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Capítulo Oitavo A imagem popular de Jânio Quadros - O inicio de sua gestão presidencial - Os principais problemas ao tempo - O mi- nistério: as pastas civis e as militares - O qüinqüênio anterior na versão do primeiro discurso presidencial à nação - A oposi- ção parlamentar - Os bilhetes de Jânio Quadros - As instru- ções 204 e 208 da SuMoc - A refo(ma da codificação e a lei de remessa de lucros - O ponto de vista do CONCLAP - As reuniões com os governadores - As comissões de inquérito - A política externa - A gestão Afonso Arinos - A posição brasileira ante o problema cubano - A renúncia: seus m6veis e objetivos. 719 . Ao empossar-se na presidência da República, a imagem que dêle preponderava na opinião pública era a seguinte: Jânio Quadros contava quarenta e quatro anos de idade; môço ainda, conquistava a su- prema magistratura do país na base de suas qualidades pessoais, já que não se fizera, no curso de rápida vida pública, nem catalisador de tendências político-partidárias definidas, nem defensor, ostensivo ou velado, de gru- pos de pressão poderosos, visto como, ao contrário, ousara apresentar-se sempre com ampla mobilidade crítica, verberando - através de pregação moral e de externados anseios de justiça social - partidos, tendências. instituições, correntes e indivíduos. 720. A imagem tinha outros lineamentos: bacharel em direito em 1939 - nascera em 1917 -, pela Universidade de São Paulo, em que apontara como poeta algo avêsso às lides políticas estudantis, o mato-gros- sense radicado e formado na capital bandeirante viria a exercer a advocacia e o magistério de português em alguns colégios da grande cidade, só in- 213

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Capítulo Oitavo

A imagem popular de Jânio Quadros - O inicio de sua gestão presidencial - Os principais problemas ao tempo - O mi­nistério: as pastas civis e as militares - O qüinqüênio anterior na versão do primeiro discurso presidencial à nação - A oposi­ção parlamentar - Os bilhetes de Jânio Quadros - As instru­ções 204 e 208 da SuMoc - A refo(ma da codificação e a lei de remessa de lucros - O ponto de vista do CONCLAP - As reuniões com os governadores - As comissões de inquérito - A política externa - A gestão Afonso Arinos - A posição brasileira ante o problema cubano - A renúncia: seus m6veis e objetivos.

719 . Ao empossar-se na presidência da República, a imagem que dêle preponderava na opinião pública era a seguinte: Jânio Quadros contava quarenta e quatro anos de idade; môço ainda, conquistava a su­prema magistratura do país na base de suas qualidades pessoais, já que não se fizera, no curso de rápida vida pública, nem catalisador de tendências político-partidárias definidas, nem defensor, ostensivo ou velado, de gru­pos de pressão poderosos, visto como, ao contrário, ousara apresentar-se sempre com ampla mobilidade crítica, verberando - através de pregação moral e de externados anseios de justiça social - partidos, tendências. instituições, correntes e indivíduos.

720. A imagem tinha outros lineamentos: bacharel em direito em 1939 - nascera em 1917 -, pela Universidade de São Paulo, em que apontara como poeta algo avêsso às lides políticas estudantis, o mato-gros­sense radicado e formado na capital bandeirante viria a exercer a advocacia e o magistério de português em alguns colégios da grande cidade, só in-

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gressando na ação política como vereador em 194 7. Três anos depois, fazia-se deputado estadual; e nessa qualidade se realçava em breve, com tal crédito perante a opinião pública municipal, que lograva eleger-se, em 1953, prefeito da cidade de São Paulo- já então o centro urbano indus­trial, · comercial, econômico e financeiro, por excelência, não apenas do Estado mais próspero do Brasil, senão do subcontinente.

721. Sua gestão, como prefeito, viria abrir-lhe as portas de tô­das as possibilidades políticas no plano nacional. É que, graças à sua per­sonalidade e a uma administração vigilante, pela execução de um programa de moralização dos serviços, pela lisura nos gastos dos dinheiros públicos e pelo incremento dos recursos materiais e espirituais da cidade, conse­guindo uma produtividade sem precedentes na gestão dos seus negócios, se sagrava, em curto lap11o de tempo, esperança coletiva tal, que um ano depois podia apresentar-se com uma bagagem que o autorizava a aspirar à governança do Estado - rompendo, destarte, interêsses e carreiras assen­tados em longa sedimentação prévia, que também sonhavam com aquela investidura.

722. Entrava nessa liça sem grandes recursos materiais ou par­tidários organizados, opondo-se a figuras e correntes poderosas e radicadas em todos os pontos do território do Estado. Sua vitória foi, entretanto, assegurada por pregação direta ao eleitorado em que, pelo inusitado de sua oratória política - a um tempo franca e sibilina, persuasiva e colo­rida, elaborada e pitoresca -, oferecia, mormente às aspirações das classes médias e dos desiludidos ·dos corrilhos políticos, uma bandeira de auste­ridade, honestidade, trabalho - afinal, para as grandes massas do Estado, os fundamentos mesmos de uma boa governança.

723 . Com métodos severos de govêrno, pode presidir à res­tauração das finanças e do crédito do Estado, comprometidos pelo seu pré­antecessor e a cujo sucessor, Lucas Garcez, coubera a penosa tarefa de liberar-se dessa tutela, para poder realizar govêrno útil ao Estado. Remo­delando a máquina administrativa estadual, Jânio Quadros atacou, ato con­tínuo, obras fundamentais para o desenvolvimento material e espiritual de São Paulo, tomando-se, com essa gestão, figura emergente de projeção na­cional e símbolo carismático das classes urbanas pobres e médias de todo o país.

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724. Abria-se-lhe, findando o govêrno de São Paulo, o ensejo de candidatar-se à presidência da República.

725 . Não o fêz, porém. Vimos em capítulo anterior como se desenvolveram os acontecimentos, de tal modo que Jânio Quadros teve de diferir essa possibilidade, limitando-se a ser um dos patrocinadores, na primeira fase, da candidatura Juarez Távora contra Juscelino Kubitschek, e um dos sustentadores da mesma, na segunda e definitiva, mas malograda, fase. Não obstante o prestígio que pudera angariar, com votos, ao can­didato do Partido Democrata Cristão, a candidatura do mineiro saiu ven­cedora.

726. A Jânio Quadros, entretanto, cumpria-lhe prosseguir na sua carreira pública e política, já que então não lhe escapava a antevisão do seu coroamento; razão por que, fundando o govêrno do Estado, se candida­tou a deputado federal pelo Paraná, pelo qual foi eleito: seu nome já era uma legenda, senão que lenda nacional. Timbrou, então, em não gastar-se, preservando-se longe das lides parlamentares.

727. Ao término da gestão Kubitschek na presidência da Re­pública, era consenso nacional a viabilidade da candidatura Jânio Quadros, independentemente dos conchavos partidários e das decisões de cúpulas dirigentes. A estas, ao contrário, animava sôfrega ansiedade de acolhê-lo sob sua guarida, aproveitando-se, por êsse passe de mágica, de uma vitória que se augurava certa. Jânio Quradros, porém, antes impôs suas condições que aceitou alheias, pois que tratações, que houve, tiveram caráter gené­rico, que o deixariam ser como pudesse e quisesse, se eleito. Vimos no capítulo anterior como se desdobraram os acontecimentos da campanha eleitoral, em que obteve uma vitória sustentada por mais de seis milhões de votos, assinalando na história do país a segunda - antes fôra Getúlio contra Cristiano Machado - vez em que um candidato oficial saía derro­tado, mercê de uma votação maciça que exprimia inequívoca a maioria como que absoluta de uma nação, naquêles meios de que dispunha ela para exprimir a sua vontade.

728. Tais os elementos que configuraram, pessoalmente, o presi­dente ante o país, no dia 31 de janeiro de 1961, quando, em Brasília, acompanhado do vice-presidente com êle eleito, João Belchior Goulart,

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Jurou seu mandato perante o parlamento nacional e recebeu do seu ante­cessor, Juscelino Kubitschek de Oliveira, a faixa presidencial.

729 . RasgaV!a-se para o pais, aparentemente, uma estrada lím­pida: um presidente civil sucedia a um presidente civil, em pleito cuja valid-ade a ninguém era lícito pôr dúvida, oferecendo-se, com essa sucessão, após os primeiros atropelos militares da fase inicial do período anterior, a oportunidade ao país de aos poucos poder consolidar o império da lei por forma e tempo perdurantes.

730. Três componentes mam - e como tal continuam até os nossos dias - condicionar o bom êxito da administração J'ânio Quadros e, com êle, a viabilidade do desenvolvimento nacional até a plenitude das possibilidades intrínsecas ao sistema, tal como definido na Constituição da República - sistema baseado, em última análise, na livre iniciativa, em que a criação das riquezas materiais e espirituais se faz através das relações entre empregadores, detentores dos meios de produção, e assalariados, mas sistema, acrescentemos, cujas possibilidadas práticas e teóricas de expansão não se esgotam, são antes quaisquer, desde que não afetada aquela relação básica, não entrando, por conseguinte, em jôgo, nesse sistema, e exeqüibili­dade de mudanças quantitativas ou qualitativas mesmo na estrutura, distri­buiçã::> e relações dos detentores dos meios de produção entre si, caminho para a remoção dos seus elementos arcaicos, o mesmo ocorrendo no outro pólo.

