Catálogo O Samba Pede Passagem

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    1 a 13 de dezembro de 2015cinemas 1 e 2

    confira a mostra completa:

    osambapedepassagem.com.brfacebook.com/mostraosambapedepassagem

    CONSULTE A CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA DOS FILMES NA PROGRAMAÇÃO

    Acesse www.caixacultural.gov.br | Baixe o aplicativo Caixa Cultural

    Curta facebook.com/CaixaCulturalRiodeJaneiro

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    CAIXA é uma das principais patrocinadoras da cultu-

    ral brasileira, e destina, anualmente, mais de R$ 60

    milhões de seu orçamento para patrocínio a projetos

    culturais em seus espaços, com o foco atualmente voltado

    para exposições de artes visuais, peças de teatro, espetácu-

    los de dança, shows musicais, festivais de teatro e dança em

    todo o território nacional, e artesanato brasileiro.

    Os eventos patrocinados são selecionados via Programa

    Seleção Pública de Projetos, uma opção da CAIXA para tor-

    nar mais democrática e acessível a participação de produ-

    tores e artistas de todas as unidades da federação, e mais

    transparente para a sociedade o investimento dos recursos

    da empresa em patrocínio.

    A mostra “O Samba pede passagem” selecionou filmes

    que relacionam o cinema e o samba e possuem importância

    histórica; seja pelos registros raros dos primórdios do gênero

    musical, ou pela relevância à época em que foram lançados.

    Desta maneira, a CAIXA contribui para promover e di-

    fundir a cultura e retribui à sociedade brasileira a confiança

    e o apoio recebidos ao longo de seus 154 anos de atuação

    no país, e de efetiva parceira no desenvolvimento das nossas

    cidades. Para a CAIXA, a vida pede mais que um banco.

    Pede investimento e participação efetiva no presente, com-

    promisso com o futuro do país, e criatividade para conquistar

    os melhores resultados para o povo brasileiro.

    CAIXA ECONÔMICA FEDERAL

    A

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    “E muito bem representado

    Por inspiração de geniais artistas

    O nosso samba, humilde samba

    Foi de conquistas em conquistas” 

     Vale crer, a bem da verdade, que quando Cartola, junto com

    Carlos Cachaça, concebeu os versos acima – da canção Tempos

    Idos  – não enxergava os “geniais artistas” do samba apenas

    como os compositores que, com letra e harmonia, fizeram o

    gênero perpetuar-se da maneira que sabemos hoje. Cartola

    atenta para um manifesto do samba como caminho para o

    reconhecimento. O samba traria de volta ao seu movimento

    central, e para além dele, aqueles que antes foram afastados

    da ventura, excluídos do mapa de fluxo. Aqueles que só po-

    diam realizar suas aptidões artísticas longe do centro burguês

    da capital. Afastados pelo dinheiro e pela cor da pele, seria

    nos morros e bairros distantes do subúrbio que formariam oseu movimento.

    Cartola e Cachaça narram com saudade um sentimento

    inaugurador. E deixemos de lado o tão propagado e simplista

    termo “samba de raiz”, em troca de uma ideia de momento

    seminal, que assimila várias referências e, por conseguinte,

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    várias ra ízes. Do samba como proposta agente. A simplicidade

    pioneira, cheia da elegância que o fez rei dos terreiros. Uma

    sofisticação singela (por mais contraditório que isso possa pa-

    recer), que organicamente o assimilou como carro-chefe da

    cultura popular. Que vem do povo e vai ao povo. Do malan-

    dro de terno de linho ao príncipe da Inglaterra, do bacharel

    ao bicheiro, uma instituição altamente democrática que trans-

    forma e é transformada.

    Esses tais artistas geniais, elevados pelos mestres, se

    destacaram ao perceberem o samba não só como vértice da

    canção popular, mas como um movimento interessantíssimopara se contar histórias, chorar e sorrir o amor, descrever o

    espaço e almejar o empoderamento. Artistas o fizeram arte, o

    fizeram manifestação. Viveram seus movimentos. Apontaram

    direções e fizeram história. Dentre os muitos que o descre-

    veram, que o vivenciaram, que o criaram com inspiração e

    dentre os que observaram, descobriram, exploraram, expan-

    diram, alguns encontraram o samba através das lentes.

    Foi graças a essa relação que estabelecemos a proposta

    dessa mostra. A ideia veio da troca constante entre dois ami-

    gos de longa data que permeiam em suas vidas os dois po-

    los. Num cineclube, surgiu a ideia de construir essa leitura.

     Vieram indagações: de que maneira o cinema testemunhou o

    samba? Como essa relação tão mágica se estabeleceu ao longo

    do tempo? Debatíamos pelo prazer da troca, pelo testemunhodo universo e da vivência alheia. Isso é o motor de nossas

    vidas. Referências distintas que se completam. E é tão extra-

    ordinário perceber que não só o cinema observou o samba,

    mas foi agente ativo dele e o integrou de maneiras diferentes

    aos distintos movimentos que fazem da sétima arte uma rede

    de possibilidades tão fecunda. Abre-se ainda mais o leque de

    interpretações quando passamos a entender não só que dife-

    rentes movimentos realizaram diferentes leituras do samba,

    mas também como distintos cineastas imprimiram e vislum-

    braram essa força de movimento popular, cria de Eleguá, à

    sua maneira, ao seu olhar.

    O Cinema Novo, as chanchadas, o cinema marginal, os

    documentários pós-retomada, os líricos experimentalismos

    carnavalescos, tudo fez parte de um encontro entre artes.

     Assim como o encontro desses dois amigos que, juntos, pen-

    saram em tornar pública a união de olhares, o casamento en-tre as propostas. As forças que agiram entre si para construir

    poesia. Assim, Leon Hirzman apresenta Nelson Cavaquinho

    no seu cotidiano solitário, circundado daqueles para quem

    e por quem sua música era feita; Nelson Pereira dos Santos

    faz de Grande Otelo a representação máxima do compositor

    de samba brasileiro, ludibriado pela indústria fonográfica;

    Rogério Sganzerla esboça diferentes facetas do Mocinho da

     Vila, Noel Rosa, encarando-o como um objeto lúdico de estu-

    do cultural e social - desse e de outros séculos do progresso.

     Além dos muitos títulos que apresentam resgates, perfis,

    leituras e fábulas relacionadas ao mundo do samba, a mostra

    ainda contará com três mesas que traçarão caminhos temáti-

    cos distintos.

     A primeira, “A História Social do Samba”, com o historiadore escritor Luiz Antônio Simas e o compositor, poeta e produ-

    tor cultural, Hermínio Bello de Carvalho, faz uma jornada

    pelas origens. Assim, partimos do quintal de Ciata, passando

    pela “Santa Trindade” (Pixinguinha, Donga e João da Baiana),

    pelas histórias da Pequena África, pela polêmica de Pelo

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    Telefone, pela turma do Estácio, pelas primeiras escolas, pelo

    rádio e seus grandes ícones. Simas contando a história des-

    ses e outros momentos, e Hermínio dando seu depoimento

    de testemunha ocular da convivência com alguns dos perso-

    nagens mais importantes do nosso compêndio: Clementina,

     Aracy de Almeida, Pauli nho da Viola, Nelson Cavaquinho.

     A segunda mesa, “Samba, força de subversão”, conta com

    a professora de Letras da UERJ Giovanna Dealtry e com o

    professor de Filosofia da UFRJ Bernardo Oliveira para traçar

    a influência do gênero enquanto força social, representação,

    paixão, mudança, revolução, arte e construção de arquétipos.Esboça um debate em torno da ideia de nacionalidade, tão

    difundida nisso tudo. Passando pelos “malandros”, pela fo-

    mentação das escolas e sua representatividade no ato de fazer,

    nascer, ensinar e perpetuar; até chegar aos herdeiros atuais

    das narrativas de revolta, do sentimento de pertencimento e

    da mudança social propostas pelo samba seminal. A Lapa de

    hoje, a Lapa de outrora, o rap, o funk.

     A última mesa, “Noel, a Vila mostrou que faz samba tam-

    bém”, conta com o jornalista e escritor da biografia de Noel

    Rosa, João Máximo e o cantor e pesquisador Alfredo Del-

    Penho, para uma descontraída aula cantada, onde serão nar-

    radas as peripécias e histórias das canções emblemáticas do

    Poeta da Vila.

    Para completar, teremos a exibição do raríssimo “O Rei doSamba”, filme que resiste em fragmentos e estabelece um per-

    fil cinematográfico do compositor Sinhô e a oficina infantil

    Burucutum, administrada pelos músicos Pedro Amorim

    e Oscar Bolão que,usando um grande mapa todo feito de

    instrumentos, brincarão com as células rítmicas e melódicas

    dos diferentes tipos de música popular presentes de norte a

    sul do país.

    Convidamos todos a abrir os olhos e atentar os ouvidos:

    o samba pede passagem para contar, através do cinema e da

    tradição oral, os capítulos de sua história.

    GABRIEL MEYOHAS E THIAGO ORTMAN

    CURADORES

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    Em relação à trajetória da mais famosa delas, Tia Ciata,

    cabe ressaltar que a história e o mito dialogam o tempo inteiro,

    sendo difícil estabelecer alguma fronteira entre estes dois cam-

    pos. Em um ambiente marcado pela força das culturas orais,

    aquelas em que o sentido do que é falado é mais relevante que

    a precisão dos fatos, esse cruzamento é a inda mais vigoroso.

     As informações mais precisas que temos indicam que

    Hilária Batista de Almeida, a Ciata, nasceu em 1854, na Bahia,

    transferindo-se para o Rio de Janeiro pouco depois de com-

    pletar vinte anos. O que se conta sobre Ciata no mundo do

    candomblé é que ela teria sido iniciada, ainda na Bahia, pe-las mãos do lendário Bangboshê Obitikô. Radicada no Rio

    de Janeiro, ocupou a função de Iyakekerê (mãe pequena) na

    casa de João Alabá, babalorixá com casa aberta na Rua Barão

    de São Félix, na Zona Portuária, e figura fundamental para a

    construção de laços associ ativos entre a comunidade negra do

    então Distrito Federal.

     Vale destacar que a di stinção entre o sagrado e o profano

    não é algo que diga respeito às culturas oriundas das áfricas

    que aqui chegaram. O que se percebe o tempo inteiro é a

    interação entre essas duas dimensões. A Tia Ciata sacerdotisa

    do candomblé é, ao mesmo tempo, a festeira que t ransformou

    a sua casa em um ponto de encontro para que, em torno de

    quitutes variados, músicos (profissionais e amadores) e com-

    positores anônimos se reunissem para trocar informaçõese configurar, a partir dessas trocas, a gênese do que seria a

    base do modo carioca de se fazer o samba. João da Baiana,

    Pixinguinha, Sinhô, Donga, Heitor dos Prazeres e tantos ou-

    tros conviveram intensamente no endereço mais famoso da

    história da música do Rio de Janeiro.

