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15 RESUMO Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 29, p. 15-30, nov. 2007 Álvaro Bianchi CROCE, GRAMSCI E A “AUTONOMIA DA POLÍTICA” Recebido em 15 de agosto de 2007. Aprovado em 25 de agosto de 2007. DOSSIÊ “GRAMSCI E APOLÍTICA” Na reflexão que Gramsci desenvolveu nos Quaderni del carcere, o tema da autonomia da política ocupa uma importante posição. Foi com base nessa reflexão que Gramsci desenvolveu sua pesquisa a respeito de política e da possibilidade de uma ciência política. Segundo Benedetto Croce, cabia a Nicolau Maquiavel o mérito de ter afirmado pela primeira vez a autonomia da política. Para Croce, essa autonomia permitia estabelecer uma distinção radical entre ética e política e entre “filosofia da política” e “ciência empírica da política”. Gramsci tomou criticamente a reflexão croceana como ponto de partida de sua leitura de Maquiavel. O reconhecimento da autonomia da política implicava que esta não poderia ser reduzida à religião ou à ética. Como campo do conhecimento e como atividade, a ciência política e a política tinham regras próprias, que as distinguiam de outras formas do conhecimento e da atividade humana. Mas tal “autonomia” não implicava, para o marxista sardo, uma separação radical entre política e moral. Por essa razão, Gramsci encontrava em Maquiavel um precursor da filosofia da práxis em sentido pleno, ou seja, o criador de uma “ciência-ação revolucionária”. PALAVRAS-CHAVE: Gramsci; Croce; Maquiavel; autonomia da política; ciência; filosofia. I. INTRODUÇÃO É absolutamente surpreendente que Antonio Gramsci tenha sido apresentado ao público do pós- guerra primeiramente como um “teórico da cul- tura”. E mais surpreendente é a persistência des- sa imagem. Certamente, há em sua obra e, parti- cularmente, nos Quaderni del carcere uma abor- dagem consistente da cultura, especialmente da cultura italiana. Nos diversos planos de trabalho que antecederam o início da redação dos Quaderni, essa questão aparecia de modo persistente. E, mesmo após o início da redação, ela permaneceu. Mas a questão que a partir de determinado mo- mento passou a organizar o empenho gramsciano foi outra: a política. No projeto original dos Quaderni, exposto em uma carta escrita em março de 1927, Gramsci apenas indiretamente se refere à política, plane- jando, por outro lado, dedicar-se principalmente a uma história dos intelectuais italianos e a questões da cultura (cf. GRAMSCI, 1973, p. 58-59) 1 . E, nas primeiras páginas que redigirá, a partir de 1929, os temas privilegiados diziam respeito à história italiana e a sua cultura. O momento no qual pare- ce ocorrer a explosão da reflexão propriamente política parece ser indicado por uma nota despre- tensiosa. Trata-se de uma observação a respeito do poder e da oposição, creditada a Léon Blum e inscrita no Primo Quaderno: “La ‘formula’ di Léon Blum. Le pouvoir est tentant. Mais seule l’opposition est confortable” (Q 1, § 40, p. 29) 2 . Se esse é um momento-chave, é porque inaugura essa reflexão e não porque, a partir dele, esta já apareça como acabada ou madura. Temas impor- tantes do pensamento gramsciano aparecerão no mesmo Quaderno, em notas seguintes a esse pa- rágrafo, particularmente no parágrafo 43 (“Riviste tipo”) e no 44 (“Direzione politica di classe pri- ma e dopo l’andata al governo”). Mas esses pa- rágrafos parecem definir apenas um conjunto de problemas de pesquisa e hipóteses de trabalho. A impostação desses problemas nessas impor- tantes notas era claramente histórica e remetia de modo recorrente ao desenvolvimento italiano e à dificuldade de afirmação de uma unidade nacional no Risorgimento. A localização da segunda versão dos parágrafos 43 e 44 no interior dos cadernos 1 Sobre os diferentes projetos dos Quaderni, ver Frosini (2003) e Bianchi (2007b). 2 Para facilitar a leitura e a comparação entre diferentes edições, citamos os Quaderni del carcere sempre a partir de sua edição crítica (GRAMSCI, 1977), adotando a seguinte nomenclatura: Q xx, § yy, p. zz, em que Q indica a edição crítica, xx o número do caderno, yy o parágrafo e zz a página).

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 29: 15-30 NOV. 2007

RESUMO

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 29, p. 15-30, nov. 2007

Álvaro Bianchi

CROCE, GRAMSCI E A “AUTONOMIA DA POLÍTICA”

Recebido em 15 de agosto de 2007.Aprovado em 25 de agosto de 2007.

DOSSIÊ “GRAMSCI E APOLÍTICA”

Na reflexão que Gramsci desenvolveu nos Quaderni del carcere, o tema da autonomia da política ocupa umaimportante posição. Foi com base nessa reflexão que Gramsci desenvolveu sua pesquisa a respeito depolítica e da possibilidade de uma ciência política. Segundo Benedetto Croce, cabia a Nicolau Maquiavelo mérito de ter afirmado pela primeira vez a autonomia da política. Para Croce, essa autonomia permitiaestabelecer uma distinção radical entre ética e política e entre “filosofia da política” e “ciência empíricada política”. Gramsci tomou criticamente a reflexão croceana como ponto de partida de sua leitura deMaquiavel. O reconhecimento da autonomia da política implicava que esta não poderia ser reduzida àreligião ou à ética. Como campo do conhecimento e como atividade, a ciência política e a política tinhamregras próprias, que as distinguiam de outras formas do conhecimento e da atividade humana. Mas tal“autonomia” não implicava, para o marxista sardo, uma separação radical entre política e moral. Por essarazão, Gramsci encontrava em Maquiavel um precursor da filosofia da práxis em sentido pleno, ou seja, ocriador de uma “ciência-ação revolucionária”.

PALAVRAS-CHAVE: Gramsci; Croce; Maquiavel; autonomia da política; ciência; filosofia.

I. INTRODUÇÃO

É absolutamente surpreendente que AntonioGramsci tenha sido apresentado ao público do pós-guerra primeiramente como um “teórico da cul-tura”. E mais surpreendente é a persistência des-sa imagem. Certamente, há em sua obra e, parti-cularmente, nos Quaderni del carcere uma abor-dagem consistente da cultura, especialmente dacultura italiana. Nos diversos planos de trabalhoque antecederam o início da redação dos Quaderni,essa questão aparecia de modo persistente. E,mesmo após o início da redação, ela permaneceu.Mas a questão que a partir de determinado mo-mento passou a organizar o empenho gramscianofoi outra: a política.

No projeto original dos Quaderni, exposto emuma carta escrita em março de 1927, Gramsciapenas indiretamente se refere à política, plane-jando, por outro lado, dedicar-se principalmente auma história dos intelectuais italianos e a questõesda cultura (cf. GRAMSCI, 1973, p. 58-59)1. E,nas primeiras páginas que redigirá, a partir de 1929,os temas privilegiados diziam respeito à históriaitaliana e a sua cultura. O momento no qual pare-ce ocorrer a explosão da reflexão propriamente

política parece ser indicado por uma nota despre-tensiosa. Trata-se de uma observação a respeitodo poder e da oposição, creditada a Léon Blum einscrita no Primo Quaderno: “La ‘formula’ diLéon Blum. Le pouvoir est tentant. Mais seulel’opposition est confortable” (Q 1, § 40, p. 29)2.Se esse é um momento-chave, é porque inauguraessa reflexão e não porque, a partir dele, esta jáapareça como acabada ou madura. Temas impor-tantes do pensamento gramsciano aparecerão nomesmo Quaderno, em notas seguintes a esse pa-rágrafo, particularmente no parágrafo 43 (“Rivistetipo”) e no 44 (“Direzione politica di classe pri-ma e dopo l’andata al governo”). Mas esses pa-rágrafos parecem definir apenas um conjunto deproblemas de pesquisa e hipóteses de trabalho.

A impostação desses problemas nessas impor-tantes notas era claramente histórica e remetia demodo recorrente ao desenvolvimento italiano e àdificuldade de afirmação de uma unidade nacionalno Risorgimento. A localização da segunda versãodos parágrafos 43 e 44 no interior dos cadernos

1 Sobre os diferentes projetos dos Quaderni, ver Frosini(2003) e Bianchi (2007b).

2 Para facilitar a leitura e a comparação entre diferentesedições, citamos os Quaderni del carcere sempre a partirde sua edição crítica (GRAMSCI, 1977), adotando aseguinte nomenclatura: Q xx, § yy, p. zz, em que Q indicaa edição crítica, xx o número do caderno, yy o parágrafo ezz a página).

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20, 24 e, principalmente, 19 reforçava essa ênfa-se. Foi a partir desses problemas e após aquelaprimeira formulação que Gramsci parece ter iden-tificado a necessidade de uma reflexão mais siste-mática sobre a atividade política e aquilo que de-nominava “ciência política” ou “ciência da políti-ca”. Nessa reflexão, a disputa sobre o legado deMaquiavel que o marxista sardo estabeleceu comBenedetto Croce ocupava uma posição estratégica.

II. O LUGAR DA POLÍTICA NA FILOSOFIA DOESPÍRITO DE BENEDETTO CROCE

O lugar de Croce na cultura italiana da primei-ra metade do século XX é singular. Tendo feitosua carreira à margem do sistema universitário, ocrítico napolitano exerceu uma função hegemônicano ambiente cultural italiano que só poderia en-contrar paralelo no lugar que Goethe ocupou naAlemanha do século XIX (cf. HUGHES, 1979, p.201; GARIN, 1996, p. 3-4; BELLAMY, 1987, p.72). Para tal, utilizou a revista La Critica e a edi-tora Laterza para saturar a vida cultural da penín-sula com um único ponto de vista: o renascimentocultural da Itália e o conseqüente aniquilamentodos vestígios do pensamento do século XVIII aindaexistentes, particularmente do positivismo (cf.JACOBITTI, 1980, p. 69-70).

