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. · ciclo de

I EBATES ·.· do teatro

CASA RA DE

EDITORA INÚBIA

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literatura dia 19 de maio de 1975

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antonio houaiaa coordenador

Estão presentes nesta mesa, numa ordem alfabética, Affonso Romano de Santanna, Antônio Callado e Antônio · Cândido; e numa ordem analfabética, Antônio Houaiss, que SQU eu. Presente está também Alceu Amoroso Lima. Ele não veio fisicamente, mas em espí­rito, e numa mensagem que irei ler a vocês. Creio que seria quase des­necessário fazer apresentação des membros desta mesa. À minha ex­trema direita, sem alusão, está dos mais intensos militantes da prática literária do Brasil de hoje, Antônio Callado . Eu não preciso ressaltar a sua experiência nos três aspectos fundamentais que têm caracteriza­do a sua atividade: o grande jorna­lista, sobretudo o grande repórter que tem sido, e esperamos que con­tinue a ser, o grande dramaturgo e o grande romancista. A meia­direita, também sem alusão, está o professor Antônio Cândido que é, sem favor, e creio que nenhum crítico aqui presente se ofenderá, o patriarca, no bom sentido da pala­vra, que é muito jovem, da çrítica literária no Brasil. De formação sociológica e literária profunda­mente intensa, ele veio dar um pouco de prestígio a esta me~a. vin­do especialmente de São ' Paulo. Por isso mesmo a nossa gratidão deve ser muito grande para quem vive assoberbado de tanto trabalho e tantas obrigações. Eu agradeço pessoalmente a ·presença dele por­que fui o intérprete do desejo do grupo organizador e vi da sua par­te a maior boa vontade para aqui

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ma.

Alceu Amoroso Lima não comparecer e as razões são bll.lltllll""• tes para que nós ele . não pôde comparecer por·a•• de hábito, há 80 anos, diz ele, me antes das 10 horas; em setriiiJl.ol•

do lugar, de hábito, a partir dos anos, feitos há algum tempo, tem evitado participar de mc:sas·r~~• dondas, que o cansam. Mas, está com um esplêndido viço tal, e nesse ponto ele é juvenil vez mais, ele teve tempo mandar-nos uma mensagem. Fa mens.agem é tão oportuna que pretendo lê-la como inicial dos nossos debates, após que darei a palavra, pela ordem, AffQnso Romano de Santanna, tônio Callado e Antônio C Eis o que nos manda dizer n•\-l• .Amoroso Lima:

alceu amoroso lima

"A situação cultural de um é a resultante de um elemento jetivo e de um elemento objetivo. Como as palavras indicam, o eJe. menta subjetivo é a criadora e pessoal dos espíritos. elemento objetivo é o conjunto

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antOnio houalss

circunstâncias sociais, passadas e presentes, que foram a estrutura exterior e situacional para o desen­v"olvimento daquela atividade pes­soal, criadora e livre.

Qual a situação cultural brasilei­ra, no momento, em relação a essa dupla exigência? Quanto ao ele­mento subjetivo, a situação parece ser boa, ou mesmo excelente. Esta­mos no início do último quartel do século XX. Durante os três primei­ros, a atividade cultural do país, quanto ao seu elemento subjetivo, foi das mais fecundas, tanto em quantidade como em qualidade. De 1900 a 1975, se processou uma revolução cultural que tomou, tomo é notório, o nome de modér­nismo. A principal característica de nossa independência literária, que o romantismo tinha iniciado, e que o modernismo completou com suas características oco­românticas, baseadas acima de

affonso romano de santanna

tudo na liberdade estilística e no nacionalismo temático. De Graça Aranha em 1902 a Guimarães Rosa em 1964, o pré-modernismo,

'o modernismo e o pós-moder­nismo representaram uma re­volução cultural que ficará como um marco indelével na história cul­tural do país, pois o que ocorreu com a literatura operou-se igual­mente nas artes plásticas e ·musi­cais, de Alberto Nepomuceno a Villa-Lobos e de Eliseu Visconti a Portinari. Tudo indica que essa vi­talidade criadora continua intacta, mais do que isso: encontra-se, nesse momento em que se abre o último quartel do século XX, num estado de impaciência e de agitação, vol­tada para o século XXI. Na linha do movimento revolucionário .uni­versal, que está em franco processo em toda parte, entre nós com sinais de vitalidade e hostilidade, seme­lhantes aos de 1922, quando se ini-

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ciou a fase mais renovadora e ino­vadora dessa onda intelectual. Isso quanto ao elemento subjetivo.

Quanto ao aspecto objetivo e es­trutural, nenhum óbice se opôs, durante esse longo período, a esse desenvolvimento, pelo contrário: mesmo antes do movimento político-social de 1930, que levou o país de uma estrutura individualis­ta, baseada na Constituição de 1891, a uma estrutura socializante a partir da crescente industrializa­ção, da promulgação das leis tra­balhistas e da Constituição de 1934, as estruturas ambientes se mantiveram em consonância com esse movimento intelectual, volta­do para a frente e de tipo inovador ou mesmo revolucionário. O ele­mento subjetivo da cultura nacio­nal e o elemento objetivo de­senvolveram-se, então, não só de modo paralelo, mas interdepen­dentes e com finalidades análogas. Ora, no momento atual o quadro é inteiramente outro. Enquanto o elemento subjetivo da cultura bra­sileira contemporânea se agita, a estrutura social, tanto política quanto econômica, se fecha, se re­trai, se defende, se tranca, pela hi­pertrofia da autoridade, tolhendo constantemente aquele. surto cria­dor que é, como sempre, baseado no espírito de liberdade. Estão, pois, caminhando os dois elemen­tos da cultura nacional em direções opostas em vez de convergirem na mesma direção. Uma interpretação restritiva da segurança nacional hi­pertrofiou a função estatal de tal maneira que há mais de um decê­nio fizeram da censura ao pensa­mento e à expressão uma condição do desenvolvimento nacional e até

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mesmo a base do novo regime. Com isso se criou o conflito cons­tante entre o elemento subjetivo e o elemento objetivo da cultura. En­quando, durante os três quartéis an­teriores do nosso século, o elemen­to pessoal e criador da cultural e o elemento estrutural e ambiental do regime caminhavam, por assim di­zer, no mesmo sentido, hoje se di­vorciaram, como está na moda. O subjetivo continuou para a frente mas o objetivo e estrutural se colo­cou na defensiva, em uma atitude, ou de franca hostilidade ao espírito de liberdade criadora, através do aparelho policial e da censura pré­via, ou então numa posição de re­serva e de atemorização, de adver­tência e de censura indireta, que se torna talvez ainda mais nociva que uma franca hostilidade. A fraqueza cultural brasileira, portanto, deste começo do fim do século XX, não é uma falta de talentos ou de aspi­rações, é uma crise provocada pelo autoritarismo político e censorial que se choca de modo ostensivo ou de modo simulado com a riqueza dos talentos e a impaciência cria­dora, especialmente das novas ge­rações. Esse choque violento entre o espírito dinâmico da mentalidade atual brasiteira e o espírito estático e reacionário das estruturas político-sociais, por obra e desgra­ça de uma constante censura do pensamento e da expressão, está ameaçando a cultura nacional de uma estagnação ou de um retroces­so, que serão ambos a maior de­cepção das novas gerações e a pró­pria vergonha da nossa história in­telectual". Antonio Houaiss - · Essas foram as palavras de Alceu Amoroso Lima.

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Vou jogar no fogo, de imediato, o meu querido Affonso Romano qe Santanna. Eu gostaria somente que, para desanuviar o ambiente, nós fi­zéssemos uma pequenina diferen­ciação entre a linguagem escrita, que foi lida com certa ênfase, tal­vez demasiada, e que deu um tom assim um pouco venerável demais ao ambiente, e a palavra falada, que deve ser um pouco mais solta e des­pretensiosa. Espero que você não fique contrareito com o tom orató­rio inicial, viu. Afonso?

affonso romano

Inicialmente, gostaria de dizer que tenho acompanhado esses encontros, tenho vindo a alguns, e entre os co­mentários, as discussões paralelas e às vezes algumas queixas, fica me p~­recendo que algumas pessoas esta­riam buscando aqui uma espécie de nova verdade; uma vez que os após­tolos estão juntos, espera-se um Pen­tecostes, uma Epifania, uma revela­ção ou um sentido da vida para cada um. No que me diz respeito, acho que dificilmente poderia trazer, se é que alguém espera isso, a palavra no­va, mas gostaria apenas de trazer as minhas perguntas, as minhas indaga­ções e começar a conviver com as in­dagações de vocês, porque estou con­vencido de que nós não ~espondemos nada, mas apenas trocamos de ques­tões ao longo dos anos. Isto posto, gostaria de dizer que o que eu preten­do apresentar girará em torno dos se­guintes tópicos:

1) A poesia brasileira, ou a poesia brasileira feita entre 1956 e 1968, que constitui o que poderíamos chamar de uma segunda Semana de Arte

Moderna. Esse seria o primeiro tópi­co.

2) O segundo tópico diz respeito às relações entre a poesia e a música po­pular e de que maneira a música po­pular, num determinado momento, assumiu um espaço que a poesia, por uma série de impedimentos, não po­dia assumir.

3) E, em terceiro lugar, consider1;l­ções sobre como a crítica literária brasileira neste século passou por um processo de especialização crescen­te, que, começando com a boemia do fim do século passado, acabou alta­mente especializada dentro da uni­versidade, através dessas diversas formas estruturalistas que temos hoje e de como a universidade passa a ser o foco gerador da crítica e pode num futuro muito breve, ser também um foco de criação.

Começando da primeira obser­vação, eu darei alguns dados, pois não sei se todos acompanharam com certa atenção o desenvolvi­mento da poesia brasileira de 1956 · para cá: em 1956, iniciou-se um movimento chamado concretismo, o qual é o mais conhecido desses movimentos de vanguarda, o mais divulgado, graças à atuação insis­tente, catequética, dos irmãos Cam- , pos (Augusto e Haroldo) e Décio Pignatari; em 1959 surge o neo­concretismo que, como o concre­tismo, se expôs, se tornou conheci­do através do "Suplemento Domini­cal" do Jornal do Brasil; em 1957, dentro desse mesmo panorama de busca de colocações para uma poe­sia de vanguarda, .surge em Minas um grupo chamado Tendência; em 1962, surge no Rio, como conse­qüência de uma série de atividadeo;

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dentro das universidades, uma co­leção de poemas intitulada Violão de Rua que, segundo sua ótica, é também uma proposta de vanguar­da politica; em 1962, surge outro movimento chamado Práxis, que tem Mário Chamie como lider; em 1967 surge o poema-processo e em 1968 o tropicalismo. De 1968 para cá, talvez - se pudéssemos fazer uma pesquisa e uma análise - teríamos um tipo de literatura que já foi cha­mada, e eu gosto de chamar tam­bém, de lixeratura, a literatura do lixo, numa crítica à poluição cultu­ral, social etc. Pois bem, esses sete ou oito instantes, entre 1956 e 1968, tecem entre si um sistema coerente, eles têm forças de atração e repulsão, e numa análise mais de­tida talvez se pudesse começar a demonstrar a minha proposta ini­cial, de que esse vanguardismo, ou essa vanguarda, é algo semelhante a uma Semana de Arte Moderna. Essa proposta teórica espanta à primeira vista, mas não espantaria muito se todos nós pensássemos que a Semana de Arte Moderna não aconteceu em 1922, no mês de fevereiro de 22: quanto ·mais tem­po passou mais a semana foi se rea­lizando, a tal ponto que em cada decênio, a cada conjunto maior de anos, a semana se dilatava e ga­nhava sentido. Assim, como todos os fatos históricos, que na verdade acontecem a posteriori. Uma inter­pretação crítica desses movimentos de vanguarda, então, poderia nos levar a interpretá-los como um su­cedâneo do. concretismo e uma tentativa de saída do que vagamen­te se chama de Geração de 45. A caracterização de cada um desses movimentos levaria um tempo bem