     A experiência civili zatória da casa da Tia Ciata mostra

    também que a história do samba é muito mais que a trajetória

    de um ritmo, de uma coreografia, ou de sua incorporação ao

    panorama mais amplo da música brasileira como um gênero

    seminal, com impressionante capacidade de dialogar e se re-

    definir a partir das circunstâncias.

    O samba é muito mais do que isso. Em torno dele, circu-

    lam saberes, formas de apropriação do mundo, construção de

    identidades comunitárias, hábitos cotidianos, jeitos de comer,

    beber, vestir, enterrar os mortos, celebrar os deuses e louvar

    os ancestrais. Tudo isso que se aprendia e se ensinava na Rua Visconde de Itaúna, 117.

    Luiz Antonio Simas  é mestre em História Social pela

    Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor, dentre

    outros livros, do Dicionário da História Social do Samba ,

    em parceria com Nei Lopes.

    A CURADORIA INDICA:

    Cariocas – músicos da cidade , de Ariel de Bigault

    Couro de Gato , de Joaquim Pedro de Andrade

    Nossa Escola de Samba , de Manuel Horácio Gimenez

    Pixinguinha , de João Carlos Horta

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    cercanias. Parou primeiramente no tradicional reduto dos

    batuqueiros, o Café Pavão, mas o movimento andava baixo e

    poucas pessoas por lá se encontravam. O indicaram, contudo,

    o Bar Apolo, ali pertinho (“aqueles meninos vivem cantando

    por lá também, até tarde”), e essa foi a direção tomada.

    Lá chegando, a batucada rolava solta. No repertório, co-

    nhecidos sambas de Sinhô, Caninha, Donga e do pessoal da

    Cidade Nova, até que começaram a cantar um samba inédito

    para impressionar Chico Viola, futuro “Rei da voz”. Todos por lá

     já tinham letra e melodia na ponta da língua. Benedito coman-

    dava com sua flauta imortal.Os outros garotos, próximos dosseus vinte anos – os quais, depois, Chico Alves ficaria saben-

    do se tratarem de Baiaco (Osvaldo Vasques), Edgar Marcelino

    Passos (o mano Edgar), Heitor dos Prazeres (também chama-

    do Lino do Estácio), Getúlio Marinho (o Amor), João Mina e

    sua cuíca, Bucy Moreira (neto de tia Ciata), Nilton Bastos e

    Ismael Silva –, lá estavam, tocando violão e uns instrumentos

    percussivos de variados tamanhos. Além do tamborim, cha-

    mou-lhe atenção instrumento maior, feito de lata de manteiga

    cilíndrica, reforçada por aros de madeira, tendo nele um couro

    esticado e pregado, no qual eram aplicadas fortes batidas com

    uma baqueta, à semelhança de um tambor.

     Ao indagar do que se tratava, logo lhe responderam com

    um nome que o intrigou. “Surdo”, disseram, “foi criação do

    Bide”. Francisco já ouvira falar do sambista Bide, apelido de Alcebíades Barcellos, irmão do também sambista Rubens

    Barcellos, o mano Rubens, mas não o conhecia pessoalmente.

    Sabia ser dele uma canção que falava sobre a malandragem e

    não poderia deixar que a oportunidade de gravá-la lhe escor-

    resse pelos dedos.

    Perguntou por onde ele estava, mas ninguém soubera res-

    ponder. Ao que surge, do outro lado da rua, de saída do Café

    do Compadre e rumo à zona do mangue, Sílvio Fernandes,

    o Brancura, lhe dizendo que provavelmente estaria na casa

    de Armando Marçal, pois precisava que este lhe pusesse a

    letra em uma de suas melodias, mas que combinara de retor-

    nar àquelas cercanias mais tarde. Francisco Alves não tinha

    tempo a perder e pediu aos rapazes que avisassem a Bide que

    ele queria tratar de negócios, e que, portanto, o encontras-

    se à meia-noite na Gafieira Estrela d’Alva, no Rio Comprido.

    Ouviu mais uns dois sambas e partiu.O acordo para a gravação do samba  A malandragem foi

    firmado já naquela madrugada. No selo do disco, entraria o

    nome de Francisco Alves no lugar de Bide, em troca de al-

    guns trocados e da divulgação pelo rádio, visando a futuras

    parcerias. A partir daí, outras tantas músicas seriam troca-

    das, compradas, ou até mesmo os cantores teriam seus nomes

    incluídos na parceria das composições, como forma de pro-

    movê-las. O samba tornara-se uma mercadoria que poderia

    trazer recursos financeiros àqueles rapazes pobres, de ampla

    maioria negra, do Estácio. Não precisava ser apenas uma for-

    ma de diversão.

    Essa relação seria vantajosa para os cantores, gravadoras

    e emissoras de rádio, que garantiriam um manancial prati-

    camente inexplorado. Francisco Alves tratou rapidamentede firmar um acordo de exclusividade com aquele que vi-

    ria a ser o maior nome daquela região, Ismael Silva, fazen-

    do muito sucesso. No entanto, o prestígio das principais es-

    trelas dos espetáculos não seria semelhante ao conquistado

    pelos compositores populares. Um ou outro dos músicos

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    daquela região conseguiria maior espaço nas gravações, caso

    de Benedito Lacerda, o qual constituiria, com sua flauta

    imortal e músicos de primeiríssima linha, o “Regional do

    Benedito Lacerda”(rebatizado, com sua saída, de “Regional do

    Canhoto”). Mais tarde, ele faria dupla com o maior nome da

    música popular brasileira, Pixinguinha, tornando-se inclusi-

    ve parceiro dele ( numa dessas trocas de parcerias por outros

    ganhos) e retomando a carreira do santo mestre do choro, que

    trocaria sua flauta de prata pelos contrapontos inovadores de

    seu saxofone.

    Bide e outros conseguiriam empregos regulares, ou se-riam eventualmente chamados para trabalhos nesses meios,

    especialmente na função de ritmistas, arte que dominavam

    com maestria aqueles garotos, responsáveis ainda pela funda-

    ção da “Deixa Falar” (Escola de Samba ou Bloco? Tanto faz...).

    Outros se encaminhariam para a festa carnavalesca, rodando

    por diversas escolas. Caso de Heitor dos Prazeres, que termi-

    naria a vida cuidando de seu ateliê próximo à antiga Praça

    Onze, berço da região que ficaria mais tarde conhecida por

    “Pequena África”.

    Todavia, o caminho da marginalidade e da contravenção

    seria costumeiro. São bastante conhecidas histórias de alguns

    deles metidos em armações para enganar trouxas, ou ingênuos,

    e pegar para si mesmos as composições dos outros; de Brancura

    comandando a movimentação de alguns prostíbulos do man-gue e morrendo louco por decorrência da sífilis; da morte

    precoce de Nilton Bastos por tuberculose; de Ismael Silva se

    livrando da prisão por ser o delegado fã de suas músicas; da

    morte de mano Edgar por um desafeto do jogo do bicho, no

    início da década de 1930. O sucesso artístico seria para poucos.

    Alô, Alô, Carnaval, de AdhemarGonzaga

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    Inegável, contudo, seria a importância que a música pro-

    duzida por esses garotos teria para a consolidação do ritmo

    do samba tanto nas ruas, botequins, festas e casas de espetá-

    culo, quanto nas emissoras de radiodifusão e gravadoras. Ao

    longo do tempo, ganhariam novas roupagens, orquestrações

    e arranjos, sendo, volta e meia, quase descaracterizados por

    maestros e cantores pouco familiarizados com o balanço na-

    tural da síncope do samba.

    Ouçam, por exemplo, a versão de Se você jurar , de Ismael

    Silva, Nilton Bastos e Francisco Alves – provavelmente co-

    autor por conta de seu contrato com Ismael – pelo próprioFrancisco Alves e Mário Reis. Comparem com todas as outras

    subsequentes e digam se não há uma diferença visível – ou

    melhor, audível – em seu ritmo, talvez fruto do desconheci-

    mento dos cantores sobre o tempo da canção. Ou comparem o

    arranjo melodioso de Pixinguinha para os Diabos do Céu em

     Você chorou, de Brancura, com o burocrático de  Ando sofren-

    do, de mano Rubens, por Simon Bountman para a Orquestra

    Odeon, ambos também interpretados por Francisco Alves, e

    digam se não é preciso ter conhecimento de causa. Não basta

    ter inspiração, o samba se faz com vivência.

    Victor Nigro Solis é professor de sociologia no ensino

    médio, doutorando em ciências sociais pelo PPCIS-UERJ

    e músico nas horas vagas.

    A CURADORIA INDICA:

    Alô, Alô, Carnaval! , de Adhemar Gonzaga

    Berlim na batucada , de Luiz de Barros

    Rio, Zona Norte , de Nelson Pereira dos Santos

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    atrás ainda, há cinquenta anos, a primeira vez que encontrou

    com aquele menino da tela: foi ali que pensou em ser artista.

     Aquilo era pra ele! Sabe-se que duas inspirações o fizeram

    Otelo: o menino Jackie Coogan e o filé a cavalo. Motivos jus -

    tíssimos para ser tudo o que foi. Fazer rir e chorar como

    aquele menino, ser o astro, o centro das muitas atenções e,

    no fim, ainda ter um trocado pra comer um filé acavalo? Nãoexistiria coisa melhor!

    “Mineirinho da Gema”, como se proclamava, o Otelinho

    da Companhia Negra de Revistas, o entertainer  do Cassino

    da Urca, o trapalhão das chanchadas atlanticanas, o co-

    movente Espírito de Luz em Rio, Zona Norte, ou a síntese

    macunaímica de nossa gente; todos eles sempre foram um

    só. O Otelo brasileiro, herói cheio de car áter, fruto daquilo

    que mais se vê por aí.

    Quando criança, bradava entre os seus desagrupados in-

    cisivos centrais a mesma picardia de sua Julieta desguarne-

    cida de Carnaval no Fogo (1949). Vale salientar, uma picardia

    que reverenciava a inocência. Certa vez, pelos idos de 1927,

    entrevistado pelo O Jornal, o maestrinho da gozação, com

    doze anos, foi questionado do porquê da alcunha shakespea-

    riana e respondeu de prontidão: “Porque adoro Shakespeare e

    quero ser o primeiro negro a encarnar Otelo. Só não o inter-pretei ainda porque é impossível encontrar uma Desdêmona

    da minha idade e da minha cor!”.