Não é exagero falar de saturação cultural. En-tre 1882, data de seus primeiros textos juvenis,até 1952, quando de sua morte, Croce publicoucerca de 30 mil páginas e acompanhoucriteriosamente as freqüentes reedições dos 72volumes de sua obra. A esse grande número deescritos seria necessário acrescentar seus cader-nos de viagem e o enorme epistolário que mante-ve com alguns dos principais expoentes do ambi-ente literário de sua época (cf. BADALONI &MUSCETTA, 1990, p. 15-33). O resultado foi umcolossal empreendimento intelectual com vistas àreconfiguração desse ambiente literário e o exer-cício pleno de sua hegemonia cultural nele. Complena consciência do alcance desse empreendi-mento, o próprio Croce considerava ter contribu-ído de modo decisivo para afirmar na Itália: “Orenovado conceito de filosofia em sua tradiçãoespeculativa e dialética e não mais positivista eclassificatória, a ampla visão da história, a uniãoda erudição com o filosofar, o sentido vivíssimoda poesia e da arte em seu próprio caráter originale com isso a via aberta ao reconhecimento emsua positividade e autonomia de todas as catego-rias ideais” (CROCE, 1947b, p. 86).

De um modo geral, a busca desses resultadosunifica as diferentes fases do pensamentocroceano3. Os meios intelectuais mobilizados paraa realização desse objetivo variaram, entretanto,no tempo. Tal empreendimento começou, ou pelomenos ganhou corpo, com a aproximação deBenedetto Croce ao marxismo. Não é exato afir-mar que Croce foi marxista ou mesmo socialista,muito embora tenha mantido com ambos um in-tenso diálogo crítico durante toda a sua vida4. Arelação do crítico napolitano com o marxismo nãose desenvolveu de modo linear e é possível identi-ficar ao menos duas fases nela. Nessa primeira, àqual é feita referência agora, Croce inseriu-se nodebate da época e no movimento revisionista queafirmava a “crise do marxismo”.

Como parte dessa vertente revisionista, Croceatribuiu, nos ensaios reunidos em Materialismostorico ed economia marxistica, obra publicadaem 18995, um valor positivo a certos aspectos dateoria marxista, ao mesmo tempo em que procu-rou corrigir aqueles que seriam os principaissenões dessa teoria. No prefácio da primeira edi-ção dessa obra, afirmava que, assim como GeorgesSorel, seu objetivo era “livrar o núcleo são e realis-ta do pensamento de Marx dos adornos metafísicose literários de seu autor e das exegeses e deduçõespouco cautelosas da escola” (1927, p. IX).

Esse empreendimento intelectual era interpre-tado como uma missão libertadora e revivificadora,pois tratava-se de libertar o marxismo das mãosdos marxistas e dar-lhe nova vida, embora compretensões mais modestas. Era no âmbito desseempreendimento que o crítico napolitano definiaque o materialismo histórico não era nem uma fi-

3 Para uma discussão das diferentes fases do pensamentocroceano, ver Badaloni e Muscetta (1990, p. 62-75).4 Com base naquilo que o próprio Croce escreveu, é pos-sível dizer que ele não se reconheceria na afirmação feitapor Finocchiaro de que seu pensamento teria sido marxista(2002, p. 10). Opinião mais matizada é sustentada porHughes (1979, p. 82-89). Segundo Badaloni: “Ainda quenão tenha sido socialista ou marxista, Croce, assim comoGentile, necessitou do marxismo para dar uma base racio-nal a sua atividade de crítico e historiador” (BADALONI& MUSCETTA, 1990, p. 62).5 Os ensaios foram publicados originalmente entre 1895 e1899, em periódicos italianos e na revista francesa Devenirsociale, dirigida por Georges Sorel. Eles são o resultado dodiálogo crítico de Croce com Antonio Labriola, a quem aobra foi dedicada.

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losofia da história nem um novo métodohistoriográfico, mas apenas “um cânone de inter-pretação histórica”, que aconselhava a “dirigir aatenção ao chamado substrato econômico da so-ciedade, para compreender melhor suas configu-rações e vicissitudes” (CROCE, 1927, p. 79; cf.tb. 1946a, p. 47).

Para ser bem-sucedida, essa valorização domarxismo como “cânone de interpretação” tinhade acertar as contas com a noção de luta de clas-ses. Pois era como pensamento que chama a aten-ção para o “substrato econômico” que o marxis-mo poderia perder seu caráter revolucionário enão como pensamento que chama a atenção parao caráter permanente do antagonismo social. Se-gundo Croce, a história seria uma luta de classesapenas quando existissem classes sociais (fatosobre o qual Engels já havia chamado a atenção),quando existissem interesses antagônicos e quan-do as classes fossem conscientes desse antago-nismo. Mas nem sempre existiriam esses interes-ses antagônicos, assim como se existissem nãoseriam necessariamente conscientes. Assim, oenunciado de que “a história é luta de classes” tam-bém, segundo Croce, deveria ser reduzido ao “va-lor de cânone e de orientação que reconhecemosem geral na concepção materialista” (idem, p. 85).

Marx foi, para Croce, uma ferramenta para acrítica da filosofia positivista predominante na Itáliae um meio para a elaboração de sua filosofia doespírito, concebida por meio da distinção entre asdiferentes formas que definiam a maneira a partirda qual o espírito operava de modo universal. Emsua memória, apresentada no ano de 1900 na Aca-demia Pontaniana de Napoli, intitulada Tesifondamental di un’estetica come scienzadell’espressione e linguistica generale, Croceelaborou uma primeira versão de seu sistema filo-sófico. Esse texto, revisado e ampliado, passou aintegrar, em 1907, o livro Estetica come scienzadell’espressione e linguistica generale (CROCE,1946a), primeiro dos quatro volumes de Crocededicados à Filosofia dello Spirito6.

O procedimento filosófico padrão de Croce eraum percurso no qual distinção-classificação-defi-

nição era ponto essencial (cf. GARIN, 1996, p.3-31). Assim, o ponto de partida da exposição –literalmente, pois isso era afirmado no primeiroparágrafo de sua Estetica, – não podia deixar deser uma afirmação de tipo esquemático eclassificatório. Nele, Croce diferenciava as duasformas que o conhecimento adquiria: “conheci-mento intuitivo ou conhecimento lógico; conhe-cimento pela fantasia e conhecimento pelo inte-lecto; conhecimento do individual ou conhecimen-to do universal” (CROCE, 1946a, p. 3). Tais for-mas do conhecimento corresponderiam, respec-tivamente, à Estética e à Lógica, que, embora fos-sem diversas, não se encontravam separadas.Muito embora a forma estética fosse independen-te da forma intelectiva e, nesse sentido, poderiaser considerada a forma primeira, o contrário nãopoderia ser dito. A inteligência necessitaria expres-sar-se e, por essa razão, não poderia existir sem aestética (idem, p. 23).

As formas intuitiva (Estética) e intelectiva (Ló-gica) esgotavam, para Croce, todo o domínio te-órico do espírito, mas seu conhecimento plenoexigiria o estabelecimento das relações existentesentre o espírito teórico e o espírito prático. Com aforma teórica, o homem compreenderia as coisase se apropriaria delas por meio do intelecto, coma prática as transformaria e criaria (idem, p. 54).A forma ou atividade prática seria, desse modo,correspondente à vontade. O argumento de Crocenão deixava de ser tautológico, uma vez que defi-nia a vontade como “a atividade do espírito [...]produtora não de conhecimento, mas de ações”(idem, p. 53). Repetir-se-ia, quanto a essas duasformas teóricas e práticas, a mesma relação quejá havia sido estabelecida entre a atividade estéticae a atividade intelectiva. A forma teórica seria aforma primeira e independente e a forma práticanão poderia sem ela existir. Isso não significavaque o homem prático necessitasse de um sistemafilosófico elaborado para operar, e sim de intuiçõese conceitos que lhe permitissem orientar sua ação.

O primeiro grau da atividade prática seria, paraCroce, a atividade meramente útil ou econômica eo segundo, a atividade moral: “A Economia é comoa Estética da vida prática; a Moral, como a Lógi-ca” (idem, p. 61). O conceito de atividade econô-mica recebia tratamento detalhado. Croce procu-rava superar a confusão existente entre os con-ceitos de útil e egoísmo. Uma vez que o egoísmoé imoral, a confusão colocaria a Economia emuma posição não distinta, mas antagônica à Ética.

6 Os outros volumes são Logica come scienza del concettopuro, publicado originalmente em 1908 (CROCE, 1947);Filosofia della pratica: Economia ed etica, de 1908(CROCE, 1923); e Teoria e storia della storiografia, de1915 (CROCE, 2001).

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Mas mesmo o homem mais escrupuloso deveriaconduzir sua vida por um sentido de utilidade senão desejasse operar sem sentido algum.

O autor da Estetica procurava resolver a ques-tão do mesmo modo como havia estabelecido arelação entre Estética e Lógica. O altruísta que pro-cura um fim moral não poderia deixar de procurá-lo utilmente (economicamente), mobilizando osmeios acessíveis com vistas à obtenção do fim al-mejado. Já que apenas o indivíduo poderia ser oator da ação, um fim racional (moral) só poderiaser desejado como um fim particular. A atividadeeconômica encontrar-se-ia implicada na atividadeética, mas a recíproca não seria verdadeira. A ativi-dade econômica seria, assim, primeira e indepen-dente com relação à atividade ética (idem, p. 63).