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maior mas, sumariamente, eu diria que o concretismo propõe a ato-mização, a destruição não só do verso, como foi feito em 22, mas o esfacelamento da palavra,· e a letra, em sua liberdade, chega a ser não mais a letra do alfabeto, pura e simples, mas um artificio semióti­co, semiológico, para comunicar uma · mensagem determinada. O concretismo certamente passou por diversas fases; essas fases não estão catalogadas, são coisas re­centes, os críticos teriam que estu­dar isso a fundo. Mas de qualquer maneira existe um concretismo ini­cial, ortodoxo, no qual se procura­va explorar a palavra, ainda pala­vra, a letra ao máximo, o sentido semântico da letra e da palavra. Mas ele iria para uma outra tenta­tiva, ·posterior, que era de dar um sentido político a esses sinais gráfi­cos. ~ o que se tentou chamar e se chamou, na ocasião, de "salto da onça", o pulo da onça. rsso foi uma tese exposta por Décio Pigna­tari, com que o concretisrno tentava sair do impasse em que havia caído, ou seja, fazer uma poesia altamen­te sofisticada e alienada da realida­de e da comunicação de massas. Então tenta uma poesia ainda alta­mente sofisticada, na segunda fase, mas· participante. ~ pulo-da-onça, mas, segundo alguns críticos, a onça caiu num despenhadeiro, caiu no vazio. Haveria uma outra fase dessa poesia, onde ela teria deriva­do radicalmente para a semiótica total e a letra teria sido abandona­da. E uma outra fase, que eu colo­caria aqui sumariamente, apenas numa tentativa de configurar para vocês: haveria um esforço de aliança dos concretistas com a música po-

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pular brasileira, principalmente através da atuação de alguns com­positores. Ou seja, o bloqueio, den­tro da série literária, dentro da poesia literária, levou os concre­tistas a procurarem soluções, sai­das de emergência, um espaço que fosse dado. A música popular, num certo instante, foi essa saida de emergência. O neoconcretismo - eu soube agora que, felizmente, existem algumas pessoas no Rio fi­nanciando uma pesquisa sobre o neoconcretismo. Acho isso im­portante porque no pais em geral, e até no exterior, a idéia que se tem da vanguarda braslleira nos últi­mos 15 anos é apenas do concre­tismo, quando tivemos esse leque imenso que eu mostrei a vocês, de pelo menos sete ou oito movimen­tos. O neoconcretismo é algo um tanto ou quanto dificil de explicar, porque ele não se realizou efetiva­mente. Como movimento de cisão, implicava uma série de colocações pessoais, às vezes, entre o grupo do Rio e de São Paulo, mas de uma maneira grosseira, geral, o neo­concretismo queria uma poesia mais subjetiva, voltada para o hu­manismo, e denunciava a frieza das colocações concretistas. O grupo neoconcreto era chefiado por Fer­reira Gullar, Reinaldo Jardim, Ro­berto Pontual, Lygia Clark e ou­tros que se opunham, por conse­qüência, aos irmãos Campos, Pig­natari e outros, de São Paulo. De.ve-se esperar o levantamento que se está fazendo, para se ter uma visão geral desse movimento. Mas, de qualquer maneira, é um movimento que se realizou mais na busca da integração da poesia com as artes plásticas, o poema para ser

acionado pelo leitor, para ser cons­truido como se fosse uma escultura manuseável.

Em Minas, em 1957, esse movi­mento chamado Tendência come­ça, principalmente através da poe­sia de Afonso Ávila, a procurar uma solução para a poesia brasilei­ra entre João Cabral de Mello Neto e o concretismo, ou seja, não está apaixonada pelas soluções vi­suais, prende-se ainda à solução da palavra e busca uma solução que transmita preocupações sociais, de participação politica na vida nacio­nal. Em 1962, aparece uma coisa estranha e rica, e não estudada, ig­norada da maioria, chamada Vio­lão de Rua. Como foi um texto marginalizado na época em que apareceu, porque as vanguardas estavam em pleno vapor, e quem não fizesse os seus jogos verbais com muita sutileza e fizesse ape­nas poesia conteudística era logo lançado às penas do inferno - essa poesia, . por razões políticas e de política literária também, sofreu uma censura, que é estética, fora as outras. Pois bem, esse movimento Violão de Rua é a meu ver um pon­to importante na evolução e no en­contro da música popular brasilei­ra com a poesia da série literária. Foi o primeiro momento em que a poesia e a música se encontram totalmente, onde não há diferença entre o texto da música popular e o texto da poesia literária. f: um mo­vimento eclético que reúne desde os modernistas, tipo Cassiano Ri­cardo, até ·um Joaquim Cardoso, e passa pelos poetas de 45 e experi­mentalistas de 1956. A preocupa­ção central é uma certa mensagem política. Em 1962, surge em S. Pau-

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lo a revista Práxis, que é de alguma maneira uma dissidência do con­cretismo e que propõe também uma manipulação lúdica das pala­vras, dentro de um artificio que lembra muito as colocações do la­birinto barroco. O poema pode ser lido de trás para frente, de frente para trás, e é uma poesia de forte conteúdo social. Em 1967 surge o poema-processo que leva à radica­lização total a visualização: a pala­vra some do poema, ficando apenas os sinais.

O tropicalismo parece ser, des­ses todos, o mais rico, o que mais cresce com o tempo, porque nele se deu a junção da música popular, da TV e da poesia. Ou seja, Caeta­no Veloso se encontra com Oswald de Andrade, com os concretos e outros. Glauber Rocha, no cine­ma, José Gelso no teatro, e outros mais. O tropicalismo passa a ser então uma critica, um exercício da paródia, dentro da literatura, na música e na vida politica brasileira. Esse tropicalismo, na verdade uma espécie de carnaval, de cama­valização, de critica geral, de eufo­ria, é sucedido por um período, o da lixeratura, que seria uma espé­cie de underground brasileiro. E a relação entre tropicalismo e lixe­ratura seria a mesma relação entre Carnaval e Quaresma. ~ bem possível que estejamos nessa qua­resma esperando a saída dentro de um rito ou mito de eterno retorno.

O que eu queria dizer, depois de pintar esses movimentos, é que, se­gundo minha ótica, eles cumpri­ram um ciclo, e que agora a poesia brasileira terá que sair, dar um pu­lo. Essa etapa foi vencida, a etapa da fundação, da instauração, da

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discussão, e há sinais de que a for­mação de uma linguagem que coa· dune ou explore antiteses de todos esses movimentos possa se formar. De alguma maneira, isso já se con­cretizou através de alguns movi­mentos como a Expoesia I, realiza­da na PUC, que reuniu mais de 400 poetas e mais de 3 mil pessoas de todas as tendências de todos os movimentos, e a Expoesia II, pa­trocinada pelo Jaime Lerner, de saudosa memória, em Curitiba, a Expoesia lll, realizada em Fribur­go, e Poemação, realizada ano pas­sado no Museu de Arte Moderna, no Rio, e em 73, num espaço curto, foi realizado no Jornal do Brasil o chamado Jornal de Poesia, o qual eu tive a obrigação de dirigir den­tro do possível. Essa prática das Expoesias, do jornal etc. me leva a ver que a poesia brasileira tende a formular uma linguagem que já não é mais sectária, nem partidista, como era até então. E aqui surge um outro ponto que eu gostaria fosse o mais importante do'que es· tou dizendo: é que as vanguardas, como algo necessário dentro do de­senvolvimento da poesia brasileira, realizaram, infelizmente, o mesmo esquema, o mesmo jogo que se rea­liza em outras áreas, como a politi­ca: ou seja, realizou-se, graças a es­sas vanguardas, a chamada luta pelo poder (literário), e a luta pelo poder literário é exatamente a mes~ ma luta pelo poder em qualquer á­rea, em qualquer lugar, em qual­quer situação. Se .estivéssemos to­dos maduros para fazer uma psica­nálise da literatura brasileira teria­mos muito a aprender nesse perío­do, que de alguma maneira repro­duz coisas havidas no modernis-

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mo, e outros instantes da própria literatura. Ou seja, até que ponto a vanguarda, que é essa coisa nova, revolucionária, necessária, não reproduz esses elementos, tais como a luta pelo poder, e que devem ser mostrados e exibidos porque, na minha opinião, antes de tratarmos ou julgarmos metonimicamente toda a culpa na censura oficial, que éxiste, e ~ como já dizia Chico Buar­que e o . próprio Caetano, acen­tuando que não podemos debitar tudo à censura - deveremos obser­var os processos de censura interna dentro da literatura. Então, nós nos furtamos a ver o processo de censura interna entre os grupos, as revistas, e transferimos o problema todo a uma política que não pode­remos nunca atingir plenamente com maturidade se não exercermos antes a liberdade dentro da demo­cracia estética e literária.

O outro . ponto diz respeito às re­lações entre a música popular c a poesia. Eu diria que do modernis­mo para cá há dois movimentos na relação entre a poesia literária e a música popular brasileira: ou seja, num certo momento existe a equi­valência entre um poema na 'série literária e um texto em música; de­pois, num instante mais amadure­cído, ao invés da equivalência te­mos realmente a identidade. Num trabalho que tento desenvolver num livro ligeiro, tento mostrar a semelhança de comportamen­to entre os versos de Noel Rosa e os modernistas brasileiros, de­pois entre o comportamento de Ari Barroso, como ufanista, e cer­tos versos de Cassiano Ricardo, outro ufanista na série literária; há uma certa relação também entre o

tango, o bolero, o samba-canção e outras músicas de "fossa;' e a chama­da geração de 45; há uma relação entre o concretismo, vanguarda de 56, e a bossa-nova. Mas até aqui há uma equivalência: a série literária e a música popular brasileira são comparadas, mas cada qual no seu caminho. A partir ·de Violão de Rua, com o show "Opinião", de­pois "Arena Canta Zumbi", "Tira­dentes" etc., vários shows e discos nesta linha, a poesia encontra-se com a música, graças a um idêntico coeficiente, ou um mínimo múlti­pló comum de interesses. f: a par­tir, então, de Violão de Rua, que se encontram poesia e música. Suc'ede depois o tropicalismo em 67, que é. um encontro mais so­fisticado ainda porque os autores já manipulam um acervo de infor­mações, um acervo cultural mais sofisticado. Depois do tropicalis­mo, poderíamos nos referir ainda à própria lixeratura - essa literatura do underground brasileiro - como algo muito interessante que está acontecendo na literatura brasilei­ra e os críticos oficiais não sabem, porque não querem: os antigos suplementos literários que aca­baram (só existem hoje, na ver­dade, dois: um em Minas, financia­do pelo próprio governo estadual, o Suplemento Literário de Minas Gerais, e o outro, de O Correio do Povo, de Porto Alegre, e os suple­mentos literários antigos, quando cada jornal tinha por volta de oito páginas semanais dedicadas à lite­ratura) foram substituídos recen­t~mente, devido à crise do papel e outras crises, pelas revistinhas mi­meografadas de underground, ven­didas em butiques e teatros. Então,

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o suplemento, que estava instalado dentro do órgão oficial da cultura passa a ser agora marginalizado, assume a sua marginalidade, e a re­vistinha mimeografada é o suple­mento de uma geração que se mar­ginaliza ou foi marginalizada. Bem, esses são os dois momentos que poderiam ser estudados mais a fundo em outra oportunidade, o da equivalência e o da identidade. Claro que isso implica uma série de outras coisas. O encontro da poe­sia com a música é um fenômeno universal, em primeiro lugar: quan­do John Lennon escreve seus dois livros de desenhos e texto~. ele não está escrevendo gratuita­mente, mas exercendo uma certa cultura, ou seja, começando por pa­rodiar James Joyce. Então a liga­ção entre o cantor pop e Joyce, li­gando os extremos, é algo que em termos brasileiros aconteceu, na medida em que Caetano e Gil, através dos concretistas, chegaram também ao conhecimento de certos inventores da poesia. Uma outra razão que eu veria para a passagem às mãos da música popular de tan­ta força era uma certa necessi­dade de aglutinação e liderança a partir de 1964, devido à orfandade em que ficaram as massas. E há uma outra coisa que acho impor­tante: é que os poetas compo­sitores, os músicos, não tinham as caraminholas dos poetas da sé­rie literária e tiraram a poesia van­guardista da prisão de ventre em que ela se meteu com seus rigores formais, sem os compromissos e teorizações muito sofisticados; rea­lizaram na prática aquilo que os poetas literários gostariam de ter realizado. E sobre isso eu diria, sin-

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tetizando, que a essa altura já não se trata de dizer ou procurar saber o que os poetas da música popular brasileira aprenderam dentro da

, série literária, mas, sim, saber aquilo que os poetas da série literá­rili deveriam ter aprendido com os compositores e os músicos.