    Um palhaço da cidade, um herói dos sorrisos. Otelo era

    artista e regurgitava em fantasia o que observava no asfal-

    to nu. Fez-se marginal, fez-se malandro, fez-se poeta, fez-se

    sambista. Ouviu, quando criança, do maestro Filippo Alessio,

    que na idade certa teria “ physique du rôle” para o papel que lhe

    deu o nome. Negro, alto, forte, boa voz. Mas não teve. De tudo,

    só continuou negro mesmo. Teve foi um metro e cinquenta

    de disposição e presença de palco pra fazer todas as outras

    coisas que quisesse, com desenvoltura para ser da maneira

    que quisesse.

    Na Companhia Negra de Revista, Otelo, ainda criança,

    deu o ar da graça em São Paulo. Um menino prodígio emespetáculos para grandes públicos. Antes de morrer, encuca-

    va sua cabeça a possibilidade de, ali pelos anos 20, durante

    uma de suas apresentações, ter sido assistido por Mario de

     Andrade. Que o e scritor ass istiu à Companhi a é certo. Mar io

    escrevia críticas para o jornal Estado de São Paulo na época.

    O cineasta OrsonWelles em framedo filme “Tudo ÉBrasil”, de RogerioSganzerla. Wellesse encantou coma figura de GrandeOtelo em sua vindaao Brasil.

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    Mas teria o modernista se impressionado com a notável in-

    terpretação do pequeno negrinho? Seria aquele menino de

    Uberabinha, que falava em inglês e francês no palco, cheio de

    graça, a inspiração para a obra definitiva lançada pelo escritor

    anos depois? Era Macunaíma de fato Otelo antes de se saber

    Otelo? Essa conjectura rondava a imaginação do velho ator,

    que jamais conseguiu atestar factualmente a possibilidade.

    Corta. O novo cenário é o Cassino da Urca, com sua cor-

    tina de espelhos, quatro palcos de grande estrutura. Todo um

    requinte que não permitia ao nosso herói, mesmo com sua

    presença no/de palco, ao menos nos primeiros anos, entrarpela porta da frente. O jovem artista tinha que entrar pelos

    fundos. A cor da sua pele era uma questão de relevância e

    preconceito para os cretinos promotores de seus espetáculos.

    Otelo levava isso a sério. Não era de se dobrar ao terrível ra-

    cismo do século em que vivia. Mas o otimismo era um de seus

    dons. O progresso vinha aí, Noel alertava em Vila Isabel. O

    nosso Tião sabia disso. Andava com esses sabedores da vida.

    Bebia no Café Nice e era figura considerada na Gafieira Elite.

    Os gigantes lábios sorviam álcool “com farinha”, dizia ele. Viu

    a Praça Onze acabar, mas não sem antes chorar por ela junto

    com Herivelto em Praça Onze, um samba que imortalizou o

    carnaval de 1942.

    Otelo viveu no olho do furacão. Viu o pandeiro ser crime

    de vadiagem e virar mundo. Viu o americano Orson Wellesvibrar com seu gênio brasileiro, e fazer com ele um filme que

    acabou por nunca ser assistido. Dormiu em Pensão de Corda

    e foi o Sancho Pança do Quixote Paulo Autran. Fla shes muitos

    de uma vida dedicada à arte e ao riso.

    Corta. Ele está na sacada, de peruca e batom. É Julieta.

    E lá embaixo está Oscarito, o seu Romeu. Um dos maiores

    trabalhos da dupla. Surpreendentemente, Otelo, dias a ntes,

    tinha sofrido a pior desgraça de sua vida. O suicídio de sua

    esposa, Lúcia Maria, que levou consigo o filho dos dois, o

    pequeno Chuvisco. O acontecimento foi um baque para o

    nosso Tião. Disse José Lins do Rego, à ocasião: “sua más-

    cara se rasgou em público”. A tragédia fez-se presente como

    nunca antes, e Otelo, apesar do escudo de representação que

    possuía, desabou ao se defrontar com a morte daquele seu

    pedaço de vida. Arraigado no chão de teatros, cenár ios e picadeiros, a tra-

    gédia arquitetou um confronto traumático com a realidade

    exterior com que ele era obrigado a lidar. A desventura era

    presente na vida de Otelo de maneira tão expressiva quanto

    a comédia que representava nos palcos e pras câmeras, mas

    ele sempre soube contorná-la. Seguiu, nessa mistura agridoce,

    com o dom de encantar que a vida lhe deu. Foi, para Bressane,

    Grande Otelo nofilme Tudo é Brasil .

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    O Rei do Baralho em 73; e o mestre de cerimônias em Cariocas,

    Músicos da Cidade, da francesa Ariel de Bigault. Tinha essa

    característica de mostrar o Brasil, seu e de todos. E de se per-

    ceber nos tipos com quem convivia. Era síntese pura. A saber,

    Otelo dizia que não era um artista dedicado, que, ao invés

    disso, fazia tudo ao natural. O que acabou, no fim das contas,

    se revelando um baita equívoco. As duas características eram

    vivas no menino de Uberabinha.

    De Pequeno a Grande Otelo, Sebastião Bernardes de

    Souza Prata, que (permitam-me uma fuga) nasceu sorrindo,

    tinha o condão da arte e o jeitinho para a sobrevivência. Erachoro com a mesma facilidade que era r iso. E não deixa de ser

    significativo que o elo perdido do sentimento nacional seja

    uma figura negra que, mesmo sem poder entrar pela porta

    da frente, venceu a discriminação que tentou lhe fazer menos

    gente; pôs fim às mazelas da vida de muitos; e atingiu em

    cheio o coração de quem o testemunhou. Muitos filés a cava-

    lo para Otelo, expoente máximo da alma brasileira!

    Gabriel Meyohas  é cineasta, formado pela PUC-RJ,

    roteirista, produtor cultural e pesquisador de cultura

    popular.

    A CURADORIA INDICA:Rio, Zona Norte , de Nelson Pereira dos Santos

    Cariocas – músicos da cidade , de Ariel de Bigault

    Natal da Portela , de Paulo Cesar Saraceni

    Berlim na Batucada , de Luiz de Barros

    Tudo é Brasil , de Rogério Sganzerla

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    a criação de uma harmonia, uma melodia, um tema, uma téc-

    nica de apresentação que possibilitasse unir a comunidade de

    forma coesa.

    Quase em paralelo à Semana de 22, nasce, então, o samba

    do Estácio, a invenção do samba urbano carioca: notas mais

    longas, andamento mais rápido, cadência marcada, inspirada

    na batucada da umbanda. A instrumentação particular, elabo-

    rada por personagens fundamentais, como Bide e João Mina

    — o primeiro, responsável pela invenção do surdo e, dizem, do

    tamborim; o segundo, aquele a quem se atribui a invenção da

    cuíca. A dança espontânea, calcada em uma mistura de umbi-gada e roda de batucada. A inclusão do canto das baianas, do

    coro. A invenção do bloco organizado, a “escola de samba”. As

    harmonias mais simples e diretas de compositores como Ismael

    Silva, Marçal, Bide, Heitor dos Prazeres, Brancura, Baiano,

    Baiaco, Amor, Getúlio Marinho, Bucy — todos eles gravados

    pelo alta tecnologia da época e veiculados pela nossa incipien-

    te “indústria cultural”. Um contexto de extrema particularida-

    de, marcado por aquilo que, nos termos criados por Wallace

    Lopez, pode ser definido por uma “geossambalidade” particu-

    lar. Movimentos de uma vanguarda como até então não se vira

    naquela região e que viria a produzir efeitos concretos sobre a

    noção de cultura brasileira, a ponto de figurar como pilar da

    “identidade nacional”.

     Em sua representação oficial, há certo consenso de que oSamba exprime o ethos da brasilidade, a síntese dos costumes

    do povo brasileiro, de que é um traço fundamental da nossa

    identidade cultural e “nacional”. Essa visão relaciona-se com

    a apropriação política realizada pelo Estado Novo, a institu-

    cionalização que conduz aos desfiles e aos sambas-exaltação,

    mas também com um certo modelo de compreensão histórica

    que tem suas raízes no cristianismo. Trata-se, portanto, de uma

    concepção de “origem”, através da qual se revelaria “a essência

    exata da coisa, sua mais pura possibilidade, sua identidade cui-

    dadosamente recolhida em si mesma, sua forma imóvel e an-

    terior a tudo o que é externo, acidental, sucessivo”, como diria

    Foucault em suas reflexões sobre a “origem”. Mas a história do

    samba guarda seus mistérios, suas especificidades: não há raiz,

    apenas invenção e reinvenção para fins de festa e renovação da

    vida.

    O samba, portanto, como produto de uma vivência especí -fica e particular, seja do compositor (Ismael Silva), seja do gru-

    po social ao qual pertence (o Estácio). Vivência, isto é, “estar

    presente em vida enquanto algo acontece”. Trata-se, assim, de

    uma experiência que não pode ser compreendida de maneira

    fixa e universal. Um indivíduo se torna o que é através de um

    trabalho de cultivo de si mesmo, um cultivo que se dá através

    de suas vivências, daquilo a que alguns filósofos gregos chama-

    vam pathos – uma noção associada às intensidades dos afetos e

    das ações, não à precisão do conceito. Assim, o que constitui a

    riqueza do samba é a pluralidade de sambistas e de seus modos

    e maneiras de compor, muito diferentes entre si. A patologia do

    samba, em resumo, corresponde à patologia do sambista, isto

    é, à conexão entre quem ele se torna pelo acúmulo singular de

    experiências particulares e suas invenções. Nesse sentido, o samba não é, como se tornou comum afir-

    mar, um ethos (“síntese dos costumes de um povo”), mas um pa-

    thos (paixão, excesso, catástrofe, passagem, sofrimento...), fruto

    de uma perspectiva única e insubstituível. Samba é menos algo

    que “ensina, cura, amplia, diverte e delira” — segundo uma

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    “estética” tomada do ponto de vista kantiano do “fruidor” — do

    que vivência, excesso, paixão: em suma, singularidade. O sam-

    ba não é metafísico porque, noves fora, ele carece do sambista

    e do contexto, como qualquer outra manifestação musical. Para

    que emirja a grandeza do samba, é necessário o compositor-ins-

    trumentista, que produzirá a transfiguração da forma-samba

    em uma pluralidade de expressões “sambísticas”.

     O Samba, portanto, não tem raiz, não é um traço originá-

    rio, mas de invenção. E o termo “invenção”, aplicado ao contex-

    to do samba, desempenha um papel fundamental: desenraiza

    o samba toda vez que tentam petrificá-lo em uma sonoridadeestabilizada. Destrói as certezas e abre caminho para o novo. O

    samba singular opera como estopim, cujo efeito é compartilha-

    do com aqueles que se comprazem com sua batida envolvente

    e melodia sofisticada. No entanto, seu eixo produtivo e expres-

    sivo não depende da aceitação popular, mas da atividade pato-

    lógica do sambista, sempre procurando criar um samba que se

    equilibre entre tradição e novidade.