A atividade complexa do pensamento era as-sim decomposta em quatro graus: a individualida-de e universalidade teoréticas, referentes à intui-ção e expressão do individual (Estética) e à con-cepção do universal (Lógica), respectivamente; ea individualidade e a universalidade práticas, cor-respondentes às volições do particular (Economia)e às volições do universal (Ética). A relação entreesses diferentes momentos ou graus do espíritoseria uma relação de implicação regressiva. Croceresumia assim sua teoria das formas do espírito:“Neste esboço sumário que fizemos do conjuntoda filosofia do espírito em seus momentos funda-mentais, o espírito é concebido, então, como per-correndo quatro momentos ou graus, dispostosde modo que a atividade teórica esteja para a prá-tica como o primeiro grau teórico está ao segun-do teórico e o primeiro prático ao segundo práti-co. Os quatro momentos se implicam regressiva-mente por seu caráter concreto: o conceito nãopode estar sem expressão, o útil sem uma e ooutro, e a moralidade sem os três graus que oprecedem” (idem, p. 68).

Os inúmeros problemas da formulação de umafilosofia do espírito não se encontravam, entre-tanto, resolvidos, coisa que as sucessivas revi-sões dos três primeiros volumes que compunhamsua investigação e o acréscimo de um quarto de-dicado à história iriam demonstrar. A tentativa derestringir toda a ação humana àquelas quatro for-mas implicava na exclusão do âmbito do “espíri-to” de toda atividade que não pudesse ser nelasenquadradas ou na redução arbitrária de tais ativi-dades a uma das formas previamente definidas.

Tendo assentado com sua Estetica os pressu-postos da filosofia do espírito, Croce não deixoude debater-se com os limites do próprio sistema,sem chegar a resolver a tensão existente entre umaclassificação formal e apriorística das formas doespírito e uma análise efetiva da experiência hu-mana (cf. GARIN, 1996, p. 21). A tensão mani-festava-se no interior da própria obra croceanaentre o esquematismo classificatório dos quatrovolumes que reuniam sua Filosofia dello spirito ea riqueza da análise presente nos volumes de seusScritti di storia letteraria e politica. Os proble-mas mais graves apareciam justamente nas esfe-ras nas quais essa experiência assumia a forma deatividade prática, o âmbito daquilo que esse autorchamou de “filosofia da prática”, os domínios daEconomia e da Ética (cf. CROCE, 1923; cf. tb.MARTELLI, 2001, p. 118-121).

No mesmo ano em que Croce escreveu a pri-meira versão de sua filosofia do espírito, nas Tesifondamentali, de 1900, redigiu também duas car-tas que tinham por destinatário Vilfredo Pareto,discutindo com este o “princípio econômico”,cartas essas que integram a obra Materialismostorico ed economia marxistica (CROCE, 1927,p. 225-247). Essas cartas não faziam parte daprimeira edição dessa obra, publicada um ano an-tes, mas passaram a integrar a edição seguinte, de1906. Além da importância para a reconstruçãodo percurso que levou Croce a sua filosofia doespírito, essas cartas, na posição que ocupam emMaterialismo storico..., revelam que aquilo queeste denominava de Economia era ponto nodal deseu inicial afastamento da obra de Marx.

Na carta de 15 de maio de 1900 a Pareto, arelação existente entre os domínios da Economia eda Ética era abordada. Nessa missiva, o fato eco-nômico era definido como “a atividade prática dohomem enquanto se considere em si, independen-temente de toda determinação moral ou imoral”(CROCE, 1927, p. 236). Estabelecendo a autono-mia do útil e distinguindo a ação econômica de umamoralidade concebida em sua pureza categorial,Croce enunciava nessas cartas as bases para suafilosofia da prática (cf. BONETTI, 2000, p. 13).

O preço desse enunciado era, entretanto, eleva-do. Um conceito tão laxo de fato econômico traziacomo conseqüência a subsunção pelo econômicode toda atividade com vistas a transformar de al-gum modo o ambiente e, portanto, implicava umaredução do direito e da política a meras expressões

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da atividade econômica. Essa expansão conceitualconfigurava um surpreendente economicismo.Depois de criticar primeiro a operação levada a cabopor Achille Loria e, depois, a suposta transforma-ção por parte de Marx da economia em um “deusoculto”, Croce paradoxalmente subsumiu na eco-nomia parte da superestrutura.

Na Estetica, esse procedimento de subsunçãose manifestava no tratamento dispensado ao direi-to: “o direito é uma fórmula (oral ou escrita, aquipouco importa), na qual é fixada uma relação eco-nômica desejada por um indivíduo ou uma coletivi-dade” (CROCE, 1946a, p. 69). Em Filosofia dellapratica, o tema era retomado e tratado de mododetalhado, preservando a formulação inicial em seuspontos mais importantes: o pertencimento do direi-to à esfera da atividade prática, a distinção entremoral e direito e a redução do Direito à Economia(cf. CROCE, 1923, p. 307-390).

Do mesmo modo, para Benedetto Croce, a açãopolítica era aquela guiada pelo sentido da utilida-de, ou seja, era a ação dirigida por um fim consi-derado útil pelo agente e desse modo erareconduzida para o âmbito da Economia. O crité-rio que permitiria avaliar uma ação política seria,desse modo, um critério de eficácia. Dirigida comvistas à obtenção de um fim útil, tal ação não po-deria ser qualificada como moral ou imoral, e simapenas como eficaz ou ineficaz (CROCE, 1994,p. 250-251). Definida desse modo, tornava-sepossível distinguir a política da ação moral e éti-ca, aquela ação dirigida com vistas à realização dobem. Não se tratava, entretanto, de afirmar amoralidade ou imoralidade da política, e sim suaamoralidade.

A distinção entre filosofia e política implicava,também, uma especialização ou especificação dossujeitos. A distinção das formas espirituais encon-trava, nos indivíduos singulares, a especificidadede suas vocações (cf. BOBBIO, 1955, p. 102). Ademarcação que Croce levava a cabo entre essasformas encontrava, dessa maneira, sedes fisica-mente separadas: “o filósofo” e o “homem da po-lítica”, aos quais continuamente fazia referência.

A separação física entre essas formas não dei-xava de colocar um problema que ele tentava re-solver no âmbito do espírito. Embora estabele-cesse a distinção entre moral e política, Croceassegurava formalmente o nexo existente entreelas. A distinção significaria, para ele, não umaseparação, mas uma “unidade concreta e viva”

(CROCE, 1994, p. 203), uma unidade que se ve-rificava na medida em que ambas eram “momen-tos necessários da vida espiritual” (CROCE, 1993,p. 241). Mas o nexo indicava também o sentidono qual se processava a unificação. A consciênciaética e moral e a consciência econômica e políticapartilhariam a mesma forma prática, mas seguin-do o modo de implicação dos diferentes graus doespírito, a econômica e a política, como açõesgeradas pelo sentido de utilidade, resolver-se-iamna eticidade.

Assim como nas implicações regressivas dosdiferentes graus do espírito, o “espírito ético en-contra, pois, na política a premissa de sua ativida-de e, por sua vez, seu instrumento, quase um corpoao qual infunde uma alma renovada e utiliza paraseus fins” (CROCE, 1994, p. 266). A anteriorida-de da política com relação à moral tornaria possí-vel que esta servisse de “instrumento à vida mo-ral” (idem, p. 267). Embora expressasse essa re-lação entre os distintos por meio de uma lingua-gem hegeliana, o empreendimento croceano eraantidialético, uma vez que o nexo existente entreos diferentes graus do espírito não constituía umarelação dialética de mútua interpenetração e reci-procidade, e sim de implicação unilateral do nívelsuperior no inferior (cf. FONTANA, 1993, p. 60).

Se a forma discursiva era de inspiração clara-mente hegeliana, as conclusões às quais chegavaafastavam o filósofo napolitano do alemão. Com-preender o Estado e a moral era, para Croce, umproblema teórico da alçada da filosofia. Diferen-tes seriam as questões que diriam respeito às ori-entações da ação política. Estas seriam questõespráticas e diriam respeito ao político e não ao filó-sofo. O problema político, assim como todo pro-blema prático, deveria ser considerado como umempreendimento criativo e, portanto, pessoal eindividual. Croce rompia decididamente nesseponto com Hegel, para afirmar na política o pri-mado do indivíduo sobre o Estado.

A afirmação da autonomia da política implica-va não apenas a distinção entre ética e políticaacima analisada, mas também uma distinção entrea “filosofia da política” e a “ciência empírica dapolítica”. Retomando a idéia de uma identidadeentre filosofia e história, afirmada em sua Logicacome scienza del concetto puro (CROCE, 1947a),afirmava que a finalidade da filosofia da políticaera a explicação da história da atividade política“em sua dupla forma de história econômica e

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meramente política e de história ético-política oumoral” (CROCE, 1994, p. 281). A ciência da po-lítica, por sua vez, teria o objetivo de fixar o co-nhecimento de modo a torná-lo rapidamente aces-sível ao espírito com vistas à ação ou a novasindagações. O procedimento que permitiria à ci-ência empírica da política atingir seus objetivosdeveria ser a redução da multiplicidade histórica aum pequeno número de “tipos e classes”, ou seja,“os fatos considerados em seu conteúdo abstrato[...] e despojados de sua vida própria, dada pelaforma espiritual, quer dizer, pela individualidade”(idem, p. 282).

