67
Curso Especialização: Pastoral numa Igreja em saída Diagnóstico teológico do tempo presente Geraldo De Mori 2ª Parte: O Vaticano II: “bússola” para a Igreja do séc. XXI? Os textos propostos a seguir analisam o evento conciliar sob vários pontos de vista. Iniciamos com Libanio, que escreveu uma obra importante sobre o Concílio Vaticano II. O texto é uma visão panorâmica de algumas partes importantes do livro que ele escreveu (Concílio Vaticano II. Em busca de uma primeira compreensão. São Paulo: Loyola, 2005). A seguir, retomamos um artigo de Beozzo sobre a recepção do Concílio no Brasil. O terceiro texto retoma um artigo do teólogo canadense Gilles Routhier, um dos principais intérpretes do Concílio na atualidade. Concílio Vaticano II João Batista Libanio O grande divisor de águas do Concílio foi o discurso programático de João XXIII na sua abertura. Era o dia 11 de outubro de 1962. Um pormenor piedoso do Papa. Na véspera da abertura do Concílio, ele depositou sobre o altar de sua capela particular o discurso que escrevera e que pronunciaria perante 2.400 bispos presentes em Roma. Quatro eixos principais estruturaram o discurso. O primeiro foi a afirmação, mais uma vez, de esperança e de antevisão de uma “ordem de relações humanas, que, por obra dos homens e a maior parte das vezes para além do que eles esperam, se encaminham para o cumprimento dos seus desígnios superiores e inesperados, e tudo, mesmo as humanas diversidades, converge para o bem da Igreja”. Nisso se opôs 1

cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

  • Upload
    others

  • View
    1

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

Curso Especialização: Pastoral numa Igreja em saída

Diagnóstico teológico do tempo presente

Geraldo De Mori

2ª Parte: O Vaticano II: “bússola” para a Igreja do séc. XXI?

Os textos propostos a seguir analisam o evento conciliar sob vários pontos de vista. Iniciamos com Libanio, que escreveu uma obra importante sobre o Concílio Vaticano II. O texto é uma visão panorâmica de algumas partes importantes do livro que ele escreveu (Concílio Vaticano II. Em busca de uma primeira compreensão. São Paulo: Loyola, 2005). A seguir, retomamos um artigo de Beozzo sobre a recepção do Concílio no Brasil. O terceiro texto retoma um artigo do teólogo canadense Gilles Routhier, um dos principais intérpretes do Concílio na atualidade.

Concílio Vaticano II

João Batista Libanio

O grande divisor de águas do Concílio foi o discurso programático de João XXIII na sua abertura. Era o dia 11 de outubro de 1962. Um pormenor piedoso do Papa. Na véspera da abertura do Concílio, ele depositou sobre o altar de sua capela particular o discurso que escrevera e que pronunciaria perante 2.400 bispos presentes em Roma.

Quatro eixos principais estruturaram o discurso. O primeiro foi a afirmação, mais uma vez, de esperança e de antevisão de uma “ordem de relações humanas, que, por obra dos homens e a maior parte das vezes para além do que eles esperam, se encaminham para o cumprimento dos seus desígnios superiores e inesperados, e tudo, mesmo as humanas diversidades, converge para o bem da Igreja”. Nisso se opôs “às insinuações de almas, ardorosas sem dúvida no zelo, mas não dotadas de grande sentido de discrição e moderação. Nos tempos modernos, não vêem senão prevaricações e ruínas”, são “profetas de desgraças que anunciam acontecimentos sempre infaustos, como se estivesse iminente o fim do mundo”. O Papa naturalmente discordou de tais pessoas.

Em outro eixo, trabalhou uma questão muito grave: a hermenêutica da verdade revelada. Mesmo que tenha formulado de uma maneira simples, no fundo disse que não se tratava de repetir formulações fixas e passadas das verdades de fé, mas de repensá-las para o homem e mulher de hoje. O depósito da fé deve ser guardado, “não se apartando do patrimônio sagrado da verdade, recebido dos seus maiores”, “mas ao mesmo tempo se deve também olhar para o presente, para as novas condições de formas de vida do mundo moderno”. Não se trata de abrir mão da pura e íntegra doutrina. “O punctum saliens deste Concílio é de expor com fidelidade a doutrina de maneira adequada a “formas de

1

Page 2: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

indagação e formulação literária do pensamento moderno”. “Uma é a substância da antiga doutrina do depositum fidei e outra é a formulação que a reveste”.

