, quando o marxismo se burocratizava e toda a atmosfera intelectual do pas estava cheia de um tpido socialismo humanitarista, introduziu a violncia sindicalista do seu amigo Georges Sorel. Na Itlia bolchevizante de 1920, apoiou pelo menos indiretamente a violncia fascista, para depois opor-se publicamente, com coragem incrvel, ao ditador manchado do sangue de Matteotti. Nunca pensou em fugir, nem quando lhe irromperam em casa, destruindo-lhe os livros, ameaando-lhe a vida. No seu exlio voluntrio dentro do pas, ele foi durante vinte anos o nico que enfrentou realmente o vivere pericolosamente(2).

Apoiando-se na sua imensa autoridade espiritual, sem poder nenhum na realidade, evocou a sombra do velho liberalismo, para justificar a sua luta solitria contra a fora coletiva. A sua presena, sempre protestando, no pas das autoridades infalveis, era uma pergunta permanente, inquietante, juventude fascista. No podiam deixar de ouvir a acusao da sua lgica dialtica, implacvel, contra o ativismo diletante dos semi-intelectuais. Mas no era o mesmo Croce o reacionrio, o marxista, o sindicalista, o fascista, o liberal Croce que lhes tinha ensinado o gosto da aventura do esprito e da aventura da ao? Ao ocidente histrico da sua vida perturbada, Croce juntou a condio que Aristteles exige do verdadeiro heri de tragdia: a culpa. Benedetto Croce no pde vencer. S pde ver a derrota do inimigo.

"No convm jubilar. No haver triunfo.

Muitas derrotas, s. Sem dignidade."

Neste sentido, Benedetto Croce uma figura trgica.

As contradies de Croce no so daquelas que se refutam facilmente.

"Nenhum sistema filosfico foi jamais refutado" disse o seu mestre Hegel. No h ningum entre ns que no lhe devesse muito seja o agudssimo mtodo de crtica literria e o mtodo mais agudo de crtica moral, seja a grandiosa viso do processo histrico, seja o mais grandioso exemplo da vida humana e as contradies dialticas da sua doutrina e da sua vida no se refutam, assim como no se refuta nenhuma dialtica e no se refutam as contradies da prpria vida. O exemplo de Benedetto Croce uma grande inquietao para ns outros. Ainda em 1938, o fascista Giansiro Ferrata, na revista Letteratura, confessou "il suo esilio politico, facendo di Croce una cosa adatta a turbare i sonni"(3).

Dessa insnia dos jovens, causada pelo esprito insone do velho, nasceram umas explicaes simplistas. Realmente, a independncia do homem "che la gran torre accese" tem slido fundamento econmico. O senador por censo grande burgus, latifundirio, riqussimo; e isto facilita. "Tipico orgoglio di borghese, filosofia di classe"(4) diz aquele fascista, lembrando, para explicar a atitude de Croce, a resistncia dos ltimos bares feudais contra a monarquia absoluta; e um pobre emigrado, macaqueando o pseudo-marxismo do inimigo, falou em "cretinismo senatoriale". Acho, porm, que o nosso mundo atual dos totalitarismos fascistas, marxistas, capitalistas e idiotas, poderia aprender com aquele velhinho gordo alguma coisa mais do que crtica literria e filosofia da histria. Podemos aprender algo da independncia pessoal que era o esprito do velho liberalismo, antes de ser absorvido pelo liberalismo econmico, e que hoje o liberalismo ideal do velho Benedetto Croce. eis a fonte das suas contradies e dos seus choques com a realidade o ltimo representante da impossvel autonomia do esprito.

O problema no para os amadores dos simplismos; antes para os que "ruminam Croce" do que para aqueles pobres que se revoltam contra essa atividade perigosa. A estes o marxista emigrado que se oculta sob o pseudnimo de "Subalpino" respondeu na insuspeita revista Giustizia e Libert, de 25 de agosto de 1938: "Sua opera sul marxismo merita tutta la nostra reconoscenza, e non le critiche de asilo infantile dei marxisti pretesi ortodossi, ignoranti."(5) E acrescenta: "Questa critica e limitazione crociana del marxismo non solo fondalmente vera, ma ancora attuale."(6) E o mais impetuoso dos seus discpulos-apstatas, G. A. Borgese, admira-se "della filosofia crociana, assai differente dei prodotti intellettuali della sua classe."(7) Mas quem aprendeu dialtica na escola do prprio Croce reconhecer com franqueza a poro de verdade na acusao independncia cmoda do latifundirio. Afinal, Croce nunca se libertou inteiramente das bases da sua liberdade. No realizou a autonomia do Esprito com maiscula que o centro da sua filosofia, porque uma autonomia terica, que nunca se realiza na vida prtica.