Finalmente, o último item pren­de-se à posição da universidade nesse complexo, ou seja, hoje se fala muito de estruturalismo, mui­ta gente é contra ou a favor, mas a maioria não sabe o que é isso. E não sabe porque o estruturalismo é uma coisa que se tem que es­tudar para saber, e não simples­mente dar .opinião. Em certo sentido é um pouco mais com­plicado do que o que ocorreu com a geração anterior, das décadas de 50 e 40 a respeito do existencia­lismo. O existencialismo era um pouco mais assimilável, era mais fácil, bastando para isso um pouco de consciência. Com as palavras consciência, história, ontologia etc., na mesa do bar, a conversa fi­cava altamente sofisticada. O es­truturalismo - não vem ao caso se somos contra ou a favor, mesmo porque não há apenas um, mas vá­rios estruturalismos, e até mesmo os pós e o pós-pós-estruturalismo, e até para a critica, digamos no Brasil, que é o nosso caso, uma so­fisticação às vezes perigosa, uma sofisticação que forçou uma cisão entre o público leitor de crítica e o estudante e a crítica, e entre o estu­dante e o professor de literatura. E comum hoje um leitor médio ler um texto de· análise e não entender nada; em primeiro lugar, ele não tem que entender esse tipo de aná­lise, como eu não tenho que enten-

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der um tratado de medicina nem de astronomia, quer dizer, a crítica tende cada vez mais a se tornar uma especialidade e criar níveis possíveis. Há uma critica de jornal, que é outra coisa, e assim por dian­te. Mas o que para mim é impor­tante nessa ótica que enfoca a uni­versidade no meio qa problemática da cultura brasileira atual é que ela não só ajudou essa especialização, mas está se esforçando hoje para trazer para dentro de si a própria criação, a própria criatividade, ao invés de ficar pura e simplesmente nas verberações teóricas. Assim, quando vocês encontram um Os­man Lins dando aulas na Faculda­de de Filosofia, a Nélida Piiion, que está presente e já deu aula em faculdade federal, através de um workshopping, ensinando os alunos a escrever e discutindo a constru­ção da própria obra, quando um Autran Dourado, que deu em 73 um curso na PUC sobre sua pró­pria obra, quando um Ciro dos Anjos, que deu durante vários anos um curso na Universidade de Brasília sobre criação literária -quer dizer, quando esses escritores voltam para a universidade para começar a realizar essa integração entre a crítica e a criação -, parece que a universidade brasileira está amadurecendo e estamos entrando em uma nova fase. Seria, já que se copia tanto o modelo americano, pelo menos copiar as coisas melho­res. O que há na universidade ame­ricana é o escritor visitante, o artis­ta visitante, o poeta residente etc. Assim, haveria efetivamente uma interação entre a criação e a crítica. Antônio Houaiss- Eu suspeito que vamos ter um pouco de pendulari-

dade porque agora não é tanto um teórico mas um prático que vai fa­lar, e eu tenho certeza de .que ele vai falar um pouco de sua própria an­gústia, perante nós todos. Tem a palavra Antônio Callado.

ant6nio callado

Para dar" um depoimento, em termos gerais, sobre a literatura brasileira de ficção, eu diria que o romance esbarra agora, como em é­pocas anteriores, com a censura, mas que no fundo o obstáculo maior para o seu cultivo liga-se à própria evolução política e econô­mica do país. A primeira condição para o pleno desenvolvimento de um romance rtacional é que um grupo substancial de escritores possa dedicar tempo integral a es­crever livros, e a primeira condição • para que isso seja possível é que existam leitores, os quais, com­prando os livros, remunerem o escritor. Não há política de prê­mios literários ou outros incentivos do mesmo tipo que substitua o in­centivo do poder aquisitivó de uma massa de leitores subsidiando os autores. Esta é a verdadeira liga­ção, o grande nexo entre · os que trabalham para transformar em ficção, em símbolo, a realidade material e mental de um país, e aqueles que absorvem essa ficção. O prêmio, útil até onde vai, tem seu aspecto de sucedâneo, de falsi- · ficação do outro estímulo que é vi­tal. Ele constitui, talvez incons­cientemente, um dos instrumen­tos com que se mantém no Bra-sil os dois Brasis: um, vasto, ig­norado e desassistido; e um outro,

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pequeno e cioso de seus privilégios. Est_e último pode, oficial e privada­mente, pagar àqueles que o servem e que o divertem. O Brasil me pare­ce um grande país com vocação para país pequeno. Tem muita ter­ra, mas desde o primeiro século e até hoje só admitiu nela um peque­no número de pessoas. Nunca se conformou, mesmo depois de abo­lir, tão tardiamente, a escravidão negra, em abrir suas terras para formar a grande classe média rural que daria envergadura e substân­cia ao grande país. Copiamos mui­ta coisa dos EUA, como lembrava Afonso há pouco, inclusive boba­gens, mas não imitamos até hoje o largo gesto de Jefferson entregan­do as terras do oeste àqueles que as conquistassem. Não há semana em que os jornais brasileiros não noticiem conflitos de terras no Bra­sil, e não. apenas na Rondônia e no Acre, que estão sendo abertos ago­ra, mas no próprio Paraná e até no litoral paulista. Todos os dias ve­mos os grileiros avançando nas ter­ras que os pequenos proprietários cultivam, depois de registrá-las no INCRA. A barreira erguida contra uma ampla distribuição de terras no Brasil foi sempre, e continua sendo, de meter medo. E não fal­tam economistas para provar que o minifúndio é pior que o latifúndio, que as cooperativas funcionam mal entre nós etc. Só as grandes empre­sas agropastoris, argumentam, podem fazer render um país grande como o Brasil. Com isso natural­mente servem ao Brasil pequeno, de eleitorado pequeno, de catálo­gos telefônicos pequenos, de Who's Who microscópicos e, no que nos

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concerne aqui, com muito pouca .gente para ler romances. A mani­festação mais extraordinária da consistência, da coerência secular do Brasil pequeno é provavelmente a que se cinge a esse problema fun­damental da posse da terra. Tanto assim que esse Brasil pequeno con­seguiu o milagre de confinar siste­maticamente, a uma espécie de cur­ral de bandidos e de místicos, to­dos aqueles que se revoltam em nome da posse da terra. Desmasca­rar esse truque histórico foi a tese de um livro de imensa importância na historiografia brasileíra, Cangacei­ros e Fanáticos, de Rui Facó. Não pensem que estou me afastando do tema da literatura brasileira. Um dos maiores livros dessa literatura não é propriamente ficção, mas constitui o Pico da Neblina, o pon­to mais alto do barroco literário entre nós, e se chama Os Sertões. Este livro relata, fundamentalmen­te, a luta pela posse da terra, apre­senta essa luta transfigurada, dra­matizada. Euclides da Cunha, e nisso agiu como verdadeiro e an­gustiado artista, fez primeiro seu tra· balho de repórter sobre Canudos para O Estado de S. Paulo, mas de­pois a si mesmo perguntou o que significava toda aquela sangueira, e o extraordinário espetáculo de lan­çar o exército nacional em sucessi­vas expedições contra aquilo tão pobre que ele mesmo chamou de Tróia de Taipa. E então lembrou que a primeira aparição pública de Antônio Conselheiro fora contra um imposto que gravava terras e acompanhou sua transformação para religioso e místico. O Conso­lheiro acabou querendo lotes de

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antônio callado

terras no Céu; no chão do Brasil não arranjava, não. De Canudos, que acabou em 1897, a agitação pela terra apareceu tanto no Con­testado em Santa Catarina, de 1912· a 1915, mais ou menos, como no Juazeiro do Padre Cícero, em 1913. Movimentos desse tipo, em zonas miseráveis do país, a princí­pio criam esperança, criam empre­go, criam até esmolas, por isso atrai toda espécie de gente de áreas extensas do interior, e acabam por originar uma coletividade, com seu nível cultural baixo e seu instinto religioso acentuado. Os líderes des­sas comunidades, como disse e re­pete Facó em todo o seu livro, aca­bam nos livros de história do Bra­sil como bandidos e fanáticos, e são descritos como uma combus­tão espontânea, enjoativa, de sujeira e crendice. No entanto, graças ao gênio de Euclides, o país nunca mais esqueceu o que lhe custou · des_truir Canudos, e mesmo sem Euclides sabemos que millhares de soldados foram mobilizados para

antOnio cândido

sufocar a revolta do Contestado e a de Juazeiro. A luta de Juazeiro teve seu epílogo num episódio ex­traordinário da luta pela terra no Brasil, no fim do decênio de 1930. O chamado Beato, José Lourenço, tinha terra no Caldeirão que o Pa­dre Cícero lhe dera, terra ruim, mas que Beato e seus camponeses transformaram numa próspera re­pública lavradora. Desmantelado o Caldeirão pelas tropas da F orça Pública do Cearà - pois temia-se que Beato se transformasse num novo Antônio Conselheiro - saí­ram José Lourenço e seu pequeno povo e foram se instalar em outro sítio da Chapada do Araripe. Quando no dia 10 de maió de 1937 a F orça Pública voltou para des­mantelar a segunda cidade de José Lourenço, os policiais foram su­mariamente. trucidados. O en­tão ministro da Guerra, o gene­ral Eurico Dutra, resolveu que não haveria nenhum prolongado Canudos naquela altura do século. Seguiram para o local tropas sedia-

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tàs em Fortaleza e até mesmo· aviões que tudo arrasaram. O qua­dro assim é que, depois de uma Abolição que foi a última no mun­do e que se arrastou mediante leis protelatórias de 1831 a 1888, não partiu o Brasil para um programa intensivo, nem de distribuição de cultura nem de distribuição de ter­ra. O Brasil grande havia resolvido que muita terra e muita letra devia ficar para pouca gente. Para o grande número eram coisas dispen­sáveis coisas que se podem cortar das despesas, supérfluas, como, di­gamos, um abat-jour lilás ...

