Cartas a Uma Jovem Amiga - J Krishnamurti

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    CARTAS A UMA JOVEM

    AMIGAFELIZ O HOMEM QUE NADA

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    Entre 1948 e 1960, Krishnamurti era facilmente acessvel e muitas pessoas se encontraram com ele. Em passeios, em encontros privados, atravs de cartas, as relaes desabro

    charam. As cartas deste livro foram por ele escritas a uma jovem amiga que tinha chegado com sofrimento fsico e psicolgico. As cartas, escritas entre Junho de 1948 e Maro de 1960, revelam uma rara compaixo e clareza: o ensinamento e a cura iluminam; separao e distncia desaparecem; as palavras fluem; nem uma s palavra suprflua; a cura e o ensinamento so simultneos.

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    S1mentalmente flexvel. A fora no est em ser-se firmee forte mas em ser-se flexvel. A rvore, que flexvel,aguenta-se no meio da ventania. Rene em ti a fora queexiste na brisa ligeira.

    A vida estranha, tem tantas coisas a acontecerem inesperadamente, que a mera resistncia no resolver qualquer problema. Precisamos de infinita flexibilidade e de umcorao simples.

    A vida como o fio de uma lmina, e cada um tem de percorrer esse caminho com extremo cuidado e flexvelsabedoria.

    A vida to rica, tem tantos tesouros, mas chegamos a elacom os coraes vazios; no sabemos encher os nossos coraes com a abundncia da vida. Interiormente somos pobres e, quando as riquezas da vida nos so oferecidas,ns recusamo-las. O amor uma coisa perigosa, s eletraz a nica revoluo que proporciona felicidade. So

    poucos os que so capazes de amar, e to poucos os quequerem o amor. Amamos segundo as nossas prpriascondies, fazendo do amor uma coisa de mercado. Temos

    1 Na traduo para portugus do pronome inglsyou optmos pelautilizao do tratamento por tu, em detrimento dos pronomes voc(forma abrasileirada) e vs (demasiado formal tendo em conta aintensa amizade que unia os dois amigos).(NT)

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    mentalidade mercantil, mas o amor no comercializvelnem um negcio de troca. O amor um estado de ser, noqual todos os problemas humanos se resolvem. Vamos ao poo com um dedal e assim a vida torna-se uma coisa sem

    qualidade, insignificante e limitada.Que encantador lugar a Terra poderia ser, pois h tanta beleza, tanta magnificncia, tanta maravilha imperecvel.Andamos aprisionados na dor e no nos esforamos por sairdela, at mesmo quando algum nos aponta um caminho desada.

    No sei, mas o amor incendeia-me. uma chama inextinguvel. Tenho tanto disso, que quero d-lo a todos, e dou. como um grande rio, que alimenta e rega cada vila ealdeia; ele vai sendo poludo, desagua nele a porcaria do serhumano, mas depressa as guas se purificam a si prprias,e rapidamente segue em frente. Nada pode estragar o amor, pois todas as coisas se dissolvem nele - o bom e o mau, ofeio e o belo. O amor algo que a sua prpria eternidade.

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    Aquelas trs rvores eram majestosas e estranhamenteimperturbveis pelas estradas asfaltadas e pelo trnsito. Assuas razes estavam bem fundas na terra e as copas estendiam-se at aos cus. Ns temos as nossas razes na terra,temos e devemos ter, mas prendemo-nos s coisas ourastejamos pelo cho; s alguns poucos se elevam para oscus. So eles os nicos seres humanos felizes e criativos.Os demais corrompem-se, e, atravs da ofensa e da maledicncia, destroem-se uns aos outros neste mundo maravilhoso.

    Mantm a mente aberta. Vive no passado, se tiver de ser,mas no lutes contra esse passado; quando o passadochegar, olha para dentro dele, no o empurres para longenem te agarres demasiado a ele. A experincia de todosestes anos, a dor e a alegria, os momentos de sofrimento ea memria da separao, a sensao de distncia, tudo issotrar enriquecimento e beleza. O importante o que tens

    no corao; e, desde que isso esteja a transbordar, tu tenstudo, tu s tudo.Est atenta a todos os teus pensamentos e sentimentos,

    no permitas que um nico sentimento ou pensamento surjasem que te apercebas dele, e absorve todo o seu contedo.Absorver no a palavra adequada; trata-se, sim, de ver todo

    o contedo do pensamento-sentimento. como entrar numasala e ver, de uma s vez, tudo o que est nela, a sua

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    atmosfera e os seus espaos. Vermos e estarmos atentos aonossos pensamentos torna-nos intensamente sensveisflexveis e vigilantes. No condenes nem julgues, mas est

    bem atenta. Da separao e das escrias retira-se o ouro puroVer o que , muito difcil. Como se pode observar comclareza? Um rio quando encontra um obstculo no fica

    parado; ele quebra a barreira usando a sua fora, ou pass por cima dela, ou por baixo, ou vai volta; ele no ficquieto; ele s pode agir. O rio revolta-se, por assim dizer

    inteligentemente. Para percebermosaquilo que , tem dehaver o esprito da revolta inteligente. Para no sermos confundidos por um pedao de tronco, preciso termos umcerta inteligncia; mas geralmente estamos to vidos d possuir aquilo que desejamos, que vamos contra o obstculo; ou despedaamo-nos de encontro a ele ou ficamoexaustos lutando contra ele. Ver a corda como corda norequer coragem, mas tomar a corda por uma serpenteficando a olhar, requer coragem. Devemos duvidar, procurasempre, ver o falso como falso. Ganhamos fora para veclaramente atravs da intensidade da ateno; tu vais verisso vir. Para agir, cada um deve estar em estado denegao; a negao traz a sua prpria aco positiva. Pensque a questo reside em ver com clareza, porque a percepo gera a sua prpria aco. Quando h elasticidadeno se pe a questo do certo e do errado.

    Cada um de ns tem de estar muito lcido dentro de s

    mesmo. Nessa altura, asseguro-te, tudo dar certo. Tentestar lcida, e vers que as coisas se tornaro certas sem qutu faas o que quer que seja a respeito disso. O que estcerto no aquilo que desejamos.

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    Tem de haver uma revoluo total, no apenas nas grandes coisas, mas tambm nas pequenas coisas do dia-a-dia.Tu passaste por essa revoluo, no voltes atrs, mantm--te nela. Mantm-te a ferver, interiormente.

    II

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    Espero que tenhas tido uma boa noite, um agradvenascer do Sol atravs da tua janela e que te tenha sido possvel contemplar em paz as estrelas antes de teres ido para cama. Sabemos pouco do amor, da sua extraordinria

    ternura e poder. Muito facilmente usamos a palavra amoro militar usa-a, o carniceiro usa-a, o homem rico usa-aassim como o rapaz e a rapariga. Mas sabemos pouco damor, da sua vastido, da sua imortalidade, da sua profunddade. Amar ter conscincia da eternidade.

    O relacionamento uma coisa estranha; muito facilmentcamos na habituao a um relacionamento particular, ondas coisas so tomadas como garantidas, com a situao aceiteno se tolerando qualquer variao; no se consideranenhum movimento em direco incerteza, mesmo por umsegundo. Tudo de tal modo regulado, tornado seguro

    bem amarrado, que no h qualquer hiptese de frescura, dum respirar revivificador. A isto, e a muito mais, se chamrelacionamento. Se observarmos de muito perto, verificamoque o verdadeiro relacionamento muito mais subtil, mairpido do que o relmpago, mais vasto do que a Terra, poiele vida. A vida conflito. Queremos fazer do relaciona

    mento uma coisa grosseira, rgida, manipulvel. Deste modoele perde a sua fragrncia, a sua beleza. Isto surge porque namamos, e o amor certamente a maior das coisas, pois nelacontece o completo abandono de ns mesmos.