O juízo de Croce a respeito da ciência empíricada política não era, evidentemente, positivo, como,aliás, não o era para qualquer “ciência empírica”.Argumentava que, ao retomar o material critica-mente elaborado pela filosofia e pela crítica histó-rica, a ciência empírica da política esvaziaria oconteúdo vivo desse material e seu significado.Esse juízo negativo tinha também um carátermetodológico: ele serviria para prevenir a filosofiada contaminação por parte de uma vulgar filoso-fia prática7. Seria, assim, possível evitar uma iden-tificação entre a verdade lógica e a verdade políti-ca, erro este que poderia ter como conseqüênciauma absolutização do pensamento prático. Masesse juízo negativo também serviria para alertarcontra a transformação de caprichos e paixõesindividuais em teoremas “da ciência mecânica quetomou por objeto o Estado e a sociedade” (idem,p. 286). Esse último erro consistiria em um apa-gamento das fronteiras entre filosofia e práxis,acreditando ter a ação política uma determinaçãoconceitual universal, quando, na verdade, tal açãosó poderia encontrar sua verdade na sua plena in-dividualidade (cf. ZARONE, 1990, p. 189).

Levando em conta o ambiente intelectual desua época e, particularmente, o contexto italiano,chama a atenção essa recusa da ciência políticaque se colocava na contramão do empreendimen-to levado a cabo por Gaetano Mosca e VilfredoPareto, entre outros. Ao contrário desses autores,empenhados na demonstração da possibilidade deum conhecimento científico da política, o autorde Etica e politica colocava em dúvida o potenci-al de uma ciência que procedesse por meio de

“pseudoconceitos” e classificações (CROCE,1994, p. 288)8. O âmbito que o filósofo napolitanoatribuía à ciência empírica da política estava mui-to longe, desse modo, daquele que Mosca procu-rava determinar. Para Croce, a ciência empíricada política teria apenas um valor restrito a sua“utilidade instrumental” (idem). Reconhecido essevalor instrumental, impedir-se-ia que a ciência dapolítica degenerasse em filosofemas abstratos eprincípios absolutos, contaminando tanto a filo-sofia como a historiografia.

Essa restrição do âmbito de atuação e da vali-dade da ciência política reforçava a distinção queCroce levava a cabo entre teoria e prática, filoso-fia e política. Tal distinção, na ênfase que recebia,permitia-lhe recomendar aos filósofos que nãoperturbassem a política com uma filosofia ino-portuna. Por essa razão, chegou a denunciar o“cretinismo filosófico” e a “fixação filosófica”,assim como Marx havia feito com o cretinismoparlamentar (CROCE, 1993, p. 281; cf. tb.BOBBIO, 1955, p. 105). Mas a distinção tambémpermitia “preservar o juízo histórico da contami-nação da prática política, que lhe retira amplitudee imparcialidade” (CROCE, 1994, p. 290).

Uma vez desenvolvida essa distinção entre apolítica e a moral na primeira seção de seus Elementidi politica, Croce passava em revista, na seçãoseguinte, a história da filosofia da política, de modoa tornar sua filosofia da política o ponto de culmi-nância de toda a filosofia da política precedente9.O ponto de partida para tal não era, senão,

7 Quando a prática é objeto da filosofia, esta é uma “filo-sofia da prática”. Quando a prática é o objetivo da filoso-fia, esta é uma mera “filosofia prática”.

8 Para Croce, o conceito puro é omni e ultra-representati-vo e não se refere a esta ou aquela representação particularou a este ou aquele grupo de representações. Ospseudoconceitos, por sua vez, seriam representações ge-rais que simulariam uma falsa universalidade. As ciênciasempíricas operariam a partir de tais pseudoconceitos (cf.CROCE, 1947, p. 13-36, & BONETTI, 2000, p. 18-22). Asolução elaborada por Croce permitia-lhe romper o nó górdioexistente entre a Kulturwissenschaften e aNaturwissenschaften com um golpe de caneta, expelindoarbitrariamente todas as noções científicas do campo doconhecimento puro (cf. GARIN, 1996, p. 23).9 Os Elementi di politica, publicados originalmente em1925, passaram, em 1930, a integrar a obra Etica e politica,juntamente com os Frammenti di etica, escritos em 1922. Aprimeira seção dos Elementi di politica intitulava-se “Politica‘in nuce’” e a segunda, à qual é feita referência, era “Storiadella filosofia della politica”. Para a história dessa obra, vera minuciosa nota de Giuseppe Galasso em Croce (1994, p.423-486).

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Maquiavel, considerado um expoente da “políticapura” e símbolo de uma profunda crise no desen-volvimento da ciência. Segundo o filósofonapolitano, “Maquiavel descobriu a necessidade ea autonomia da política, que está além – ou melhor,aquém –, do bem e do mal moral, que tem leiscontra as quais é inútil rebelar-se, que não pode serexorcizada nem expulsa do mundo com água ben-ta” (CROCE, 1994, p. 292)10.

A afirmação de Maquiavel como descobridorda autonomia da política que foi discutida até aquitornou-se célebre e fez de Croce um dos expoen-tes da moderna maquiavelística, apesar de ter de-dicado ao florentino apenas pequenos artigos epáginas esparsas, encontradas, principalmente, emEtica e politica e em Storia della età barocca inItalia (cf. COCHRANE, 1961, p. 115-116;MEDICI, 1990, p. 166). Ao afirmar que o secre-tário florentino inaugurava a “autonomia da políti-ca”, o filósofo napolitano apresentava Maquiavelcomo um precursor da distinção entre as diferen-tes esferas do espírito.

Contrariamente àqueles que liam Il Principecomo um manual de política prática, Croce des-tacava que o conceito de “autonomia da política”presente nele era um “conceito profundamente fi-losófico e representa a verdadeira e própria fun-dação da filosofia política” (idem). O conteúdopropriamente filosófico do discurso do florentinoera revalorizado em detrimento daquilo que Croceconsiderava ser a casuística e o preceptismo po-lítico que caracterizava o pensamento dosmaquiavelianos. Maquiavel não poderia ser consi-derado, desse modo, o fundador de uma “ciênciaempírica da política”, como muitos pensaram. Eleera, na verdade, o fundador da moderna filosofiada política.

Essa leitura antimaquiaveliana da obra deMaquiavel era possível porque Croce separava astendências práticas e políticas, ou seja, afastava apolítica em ato da reflexão a respeito dessas prá-ticas e políticas, apartava a esfera da filosofia daesfera da política. Procedimento semelhante eralevado a cabo na separação entre a historiografiae a história em ato. O exemplo dado por Croce aesse respeito em Teoria e storia della storiografiaera, justamente, o de Maquiavel. Para o filósofo

napolitano, “Maquiavel é historiador enquanto seesforça pra compreender o curso dos acontecimen-tos e é político, ou pelo menos publicista, quandoapresenta ou acaricia seu ideal de um príncipe fun-dador de um forte Estado nacional e o faz refletirna história que narra [...]. Maquiavel pertence, en-tão, por uma vertente à história do pensamento doRenascimento e, por outra, à história da prática doRenascimento” (CROCE, 2001, p. 189-190).

A afirmação de Maquiavel como descobridorda autonomia da política ressaltava seu papel comofilósofo do Renascimento e não como políticodessa época histórica. Embora estivesse em cons-tante diálogo com a interpretação de FrancescoDe Sanctis, Croce afastava-se das conclusõesdesse historiador do Risorgimento. Em sua mo-numental Storia della letteratura italiana, DeSanctis atribuía ao secretário florentino a funçãode “consciência e pensamento do século”, “aomesmo tempo a mais profunda negação domedievo e a afirmação mais clara dos novos tem-pos” (DE SANCTIS, 1968, p. 454). Essa duplafunção – negativa e positiva –, que havia sido le-vada a cabo pela Reforma protestante no restanteda Europa, teria assumido, na Itália, uma formadiferente. De Sanctis afirmava, então, que na pe-nínsula “Lutero foi Nicolau Maquiavel” (idem).Como homem do Renascimento, o Maquiavel deDe Sanctis foi também um reformador.

Esse caráter dual de Maquiavel também eradestacado por Croce. O secretário florentino, afir-mava em Etica e politica, era comumente identi-ficado com o Renascimento. Mas ele pertenceria,também, ao movimento da Reforma e ao seu de-sejo, dentro e fora da Itália, de “conhecer o ho-mem e pesquisar o problema de sua alma [ani-ma]” (CROCE, 1993, p. 292). O sentido a partirdo qual Maquiavel era identificado com o espíritoda Reforma diferia, entretanto, daquele afirmadopor De Sanctis. Para Croce, o secretário florentinoera um reformador da filosofia e não da socieda-de de sua época. Por essa razão, poderia estarinserido em um movimento de pesquisa do “pro-blema da alma”, do espírito humano. Maquiavelassumia, desse modo, o lugar de precursor da fi-losofia do espírito.

III. GRAMSCI E A BUSCA DE UM “REALISMOPOPULAR”

Se, para Croce, Maquiavel era o precursor desua filosofia do espírito, para Gramsci, o secretá-rio florentino era um caminho para a crítica dessa

10 A abordagem croceana já havia sido antecipada, emborade forma muito sumária, em Filosofia della pratica(CROCE, 1923, p. 266-268).