Um terceiro eixo foi a mudança em relação às condenações, substituindo-as por uma atitude de compreensão e diálogo, afastando-se dos Concílios anteriores. “A Esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia que o da severidade: julga satisfazer melhor às necessidades de hoje mostrando a validez de sua doutrina que condenando erros”.

Um último eixo tem sido uma preocupação que ocupou o Papa desde o início do Pontificado: a promoção da unidade dos cristãos e da humanidade. A união dos cristãos e dos seres humanos, com a qual anda junta a verdadeira paz e a salvação eterna necessita da doutrina revelada. Falta aos cristãos atingir essa “visível unidade na verdade”, que Jesus pediu com oração ardente ao Pai do Céu. Nessa direção vai o empenho da Igreja católica.

Está traçado um caminho maravilhoso para o Concílio que deixava a rota do dogmatismo, do apologetismo, do casuísmo, do triunfalismo, do juridismo frio para uma compreensão histórica, dialógica, contextual, simples e místico-espiritual da Igreja. Agora era esperar que esse discurso calasse fundo no coração dos Padres conciliares e produzisse os frutos no trabalho. Alea jacta est. Estava feita a grande jogada.

Resumindo, a grande virada para a esperança e abertura foi dada com o Discurso inaugural de João XXIII na Primeira Sessão do Concílio.

De maneira didática, escolhi quatro termos para qualificar a natureza do Concílio, traduzindo-lhe as linhas fundamentais de compreensão. Tratou-se de um Concílio pastoral, ecumênico, do diálogo e do “aggiornamento”.

Conclusão

A convocação do Concílio foi uma surpresa, totalmente imprevisível. As definições do Primado e do magistério infalível do Romano Pontífice promulgadas pelo Vaticano I levavam a pensar ser desnecessário o recurso pesado, custoso e imprevisível a um Concílio Ecumênico para decidir sobre verdades de fé, de moral e de disciplina eclesiástica. A idade avançada de João XXIII e o clima de incerteza do pós-guerra desaconselhavam tal iniciativa.

Convocado o Concílio, as expectativas de uma renovação da Igreja pareciam antes longínquas por causa das nuvens conservadoras que ensombreciam o céu romano: um sínodo romano com decisões legalistas, uma cúria de corte tradicional, certas censuras a exegetas, o passado do próprio papa.

O imprevisível aconteceu: um Concílio com orientação progressista. É verdade que desde o início do Pontificado de João XXIII já tinham aparecido sinais de mudança no clima eclesial, mais por gestos que por discursos teológicos. Houve intervenções do

2

Page 3: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

Papa que exprimiram uma visão otimista da história. A personalidade original de João XXIII de fina sensibilidade, de sagacidade intuitiva e de humilde abertura aos toques do Espírito permitiu-lhe tomar iniciativas de abertura ecumênica e política.

Mas foi sobretudo a partir do programático discurso de inauguração do Concílio, depois de uma preparação bastante conservadora, que se romperam as previsões sombrias e se produziu a grande virada, gerando expectativas esperançosas. O Concílio foi colocado sob o signo pastoral, ecumênico, do diálogo e do aggiornamento numa profunda unidade. João XXIII não somente fechou o Concílio Vaticano I, até então interrompido e à espera de continuação, como também decretou o fim de uma longa era de Cristandade. A mudança, que o Concílio tanto na preparação como na sua realização proporcionou, veio, por conseguinte do clima novo que se criou e do processo de abertura para novas experiências, valorizando assim os anseios do sujeito moderno. Este preparara pelos movimentos de renovação sua entrada na Igreja e começara a produzir as transformações, não sem conflito com o antigo sujeito social ainda presente e significativo.

Os padres conciliares optaram por dirigir-se ao mundo moderno, marcado pela mentalidade científica, pela consciência da própria autonomia, num processo de construção da história e transformação da realidade. Houve surpreendente deslocamento da linguagem, que abandonou as categorias neoescolásticas dogmatistas para assumir a hermenêutica moderna. Deste modo, os pólos principais foram uma compreensão bíblica de Deus, a virada antropocêntrica, um discurso existencial, pessoal, social e histórico.