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    a qualidade da frescura, do novo, que essencial, casocontrrio, a vida torna-se uma rotina, um hbito; e o amorno um hbito, no uma coisa aborrecida. A maioria das pessoas perdeu todo o sentido de maravilhamento. Elastomam tudo como garantido, e esse sentido de seguranadestri a liberdade e o maravilhamento da incerteza.

    Projectamos um longnquo futuro, bem longe do presente.Contudo, a ateno para compreender est sempre no

    presente. Na ateno h sempre um sentido de agora.Sermos claros nas nossas prprias intenes uma tarefardua; a inteno como uma chama impelindo-nos semcessar na direco da compreenso. S clara nas tuasintenes e acabars porver, as coisas acabaro por darcerto. Sermos lcidos no presente tudo o que precisamos,mas no to fcil como parece. Cada um tem de limpar ocampo para deitar a semente e, uma vez plantada, a sua prpria vitalidade e fora geraro o fruto. Exteriormente, a beleza no perdura; ela sempre desfigurada se no houveralegria interior. Cultivamos o que exterior, dando poucaateno quilo que est no interior da pele; mas o que estdentro que predomina sempre sobre o exterior. A ma destruda pela lagarta que tem dentro.

    preciso grande inteligncia para um homem e umamulher se esquecerem de si mesmos, para poderem viver

    juntos, no se rendendo um ao outro ou no sendo

    dominados um pelo outro. O relacionamento a coisa maisdifcil da vida.

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    sf

    estranho o modo como somos afectados por certoambientes; precisamos de uma dinmica amigvel, de usentido de calorosa ateno, no qual possamos natural livremente florescer. Mas poucos seres humanos usufruedessa atmosfera; por isso, muitos ficam atrofiados, fsica

    psicologicamente. Estou muito surpreendido por haversobrevivido sem teres sido corrompida por esse determnado ambiente. Consigo ver a razo por que no foste totamente destruda, marcada e massacrada: exteriormente, ajustaste-te to rapidamente quanto possvel; interiormentoptaste por permanecer adormecida. Foi essa insens

    bilidade interior que te salvou. Se tivesses continuado a ssensvel, interiormente desperta, no terias aguentado o qaconteceu; teria havido conflito e terias sucumbido, terificado marcada.

    Mas agora, estando desperta interiormente, lcida, nests em conflito com o que te rodeia. o conflito que lev destruio. Irs permanecer sempre sem cicatrizes se, intriormente, estiveres muito atenta, desperta e se te ajustarcom sensibilidade s coisas externas.

    Os substitutos depressa definham. Pode ser-se mundanmesmo possuindo poucas coisas. mundano o desejo d poder sob qualquer forma, seja o poder do asceta, do grandfinanceiro, do poltico ou do papa. A nsia de podecontribui para a desumanidade e enfatiza a importncia d

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    eu; a agressividade do ego a essncia daquilo que mundano. Humildade simplicidade, mas cultivar ahumildade outra forma de se ser mundano.

    Muito poucos esto cientes das suas mudanas interiores,recuos, conflitos e distores. Mas mesmo quando estoconscientes desses aspectos, eles tentam afast-los ou fugirdeles. No faas isso. Penso que no o fars, mas existe o

    perigo de viveres de muito perto com os teus pensamentose sentimentos. Temos de estar conscientes dos nossos pensamentos e sentimentos, sem ansiedade, sem presso.A verdadeira revoluo aconteceu na tua vida; devers estarmuito atenta aos teus pensamentos e sentimentos - deixa--os vir ao de cima, no os analises, no os impeas. Permite

    que eles surjam, aqueles que so suaves e os que soviolentos, mas est consciente deles.

    Ser que ests ocupada com o que so os teus desejos, se que tens alguns? O mundo um lugar bom, mas fazemostudo para fugir dele atravs da adorao, das rezas, dosnossos amores e medos. No sabemos se somos ricos ou pobres, nunca investigmos fundo em ns mesmos nemdescobrimosaquilo que . Existimos superfcie, satisfeitoscom muito pouco, e ficamos felizes por essas pequenascoisas. As nossas mentes medocres tm problemas esolues insignificantes, e assim passamos os nossos dias.

    No amamos e, quando o fazemos, sempre com medo,frustrao, mgoa e ansiedade.Estava pensando em como importante ser-se inocente,

    ter uma mente inocente. As experincias so inevitveis,talvez necessrias; a vida uma srie de experincias, masa mente no precisa de ser carregada com as suas exigncias

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    acumuladas. Ela pode apagar cada experincia e manter-assim, inocente - sem carga. Isto importante, de outmodo a mente nunca poder ficar fresca, alerta e flexvO como manter a mente flexvel no a questo; o com a busca de um mtodo, e o mtodo no pode nunca torna mente inocente; pode torn-la metdica, mas nuninocente, criativa.

    Comeou a chover ontem tarde, e durante a noichoveu torrencialmente. Nunca ouvi nada assim. Era comse os cus se tivessem aberto. Havia um silncio extraornrio ao mesmo tempo, o silncio de uma fora, uma granfora derramando-se sobre a terra.

    sempre difcil mantermo-nos simples e claros. O munadora o sucesso, quanto mais melhor; quanto maior

    audincia, maior o orador; os edifcios gigantes, os carros avies e as pessoas. Perdeu-se a simplicidade. As pessode sucesso no so aquelas que esto a construir um munnovo. Ser um autntico revolucionrio requer um a complmudana de corao e de mente, e so poucos os que querem libertar. Cortamos s as razes superficiais; mas pa

    cortar as razes profundas da mediocridade, do sucess precisamos de algo que seja mais do que palavras, mtodcompulses. Parece haver poucos desses revolucionriomas eles so os verdadeiros construtores - os restanttrabalham em vo.

    Estamos constantemente a comparar-nos uns com ooutros, com algum que teve mais sorte, o que somos coaquilo que deveramos ser. A comparao, de facto, matA comparao degradante, ela perverte a nossa observo. E no seio da comparao que somos criados. Toda

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    nossa educao se baseia na comparao, assim como anossa cultura. Portanto, existe uma constante luta para ser

    mos uma coisa diferente daquilo que realmente somos.A compreenso do que somos liberta a criatividade, mas acomparao alimenta a competitividade, a crueldade, a am

    bio e, pensamos ns, isso gera progresso. O progresso snos levou at agora a guerras cruis e infelicidade como jamais o mundo conheceu. A verdadeira educao educaras crianas sem comparao.

    estranho estar a escrever o que parece ser to desnecessrio. Aquilo que importa est aqui, e tu ests a. As coisasverdadeiras so sempre parecidas, portanto no necessrioescrever ou falar acerca delas; e, no prprio acto de escreverou falar, algo aparece para perverter, para estragar. H tantascoisas que so ditas margem do que verdadeiro. O anseio

    por realizao pessoal consome muitas pessoas, em pequenae em grande escala. Essa pressa pode ser satisfeita de vriosmodos e, com a satisfao, as coisas profundas apagam-se. o que acontece na maior parte dos casos, no ? A rea

    lizao do desejo algo de muito pequeno, apesar de seragradvel; mas essa realizao, continuando a satisfazer-sea si mesma, leva a que a rotina e o tdio se instalem, e aquiloque realmente importa desvanece-se. Aquilo que verdadeiro que tem de permanecer, com a sua beleza isto seno houver a ideia de preenchimento, mas sim a viso das

    coisas como elas de facto so.Muito raramente estamos sozinhos; estamos sempre com

    pessoas, com pensamentos a encher-nos, com desejos quenunca se realizaram ou que pensamos viro a concretizar-se, com recordaes. Estar s essencial para que o homem

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    no seja influenciado, para que algo no contaminado tenhlugar. Parece que no temos tempo para essa solitude, po

    que h tantas coisas para fazer, tantas responsabilidade uma necessidade aprender a estar tranquilo, fechando-nonuma sala, dando descanso mente. O amor faz parte dessolitude. Ser-se simples, claro, com paz interior, teressa chama.