731 . Mas, dizíamos, três componentes iriam condicionar o bom êxito prospectivo da administração Jânio Quadros: primeiro, um substan­cial incremento da eficácia da própria administração, habilitando-a, com funcionários e instrumentos, às novas necessidades que repontavam num país já entrado nos seus oitenta milhões de habitantes e saído de um qüin­qüênio em que, sob êsse aspecto, pouco se fizera; segundo, uma poderosa sustentação das fôrças econômicas e financeiras produtivas nacionais, ca­pazes, a um tempo, de manter uma taxa média de incremento do produto nacional bruto igual ou superior ao do qüinqüênio anterior, e de ampliar as possibilidades de emprêgo de uma população crescente a alta taxa mé­dia, com progressiva qualificação das mesmas possibilidades; terceiro, uma politização ou doutrinação dos grupos particularistas ou seções da classe dirigente e dos altos escalões das fôrças armadas, que se baseasse ou resul-

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tasse na convicção de que o desenvolvimento nacional devia ser essencial­mente autógeno, auto-sustentado e, no limite do possível, auto-suficiente, e a de que, par:a tanto, o exercício da soberania nacional deveria despren­der-se de quaisquer peias exógenas, diplomáticas, ideológicas ou financeiras, e o exercício do poder civil deveria liberar-se do imobilismo já radicado então em grande parte da classe dirigente, que tendia a ver nas mudanças das relações estruturais entre os detentores privados dos meios de produção o equivalente da subversão dos próprios princípios da propriedade privada ou do capitalismo no país.

732. Para fazer face a êsse complexo, Jânio Quadros assumia a presidência da República com as características pessoais c·om que de­sempenhara até então seu papel público na arena política nacional. Isso confirinar-se-ia desde logo na formação do seu ministério, muito mais ex­pressão de qualificações personalistas e de jôgo inteligente de concessões aparentes a partidos e a correntes, do que resultante efetiva das fôrças que o haviam conduzido ao poder.

733. É que, não sendo, a rigor, homem de partido, podendo, por isso, louvar em cada um, ao sabor das circunstâncias e do aliciamento de seus votos, já a vo~ação legalista da U.D.N., já os objetivos de valori­zação da massa trabalhadora do P.T.B., já a representatividade nacional do P.S.D., conglomerando antes que fundindo sua real atuação-, não sendo homem de partido e não tendo nunca cogitado de formar um - o que talvez lhe tivesse sido possível, se sua carreira política tivesse corrido menos vertiginosa -, não querendo ou já não podendo conformar-se com uma orientação programática ou operacional como presidente da República, ~~u gavêrno passaria desde o início a ser uma resultante natural dessa carência de estruturação, que só iria tentar já no curso mesmo de sua gestão. Ace­nando em sua bandeira de candidato com princípios puramente moralís­ticos, mas por isso mesmo levado à necessidade de sua presença pessoal nesse sentido em todos os setores, quadrantes, aspectos e feições da realida­de nacional, a que iria presidir, Jânio Quadros exceleria logo por sua vi­gilância quanto ao mais díspares assuntos - desde concurso de beleza, o horário de trabalho dos funcionários, dos atrasos de trem, dos jogos clan­destinos, da indumentária pública, das atividades das boites, até os mais relevantes assuntos da esfera pública - e num assistemático tal, que era fácil compreender que isso só se faria sentir como fator efetivo nos mores

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públicos após a multiplicação de tais providências desarticuladas por mil: em suma, vi:a-se que a direção seguida, para ser frutífera, teria que ser produto de uma atuação estruturada, em que ao presidente da República deveria caber a ordenação geral.

734. Seu ministério era, destarte, integrado por homens pro­vindos de quase todos os partidos nacionais, sem que, a rigor, nenhum tivesse um mandato positivo da parte dêstes: eram homens escolhidos a critério do presidente, mas homens apenas aos quais os respectivos partidos não haviam oposto objeção a que aceitassem o encargo. Tais homens eram os senhores Clemente Mariani Bittencourt, para a Fazenda; Afonso Arinos de Melo Franco, para as Relações Exteriores; Oscar Pedroso Horta, para a Justiça e Negócios Interiores; Francisco Carlos de Castro Neves, para o Trabalho; Romero Cabral da Costa, para a Agricultura; João Agripino Fi­lho, para Minas e Energia; Artur Bernardes Filho, para a Indústria e Co­mércio; Brígido Tinoco, para a Educação e Cultura; Clóvis Pestana, para a Viação; Eduardo Catete Pinheiro, para a Saúde- além de três militares para -as fôrças armadas - Odílio Denys, para a Guerra, Sílvio Heck para a Marinha e Grum Moss, para a Aeronáutica.

735. A pasta da Fazenda, recaindo em Clemente Mariani, ia para um prócer do udenismo baiano. Constituinte em 1946, ministro da Educação durante parte do govêrno Eurico Dutra, fôra, em sua última gestão pública proeminente, presidente do Banco do Brasil, ao tempo em que, sob o govêrno Café Filho, entre 1954 e 1955, Eugênio Gudin fôra ministro da Fazenda. Homem rico, de longa atuação parlamentar, autor de trabalhos de vária natureza, advogado, jorrralista, professor catedrático, tinha interêsse e tendências financeiras pessoalmente definidas, ligadas a um tempo a atividades bancárias, à lavoura e exportação do cacau e aos altos vínculos sócio-econômicos dos grandes grupos nacionais e estrangeiros que controlavam a riqueza pública do país. Sob tal aspecto, poderia ser um continuador da administração do qüinqüênio anterior até onde a nova conjuntura nacional o comportasse: e esta, para os problemas de sua pasta, trazia em seu bôjo um problema capital, que tendia cada vez mais a aguçar­-se, a saber, uma progressiva inflação, acompanhada de dois crescentes des­contentamentos: primeiro, dos exportadores nacionais pela contrapartida em cruzeiros dos dólares arrecadados pelo Estado; segundo, dos setores im­portadores que viam acintoso preferencialismo no fato de que certos pro-

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dutos podiam ser objetos de subsídio governamental. :{;: que, na medida em que se estancasse a inflação, poder-se--ia, eventualmente, fazer face à implícita valorização dos cruzeiros obtidos pelos exportadores ou à elimina­ção do subsídio; mas a inflação, por sua vez, far-se-ia, se progressivamente estancada, sentir na quantidade exportável, o que iria reduzir a arrecada­ção global dos exportadores; de outro lado, a majoração da contrapartida em cruzeiros a cada dólar obtido com exportação seria mera fôrça pro­pagadora do próprio ritmo inflacionário, ao mesmo tempo que a eliminação do subsídio iria ser compensada pelo aumento do custo de vida. Tudo isso o conduziria, em boa perspectiva, a enfrentar o problema global não ape­nas nos seus aspectos financeiros , mas também econômicos, em que as questões de custos, a da intensificação quantitativa da produção, a qualifi­cação da mesma, os mercados por atingir, a valorização da mão de obra produtora nacional e a sua produtividade deveriam ser levadas em conta, exigindo, talvez, uma nova estruturação da propriedade privada dos meios de produção no país, em seu conjunto. O passado do senhor Clemente Mariani não presumia ser êle homem capaz de enfrentar a complexa pro­blemática de sua pasta com uma visão de conjunto nacionalmente viável. De outro lado, Jânio Quadros, em seu passado público, revelara antes con­tenção e lisura no trato com o dinheiro público do que a visão de econo­mista que tivesse dedicado um sentido mais profundo a êsse tão relevante aspecto da realidade nacional, sobretudo em face da nova conjuntura - em que o problema do desenvolvimento nacional, se não equacionado, era pelo menos uma tomada de consciência inarredável, cuja formulação sis­temática teria de vir, mais cedo ou mais tarde.

736. A pasta das Relações Exteriores cabia também a um ude­nista de primeira água - Afonso Arinos de Melo Franco -, experimentado homem público e parlamentar, então senador pelo Estado da Guanabara, com um cabedal muito expressivo de obras publicadas, desde trabalhos de natureza predominantemente literária, até estudos, monografias e tra­tados em que o direito, em seus múltiplos aspectos, a história, a sociologia, a administração e a ciência política eram componentes ou predominantes. Homem de opiniões e convicções definidas, com relação ao mesmo o que se colocava como problemático era saber até onde seria êle o executor da política externa de Jânio Quadros. :{;: que êste, enquanto fôra em seu passa­do e na sua pregação de candidato omisso quanto à explicitação dos pro­blemas econômicos e financeiros do país, com relação à política externa,

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ao contrário, abundara em pronunciamentos, quase todos muito audaciosos não só em relação à prática da política externa que se realizara no govêrno anterior de Juscelino Kubitschek, senão que também audaciosos em relação aos sentimentos das classes médias e conservadoras, que viam em Jânio Quadros a esperança de uma gestão fecunda. Sob êsse aspecto, Jânio Qua­dros correspondia, muito mais, às aspirações generalizadas da inteligência brasileira, de regra esquerdizante, que via, a um tempo, na emergência dos novos Estados soberanos do chamado terceiro mundo, nas relações com os dois pólos principais do poder mundial e na prática de uma política externa de equidistância com êstes e de adesão para com aquêles a ex­pressão do que mais legítimo e autêntico seria para o Brasil. O contraste para com o govêrno anterior era, a tal respeito, gritante, porque, salvo a resistência que opusera aos ditames financeiros do Fundo Monetário Inter­nacional, o período de Juscelino Kubitschek fôra de espectativismo e de conservadorismo, só quebrado, e assim mesmo em forma de apêlo, com o lançamento da chamada Operação Pan-Americana, cuja execução depen­deria, essencialmente, do grau de boa vontade da administração norte-ame­ricana.