A novidade do Concílio, portanto, foi dirigir-se a um novo sujeito eclesial, que, por sua vez, tinha outras perguntas que o sujeito tradicional. A diferença fundamental estava em que o novo sujeito eclesial levantava perguntas à fé a partir da sua situação existencial, imersa na modernidade subjetiva, científica, histórica e da práxis. Tal deslocamento do sujeito produziu uma releitura profunda de toda a fé, vida e prática da Igreja. No entanto, o sujeito pré-moderno esteve presente e fez-se sentir na redação dos textos que buscaram um “compromisso” entre os dois sujeitos. Há um Concílio Vaticano I presente no Vaticano II, apesar de nítida ruptura mais no espírito que nos textos.

Evento de tamanho porte com um conjunto imponente de documentos, como o Concílio, permite ser lido sob diversas chaves interpretativas. Escolhemos duas principais: o primado da Palavra de Deus e o seu caráter eclesiológico.

Resumindo, o texto da Constituição Dei Verbum foi um dos mais discutidos. Entrou na primeira sessão do Concílio e só foi aprovado na última. Provocou a reestruturação da comissão de redação. Trouxe pontos de extrema novidade, mas também manteve um vocabulário ambivalente no tocante às duas fontes da Revelação. Incorporou as novidades exegéticas. Desenvolveu uma perspectiva cristológica, histórica, evolutiva, hermenêutica em relação à Revelação.

3

Page 4: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

Resumindo, todos os documentos do Concílio podem ser relacionados com a Igreja. Uns se referem à sua vida interna. Outros às suas relações com as outras Igrejas cristãs, com as tradições religiosas não cristãs, com os não crentes, com os meios de comunicação social e com o mundo moderno em toda a sua amplitude.

Conclusão

Evento do porte do Concílio Vaticano II permite ser interpretado sob inúmeras chaves de leitura. O Primado da Palavra de Deus e a pergunta “Igreja católica que dizes de ti mesma”? prestam bem para entender o evento e os documentos do Concílio. A Palavra de Deus não só presidiu simbolicamente, ao ser introduzida solenemente em cada Sessão conciliar, mas principalmente esteve presente como a grande espada que cortava os nós da dúvida e dos enredos apologéticos e que despertava os padres conciliares para sua função cortante da última instância da verdade.

Retirou-se a revelação de um “depositum fidei” para situá-la na história da salvação, cuja plenitude se realizou na pessoa de Jesus Cristo por cima de todas as diferenças de confissão. E ao autodefinir-se a Igreja de Cristo se entendeu fundamentalmente como sacramento de unidade entre os seres humanos com Deus e entre si, apontando desde sua visibilidade para uma realidade maior que ela mesma.

Nunca um Concílio na história da Igreja foi tão ecumênico na pluralidade das culturas, das raças, das línguas, das liturgias, das disciplinas. Faltou-lhe ainda a tão sonhada unidade de todos os que professam a fé em Jesus Cristo. Esse sonho esteve presente todo o tempo no Concílio como critério hermenêutico de pensar e exprimir a fé da Igreja.

A eclesiologia é uma chave principal para ler o Concílio. Toca-nos ver qual foi a opção eclesiológica do Concílio. Entramos num campo algo minado. Até agora a posição mais aceita é a do teólogo italiano Acerbi, que fala de duas eclesiologias presentes no Concílio (1). Dois tipos de fios entrelaçaram-se na tecedura eclesiológica da Lumen gentium.

Dentro do Concílio houve um movimento de deslocamento e depois do Concílio processou-se a inversão. A maioria dos Padres Conciliares entrou conservadora. Vinha de uma formação teológica neoescolástica e de uma pastoral tradicional. Não se podia esperar outra coisa.

Uma minoria, sobretudo da Europa central, tivera que defrontar-se com a problemática moderna que explodira depois da Segunda Guerra mundial. Os movimentos de renovação no interior da Igreja afetaram a bom número desses Padres conciliares que, assessorados por peritos da teologia moderna, representavam uma minoria crítica e inovadora.

1 . A. Acerbi, Due ecclesiologie: ecclesiologia giuridica ed ecclesiologia di comunione nella "Lumen Gentium", Bologna, Dehoniane, 1975.

4

Page 5: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

Resumindo, pouco a pouco tornou-se dominante no Concílio uma eclesiologia de comunhão, do povo de Deus em contraposição à jurídica e da sociedade perfeita.