    As coisas podem no ser fceis, mas quanto mais se exigda vida, mais esta se torna assustadora e dolorosa. No fcil vivermos com simplicidade, sem influncias, semalteraes de estado de esprito, sem exigncias enquanttudo e todos nos tentam influenciar; numa existncia se paz profunda todas as coisas so fteis.

    Que claro est o cu azul, to vasto, intemporal e sem e pao. A distncia e o espao so coisas da mente; oaqui e oali so factos, mas eles tornam-se factores psicolgicos stocados pela fora do desejo. A mente um fenmenestranho; to estranho e, contudo, to essencialmente sim

    ples. Ela torna-se complexa devido s inmeras compuls

    psicolgicas. isso que causa conflito, dor, resistncia e lev posse de coisas. muito difcil estar consciente dissodeixando-o passar e no ficar enredado. A vida um grandrio que corre com fluidez. A mente aprisiona na sua rede coisas do rio, descartando ou retendo. No devia havenenhuma rede. A rede pertence ao tempo e ao espao, e

    ela que gera psicologicamente o aqui e o ali, a felicidade einfelicidade.O orgulho uma coisa estranha; o orgulho em pequena

    e grandes coisas; o orgulho nas nossas posses, nas nossarealizaes, nas nossas virtudes; o orgulho da raa, do nom

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    c da famlia; o orgulho na capacidade, nas aparncias, nosconhecimentos. Estas coisas alimentam o orgulho, ou entofugimos para a humildade. O oposto de orgulho no humildade - ainda orgulho, s que chamado de humildade; pensar que se humilde uma forma de orgulho.Amente tem de ser sempre alguma coisa. Ela esfora-se porser isto ou aquilo, no consegue estar no estado de sernada. Se o sernada for visto como um a nova experincia, ela tem

    que ter essa experincia; a tentativa de estar quieta passa aser tambm outra aquisio. A mente tem de ir alm de todoe qualquer esforo, s ento...

    Os dias das pessoas so to vazios, preenchidos comactividades de toda a espcie, negcios, especulao, medi-lao, mgoa e alegria. Mas, apesar de tudo isso, as nossas

    existncias permanecem vazias. Retire-se ao homem o seu poder, a sua posio ou o seu dinheiro, como fica ele? Exteriormente, ele mostra tudo isso, mas, interiormente, mesquinho, vazio. No se pode ter as duas riquezas, a interior e a exterior. A plenitude interior de longe mais importante do que a exterior. Podem roubar-nos a riqueza exterior;c ausas exteriores podem deitar por terra aquilo que diligentemente fomos construindo; mas as riquezas interiores soincorruptveis, nada pode atingi-las, porque no foram formadas pela mente.

    O desejo de preenchimento pessoal muito forte nas

    pessoas, e elas perseguem-no a qualquer custo. Esse preenchimento, sob qualquer forma e em qualquer direco,sustenta as pessoas; se o preenchimento falha numa certadireco, elas viram-se para outra direco. Mas ser que hmesmo essa coisa do preenchimento? O preenchimento

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    psicolgico pode trazer alguma satisfao, mas depressa desvanece, e de novo voltamos caa. Todo o problema d

    preenchimento cessa quando h compreenso do desejoO desejo o esforo para ser, para vir a ser. Com o fido vir a ser, a luta pelo preenchimento desaparece.

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    As montanhas devem estar mergulhadas em solitude.I . uma coisa deliciosa a chuva caindo nas montanhas, e asgotas batendo na superfcie de um lago tranquilo. O cheiroda terra molhada espalha-se no ar quando chove, ao mesmo(empo que se ouve o coaxar de muitas rs. H um estranho encanto nos trpicos quando chove. Tudo fica lavado;a poeira das folhas levada pelas guas; os rios voltam a tervida e ouve-se o som das guas que correm. As rvoresdeitam novos rebentos, nascem novas ervas onde antes eraterra nua; surgem do nada milhares de insectos e a terraressequida alimentada, parecendo satisfeita e em paz.() Sol parece perder a sua qualidade penetrante, a terra tor-na-se verde, transformando-se num lugar de beleza e deriqueza. O homem, esse, continua gerando a sua prpriainfelicidade, mas a terra, mais uma vez, apresenta-se rica e

    h maravilhamento no ar. estanho como a maior parte das pessoas espera reconhecimento e elogios - ser reconhecido como um grande poeta, como um filsofo; desejam algo que incendeie o seuego. Isso d grande satisfao mas tem muito poucosignificado. O reconhecimento social alimenta a nossavaidade e talvez o nosso bolso. Ele afasta-nos de tudo oresto, e essa separao cria os seus prprios problemas, comestes sempre em ritmo crescente. Embora possa darsatisfao, o reconhecimento no um fim em si mesmo.

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    A maioria das pessoas apanhada pela nsia de ser reconhcida, de se realizar, de alcanar. E o fracasso entinevitvel, o qual vem acompanhado pela infelicidade. Estmos libertos do sucesso e do fracasso que importanLogo desde o princpio, no procurar o sucesso, o resultaddevemos fazer aquilo que amamos, e o amor no te

    prmio nem punio. Tudo isto se torna de facto uma cosimples se houver amor.

    Prestamos pouca ateno s coisas que nos dizerespeito, no as observamos, no as consideramos. Sommuito egocntricos, muito ocupados com as nossa preocupaes, com os nossos prprios benefcios; no temtempo para observar e compreender. Esta ocupao tornamente embotada, esgotada, frustrada e sofredora, e qu

    remos fugir desse sofrimento. Enquanto o eu estivactivo, tem de haver embotamento e frustrao. As pessoso apanhadas num a corrida louca, na agonia do sofrimenegocntrico. Este sofrimento resultado de uma profunfalta de ateno. As pessoas srias, cuidadosas e atentesto libertas do pensamento.

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    Como um rio encantador! Um pas sem um rio largo,abundante e fluente no verdadeiramente um pas. Estarsentado na margem de um rio, vendo as guas que passam, reparar nas suaves ondulaes, ouvir o som dasondas que batem nas margens; ver o vento formando padres nas guas, ver as andorinhas tocando a gua,apanhando insectos, ouvir ao longe, na outra margem,vozes humanas ou um menino tocando flauta, num anoitecer tranquilo - tudo isso aquieta todo o rudo que est

    dentro de uma pessoa. De algum modo, as guas parecem purificar-nos, lim par-nos da poeira dasmemrias do ontem e dar mente essa qualidade da sua prpria pureza, j que a gua, em si prpria, pura. Um rio recebeiu do - o esgoto, os cadveres, a porcaria das cidades poronde passa e, no entanto, ele limpa-se a si mesmo em poucos quilmetros.

    O rio recebe tudo e permanece ele prprio, no seimportando ou diferenciando o puro do impuro. S asrepresas, as pequenas poas de gua, so rapidamentecontaminadas, porque no esto vivas, no correm como oslargos rios, docemente fragrantes e fluentes. As nossasmentes so pequenas poas de gua, que depressa ficamImpuras. a pequena poa, chamada mente, que julga,analisa, contudo, permanece sempre a minscula poa daresponsabilidade.

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    O pensamento tem uma raiz ou razes, o pensamento ,ele mesmo, a raiz. Tem de haver reaco, de outra maneira

    h morte; mas ver que essa reaco no pode estender asua raiz para dentro do presente ou do futuro, esse o problema. O pensam ento tem tendncia a surgir, mastemos de estar atentos a ele, e essencial acabar com eleimediatamente. Pensar sobre o pensamento, examin-lo,

    jogar com ele, ampli-lo, dar-lhe raiz. muito impor

    tante compreender isto. Ver como a mente pensa acercado pensamento reagir ao facto. A reaco tristeza e tudoo mais. O sentir-se triste, pensar na recompensa futura,contando os dias, dar raiz ao pensamento a respeito dofacto. Portanto, a mente cria razes, e depois, se quisermosarrancar essas razes, isso torna-se um outro problema, umaoutra ideia. Pensar sobre o futuro ter razes no solo daincerteza.