737. O ministério político, o da Justiça e Negócios Interiores, caberia a um homem até então, estritamente, de São Paulo, sem a expe­riência das lides políticas federais, com ainda escassa circulação entre os di­rigentes dos partidos políticos organizados e do parlamento nacional. Advo­gado culto, prestigioso nos meios forenses paulistas, fôra secretário da Jus­tiça do senhor Jânio Quadros, em São Paulo. Até onde o ex-secretário corresponderia ao ministro do presidente, essa teria sido a indagação que mais de um brasileiro e mais de um político experimentado teria feito , quando de sua posse, posto de lado o fato notório de que entre presidente: e ministro já existiam, àquela altura, vínculos amistosos evidentes, provindol> de um lapso de tempo já longo de convívio, para que ambos soubessem com relação ao outro o que pedir e dar.

738 . O caráter híbrido do Ministério era conferido, sem dúvida, pelas pastas que lidavam com o principal da riqueza pública. Na da In­dústria e Comérc1o era provido Artur Bernardes Filho, na qualidade de presidente do Partido Republicano, que se enfileirara entre os partidos na­cionais que haviam dado irrestrito apoio à candidatura Jânio Quadros. Bernardes Filho, porém, que já tinha em seu largo passado público sido

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deputado, senador e vic~govemador do Estado de Minas Gerais, repre­sentava um tipo de vinculação capitalística e industrial, em que os interes­ses nacionais não eram predominantes, sendo, destarte, de esperar que viesse a ser conselheiro que até certo ponto refletisse sua própria condição pessoal.

739. O ministério da Agricultura cabia a um ainda jovem usi­neiro de açúcar, Romero Costa, que, em última análise, deveria trazer certa representatividade a um dos setores agrícolas brasileiros mais gra­vosos, menos eficientes, mas mais representativos dos interêsses arcaicos e retardatários da estrutura produtiva nacional. Até onde essa escolha fôra mera concessão do presidente a êsse setor e até onde se nutria ela da espe­rança de uma revitalização da área nordestina no particular da sua estrutura agrícola, atendida a circunstância de que o recém-nomeado era conside­rado figura progressista para o meio, só o tempo viria a positivar.

740. A pasta de Minas e Energia, cujo estímulo era ponto de honra do govêrno Jânio Quadros, cabia a um político experimentado da área udenista nordestina, João Agripino Filho, deputado federal, de forma­ção jurídica, professor e prestigioso homem público, que já tivera oportuni­dade de enfileirar-se em posições de defesa do monopólio estatal do petró­leo, garantia de que o mesmo não iria sofrer mossa, atendida a posição que, como candidato, assumira Jânio Quadros.

741. Uma das pastas que provocaram maior estranheza foi a do Trabalho. Jânio Quadros acenara com melhores dias para os trabalha­dores. Essa vinha sendo, desde sua criação pouco depois de 1930, a past2 por excelência em que os chamados problemas trabalhistas eram ventilados e manobrados, fonte, inclusive, do oficialismo peleguista, graças ao qual o Estado paternalista ora criava a mitologia dos avanços sociais no papel, ora tinha o instrumento para desorganizar ou desviar as reivindicações dos trabalhadores dos seus objetivos próprios. Nomeando para a mesma a Castro Neves, de projeção apenas nos meios paulistas, Jânio Quadros de nôvo dei­xava os analistas de primeira hora do seu Ministério desorientados. Não se lhe desconhrciam as qualidades de advogado e conhecedor de questões tra­balhistas, nem sua capacidade de administrador, demonstrada tanto na gestão Lucas Garcez como na Jânio Quadros na governança do Estado de São Paulo. Mas, tratava-se, de outro lado, de político que despolitizava a pasta do Trabalho, pairando, por conseguinte, a expectativa de que nessa pasta

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também Jânio Quadros quisera ter interferência mais direta, conformando a sua gestão a diretrizes pessoais.

742. A nomeação para a pasta da Viação foi logo compreendida como ato de dupla inteligência: era escolhido para ela quem tinha larga experiência dos seus problemas - havendo-a inclusive ocupado na gestão Eurico Dutra -, ao mesmo tempo em que o escolhido, Clóvis Pestana, trazia um gaúcho e pessedista para o Ministério.

743. Por fim a pasta da Saúde cabia ao deputado, médico, com relativa experiência de político e administrador, Eduardo Catete Pinheiro, que exercera a secretaria da Saúde em seu Estado natal, o Pará, ao tempo do govêmo Zacarias Assunção. Pasta não política, à escolha nenhuma ex­pressão maior cabia, além da representatividade e adequação técnica.

744. Era nas pastas militares, porém, que um dos fundamentos do qüinqüênio inaugurante se firmava. Jânio Quadros foi para elas pro­curar os hierarcas mais representativos das três armas, mas não o fêz sem que da escolha não emergisse, clara, a indicação de que visava a compür as diferenças acaso existentes entre elas e entre as fôrças armadas e ten­dências civis. Na verdade, mantendo o marechal Odílio Denys na pasta da Guerra, Quadros beneficiava-se da ação que êste exercera durante o qüin­qüênio findante, quando pudera manter coesas as tendências do exército, impedindo que repontassem com maior freqüência insubordinações udeno­militaristas, que em mais de uma oportunidade haviam pôsto à prova a esta­bilidade e viabilidade do govêrno Kubitschek. Na pasta da Marinha, com a escolha do almirante Sílvio Heck, Jânio Quadros fazia uma ostensiva concessão ao espírito legalista que presidira a aventura do cruzador Ta­mandaré, quando, após 11 de novembro de 1955, ao chamado golpe pre­ventivo do marechal Lott, o então presidente em exercício Carlos Luz, em companhia de próceres udenistas inconformes, inclusive Carlos Lacerda, se fizera ao largo, precisamente sob o comando do dito almirante. :Bste, ade­mais, não encobria suas veleidades políticas de homem forte, autoritário, disciplinador com tinturas de vocação casemalista para a gestão da coisa pública. Muito afim de Sílvio Heck, o brigadeiro Grum Moss, a que se ligavam os oficiais da aventura de Aragarças, na Aeronáutica, era garantia de que a arma se pautaria por disciplina nos moldes de sua penetração udenista à imagem da vocação política de Eduardo Gomes.

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745. Nessa altura as pastas militares eram representadas por homens que viriam a moldar, nas fôrças armadas, ou colalxlrar para a moldagem, do espírito do imobilismo, a saber, o respeito formal das leis, se impedidas quaisquer modificações que pudessem alterar os dispositivos constítucionais mesmo por via constitucional. A doutrinação político-mi­litar preponderante já podia revelar-se em duas tendências que, no futuro não remoto, iriam admitir a inserção, no oficialato, da convicção de que no plano externo o mundo se encaminhava para uma defrontação sem remé­dio, em que, de um lado, se enfileirariam as fôrças do bem, identificadas com a política interna e externa norte-americana, cabendo, de outro lado, na frente interna, às fôrças armadas a tarefa de preservar a inalterabilidade do quadro estrutural graças ao qual o enfileiramento do Brasil com as fôr­ças do bem se faria sem dúvida nem tropeços, cumprindo destarte a essa~ fôrças vigilância integral contra o repontar de tudo o que significasse mu­dança, pois que isso, em última análise, era ostensiva ou latente brecha à inundação do país por elementos paracomunistas ou comunistas.

7 46. Logo nos primeiros pronunciamt:ntos públicos do presi­dente Jânio Quadros se definiram, inequívocas, certas características e cer­tos problemas que se avolumariam a curto prazo.