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filosofia e para a reelaboração de uma filosofia dapráxis. A importância da pesquisa sobre oflorentino tornava-se evidente já no primeiro doscadernos redigidos por Gramsci na prisão, muitoembora esta não fizesse parte do índice que colo-cou em seu início. Esse era, entretanto, um dostemas enumerados tanto na coleção de argumen-to dos “Saggi principali”, redigida provavelmen-te entre os meses de novembro e dezembro de1930 (cf. FRANCIONI, 1984, p. 142), como dostemas elencados nos “Raggruppamenti di maté-ria”, escritos, supostamente, entre março e abrilde 1932 (idem, p. 85-93), ambos antepostos aoQuaderno 8 e linhas de orientação para a pesquisaque seria levada a cabo.

A respeito das notas sobre Maquiavel, Leonar-do Paggi destacou que é possível identificar doisgrandes temas, que, embora interconectados, apre-sentam-se de modo formalmente distinto: 1) umapesquisa sobre a interpretação marxista da obra deMaquiavel; 2) a tradução para o marxismo de al-guns conceitos presentes na obra de Maquiavel(PAGGI, 1984, p. 387; cf. tb. FINOCCHIARO,2002, p. 125-126). À observação de Paggi, é ne-cessário acrescentar que Gramsci começava suainvestigação no Primo Quaderno no âmbito de umareflexão sobre a interpretação da obra de Maquiavel,ressaltando o tempo que lhe era próprio e a neces-sidade de tratá-la de modo histórico (Q 1, § 10, p.8-9). A pesquisa a respeito de Maquiavel e a “auto-nomia do fato político” própria daquele segundobloco temático apontado por Paggi aparecerá ape-nas mais tarde, no Quaderno 4, § 5611.

O tratamento dado a Maquiavel nos Quaderniacompanhou essa transformação gradual do progra-ma de pesquisa e as novas ênfases que ele foi adqui-rindo. Nos diferentes planos de trabalho escritos porGramsci, Maquiavel apareceu primeiro naquele elencode “Saggi principale”, redigido no final de 1930 econcentrado na história dos intelectuais italianos. Osparágrafos referentes ao secretário florentino quepodem ser encontrados nos cadernos 1 e 2 pareceminserir-se claramente dentro dessa perspectiva. Tra-

ta-se de notas referentes ao caráter histórico da obrade Maquiavel e o pertencimento a seu próprio pre-sente (Q 1, § 10, p. 8-9 e Q 2, § 31, p. 189 e § 41,p. 196-197) e à sua posição de intelectual cosmopo-lita (Q 1, § 150, p. 133).

As notas presentes no Quaderno 2 são maisou menos contemporâneas daquelas inscritas noQuaderno 4 e que fazem parte do conjunto querecebeu o subtítulo de Appunti di Filosofia I, re-digido, provavelmente, entre maio e outubro de1930 (cf. FRANCIONI, 1984, p. 141). Mas aabordagem do Quaderno 4 já não era apenas his-tórica. Em seu interior, o estudo da obra deMaquiavel e de seus comentadores passava a fa-zer parte de uma pesquisa mais abrangente sobreo conceito de política e a atividade política noâmbito de uma filosofia da práxis. Os títulos queGramsci antepunha a seus parágrafos já permi-tem perceber esse deslocamento: “Machiavellismoe marxismo” (Q 4, § 4, p. 425), “Machiavelli eMarx” (Q 4, § 8, p. 430) e “Marx e Machiavelli”(Q 4, § 10, p. 432).

O lugar de Maquiavel nesse projeto gramscianode reflexão sobre a teoria e a atividade política éinegável. Rita Medici (1990, p. 188) alertou queesse lugar parece contraditório com aquela rei-vindicação feita pelo próprio Gramsci, retomandouma tese de Antonio Labriola a respeito da inde-pendência da filosofia da práxis e a recusa de todatentativa de completá-la com outras doutrinas (cf.LABRIOLA, 2000, p. 216, Q 4, § 3, p. 422). SeGramsci pôde atribuir esse papel a Maquiavel semque isso se constituísse em uma antinomia, foiporque viu no secretário florentino uma “primeirafigura da filosofia da práxis” (LEFORT, 1986). Épor isso que, nas notas intituladas “Marx eMachiavelli”, ambos os autores não apareciamopostos um ao outro, nem como complementa-res, e sim como autores que partilhavam um mes-mo lugar12.

Tal lugar parece ser justificado no início doQuaderno 4, em uma pequena nota de oito linhas,intitulada “Machiavellismo e marxismo”. Refletin-do provavelmente a respeito da interminável que-rela dos intérpretes de Maquiavel referente aosobjetivos de Il Príncipe – a quem ensinava11 Segundo Francioni, esse parágrafo data de novembro de

1930 (1984, p. 141). Era concomitante, portanto, daquelasdiscussões organizadas por Gramsci sobre a política co-munista na Itália e na União Soviética que tiveram lugar naprisão, discussões essas que assinalaram um giro políticono interior dos Quaderni (cf. a narrativa de um dos partici-pantes: LISA, 1981).

12 Nas notas intituladas “Croce e Marx”, pelo contrário,ambos são colocados em oposição.

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Maquiavel? –, escrevia o marxista sardo: “Duplainterpretação de Maquiavel: por parte dos homensde Estado tirânicos que desejam conservar e au-mentar sua dominação e por parte daquelas ten-dências liberais que querem modificar as formasde governo. [...] Croce escreve que isso demons-tra a validade objetiva das posições de Maquiavel,o que é justíssimo” (Q 4, p. 425).

Entretanto, nem todas as posições de Maquiavelpoderiam ser consideradas portadoras de uma“validade objetiva”. Aquelas às quais Gramsci atri-bui esse estatuto são as que poderiam ser integra-das no âmbito da filosofia da práxis como cânonesde interpretação. Por outro lado, a caracterizaçãomaquiaveliana a respeito da natureza humana de-veria ser claramente rejeitada. Segundo o autordos Quaderni, a inovação fundamental introduzidapor Marx na ciência política e histórica, quandocomparado com Maquiavel, foi a crítica à idéia deuma “natureza humana” fixa e imutável (Q 4, § 8,p. 430-431).

A rejeição dessa idéia permitiria conceber umaciência política que, em seu conteúdo concreto,identificar-se-ia com uma ciência histórica.Maquiavel pensou a política como uma prática quese afirma em um tempo circular no qual a regula-ridade da natureza humana garantiria a constânciados ciclos históricos. A acuidade do florentino paraa história justificava-se pelo seu efeito demons-trativo daquilo que poderia vir a ser. Daí sua insis-tência na necessidade de articular “uma longa ex-periência das coisas modernas e um contínuo es-tudo das antigas” (MACHIAVELLI, 1971, p. 257).

A recusa de uma natureza humana fixa permi-tia a Gramsci livrar-se de uma concepção cíclicado tempo sem, com isso, abrir mão daquela im-portante sensibilidade histórica. Também para osardo, a experiência contemporânea e o estudo dahistória forneciam a chave para a inteligibilidadedo presente. Libertado o pensamento de Maquiaveldas amarras que lhe eram impostas por aquela idéiade natureza humana, revelava-se seu núcleo ra-cional. Esse núcleo, segundo Gramsci, era: “1) Aafirmação de que a política é uma atividade inde-pendente e autônoma que tem seus princípios esuas leis diversas daquelas da moral e da religiãoem geral [...]; 2) o conteúdo prático e imediato daarte da política estudado e afirmado com objetivi-dade realista, em dependência da primeira afirma-ção” (Q 4, § 8, p. 431).

No primeiro dos pontos enumerados na cita-ção, Gramsci retomava explicitamente a idéia de“autonomia da política” da leitura que BenedettoCroce fez da obra do florentino. A influência des-sa leitura croceana sobre a reflexão de Gramscinos Quaderni del carcere é inegável. As referên-cias são por demais explícitas para serem recusa-das. Levando em consideração essas referências,Finocchiaro (2002, p. 133) afirma simplesmenteque o marxista sardo “aceita” de Croce essa tesefundamental. Na verdade, embora ele tenhaaceitado a expressão e faça uso corrente dela nosQuaderni, não fez o mesmo com seu conteúdo.Os fundamentos e os resultados dessa tese eram,para Croce e Gramsci, diferentes (MEDICI, 1990,p. 167), senão contrapostos (cf. FONTANA,1993, p. 7 e 52-73, & FROSINI, 2003, p. 164).

Para Gramsci, a afirmação de uma “autono-mia da política” implicava o reconhecimento deque a política não poderia ser reduzida à religiãoou à ética. Como campo do conhecimento e comoatividade, ou seja, como ciência e prática, teoria epráxis, a ciência política e a política tinham regraspróprias que as distinguiam de outras formas doconhecimento e da atividade humanas. Mas tal“autonomia” parece não implicar, na obra deGramsci, uma separação radical entre política emoral. Por essa razão, Gramsci encontrava emMaquiavel um precursor da filosofia da práxis emsentido pleno, ou seja, o criador de uma “ciência-ação revolucionária” (cf. MARTELLI, 1996, p.170).

A questão dizia respeito, portanto, à “relaçãodialética” que a “autonomia da política” poderiater com outras formas históricas. A fórmulacroceana era inteiramente insuficiente, senão equi-vocada. A relação da política com a arte, a moral ea filosofia seria uma relação indeterminada de meraimplicação, como sugeria a “dialética dos distin-tos”? Gramsci rejeitava claramente essaindeterminação e afirmava que a arte, a moral e afilosofia “serviam” à política, podendo reduzir-sea um momento desta, mas afirmar o contrário seriaum equívoco. Desse modo, afirmava a “priorida-de do fato político-econômico, isto é, a ‘estrutu-ra’ como ponto de referência e de ‘causação’dialética, não mecânica das superestruturas”(Q 4, § 56, p. 503).