    Estar realmente s, sem as memrias e problemas doontem, mas estar s e feliz, estar s, sem qualquercompulso interior ou exterior, permitir que a mente noseja tocada. Estar s. Ter a qualidade de amor de umarvore, protectora e s. Estamos a perder a relao com as rvores e, assim, estamos a perder o amor pelos seres humanos. Quando no amamos a natureza, no somos capazesde amar os humanos. Os nossos deuses tornaram-se pequenos e mesquinhos; foi isso que tambm aconteceu ao

    nosso amor. Estamos mergulhados em mediocridade, masexistem as rvores, o cu aberto e as inesgotveis riquezasda terra.

    Tens de possuir uma mente lcida, liberta de amarras; isso essencial, no podemos ter uma mente lcida, penetrante

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    se houver qualquer espcie de medo. O medo prende amente. Se a mente no enfrenta os problemas que elamesma cria, no se torna clara, profunda. Enfrentar as suas prprias peculiaridades, estar ciente dos seus impulsos, profundamente, interiormente, possuir uma mente subtil,e no uma mera mente perspicaz. A mente subtil lenta, hesitante; no uma mente que tira concluses, que julga,que elabora. Essa subtileza essencial. Ela deve saberescutar e esperar, e brincar com o que profundo. Essaqualidade da mente no para se atingir no final; ela deveestar presente logo desde o incio. Tu podes t-la, d-lheuma profunda e completa oportunidade de florescer.

    Entrar no desconhecido, no tomar nada por garantido,

    no se identificar com nada, estar livre para descobrir, sento pode existir profundidade e compreenso. De outromodo permanecemos superfcie. O que importante no comprovar ou no comprovar alguma coisa, mas simencontrar a verdade.

    Toda a ideia de mudana, ou a verdade da mudana, encontrada quando h apenaso que . O que no diferente do pensador. O pensador o que , ele no estseparado deo que .

    No possvel estar-se em paz se houver qualquer espciede querer, de esperana por um determinado estado futuro.H sofrimento se houver desejo, a vida est geralmentecheia de desejo; at mesmo possuir-se aquilo que se querconduz infelicidade sem fim. Para que a mente se libertedaquilo que quer, e para se saber que um desejo precisa deateno, isso algo trabalhoso. Quando o descobrires, nodeixes que isso se torne um problema. Prolongar o problema

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    permitir que ele se enraze. No deixes que ele crie razesO desejar a nica dor. Ele escurece a vida, gera frustrao e sofrimento. Est atenta, e s simples em relao a tudisso.

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    Uma ribeira atravessa esta propriedade. As guas no passam tranquilas em direco ao grande rio; um acorrente barulhenta e animada. Toda a paisagem em volta composta de colinas; a gua passa por muitas cascatas enum certo lugar existem trs delas, todas com alturasdiferentes. A cascata mais alta faz o som mais sonoro, asoutras duas no se ouvem tanto, soam em tom menor.Iodas as trs quedas d'gua esto espaadas irregularmente,e assim existe um som em contnuo movimento. Temos de

    escutar com ateno, para podermos ouvir a msica. comouma orquestra soando por entre os pomares, a cu aberto,e a msica est l. Temos de procur-la, temos de escutar,temos de estar com as guas que correm, para ouvirmos asua msica. Temos de ser um todo, para ouvirmos essamsica - um todo com os cus, a terra, as rvores altas, os

    campos verdes, as guas sussurrantes, e s ento ouviremosa msica. Compramos um bilhete, sentamo-nos numa salarodeados de gente, a orquestra toca ou algum canta, mastudo isso d muito trabalho. Eles trabalham todos para ns;algum compe um a cano, uma msica, outra pessoa tocaou canta, e ns pagamos para ouvir. Tudo na vida, exceptoalgumas poucas coisas, em segunda, terceira ou quartamo - os deuses, os poemas, a poltica, a msica. Dessemodo, a nossa vida vazia. Estando vazios, tentamos preencher-nos - com msica, com deuses, com amor, com

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    formas de escape, e esse mesmo preencher esvaziamentoA beleza no pode ser comprada. Apenas poucos querem a beleza e a bondade, e o homem satisfaz-se com coisas emsegunda mo. Atirar tudo isso fora a nica e verdadeirarevoluo; s ento acontece a criatividade da Realidade

    estranho como o homem insiste na continuidade detodas as coisas, nas relaes, nas tradies, na religio, naarte. No h quebra, para dar lugar a um novo comeo. Seno tivssemos um livro, um lder, algum para copiarmos para seguirmos como exemplo, se estivssemos completamente ss, afastados de todo o conhecimento, teramos decomear do incio. Claro que este completo desnudamentode si mesmo tem de ser global e inteiramente espontneo e

    voluntrio, de outro modo fica-se louco ou cai-se numaqualquer espcie de neurose. Como apenas poucos parecemser capazes dessa completa solitude, o mundo continua emfrente com a tradio - na arte, na msica, na poltica, nodeuses -, o que alimenta constantemente a infelicidade. Isto o que est a acontecer no mundo actualmente. No h

    nada que seja realmente novo, existe apenas oposio econtra-oposio - na religio continua a velha frmula domedo e do dogma; nas artes h o esforo para encontrar algnovo. Mas a mente no nova, sempre velha, enredada ntradio, no medo, nos conhecimentos, nas experinciasesforando-se por encontrar o novo. a prpria mente quedeve desnudar-se a si mesma, totalmente, para que aconteo novo. Esta a verdadeira revoluo.

    O vento sopra do Sul, vem-se nuvens escuras e caichuva; tudo nasce, desabrocha e se renova.

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    Um agricultor daqui tinha um bonito coelho, vivo esaltitante. A sua mulher levou o coelho at junto dele e umadas mulheres disse: No sou capaz de olhar, e o homemmatou-o; uns minutos mais tarde aquilo que antes estavavivo, com luz nos seus olhos, comeou a ser esfolado pelasmulheres. Por aqui esto habituados a matar animais, comoem qualquer outra parte do mundo, e a religio no os probe de matar. Na ndia, onde durante sculos as crianastm sido ensinadas, pelo menos entre os brmanes, a nomatar e que cruel matar, h muitas delas que, quando

    chegam a adultas, so foradas pelas circunstncias amudarem a sua cultura de um dia para o outro. Comemcarne, tornam-se oficiais do exrcito prontos a matar ou aserem mortos. De um momento para o outro, os seusvalores mudam. Sculos e sculos de um determinado padro cultural so atirados fora, e um novo padro

    adoptado. O desejo de estar seguro, de uma forma ou deoutra, to dominante que a mente se ajusta a qualquer padro que possa dar-lhe segurana e proteco. Mas noh segurana; e quando realmente compreendemos issoh algo totalmente diferente, que cria o seu prprio caminho de vida. Essa vida no pode ser analisada ou copiada;tudo o que podemos fazer compreender e estar atentos aos modos de segurana, e isso traz a sua prpriasegurana.

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    A Terra bela, e quanto mais conscientes estamos dissomais bela ela se torna. A cor, a variedade de verdes, os

    amarelos. fascinante o que podemos descobrir quandoficamos a ss com a Terra. No so apenas os insectos, o pssaros, a erva, as vrias flores, as pedras, as cores e arvores, mas tambm os pensamentos, se ns os amamos Nunca estamos a ss com alguma coisa, a ss com nmesmos ou com a Terra. fcil estarmos a ss com umdesejo, no lhe resistir pela aco da vontade, no o deixafugir atravs de uma aco, no permitir a sua concretizao, no criar o seu oposto atravs da justificao ou dcondenao; estar realmente a ss com esse desejo. Isto gerum estado muito estranho, sem qualquer aco da vontade

    a vontade que cria resistncia e conflito. Estarmos a scom um desejo provoca uma transformao no prpriodesejo. Brinca com isso, e descobre o que acontece; noforces nada, tem em considerao tudo isso, serenamente

    Educao? O que queremos dizer com isso? Aprendemoa ler e a escrever, a adquirir uma tcnica necessria para

    ganhar a vida, e depois somos largados no mundo. Desde infncia que nos dito o que fazer, o que pensar, e interiormente estamos profundamente condicionados pelas influncias sociais e do meio ambiente.