747. Na cerimônia da transmissão da faixa presidencial fala­ram o presidente egresso e o presidente entrante. Aquêle desejou, essen­cialmente, a êste, uma administração fecunda. Nem mais poderia fazer. A êste, porém, caberia uma definição do qüinqüênio findo. Não foi, porém, onde tôda a opinião pública poderia esperar seu principal traço que Jânio Quadros o foi encontrar - no chamado esfôrço desenvolvimentista, que, afinal de contas, fôra a só constante do govêrno Kubitschek. A fórmula de Jânio Quadros, extremamente expressiva, foi a seguinte: "O Govêrno de Vossa Excelência, que ora se finda, terá marcado na história a sua passa­gem, principalmente porque, através de sua meta política, logrou conso­lidar em têrmos definitivos, no país, os princípios do regime democrático." A originalidade do pensamento e da análise de Jânio Quadros estava aí: agradecia-se, ou caracterizava-se, no qüinqüênio findante, não o que nêle se buscara à viva fôrça, mas o que se conseguira aparentemente em defini­tivo, a instauração do poder civil, o estabelecimento do império da lei, a observância desta, inclusive na campanha eleitoral e na transmissão do po­der, - prova a que sempre sucumbira a democracia brasileira, e prova de

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que saía, naquele contexto, ilesa, mormente quando se devia ter em mira que o presidente eleito o era contra o oficialismo, quando não presidencial, pelo menos do partido e das fôrças ditas majoritárias.

748. Se o curto pronunciamento de Jânio Qullldros foi, na ce­nmonia de transmissão da faixa presidencial, no palácio do Planalto, de síntese feliz e não contundente, o mesmo não se poderá dizer do discurso que, ainda nesse dia 31 de jàneito de 1961, pronunciou à noite, através do rádio, viajando já para Paris, desde a tarde do mesmo dia, o presidente egresso. Já agora a fala presidencial era de côres sombrias: o balanço da situação financeira era catastrófico, ordenando-se as cifras de forma cala­mitosa, mas de forma, quando não subjetiva, pelo menos polemizável, a ponto de certos jornais, ao dia seguinte, ponderarem quanto ao rigor da análise e quanto ao cabimento da carga, já que desacompanhada de qual­quer referência ao que se construíra no país durante o qilinqüênio anterior, refletindo-se o todo como um despender a fundos perdidos, subtraído o elemento básico da aferição, que, em última análise, era a taxa de incre­mento do produto nacional bruto durante cinco anns sustentado a um nível sem precedentes na história da República. O discurso, de outro lado, não poupava referências a desmandos, filhotismos. e corrupção com os dinhei­ros públicos; fazia-se acompanhar de um tom ameaçador, quase vindicativo. Era, em suma, um balanço em que se refletiam azedumes e desaprovações, além de se prometerem, ademais de rigor no govêrno encetante, rigor para o govêrno egresso.

749 . O mais grave, porém, em todo êsse discurso é que com êle, desde o início, o presidente Jânio Quadros fechava as portas de com­posição com o parlamento nacional. Que tivesse dêsse parlamento, êle que o superara em sua campanha eleitoral, já vencendo-lhe a maioria arregi­mentada contra si, já aliciando de todos os partidos aderentes sequiosos de ficarem ao lado do vencedor, que tivesse dêsse parlamento uma opinião não muito lisonjeira, isso só depunha em favor do presidente - afinal, saber com quem lidava era um trunfo que não podia dispensar, ante a pers­pectiva que se lhe abria, quando, de outro lado, contava por certo com o apoio maciç.o da maioria fragorosa da nação.

750. Mas ao romper de forma incisiva com tôda uma situação radicada majoritàriamente no país, que tinha tôdas as razões para se supor representativa também do país no meio insütucionalizado para essa repre-

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A greve óleo de Lasar Segall

Museu Lasar Segall, São Paulo

~>entação - o próprio voto - não pareceria a forma mais eficaz de iniciar uma gestão governamental. O fato é, entretanto, que já na sua reunião re­gular subseqüente a Câmara dos Deputados se fazia eco de acerbas críticas ao presidente da República por essa peça, no que havia consonância com mais de um órgão de imprensa do país, mesmo os mais conservadores ou antijuscelinistas.

751. Viu-se que, então, em verdade, um homem se propusera a governar um país de 80 milhões de habitantes levando ao pé da letra sua investidura constitucional - a de presidente da República detentor de uma soma nominal de podêres incontrastável, opondo êsse poder a todos os sistemas de c9ligações, partidárias, de opinião, de direção da opinião, do poder econômieo, de interêsses criados.

752. Desde o início os seus bilhetes, personalissimamente en­dereçados, tinham acolhida, irônica ou pitores~a, nas colunas dos jornais, e eram recebidos pelo povo com misto de admiração, reverência, de credu­lidade e de pilhéria. O funcionalismo público desde logo foi alvo das ver­rinas moralizadoras, através de decretos que dispunham quanto ao horário de funcionamento das repartições públicas, quanto à exoneração ou à dis­pensa dos que tivessem sido nomeados ou admitidos a partir de 1.0 de Setembro de 1960 (vale dizer, através do "testamento" do senhor Juscelino Kubitschek), quanto à vedação de nomeações e admissões no serviço pú­blico por um ano, quanto à assinatura do ponto, inclusive para os ocupantes de cargo em comissão ou funções gratificadas - em suma, a máquina buro­crática deveria ser qualificada e produtiva, sem alteração de sua estrutura e métodos, através de medidas de moralização e bons costumes.

753. A característica intrínseca às sociedades carentes, vale dizer, em que o produto social é, ademais de desigualmente distribuído, in­suficiente para as necessidades médias per capita, tentava-se corrigir, em consonância com a pregação moral, através de atos de moral, omitindo-se a circunstância de que as sociedades abundantistas haviam atravessado igual mazela e só a haviam, quando haviam, superado através ou da acei­tação tácita da imoralidade ou através de compensações materiais e espiri­tuais que tomassem contraproducente o recurso aos expedientes fáceis da esperteza, da sonegação, do aproveitamento ou de golpe ou jeito.

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754. A onipresença moralizante fazia-se, porém, também agu­da em setores mais privilegiados. Viu-se, assim, o govêrno da República, tendo à frente o próprio presidente, esforçar-se pela erradicação ou pelo menoS combate do contrabando, de dentro para fora como de fora para dentro das fronteiras nacionais, em todos os pontos do território nacional -instituição que desde sempre afligira a nação e que contava com a coni­vência, tácita ou explícita, de amplos setores da opinião, beneficiária ou não do processo. Instituía-se para tanto um grupo de trabalho, de represen­tação expressiva dos ministérios interessados, com âmbito nacional.

755. Atacava-se concomitantemente o jôgo em suas múltiplas modalidades, regulando-se aquelas atividades afins que os bons costumes ha­viam inserido como consentâneas com as normas sociais - tal, inclusive, o turfe. Os bons costumes eram o princípio invocado também para a regu­lamentação dos espetáculos públicos, para a qualidade dos programas ra­diofônicos, de televisão, de cinema, de teatro, de casas quaisquer de espe­táculo, de diversões noturnas e afins. A própria propaganda comercial re­cebia limitações, conforme as definições morais e dos bons costumes.

756 . Dois meses e meio depois de empossado, entretanto, é que Jânio Quadros se lançaria no primeiro grande ato presidencial, cuja seqüela marcaria os restantes meses de seu govêrno: a instrução 204, do ministério da Fazenda, através da qual se processaria a reforma cambial. Perante os órgãos de divulgação de massa, o presidente, pessoalmente, fêz uma detida exposição dos motivos que levaram o seu govêrno a tomar o grave !'asso, definindo então o que reput.ava artificial no funcionamento das nossas finan­ças, no funcionamento do câmbio de importação e de exportação, propon­do-se, através de sua correção, dois objetivos sucessivos: primeiro, tornan­do reais os câmbios em causa, os custos iriam sofrer aumento, não só em gêneros de primeira necessidade, diretamente, como o pão (mercê do fato de que o chamado subsídio à importação do trigo seria retirado), mas tam­bém indiretamente, pelo aumento dos fretes (suspensão dos subsídios ao petróleo e afins); após o que o govêrno ficaria habilitado a exercer 1eal inspeção dos preços cobrados à população, objeto de especulação desen­freada do poder econômico.

757. Nessa altura ficaJ~a manifesto, primeiro, que setores po­derosíssimos da vida econômica e financeira do país reagiam de forma vâria,

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mas quase sempre desfavorável, à medida governamental, e, segundo, que o govêrno parecia propender a um tipo de ação eminentemente empírica, ~em uma visão global das medidas que deveriam ser, orgânicamente ou, pelo menos, estruturadamente, empreendidas para enfrentar os reais problemas da produção, circulação e distribuição das riquezas.

758. O povo recebeu com assombro e tristeza, dir-se-ia sobre­tudo decepção, a medida, que esperava do govêrno no sentido da diminui­ção do custo de vida: esta vinha às avessas. Mas tamanho era o cr&lito que o presidente angariara, que um largo lastro de esperança ainda con­tinuava a luzir na massa popular, que aceitava o compasso de espera como anunciador de melhores dias por vir. Expressivamente, porém, um elemen­to que até então parecera suspeito à opinião popular, o Fundo Monetário Internacional, expedira nota apoiando a reforma cambial, como conducente ao saneamento das finanças públicas.