Estabelecer o nexo estrutura-superestrutura era,também, definir o conceito da política no âmbito

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da filosofia da práxis. Essa era, para o autor dosQuaderni, a primeira questão a resolver em umtratamento da obra de Maquiavel. A definição nãodizia respeito apenas ao lugar que uma filosofia dapolítica deveria ter no âmbito da filosofia da práxis.Se a política é práxis, então essa era uma questãofacilmente resolvida: a filosofia da práxis políticaera a própria filosofia da práxis.

A reflexão a respeito de Maquiavel, que a prin-cípio encontrava-se de modo esparso nosQuaderni, ganhou ritmo e intensidade no interiordo importante Quaderno 8, em um conjunto denotas escritas entre janeiro e abril de 1932 e de-pois reescritas, em sua maioria no Quaderno 13,entre maio de 1932 e os primeiros meses de 1934(cf. FRANCIONI, 1984, p. 142 e 144)13. A abor-dagem corrente dessas notas tende a destacar ametáfora do “moderno príncipe”, presente já no §1 do Quaderno 13, e o lugar do partido políticono processo de constituição de um novo Estado.De modo apropriado, Rita Medici chamou a aten-ção para a escassez de referências a essa temáticanos Quaderni (MEDICI, 2000, p. 162)14. Taltemática é, sem dúvida, de grande importância,mas ela não fornece um critério interno de unida-de da abordagem gramsciana de Maquiavel.

A questão que pode fornecer um critério deunidade era colocada por Gramsci, originalmenteno Quaderno 8: qual o lugar da atividade políticana filosofia da práxis? A própria impostação doproblema já marcava distância daquela assumidapor Croce na medida em que o marxista sardoindicava, já na pergunta que fazia, a unidade entrefilosofia e política (Q 8, § 61, p. 977)15. Apontan-do as diferenças existentes entre os dois intérpre-

tes, Frosini argumentou que, para o filósofonapolitano, a afirmação maquiaveliana da autono-mia da política era uma descoberta de valor filo-sófico, enquanto para Gramsci, essa dimensãofilosófica poderia ser afirmada porque implicavaum revolucionamento de toda a concepção domundo e uma reinterpretação também da moral eda filosofia. Assim, Gramsci “subverte a perspec-tiva croceana, na medida em que avista na própriapolítica a descoberta in nuce de uma inteira novafilosofia” (FROSINI, 2003, p. 164).

Croce, como já visto, fundamentava sua con-cepção da política a partir da distinção das diver-sas formas do espírito e a definia como um mo-mento da prática autônomo e independente dasdemais formas, ainda que relacionando-se comelas mediante o nexo circular dos distintos.Gramsci procurava desenvolver esse conceito emsentido contraposto àquele do filósofo napolitanoem uma passagem rica de significados: “Onde tudoé prática, em uma filosofia da práxis, a distinçãonão será entre momentos do Espírito absoluto,mas entre estrutura e superestrutura, tratar-se-áde fixar a posição dialética da atividade políticacomo distinção nas superestruturas, e se poderádizer que a atividade política é, justamente, o pri-meiro momento ou primeiro grau das superestru-turas, é o momento no qual todas as superestru-turas encontram-se ainda na fase imediata de meraafirmação voluntária, indistinta e elementar”(idem).

A partir dessa definição, torna-se compreensí-vel a identidade entre história e política, bem comoa afirmação de que “toda a vida é política”. Toda apráxis humana carrega em si uma dimensão polí-tica, muito embora essa dimensão não preenchatodo o seu conteúdo. Se a história é conflito, nãohá como negar que todo conflito é, também, emmaior ou menor medida, explícita ou implicita-mente, política. O conceito de distinção,reelaborado no âmbito da filosofia da práxis, per-mitia conceber todo o sistema de superestruturascomo “(sistema de) distinções políticas” (idem).

Tratava-se, então, para Gramsci, de retomaressa “autonomia” da política fundada porMaquiavel, procurando, a partir dessa definição,construir uma ciência da política como forma dafilosofia da práxis, que tivesse como método uma“objetividade realista”. A retomada do princípio da“verità effettuale della cosa”, com o qualMaquiavel pretendia abordar a política como ela é

13 Maquiavel foi citado em todos os cadernos anterioresao 8, com exceção do 7. Mas, neles, nunca dedicou mais doque três parágrafos ao florentino. No Quaderno 8, ao in-vés, é possível encontrar referências nos §§ 21, 37, 43, 44,48, 56, 58, 61, 78, 84, 86, 114, 132, 162 e 163.14 De fato, no Quaderno especial dedicado a Maquiavelsó há duas referências ao “príncipe moderno” (Q 13, § 1, p.1558 e § 21, p. 1601-1602).15 Depois de subsumir a interpretação gramsciana da “au-tonomia da política” na filosofia do espírito croceana,Finocchiaro acusa Gramsci de confundir atividade políticacom ciência política (cf. FINOCCHIARO, 2002, p. 124).Só faria sentido afirmar tal confusão se Gramsci tivesseaceitado a separação entre política e filosofia, coisa quesempre rejeitou.

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e não a sua imaginação e, desse modo, orientaruma prática política eficaz, assumia uma posiçãoestratégica nesse empreendimento16. Ao adotar aexpressão “realtà effettuale” (realidade efetiva) aoinvés daquela que originalmente aparecia emMaquiavel, Gramsci destacava de modo ainda maisintenso seu conteúdo objetivo e realista.

Era esse princípio cognoscitivo, partilhado tantopelo marxismo como por Maquiavel, o que per-mitia ao autor dos Quaderni considerar este últi-mo como uma prefiguração do marxismo (cf.LEFORT, 1986, p. 245). Ao recusar o projeto in-telectual de construir de modo idealizado um mo-delo de Estado e ao assumir como objeto a açãopolítica imediata, o secretário florentino estava,também, recusando todo traço de idealismometafísico. Seu pensamento político era, dessemodo, materialista e histórico. Segundo Gramsci,“[Maquiavel] em sua crítica do presente, expres-sou conceitos gerais que se apresentam de formaaforística e não-sistemática e uma concepção demundo original que se poderia, também essa, cha-mar de ‘filosofia da práxis’ ou ‘neo-humanismo’na media em que não reconhece elementostranscendentais ou imanentistas (em sentidometafísico), mas se baseia completamente sobrea ação concreta do homem que pela sua necessi-dade histórica opera e transforma a realidade” (Q5, § 127, p. 657).

A atribuição ao pensamento do secretárioflorentino de uma marca fortemente realista eraprópria da ciência política italiana do início do sé-culo XX e essencial no fenômeno do“maquiavelismo” ou do “retorno a Maquiavel” quecaracterizava a reflexão sobre a política no con-texto da Primeira Guerra Mundial (cf. MEDICI,1990, p. 14). O realismo de Maquiavel era, entre-tanto, problematizado nos Quaderni. A interpreta-ção do marxista sardo ia além da tradicional análi-se que via em Il Principe uma reflexão sobre apolítica como ela é e percebia, nesse texto, umareflexão articulada a respeito do ser e do dever serda política. Compreende-se, assim, a importânciaque Gramsci atribuía ao epílogo de Il Príncipe,no qual exortava-se a “tomar a Itália e libertá-lados bárbaros” (MACHIAVELLI, 1971, p. 296-

298): tratava-se de uma parte necessária, momentofundamental no qual todo o “dever ser”condensava-se em um chamado à ação políticaconcreta.

A afirmação da validade objetiva de Maquiavelnão implicava uma neutralidade perante os meiose os fins. Se o realismo tiver por objetivo a defini-ção dos meios eficazes para a obtenção de umdeterminado fim, é possível considerar que ele éuma técnica política. Mesmo a partir dessa defi-nição, o realismo não poderia ser identificado comum cinismo vulgar, uma vez que os meios nãoseriam justificados pelos fins e sim pela sua eficá-cia. A “verdade efetiva das coisas” encerraria, pois,um critério de causalidade eficiente. Os meiosválidos seriam apenas aqueles considerados ca-pazes de produzir os resultados desejados.

Como técnica política, o realismo não exclui-ria, a priori, nenhuma finalidade. Mas o realismoque é comum a Maquiavel e a Marx não diz res-peito a uma técnica e sim a um princípiocognoscitivo. Como tal, o realismo considera quea realidade empírica é o resultado da atividadehumana e, por essa razão, acessível ao conheci-mento. Tal realismo não exclui toda utopia, desdeque esta assuma um caráter concreto, sendo oresultado de uma análise paciente e rigorosa doreal. A condição de legitimidade histórica está nofato do dever ser estar inscrito previamente noser. O futuro deita raízes no presente e apenasnessa condição ele se torna um futuro “previsí-vel”.

Foi sobre esse ponto que Gramsci chamou aatenção em uma nota presente primeiramente noQuaderno 8 (§ 84) e, depois, transcrita para oQuaderno 13 (§ 16), acentuando o caráter super-ficial e mecânico de um realismo vulgar. A notacontestava a preferência que o líder reformistaPaolo Treves tinha pelo realismo moderado deFrancesco Guicciardini, em detrimento do realis-mo engajado de Maquiavel. Tal preferência erafortemente afim à moderação do intérprete, que,desse modo, justificava sua própria posição polí-tica. Em sua resposta, Gramsci distinguia o “di-plomata” (Guicciardini) do “político” e o “cientis-ta da política” do “político em ato”. O diplomata eo cientista da política poderiam ter como horizon-te uma realidade efetiva já constituída. MasMaquiavel não era um mero cientista e sim umhomem de partido, “um político em ato” e, comotal, tinha por objetivo “criar novas relações de for-

16 “Porém, sendo minha intenção escrever algo útil paraquem me ler, parece-me mais conveniente procurar a ver-dade efetiva das coisas [verità effettuale della cosa] do quea imaginação desta” (MACHIAVELLI, 1971, XV, p. 280).