     A grandeza dos sambistas consiste no fato de que, ao con-

    trário dos políticos e intelectuais da época, já anteviam a con-

    cepção segundo a qual as forças populares representam um

    potencial de cultivo e criação. Neste caso, o negro inventa o

    tempo brasileiro: a cadência do samba, as palavras flutuando

    sobre o vai e vem épico e sexual da batucada em dois por qua-

    tro, o convite ao chacoalhar do corpo, dos gestos; ao gosto pelodetalhe das vestimentas (a barra da saia, o chapéu coco), dos

    passos da dança (o “coladinho”, o “cruzado”, o “corta jaca”). Um

    convite, enfim, à exibição, ao jogo. Uma atividade moralmente

    superior, pois já celebra a tal “vida sem catracas”, sem pedágios,

    sem cobranças.

      Os compositores são não apenas responsáveis por suas

    canções, mas por esse dispositivo unificador, esse evento que

    congraça gente de todas as raças numa mesma emoção, entre o

    transe subjetivo e a consciência coletiva: a batucada, a melodia,

    o canto coletivo, os passos de dança, a roda de samba.“Essa

    Kizomba é nossa constituição”.

     Praticamente desprezados na atualidade, os compositores

    sustentam até hoje a aura de cada terreiro, até mesmo daque-

    les que foram convertidos pelos próprios sambistas em “escolas”,

    com o intuito de obter legitimidade e aceitação social. Apesar

    de tudo, Paulo da Portela, Martinho da Vila, Silas de Oliveira eCartola ainda são lembrados. Neste processo de acomodação a

    um determinado estatuto social (do malandro ao trabalhador, do

    Terreiro à Escola), a t rajetória das escolas de samba em geral, e do

    samba em part icular, sempre se mostrou ambígua, renovando-se

    sempre de maneira conciliatória — como eram nossos ancestrais

    Bantus, antropófagos culturais ainda no continente Africano,

    bem antes de pisarem na América. A partir dos desfiles temáticos

    do Império Serrano, passando pela invenção do “carnavalesco”

    (Salgueiro, 65), até chegarmos às atuais Escolas de Samba S/A,

    que não resistiram ao processo de comercialização do espetácu-

    lo. O caráter político não institucional foi se tornando objeto de

    administração, até que restou apenas o aspecto visual, colorido,

    do desfile, e a figura do carnavalesco se tornou preponderante,

    sobrepondo-se à do compositor. É o carnavalesco que zela pela excelência técnica do desfile,

    é ele quem responde pelo pathos e pelo ethos. As arestas, os es-

    critórios de samba-enredo aparam com seu know-how subutili-

    zado para fins de reprodução. Neste sentido, à parte as questões

    políticas e morais, a Beija Flor foi a escola que melhor soube se

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    encaixar nesse modelo de carnaval imposto pelo grande dinhei-

    ro e aceito pela maioria do público, que obriga as escolas a se

    adequarem ao modelo Super Escolas de Samba S/A, atravessa-

    das por todo tipo de atividade, inclusive as suspeitas.

     A percepção da obsolescência do compositor migrou para

    o carnaval de rua, protagonizado em sua maioria por indivídu-

    os que não conhecem outro modelo de carnaval que não seja

    aquele fabricado por carnavalescos, com uma abordagem tea-

    tral-espetacular e a difusão massiva das Organizações Globo.

    Mas com um detalhe curioso: estes Blocos da Zona Sul e do

    Centro, blocos corporativos voltados para a “pegação” e paraas piadinhas grotescas, incorporaram o regime extático dos

    primeiros carnavais, bem como a tese da inversão, segundo a

    qual o carnaval constituiria o período reservado para inverter

    práticas e costumes da vida cotidiana. Contudo, o fizeram des-

    cartando a figura do compositor e, em última instância, despre-

    zando qualquer tendência inventiva, demiúrgica, posta em prá-

    tica por autores geniais como Cartola, Carlos Cachaça, Silas de

    Oliveira, Mano Décio da Viola, Darcy, Cabana, Wilson Moreira,

    Luiz Carlos da Vila, Zuzuca, Geraldo Babão, Wilson Moreira,

    Luis Grande, Zé Catimba e o gigantesco Beto Sem Braço.

     Me parece que no carnaval carioca do presente, o que se

    afirma são os mesmos preconceitos de sempre — raciais, sexu-

    ais —, inclusive em relação ao papel do sambista, do composi-

    tor. Algo semelhante se pode afirmar da produção musical dosamba contemporâneo, acomodados sobre as formas e sonori-

    dades desgastadas, provenientes do samba dos anos 70, 80 e 90.

     Se a história do samba nos mostra uma conexão consisten-

    te entre a disposição para a invenção e o ímpeto de remodelação

    cultural, percebe-se que o desdobramento mais pungente desta

    história não corresponde ao samba redundante protagonizado

    por Teresa Cristina, Diogo Nogueira, Dudu Nobre e Casuarina,

    enclausurados em um conceito estático do samba. Percebe-se

    essa inclinação mais claramente na música protagonizada por

    MC Catra, MC Carol, RD da Nova Holanda, entre outros artis-

    tas ligados ao funk carioca, oriundos dos guetos negros cariocas,

    as favelas. Ainda que sobre outras bases rítmicas e culturais, os

    funkeiros, assim como os sambistas do Estácio, conservam o

    ímpeto experimental característico das comunidades negras

    que habitam o Rio desde o século XVI e o canalizam através de

    uma síntese particular de festa, invenção e tecnologia. PS.: E se, por acaso, alguém procurar no Google a autoria

    do clássico É Hoje! e se deparar com créditos ao Monobloco, cor-

    rija: É Hoje foi escrita pelos esquecidos Didi e Mestrinho.

    Bernardo Oliveira  é professor de filosofia, crítico de

    música, produtor do Quintavant e do selo QTV.

    A CURADORIA INDICA:

    Partido Alto, de Leon Hirzman

    Heitor dos Prazeres , de Antonio Carlos de Fontoura

    Tudo é Brasil , de Rogério Sganzerla

    Onde a Coruja dorme , de Simplício Neto

    Guardiões do Samba , de Eric Belhassen,Belisario Franca e Marc Belhassen

    Agoniza, mas não morre , de Gabriel Meyohase Maíra Motta

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    muitas delas, inclusive, sido içadas ao nível de verdadeiras

    obras de arte. Afinal, o disco é um ponto crucial na comuni-

    cação do artista com o público.

    Dentre muitos capistas, há o que foi o mais importan-

    te para o samba nos anos 1970. Ao conceber inúmeras ca-

    pas1, Elifas Andreato – mestre do traço – sempre buscou se

    aproximar dos artistas para os quais criou. E, oportunamente,

    fez uma bela carreira num momento em que se consolidou a

    aliança das gravadoras e dos músicos com artistas plásticos.

    Suas criações buscavam ser uma extensão do projeto do artis-

    ta. Certa vez, declarou: “eu sou o porta-voz, fazendo a síntesenuma imagem daquilo que é muito maior”.2

     As produções de Andreato desenvolvem uma estética

    própria, sempre permeada de grande lirismo popular, como

    mostram Nação, de Clara Nunes, Rosa do Povo, de Martinho

    da Vila, ou, ainda, Nervos de Aço, de Paulinho da Viola. São

    capas que muitas vezes conjugam certa narratividade com

    dados biográficos. Andreato sempre buscou uma relação com

    os artistas que iria retratar: entre chopes e partidas de sinuca,

    saíam as ideias para seus trabalhos. A boemia permeava sua

    criação e ele se tornava um colaborador, um tradutor visual

    do projeto por trás do disco.

    1 Elifas ilustrou mais de 300 capas de vinil. Realizou capas de suma importân-

    cia de grandes sambistas dos anos 1960 e 1970: Paulinho da Viola, Martinhoda Vila, Clementina de Jesus, João Nogueira, Clara Nunes, Zeca Pagodinho e

    muitos outros. Sua carreira de capista começou quando se tornou responsável

    pelo projeto gráfico da coleção em fascículo Historia da MPB, da editora abril.

     Vendidos em bancas de revistas, os encartes que acompanha vam as coletâneas

    traziam uma diagramação revolucionária para a época.

    2 Entrevista concedida ao site Panorama Mercantil: http://www.panorama-

    mercantil.com.br/as-gravadoras-foram-sempre-um-empecilho-elifas-andrea-

    to-designer-grafico-e-jornalista/ (último acesso em 29/11/2014).

    Mas é uma capa específica que será a menina dos olhos

    deste texto: Clementina e Convidados  (1979; Odeon), de

    Clementina de Jesus (1901- 1984). Uma capa que foge do óbvio

    até mesmo se levarmos em conta a trajetória de Andreato, pois

    não se trata aqui de um dos seus famosos desenhos. Uma capa

    que intriga pela ausência física da intérprete: “Clementina,

    cadê você?”, poderíamos indagar. Num momento em que a te-

    levisão estava em alta e em que o público clamava por sempre

    ligar um artista à sua imagem, o que temos aqui são marcas,

    vestígios, pegadas de pés na terra.

     As metáforas visuai s do samba se cr istali zaram, sem dú-vida, com muita força nas capas de disco. Foram terreno fértil

    para representações diversas da diáspora negra. Andreato foge

    do óbvio porque em nenhum momento nos faz deparar com

    Elifas Andreato,capa do discoClementina e

    Convidados ,1979, Odeon.

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    os símbolos com os quais se convencionou retratar o samba:

    o malandro, os Arcos da Lapa, os instrumentos percussivos, a

    mulata. Em Clementina e convidados, o que atrai é justamente

    a imagem da ausência. O artista se apropria das simbologias

    estéticas negras. As pegadas sugerem pés que lá estiveram.

    Pés que sambaram, pés que sofreram, que dançaram jongo

    nos quintais, que tiveram contato com a terra. E, na capa de

    dentro, sandálias de prata: pés que dançaram na gafieira. Ou

    desfilaram na Avenida?

    Há também, e principalmente, a terra pisada e a ances-

    tralidade, a escravidão, o contato primitivo com o solo fértil,

    que deu samba. A capa expõe essa terra, referência passada,

    presente e futura, remetendo à ancestralidade e ao contempo-râneo. Pensamos em experiências e memórias de escravidão,

    colonialismo, exílio, exclusão racial, práticas religiosas e lega-

    dos africanistas que contribuem não só para a elaboração de

    um imaginário, mas para a construção de uma identidade, de

    um Brasil negro.