759. Medidas conexas para o contrôle dos estoques de merca­dorias várias do país, sobremaneira as do trigo, eram tomadas, com recurso a oficiais do exército para serem executores das mesmas. O govêrno Jânio Quadros principiava a institucionalizar a associação dos oficiais das fôrças armadas na execução de todas as medidas que implicassem fiscali­zação da coisa pública - o que levaria, em breve, no parlamento, a que vozes se levantassem para verberar a distinção implícita entre a honestidade de todos os oficiais das fôrças armadas e a desonestidade indiscriminada dos civis.

760. Complementando a instrução 204, em principios de julho de 1961 o ministro Clemente Mariani anunciava ao país a instrução 208, que procurava beneficiar o intercâmbio com os países integrantes da Associação Latino-Americana de Livre Comércio. Um mês depois o presidente da Re­pública reunia o Ministério, para acertar as medidas de interêsse nacional que deveriam ser tomadas, sucessivamente. Mencione-se, dentre elas, a decisão de promover a reforma, pela atualização, do Direito Privado Bra­sileiro, que ficou sob a supervisão do ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta. ~ste nomeou para êsse fim comissões de juristas, escolhendo-os de maneira impessoal entre os luminares das letras jurídicas. o plano respectivo, dada a sua magnitude, foi levado por aquêle titular a uma reunião plena do Ministério, e aprovado unânimemente. Iniciava-se, as-

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sim, o reexame de nossa codificação, desde a de menores até a civil e a pe­nal, com os conseqüentes processos, a comercial, a das obrigações, esta des­tacada do Direito Civil. O trabalho de algum modo demonstrava a urgente necessidade de adequar-se a estrutura jurídica nacional à realidade dos tempos, denunciando a dicotomia sentida por todos com funções de govêrno entre o chamado "Brasil real" e o "Brasil legal", fazendo a administração quase impossível. Coincidentemente, cogitava-se de lei de limitação dos lu­cros remetidos pelas emprêsas estrangeiras para o exterior.

761. O govêmo começava a tomar posições nos problemas subs­tantivos. Saído de uma ausência, pelo menos ostensiva, de programação, impondo-se, de início, pelo moralismo das providências, sobretudo em áreas limitadas como a do funcionalismo público, aos poucos se ia endere­çando aos problemas reais, mas de forma sempre assistemática. Um plano faltava, global.

762 . Em breve, dêle viria a encarregar-se o economista Celso Furtado; mas, na intimidade, não escondia êle a convicção de que o plano, por injunção política, jamais viria a ser seguido.

763. Durante a campanha, o Conselho Superior das Classes Pro­duroras - o CoNCLAP - se julgou no direito de antecipar-se oferecendo um documento extenso em que propunha um como que plano nacional de desenvolvimento. Foi em março que se fêz a entrega do que se intitulava Sugestões para uma política nacional de desenvolvimento. Que o documen­to era uma visão parcial d.o problema nacional do desenvolvimento, parcial e unilateral, sobretudo, é ponto pacífico; pelo menos, é ponto pacífico que Jânio Quadros assim o interpretou, ante as críticas que, a título genérico, aí se faziam a quaisquer ações estatais que não levassem em conta tais ou quais princípios preconizados pelo CoNCLAP. O tom era, por certo, não ape­nas doutrinai, senão que magistral. A oração com que o presidente da Re­pública reagiu ao memorial das classes produtoras é sintomática das pres­:;ões que se anuviavam no seu horizonte. Retenhamos, tão sàmente, um parágrafo: "Homens poderosos já me procuraram para expressar sua dessa­tisfação com o meu govêrno. Expliquei-lhes que s6 haveria dois meios de tolher os meus passos: depor-me ou assassinar-me, o que não me parece fácil." O que, no depoimento autorizado de pessoas que puderam ouvir as reações do presidente à leitura das Sugestões, mais o irritara é que estas, co-

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onestando todos os pontos de vistas dessas classes produtoras, eram abso­lutamente omissas em relação aos problemas estruturais do país, sem refe­rência sequer remota aos problemas da reforma agrária, ao destino das em­prêsas estatais onerosas e entretanto indispensáveis ao funcionamento do Estado, à miséria da grande maioria da nação, aos problemas da educação nacional e sobretudo ao caráter do próprio desenvolvimento nacional ante­rior e o preconizado, que se limitava a reivindicar um aumento do pro­duto nacional bruto, sem atender às questões relevantes de sua distribuição pelas faixas da população, sem postular nenhuma retificação da tendência que fazia que ricos fôssem cada vez mais ricos embora proporcionalmente menos numerosos e os pobres cada vez mais pobres embora proporcional­mente mais numerosos. Em suma, eram Sugestões que não lhe pareciam nacionais, senão que expressão pura dos interêsses de um grupo poderoso, mas minoritário.

7 64. A imagem do presidente devia. entretanto, ser preservada. Governar, na conjuntura, se vinha revelando cada vez mais difícil. Os desa­cordÓs com o parlamento e a situação minoritária do govêrno eram uma realidade que tendia a aumentar, enquanto não houvesse novas eleições longínquas ainda no calendário político.

765. Cumpria tomar providências compensatórias. De duas or­dens eram elas. Através das chamadas reuniões dos governadores, em que Jânio Quadros se deslocava para um ponto do território nacional, quase sempre acompanhado de parte de seu Ministério, e se encontrava com os governadores de determinadas regiões do país: uma primeira, a 24 de março de 1961, com os governadores do Rio Grande do Sul (Leonel Brizola), de Santa Catarina (Celso Ramos) e do Paraná (N e i Braga) ; uma segunda, um mês deoois, com os governadores de Mato Grosso (Fernando Correia da Costa), Goiás (Mauro Borges), Rondônia (Abelardo de Alvarenga Ma­fra) e Acre (José Altino Machado); uma terceira, a 26 de maio, com os governadores da Paraíba (Pedro Gondim) e Pernambuco (Cid Sampaio); e uma quarta, com os governadores da Guanabara (Carlos Lacerda), São Paulo (Carvalho Pinto) e Estado do Rio de Janeiro (Celso Peçanha) -reuniões de que saíram decisões de interêsse imediato para os Estados em causa, que foram reconhecidas como de grande importância por todos os participantes. Paralelamente, as famosas comissões de inquérito, instituí­das em comissões de sindicância, vinham a público com resultados. O prí-

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meiro relacionava-se com a Companhia Urbanizadora da Nova Capital (No­VACAP), tornado público a 14 de março, em que se alegavam irregularidades da ordem de 60 milhões de cruzeiros. Nessa altura, já funcionavam trinta e três comissões de sindicâncias, cobrindo os mais variados setores da ad­ministração. A 17 de agôsto, vinha a público o resultado da comissão de inquérito administrativo para apurar as irregularidades na Superintendên­cia do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (S.P.V.E.A.), quando se tomava conhecimento do chamado emprêgo irregular de 350 milhões de cruzeiros, na gestão do superintendente daquela entidade e do presidente da Fundação Brasil-Central.

7 66 . A história dessas sindicâncias ficará por largo tempo como objeto de polêmica, pois seu valor foi essencialmente controversível. É in­contestável que, se se apurou irregularidade em muito setor, não menos ver­dade é o fato de que o ânimo apurador supervalorizava os pormenores, transformando, vindicativamente, rotinas intrínsecas ao poder público em todos os tempos da história brasileira em alarmantes excepcionalidades. O fundamental, entretanto, escapava aos observadores em geral: Jânio Qua­dros presidia a uma santa inquisição, em nome da moral e da pureza aiÍ­ministrativas, cujos sacerdotes eram de regra os militares designados pua presidirem ou intP.grarem tais comissões, no exercício de uma polícia e milícia de que sairiam cada vez mais convencidos de que uma corja de trê­fegos assaltantes civis enlameava a puridade nacional, impedindo que o Estado e a sociedade civil como um todo pudessem ser eficazes e realizar os objetivos de felicidade e riqueza sociais. A divisão da sociedade civil en-.. limpos e sujos, a ilusão de que através da limpeza a eficácia do progresso poderia ser atingida, uma compreensão anedótica, em suma, da problemá­tica nacional, e ademais vingadora, se ia, destarte, radicando em setores responsáveis, que, além disso, por natureza profissional, eram fortemente arregimentados: a pobreza do subdesenvolvimento, o lado social carente, isso não era levado em aprêço.

767. No parlamento, os debates suscitados em tôrno dessas comissões aprofundavam o hiato crescente entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo. Mas se isso ocorria em função daqueles fatos, acirrando os protestos de certos setores parlamentares mais identificados com o qüin­qüênio anterior, ocorria também em função da política externa, aí acirrán­do os protestos das alas e correntes mais reacionárias do parlamento - es-

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pecialmente do partido a que pertencia o ministro de Estado da impren­sa, de certos setores do clero brasileiro.