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ças e por isso não pode deixar de ocupar-se dodever ser” (Q 13, § 16, p. 1577).

Ser e dever ser guardariam assim uma íntimarelação. O político em ato, tal como Maquiavel,deveria ser capaz de ler a realidade efetiva, a rela-ção de forças existentes e em contínuo movimen-to. Mas os objetivos dessa leitura não são a con-servação e a estabilização dessas forças, nem aacomodação a elas, como um realismo vulgar – ode Treves, por exemplo – poderia dar a entender.A posição do secretário florentino, segundoGramsci, avizinhava-se da filosofia da práxis namedida em que também ele procurou construirum “realismo popular” (Q 14, § 33, p. 1691). Paraesse realismo popular, a leitura da realidade efeti-va tem por objetivo encontrar, nessa realidade, aspossibilidades de transformação realmente efeti-vas. Não se trata, pois, de conservar, estabilizarou acomodar-se, trata-se de transformar o mun-do. O realismo popular é, assim, capaz de revelaruma realidade que é igual a si própria, mas quecontém, ao mesmo tempo, aquilo que lhe é dife-rente. É por essa razão que, segundo Gramsci,“Aplicar a vontade à criação de um novo equilí-brio das forças realmente existentes e operantes,fundando-se sobre aquela determinada força quese considera progressiva, e potencializando-a parafazê-la triunfar é, sempre, mover-se no terrenoda realidade efetiva, mas para dominá-la e superá-la (ou contribuir para tal). O ‘dever ser’ é, por-tanto, concreto, é a única interpretação realista ehistoricista da realidade, é a única história em atoe filosofia em ato, a única política” (Q 13, §16, p.1578).

Comparando o realismo de Maquiavel comaquele de Marx, Claude Lefort argumentou que aconhecida Tese 11 Ad Feuerbach – “Os filósofosapenas interpretaram [interpretiert] o mundo deforma diferente, o mundo de diversos modos, oque importa é mudá-lo [verändern]” (LABICA,1990, p. 25 e 35) – implicaria um chamado à ação,mas nada acrescentaria ao conhecimento da reali-dade (LEFORT, 1990, p. 188). A interpretação dofilósofo francês parece separar teoria e prática deuma maneira estranha a Marx e, principalmente,estranha à compreensão de Gramsci a respeito.Se a “realidade é práxis”, como indica o próprioLefort (idem), então o sentido da práxis dá senti-do à realidade que se quer conhecer, bem comofornece o ponto de vista a partir do qual é levadaa cabo essa prática cognoscente.

A pretensão de uma objetividade absoluta, en-cerrada na suposta autonomia do conhecimentoda realidade efetiva perante todo projeto de trans-formação dessa realidade, elimina do ato do co-nhecimento o sujeito deste. Entretanto, a realida-de efetiva pode ser conhecida apenas por um su-jeito real. Daí a ênfase de Gramsci na posiçãoocupada por Maquiavel. Para isso, o secretárioflorentino não poderia ser considerado apenas um“cientista da política”. Como “político em ato” eledeveria ser compreendido como o sujeito teóricoe prático de um projeto de transformação da rea-lidade.

O interesse que Gramsci manifestou nosQuaderni del carcere a respeito da obra deMaquiavel deve ser interpretado como constitutivode um desenvolvimento crítico e uma novaproblematização do tema da vontade (cf. MEDICI,2000, p. 66). O caráter fundamental de Il Principe,de Maquiavel, estava, para Gramsci, na fusão daciência política e da ideologia política na formadramática do “mito”, bem como na relação deunidade que se estabelece nessa obra entre umaracionalidade universalizada e uma “vontade cole-tiva” particularizada personificada na figura docondottiero. Assim, segundo o marxista sardo, “Oprocesso de formação de uma determinada von-tade coletiva, para um determinado fim político, érepresentado não por meio de investigações e clas-sificações pedantes de princípios e critérios de ummétodo de ação, mas como qualidades, traçoscaracterísticos, deveres, necessidades de umapessoa concreta, o que põe em movimento a fan-tasia artística de quem se quer convencer e dáuma forma mais concreta às paixões políticas”(Q 13, § 1, p. 1555).

Gramsci propunha, a respeito de Il Principe,uma chave de interpretação baseada no conceitosoreliano de mito, como uma criação da “fantasiaconcreta” que atuaria sobre um povo para des-pertar e organizar sua vontade coletiva com vis-tas à construção de um novo Estado (idem, p.1556). Daí, afirmava Gramsci, o caráter de “ma-nifesto político” da obra do secretário florentino17.Torna-se interessante a comparação entre o mitomaquiaveliano e aquele soreliano feita por Gramsci.

17 A analogia com o Manifesto Comunista é óbvia e épossível que o marxista sardo tivesse em mente aquelapassagem na qual Benedetto Croce afirmava ter sido Marxo “Maquiavel do proletariado” (CROCE, 1927, p. 112).

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Segundo Sorel, um mito permitiria representar aação imediata “sob a forma de imagens de bata-lhas que asseguram o triunfo de sua causa” (1930,p. 32). Esse conjunto de imagens permitiria “embloco e unicamente por meio da intuição” evocar“a massa de sentimentos que correspondem àsdiversas manifestações da guerra travada pelosocialismo contra a sociedade moderna” (idem,p. 173; cf. tb. p. 182). Como “construções de umfuturo indeterminado no tempo” (idem, p. 177),tais mitos teriam a capacidade de, ao mesmo tem-po, despertar a esperança e a mobilização neces-sária para sua realização. O escritor francês con-siderava que “a greve geral dos sindicalistas e arevolução catastrófica de Marx são mitos” (idem,p. 32). Mas afirmava claramente sua predileçãopelo mito dos sindicalistas: “As greves engendra-ram no proletariado os sentimentos mais nobres,profundos e motivadores que ele possui; a grevegeral agrupa todos esses sentimentos numa ima-gem de conjunto e, por sua aproximação, atribui acada um deles seu máximo de intensidade. Re-correndo a lembranças pungentes de conflitosparticulares, dá um colorido intenso a todos osdetalhes da composição apresentada à consciên-cia. Obtemos, assim, essa intuição do socialismoque a linguagem não podia oferecer de maneiraperfeitamente clara – e a obtemos num conjuntopercebido instantaneamente” (idem, p. 182).

Era esse estatuto que Sorel atribuía à grevegeral que motivava a crítica de Gramsci. Segun-do o marxista sardo, a realização máxima da práxispolítica na concepção de Sorel estava circunscri-ta a um momento econômico-corporativo, mo-mento “negativo e preliminar”, consubstanciadona greve geral na qual predominava o impulso ir-racional e “arbitrário”, a pura espontaneidade (Q13, § 1, p. 1556-1557). O mito soreliano teria umacapacidade de dissolver o existente, de negá-lo.Mas essa negação do presente não seria dialética.Ela não produziria uma nova síntese.

Faltava à concepção de Sorel um momento“construtivo”. Abandonada a vontade coletiva, asua “fase primitiva e elementar de sua mera for-mação”, esta logo se desagregaria em umamultiplicidade disforme de vontades particulares.Faltaria o elemento capaz de soldar essas vonta-des, transformando-as em força histórica criado-ra. O mito soreliano poderia, desse modo, esti-mular a destruição das “relações morais e jurídi-cas existentes”, mas era incapaz de ser um “pro-dutor de realidades”: “não pode existir destruição,

negação, sem uma implícita construção, afirma-ção, e não num sentido ‘metafísico’, mas pratica-mente, isto é, politicamente, como programa departido” (idem, p. 1557).

Detrás da espontaneidade do sindicalismo re-volucionário, não haveria senão um puromecanicismo, “um máximo de determinismo, portrás do idealismo um materialismo absoluto”, ouseja, vulgar (idem). Daí que o sindicalismo teóri-co e o anarquismo pudessem ser assemelhadosao liberalismo. Mas o liberalismo é um programateórico das classes dominantes, destinado a “mu-dar, quando triunfa, o pessoal dirigente de umEstado e o programa econômico do próprio Esta-do” (Q 13, § 18, p. 1590) e, portanto, é um pro-grama com vistas a preservar uma situação dedominação de classes imprimindo uma nova dire-ção e atualizando a organização estatal. Osindicalismo revolucionário, por sua vez, refere-se ao grupo social subalterno (a classe trabalha-dora) que, com essa teoria, “é impedido de tor-nar-se dominante, de desenvolver-se para além dafase econômico-corporativa, para elevar-se à fasede hegemonia ético-política na sociedade civil edominante no Estado” (idem, p. 1590).

Em Maquiavel, pelo contrário, a práxis políti-ca assumia um caráter positivo e construtivo,consubstanciado na fundação de um “novo Esta-do” e “novas estruturas nacionais e sociais” (idem,p. 1556 e 1558). O “mito” não seria, desse modo,o momento do irracional, mas a mediação parti-cular da própria práxis política que permitiria acriação de uma nova ordem. A constituição de umanova ordem e das dificuldades desse processo eratema recorrente em Maquiavel (cf. MEDICI, 2000,p. 141-142). Em Il Principe, afirmava o secretá-rio florentino que não havia coisa “mais difícil dese fazer, mais duvidosa de se alcançar ou maisperigosa de se manejar do que ser o introdutor deuma nova ordem” (MACHIAVELLI, 1971, p. 265).E, no mesmo sentido, nos Discorsi sulla primadeca di Tito Livio, escrevia que encontrar “méto-dos e ordens novas” era tão perigoso quanto adescoberta de mares e terras desconhecidas (idem,p. 76).