Entretecido com essa visão de Igreja, está outra residual. Nela predomina a concepção hierárquica primacial e clerical, atribuindo ao Primado e à posição do clero quase uma exclusividade eclesial. A opinião pública reflete ainda tal concepção quando iguala a opinião de algum clérigo com a da Igreja, o que nunca faz em se tratando de algum leigo, mesmo católico reconhecido.

As duas eclesiologias escondem algumas tensões básicas que estão à espera de um melhor equacionamento. Enunciamos somente essas tensões, pois elas estão latentes nas inversões eclesiológicas a serem estudadas no parágrafo seguinte. Houve, sem dúvida, uma acentuada insistência sobre a Igreja particular, o ministério do bispo, a colegialidade e as conferências episcopais. No entanto, o poder centralizador da Cúria romana e o imaginário católico fortemente marcado pelo primado do Romano Pontífice entraram em choque à espera de uma reflexão teológica serena e uma prática livre.

O segundo milênio assistiu a forte clericalização da Igreja. Nas últimas décadas, porém, cresceu a consciência da relevância do fiel leigo. E entre esses dois movimentos persiste uma tensão que não encontrou até agora um equacionamento satisfatório.

Conclusão

Tornou-se consensual a constatação de que atravessa a Lumen gentium uma dupla eclesiologia. Os nomes variam para designá-las. Uns preferem considerar o século XI como o divisor de águas. A eclesiologia do primeiro milênio acentuaria as igrejas particulares, sua autonomia e o segundo milênio se caracterizaria pela crescente centralização romana. Outros adjetivam um tipo de eclesiologia como colegial e sinodal e o outro tipo como primacial; ou chamam de eclesiologia de comunhão a primeira e de jurídica a segunda. Preferi um termo menos teológico, chamando uma de hegemônica e a outra de residual. A primeira corresponderia ao pensar da grande maioria dos padres conciliares e significaria o novo do Vaticano II. A outra, residual, continuaria mais na linha do Vaticano I.

Porque existiram essas duas eclesiologias, permaneceu aberta a tensão latente entre as duas no sentido de compreender a Igreja, ou partir da Igreja universal ou a partir da Igreja particular. Discussões que continuarão depois do Concílio.

5

Page 6: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

No entanto, podemos dizer que Igreja assumiu três atitudes básicas no Concílio.

1. Ela fez sua autocrítica, revendo todo seu “ser” numa dupla linha laical e colegial. Define-se como mistério (sacramento), na sua relação com o Reino de Deus, como porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem (Dei Verbum), a sua vida cúltica (Liturgia), os ministérios, a vida de seus membros.

2. Ela se fez ecumênica e dialógica, com as Igrejas orientais, com as saídas da Reforma, com as religiões não cristãs e com os não crentes na defesa da liberdade religiosa e numa nova concepção de missão.

3. Ela se abriu aos meios de comunicação social e à modernidade econômica, política e cultural.

Há várias maneiras de traduzir as novidades eclesiológicas do Concílio. Escolhi o recurso didático da inversão de movimento. Já nos referimos a esse expediente metodológico. A determinação dos movimentos é fruto de uma escolha que pretende ser fundada na análise correta do Concílio. Mas goza, sem dúvida, de certa subjetividade, já que poderia haver outros (critério de inclusão) e poderia ter deixado de fora algum (critério de exclusão). São as preferências teológicas que correm por risco do autor.

I. Da Igreja-Sociedade perfeita à Igreja-mistério

II. Duma visão essencialista a uma visão histórico-salvífica da Igreja

III. Da Igreja-hierarquia à Igreja-Povo de Deus

IV. Da centralidade da Igreja para a do Reino de Deus

V. Da identificação da Igreja universal com Roma para a valorização da universalidade realizada nas Igrejas locais sem chegar a partir da Igreja particular

VI. Da consciência ocidental européia, romana da Igreja para uma consciência de universalidade da Igreja

VII. De uma Igreja em conflito com o Mundo para uma Igreja em diálogo com ele

VIII. De uma Igreja auto-suficiente, senhora para uma Igreja servidora e solidária

IX. De uma Igreja perdida no mundo da política ou unicamente voltada para a vida eterna para uma Igreja militante e peregrina em busca da plenitude final