768. ~ preciso ressaltar, contudo, que o chanceler Afonso Ari­noi logo de início se revelava o homem capaz de explicitar as tendências da política externa do govêmo. Dotado de grande conhecimento da hist6ria diplomática brasileira, ao contrário de certos setores que viam na implanta­ção da nova política externa uma inovação extemporânea, acreditava êle que a mesma era a expressão mais genuína das necessidades nacionais -expressão que tivera seus primeiros e substantivos lineamentos ao tempo dos Andradas, no processo da Independência, e que fôra a tônica da diplo­macia brasileira sempre que esta pudera ser mobilizada para uma prática dinâmica, que a subtraísse da mera rotina da representação externa e a le­vara ao encaminhamento de providências que marcassem, a um tempo, uma posição internacional brasileira realmente motivada por nossas condições objetivas de grande potência subdesenvolvida, capaz de exercer poderosa influência no cenário internacional - o que lhe impunha, desde logo, o ln­declináve_l dever de liberar-se de pautas que fôssem ditadas por interêsses alheios, mesmo que de aliados poderosos. Ao chanceler, conhecedor do lta­marati e dos funcionários, não escapava, tampouco, a consciência das difi­culdades que para tanto teriam que ser superadas, já que êsse funcionalis­mo, embora em maioria cultural e profissionalmente qualificado, se caracterizava por uma prudente e timorata atuação que não viesse jamais comprometer os acessos na carreira, visto como os presidentes passavam e a carreira era longa, pois na sua normalidade durava o equivalente a seis qüinqüênios presidenciais, num país em que, ainda quando houvesse con­tinuidade de classe dirigente, havia sempre pendularidade de tendências, preferências e confiança: buscar um meio têrmo não engajado de servir era o cânon da casa, a que se furtavam uns poucos, capazes de se empenharem funcionalmente fundo, quaisquer viessem a ser as sanções futuras das re­versões.

769. Na mensagem presidencial ao Congresso Nacional, datada de 15 de março de 1961, a política externa brasileira era considerada em vários parágrafos, em que, dentre outros, os seguintes princípios se afir­mavam: 1) A necessidade do estabelecimento de contactos de várias natu­rezas, sobretudo comerciais e diplomáticos, com países de ideologias diver­gentes, no reconhecimento tácito de que existem no mundo em que vive-

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mos e sua remoção ou modificação não se deve operar pela via catastrófica da guerra, hoje impensável, porque escalável à condição de guerra total atô­mica, repugnante para a humanidade no seu conjunto e nas suas partes; 2) tais contactos, por conseguinte, eram a via empírica expedita para disten­der as relações internacionais e tornar possível a manutenção da paz; 3) as Nações Unidas não haviam sido criadas para serem fôro manipulável por um grupo de países de ideologias afins; cada país devia aí representar-se em função exclusiva dos seus interêsses, desde que respeitando o princípio bá­sico que estrutura o organismo internacional, a saber, o decidido apoio à causa da preservação da paz, através da certeza de que todos os diferendos internacionais podiam encontrar sua solução por via pacífica e jurídica. Ademais, a mensagem referia-se, dentro dessas coordenadas, a determina­das áreas e países, trazendo para definição de nossas relações com tais áreas e países a mesma soberana independência de perspectivas: para com os países socialistas, além da questão do prospectivo reconhecimento de certos governos (da Hungria e da República Popular da China), aludia-se à conveniência da ampliação de nossos mercados; com relação às duas Ale­manhas, a mensagem era inequívoca: Bonn era a verdadeira expressão po­lítica da Alemanha, sua unidade era desejável, o que, entretanto, não viria a excluir o princípio da generalidade de contatos para a ampliação das relações comerciais com quaisquer países, inclusive a República Democrá­tica da Alemanha; com respeito à Africa, a fórmula era profundamente au­daciosa, pois se afirmava que o Brasil não aceitaria qualquer modalidade de colonialismo ou imperialismo, o que, na prática, iria constituir um difícil ponto de superação em nossa política externa, pois que sob êsse enunciado se escondia, também, o problema das chamadas "províncias ultramarinas" portuguêsas, vale dizer, dentre outras, Goa, Damão, Timor e Macau (na Ásia), e a Guiné, Angola e Moçambique, na África, cujas populações equivaliam à de Portugal e onde o espírito de independência nacional e suas expressões eram objeto de repressão metropolitana. A mensagem externava real satisfação pelo próximo advento da Argélia à condição de país sobe­rano e, com respeito ao Congo, então dilacerado por lutas em que o neoco­lonialismo desempenhava um papel que só não via quem não quisesse, a mensagem era incisiva: era preciso impedir que os acontecimentos no Congo servissem de instrumento para que qualquer país ou grupo de países obti­vessem vantagens para a sua posição internacional específica.

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770. Entrava, por fim, a mensagem na consideração do conti­nente americano: "A evolução histórica recente de algumas nações irmãs estaria mais inclinada para a esquerda ou para a direita do que pareceria desejável, a juízo de alguns. Pouco importa, embora convenha manter aber­to, de Norte a Sul, amigável e cooperativo, o diálogo sôbre as recíprocas experiências e necessidades. O que importa, todavia, é a afirmação, por t~­do país latino-americano, de sua autodeterminação, preservada de qual­quer intervenção alheia nos próprios negócios e resguardada de qualquer intervenção própria nos negócios alheios." Peça muito mais expressiva ainda seria elaborada pelo presidente Jânio Quadros sôbre sua política externa, a qual só sairia na revista a que se destinara, a norte-americana Foreign Af­fairs, em seu número de setembro de 1961, vale dizer, após a renúncia. Mas lá estava todo um código de princípios que guiavam a política externa brasileira de forma a melhor servir aos interêsses nacionais de país soberano desejoso de levar à arena internacional uma ação dinâmica que pudesse servir a um mundo em transição, num trânsitq, se possível, pacífico - dis­pondo-se, ao serviço da paz em última análise, tôda a atuação diplomática brasileira, na convicção de que a serviço da paz o império da lei interna­cional viria a permitir a solução de todos os diferendos internacionais.

771 . Retrospectivamente, fluídos alguns anos já dos aconteci­mentos, é lícito reconhecer que no conjunto a política externa inaugurada com o presidente Jânio Quadros e continuada, com algumas pequenas alte­rações, até a deposição do presidente João Goulart, se caracterizou: a) pela relativa inalterabilidade das mesmas relações com todos os países capitalis­tas, inclusive os Estados Unidos da América, salvo, neste particular, com relação a Cuba; b) pelo encetamento e intensificação das relações diplomá­ticas e comerciais com os países socialistas, aspecto positivo, tanto que desde então o país o vem mantendo e sustentando, quaisquer que tenham sido as modificações internas, pois o presumido se positivou, a saber, que pelo menos as relações comerciais seriam reciprocamente benéficas - res­salvado o não encaminhamento da questão das relações com a China Po-­pular e a ruptura de relações com Cuba. Sob êsse ângulo, o saldo foi dura­douro. Outra é a questão de saber se o país estava em condições de tomar aquelas medidas.

772. Formulada assim, a questão assume caráter polêmico. E foi o que aconteceu. Poucos chanceleres terão tido a necessidade de en-

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frentar tamanha onda de objeções no seio do parlamento nacional quanto o teve Afonso Arinos. Dos debates, entretanto, ressalta clara a visão mani­queísta e retardatária dos objetores: as relações com a União Soviética, por exemplo, foram prenunciadas como a ponta de lança aberta no seio da comunidade nacional para o atropêlo do comunismo e a derrocada das ins­tituições. Nos quase seis anos de relações, porém, aquêle país se manteve nos mais estritos limites de conveniências diplomáticas e políticas, ao mesmo tempo que se incrementavam relações comerciais que hoje, ainda pequenas embora, representam um contingente apreciável do nosso comércio exterior, com potencialidades que, quaisquer que sejam os temores, tendem a se realizar, o mesmo podendo-se dizer dos demais países socialistas.

773. A chamada missão João Dantas coubera a função explora­tória no planejar, in loco, acôrdos comerciais do Brasil com a Bulgária, a Hungria, a Romênia, a Iugoslávia e a Albânia.

77 4 . Concomitantemente, novas embaixadas brasileiras eram abertas em vários países do Terceiro Mundo, inclusive na África, no Sene­gal, em Gana, na Nigéria, no Congo (Kinshasa).

775. Tôdas essas medidas, porém, que em quaisquer circuns­tâncias de normalidade teriam tramitado como rotinas de país soberano, eram, em verdade, recebidas pelo parlamento e pela grande maioria da im­prensa brasileira como excentricidades e audácias periculosas, para as quais o país não estava estruturalmente preparado. Negava-se ao Brasil o que um sem-número de países mu~to menos expressivos podiam realizar de forma a mais natural ou lógica.

776. A invasão de Cuba, entretanto, a 16 de abril de 1961, por contingentes anticastristas sediados nos Estados Unidos da América e na América Central, com conivência de setores econômicos e militares nor­te-americanos, que pressionavam o presidente John F. Kennedy, foi um dos pontos de precipitação da divisão ideológica interna do Brasil. E, nessa di­visão, duas figuras passaram a cristalizar os pólos de opiniões: o próprio presidente Jânio Quadros, através de cujo chanceler o Brasil se alinhava contra qualquer tipo de intervencionismo, ostensivo, ou à socapa, e de outro o seu ex-entusiasta, o governador da Guanabara, Carlos Lacerda, que se declarava totalmente em apoio dos invasores. A cisão entre o govêrno da

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Guanabara e o govêrno federal seria, daí por diante, um dos elementos que Jriam emocionalizar a gestão da coisa pública no Brasil.