     A título de curiosidade, Clementina gostou tanto da capa

    que posteriormente pediu que Elias fosse até ela para gravar

    seus pés no barro, pois queria que também fosse feito um mol-

    de de seus próprios pés. Sobre sua concepção, o capista diria:

    “A idéia do pé na terra é porque ela, uma cantora extraordi-

    nária, representa a contribuição mais significativa nas raízes

    da música brasileira, que é o samba. O samba que nasce no

    terreiro, nas senzalas3”. Ainda que pareça uma criação simples,

    a beleza aqui mora nos detalhes, no contraste entre a capa e o

    encarte: plantas brotando no solo, o afundamento e a intensi-

    dade do relevo no chão sugerem passagem de tempo. A riqueza visual conjuga-se com maestria com seu conte-

    údo sonoro. Esse legado, Clementina trazia em si: uma África

    – diaspórica – é evocada na voz e nos cantos, que lhe foram

    transmitidos por sua mãe, filha de escravos. Sua voz carrega-

    va o sofrimento da ancestralidade. Cristalizou um elo com os

    3 Entrevist a à Veja SP.

    Clementina porElifas Andreato.

    Encarte do discoClementina e

    Convidados ,1979, Odeon..

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    antepassados. Encarnou uma ponte entre a Mãe África e a cul-

    tura moderna brasileira. Verdadeira enciclopédia de caxam-

    bus, lundus, jongos e outros cantos negros, aprendeu os cantos

    das senzalas ainda muito pequena. Sua forma de transmitir

    esse conhecimento se assemelha à dos  griots na África.

    Como se sabe, Tina, como também era conhecida, foi des-

    coberta tardiamente – com mais de 60 anos – por Hermínio

    Bello de Carvalho, numa festa em homenagem à Nossa

    Senhora da Penha, na Taberna da Glória, no Rio de Janeiro.

    Encantou-se por seu timbre rouco único. Tinha uma voz for-

    te, rascante e penetrante, trazia uma mistura de pontos deumbanda e candomblé, cantos de trabalho, jongos cantados

    em banto e músicas de coro de igreja católica. Surgiu para o

    mundo num momento inusitado, quando o que dominava as

    rádios era a bossa-nova, o iêiêiê. Foi trilhando seu caminho de

    artista com participações em trabalhos coletivos, como o Rosa

    de Ouro e Canto dos escravos, mas também em discos solos.

    Em 1979, seguindo as pegadas de Quelé, fez-se este

    disco de peso que reuniu um time de gigantes como Dona

    Ivone Lara, Cristina Buarque, Roberto Ribeiro, Clara Nunes,

    Martinho da Vila e João Bosco. O time de músicos também

    não ficou atrás, com Dino e César Faria nos violões, Jorginho

    do Pandeiro, Luna e Eliseu na percussão. O que fica é um

    disco que deu samba! “É a alegre coragem de viver do povo

    que precisamos imitar, e são as pegadas de seus melhores ar-tistas que devemos seguir4”, escreveria José Ramos Tinhorão

    em 1979, referindo- se ao disco em questão.

    4 Jornal do Brasil, Caderno B, Rio de Janeiro, sábado, 29/9/1979, pági-

    na 2 Extraído do livro “Tinhorão – O Legendário” de Elizabeth Lorenzotti,

    Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010

    A CURADORIA INDICA:Clementina de Jesus – Rainha Quelé, de Werinton Kermes

    Heitor dos Prazeres , de Antonio Carlos de Fontoura

    Em som e em imagem, o disco presta homenagem à sua

    origem, ao terreiro, à mandinga, ao negro, à mulata, ao sam-

    ba, ao gozo, ao sofrimento, ao pé no chão. Hoje, basta ouvir

    as músicas deixadas por Clementina para sentir reverberar a

    dimensão de seu legado. Basta assistir a suas apresentações

    para sentir a inegável pungência do canto forte da mulher.

    Basta isso – e não é pouco, não – para se deixar encantar pela

    extasiante e fascinante Clementina.

    Aïcha Barat é produtora, mestre em História da Arte

    pela Paris I e doutoranda em Literatura, Cultura eContemporaneidade na PUC-Rio.

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    roda de samba nacional não pensaram fazer: Noel é um pen-

    sador e, nesse sentido, só pode ser comparado a Jimi Hendrix”.

    Essa ligação Noel Rosa/Jimi Hendrix pode parecer pouco

    ortodoxa aos estudiosos da música popular brasileira, mas não

    assusta a quem teve a sorte de assistir ao  Abismu  em sessão

    especial. Nesse filme, Sganzerla utiliza músicas do genial gui-

    tarrista do inicio ao fim. E não faltam pontos de contato entre

    ambos, que morreram tragicamente na flor da idade. Mas pros-

    segue Sganzerla:

    “Som natural e pré-historicamente milionário: samba/em-

    bolada. Identificação com o subconsciente coletivo através deuma nova prosa urbana, livre e bem acabada, onde, como em

    Hendrix, não se perde tempo em odes à namorada ou suspiros

    pretensamente românticos. Não. Noel como Hendrix pretende

    mudar a mente contemporânea (I could change your mind; I

    don’t live today, maybe tomorrow/ ‘até manhã se Deus quiser;

    quem gosta de mim sou eu’).”

     Visionário, Hendrix realmente “não viveu em sua época,

    talvez amanhã”. Seu som está muito anos na frente de tudo que

    se faz hoje em música pop. E Noel Rosa é um caso raro de poeta,

    músico e pensador dos anos 30 que continua atual. Tão atual –

    ou à frente – que só agora começa a ser redescoberto. E, como

    se vê, através do cinema, arte que às vezes aspira a ser musi -

    ca (velho e sempre novo ideal: toda a arte aspira a ser música).

    Sganzerla sabe disso há muito tempo.“Feitiço sem farofa, sem vela, sem vintém. Noel, o gênio

    – et pour cause  – incompreendido. Vitimado por mal-entendi-

    do histórico. Noel, o maior criador rimbaudiano, o surealista

    mascarado, o provocador de versos, o homem do silêncio e do

    ruído brutal, mestre alquímico do repouso e do movimento,

    da presença e da ausência. Basta estar atento às musicas como

    Malandro Medroso  e Maria Fumaça, absolutamente cerebrais e

    aparentemente “inconsequentes”. Afora a capacidade do impro-

    viso e da gesta épica, cartilha do poder que eu me proponho

    a decifrar para a grande massa ignara de intelectuais medío-

    cres: poucos ou quase ninguém entendeu ao nível da criação da

    obra a importância interna de Noel ou Hendrix, aliás, criado-

    res comparáveis não somente pela extensão de sua vida curta,

    gênios ceifados em plena flor da idade, mas pela quantidade

    e versatilidade de sua obra extensa, da capacidade de tentar e

    não conseguir repetir-se (ou autoparodiar-se) no verso polidoao máximo abissal e sempre ameaçador à mente convencional”.

    Para interpretar o papel de Noel Rosa nesse filme, que já

    consumiu três anos de pesquisas, Rogério Sganzerla escolheu

     Joel Barcelos, cuja semelhança f ísica (Noel /Joel) com o poeta é

    flagrante. Mas as semelhanças não param aí: Sganzerla também

    tem alguns traços noelinos. O cineasta, que já foi jornalista, não

    concede entrevista: ele mesmo senta numa mesa da redação

    e produz seus textos deflagradores. Termina de dialogar uma

    parte da entrevista (melhor será falar em “inter-vista”) e entrega

    ao “repórter” o manifesto que se segue:

    “Chegou, senhoras e senhores, a hora de abrir o jogo e ins-

    talar imediatamente os pingos nos is do panteão da mente li-

    vre, isto é, sem medo do novo homem e da nova humanidade.

    Chegou a hora de abrir o jogo após um decênio de fidelidadee pesquisa em todo sentido encampando as verdades históri-

    cas de obras verticais que se elevam por altíssimos páramos até

    horizontes insuspeitados ou inalcançados pelos outros conti-

    dos viventes. Noel ou Hendrix ou a grande obra de arte – do

    deslimite da criação total – gênios, jinas sim, propõem tudo o

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    que um imbecil de classe jamais poderá entender. Mas eu, por

    exemplo, entendo a burrice e até faço questão que continuem

    assim para mais facilmente caírem do cavalo”.

    “Noel, gênio total, morreu a quatro de maio de 1937, isto

    é, 9 anos antes de eu nascer, pôs em questão toda a necessária

     jogada da obra de arte barroca e moderna milenar e milionár io

    deslimite da criação... Ponho os pingos nos is da historia e,

    a partir de agora, ninguém poderá ignorar a máxima impor-

    tância desse soberano do verso e do reverso, artista e homem

    maior sim, porque a essa altura no equivoco luso-carioca de

    dividir o universo da criação da personalidade do artista ne-cessariamente contigente e complementador. Chegou a hora de

    gritar alto e em bom som que o maior, feliz ou infelizmente,

    nessa terra, se chama Noel Rosa e que ninguém – ele é grande

    entre os grandes (na década de prodigiosa de 30, entre cartola,

    Larmatine, Ary e não sei mas quem) – sequer chegou a seus

    pés...”

    “Noel, o gênio, Noel, o pensador. O criador – da condição

    oriental de artista, mesmo e principalmente se nascido nas con-

    dições adversas do capitalismo ocidental – ar tista ma ior, invejado,

    explorado, agredido mas exatamente por isso maior ainda”.

    “Não me desculpem se pareço apologético, mas para falar de

    Noel é assim mesmo, só com o seus companheiros e amigos sin-

    ceros intuíram e o povo de Vila Isabel até hoje intui e se refere

    a ele: um cara muito inteligente, um gênio – ou como se referiu Álvaro Moreira, é muito grande es se pequeno Noel.

    “E é isso que eu pretendo erigir: uma concepção nada me-

    díocre do artista mais original e profundo de todo século, que

    em sã consciência só pode ser comparando – pasmem – com

     James Marshall Hendri x em tudo, Orson Welles no cinema ou

    Shakespeare no texto e na habilidade (isto é, montagem, ideo-

    grafia do relacional do personagens...), os grandes e tradicio-

    nais exemplos exemplares provindos da mesma linguagem que

    produziu os gregos da fase áurea, Homero, Shakespeare, Dante,

    Cervantes, Camões, Castro Alves, todos eles, indistintamente

    gênios totais”.

    Sganzerla já se desculpou pela apologia, mas nem era

    preciso: quem o conhece sabe que ele é assim mesmo – quando

    está filmando mergulha de corpo e alma no assunto, como se

    tentando reinventar o mundo através de um filme. A pretensão é

    grande, mas o assunto também o é: uma vez terminado o filme,a visão que se tem da música popular brasileira certamente fi -

    cará abalada. Isso porque Rogério é um cineasta de terremotos

    – terremotos culturais que um momento como a Bossa Nova, por

    exemplo, não teve sismógrafos para detectar. E, no entanto, tudo

    são coisas nossas, são nossas coisas – já dizia o gênio.

    Jairo Ferreira  (1945-2003) foi um diretor e crítico de

    cinema brasileiro. A primeira publicação do texto acima

    tem data indeterminada. Em 1993 foi reeditado pela

    editora Azougue.