Para Gramsci, a construção de uma nova or-dem exigia esse caráter positivo e construtivo domito-príncipe, o que lhe permitia atribuir aMaquiavel um “jacobinismo precoce”, identifican-do nesse “jacobinismo” o “germe (mais ou me-nos fecundo) de sua concepção da revolução na-

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cional” (Q 13, § 1, p. 1560). Se Maquiavel eraprecocemente jacobino, os partidários deRobespierre eram, por sua vez, “‘encarnação ca-tegórica’ do Príncipe de Maquiavel”. Era, entre-tanto, a aversão ao jacobinismo que afastava Sorelda política e tornava sua concepção de “mito”abstrata18. Contrariamente, para o marxista sardo,os jacobinos eram expressão de um modernomaquiavelismo e um exemplo de “como se for-mou concretamente e atuou uma vontade coleti-va”, compreendendo essa vontade “em seu senti-do geral e mais moderno, a vontade como cons-ciência operosa da necessidade histórica, comoprotagonista de um drama histórico real e efeti-vo” (idem, p. 1559). Era esse o conteúdo dojacobinismo partilhado por Gramsci.

IV. CONCLUSÃO: UMA CIÊNCIA POLÍTICAITALIANA

A reflexão sobre a política ocupa um lugar cen-tral na obra de Gramsci. Isso não causa estranhe-za. Militante político e participante ativo dos gran-des acontecimentos da história italiana no final dosanos 1910 e da década seguinte, o marxista sardodesenvolveu na prisão temas que foram em grandeparte motivados por essa experiência. Mas o lugarocupado pela ciência política em Gramsci, sim, ésurpreendente. São muito conhecidas as críticasque dirigiu à tentativa de Nicolai Bukharin de trans-formar o marxismo em uma sociologia. Essas nãodeixavam de ser críticas à própria sociologia comomodalidade de prática científica. Por que razãoGramsci rejeitava a tentativa de fazer um “manualde sociologia”, mas pretendia produzir uma “expo-sição elementar de ciência política, compreendidacomo um conjunto de cânones práticos de pesqui-sa” (Q 8, § 16, p. 964)?

As raízes do projeto gramsciano de pesquisa arespeito da “ciência política” devem ser procura-das no desenvolvimento de uma longa tradição queremonta a Maquiavel e que deita raízes na confor-mação da ciência política na Itália. A afirmação

corrente de que a ciência política italiana tem iní-cio com a publicação dos Elementi di scienzapolitica, de Gaetano Mosca, em 1898 (cf.BOBBIO, 2002, p. 285), não oculta o fato de queMosca é expressão de uma tradição maquiavelianafortemente arraigada na cultura de seu país. Omesmo poderia ser dito a respeito de VilfredoPareto. O próprio Gramsci aponta para a impor-tância que teve o maquiavelismo e oantimaquiavelismo para o desenvolvimento da ci-ência política na Itália e o impacto da proposiçãode Croce sobre a “autonomia do momento políti-co-econômico” nascida no âmbito de uma inves-tigação sobre o secretário florentino (Q 10/II, §41, p. 1315).

O desenvolvimento do maquiavelismo e doantimaquiavelismo na tradição italiana não foi, cer-tamente, linear e o processo de constituição deuma ciência política na península esteve marcadopor essa trajetória. Croce, já foi visto, subestima-va a contribuição de Maquiavel à “arte” da políti-ca. E o próprio Mosca recusava a idéia de queMaquiavel tivesse “sido o fundador de uma ver-dadeira ciência política”, uma vez que teriam fal-tado ao florentino os conhecimentos que apenaso desenvolvimento da crítica histórica teria per-mitido (MOSCA & BOUTHOUL, 1958, p. 115).Mas se Maquiavel não poderia, segundo o autordos Elementi di scienza politica, ser reconhecidocomo o fundador da ciência política, ele não dei-xava de ter méritos, uma vez que foi capaz de ver“que em todas as sociedades humanas existemtendências políticas constantes e que estas po-dem ser encontradas estudando-se a história dosdiferentes povos” (idem, p. 116). Estabelecer asregularidades históricas por meio da análise histó-rica comparada era o projeto teórico do próprioMosca em seus Elementi.

O foco desse projeto de uma ciência políticano final do século XIX e no início do XX estavaposto na Itália não nas instituições, mas na açãopolítica e nos processos políticos. Mesmoquando a ciência política era definida comociência do Estado, parecendo aproximar-se daStaatswissenschaft alemã ou da Political Scienceestadunidense, tratava-se não apenas do Estadoenquanto instituição, mas, principalmente, do con-junto de atividades que têm por objetivo o Estado.Para Mosca, a “ciência política tem o dever nãode justificar este ou aquele Estado existente, masde explicar como os Estados nascem, organizam-

18 Gramsci partilhou essa aversão em sua juventude (cf.LOSURDO, 1997, p. 26). Rita Medici ressaltou que oantijacobinismo juvenil de Gramsci devia-se não apenas àinfluência de Croce e Gentile, ressaltada por Losurdo, mastambém à de Sorel (MEDICI, 2000, p. 70). No mesmosentido, ver Del Roio (2005, p. 37-39). Para um tratamen-to abrangente da evolução do pensamento de Gramsci arespeito do jacobinismo, ver Medici (2004).

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se e declinam” (BOBBIO, 2002, p. 197). O objetode pesquisa assumido pela ciência política italianaaproximava-se, desse modo, daquele explicitadopor Nicolau Maquiavel na conhecida carta aFrancesco Vettori, na qual apresentava sua obraIl Principe: “O que é um principado, de que espé-cie são, como são conquistados, como são man-tidos, e por que se perdem” (MACHIAVELLI,1971, p. 1160).

Era nessa perspectiva caracteristicamente ita-liana que Gramsci se colocava quando afirmava,a partir de uma concepção ampliada do Estado,que “ciência política significa ciência do Estado eEstado é todo o complexo de atividades práticas eteóricas com as quais a classe dirigente não ape-nas justifica e mantém seu domínio como tam-

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bém obtém o consenso ativo dos governados”(Q 15, § 10, p. 1765)19. A ciência política deGramsci era, desse modo, uma reconstrução crí-tica da ciência política italiana. Sua compreensãoexige, portanto, um retorno a suas fontes e aocontexto intelectual no qual essa reflexão foi pro-duzida. Ficaria claro, desse modo, por queGramsci não poderia ser reduzido a um “teóricoda cultura”, bem como o lugar central ocupadopela política em sua reflexão.

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19 A bibliografia sobre o conceito de Estado em Gramsci éenorme e não é aqui lugar para desenvolver o tema. Por essarazão, permito-me remeter a um ensaio de minha autoria noqual o tema e essa bibliografia são discutidos: Bianchi(2007a).

Álvaro Bianchi ([email protected]) é Professor do Departamento de Ciência Política da Universi-dade Estadual de Campinas (Unicamp), Diretor do Centro de Estudos Marxistas (Cemarx) e Secretáriode Redação da revista Outubro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CROCE, GRAMSCI AND THE “AUTONOMY OF POLITICS”

Álvaro Bianchi

Within the reflections that Gramsci developed in his Quaderni del carcere, the theme of the autonomyof the political occupies a key position. It was on the basis of these reflections that Gramsci carriedout his research regarding politics and the possibility of a Political Science. According to BenedettoCroce, Nicolas Machiavel can be credited as the first theorist to have asserted the autonomy ofpolitics. For Croce, it is this autonomy that makes it possible to establish a radical distinction betweenethics and politics and between “political philosophy” and the “empirical science of politics”. Gramscimakes critical use of Croce’s reflections as his point of departure in his reading of Machiavel.Recognition of the autonomy of the political implies that the the latter cannot be reduced to religionnor ethics. As fields of knowledge and as activities, Political Science and politics had their own rules,distinguishing themselves from other forms of knowledge and human activity. Yet for the Sardinian

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Marxist, “autonomy” was not meant to imply a radical separation between politics and morality.

KEYWORDS: Gramsci; Croce; the autonomy of politics.

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CROCE, GRAMSCI ET “L’AUTONOMIE DE LA POLITIQUE”

Álvaro Bianchi

Dans la réflexion que Gramsci présente dans les Quaderni del carcere, le thème de l’autonomie dela politique prend une place importante. C’est sur cette réflexion que Gramsci a mené sa rechercheconcernant la politique et la possibilitié d’une science politique. Selon Benedetto Croce, il revient àNicolas Machiavel le mérite d’avoir affirmé pour la première fois l’autonomie de la politique. PourCroce, cette autonomie permettait d’établir une distinction radicale entre éthique et politique et entre« philosophie de la politique » et « science empirique de la politique ». Gramsci a critiquement utiliséla réflexion de Croce, point de départ de sa lecture de Machiavel. La reconnaissance de l’autonomie

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de la politique impliquait que celle-ci ne saurait se réduire à la religion ou à l’éthique. En tant quedomaine de connaissance et en tant qu’activités, la Science Politique et la politique avaient leurspropres règles, ce qui les différenciaient d’autres formes de connaissance et d’activité humaine.Néanmoins cette « autonomie » ne signifiait pas pour le marxiste sarde une séparation radicale entrepolitique et morale. C’est pour cette raison que Gramsci trouvait chez Machiavel un précurseur de laphilosophie de la praxis à plein sens, c’est-à-dire le créateur d’une « science-action-révolutionaire ».

MOTS-CLÉS: Gramsci; Croce; autonomie de la politique.

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