    Estava aqui a pensar, ser que podemos educar o homem por fora e deixar o centro livre? Ser que podemos ajudar homem a ser livre interiormente, a ser sempre livre? Pois snessa liberdade ele poder ser criativo e, portanto, feliz. Cascontrrio, a sua existncia torna-se uma coisa tortuosa, um batalha tanto interior como exterior. Mas para sermos livreinteriormente preciso um cuidado e uma sabedoria

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    extraordinrios; e poucos vem a importncia disso. Preo-cupamo-nos com o exterior eno com a criatividade. Para

    mudar tudo isso tm de existir pelo menos alguns sereshumanos que compreendam a necessidade dessa mudana,tendo eles prprios, no seu interior, gerado essa liberdade. um mundo estranho.

    O que importante uma mudana radical no inconsciente. Qualquer aco consciente da vontade no podetocar o inconsciente. Como o querer consciente no pode atingir as buscas, os pedidos, os desejos do inconsciente, amente consciente tem de permanecer tranquila, quieta, notentando forar o inconsciente de acordo com qualquer padro particular de aco. O inconsciente tem o seu prprio padro de aco, a sua prpria estrutura, dentro daqual ele funciona. Essa estrutura no pode ser quebrada porqualquer aco exterior, e a vontade um acto exterior. Seisto for verdadeiramente visto e compreendido, a menteexterna fica serena; e porque no h qualquer resistnciamontada pelo querer veremos que o chamado inconsciente

    comea a libertar-se a si mesmo das suas prprias limitaes. S ento haver uma transformao radical na totalidade do ser humano.

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    A dignidade algo muito raro. Um cargo ou uma posiode respeito d dignidade. como vestir um casaco.O casaco, aquilo que se veste, d dignidade. Um ttulo ouuma posio do dignidade. Mas se aos homens foremretiradas essas coisas, muito poucos ficaro com aquela

    qualidade de dignidade que vem com a liberdade interiorde se ser nada. O homem anseia ser algo, e esse algoconfere-lhe uma posio na sociedade, posio que estarespeita. O homem coloca-se geralmente dentro de categorias - ser-se astuto, rico, santo, mdico; mas, se ele nose colocar dentro de uma categoria que a sociedade

    reconhea, tido por uma pessoa esquisita. A dignidadeno pode ser possuda nem cultivada, e estarmos convencidos de que somos respeitados estarmos centrados emns mesmos, o que algo insignificante, pequeno. Ser-senada estar-se livre dessa ideia.Ser - no dentro de umqualquer estado particular - a verdadeira dignidade. Estano pode ser afugentada, est sempre l.

    Permitir o livre fluxo da vida, sem deixar sobrar nenhumresduo, verdadeira ateno. A mente humana comouma peneira, que segura algumas coisas e deixa passaroutras. O que ela segura do tamanho dos seus prprios

    desejos; e os desejos, mesmo que profundos, vastos,nobres, so afinal pequenos, medocres, pois o desejo uma coisa da mente. No reter, mas ter a liberdade de deixar

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    a vida fluir sem impedimentos, sem escolha, atenocompleta. Estamos sempre a escolher, ou a segurar,escolhendo as coisas que pensamos ter significado econtinuamente nos prendemos a elas. Chamamos a issoexperincia, e multiplicao das experincias chamamosriqueza da vida. A verdadeira riqueza da vida libertarmo--nos da acumulao de experincias. A experincia que

    perm anece, que retida, impede o estado no qual oconhecido no existe. O conhecido no o tesouro, masa mente apega-se a ele e, assim, destri ou corrompe odesconhecido.

    A vida uma coisa estranha. Feliz o homem que nada.

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    Somos, a maioria de ns, criaturas inconstantes, dehumores opostos. Poucos so os que escapam a isso. Paralguns, a causa fsica, para outros, uma condiomental. Gostamos da instabilidade emocional, pensamo

    que o movimento dos estados de esprito faz parte daexistncia; mudamos facilmente de um estado para outroMas h poucos seres que no sejam apanhados nesse movimento, que estejam libertos da luta para vir a ser; neleh uma estabilidade interior no gerada pela vontade, umfirmeza que no cultivada, que no tem a ver com um

    interesse pessoal nem produto de nenhuma dessas actividades. Essa liberdade acontece quando a aco da vontadcessa.

    O dinheiro destri as pessoas. H um a arrogncia prpridos ricos. Com poucas excepes, em todos os pases oricos mostram essa peculiar imagem de se sentirem com poder para alterar o que quer que seja, at os deuses, podemat comprar os seus deuses. Riquezas no so apenas amateriais mas tambm as que vm da possibilidade de sfazerem coisas. Essa possibilidade d ao homem um falssentido de liberdade. Ele sente que est acima dos outrohomens, que diferente. Tudo isso lhe transmite um sentidde superioridade; ele distancia-se e olha de longe o mal-estar dos outros; ele no se apercebe da sua prpriaignorncia, da escurido da sua prpria mente. Dinheiro

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    possibilidade oferecem um ptimo escape para se fugirdessa escurido. Afinal, a fuga uma forma de resistncia,que alimenta os seus prprios problemas. A vida umacoisa estranha. Feliz o homem que nada.

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    Encara as coisas com leveza, mas interiormente com plenitude e ateno. No deixes passar um momento semteres plena conscincia do que est a acontecer dentro deti e tua volta. Normalmente isso o que significa ser-sesensvel, no a uma ou duas coisas, mas ser-se sensvel atudo. Ser-se sensvel beleza e resistir ao feio gerarconflito. Enquanto se observa, apercebemo-nos de que amente est sempre a julgar - isto bom e aquilo mau, ist branco e aquilo preto -, a julgar pessoas, a comparar

    a medir, a calcular. A mente nunca est quieta. Poder amente olhar, observar sem julgar, sem calcular? Tentacompreender sem dar nome e v apenas se a mente podefazer isso.

    Brinca com isso. No forces, deixa a mente olhar para s prpria. Muitas pessoas, tentando ser simples, comeam pelexterior, descartando, renunciando; mas, interiormente

    permanece a complexidade dos seus seres. Quando existsimplicidade interior, o exterior corresponde ao interiorSermos simples por dentro estarmos libertos do impulso

    pelo mais, o que no quer dizer que estejamos satisfeitocom o que . Estarmos libertos do impulso pelo mais no pensarmos em termos de tempo, de progresso, de chegal. Sermos simples a mente libertar-se a si prpria de todoos resultados, esvaziar-se de todo o conflito. Esta a verdadeira simplicidade.

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    Como poder a mente debater-se entre o feio e o belo,agarrando-se a um e empurrando para longe o outro? Esteconflito torna a mente insensvel e exclusivista. Qualquertentativa por parte da mente para encontrar uma linha quesepare o feio do belo faz ainda parte de um ou de outro.O pensamento no pode, faa ele o que fizer, libertar-se doso postos; o prprio pensamento criou o feio e o belo, o bom

    e o mau. Portanto, ele no pode libertar-se das suas prpriasactividades. Tudo o que pode fazer ficar quieto, noescolher. A escolha conflito, e a mente volta de novo sua

    prpria confuso. A quietude da mente liberta-nos dadualidade.

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    H muito descontentamento, e pensa-se que uma ideologia, a comunista ou outra, vai resolver tudo, at mesmo banir o descontentamento, o que seguramente uma ideolo

    gia nunca poder fazer. O comunismo, ou qualquer outrocondicionamento religioso organizado, nunca pode afastao descontentamento; mas as pessoas tentam de todas asmaneiras abaf-lo, mold-lo, alegr-lo; mas o descontentamento est sempre l. Pensamos que o descontentamentoest errado, que no correcto, mas no conseguimos livrarmos dele; temos de compreend-lo. Compreender no condenar. Entra nele, observa-o sem qualquer inteno deo alterar, de o canalizar. Est atenta a ele medida que vaactuando ao longo da vida, compreende as suas formas, esta ss com ele.