Eu me detive um pouco em re­lembrar esses episódios porque eles naturalmente não são fruto da de­cisão de alguma espécie de imutá­vel grupo de homens maus instala­dos no poder. Representam, antes, um estado de coisas que nos envol­vem a todos nós. Eu não acho que escritores devam ser necessaria­mente engajados, quando escrevem, mas devem sê-lo como cidadãos, Escritores e todos os demais membros da classe pensante que, queira ou não queira, goste ou não goste, beneficia-se da injustiça que tem dominado a história do país, ou pelo menos não sofre muito com ela. E os escritores devem preocupar-se mais ainda com uma situação que lhes cerceia o público e não lhes concede o tempo inte­gral de criação. Afinal, somos pou­cos no mundo inteiro os que escre­vemos e lemos o português, e o que se observa no Brasil é que casas de favelados freqUentemente têm o seu televisor, mas dificilmente con­terão um livro. Uma literatura não se faz com fatalismo e partindo-se do princípio de que os gênios sem-

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pre se manifestarão, quaisquer que sejam as condições de um país e de uma cultura. Os grandes e ricos períodos de literatura, em qualquer lugar, em qualquer época, apresen­tam o mesmo quadro de uma sóli­da produção literária em todos os níveis. Em volta dos quatro gregos de cujos nomes todos nos lembra­mos em matéria de teatro havia mais de uma centena de autores teatrais contemporâneos em Ate­nas : Com o analfabetismo e o pau­perismo vedando · a literatura, o Brasil menor, e com a censura difi­cultando o acesso aos livros e às ar­tes mesmo na área do Brasil das elites, reduz-se a muito pouco o es­paço criador no país. A luta pela ampliação desse espaço, de tanto tempo que dura, com tão poucos frutos , pode parecer improfícua e inútil, mas é a única luta que te­mos, nos livros ou fora deles. Antônio Houaiss - O meu organo­grama está funcionando bem, de modo que passo a palavra agora ao professor Antônio Cândido, dan­do-lhe os minutos de que qui­ser dispor.

ant6nio cândido

Eu começaria de uma distinção feita por Antônio Callado, porque essa distinção me parece muito im­portante para nós compreender­mos a literatura e o escritor no Brasil. Eu distinguiria no mesmo homem o escritor e o intelectual, distinguiria o homem que só tem compromissos com sua pró­pria criação, que é o escritor, e dentro dele mesmo o homem que tem compromissos com a sua so-

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ciedade, que é o intelectual. Os nossos românticos, por exemplo, foram escritores profundamente intelectuais, porque estavam empe­nhados, antes de mais nada, em criar a literatura adequada àquilo que eles entendiam como a fisiono­mia própria da sua nação, da nação que estav_a surgindo . No momento em que nós vivemos - momento que eu gostaria de caracterizar, mas que foi tão bem caracterizado por Alceu Amoroso Lima nas palavras iniciais, palavras essas que estão enraizadas naquela situação hist~ rica tão bem definida por Antônio Callado -, eu diria diretamente que os graves problemas brasilei­ros são em grande parte da coexis­tência, dentro dele, do escritor pro­priamente dito e do intelectual, isto é, do escritor que, para reali­zar a sua missão, a sua vocação profunda, cria livremente - possibi­lidade de criação que foi definida no Brasil pelos modernistas: criar livremente. Por outro lado, esse es­critor sente a necessidade quase imperiosa de participar cultural­mente, de testemunhar sobre o seu país, dadas as circunstâncias extre­mamente dificeis para a vida da in­teligência que nós vivemos neste momento, graças ao regime carac­terizado porAlceu Amoroso Lima. Como é que se apresenta a literatu­ra brasileira neste contexto? Antes de mim, falou um poeta que é tam­bém um teórico da literatura, falou depois um romancista, que é ho­mem de profunda penetração críti­ca, e eu não posso falar, como os que me precederam, na qualidade de criador; posso falar apenas como crítico. Procurarei, então, de uma maneira mais geral, de uma

maneira mais abstrata, definir quais são as características, a meu ver, fundamentais, dessa conjuntu­ra literária que coloca um desafio para o intelectual e traçar as con­dições de trabalho para o escritor. Nós vivemos -este é o traço mais importante de nosso tempo -numa atmosfera de vanguar­da e temos um pouco a idéia de que a literatura só tem sen­tido quando for de vanguarda. Isto é ao mesmo tempo uma contingên­cia do nosso tempo e um grave pe­rigo para a literatura, porque se ela não for de vanguarda não sub­siste no nosso tempo, e se não deixar de ser de vanguarda ela não constrói . A vanguarda, por defini­ção, é algo provisório, e em nosso tem­po, não só no Brasil como no mun­do, há uma tendência para trans­formar o provisório em permanen­te . Não depende da vontade das pessoas, são as condições do nosso tempo. Então o que há de mais im­portante, de mais estimulante para um crítico, é essa espécie de litera­tura condenada à vanguarda. Affonso Romano de Santanna e­numerou num reduzido núme­ro de anos uma grande quantidade de tendências poéticas, e é pelo mesmo que nós sentimos que ne­nhuma dessas tendências tem a for­ça, o relevo ou a capacidade de dura­ção que tiveram tendências poéticas anteriores. Já estamos na fase da vanguarda devorada pela vanguar­da. Então essa tendência, que eu di­ria ser ao mesmo tempo glória e pena da literatura de nosso tempo - não estou censurando ou lou­vando, mas apenas constatando -, manifesta-se na literatura do nosso tempo por algumas ca-

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racteristicas que procurarei des­tacar, pedindo desculpas aos se­nhores por fazê-lo um tanto pro­fessoralmente. Não sou propria­mente um patriarca, como disse Antônio Houaiss, porque me fal­ta, infelizmente, um pouco de an'os para isso. Não sou propria­mente um patriarca mas sou pro­fessor há trinta e tantos anos, de maneira que tenho o vicio do oficio.

Então, com o vicio classificató­rio do professor, imagino que os senhores me perguntem: Quais as características fundamentais dessa literatura sobre a qual falaram Affonso Romano de Santanna e An­tônio Callado? Eu, então, tendo a minha resposta já pronta, como to­dos os professores, concordo ime­diatamente e passo a responder como se estivesse descobrindo na .hora, claro, como todo professor faz. A minha intenção, ao destacar esses quatro ou cinco traços que me parecem importantes, é tentar mostrar os nexos sociais que eles podem ter. De modo que farei uma caracterização inicialmente formal, mas procurarei imediata- ---. mente ligá-la aos aspectos sociais. ~claro que essa caracterização for­mal será feita num nível de relativa banalidade, porque todo esquema de aula é esquema de banalidade. A primeira característica que eu

_veria na literatura de nosso tempo, no Brasil e em outros lugares, é o que se poderia chamar a supressão ou ocultamento dos nexos sintáti­cos, quer dizer, a passagem de um discurso continuo para um discur­so descontínuo. Depois vere­mos isso mais detalhadamente. Em segundo lugar, sobretudo na poe­sia, a busca de uma ordem espaço-

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temporal não linear, em vez de or­dem temporal linear, a narrativa que segue do princípio, meio e fim, A para Z, substituída por uma or­dem que altera esses nexos, e que pa­rece sair do tempo para se projetar no espaço. Em terceiro lugar, um dos fenômenos mais curiosos do nosso tempo, porque esse mexe realmente com os hábitos mentais mais profundos da nossa civili­zação: a substit-uição da me­táfora pela, paronomásia. Isto é, nos tínhamos uma literatura domi­nada pela imagem, pela analogia -"tu és bela como a rosa" -, e agora temos uma literatura dominada cada vez mais pela paronomásia, ou seja, por aquela figura que junta palavras pela sonoridade muito pa­recida, mas de significado diferen­te. Então, quando Murilo Mendes diz, por exemplo, "as têmporas da maça, as têmporas da hortelã, as têmporas da romã, as têmporas do tempo, o tempo temporã", ele está fazendo uma série de páronomá­sias. Em quarto lugar, eu chama­ria atenção para o cultivo intensi­vo da ambigüidade natural do dis­curso. Todos sabemos. que a nossa linguagem é ambígua, a lite­ratura é ambigüidade natural do discurso, em que se procura dimi­nuir essa ambigüidade. O nosso tempo é, ao contrário, um tempo que procura aumentar, reforçar ao máximo as ambigüidades naturais do discurso. Finalmente, em quin­to lugar, pensando mais na ficção, nós vivemos um tempo de ficção não imitativa, ou mesmo delibera­damente antiimitativa, a 1 ficção não mimética ou deliberadamente antimimética, inclusive com uma exploração cada vez maior da pa-

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ródia, exploração que se vem acen­tuando cada vez mais.

Affonso Romano . de Santanna mencionou a lixeratura, que po­de-se dizer, é literatura feita com sucata cultural. Penso, por exem­plo, no livro Me segura que eu vou dar um troço, de Wally Salomão, ou no livro de Gramiro de Matos, o Urubu Rei, que são uma tentativa deliberada de romper com os nexos miméticos. Esses fenômenos que es­tou descrevendo sempre existiram, desde

. que a literatura existe eles existem, mas o que acontece e que nos im­pressiona no nosso tempo é que não só isso tem sido hipertrofiado, mas tem-se concentrado em uma massa. e. a. combinação desses tra­ços que dá aspectos tão caracterís­ticos à literatura do nosso tempo, quer dizer, a convergência, a práti­ca sistemática desses traços que são normais, são comuns na literatura. Não teremos tempo, evidentemente, para desenvolver esses cinco tópicos. Entretanto, falando um pouquinho mais de cada um, eu diria que essa ocultação dos nexos sintáticos, essa descontinuidade do discurso, é devida a uma tendência crescente para a fragmentação . Essa tendên­cia para a fragmentação surgiu com o romantismo. Nós nos lembramos das antologias român­ticas onde a poesia tem estrofes se­paradas por pontos. Geralmente, quando se põem pontos separando uma estrofe da outra é porque o autor da antologia fez um certo corte, e aquilo é para marcar o corte. Os românticos não usavam isso pensando na edição de tex­to, e sim para dar justamente a idéia de que um texto está separa­do do outro, de que se trata de

' fragmentos. Aquela idéia tradicio­nal de que o discurso é uma coisa unida, fechada, completa em si, co­meça a ser rompida pelo roman­tismo, e isto "se manifestou através da edição das obras de André Che­nier, porque, como essas obras fo­ram em grande parte conhecidas por esboços e fragmentos, os edito­res reuniram esses esboços e fragmentos , já que havia poucas poesias completas. Então os poetas sentiram a importância do frag­mento, e de como um fragmen­to podia constituir a poesia. Mas é claro que isso não bastava, não é por um acidente histórico de edi­ção critica que vai surgir uma ten­dência tão arraigada como essa. É porque o romantismo manifestara um tipo de personalidade - abrir a porta de um ·mundo que é o nos­so - onde nós mergulhariamos cada vez mais no discurso descontínuo, no fragmento e numa espécie de perda do senso de totalidade. Essa perda do senso da totalidade, que é nítida na nossa sociedade, que causa tanta angústia a todos nós e que no discurso literário está tra­duzido, entre ·outras coisas, por esta tendência à fragmentação e que vem a dar na ruptura dos nexos sintáticos normais. Mais ou tão cu­rioso quanto isso é a ruptura da or­dem linear baseada no tempo. Nós estamos numa fase de desconfiança com o signo verbal. Isso ficou claro . na exposição do Affonso. Há cor­rentes poéticas no Brasil atualmen­te que buscam a poesia exatamente através do signo não verbal, do li­mite até a própria imagem visual, entrando na poesia. Essa renúncia à palavra - que é uma caracteristica do nosso tempo, que em São Paulo

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conhecemos através das experiên­cias de Décio Pignatari, que vieram dar no poema-processo e outras tentativas - significa pratica­mente a supressão da·palavra, sua substituição por uma imagem pu­ramente visual.

Está claro que esta desconfiança em face do signo verbal, essa bus­ca de signos não verbais, está ligada ao impacto dos novos meios vi­suais, está ligada a uma certa aber­tura para outras escritas, pelas es­critas figurativas, que são carac­terísticas do nosso tempo e que provavelmente significam a expres­são de um novo ritmo de civiliza­ção . Estamos também no li­miar desse novo ritmo de civiliza­ção, e é extremamente curioso nós também constatarmos que isso não é fruto do arbítrio, isso não é fruto de um capricho, isso tem uma mo­tivação cultural muito profunda, é como se a visão verbal do mundo cedesse lugar a uma visão que ten­de a outros signos, inclusive a abs­trações. A combinação dessas duas tendências, ·ou seja, a tendência à fragmentação, a tendência para o ocultamento dos nexos sintáticos, ligada a essa busca de uma outra ordem que não seja a ordem tem­poral tradicional baseada na pala­vra, marca um traço muito carac­terístico do nosso tempo que é o que nós poderíamos chamar de ob­sessão combinatória. No nosso tempo, a literatura tem uma ten­dência para se apresentar como realmente uma construção mental. A velha idéia que era o que de mais importante havia na poesia, de poesia como algo dado por uma força obscura, isso foi totalmente suprimido. Essa busca de nexos

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puramente lógicos, que é uma das manifestações do cor.cretismo, construído~ pela vontade por meio da análise combinatória, é carac­terística do nosso tempo. Nós po­deríamos pensar no significado que isso pode ter,ou seja, nas vantagens e perigos culturais que isso acarreta.