Croce, cuja filosofia hegeliana gerou mais conseqncias prticas do que qualquer outra com exceo da do prprio Hegel um esprito contemplativo, quase conventual. Para os outros que, sem a sua independncia econmica, no podiam respirar a atmosfera difcil da sua dialtica contraditria, para os que apostataram, forjou a doutrina de ao. Nas noites de insnia, apareceu-lhe, talvez, aquela personagem sinistra que Heine imaginara, o homem com a espada da justia escondida sob a capa rubra, cochichando-lhe: "Sou a ao do teu pensamento."

Mas Benedetto Croce no morre assim. Vive com os seus poetas, com o seu Vico, na regio das idias platnicas, onde se sente em casa como se sente em casa no passado da sua velha e querida Npoles, nos velhos palcios, igrejas e conventos com as inmeras recordaes histricas. Al cada pedra lhe um amigo, consolando-o da abjeo do presente. "Tutta la sua filosofia sorta come unincoercibile necessit della perplessit della vita morale e delle oscurezze e contradizioni, e della insoddisfazione che lo tormentava"(8) diz o seu bigrafo e amigo Giovanni Castellano. Croce esteta e moralista na maneira de olhar a vida e a arte, que se lhe confundem na irrealidade do passado. Confessou ao mesmo amigo: "Como filsofo e critico, non recedo innanzi ad alcun pensiero, per radicale e distruttivo che sembri; e, como uomo, accetto le pi dure prove. Eppure, quando mi sorprendo a sognare, sapete quale aspirazione trovo nel fondo della mia anima? Un convento secentesco napoletano, con le sue bianche celle e il suo chiostro, che ha nel mezzo un recinto di aranci e di limoni, e, fuori, il tumulto della vita fastosa e superba, che batte invano alle sue alte muraglie."(9)

Nessas palavras est todo o Croce: a audcia do seu esprito negativo "che la gran torre accese" , a negao da realidade, a elevao esttica e a indignao moral, a conscincia da imensa responsabilidade do intelectual e a conscincia da prpria culpa trgica. Na negao que a prpria ndole do esprito, por isso suspeito aos simples de todas as cores reside a culpa trgica e a grandeza moral do velho liberal Benedetto Croce, que edificou na prpria alma a nica torre indestrutvel no meio das runas da cidade castigada. Vive com todos os espritos num mundo em que a violncia sofre a derrota pela violncia e em que sobrevive, aplaudindo, apenas o riso frentico dos imbecs.

"No convm jubilar. No haver triunfo.

Muitas derrotas, s. Sem dignidade."

NOTAS:

(1) "Um daqueles que entraram na grande torre." [Nota do Editor dos Ensaios Reunidos, Olavo de Carvalho] Voltar

(2) "Viver perigosamente." Lema de Mussolini, adaptado de DAnnunzio. Voltar

(3) "O seu exlio poltico, fazendo de Croce uma coisa apta a perturbar os sonos." [N.E.] Voltar

(4) "Tpico orgulho de burgus, filosofia de classe." [N.E.] Voltar

(5) "Sua obra sobre o marxismo merece todo o nosso reconhecimento, e no as crticas de internato infantil dos marxistas pretensamente ortodoxos, ignorantes." [N.E.] Voltar

(6) "Esta crtica e limitao croceana do marxismo no s verdadeira, mas ainda atual." [N.E.] Voltar

(7) "Da filosofia croceana, muito diferente dos produtos intelectuais da sua classe." [N.E.] Voltar

(8) "Toda a sua filosofia brotou, como uma incoercvel necessidade, da perplexidade da vida moral e das obscuridades e contradies, e da insatisfao que o atormentava." [N.E.] Voltar

(9) "Como filsofo e crtico, no receio nenhum pensamento, por radical e destrutivo que parea; e, como homem, aceito as mais duras provas. E, no entanto, quando me surpreendo a sonhar, sabeis qual aspirao encontro no fundo de minha alma? Um convento setecentesco napolitano, com suas celas brancas e seu claustro, que tem no meio um ptio de laranjeiras e limoeiros, e, fora, o tumulto da vida faustosa e soberba que em vo vem bater nas suas muralhas." [N.E.] Voltar