"777. Tudo culminaria quando da passagem pelo território na­·cional de Ernesto Guevara, na qualidade, vindo da reunião de Punta del Este, no Uruguai, de ministro da Economia da República de Cuba. Che­

,gando a Brasília no dia 18 de agôsto, a 19 recebia das mãos do presidente .Jânio Quadros a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul. O go­vernador Carlos Lacerda, na véspera, e~tivera com o presidente Jânio Qua­-dros e com o seu ministro da Justiça, Pedroso Horta, e obtemperara a am­bos sua discordância para com a política externa que vinha sendo seguida pelo govêrno federal. Essa divergência assumiria, ato contínuo, caráter acin­toso, pois o governador da Guanabara recebia em palácio, poucas horas de­pois de Guevara ter sido condecorado, ao líder anticastrista Manoel Antonio de Verona, a quem também conferia prebenda estadual.

778. Parlamento, imprensa, opinião pública, fôrças armadas en­traram todos na discussão do mérito de ambas as atitudes. Na prática, nin­~uém podia, já naquela altura, ter dúvidas de que a prova da viabilidade .da presidência Jânio Quadros acabava de ser tentada. Era uma gôta d'água que justificava o extravasamento de discordâncias e discrepâncias para com

.a condução dos negócios públicos. Tôdas as fôrças reacionárias tomavam ,consciência da insubmissão do presidente da República. f:ste, nos estritos têrmos dos seus poderes constitucionais, timbrava em exercê-los, enfren­tando tôdas as objeções. A partir daí ver-se-ia se poderia continuar como o presidente que quisera ser ou como o presidente que queriam fôsse.

779. Duas linhas de ação se desenvolvem paralelamente, em tôrno do eixo da política externa brasileira, a partir daí: de um lado, o go­

·vernador da Guanabara procura incendiar os ânimos, chegando a motivar, mo dia 21 de agôsto, sessão secreta da Assembléia Legislativa da Guana­bara, para pedir sua renúncia, ato de que recua logo em seguida, conti-nuando sua pregação contra a política externa e os seus condutores; de

.outro lado, o presidente da República continua sua ação, tomando provi­dências administrativas dos mais variados tipos, como se o seu govêrno não sofresse o menor risco de continuidade: recomenda ao Itamarati e ao Ministério da Indústria e Comércio a negociação de um acôrdo econô­mico com Cuba; institui o plano de mobilização nacional contra o analfabe-

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tismo, e delineia os problemas fundamentais que o Brasil deveria suscitar e discutir durante a Assembléia Geral das Nações Unidas, que encetava sua XYII sessão a partir da terceira têrça-feira do mês de setembro entrante.

780. Entrementes, ainda no dia 21 de agôsto, o governador Carlos Lacerda recebia, dentre outros visitantes, vários militares das três armas, dos altos escalões.

781. Na noite de 24, o governador Carlos Lacerda, como o fi­zera na noite anterior em São Paulo, em longa palestra pelas televisões ca­riocas, denunciava conversações com que teria sido entretido pelo ministro da Justiça, Pedroso Horta, conducentes, inequivocamente, a um golpe de Es•ado branco, segundo o qual o Congresso Nacional teria seu recessu de­cretado, com apoio das Fôrças Armadas, enquanto o Executivo, sob a di­reção de Jânio Quadros, promoveria uma série de reformas, que seriam posteriormente submetidas a referendo popular. Em hipótese de o gover­nador não aceitar ser um dos intermediários qualificados para a forjicação, JlinJc Quadros não relutaria em guinar para a esquerda, fazendo apêlo ao povo para a consecução daqueles objetivos.

782 o As primeiras horas do dia 25, por iniciativa de vários po­líticos, dentre os quais sobressaíam o governador Carlos Lacerda e o depu­tado Armando Falcão, reunia-se a Câmara, convertida, por iniciativa dos deputados José Maria Alkmim e Paulo Lauro, em Comissão Geral de In­quérito, figura desconhecida no Direito Constitucional do país, e convocava para depor, em plenário, e na mesma data, o ministro Oscar Pedroso Horta. Fazia-o ao arrepio da lei constitucional, isto é, sem que àquele titular fôsse dada ciência prévia das questões que seriam propostas ou marcasse êle o dia do próprio comparecimento.

783. Simultâneamente, circulava a notícia de que outras convo­cações seriam feitas, inclusive a da própria espôsa do presidente, o que mos­trava o propósito de quebrar a autoridade do govêmo, desprestigiando-o ou desmoralizando-o.

784 o Certo, a crise deflagrada fôra inevitável. Entendia o pre­sidente, e com êle os ministros mais diretamente ligados às instituições, que a administração pública se fazia cada vez mais difícil, senão impossível. O govêrno encontrava-se desaparelhado para a obra a que se propusera, tam-

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bém porque lhe faltava a indispensável sustentação parlamentar. O mais grave era a discrepância entre as exigências político-administrativas e sócio­econômicas do país, de um lado, e a débil estrutura político-jurídica, consti­tucional e legal, por outro. Havia tempos, o presidente, o ministro Pedroso Horta, da Justiça, e o ministro da Guerra, marechal Odílio Deny, cujo prestígio no exército era incontestado, convencidos dessa verdade, exami­navam fórmulas ou soluções tendentes a fortalecer a autoridade governa­mental, sem o sacrifício dos aspectos fundamentais da mecânica democrá­tica. O que aconteceu, então, foi frustrarem-se êsses anseios de reforma institucional, ficando o govêrno à frente do seguinte dilema: permitir seu aviltamento pela Câmara, que não se achava em consonância com o pen­samento político do país, nem queria ser o instrumento hábil para as re­formas, até porque interessada em manter a estrutura e os privilégios vi­gentes, ou implantar a ditadura. À ditadura recusou-se o presidente.

785. Na manhã do referido dia 25 de agôsto de 1961, Jânio Quadros madrugava no palácio, em Brasília. Unânimes são os depoimentos dos seus auxiliares diretos quanto à serenidade de que se achava penetrado. Em longa conversa com os colaboradores mais achegados, disse-lhes da de­terminação de renunciar e deu-lhes o texto autógrafo da sua renúncia, or­denando, irretorquivelmente, que preparassem a mensagem ao Congresso N acionai. A parte substantiva rezava assim:

Fui vencido pela reação e, assim, deixo o govêrno. Nestes sete meses, cumpri o meu dever. Tenho-o cumprido dia e noite, trabalhando infatigàvelmente, sem prevenções nem rancores . Mas, baldaram-se os meus esforços para conduzir esta Nação pelo caminho da sua verdadeira libertação política e econômica, o único que possibilitaria o progresso efetivo e a justiça social, a que tem direito seu generoso Povo.

Desejei um Brasil para os brasileiros, afrontando, nesse sonho, a corrupção, a mentira e a covardia, que subordinam os interêsses gerais aos apetites e às ambições de grupos ou indiví­duos, inclusive, do exterior.

Sinto-me, porém, esmagado. Fôrças terríveis levantam-se contra mim, e me intrigam ou infamam, até com a desculpa da colaboração. Se permanecesse, não manteria a confiança e a

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tranqüilidade, ora quebradas, e indispensáveis ao exerc1cto da minha autoridade. Creio, mesmo, que não manteria a própria paz pública. Encerro, assim, com o pensamento voltado para a nossa gente, para os estudantes e para os operários, para a gran­de família do País, esta página de minha vida, e da vida na­cional. A mim, não falta a coragem da renúncia.

Saio com um agradecimento, e um apêlo. O agradecimento ~

é aos companheiros que, comigo, lutaram, e me sustentaram, dentro e fora do govêrno, e, de forma especial, às Fôrças Ar­madas, cuja conduta exemplar, em todos os instantes, proclamo, nesta oportunidade.

O apêlo, é no sentido da ordefil, do congraçamento, do. respeito e da estima de cada um dos meus patrícios para todos;. de todos para cada um.

Somente, assim, seremos dignos dêste País, e do mundo.

Somente, assim, seremos dignos da nossa herança e da nos­sa predestinação cristã.

tria.

Retorno, agora, a meu trabalho de advogado e professor.

Trabalhemos, todos. Há muitas formas de servir nossa Pá-

Brasília, 25-8-61.

O teor da peça encaminhadora era vazado nestes têrmos :

"Ao Congresso Nacional:

Nesta data e por êste instrumento, deixando com o Minis­tro da Justiça as razões do meu ato, renuncio ao mandato de

Presidente da República.

Brasília, 25 de agôsto de 1961.

(a) Jânio Quadros."

787. No tumulto que foi a sessão que tomou conhecimento da peça, prevaleceu a tese de que a única atitude que cabia ao parlamento era tomar conhecimento do fato, provindo de um ato unilateral e irretratável do presidente da República, seguindo-se-lhe a aplicação pura e simples da

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Constituição: <' vice-presidente devia assumir o govêrno pelo resto do Pf!­

ríodo e, com sua ausência, enquanto retomava, devia assumi-lo o presi­dente da Câmara dos Deputados.