A lógica se dirige aos elementos conhecidos, a lógica só opera sobre elementos conhecidos, portanto elementos de um mundo bem limi­tado. Qualquer atitude criadora que se limita aos elementos conhe­cidos de um mundo delimitado de certa maneira pode reduzir a in­venção e pode cercear a fantasia criadora, em benefício dessa visão combinatória, porque a lógica, repito, dirige-se àquilo que é co­nhecido, enquanto a intuição, a fantasia, a imaginação é que são os grandes caminhos para o des­conhecido. Uma poesia combina­tória e racional seria uma poesia sem invenção real? É um problema que já Trotski levantava em 1923, quando de suas críticas aos formalistas russos. Essa substi­tuição da metáfora pela parono­másia significa uma crise da visão analógica. Alguém já disse que a civilização ocidental se baseia sobre a noção de analogia, e a lite­ratura do Ocidente se baseia na metáfora, porque há outras civili­zações que não cultivam a metáfo­ra - como é o caso, por exemplo, da poesia japonesa, chinesa, que não desenvolvem a metáfora como a poesia ocidental. A visão analógica está na base da metáfora - "tu és uma rosa", "o crepúsculo parecia um incêndio" -, é a visão analógica. Essa visão analógica pressupõe uma visão referencial: eu refiro o

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meu discurso, a minha palavra ao mundo, porque o discurso toma o mundo como arsenal das compara­ções. Agora, nessa era industrial em que vivemos, quando criamos objetos sem parar (e parece que o homem tem a capacidade de fa­zer concorrência à natureza), a ânsia de criar novos objetos afasta o homem das formas natu­rais, e vai-se criando então um mundo paralelo, um mundo autô­nomo, que é uma espécie de dupli­cação do mundo natural. E no domínio da .palavra literária eu te­nho então a tendência para criar também os mundos paralelos atra­vés, por exemplo, da associação so­nora, que é o caso da paronomásia. criar mundos que fossem suficien­tes em si mesmos.

Quanto ao cultivo da ambigüi­dade natural do disc~rso, podemos dizer que o cultivo dessa ambigüi­dade se opõe a toda tradição clássi­ca que recebemos, porque em­bora, como eu disse; todo discurso seja ambíguo, o esforço do escritor clássico é no sentido de destruir essa am bigUidade, ~ transformar o discurso numa coisa tão clara, tão única, que conhecemos a ex­pressão dos manuais de estilo: "qualquer outra palavra no lugar daquela seria impossível". Para cada coisa, uma só palavra que es­gota aquele objeto. No mundo em que vivemos, nós parecemos ter medo dos sentidos únicos, nós evi­tamos a delimitação mutiladora do mundo, evitamos uma definição muito marcada a respeito do mun­do. Daí, um mundo em que a obses­são da ' polissem ia, a o-bsessão do que alguns chamam de pluri-sig­nificado, a obsessão da ambigüi-

dade, que levou a esse conceito de obra aberta. Também nós sabemos que toda obra é aberta, mas trata­se de fazer uma obra que seja pre­dominantemente aberta - a obra que seja sobretudo aberta. As obras que se ordenam segundo uma abertura nos parecein, hoje, mais legítimas do que as obras que se fecham numa intenção de signi­ficado único. De modo que aquilo que, para a literatura clássica, era a aberração, para nós passou a ser a própria condição da criação. Este movimento é um movimento cres­cente desde o modernismo e que adquiriu uma importância extraor­dinária no nosso tempo, com a criação dos sentidos possíveis, dos sentidos desmontáveis, como em Cortázar, e a invasão da ficção pelo insólito, como em Guimarães Rosa, como em Murilo Rubião, como tantos outros da ficção cor­rente, e na poesia as tendências às quais o Affonso fez referência.

Para terminar: o problema da dissolução da narrativa realista pressupõe todos esses itens arrola­dos até agora. A mesma crise de superação do mundo referencial em favor de produtos que se bas­tam a si mesmos ocorre na ficção. Isso está ligado a um fato marcan­te nos nossos dias, que parece rela­cionado ao fato também marcante no terreno. social atual, que é a completa transformação das hie­rarquias sociais. O nosso tempo é de uma recomposição total das hie­rarquias tradicionais, com a força que a luta de classes assumiu, com a substituição da posição das classes e as tensões nesse sentido. Na· literatura é o problema da transformação dos gêneros lite-

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rários; houve uma perda de pos1çao dos gêneros, uma fu­são de gêneros, como decorrên­cia dos elementos colocados em contextos que são alternativos, são paralelos ao mul)do existente, ou seja: no limite nós temos a antimi­mese. Para terminar, lembraria esse movimento chamado "con­tracultura" e gostaria de formular a seguinte pergunta: seria possível nos contentarmos com essa litera­tura que nos atrai tanto, esse tipo de poesia que foi descrito aqui, esse tipo de romance não-mimético, esse tipo de descontinuidade e frag­mentação? Isto af é uma coisa que corresponde exatamente às nossas necessidades e nós queremos isso? N 6s aceitamos isso, sem dúvida ne­nhuma, mas ao mesmo tempo eu chamaria a atenção de vocês para um caso muito curioso, que é a in­vasão da nossa literatura pelo gê­nero das memórias. Tudo aquilo que n6s colocamos fora do romance ou do conto estâ sendo recuperado nos livros de memórias. O sucesso de um livro como Baú de Ossos, de Pedro Nava, que é um livro de alta

debate Pergunta- Gostaria de saber o mo­tivo da ausência de escritoras à mesa. Hoaalss - Pode crer que não hou­ve "porco chauvinismo .. nenhum da minha parte. Foi uma mera circunstância que me permitiu, primeiro, um nome que eu re­putava essencial e estou -satisfeito disso; segundo, procurei um cria­dor; terceiro, um jovem e experi­mentado professor. Havia possibi­lidade de um veterano do pensa-

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qualidade literária, dâ a impressão de que os leitores vão procurar -esse pequeno público leitor de que fala Antônio Callado, que procura em livros de memórias - aquela espc> cie de caminho para o mundo refe­rencial que a literatura lhes está ne­gando. Nós temos a tentativa da Idade do Serrote, de M urilo Men­des, que é autobiografia caminhan­do não para o romance, mas para a poesia. Tanto num sentido quanto noutro, nós temos uma espécie de teimosia do mundo referencial, temos uma espécie de permanência desse desejo de ver a literatura re­presentando o mundo em que vive­mos. Então, eu não tiro conclu­sões, que não decido, não julgo. Eu apenas apresento aos senhores esse panorama.

Antônjo Houaiss - Não sei se vocês estão satisfeitos com essa pri­meira fase do painel. Eu, pessoal­mente, estou satisfeitfssimo. De­veríamos ter agora 10 minutos para receber as questões formula­das pelo auditório, e logo em se­guida prosseguiremos com os nos­sos trabalhos.

mento brasileiro, mas realmente não havia espaço para mais. De maneira que eu aceito a critica. Eu poderia ter pedido à Nélida Pinon para estar aqui e tenho certeza de que seria magnífica a presença dela. Poderia ter muitas mulheres alta­mente representativas, mas real­mente não houve discriminação de sexo, porque não pensei em sexo. ao formar a mesa. Creio que essa é uma razão bastante. Inclusi­ve porque a problemática da mu-

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lher, dentro da literatura brasileira, não é tão diferente ·da problemáti­ca do homem: é uma problemática comum. Não falemos de Academia Brasileira de Letras, porque isso nada tem a ver com literatura, está claro. Então, não houve discrimi­nação, foi um acidente simples­mente ... Era minha intenção orde­nar as perguntas de forma mais ou menos seqüente, mas ao cabo das lO primeiras vejo que terão que ser formuladas mesmo de maneira sal­teada, picadinha, e que cada um in­tervirá de acordo com o apelo que lhe for feito . Pergunta - Gostaria que o senhor desse sua opinião sobre as causas da identidade, no momento atual, da literatura, da poesia, com a mú­sica popular. Noutros termos, ela­bore mais a matéria que você tão brilhantemente expôs. Affonso - Realmente a idéia matriz tem que ser melhor desenvolvida, mais pensada. Ela me surgiu quan­do escrevia um livro sobre música popular e poesia moderna brasilei­ra. A idéia básica é de que até re­centemente havia uma separação entre literatura e música popular. Essa separação me parece ser muito semelhante à separação de gêneros e outras separações e clas­sificações sociais de nossas comu­nidades. A tendência à mixagem, à mistura, à massificação, a uma mensagem que se interpenetre em todos os sentidos, teria levado a essa intercorrência da poesia cha­mada erudita ou literária com a poesia popular. Mas entre os diver­sos fatores há um especificamente brasileiro: é que, a partir da década de 50, um público universitário de classe média começou a produzir

maciçamente música popular, atra­vés da bossa-nova, e depois in­tensificou-se o processo do que nos EUA se chama drop out, .:. os cai-fora da universidade, como Chico Buarque, Caetano, Gil e ou­tros. São indivíduos, portanto, com uma certa sofisticação que se dirigem para a música popular misturando, adaptando um back­ground, uma certa cultura que eles têm, à chamada música popular. Quer dizer: haveria um problema social que é essa classe média de es­tudantes e depois um cruzamento geral dos gêneros literários, inclusi­ve gêneros populares e gêneros eru­ditos. Essa idéia de gênero é tão importante que se pode fazer até uma blague que não deixa de ser verdadeira: a mistura dos gêneros levou também a outros níveis, ou seja, à androginia, que é outro tipo de mistura de gêneros ... Houaiss - Há duas perguntas diri­gidas · a Antônio Cândido: a pri­meira, ressalto que não está assina­da, e tem o fato curioso de não ter caracterização, na letra, do sexo de quem a mandou: "Qual o autor brasileiro preferido? Te adorei". Mas para o prof. Antônio Cândi­do, que responderá a essa adora­ção como quiser, a pergunta prin­cipal é a seguinte: "O problema da necessidade de um mundo referen­cial em literatura não reflete um problema maior de filosofia do próprio questionamento do ser hu­mano em que ele se desvencilhou de uma série de valores sem, contu­do, encontrar outros?

Antônio Cândido - Eu diria que, sem dúvida nenhuma, o proble­ma da necessidade de um mun­do referencial em literatura... f:

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claro que a relação do momento de literatura extremamente refe­rencial e mesmo reprodutiva, como o naturalismo, pressupunha uma visão do mundo baseada numa certa filosofia que pressupunha a integridade do objeto, certo tipo de relação sujeito/ objeto. De­pois que houve a relativização do conhecimento científico, o princí­pio de determinação, tudo isso está ligado diretamente a essa questão. Sobre a primeira per­gunta, sobre o meu autor brasileiro preferido, eu não saberia respon­der; aliás, se soubesse não respon­deria porque sou mineiro. Pergunta - Traçado o paralelo, com perfeição, entre o Brasil gran­de e o Brasil pequeno, qual a possi­bilidade de o escritor, como cabeça pensante, liderar e preparar uma mudança social, colaborar na aceleração do processo da revolu­ção brasileira? O romance rural se­ria a primeira opção? A ida dos in­telectuais para o campo a fim de se dedicarem integralmente à sua obra? Callado - A ida dos intelectuais para o campo, até que eu acho sim­pática. Eu, por exemplo, gostaria muito da idéia. Agora, quanto a esse romance rural, não; não acho que seja o caminho; quem quiser fazer romance rural que o faça, e pode fazer muitíssimo bem, inclusive dentro mesmo das ca­racterísticas modernas tão

· bem descritas aqui pelo Antônio Cândido. Mas eu não acho que isso é o importante. O impor­tante é que o escritor, como in­lectual, participe, que ele não se isole, ainda que ele queira, por temperamento, por decisão, fazer