    A CURADORIA INDICA:

    Isto é Noel Rosa , de Rogerio SganzerlaTudo é Brasil, de Rogerio Sganzerla

    Noel por Noel , de Rogerio Sganzerla

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    para, depois de adulto, ouvir MPB. E aí, então, conhecer os

    grandes sambistas, que antes dele haviam tematizado o coti-

    diano da favela, da violência urbana etc. Como Wilson Batista,

    por exemplo, que cantara antes, em alto e bom som, que “em

    Mangueira não existe delator”.

    E qual o interesse maior, a princípio? Nas letras, na narra-

    tiva humorada, cáustica e contundente da realidade brasilei-

    ra. Fruto de uma visão genuinamente popular, “de baixo pra

    cima”, do que era nossa sociedade. Isso sintonizava com a in-

    formação nova trazida pelo rap, de que tanto gostávamos, por

    exemplo. Chuck D, líder do Public Enemy, havia dito que, nosEUA, o rap era a “CNN negra”. Pra nós, Bezerra era o “Jornal

    Nacional” da favela. Em meio ao auge do Pagode Romântico

    nas rádios regadas a jabá, Bezerra simbolizava tanto a resis-

    tência do Partido Alto de Raiz, quanto a tradição artística do

    realismo estético – linhagem que, mais tarde, seria meu tema

    de doutorado em cinema na UFF. Tema que estava na boca

    dele, o tempo todo, quando se gabava de não dar bola para

    a musa romântica, de não querer nunca vender disco com

    canção de amor, pois “eu não posso cantar o amor quando eu

    nunca tive, eu sou realista, eu canto a realidade”.

    Em 1998, Márcia, cursando Cinema no IACS UFF e eu,

    cursando Ciências Sociais no IFCS-UFRJ, obtivemos reper-

    cussão no meio com nosso primeiro trabalho juntos. Ela di-

    rigindo, e eu ajudando no roteiro e na montagem de “Dib”,sobre o câmera mor do Cinema Novo, Dib Lutfi – que, de-

    pois, nos deu a honra de colaborar no Coruja. Com os prêmios,

    piramos. Tínhamos que fazer outro! Pois é. Mas nosso novo

    filme seria sobre o quê? Márcia veio com essa: que tal nos-

    so ídolo brasileiro da adolescência? E eu completei: mas qual

    o recorte mais interessante, para além de um documentário

    biográfico, um portrait de um popstar marginal, self-made man

    imigrante nordestino? 

    Bezerra chegou de Recife ao Rio cantando coco de embo-

    lada, na sombra de Jackson do Pandeiro, e depois se recons-

    truiu mil vezes até chegar ao Bezerra que vemos no filme. A

    trajetória heróica, pessoal, anterior, do Bezerra daria um ou-

    tro filme, quem sabe de ficção, um épico. Nem cabe comentá

    -la aqui, portanto. Propus um outro foco, e Marcinha gosta de

    brincar, dizendo que foi aí que eu passei a merecer a direção

    também. O  plot virou o seguinte: ele apenas encarnava uma   persona, a do malandro de boné, cheio de bordões certeiros

    como “malandro é malandro e mané é mané”. Só que, por trás

    disso, havia um projeto cultural amplo, um projeto de garim-

    po intenso, de escalação de uma seleção brilhante de com-

    positores, baseado numa meritocracia, feita à moda própria.

     Assim, ele buscava encar nar a verdadeira criação popular, ser,

    enfim, a voz do morro.

    Poucos sabiam, até então, um dos principais segredos do

    sucesso de Bezerra: sua incrível equipe de compositores. Gente

    como Popular P, Adelzonilton, Walmir da Purificação, Roxinho,

    1000tinho, gente cuja inventividade já brilha em seus próprios

    nomes, que fazia os fãs rirem só ao ler os créditos de contra-

    capa dos discos. Caso mor de Embratel do Pandeiro e Alicate

    de Niterói. Todos eletricistas, trocadores de ônibus, mecânicos,presidiários, policiais, bombeiros, etc., que conviviam com

    uma realidade violenta e trágica, e, por isso mesmo, dionisíaca.

    Realidade da malandragem, da bandidagem, que os inspiravam

    a compor sambas que eram os mais fiéis retratos desse cotidia-

    no. Para nós, as letras e a habilidade poética dos compositores

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    do Bezerra tinham que ser as “estrelas” do filme. Para alcançar

    isso, pensamos a estrutura em cima dos temas em jogo. O fil-

    me seria um tratado audiovisual cuidadoso sobre essa criação,

    leitura inexistente na crítica musical da época, que se limitou

    a taxar Bezerra de “sambandido” e a ecoar as acusações de que

    ele fazia apologia ao crime, a mesma imputada ao  gangsta rap

    californiano. Buscamos os pontos de vista dos envolvidos no

    processo – qual era a motivação por trás dessa retórica poética?

    – e os montamos na batida do samba, na prosódia do malan-

    dro, do jeito que ele a “pronuncia, com voz macia”. Buscamos

    isso tanto no depoimento de cada compositor, como no depoi-mento do médium que os incorpora, que é o Bezerra. Ele é o

     frontman, ele articula esse discurso, junta as peças. Queríamos

    fazer, nesse garimpo, um trabalho aná logo ao próprio trabalho

    do Bezerra. Mostrar a motivação do Bezerra ao escolher cada

    compositor, cada letra, cada assunto.

    Essa foi a escolha de lógica narrativa: seguir as histórias

    que estão nas letras, que narram tensos arcos dramáticos de

    personagens redondos, expressando considerações morais,

    como os fabulistas da antiguidade ou os griots africanos.

     Acompanhar os comentários a respeito feitos pelos compo-

    sitores, articulados pelo  frontman-narrador-xamã-articulador

    cultural Bezerra da Silva. E dois eixos surgiram. Um deles,

    o da Língua de Congo, como eles chamam. Trata-se do jeito

    próprio de contar e de falar, com gíria, bom humor, na levada

    do Partido Alto. É a dimensão estética, poética de sua obra. O

    outro é o da Lei de Murici, a discussão moral das formas com-

    portamentais da favela. O que define ser malandro, ser otário,

    ser colarinho branco, ser trabalhador, ser mané é a dimensão

    ética, política.E nossa felicidade é, revendo cada vez o filme, frente

    a cada novo público, perceber que, assim como a obra de

    Bezerra e de seus compositores, ele só rejuvenesce, se impõe,

    e nos esclarece.

    Simplício Neto  é documentarista e pesquisador de

    Cinema, com Doutorado pela UFF. É professor de Roteiro

    da Escola de Cinema Darcy Ribeiro e roteirista de

    programas de grade da TV Brasil.

    A CURADORIA INDICA:

    Onde a Coruja Dorme , de Simplício NetoMalandro, termo civilizador , de Sylvio Lanna

    Moreira da Silva , de Ivan Cardoso

    Madame Satã , de Karim Aïnouz

    O malandroMadame Satã,interpretado porLázaro Ramos, nofilme homônimode Karim Aïnouz,presente naprogramação damostra

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    Rodrigo Campos participou por muito tempo das rodas de

    samba de seu bairro, São Mateus, e depois tocou também no

    Ó do Borogodó e outros bares voltados ao samba, na região

    mais central da cidade. Exímio no cavaquinho, no violão e na

    percussão, seu repertório vai dos clássicos antigos aos sambas

    e pagodes mais recentes. Em seu disco de estreia, “São Mateus

    não é um lugar assim tão longe”, apresenta um repertório auto-

    ral, primordialmente de sambas, e já mostra uma forma muito

    refinada de composição, com personagens emblemáticos.

    Marcelo Cabral foi instrumentista por vários anos em bares

    de samba da capital paulista: Ó do Borogodó, Traço de União,Bar Samba. Além do baixo, Cabral também toca violão de 7

    cordas, e essa desenvoltura do baixista no universo do samba

    foi importantíssima no momento de constituição da sonorida-

    de do grupo.

    Mas se o samba pode ser considerado o alicerce do Passo

    Torto, acima de tudo está o gosto pela invenção e a desconstru-

    ção. Talvez por isso, o “torto”, talvez por isso, o passo: adiante.

    É necessário, portanto, esmiuçar a terceira (e não menos impor-

    tante) potência do grupo: os arranjos. O que se apresenta de

    início são os riffs marcantes e a soma de vozes e instrumentos,

    que revela sempre uma sonoridade singular. Mas não bastasse

    tudo isso, o arranjo é também personagem, cenário, plano, mo-

    vimento de câmera dessas canções-filme. E é por meio de um

     jogo constante de construção e desconstrução que isso se faz. Oarranjo pode mudar o clima da narrativa, desfazer o riff  que se

    firmou, levantando do zero uma outra engrenagem, estabelecer

    diálogos entre um verso e uma resposta da guitarra, entre uma

    abertura de voz e um efeito de pedal. E, para além do efeito

    de camadas que vão se estruturando com a trama de ostinatos

    a Augusta montado atrás do busão”, “diz Samuel, que que cê

    pensou? nem é longe de casa aqui”). As letras refletem o tem-

    po presente, as vicissitudes do humano, e falam, sem visões

    idílicas, da cidade. A dificuldade, a perplexidade diante das

    barreiras que delimitam e destroem os espaços urbanos tor-

    nam-se matéria poética, antecipam-se à própria realidade e es-

    tabelecem um diálogo profundo com ela, transformando nossa

    maneira de enxergá-la.

    Do segundo ponto, o cancional, pode-se dizer que o samba

    é um grande elo entre esses três compositores (e isso se reforça

    com a chegada de Marcelo Cabral ao grupo). Romulo Fróes, queé apaixonado pelo samba-canção na sua forma mais melancó-

    lica, havia gravado à época três discos, entre os quais, Calado,

    cujos sambas, tristes, falam das coisas de amor e desilusão e

    parecem feitos sob medida para Nelson Cavaquinho interpretar,

    com sua voz rouca e seu v iolão pinçado.

    Kiko Dinucci também mergulhou fundo no universo do

    samba. Mas seu interesse maior se volta para o samba duro

    paulista. Durante cinco anos, comandou as quartas-feiras do

    bar Ó do Borogodó, uma casa reconhecida pelo repertório de-

    dicado ao samba e ao choro em São Paulo. Kiko, além de seus

    próprios sambas e das parcerias com Douglas Germano, trazia

    músicas de Geraldo Filme, Raul Torres e Adoniran Barbosa, evi-

    denciando um sotaque mais caipira e uma levada bem diferen-

    te daquela corrente nas rodas de samba. Também definia essalevada diferente o fato de ele ter lançado dois discos até então:

    Padê  (em parceria com esta que aqui escreve) e Pastiche Nagô,

    com o grupo Afromacarrônico; ambos incluem no repertório,

    além dos sambas, composições inspiradas em outros ritmos de

    herança africana.