    A liberdade surge quando a mente est s. Pela graa queisso tem, tenta manter a mente quieta, liberta de qualque pensamento. Brinca com isso, no o transformes numassunto muito srio; sem qualquer esforo, est atenta edeixa que a mente se aquiete.

    Existe frustrao enquanto houver a busca de realizao

    pessoal. O prazer da realizao um desejo constante e nqueremos a continuidade desse prazer. O acabar dessedesejo d frustrao, o que doloroso. Logo de seguida mente busca preenchimento em diferentes direces e, dnovo, vai encontrar frustrao. Essa frustrao o movi

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    mento do sentir egocntrico, que isolamento, separao,

    solido. A mente quer fugir disso e, mais uma vez, vaimergulhar em qualquer forma de preenchimento pessoal.O esforo no sentido da realizao traz o conflito da dualidade. S quando a mente v a futilidade ou a verdade darealizao pessoal, na qual h sempre frustrao, que podeestar nesse estado de solitude, de onde no h qualquer

    fuga. Quando a mente est nesse estado de solitude, semfugir, que nos libertamos do desejo de realizao. A se parao existe porque h o desejo de preenchim ento;frustrao separao.

    Por agora, no podes passar por mais choques, nemmesmo pelos mais ligeiros. As reaces psicolgicas afectamo corpo com os seus efeitos adversos. S muito forteinteriormente. S firme e lcida. S completa; no tentes sercompleta,s completa. No dependas de ningum, de nada,nem de qualquer experincia ou memria; depender do passado, mesmo sendo este agradvel, impede a plenitude

    do presente. Est atenta e deixa que essa ateno permaneaintacta e inteira, nem que seja por um s minuto.O sono essencial; durante o sono parece que tocamos

    profundidades desconhecidas, profundidades que a menteconsciente nunca pode atingir ou experienciar. Embora no

    possamos lembrar-nos da extraordinria experincia de um

    mundo que est para alm do consciente e do inconsciente,ele tem os seus efeitos na conscincia total da mente. provvel que isto no seja muito claro; faz apenas umasimples leitura e brinca com isso. Sinto que h certas coisasque nunca podero ficar claras. No h palavras adequadas para elas; contudo, essas coisas existem.

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    Especialmente contigo, e isto importante, o teu corpo no pode estar sujeito a qualquer doena. Deves, facilmente e deforma voluntria, pr de lado todas as memrias e imagensque te do prazer, para que a tua mente fique liberta,descontaminada para a verdade. Por favor, toma bem atenoao que est escrito. Cada experincia, cada pensamento, devecessar em cada dia, em cada minuto, logo que aparece, para

    que a mente no se enraze no futuro. Isto realmenteimportante porque a verdadeira liberdade. Assim, no hqualquer dependncia; esta gera dor, afecta o corpo ealimenta a resistncia psicolgica. E, como tu disseste, aresistncia cria problemas - alcanar, tornar-se perfeito, etc. Na busca h luta, empenho; este empenho, esta luta,

    invariavelmente acaba em frustrao - quero aquilo ouquero ser algum; no prprio processo de alcanar existe aambio por mais, e o mais nunca est vista e, assim, hsempre a sensao de falhano. Consequentemente, h dor.E, mais uma vez, voltamo-nos para uma outra qualquer formade preenchimento, com as suas inevitveis consequncias. Asconsequncias da luta, do esforo, so vastas. Por que

    buscamos ns? Por que est a mente constantemente procura, e o que a faz procurar? Ser que sabes ou tensconscincia de que procuras? Se tens conscincia disso, versque o objecto da tua procura varia de tempos a tempos. Vso significado da busca, com a sua frustrao e dor? Vs queno encontrar algo que muito gratificante h estagnao,com as suas alegrias e medos, com o seu desenvolvimento eo seu vir a ser? Se te ds conta de que ests em busca, ser possvel mente no buscar? E se a mente no busca, qual a sua reaco real e imediata?

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    Brinca com isso, descobre; no pressiones nada, no

    deixes que a mente se force na direco de uma qualquerexperincia porque, desse modo, ela iria alimentar-se deiluso.

    Estive com algum que est a morrer. Temos muito medoda morte; temos medo de viver; no sabemos viver; conhecemos a dor psicolgica, e a morte a derradeira dor. Divi

    dimos a vida em viver e morrer. Assim, acontece a dor damorte, com a sua separao, solido e isolamento. A vida ea morte so um s movimento, e no estados isolados. Viver morrer, morrer para cada coisa, renascer em cada dia. Istono uma afirmao terica, mas algo para ser vivido eexperienciado. o querer, esse constante desejo de ser quedestri por completo a simplicidade do ser. O ser simples totalmente diferente do sono que vem da satisfao, do preenchimento ou das concluses da razo. Esse ser alheioao eu. Uma droga, um interesse, uma entrega, umacompleta identificao pode gerar um estado de desejo, que ainda o sentir do eu. O verdadeiro ser a cessao doquerer. Brinca com estes pensamentos e vai fazendo tentativas, alegremente.

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    uma manh sem nuvens, muito cedo; o cu est limpo,delicado e azul. Todas as nuvens parecem ter desaparecido, mas provvel que regressem durante o dia. Depoisdo frio, do vento e da chuva, a Primavera far a sua aparioem fora; a Primavera tem prosseguido suavemente apesardos ventos frios, mas hoje cada folha e cada boto emanaalegria. Que coisa maravilhosa a terra! Como so belas ascoisas que brotam dela - as pedras, os riachos, as rvores,a erva, as flores, as inmeras coisas que ela gera. Apenas ohomem sofre, s ele destri a sua prpria espcie, os seussemelhantes; apenas ele explora o seu vizinho, tiraniza edestri. O homem o mais infeliz e o que mais sofre, o quemais inventa e o conquistador do tempo e do espao. Mascom todas as suas capacidades, apesar dos seus belos tem plos e igrejas, mesquitas e catedrais, ele vive na sua prpria

    escurido. Os seus deuses so os seus prprios medos e osseus amores so os seus prprios dios. Que mundomaravilhoso ns podamos construir, sem guerras, semmedos. Mas qual a utilidade da especulao? No tem nenhum valor.

    O que importante o descontentamento do homem, oinevitvel descontentamento. uma coisa preciosa, uma jia de grande valor. Mas temos medo do descontentamento, dissipamo-lo, usamo-lo ou deixamos que sejausado para produzir determinado resultado. O homem tem

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    medo dele, mas o descontentamento uma jia preciosa de

    valor incalculvel. Vive com ele, repara nele dia aps dia,sem interferires com os seus movimentos, e ento ele sercomo um a chama queimando todas as impurezas, deixandoficar apenas aquilo que no tem morada nem medida. Ltudo isto com sabedoria.

    O homem rico tem mais do que precisa e o pobre passa

    fome, procurando comida, esforando-se e trabalhando todaa vida. Aquele que no tem nada faz ou deixa que a vida setorne rica, criativa, e aquele que tem todas as coisas destemundo gasta-se e definha. D a um homem um pedao deterra, ele torna-o belo, produtivo; um outro homem maltra-ta-o e deixa-o morrer, assim como ele mesmo morre. Temoscapacidades infinitas, em todas as direces, para encontraro inominvel, do mesmo modo que temos para criar o infernona terra. De qualquer forma, o homem prefere alimentaro dio e a hostilidade. mais fcil odiar, invejar, e, como asociedade est baseada no querer mais, os seres humanos

    deixam-se cair em toda a forma de ambio. Assim, existeconstante esforo, sempre justificado e visto como nobre.Existe a ilimitada riqueza de uma existncia sem esforo,

    sem querer, sem escolha. Mas uma tal existncia extremamente difcil quando toda a nossa cultura resultante daluta e da aco da vontade. A no-aco da vontade vista

    como morte por quase todos os seres vivos. Sem algum tipode ambio, para quase toda a gente, a vida no tem sentido.H um viver sem querer, sem escolha. Esse viver torna-se

    realidade quando a aco do querer cessa. Espero que note importes de ler tudo o que escrevi; se assim for, ento le escuta o que l est, com prazer.