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uma obra inteiramente desligada de uma mensagem social direta. Isso é de somenos importância. O importante é que ele tenha presen­ça e não se furte às manifestações. Realmente, eu não posso imaginar que alguém aprove exatamente o meio como nós temos evoluído como país. Acho que o escritor, quando pensar assim, dev_e dizê-lo, e acho, inclusive, que ele deve pen­sar dessa maneira. Houaiss - A próxima pergunta é dirigida à mesa e pede o favor, se possível, de se ler mais uma vez a mensagem de Alceu Amoroso Li­ma. Não irei lê-la pelo simples fato de que a minha esperança é de que essa mensagem, dentro de al­guns poucos dias, venha a ser publicada na coluna regular de Al­ceu Amoroso Lima no Jornal do Brasil. Prefiro que vocês a leiam impressa do que a ouvirem de no­vo, porque creio que poderão pen­sar um pouco mais tendo o texto à disposição de vocês. Pergunta - Gostaria que você ex­plicasse as razões pelas quais o Ci­clo de Debates atrai tanta assistên­cia e tão poucas questões. É que todo mundo anseia apenas porres­postas? Affonso- Não sei se entendi a per­gunta. Tem muita questão aqui. Porque atrai tanta assistência, é óbvio: há uma certa comoção, uma certa saudade, um certo banzo da companhia .. . Pergunta - O senhor situou a ten­dência da literatura num curto período do tempo. Como ocorreu essa evolução nos dois últimos sé­culos? Dentro dessa visão global a essência literária não foi purifica­da? A colocação feita daquela for-

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ma não coloca a presente análise numa posição imediatista? Antônio Cândido - Sem dúvida ne­nhuma existe uma visão muito ime­diatista. Deu para perceber, inclusive, o seguinte: destaquei as­pectos que são, vamos dizer, os mais contundentes do nosso tem­po. Deixei de mencionar que, ao lado dessa tendência, continua a haver, por exemplo, no Brasil, pro­dução literária ligada a uma visão ortodoxa, ou uma visão mais clás­sica, de alto nível. Eu me restringi aos aspectos daquele pressuposto de vanguarda, do qual falei previa­mente. Ficou de fato imediatista. Também é verdade o que diz aqui a pergunta, que nesse processo de,de­puração, que veio ao longo desses dois séculos, houve depuração líri­ca, por exemplo: uma concentra­ção de todos os gêneros num cam­po cada vez menor, cada vez mais específico, cada vez mais depura­do, que levou até o fim dos gêne­ros. São os problemas da pureza. Quanto a fazer o retrospecto dos dois séculos, evidentemente não é possível. Pergunta- No Brasil de hoje, vive­se uma situação em que os literatos se defrontam não apenas com pala­vras, mas também com atos que em certos momentos os tolhem, como escritores e como cidadãos. Qual a opção ou opções? Existem? Qual, se no quadro político nacional a participação está reduzida a duas legendas partidárias, Arena e MDB? Callado - Para começo de conver­sa, acho que tanto Arena como MDB podem eles próprios tratar de uma expansão de dentro para fora, que lhes aumentem a co-

municabilidade. Agora, no mo­mento, realmente não há opções fora desse bipartidarismo, mas pelo menos já há. a consciência de que o bipartidarismo não está fun­cionando bem. I: uma conquista pelo menos de conscientização do problema. E se realmente a nossa distensão interna caminhar melhor que a da URSS e dos EUA, por exemplo, acho possível que dos próprios partidos possam sair re­bentos novos que venham alterar essa situação. Mas no momento não vejo, de fora, como isso possa ser possível, para falar com fran­queza. Houaiss- Há uma entrevista recen­te, saída em O Estado de S. Paulo, de Afonso Arinos de Mello Franco, de certo modo tocando nessas questões. Eu gostaria apenas de re­ferir um fato que me parece muito relevante de toda a sua entrevista, em aditamento ao que acaba de di­zer Antônio Callado. Essa referên­cia num cotejo entre os dois parti­dos legalmente existentes no país alude a um fato público e notório que foi o quase inesperado avanço de um deles. E ele diz taxativamen­te: "Não foi o MDB que fez o elei­torado, foi o eleitorado que fez o

.MDB". Pensem nessa questão, leiam a entrevista e compreenderão que há aí um certo sentido de pos­sibilidade. Pergunta - Você poderia dissecar um pouquinho mais o movimento tropicalista? · Affonso - A idéia básica do tropi­calismo, em ligeiras tintas, é de que o artista brasileiro deve assumir as contradições de seu país, as contra­dições dos trópicos, e assumir essas contradições implica em ter uma

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visão crítica sobre a trad)ção e so­bre o presente nacional. Para: exem­plificar: quando Caetano Ve- 1

loso faz Tropicália. que todos vo­cês conhecem, na verdade o texto é uma espécie de rapsódia, é uma montagem de elementos pertencen­tes a faixas diversas da cultura bra­sileira. Nessa letra entram Carmem Miranda, Iracema (de Alencar), Roberto Carlos, iê-iê-iê, os Beatles, enfim, uma súmula cultural crítica da situação onde vive o brasileiro médio e implicitamente o cantor médio brasileiro. Agora, isso é coordenado dentro de uma certa visão política que estilisticamente é permitida pela paródia, ou seja, ele se apropria de te~tos existentes na literatura e na música, inverte o sentido desses textos, para criticar uma ·determinada realidade. De maneira que, quando em artes plásticas também começa a haver uma crítica assimilativa, o chama­do kitch, da pintura de parede, das andorinhas, -dos colibris, dos pin­güins na geladeira etc., isso é uma tentativa de incorporar a Zona Norte, o chamado mau gosto, ao mesmo âmbito estético. Quer di­zer: é na verdade, é um esforço de maioridade crítica. Em vez de continuarmos diante das belezas gregas ou das belezas estatuídas no Brasil, assimilar aquele mundo que Nélson assimilou tão bem, e Dal­ton Trevisan também assimilou tão bem, nos subúrbios de Curitiba. Seria um assunto muito longo, mas essas duas canções servem bem para mostrar isso, uma de Caetano V eloso e outra de Torquato e Gil, chamada Geléia Geral. Pergunta - Há algum critério cien­tificamente válido que nos possibi-

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lite afirmar que um livrinho de bol­so da Bruguera, um livrinho popu· lar, popularesco, não é uma obra de arte e que Quincas Borba o é? Antônio Cândido - Ressalto o fato de que, por ser uma coleção popu­lar, não significa que não contenha obras que sejam de arte. Agora, partindo do pressuposto que se tra­ta da oposição entre um livro de pouca valia e o Quincas Borba, o ú­nico critério que se poderia propor como cientificamente válido se­riam as análises estruturais ade­quadas, não estruturalistas. Por­que análise estrutural adequada mostraria a coerência do discurso, e um livro estruturado de acor­d~ com uma certa coerêl)cia é um livro artisticamente ·, vá,lido, e um livro que não seja estruturado de acordo com uma certa coerência não é um livro artisticamente válido. Pergunta - Você poderia expor com mais detalhes o papel do Mobral (ou a política educacional do govern-o) de não identificar a literatura ao nosso povo, que é o grande Brasil? Callado - O Mobral, em si, eviden­temente, é uma iniciativa merece­dora de elogios. Num pais com tantos analfabetos, diminuir essa carga de adultos não alfabetizados é um programa legal. Só há um problema com o Mobral: é que ele por definição deve durar pouco no tempo, isto é, alfabetizar os adul­tos e extinguir-se a si mesmo. Para isso é preciso que haja a contrapar­tida de unia oferta muito grande de educação no nível infantil. Do con­trário, nós vamos eternizar o Mobral e esperar que as crianças cresçam sem saber ler para depois atendê-las no Mobral. Agora, se

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houver essa contrapartida, está certo. De qualquer forma, eu gosta­ria de saber a data de extinção do Mobral. Isso é fácil de calcular, pela fáixa de idade etc. Quanto a segunda parte, não será exata­mente que o governo não quei­ra · difundir a literatura entre o povo. É que realmente a oferta de literatura encontra esse universo muito pequeno, e portanto reduzi­do, num país que admite ainda a existência de 30% de analfabetos. Há uns 30% que, digamos, chega­rão a ler jornal, mas não chegarão a fazer parte de um universo cultu­ral mais denso. É um pouco o pa­pel da literatura ir forçando essas margens restritas e de qualquer maneira lutar, como eu disse antes, para que o Mobral funcione bem e rapidamente, e que as crianças aprendam ·a ler em tempo e hora. Pergunta - Por que a invasão das correntes estruturalistas na univer­sidade, principalmente na área da crítica literária? Será um escapismo alienante e cômodo da parte dos professores, a fim de evitar compro­metimento com as correntes críti­cas mais engajadas com o social e o político? Affonso- A pergunta é boa porque nos possibilita fazer uma observa­ção pequena mas que creio funda­mental. Já se repetiu muito que não existe estruturalismo, e sim es­truturalismos diversos. Além disso, a idéia de que estruturalismo é sim­plesmente, puramente, algo reacio­nário, formalista, é uma idéia de quem tem pouca informação no campo. Existem diversos teóricos que trabalham dentro do estrutu­ralismo que adotam linhas sociais e políticas bastante agressivas. O que

diferencia o estruturalismo do não­estruturalismo, da crítica social, não é que um é alienado e o outro social, não é nada disso. São ins­trumentos para operacionalizar o texto. Há um certo instrumento pa­ra desmontar o texto, reconstruir seu simulacro e outras palavras que tais. Portanto, a pergunta é bem intencionada, mas reflete um certo equívoco geral e não uma verdade. Eu mesmo tenho um livro de análise estrutural de romances brasileiros e não sou estruturalista, e esse livro faz, na verdade, um apanhado da · ideologia da escrita do romance no Brasil. O estrutura~ lismo, nesse sentido, com todos os seus defeitos, tem muito mais ins­trumentos para se fazer-a crítica da ideologia do que qualquer outra corrente. É uma corrente que ensi­na, dá instrumentos para se ler o inconsciente da obra, a enuncia­ção, a sua camada profunda, que nos possibilita ver a ideologia ocul­ta atrás de certos textos. Nós às ve­zes pensamos que um texto é muito pra frente, muito revolucionário, e uma decomposição de seus elemen­tos vai demonstrar exatamente o avesso. Mas o oculto nem sempre é

·visto pelo leitor médio. Pergunta - Gostaria que você relacionasse melhor a chamada obra aberta e a ambigüdade co­mo valor criativo com o nosso tempo e as suas características . Antônio Cândido - Acho difícil res­ponder a essa pergunta porque é todo o problema que se tem que abrir. Eu apenas lembraria de novo o que já disse nas palavras que pro­nunciei: que a questão da obra aberta é uma questão que está liga­da à contingência da crise dos gê-

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neros. Portanto, significa o fim de uma visão do mundo, significa o fim da certeza, o fim da possibili­dade de se atingir a uma visão uní­voca; a própria pergunta já contém a resposta, ao relacionar a obra aberta com as características de nosso tempo, que é essa imensa transição, a busca de novas certe­zas . A teoria da obra aberta é uma teoria que, sob certos aspectos, reflete as perplexi­dades de nosso tempo. A per­gunta é muito interessante; mas é tão geral que a gente só pode res­ponder assim de um modo um tan­to banal, dentro dessa generalidade toda. Pergunta - l) Qual a mensagem fi­nal de Quarup? 2) Você o relaciona­ria com o problema que você colo­cou de posse da terra? 3) Qual a sua intenção ao fazer de um padre o -.,ersonagem central do livro? Callado - Para começar pelo fim, como já disse certa ocasião o Pas­quim, os padres são hoje as únicas pessoas que realmente querem se casar, as únicas pessoas que estão procurando rumos que de cer­ta forma já foram palmilhados

e acho, brincadeiras à parte, que trazem para o processo geral de um país, sobretudo um país como o Brasil, uma carga muito importan­te que é exatamente uma educação tal como eles a receberam e de uma fé que eles freqüentemente conser­vam e talvez até aumentem no con­tato com uma realidade mais bru­ta, mais direta, com menos prote­ção. Quando à mensagem de Qua­rup a gente sempre prefere que os leitores escolham de certa forma alguma coisa que os impressionou