X. De uma Igreja com redutos de vida religiosa perfeita para toda ela chamada à santidade

6

Page 7: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

XI. Da consciência de uma mariologia isolada à compreensão de Maria no coração da Igreja:

X. Síntese da eclesiologia do Vaticano II

Essas tendências foram selecionadas entre outras tantas possíveis dentro do objetivo de apresentar uma primeira aproximação ao Concílio Vaticano II. Ainda de maneira mais didática, apontarei com palavras antitéticas, à guisa de conclusão, o movimento interno da eclesiologia conciliar. Indicar-se-ão dois pólos. De onde se partiu para onde se caminhou ou se pretendeu caminhar no espírito do Concílio. Esse recurso escolar ajuda se não se radicalizarem os pólos, mas antes verem neles um deslocar-se de mais e menos. O percurso pode, ora ser incipiente, ora já avançado. Mas aqui se prescinde de uma análise histórica e se atém unicamente ao interesse de criar um imaginário teológico mais próximo dos objetivos iniciais e fundamentais do Concílio.

Esses pólos, portanto, resumem didática e concisamente os deslocamentos fundamentais de significado produzidos pelo que o Concílio Vaticano II teve de original e novo. O conjunto revela uma figura nova do pensar teológico e da pastoral que afetam a totalidade da Igreja. Vou deixá-los na sua forma esquemática para que o leitor, ele mesmo, preencha os significados com o que já vimos até aqui e com o que ele conhece do Concílio. Toca-lhe verificar e criticar se as palavras para expressar as tendências foram bem encontradas.

De uma Igreja-instituição para uma Igreja-Sacramento.

De uma Igreja-voltada para si para uma Igreja-voltada-para-o-mundo.

De uma Igreja sociedade corporativa para uma Igreja comunial e colegial.

De uma autoridade monárquica para uma autoridade participativa.

De uma pertença por sinais visíveis para uma pertença por decisão, liberdade.

De uma visão apologética para uma visão ecumênica, dialógica.

De uma Igreja lugar de salvação para uma Igreja sacramento/sinal de salvação.

Da instituição, do juridicismo para o carisma, a autenticidade

Da presença do Espírito Santo na autoridade para sua presença em todos os fiéis.

Do Magistério como a cátedra da verdade para o sensus fidelium.

Das tradições para a Tradição.

Da Lei para o Evangelho, a caridade.

Da Autoridade para a Liberdade dos filhos de Deus.

7

Page 8: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

Da Cúpula, do clero para a base, os leigos.

Do Centro, centralização para a periferia, a colegialidade.

Da essência da Igreja para a pluralidade de imagens.

Da Igreja Universal para as Igrejas particulares.

Do Dogma para a pastoral.

Da Verdade objetiva para a vivência, autenticidade, veracidade.

Da Eclesiologia feita para a eclesiogênese.

Da Ortodoxia para a ortopráxis.

Do Magistério para a Palavra de Deus.

Da Igreja visível para o Reino de Deus.

Da Assembléia cúltica para a Comunidade celebrativa.

Da Igreja-Mestra para a Igreja-Mãe.

Da Igreja-mãe para a Igreja-fraternidade dos irmãos.

Da Igreja triunfante, santa, sem rugas para a Igreja peregrina, pecadora, arrependida.

Do Eclesiocentrismo para o Reinocentrismo.

Da Igreja sempre a mesma para a Igreja sempre a reformar-se, em devir.

Da Igreja-organização para a Igreja da Palavra, do Sacramento.

Da Igreja dogmática para a escatológica, histórica.

Da Igreja-Fuga mundi para a Igreja-Inserção nas realidades terrestres.

Da Santidade dos atos para a Santidade de vida, prática.

Da Igreja que tutela para a Igreja que respeita as autonomias.

Da Igreja pessimista diante do mundo, da matéria para a Igreja otimista, valorizadora do mundo.

Da Igreja que decide desde princípios universais para a Igreja que perscruta os sinais do tempo.

Da Igreja autoconfiante para a Igreja humilde.

Da Igreja-mestra para a Igreja discípula.

Da Igreja uniforme para a Igreja pluralista.

Da Igreja da identidade para a Igreja da diferença.

8

Page 9: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

Da Igreja distante para a Igreja solidária com o mundo.