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    época, possibilitava a seus integrantes uma perspectiva muito

    arguta das relações humanas, do seu entorno. E aqui, nesses

    anos caóticos do vigésimo primeiro século, os compositores do

    Passo Torto também encontraram um posto estratégico para

    observar, debater, reconfigurar e transformar em arte o que

    captam do Brasil e do mundo. A cidade de São Paulo é o boteco

    bem localizado no meio do caos, de onde falam e produzem(“a cidade é o centro do cerco”, verso de Helena). A dúvida, o

    desconforto, o vazio, que por vezes se instauram, são ingredien-

    tes inerentes às construções, porque, de certa forma, também

    revelam o tempo em que vivem, a cidade em que vivem (“um

    rádio por dentro”, verso de Helena), o estar no mundo, no fim do

    e contrapontos, também os temas, os versos, se tornam mais

    irônicos ou violentos ou líricos, por esse jogo recorrente de per-

    gunta e resposta, oposição e encaixe.

    Entretanto, é no modo como produzem seus trabalhos que

    os artistas do Posso Torto revelam-se sambistas à vera, fazendo

    valer a máxima de Nelson Cavaquinho, que diz a certa altura do

    filme de Leon Hirszman sobre ele: “gosto mesmo é de palestrar

    com os amigos, de brincar...tristeza, só nas músicas”. Valho-me

    ainda de outro exemplo dessa maneira de criar semelhante à

    dos sambistas da antiga: em seu livro “Desde que o samba é

    samba”, Paulo Lins refaz o cenário efervescente em que se esta-beleceu o samba carioca no início do século passado. Trata-se

    de um romance de ficção baseado, no entanto, em pesquisa

    extensa a respeito do cotidiano daqueles viventes. Uma das

    coisas mais marcantes da narrativa é a roda de samba perene,

    presente em todos os principais momentos da trama, servindo

    de ponto de encontro das personagens, lugar onde estouram e

    se resolvem as pendengas, ponto de reflexão, de inspiração, e,

    principalmente, de diversão. É ali que Brancura, a personagem

    principal, malandro característico, tem ideias e cria parcerias

    para seus sambas. Muitas vezes, o mote vem da briga com a

    mulher ou do desencanto com a prostituta preferida, mas é na

    roda de amigos, ali, sempre reunida num boteco, que a síntese

    se faz em samba.

    Os tempos e o contexto são bem outros, claro, mas percebocerta equivalência entre aquele vigor e efervescência das rodas

    dos sambistas lendários e a forma como vejo serem constituídas

    as parcerias e criações do Passo Torto. A posição estratégica

    da roda de samba, instalada dia e noite no boteco central, com

    visão para tudo o que acontecia na Zona do Estácio daquela

    O compositorpaulista Paulo

    Vanzolini no filmePaulo Vanzolini,

    um Homem de

    Moral , de RicardoDias, presente naprogramação da

    mostra

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    mundo (“vai, José! vai saber como é que é cair, a cidade inteira

    até sumir, a cidade inteira cai”, verso de  A cidade cai). E o traba-

    lho flui sem a necessidade do gesto programático, da partitura,

    da forma fechada.

    Há muitos exemplos dessa movimentação fluida e inquieta,

    e o resultado potente que tiram dessa troca de ideias: uma letra

    que chega com dezenas de versos, e é burilada até restar apenas

    um. E é assim, com apenas um verso, que irá se consolidar,

    como em Adeus, de Romulo e Rodrigo: “Eu vim determinado a

    lhe dizer adeus”. Ou um verso que espera até o último instante

    para se definir, como em Rá rárá, de Kiko e Rodrigo: “Desculpea dignidade de lhe dizer atrocidades”. Ou uma capa de disco (o

    primeiro – Passo Torto), sair sem retratar um dos componentes

    do grupo, e este mesmo integrante – no caso, Marcelo Cabral –

    ser o único retratado na capa do segundo disco. Uma brincadei-

    ra, sem dúvida. Mas o que prevalece mesmo são a xilogravuras

    de Kiko Dinucci, que transformam em traço a poesia contida

    em cada disco. Uma brincadeira levada a sério acaba por virar,

    ela também, matéria poética.

    Sem fórmulas prontas em nenhuma etapa da produção dos

    discos, sem apego a uma sonoridade (o que se revela na diferen-

    ça entre o primeiro e o segundo disco), chegaram a pensar que

    não haveria mais como continuar depois do Passo Elétrico. Até

    porque os projetos são muitos, as demandas são muitas. Nesse

    meio tempo (entre 2010 e 2014), vários outros d iscos foram lan-çados, individuais ou projetos paralelos. Mas, aí, surge o con-

    vite para a residência com Ná Ozzetti, que trouxe seus saberes,

    sua voz e cores novas para o som do Passo Torto (a residência

    aconteceu no SESC Santo Amaro, em São Paulo e consistia em

    apresentar ao público o processo de criação das canções, com

    os artistas elaborando o arranjo ali, ao vivo, diante da plateia).

    O nome do disco que surge desse encontro é Thiago França, que,

    ao contrário do que se pensa, não pertence ao Passo Torto; o

    que, de certa forma, confirma um dos motores do grupo: o gos-

    to pelo jogo, pela brincadeira, que embaralha as ideias: as que

    os outros têm deles, as que eles mesmos têm de si. Thiago França 

    é, por essas e outras, o nome exato para um disco que escancara

    o diálogo, o destemor e o amor pelo ato de inventar. Além de

    ser outra brincadeira: uma brincadeira afetiva, poética. E, ao

    mesmo tempo, uma maneira de reinventar a atitude libertária

    dos sambistas que os inspiraram.

    Juçara Marçal  é cantora. Também é formada em

    jornalismo, mestre em literatura brasileira pela USP e

    escreve nas horas vagas.

    A CURADORIA INDICA:

    Paulo Vanzolini, um homem de moral , de Ricardo Dias

    O mistério do samba , de Lula Buarque e Carolina Jabor

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    Samba-crônica

    Gráfico profissional, Oscar da Penha torna-se oficialmente sam-

    bista em 1944, no Campeonato de Samba da Rádio Sociedade

    da Bahia. Nas suas apresentações, o jovem alternava músicas

    do paulista Vassourinha com as próprias composições, mesmo

    sem coragem de dizer que eram suas.

    Em dois tempos, o público passa a chamá-lo também de

     Vassourinha. Até que, certo dia, o locutor anuncia: “Com vocês,

    Oscar da Penha, o sambista Batatinha!”. Depois de cantar um

    dos seus sambas, Oscar quis saber de onde saiu tal alcunha.

    “Ah, o pessoal só te chama de Vassourinha! Vassourinha está lá

    em São Paulo. Aqui é Batatinha”, teria dito o apresentador aopróprio Batata, que, devidamente rebatizado, fez muxoxo para

    o novo nome fantasia.

    Fez muxoxo porque teve que aturar a galhofa: diziam que

    Batata era apelido para gordo, adjetivo que, definitivamente,

    não lhe cabia. Devido à fina silhueta, ouviu que deveria cha-

    mar-se Bacalhau. Houve ainda quem sugerisse Aipim, mas nada

    disso pegou. A contragosto do dono, o tempo fez questão de

    fixar Batatinha.

    Nascido e criado no Pelourinho, entregador de marmita e

    aprendiz de marceneiro aos 10 anos e office-boy do Diário de

    Notícias aos 14, Oscar cresceu vendo Salvador crescer. Andou

    livre pelas ruas do Centro, pongou no bonde, zanzou entre

    carroças na Cidade Baixa, mergulhou no lusco-fusco da baía,

    subiu as ladeiras estreitas da velha capital e pegou amor pelo

    Galícia Esporte Clube. Estudou música com o maestro Alfredo

    Serra, admirou a Capoeira Angola de Pastinha, dançou nas fes-

    tas de largo e, na barra do dia, descansou aos pés da estátua de

    Castro Alves. Na boca da noite de uma cidade outrora pacata,

    vagou livre por ruas cheias de histórias.

     Assim, capturando a alma das pessoas em volta, lapidou

    versos simples para compor sambas como quem escreve crôni-

    cas. O olhar sobre o cotidiano é latente na sua obra, até mesmo

    em canções jamais gravadas em disco. Um exemplo é Feijoada

    do Samba, que ele apresentava como a segunda receita culiná-

    ria da história da MPB, perdendo somente para a do vatapá,

    cujos macetes de preparo foram devidamente universalizados

    por Dorival Caymmi. “A feijoada baiana é gostosa pra chuchu,

    melhor do que o vatapá e o saboroso caruru / Feita por um ca-

    brocha que tem lá na roça, conhecida por Sinhá / Melhor do que

    ela nunca vi ninguém que uma feijoada saiba preparar / Carne

    de sertão, feijão mulatinho, carne de sal preso e o saboroso toi-

    cinho / Meio quilo de chupa-molho e linguiça um pedacinho /

    tudo isso temperado, vai pro fogo cozinhar / Vem provar a ape-

    titosa feijoada de Sinhá/ Não tem preguiça no corpo, vai ficar

    forte e disposto para trabalhar”, versou Batatinha na década de

    1940, muito antes, por exemplo, de Chico Buarque encomendar

    a Feijoada Completa.

    Sofrer também é merecimento?

    Com humor, olhar crítico e sutileza, Batatinha delineava a vida

    e tocava quem lhe ouvia. Na MPB, tocou artistas do quilate de

    Bethânia, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque. O

    primeiro a gravá-lo comercialmente foi Jamelão, que em 1960

    entoa a satírica  Jajá da Gamboa, sobre um rapaz interesseiro

    que se envolve com uma “cabrocha boa, apesar de ser coroa”.Dois anos mais tarde, Firmino, personagem do ator Antonio

    Pitanga em Barravento, primeiro longa-metragem do cineasta

    Glauber Rocha, cantarola um trecho de Diplomacia, parceria de

    Batatinha com J. Luna: “Meu desespero ninguém vê. Sou diplo-

    mado em matéria de sofrer”.

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    Para rir e chorar

    O Inventor do Trabalho, seu primeiro samba, nasceu quando ti-

    nha 15 anos. Ainda adolescente, exibe ironia e tino crítico para

    contestar a relação entre patrões que pouco pagam e operários

    que, reféns da necessidade, apenas cumprem tarefas. A crítica

    social permeia sua obra, assim como sambas e marchas cele-

    brando a boemia e a alegria do bom malandro. Finos exemplos

    são De Revólver, Não!, sobre uma pescaria que, para dar resulta-

    do, termina na bala, e Bebê Diferente, aquele que em vez de leite

    queria aguardente.