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mais. O livro é divididÕ em várias partes e tem, portanto, aspectos va­riados da realidade brasileira. Quanto a segunda pergunta, certamen­te existe ali um problema de posse da terra num sentido de que, como eu disse na minha explanação ini­cial, isso é a coisa mais injusta que existe num Brasil tão cheio de in­justiças. De maneira que ela é in­justa mesmo e está presente no fun­do do livro como leit-motiv, uma força fundamental. Pergunta - Como alunos de faculdades de letras pedi­ríamos aos membros da mesa, que são pessoas representativas da cultura literária brasileira, que 'Usassem sua influência para que fosse incluído no currículo de gra­duação em letras uma cadeira de criação literária. Nós absorvemos muita teoria. Callado - Acho a proposta cor­retíssima porque, exatamente como vimos aqui, pelas exposições de Affonso e do Cândido, há hoje um grande sopro de novidades na literatura, e uma força cria­dora muito importante mas que também. comunica · üma perplexi­dade bastante grande. São teorias novas, meios de ver o homem bas­tante distintos e que evidentemente se complicam pela filosofia, pela sociologia, quer dizer, são estrutu­ras mentais, artefatos quase, de uma certa forma, e que requerem um ensino. Acho a idéia corretíssi­ma, sobretudo numa fase assim criadora mas .um tanto perplexa como a nossa e sobretudo num país como o nosso. Cândido - Eu deixaria um pouco de lado a questão só para tocar num aspecto lateral: a idéia de um

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curso de criação literária é sempre uma idéia interessante, muito viva. Há um desabafo, dizendo que há teoria demais, e isso eu acho real­mente uma das coisas mais graves que · estão acontecendo nas faculdades de letras do nosso tempo. Falo de maneira insuspeita porque sou exatamen(e professor de teoria literária e tenho constatado com um certo pavor que todas as cadei­ras de literatura estão se transfor­mando em cadeiras de teoria literá­ria. ·Literatura inglesa, francesa, portuguesa, estão se transforman­do pouco a pouco em cadeiras <;te teoria literária. Tenho constata­do nos questionários que passo aos meus alunos e nas entrevistas que faço, que existem alunos já de pós-graduação extremamente habilitados a falar de toda a Euro­pa, de J úlia Kristeva, dos teóricos em moda, mas que não leram Dos­toievski, não leram Tolstoi, não le­ram Victor Hugo, não leram Raci­ne, e isso é gravíssimo. Nas facul­dades está havendo uma tendência à substituição dos textos literários por textos de teoria literária. Isso é extremamente grave. É preciso que se alerte enquanto é tempo, porque senão vai haver um desvirtuamen­to do ensino da literatura. Teoria literária é feita para ensinar a lite­ratura, e não a literatura para ser 'absorvida pela teoria literária. Nesse sentido, o resultado principal é que está havendo uma tendência para um extremo pedantismo inte­lectual, com essa invasão de teoria literária. Isso é muito grave porque o estudante perde contato com a realidade viva que é a literatura, pa­ra ficar com a reflexão sobre a litera­tura. Eu gostaria de observar ape-

nas o seguinte: é que muitas disci­plinas universitárias são disciplinas que levam a um ·contato direto do estudante com a realidade - é o caso da sociologia, é o caso da botânica, da zoologia -, enquanto que a litera­tura leva a um contato que já é in­direto: o estudante não é levado ao contato com realidade mas ao con­tato com textos literários que por sua vez provêm da realidade. De maneira que estabelecer entre a realidade e a literatura uma nova mediação, que é a teoria literária, é fundamental para os estudos teóri­cos, mas é perigoso para a sobrevi­vência da literatura na universidade. Houaiss - Creio que laboraremos fundamentalmente em torno das mesmas idéias. Em principio, sinto que estou em total concor­dância com a idéia de uma cadeira de criação literária. Mas eu apre­ciaria uma cadeira de leitura de li­teratura, e que constaria do seguin­te: exatamente na seqUência de idéias do professor Antônio Cândi­do, acho que as teorias estão ab­sorvendo tempo demasiado, com prejuízo do tempo que deveria set dedic'ado à leitura comparativa e critica dos próprios textos. Eu não compreendo que uma pessoa possa entender o quanto de inovação haja num texto moderno sem co­nhecer textos antigos, do mesmo modo que não compreendo que se possa reputar uma obra melhor ou pior sem ler essas obras. De manei­ra que as direções que estão sendo dadas muitas vezes permitem que as pessoas se pronunciem sobre li­vros que ttão leram, sobre correntes literárias de que nunca tomaram conhecimento, a não ser através das descrições teóricas, e isso é um

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grande mal. Mas a criação literária presume uma terceira etapa. Ad­mito que a universidade possa inclusive engajar em mais bem do­tados a fim de que eles produzam literatura produzam literatura de certo modo sob estímulos como sé faz hoje em dia com a pintura, que não é ensinada canonicamente, mas pode permitir uma certa dire­ção crítica, isso também seria possível. Em outros termos, a:cho que a reconcerção do ensino de literatura tem que ser refeita in­teiramente a fim de que os percen-· tuais dados para a teoria, para a leitura e para o forjamento de lite­ratura, fossem divididos um pouco mais fecundamente, de maneira que o conhecimento de literatura, que já é uma forma de conheci­mento indireto, não fosse em ter­ceira instância indireto. Que pelo menos se exigisse do aluno a leitura de uma amostra ampla de obras r~almente produzidas. Affonso - Eu acho também a per­gunta muito oportuna, ·concordo de urna maneira geral com as ponde­rações anteriores e gostaria de adi­cionar o seguinte: no ano passa­do, nós realizamos na PUC um encontro nacional de professores de literatura, e um dos problemas levantados e depois aparecido na recomendação final é que exatamen­te as faculdades de letras começas­sem a criar os cursos de criação li­terária. A idéia vinha disso tudo que foi falado aqui, de um descom­passo que há entre viver a litera­tura. e ler sobre literatura. Quer dizer, o artista plástico nos cursos de arte pinta, ele faz a coisa, e o es­tudante de letras não faz, ele lê sobre aquilo que pensa que conhece. Eu

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tenho uma experiência nesse senti­do. Tive a felicidade de passar nove meses nos EUA, num laboratório que era assim: os alunos - havia uma parte internacional e uma par­te doméstica - aprendiam, faziam um curso para escritor, que pode ser criticado de certo ponto de vista, mas tinha o mérito de dar uma sé­rie de instrumentos que o indiví­duo às vezes leva 10, 20 anos para aprender, quebrando a cara, e se ele se mete estudando metodica­mente com quem tem mais expe­riência, poderá avançar mais rápi­do. E no final dos cursos, ao invés de ter que ler a teoria toda de fula­no, analisar livros de beltrano, o indivíduo poderia fazer um livro de poemas, um livro de contos, ou um romance como conclusão, como a tese de seu curso. Eu acho isso algo importante. Houaiss- Acho que devo rematar essa questão que foi tão bem for­mulada dizendo que, se órgãos de publicidade quiserem consignar o fato - espero a concordância da me­sa -, a mesa concorda em que, em princípio, a criação da cadeira de criação literária nos cursos univer­sitários seria, com as características àqui estabelecidas, uma coisa ex­tremamente louvável. Pergunta - O prof. Antônio Cân­dido falou da expansão da teoria dentro das faculdades de letras. Isso não ' estaria levando a guerri­lhas teóricas internas entre os pro­fessores? Affonso - A pergunta é pertinente e maliciosa. EU: diria que de certo há realmente algumas guerrilhas teó­ricas que se estabelecem no mesmo plano daquilo que eu chamei de luta pelo literário. Essas pessoas

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que lutam por impor certas teorias na verdade gostariam de ser sena­dores, presidentes, coisas assim. Quer dizer, na literatura se repete a mesma coisa. Pergunta- Todo favelado tem sua TV mas não tem sequer um livro . Você concorda que é por causa da TV que estão sendo muito vendido os livros Gabriela Cravo e Canela e Helena?

Callado - Eu não estava fazendo nenhuma restrição à TV. Pelo contrário, acho que, ela pode de­sempenhar um papel importante, e o fato que eu mencionei de que quase todas as casas de favelados têm TV e nenhuma quase tem li~ vro é o fato de que a TV realmente atende de uma forma direta a uma sociedade onde existem tantas pes­soas que não sabem ler ou que ape­nas sabem ler. E que a TV venda li­vros, como está escrito aí, não só é verdade como também é excelente, não há menor dúvida a respeito. O que eu tinha exatamente a dizer, neste nível, é que o livro está per­dendo terreno porque não há uma série de reformas que voltem para ele diretamente - sem intermedia­ção da TV -, ou seja, pessoas che­gam à idade de pensar sobre si mesmas e sobre o país em que vi­vem. Este na minha opinião, o ponto fundamental. As iniciativas de TV que levam à venda de livros certamente não levam à venda de livros eritre as pessoas que não sa­bem ler.

Houaiss- Vou aproveitar o Calla­do para uma .questão que é a ele pertinente: quando você escreveu Quarup respondia a uma necessida­de de escritor ou de cidadão?

Callado - Espero que aos dois. Eu não gosto de dissociá-los, e eu es­crevi um livro que, de certa forma, o cidadão também teria de escre­ver. De modo que eu aí reclamo a minha unificação diante do livro. Per,gunta- Onde está o nexo social, em termos de Brasil, que o senhor mencionou mas não explicou? Fal­tou também explicar o compromis­so do intelectual e do escritor. Cândido - Quanto ao nexo social, eu não disse que ia fazer um nexo entre aquelas idéias e o Brasil. Falei do nexo daquelas característi­cas com o quadro social. Foi quan­do me referi, por exemplo, à ques­tão da ligação da fragmentação com a crise da civilização. Estava . falando em termos gerais, não pro­priamente do Brasil. De modo que eu penso que em termos do Brasil só são características da literatura brasileira que estão manifestando condições de crise por que o mun­do está passando. Foi o que eu procurei mostrar rapidamente. Ago­ra, o compromisso entre o inte­lectual e o escritor, esse eu real­mente não expliquei, mas não esta­va no meu projeto. Eu teria muito prazer em fazê-lo, é um tema de que eu gosto muito. Pessoalmente, parto dessa dicotomia acho que existe o intelectual e existe o es­critor. Alguns são mais intelectuais, são escritores muito respeitados mais como intelectuais. Há outros que são muito bons escritores e maus intelectuais, e há outros ain­da que reúnem as duas coisas: são excelentes escritores e intelec­tuais, como é o caso de Antônio Callado, cuja obra é modelo sob esse ponto de vista do empenho. Pessoalmente acho que o ideal

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seria que o escritor fosse consciertte da sua posição de intelectual, e no momento atual o intelectual só tem uma posição, que é se opor; para mim, o intelectual é sinônimo de oposição. Dentro da sociedade em que nós vivemos, na medida em que o escritor assume a consciência de que é também intelectual ele se opõe. Ainda que ele não se oponha na mensagem estética especifica da sua obra, ele se opõe enquanto in­telectual. As vezes ele se opõe uni­damente, ou esquizofrenicamente, mas ele deve se opor. Para citar ou­tro Antônio, esse imenso, que é o Antônio Gramsci: ele fàlava da li­teratura caligráfica que, no fundo, chegava à literatura que ele chamava ecolálica, ou seja, a literaturà que fa­la seín dizer nada. Para Gramsci ·não havia necessidade de uma determi­nada obra trazer uma mensagem imposta, explícita, mas era muito · bom que, como necessidade da es­trutura artística da obra, houvesse urna mensagem clara e definida. Acho que esse é o ideal. Pergunta - Gostaria que qualquer um da mesa abordasse o problema do escritor brasileiro diante do mercado de trabalho.