788. João Goulart, o vice-presidente, estava em missão de boa vontade na República Popular da China. O presidente da Câmara era o deputado Ranieri Mazzilli, que pouco depois assumia o mandato, enquanto João Goulart se fazia indesejável a muitos setores influentes do sistema do poder.

789. A renúncia tem sido objeto de interpretações as mais con­troversas segundo perspectivas as mais variadas: desde as de tipo psicolo­gizante - Jânio Quadros, um instável e emocional, exasperado ante as resistências, preferia capitular; Jânio Quadros, provinciano e desaparelhado, tomava consciência de sua incapacidade; Jânio Quadros, pusilânime e timo­rato, abandonava o barco antes que o afundassem -; passando pelas de tipo condicionante - Brasília, a isolada e isolante, era a fonte da ingovcr­nabilidade do país ao mesmo tempo que causa da emocionalidade dos diri­gentes -; até as do tipo maquiavélico - Jânio Quadros, em verdade, como de duas vêzes anteriores, manobrava com o espectro da renúncia para poder retomar, na crista da onda da reação popular, com a soma de podêres sem os quais não via a possibilidade de gerir o país, podêres que o sagrariam como ditador.

790. A mente humana comporta, mesmo quando obsessiva­mente a povoa uma linha mestra de raciocínio, concomitâncias emocionais ou fantasias periféricas e paralelas. Tudo pode ter passado pela mente do homem em quem, num dado momento, seis milhões de eleitores haviam de­positado sua confiança e um sistema de lei deferira, nominalmente, uma soma ·definida, mas enorme, de podêres.

791. Dentro dessas coordenadas, Jânio Quadros procurou cor­responder a si mesmo, correspondendo ao que presumia ser a expressão da vontade popular e ao mandato que recebera.

792. No curto lapso de tempo em que presidiu ao país, transi­tou, ràpidamente, de medidas esparsas moralizantes, para os lineamentos de um conjunto de providências que se feiçoariam num corpo conseqüente, que deveria desembocar em sucessivas medidas de reforma estrutural.

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793. Já se compenetrara êle de que não podia haver dicotomia entre o plano externo e o interno. E o arcaico era o interno. O Brasil se apresentava como uma sociedade em plena expansão demográfica, cujo mo­dêlo subdesenvolvido cumpria superar: uma taxa de incremento demográ­fico no mínimo de 3% ; uma taxa de incremento do produto nacional bruto que, em momentos áureos, não superara a média de 5% ; e, verossimilmente, uma taxa de incremento da riqueza dos ricos superior à dos pobres, de tal modo que, não obstante o potencial incremento global per capita, na prá­tica os ricos tendiam a ser mais ricos e os pobres mais pobres. A saída ou seria catastrófica ou, para evitá-la, cumpria dirigir no interêsse nacional algumas dessas tendências. Uma das formas de dinamização nacional de~ veria · ser pela tomada de consciência da problemática. Através do debate do fôro internacional far-se-ia, porque apaixonadamente conspícuo, a edu­cação política coletiva, pois um dos maiores males dos brasileiros, do co­mum como sobretudo das chamadas elites, era . a _ignorância geral do que se passava no grande mundo, o que lhes fazia supor sermos uma grande nação, quando éramos, em verdade, uma nação que tendia a quantificar-se, pauperizando-se e multiplicando-se em problemas sociais cada vez mais graves.

794. As resistências que encontrou - precisamente as mesmas para as quais não estava aparelhado, porque não chegara à presidência como expressão de fôrças sociais coerentes corporificadas numa doutrina ou plano de ação global- lhe ofereceram sempre uma oportunidade: é que seu go­vêrno, dicotômico, no plano interno oferecia as perspectivas de superar a inflação galopante que tenQia a instituir-se no país: o próprio Fundo Mo­netário Internacional e os mais inf!uentes orgãos das finanças capitalísticas internacionais viam equilíbrio na sua gestão da vida financeira nacional. Sob tal aspecto, essas resistências não se manifestariam, porque poderiam com­padecer-se com o seu govêrno. Faltar-lhe-ia, tão só, um ato de acomoda­mento: que se acomodasse nas suas veleidades com relação à política ex­terna;. que se comportasse nas suas intenções de olhar para as grandes mas­sas populares; que planejasse, para o futuro, as chamadas reformas estrutu­rais, quando o país, naturalmente, viesse a poder recebê-las. Ora, precisa­mente o futuro era o sombrio para Jânio Quadros. O presente era, se enfren­tado com coragem, decisão e prgê~cia, exatamente o componente que iria permitir à nação ter um futuro diferente daquele para o qual, "natural­mente", se estava e~caminhando.

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Salinas em Cabo Frio vinavil de Carlos Scliar ( det. central)

Acervo da Galeria Relêvo, Rio

795 . Já então, em verdade, se compenetrara Jânio Quadros de que lavrava uma fundamental contradição no sistema institucional: de um lado, havia o curso à presidência da República, de outro lado, a organiza­ção do Poder Legislativo expressa pelos partidos políticos. Presidente da República, que aspirasse a ser efetivamente vinculado ao seu povo, tinha que necessàriamente dirigir-se, em verdadeiro plebiscito, a êsse mesmo povo, acima dos partidos, fragmentados por sua impotência de galvanizar as gran­des necessidades políticas e sociais, e por isso mesmo destituídos de progra­mação. Em contato com o povo, o presidente da República tendia a pro­meter-lhe aquilo que eram as mais profundas aspirações populares, promes­sa, entretanto, que se frustrava. É que, enquanto a eleição presidencial era plebiscitária, universal, direta e secreta, ainda que viciada pelo chamado poder econômico, paralelamente o Poder Legislativo se pulverizava na re­presentação do voto proporcional partidário, carente de programação na­cional. Nessas condições, quando, empossado, o presidente quisesse propor legislação reformista profunda, encontraria, fatalmente, um legislativo sub­dividido em partidos teOricamente nacionais, na prática multiplicados ou esfarinhados nas suas expressões regionais, estaduais ou municipais - em que timbrariam as reivindições de tipo personalista.

796. O vício, politicamente, era estrutural. Seria, para vencê-lo, mister uma grande modificação no próprio sistema do poder. E o ideal, a seu ver, no Ocidente Moderno, era representado pela constituição francesa ar­rancada aos franceses pelo presidente De Gaulle, modêlo que iria permitir, no Brasil, que a mesma fôrça popular que consagrasse um presidente da República elegesse também a maioria parlamentar que o acompanhasse nas reforÍnas estruturais. A aspiração era, em princípio, legítima: mas a impo­tência de realizá-la era óbvia.

797. Nessa altura, Jânio Quadros não viu como malograr nos seus objetivos, ainda que com sacrifício próprio. Pôsto em movimento o esquema, compenetrados e ajustados os ministros militares quanto a êsse objetivo essencial, a sua consecução não poderia falhar.

798. Seu raciocínio foi o seguinte: primeiro, operar-se-ia a re­núncia; segundo, abrir-se-ia o vazio sucessório- visto que a João Goulart, distante na China, não permitiriam as fôrças militares a posse, e destarte, fi­caria o país acéfalo; terceiro, ou bem se passaria a uma fórmula, em conse-

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qüência da qual êle mesmo emergisse como primeiro mandatário, mas já dentro do nôvo regime institucional, ou bem, sem êle, as fôrças armadas se encarregariam de montar êsse nôvo regime, cabendo, em conseqüência, depois a um outro cidadão - escolhido por qualquer via - presidir ao país sob o nôvo esquema viável e operativo: como, em tudo, o que impor­tava era a reforma institucional, não o indivíduo ou os indivíduos que a promovessem, sacrificando-se êle, ou não se sacrificando, o essencial iria ser atingido.

799. O plano, porém, falhou exatamente na vacilação dos che-fes militares.

800. João Goulart, compadecendo-se com a reforma parlamen-tarista, desfez, talvez sem sabê-lo, todo o plano concertado.

801. De tudo, dois saldos negativos ficariam a pesar no futuro : primeiro, o país continuaria inviável como sistema de poder, incapaz de promover por via pacífica as reformas de que necessitava; segundo, já agora era certo que o centro do poder se deslocara, por um longo período, para a alçada militar - que esperaria maior ou menor tempo mas viria à tona, como a só alternativa para aquela inviabilidade.

802 . A renúncia foi, assim, expressão de uma coerência de tipo heróico, no sentido carlyliano; Jânio Quadros acreditou que os destinos na­cionais, num dado momento, dependiam de sua coragem de sacrificar sua carreira pessoal.

803. Faltou-lhe, porque disso não proviera, o sistema de fôrças políticas que o amparassem nessa direção.

804 . Faltou-lhe, porque não quis trair a própria imagem, a von-tade de querer continuar a ser presidente, ao preço da acomodação.

805 . Para êle, dirá sempre, a política não é a arte do possível, se o possível é condicionado pelo caduco; é, sim, a arte do possível dentro das necessidades globais - algumas das quais estavam clamando por urger.­tes decisões, que o sistema de fôrças vigentes rejeitava.

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