Conclusão

O conjunto de inversões eclesiológicas configura a nova imagem de Igreja que foi gerada no Vaticano II. O último horizonte é o mistério. Esse acontece na história para a salvação dos seres humanos e a Igreja é-lhe sacramento. Na sua visibilidade é Povo de Deus que representa, significa e faz presente entre os humanos o Reino de Deus. A sua universalidade não é abstrata nem anterior, mas se realiza em cada Igreja particular. Estas, espalhadas pelo mundo, comungam entre si e com o Bispo de Roma, constituindo-se a Igreja católica. Se um tempo se pensou a si mesma com a cabeça teológica e institucional centroeuropéia, hoje se entende universal na variedade das raças, das culturas, dos povos. Imersa no mundo moderno, não o rejeita, mas dialoga criticamente num espírito de discernimento. Descobre na história humana os sinais dos tempos, apontando para a ação de Deus. Sabe-se cada vez mais feita de fiéis leigos a serviço dos quais a hierarquia se constitui. E recuperando uma piedosa tradição mariana, situa a Virgem no seu coração como a fiel seguidora de Cristo. E ela toda se põe a caminho da escatologia final, vivendo em antecipação momentos de plenitude. Entende sua vocação à santidade como um chamado de Deus a todos os membros.

Pedras de toque

I. Ecumenismo

Conclusão

“O que nos une é maior do que o que nos divide (2): eis o caminho do ecumenismo nesse pós-Concílio. Ele consiste em tomar consciência daquilo que nos une para ir lentamente lançando pontes sobre o que nos separa. Já lá se vão quarenta anos que nos distanciam dos entusiasmos dos tempos pós-conciliares. A geração atual não os conheceu. Os que os viveram ou já se foram ou já têm dificuldade de passar essa experiência para uma geração nascida e crescida numa cultura extremamente individualista e indiferentista. O individualismo tem duas faces. Uma positiva: não polemiza. Outra negativa: não se interessa pela construção de tarefas solidárias, comuns, como é o ecumenismo. Prefere deixar as coisas como estão.

No mundo católico bateu uma onda de desânimo e descrença pela incongruência, ao menos aparente, entre gestos e algumas declarações de explícito desejo e esforço pelo ecumenismo e a ducha fria da Declaração Dominus Jesus. A pergunta: que vale na verdade? Onde está a sinceridade real? Quem tem razão? Uma análise mais detalhada e profunda encontraria pontos de resposta. A impressão geral, midiática foi perturbadora. É difícil construir um clima de confiança. É fácil destruí-lo e fica muito mais difícil reconstruí-lo. É nesse momento em que estamos.

2 . João Paulo II, Ut unum sint, n. 3.

9

Page 10: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

II. Compromisso com a ética

Conclusão

O Concílio Vaticano II foi fundamentalmente eclesiológico. Por isso, pensou na relação da Igreja com as realidades seculares, onde a ética, o compromisso humanista lhe exprimem o grau mais alto de manifestação. Visto com o olhar secular, está-se no campo da pura razão. Nela se manifesta a grandeza humana quando se rege pela ética e por decisões humanistas. À luz da revelação, se delineia, como faz a Gaudium et spes, uma antropologia cristã. K. Rahner, artífice de tantas intuições do Concílio, já tinha desenvolvido, sob a controvertida expressão de “cristão anônimo”, a relação íntima entre o proceder ético e a condição cristã. Toda antropologia é uma cristologia anônima e toda cristologia é uma antropologia explicitada a seu extremo. Vai-se a Cristo pelo compromisso ético e vai-se ao compromisso ético por Cristo.

O Concílio provocou por isso uma renovação da teologia moral, que abandonou o caminho casuístico, juridicista, racionalista e obsessivamente preso à tipificação dos pecados para alimentar-se da Escritura, para responder à vocação do fiel em Cristo, para valorizar a dimensão do amor, não descuidando as contribuições da razão científica moderna (3).

A grandeza continental do Concílio exige escolha de paisagens. Três ainda me parecem necessárias para oferecer um mínimo de compreensão de seu porte teológico e pastoral: a renovação litúrgica, a abertura para o diálogo inter-religioso e a liberdade religiosa. Temas que contribuíram para o giro copernicano da Igreja católica em termos de reflexão e de prática.