Houaiss - No caso concreto do mercado de trabalho brasileiro para o escritor - eu alargaria um pouco o campo e colocaria aqui o intelectual que vive da capacidade de redigir. ~esse especificamente o problema, porque se eu colocasse o intelectual na sua amplitude eu te­ria que incluir toda uma série de outras profissões cujo problema, inclusive, no mercado de trabalho, me parece diferente. Então eu vou colocar o problema do indivíduo

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que quer viver da sua capacidade es· critora. Ele se gradua, então, des­de, digamos, um redator de empre­sa jornalística, ou de obras colegia­das, até um editor, no sentido lati­no do termo, isto é, responsável por um rumo colegiado de traba­lho. Nas condições presentes, há três camadas pelo menos que eu vejo perfeitamente características e todas elas saturadas de mão-de­Óbra. Por que essa saturação? A resposta é mais ou menos óbvia: é porque realmente o mercado da obra escrita no Brasil é extrema­mente restrito. Quando nós pensa­mos em termos de uma população de 110 milhões de habitantes, com 70 milhões teoricamente alfabeti­zados, dos quais 40 milhões estão fora do circuito econômico, redu­zindo portanto a 30 milhões de brasileiros - e eu penso que a mé­dia de livros vendidos no Brasil per capita não chega a cinco, durante um ano, e lembro por exemplo, para comparação, que na Finlân­dia. se os dados da UNESCO são reais, se consomem 400 livros anualmente por habitante, dando uma relação de 800 para 1 - os se­nhores poderão facilmente com­preender que o mercado de traba­lho intelectual do escritor no Brasil é extremamente restrito. As faculda­des de letras têm gerado um núme­ro não pequeno de escritores po­tenciais e, quando não, de operá­rios do livro. Então o quadro não é fácil. Concretamente, na minha ex­periência de pessoa procurada nos últimos cinco anos, eu tive pelo menos um depoimento que eu faço

· com toda a tristeza, 40 ou 50 origi­nais sobre os quais pediram que eu me pronunciasse. E não tenho dú·

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vida em afirmar que desses 50 ori­ginais pelo menos 20 mereciam publicação. Isto inclusive cria uma enorme dificuldade em estabelecer os critérios sob os quais os livros são editados no Brasil-o que alar­garia o âmbito do mercado de tra­balho. Até agora o árbitro é exclu­sivamente o editor no sentido bra­sileiro. Em certos casos, ele tem um corpo de consultores para deci­dir sobre as obras a serem publica­das. Evidentemente, excluem-se destes casos os escritores consagra­dos, mas corremos o risco de ficar sempre nos escritores consa­grados. Quem ainda não era e já o é deve se lembrar da luta que ·teve para conseguir o acesso à publica­ção. Esse quadro não está melho­rando de modo nenhum no Brasil, e na conjuntura presente eu nem en­foco apenas circunstânciàs senso­riais ou políticas; enfoco em quadro geral a situação do livro no mundo inteiro. Todos estão a par do encarecimento brutal que so­freu o livro em toda parte. Todos estão a par do fato de que no Bra­sil há um tal círculo vicioso for­mado que eu não vejo, a não ser sob a forma de simpó'sio, a possibi­lidade de uma resposta imediata para o problema. Refiro-me no início a três camadas de trabalhos intelectuais que correspondem a três camadas do mercado de livro. Há os livros, no Brasil, que buscam o espectro largo de leitores: esses li­vros são, no seu conjunto, extrema­mente necessários porque até ago­ra, não sei se notaram, nós falamos de literatura excluindo ainda que implicitamente a realidade de que, sob um nome de literatura, nós po­deríamos pôr rubricas muito mais

amplas. do que as que foram aqui consideradas.

Eu, pessoalmente, com licença dos presentes, não sou de modo al­gum daqueles que fazem crítica a certos escritores de relativo grande bom êxito, entre nós, que fazem uma literatura mais acessível. Es­tou me referindo especificamente, por exemplo, a José Mauro deVas­concelos~ que eu acho um escritor de extrema valia e de extrema con­sonância com o largo espectro de leitores brasileiros. Prefiro a exis­tência de leitores desses livros à inexistência de leitores. Ele deve corresponder a uma necessidade viva de nosso meio, e o êxito dele não é produto de mera propagan­da. Se nós subirmos mais o nível, veremos então que os títulos dimi­nuem de tal maneira que há edito- · ras que conseguiram tornar viável a produção de livros na base de três mil exemplares, o que é, fora da ordem da poesia, um contra­senso, porque realmente o investi­mento social que um livro pede é tal que não se justificaria a sua pu­blicação com três mil exemplares. Sei de uma editora em São Paulo · que está tentando editorações de no mínimo 30 mil exemplares, ob­tendo qualidade muito boa, por um preço extremamente razoável, guardadas as proporções. São es­sas tentativas que talvez melhorem o mercado de. trabalho intelectual brasileiro na indústria do livro, na criação, inclusive do livro, mas ao momento ;tinda é extrema­mente inglório. Num outro nível, existem editoras que dão uma larga margem de trabalho, mas espas­modicamente. São aquelas que produzem livros de porta a porta,

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livros que são vendidos de porta em porta. Esses livros geralmente têm êxito material quase que ga­rantido, a priori. Raros são aqueles casos em que há um malogro, des­de que haja uma organização em­presarial bem feita . Mas a produ­ção desses livros, em geral livros colegiados, coletivos, enciclopé­dias, obras de vários tomos, essa tem, como eu disse, um engaja­mento no mercado de trabalho es­pasmódico. Durante a produção engaJam um número não pequeno de trabalhadores intelectuais, e tão pronto se arremata a produção os mesmos são desengajados. O qua­dro é o que Antônio Callado deli­neou em poucas palavras, mas de um modo muito claro. Nós esta­mos com uma pobreza de leitura espantosa neste país, e inclusive porque não criamos a tradição da leitura. Antes de criá-la. fomos in­vadidos por sucedâneos - e isso se­ria outro ponto - em que algo de li­teratura aparece sob uma forma sucedânea, através de outros veícu­los. Na TV há literatura. Eu não estou omitindo uma verdade, não: no rádio há literatura. Então, essas formas que são mais acessíveis es­tão impedindo a criação daquilo que historicamente devia ter sido estabelecido antes: o hábito da lei­tura. Creio que essas considerações é que tornam o quadro brasileiro tão terrível que a pergunta é essa: teremos alguma vez leitores de lite­ratura? Será que, como muita gen­te diz, a literatura já era? Ou even­tualmente há um vício estrutural porque, eu presumo, pelo menos; nós não podemos sobreviver sem literatura e o quadro não é favorá­vel ao seu florescimento? Notem

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bem que inclusive o fenômeno da criação vanguardista, que tem tan­tos méritos a favor de si, tem extre­mos de méritos, por outro lado, - porque, na medida em que a van­guarda é o ponto de referência de qualidade, mas é iniciatica no sen­tido de que exige que os indiví­duos, para cederem à vanguarda, tenham feito um curso prévio de li­teratura de outros tipos -, na medi­da em que isso ocorre, nós 'estamos preferentemente oferecendo pro­dutos de vanguarda, estamos afas­tando eventualmente através des­ses produtos a potencialização de leitores que iriam chegar iniciados a ela. Então esse é o quadro sobre o qual eu posso falar com um certo constrangimento. com certa triste­za, e não vejo ainda como vê-lo abrir-se. Uma das condições neces­sárias · é efetivamente o baratea­mento do papel, a fim de que haja editoração em número muito maior, para que o livro pudesse baratear-se e eventualmente aliciar um número maior de leitores, que ludibriados pelo barateamento acabassem gostando de ler literatu­ra. Isto é um empreendimento que eu só vejo possível através de um subsídio altamente generoso da parte do Estado . Pergunta - Como o desenvolvi­mento social, e portanto literário, do Brasil é diferente do resto da América Latina, talvez não caibam comparações. No entanto, a litera­tura hispano-americana tem no Brasil uma penetração tão grande ou maior que a própria brasileira, e a solução encontrada pelos vizi­nhos para ter tempo integral pa­ra escrever foi justamente uni­versalizar-se, exilando.:se tem-

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porariamente ou não. Entre Paris e Nova Y ork encontramos Cortázar, Scorza, Puig e muitos outros. No Brasil, se ficar o bicho come mas se correr, será que pega? Como os es­critores brasileiros têm resistido? Será que, saindo do Brasil os escri­tores, sua literatura deixaria de ser brasileira? Houaiss- Eventualmente está con­vidando Callado a que saia do país? Callado - Acho correto isso de que a literatura hispano-americana te­nha validez no Brasil, e considero excelente. Inclusive porque não é umá literatura diferente da nossa. Por exemplo, a popularidade no Brasil de Cem Anos de Solidão de­corre de que todo mundo conhece Macondo que, certamente, não es­tá na Colômbia, está em qualquer parte da América Latina. Existe sem a menor dúvida um imenso terreno comum entre nós. O la­mentável é que se conhece tão pou­co, que haja um intercâmbio tão pequeno, mesmo porque a lite~atu­ra hispano-americana, como a bra­sileira também, está dando tudo em matéria de romance. Temos a vanguarda, temos os livros de sóli­da tradição e grande beleza, como Cem Anos de Solidão, temos a pro­sa realmente perturbadora de Bor­ges, com sua capacidade infinita de invenção, tudo isso é um enriqueci­mento também da literatura brasi­leira e acho o "fenômeno correto. Quanto às viagens, acho que o es­critor latino-americano é especial­mente viajeiro. No momento há vários; quase todos os latino-americanos que a gente possa lembrar de momento es­tão fora de seus proses, mas os brasilei­ros também viajam bastante. Re-

parem que o escritor latino ameri­cano primeiro acha horrível seu país e quer ir para Paris, Londres ou Nova York. Numa segunda eta­pa, eles voltam ao país de origem e com uma tal sofreguidão que em geral se embrenham pelos matos, vão conhecer até os índios de seus países. Isto é uma dicotomia curio­sa. É o caso de Alejo Carpentier, é o caso de Garcia Márquez re­lembrando a Colômbia dele no ex­terior, de Cortázar. Eles vão apro­fundando uma lembrança .depois de tentarem escapar dos seus países visitando civilizações já prontas, já feitas, com literaturas sedutoras, modelos atraentíssimos. Voltam depois ao seu país de origem para pesquisar essas origens até sob a forma de um instrumento musical misterioso, como foi o caso de Car­pentier com Os Passos Perdidos. Então há uma unidade até de com­portamento, me parece, entre os escritores americanos, e isso explica em grande parte a vaga atual do romance latino-americano de um modo geral no mundo, quer dizer, pelo menos dois argentinos conhe­cidíssimos e o colombiano Garcia Márquez - aliás, é curioso notar que, nesse processo de divulgação da literatura latino-americano, aparecem até escritores espanhóis que, parece, entram mais no esque­ma de América Latina. Há um pro­cesso de troca que me parece não­só intenso como benéfico. Pergunta - O que está faltando para que a literatura brasileira atinja um respeito e uma repercus­são realmente mundiais? Seria por que o Brasil ainda não alcançou uma posição econômica invejável? Até que ponto o progresso técnico,

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científico e econômico-social faz com que uma língua se imponha mais ou menos profundamente e em conseqüência sua literatura se torne mais ou menos conhecida? Existe essa relação país-língua im­portante/literatura importante? Affonso - A pergunta é ótima. Acho que a última frase é a própri~ resposta: existe uma relação entre o poder e a palavra, bu melhor, existe uma relação entre o poder e a escrita. Não é à toa que nas tribos obviamente primitivas o escriba era o indivíduo que mais tinha po­der. Como não havia muitos escri­bas, era ele quem sabia da lei, era ele quem no final das contas legis­lava e aconselhava o rei. E na his­tória dos povos a gente nota que alguns reis perceberam que po­deriam assumir esse papel do en­viado por Deus e do escriba, que é o que porta a lei. Assurbanípal, por exemplo, foi um deles. Ele passou a ditar as próprias leis além de ser o enviado de Deus. Existe um poema de Borges muito interessante em que ele diz que lá pelos anos tan­tos, na China, os imperadores tal e tal decidiram que a História iria

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começar com eles, e mandaram queimar todos os livros. Então existe uma relação entre a escrita e o poder. Quem determina que se escreva a História é quem tem o poder. E obviamente nós absorve­mos a literatura americana, a fran­cesa e outras por uma relação de força e background econômico. Claro que temos às vezes um livro extraviado do Oriente Médio, de um país exótico, mas isso não constitui a regra. Poder econômico significa poder literário. Houaiss- Eu vou ousar fazer uma tentativa de balanço desta noite. Tenho certeza de que muita gen­te sairá frustrada porque esperava respostas professorais e não houve respostas professorais, porque esse é um campo em que se fazem per­guntas muito mais do que se dão respostas. Creio, porém, que as perguntas que nós nos formulamos reciprocamente farão com que pensemos um pouco mais sobre quão transcendente é, para nossa viabilidade de povo e de nação, a literatura, e procuremos divulgá-la um pouco mais entre os nossos se­melhantes.