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    ;fc

    O sol tenta passar atravs das nuvens, provavelmente vaconsegui-lo ao longo do dia. Num dia Primavera, e noseguinte parece Inverno. O tempo como os estados deesprito do homem, em cima e em baixo, escurido e luztemporrias. Sabes, estranho como desejamos a liberdade, mas fazendo tudo para ficarmos escravos. Perdemo

    toda a nossa iniciativa. Esperamos que os outros nosguiem, nos ajudem, sejam generosos e pacficos; voltamo-nos para gurus, mestres, sbios, salvadores, meditadoresAlgum escreve grande msica, outra pessoa toca-a,interpreta-a sua maneira e ns ouvimo-la, apreciamo-la oucriticamo-la. Somos a audincia que olha para os actores, para os jogadores, para o ecr de cinema. Outros escrevem poemas, e ns lemo-los; outros pintam, e ns ficamos pasmados em frente das pinturas. Notem os nada, e voltamo-nos para os outros, para que eles nos entretenham, noinspirem, nos guiem ou nos salvem. Cada vez mais acivilizao moderna nos destri, nos esvazia de toda acriatividade. Por dentro estamos vazios e esperamos queoutros nos enriqueam, para, desse modo, o nosso vizinhose aproveitar disso para explorar ou sermos ns a tirar proveito disso.

    Quando se tem conscincia das muitas implicaes

    respeitantes nossa dependncia dos outros, essa mesmaliberdade o incio da criatividade. Essa liberdade uma

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    autntica revoluo, e no uma falsa revoluo relativa aajustamentos sociais ou econmicos, sendo estes uma outraforma de escravizao.

    As nossas mentes constroem pequenos castelos de segurana. Queremos ter a certeza acerca de tudo, dos nossosrelacionamentos, realizaes, esperanas, futuro. Erguemosestas prises interiores e amaldioamos qualquer um quetente perturbar-nos. estranho como a mente est sempre procura de uma zona onde no haja conflito, perturbao.A nossa existncia uma constante destruio e subsequente reconstruo, de vrias formas, dessas zonas desegurana. A nossa mente torna-se assim uma coisa embo

    tada e deprimida. A liberdade consiste em no se ter segurana de qualquer espcie. realmente surpreendente ter uma mente serena e muito

    calma, sem uma nica onda de pensamento. Claro quea quietude de uma mente morta no tem nada a ver comuma mente naturalmente tranquila. A mente forada aaquietar-se pela aco da vontade. Mas ser que ela podeestar profundamente, totalmente, silenciosa? de factoextremamente surpreendente o que acontece quando amente est em silncio.

    Nesse estado, toda a conscincia, que tem a ver comconhecimento e reconhecimento, cessa; acaba a buscainstintiva da mente, que memria. E muito interessantever como a mente faz tudo para capturar esse estado indizvel atravs do pensamento, da verbalizao, do aperfeioamento dos smbolos. Mas para que esse processotermine, natural e espontaneamente, temos de morrer para

    t d N i h f

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    inconsciente em marcha, a que chamamos vida. estranhcomo a maioria das pessoas quer impressionar todas a

    outras, atravs das suas realizaes pessoais, da astcia, doseus livros - utilizando qualquer meio para se afirmar.

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    Como vo as coisas contigo? So os teus dias mais rpidosdo que a lanadeira de um tear? Ser que vives, em um dia,mil anos? estranho, para a maior parte das pessoas oaborrecimento uma coisa bem real; elas tm de estarsempre a fazer alguma coisa, tm de estar ocupadas com

    uma actividade, um livro, com a cozinha, com os filhos,com Deus. Caso contrrio, as pessoas tm de estar comelas prprias, o que m uito entediante. Quando estoconsigo prprias, tornam-se egocntricas, fazem trabalhosmanuais, ou ficam doentes e mal-humoradas. Uma mentedesocupada - no uma mente sem nada, negativa, mas umamente alerta, passiva, totalmente vazia - algo fresco, capazde possibilidades infinitas. Os pensamentos so cansativos,no criativos e muito enfadonhos. Um qualquer pensamento pode ser astuto, mas a astcia um instrumentoafiado - depressa se gasta, e por isso que as pessoas astutas so enfadonhas.

    Deixa que exista em ti uma mente desocupada, sem quedeliberadamente trabalhes para isso. Deixa que ela acontea, em vez de a cultivares. L isto com ateno, e deixaque isso acontea. Ouvir ou ler sobre a mente desocupada importante; tambm importante o modo como ls ou

    escutas.O que importante praticar o tipo certo de exerccio,dormir bem, e que o dia tenha sentido. Mas escorregamos

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    facilmente para a rotina, passamos a funcionar no padrofcil da auto-satisfao ou segundo uma rectido auto

    -imposta. Todos estes padres vo invariavelmente dar morte - a um lento definhamento. Ter um dia feliz, ondno haja compulso, medo,comparao, conflito, mas estarsimplesmente atento, isso ser criativo.

    Repara, existem momentos raros quando sentimos destmaneira, mas a maior parte da nossa existncia feita dmemrias desgastadas, de frustrao e de esforos vos - aquilo que verdadeiro passa ao largo. A nuvem da alienao cobre tudo, e aquilo que real apaga-se lentamente extremamente difcil penetrar atravs dessa nuveme permanecer na simples claridade da luz. Repara nisso, e tudo. No tentes ser simples. Essa tentativa apenas geraricomplexidade e mgoa. Tentativa vir a ser, e vir a ser sempre desejo, com todas as suas frustraes.

    importante libertarmo-nos de todos os choques emocionais e psicolgicos; o que no quer dizer que tenhamode nos embrutecer face ao movimento da vida. Esses cho

    ques vo levantando gradualmente vrias reticncias psicolgicas, as quaistambm afectam o corpo, ocasionandodoenas sob vrias formas. A vida uma srie de acontecimentos (desejados ou no desejados); e enquanto escolhermos aquilo que queremos guardar e aquilo que nqueremos, haver inevitavelmente conflito (de dualidade)

    que o choque. Os contnuos choques endurecem a menteo corao; passa a ser um processo de autofechamento e portanto, sofrimento. Permitir que o movimentoda vidase enraze, sem escolha, sem qualquer movimento especfico, desejado ou no desejado, necessita de uma enorm

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    ateno. No se trata de tentarmos estar atentos todo otempo, o que seria desgastante, mas de vermos a neces

    sidade da verdade da ateno; ento, veremos que a prprianecessidade funciona sem nos esforarmos a estar atentos.

    Podemos ser pessoas viajadas, educadas nas melhoresescolas, em diferentes lugares do mundo; podemos ter amelhor comida, instruo, viver no melhor clima; mas serque tudo isso contribui para a inteligncia? Conhecemos

    pessoas assim, e sero elas inteligentes? Os comunistastentam, assim como outros, como os catlicos, controlar eformatar a mente. A prpria formatao da mente provocacertos efeitos bvios - mais eficincia, uma certa rapidez evigilncia da mente, mas todas essas capacidades no

    produzem inteligncia. As prprias pessoas instrudas, essasque possuem abundante informao, conhecimentos, eas que so educadas cientificamente, sero elas inteligentes?Tu no achas que a inteligncia algo completamentediferente? Ela de facto a total liberdade em relao aomedo. Aqueles cuja moralidade se baseia na segurana,

    segurana sob qualquer forma, no so morais, pois o desejode segurana consequncia do medo. O medo e os seusconstrangimentos, a que chamamos moralidade, no somorais de todo. A inteligncia a total libertao em relaoao medo, no sendo respeitabilidade, nem as vriasvirtudes cultivadas pelo medo. Na compreenso do medo halgo que totalmente diferente das formulaes da mente.