    Pioneiro na introdução de elementos rítmicos da capoeirano cancioneiro popular brasileiro, Batatinha teve a música Bossa

    Capoeira gravada em 1968 pelo grupo Inema Trio. Na canção, o

    berimbau que ouviu com Pastinha dá o tom e abre a roda para

    mais uma obra ao lado de J. Luna: “A moçada vai gostar / Quando

    eu der do meu samba uma prova / E ouvir o berimbau no balanço

    da bossa-nova”.

    Batatinha não compunha ao violão, mas, tamborilando na

    caixa de fósforos - que levava sempre, para acender a cigarrilha

    -, encontrou um caminho harmônico próprio. Mais a mais, foi

    premiado com um dom que a poucos contempla: o de expressar

    com elegância e precisão aquilo que não se pode ver ou tocar.

    Navegando entre temas, não demorava a esbarrar na própria

    intimidade. Ali, rendia-se ao lirismo, alcançava as mais ocultas

    incertezas e, nos sambas, libertava as angústias.Quem bem conheceu o sambista recorda-o como um ho-

    mem sereno, de voz quase sempre baixa. Em que pesem as pró-

    prias aflições, Batatinha se mostrava como um conciliador, um

    mediador de conflitos que à boca miúda foi virando o Diplomata

    do Samba, muito também em virtude da canção Diplomacia.

    O prestígio entre artist as, no entanto, não foi suficiente para

    que Oscar da Penha conseguisse viver da música. Trabalhando

    como gráfico, passou a vida ao pé da l inotipo, exibindo habilida-

    de artesanal semelhante a que ostentava com a caixa de fósforos.

    Com dedos ágeis, dava forma às palavras antes que as páginas

    fossem à rotativa. No samba, Batatinha imprimia episódios da

    vida. Na labuta com as notícias, Oscar da Penha fazia o mesmo.

     Aposentou-se no serv iço gráfico e foi dali que sempre tirou

    o sustento dos nove filhos, todos nascidos da união de 37 anos

    com Marta dos Santos Penha. Os ganhos modestos e a pouca

    fama fora da Bahia nunca o paralisaram, mas lhe conferiam algu-

    ma frustração – e, por que não dizer, muita inspiração também.

    Em 1971, numa conversa com o jornalista Ademir Ferreira, re -

    velou que a canção Diplomacia nasceu num período em que es-tava “atormentado, sem dinheiro”. “Aí eu gritei, falei alto. Cantar

    é o melhor jeito de dar vazão aos sentimentos”, definiu. Mas, na

    mesma entrevista, Batatinha expõe sua maneira de equilibrar a

    dor e o contentamento. “Mesmo cantando triste, me sinto alegre.

    Mesmo com tanta agonia, ainda posso cantar”.

    Descendentes domúsico Oscar daPenha, conhecidocomo Batatinha,relembram ossambas docompositor em“Batatinha, o po-eta do samba”, de

    Marcelo Rabelo.

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    Foi, na verdade, um elo entre gerações do samba. Na sua

    faixa etária, figuram Tião Motorista, Panela e Riachão. Entre os

    mais novos, pintam Ederaldo Gentil, Walmir Lima, Edil Pacheco

    e Nelson Rufino. O que alguns poderiam ver como uma disputa

    por espaço, Batatinha via como uma chance de fusão. Mesmo

    mais velho, incentivou e virou amigo dos sambistas que então

    surgiam. Para muitos, deu parceria em canções, com um quê de

    catapulta artística. Assim, foi um dos pilares de um grupo que

    era alma e resistência do samba da Bahia.

     Juntos, estes ar tistas fizeram nascer a Noite do Samba, sem-

    pre a 2 de dezembro, que atualmente é o Dia Nacional do Sambagraças à Câmara Municipal de Salvador, que, em 1940, rendeu

    homenagem a Ary Barroso, quando ele fez sua primeira visita à

    Bahia. Ary, veja só, havia composto Na Baixa dos Sapateiros antes

    mesmo de pisar no mágico solo do terreiro de Oscar da Penha.

    Memória

    No palco, na boemia, nas entrevistas ou dentro de casa,

    Batatinha referia-se a si mesmo como “Batatinha”, assim, na ter-

    ceira pessoa. Era como se mantivesse até o fim da vida alguma

    birra com o apelido e quisesse se enxergar fora do corpo de

    artista. Desta forma, conseguia até olhar em perspectiva para

    o próprio processo criativo, como quando discorreu sobre a

    amargura que derramava nas canções: “O sofrimento nem sem-

    pre está no compositor. Está nas coisas que ele vê. Ele vive umpouco desta realidade, dessas agonias”.

    Encarando cada agonia de frente, Oscar da Penha viu seu

    nome artístico pela primeira vez na capa de um disco em 1969,

    no compacto duplo Batatinha e Companhia Ilimitada. Neste,

    ele não canta, mas é o compositor de três das quatro canções,

    gravadas por Inema Trio e Carlos Gazineo. Depois do Samba

    da Bahia de 1973, lançou Toalha da Saudade (1976) e 50 Anos de

    Samba (1996), no qual regravou composições suas já famosas

    em outras vozes. Mas é em Diplomacia (1997), que Batatinha

    deixa transbordar tudo que guardava também como cantor.

    Como se antecipasse a despedida, expele toda a dor que preser-

    vava dentro de si e deposita na voz a inteira emoção de suas le-

    tras. Lançado somente após a morte do homenageado, o álbum

    venceu o Prêmio Sharp de Melhor Disco de Samba em 1998.

    Com a caixa de fósforos aninhada numa das mãos para

    tamborilar com a outra, Batatinha fez da simplicidade um lu-xuoso artifício poético. Observando as relações que lhe cerca-

    vam e dando passagem aos mais profundos sentimentos, fincou

    bandeira na história do samba.

    Cantando, fez valer seu próprio verso de que não existe ra-

    zão que um samba não vença. É bom acreditar nesta assertiva,

    pois nem só de razão se constitui a vida. Batatinha, para nossa

    sorte, sabia muito bem disso.

    Victor Uchôa  é jornalista e pesquisador. Assina uma

    coluna semanal no jornal Correio (BA) e atua também em

    projetos culturais.

    Texto editado pelo autor para o catálogo. Retirado do songbook

    Batatinha: direito de sambar , a versão integral encontra-se no

    acervo virtual www.acervobatatinha.com.br

    A CURADORIA INDICA:

    Batatinha, o poeta do samba , de Marcelo Rabelo

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     A águi a vitor iosa, sobre o fundo azul e branco de cetim,

    voou baixo pelas mãos fortes e pelos meneios delicados de

    Maria das Dores Rodrigues, a Dodô, campeã já na estreia,

    em 1931, aos catorze anos. Em 1956, o estandarte foi para

    os braços de Wilma Nascimento, igualmente campeã e forte,

    igualmente graciosa. Ambas cruzaram o asfalto espremidas

    entre o público, sob chuva, sol e qualquer condição adversa.

    Levaram a águia em seu belo vôo às alturas. Inesquecíveis.

    E como foram memoráveis as rodas de samba no quintal

    de Dona Neném! Promovidas pelo marido, ali reuniam todos

    os nomes da pesada e os da ativa ala dos Compositores daPortela, encontros com a presença fundamental das pastoras,

    para o canto e para o ofício.

    Tradição herdada dos pastoris natalinos, o timbre femini-

    no era fundamental para a audição das melodias, fator rapida-

    mente absorvido pelos blocos carnavalescos, que desaguaram

    nas Escolas de Samba. Era o coro das pastoras: sem elas, o

    terreiro não se iluminava, mesmo que os sambas entoados

    fossem tantos daqueles que hoje exaltamos. Sem elas, o sam-

    ba não pegava.

    Dona Neném viu, nos anos 1970, a criação da Velha

    Guarda da Portela, consagrando a presença especial do coro

    feminino, formado por Vicentina, Iara e Lourdes. Pouco

    tempo depois, Vicentina - famoso feijão! - se afastou para

    assumir a condução da cozinha da quadra da escola. Iara eLourdes sairiam a seguir, cedendo lugar a Eunice Fernandes

    da Silva, a melhor voz de todas as pastoras, e Doca (Jilçária

    Cruz Costa), de timbre forte e bonito. Mais tarde, Tia Surica

    (Iranete Ferreira Barcellos) e Áurea Maria, filha de Manacéa

    e dona Neném, foram agregadas, assim como Neide Santana,

    filha de Chico Santana, e a mais recente integrante, Jane Carla

     Araújo, diretora da ala das baianas e filha da passista Hilma.

     Vozes fortes e afirmat ivas da história que carregam.

    Caladas as vozes de Doca (2009) e Tia Eunice (2015), fi-

    caram as lembranças do samba no pé, da elegância das roupas

    e das histórias de vida dessas pastoras. O coro e o miudinho

    continuam no palco, as roupas e sapatos para as apresenta-

    ções continuam sendo escolhidas em conjunto, mantendo a

    elegância: afinal, são damas da Portela.

     Algumas rodas de samba contam, ainda hoje, com pas-

    toras, mas já sem a mesma importância. Hoje é pequena apreocupação em cativar, nesses encontros, o coro de vozes

    femininas para interpretar novos repertórios. É uma pena.

    Sentada em seu quintal, testemunha majestosa de mo-

    mentos únicos, Dona Neném, 90 anos, elegantemente ratifi-

    ca o lamento registrado no documentário Mistério do Samba 

    (Lula Buarque, Carolina Jabor, 2008): tudo está muito quieto

    nos dias de hoje.

    Áurea Alves  é jornalista, formada pela ECA-USP,

    colaborou para os jornais OPASQUIM21, Brazilian Press

    e sites como Algo a Dizer. Atua como produtora cultural

    no campo da Música P opular Brasileira.

    A CURADORIA INDICA:O Mistério do Samba , de Lula Buarque e Carolina Jabor

    Damas do Samba , de Susanna Lira

    Natal da Portela, de Paulo Cesar Saraceni

    Paulinho da Viola, meu tempo é hoje , de Izabel Jaguarib

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    parte, pessoas fantasiadas pulando e dançando em bloco nas

    ruas e nos bailes de gala do Rio de Janeiro. Também fotógrafo,

    la Varre filma assumindo seu olhar estrangeiro: o tom do fil-

    me se dá pelos planos abertos, para mostrar a grandiosidade

    da coisa, impressionar pela multidão e, nessa distância neces-

    sária para abarcar a abundância, filma-se quase sempre em

     plongée, sem pisar no mesmo chão que é dançado pelo povo,

    sem esbarrar com o imprevisto dos passistas, sem sentir de

    perto o agudo dos metais ou o tremor grave das percussões.

    O segundo, dirigido por Anthony Muto, tenta construir uma

    dialética entre o estágio de intensa modernização da cidade eo período em que o ritmo arrefece para desabrochar a alegria

    do Mardi