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    bom fazer ensaios com a questo da identificao. Comoexperimentamos ns alguma coisa, da mais simples maiscomplexa? Afirmamos isto meu - as minhas sandlias,a minha casa, a minha famlia, o meu trabalho, o meu deus;

    com a identificao vem o esforo para segurar. Possuir algotorna-se um hbito. Qualquer perturbao que possaquebrar esse hbito dor, e depois lutamos por ultrapassaressa dor. Mas a identificao, o sentimento de posse, pertence a algo que continua. Se ns trabalhamos com isso,estando atentos, sem qualquer desejo de alterar ou deescolher, descobriremos em ns muitas coisas surpreendentes. A mente o passado, a tradio as memrias queconstituem as fundaes da identificao. Poder a mente,tal como a conhecemos agora, funcionar sem esse processode identificao? Descobre, brinca com isso; d-te conta dosmovimentos da identificao com as coisas comuns do dia--a-dia e com aquilo que mais abstracto. Consegue-sedescobrir coisas estranhas, como o pensamento se apega,como ele se engana a si mesmo.

    Deixa que a ateno persiga o pensamento atravs doscorredores da mente, revelando, nunca escolhendo, sempre

    em perseguio. deveras difcil, dadas as condies em que estamos, nodesejar, no ansiar por certas coisas ou acontecimentos,no comparar. Mas seja qual for a condio, os desejos, os

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    apetites, as comparaes continuam. constante a nossansia por mais ou por menos, pela continuidade de algum

    prazer ou pelo evitar da dor. O que realmente importantenisto o seguinte: por que ser que a mente cria um centro,dentro de si mesma, volta do qual se move e tem o seuser? A vida resulta de mil e uma influncias, inmeras

    presses, conscientes e inconscientes. Entre essas presses einfluncias, ns escolhemos umas e pomos outras de lado,e assim, gradualmente, construmos um centro. No deixamos que todas essas presses e influncias passem sem nosafectarem. Qualquer influncia, qualquer presso, nos afecta,o efeito chamado de bom ou de mau. Parece que nosomos capazes de olhar, de estarmos conscientes da pres

    so e de no tomarmos parte nela, seja de que modo for,no lhe resistindo nem a acolhendo. Resistir ou acolher a presso constri o centro a partir do qual agimos. Poder amente no criar esse centro? A resposta s pode ser encontrada atravs da experimentao ou da negao. Portanto,experimenta e descobre. S h verdadeira liberdade se

    houver a cessao desse centro.

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    Uma pessoa fica agitada,ansiosa e, por vezes, amedrontada. Acontecem certas coisas. Elas so os acidentes da vidaA vida como um dia nublado. H dias havia sol eclaridade, mas agora est nublado, a chover e frio; mudanas assim so como o inevitvel processo do viver. A ansiedade e o medo caem de repente sobre ns; h causas paraisso, escondidas ou muito bvias, e cada pessoa pode, comum pouco de ateno, descobri-las. Mas o que importante estarmos conscientes desses incidentes ou acidentes e nolhes dar tempo para se enraizarem, seja de forma permanente ou temporria. Damos razes a essas reaces quandoa mente compara; ela justifica, condena ou aceita. Sabes,temos de estar de p todo o tempo, interiormente, sem qualquer tenso. A tenso aparece quando queremos resultadose o que da surge cria tambm tenso, que tem de ser que brada. Deixa a vida fluir.

    fatalmente fcil habituarmo-nos a qualquer coisa, aqualquer desconforto, a qualquer frustrao, a qualquer satisfao continuada. Podemos ajustar-nos a qualquer circunstncia, loucura, ao ascetismo. A mente gosta defuncionar dentro de sulcos, de hbitos, e a essa actividadechama-se viver. Quandovemos isso, afastamo-nos, e

    tentamos levar umaexistncia sem significado, semamarras, sem interesses. Os interesses, se no estivermosmuito vigilantes, levam-nos de volta a um certo padro de

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    viver. Em tudo isto podes ver em funcionamento a vontade,o objectivo, o desejo de ser, de atingir, de vir a ser, e assim por diante. O querer o prprio centro daquele que escolhe,e enquanto o querer existir a mente apenas pode funcionardentro de hbitos, sejam estes autocriados ou impostos.A libertao em relao vontade o verdadeiro problema.Podemos praticar vrios truques em ns mesmos para noslibertarmos do querer, do centro que o eu, daquele queescolhe, mas esse querer continuar com um nome diferente, sob um manto diferente. Quando vemos o verdadeirosignificado do hbito, da habituao s coisas, do escolher,do nomear, da perseguio de um interesse, quando h aconscincia de tudo isso, ento um autntico milagre

    acontece: a cessao do querer. Investiga isto, est atenta, atodo o momento, sem qualquer desejo de chegar a lugaralgum.

    Os cus do Sul e os do Norte so to extraordinariamentediferentes. Aqui, em Londres, para variar, no h uma nicanuvem no delicado cu azul e as altas rvores esto a

    comear a mostrar a sua folhagem nova. Aqui Primavera,que est no incio. Aqui a atmosfera ainda sombria e aalegria das pessoas no se v, como acontece no Sul.

    Uma mente serena, mas muito alerta, vigilante, uma bno; como a terra, rica e com imensas potencialidades.Quando h uma mente assim, que no compara, que nocondena, que possvel existir essa riqueza que incomensurvel.

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    No deixes que o fumo da vulgaridade te sufoque,fazendo com que o fogo se apague. Tens de continuar emfrente, desbravando, destruindo, nunca criando razes. Nodeixes que qualquer problema se enraze, acaba com eleimediatamente, e em cada manh desperta fresca, jovem einocente...

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    I*

    Enfrenta o medo, no deixes que ele caia sobre ti derepente, sem esperares, mas enfrenta-o constantemente;

    procura-o com persistncia e determinao. Espero queestejas bem e que no estejas assustada; provavelmente isso

    pode ser curado e vamos ver como. No deixes que isso teamedronte.

    Profundamente, interiormente, pode estar a acontecer umcerto desnimo; podes estar inconsciente disso ou, estandoconsciente, no lhe ds importncia. A onda da deterioraoest sempre em cima de ns, no importa quem sejamosEstar frente dela, enfrent-la sem reaco e ficar fora delaexige uma grande energia. Essa energia s surge quandono h conflito nenhum, consciente ou inconscientementeEst bem atenta.

    No deixes que os problemas se enrazem. Atravessa-os

    rapidamente, passa por eles como quando se corta manteiga No permitas que eles deixem marca, acaba com eles logoque apaream. No podes evitar ter problemas, mas acabacom eles imediatamente.

    Aconteceu uma notria mudana em ti - h uma vitalidade interior profunda, uma fora e uma claridade; guarda

    -as, deixa que elas funcionem, d-lhes uma oportunidade para flurem extensivamente, profundamente. Acontea oque acontecer, no te deixes abafar pelas circunstncias, pela famlia, pela tua prpria condio fsica. Alimenta-te

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    correctamente, faz exerccio, no te tornes descuidada.

    Tendo chegado a um certo estado, prossegue em frente, nofiques parada - ou segues em frente ou recuas. No podesficar esttica. Navegaste na onda interior durante tantosanos, isolada, mas agora, a partir desse movimento interior,tens de sair para o exterior - para encontrares mais pessoas, para te expandires.

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    f

    Tenho feito muita meditao, e isso tem sido bom. Esperoque tambm tu estejas fazendo meditao. Comea porestar atenta a cada pensamento, a cada sentimento, todo odia; os nervos e o crebro tornam-se ento quietos, serenos - isto no se pode fazer atravs de controlo. A comeaverdadeiramente a meditao. Faz isso de forma completa.

    Acontea o que acontecer, no permitas que o corpomolde a natureza da mente. Est atenta ao corpo, alimenta--te correctamente, est contigo todos os dias durantealgumas horas. No ds passos atrs e no te deixes escra

    vizar pelas circunstncias. S extraordinria - mantm-tedesperta.