Tarefas não realizadas

Com muito mais razão vale do Concílio Vaticano II. Cabe uma palavra sobre as tarefas não realizadas (4), os processos interrompidos, as sementes não desenvolvidas, a primavera fenecida, o inverno antecipado ao verão sem ter visto o outono de frutos sazonados (5). O Concílio não realizou, na verdade, a passagem total da Igreja de uma era para a outra. Muitos pontos ficaram presos a visões anteriores, pré-conciliares, pré-

3 . M. Fabri dos Anjos, A teologia moral subjacente ao Concílio e seu impulso para a América Latina, in P. S. Lopes Gonçalves - V. I. Bombonatto, org., Concílio Vaticano II. Análise e prospectivas. São Paulo, Paulinas, 2004, pp. 389-404.4 . F.J. Laishley, Unfinished business, in A. Hastings, ed., Modern Catholicism. Vatican II and After, London/New York, SPCK/Oxford Univesity Press, 1991, pp. 215-239.5 . K. Rahner, L'hiver dans l`Église, in ICI n. 585 (15 avril 1983), pp. 17s; ver a brilhante análise feita por G. Alberigo do tempo pós-conciliar no referente à tensão fundamental do duplo espírito que o preside: Uma avaliação pessimista e temerosa à busca de uma Igreja-fortaleza, ciosa de sua própria pureza, brandindo condenações e uma atitude de confiança, de coragem na concentração de graça derramada pelo Espírito sobre nosso tempo de que o Concílio é sinal: G. Alberigo, La condition chrétienne après Vatican II, in G. Alberigo - J.-P. Jossua, La réception de Vatican II, Paris, du Cerf, 1985, pp. 9-40.

10

Page 11: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

modernas, já superadas na objetividade histórica, mas não assumidas na consciência e prática eclesial. Mais ainda. Ele mesmo apresentou princípios e orientações gerais mais que disposições operativas que vinculassem eficazmente o conjunto da Igreja e se tornassem realidade concreta. Ficou a meio caminho. Daí essa série de tarefas não realizadas, fazendo do Concílio Vaticano um "Concílio de transição" e não um Concílio de realização acabada (6).

Interpretações

Antes de tudo, existem duas hermenêuticas, ambas seletivas, que não fazem jus à totalidade do Concílio. Uma procura captar unicamente os elementos originais e novos do Concílio, esquecendo a Tradição que o antecede. Não dá conta da continuidade e cai num presentismo que termina por produzir tensões e conflitos. Nenhum concílio é pura novidade, nem total ruptura com o passado. A outra inclina-se para o lado oposto. Respinga do Concílio os elementos residuais, tridentinos ou do Vaticano I, e apresenta-os como a obra do Concílio. Desconhece o sentido inovador, de "aggiornamento" do Vaticano II (7). O processo hermenêutico do Concílio ainda tem muito caminho a percorrer.

III. Participação do leigo

Quanto à maior participação do leigo, teologicamente avançou-se. O Concílio firmou com clareza a verdade da igualdade fundamental de todos os membros do Povo de Deus pelo batismo. O Espírito Santo age em todos. O "sensus fidei" e o "sensus fidelium" garantem a confiança básica em todos os cristãos (8). No nível prático, não se criou um "estatuto jurídico" suficientemente consistente que garantisse ao leigo realmente o direito de participação no interior da Igreja até no exercício de ministérios sem precisar depender do beneplácito das autoridades eclesiásticas. Falta-lhe um reconhecimento externo de que ele é também Igreja.

IV. Estruturas internas

6 . J. M. Rovira Belloso, Significación histórica del Vaticano II, in C. Floristán - J.-J. Tamayo, El Vaticano II, Veinte años después, Madrid, Cristiandad, 1985, p. 22: H. J. Pottmeyer, Vers une nouvelle phase de réception de Vatican II. Vingt ans d'herméneutique du Concile, in G. Alberigo - J.-P. Jossua, La réception de Vatican II, Paris, du Cerf, 1985, p. 43. . Entre as demandas conciliares não honradas ao longo da recepção, está a colegialidade: L. Vischer, L'accueil réservé aux débats sur la collégialité, in G. Alberigo - J.-P. Jossua, La réception de Vatican II, Paris, du Cerf, 1985, pp. 305-325.7 . H. J. Pottmeyer, Vers une nouvelle phase de réception de Vatican II. Vingt ans d'herméneutique du Concile, in G. Alberigo - J.-P. Jossua, La réception de Vatican II, Paris, du Cerf, 1985, p. 55.8 . J. Burkhard, Sensus fidei: Theological Reflection since Vatican II: I: 1965-1984 in The Heythrop Journal 34 (1993), pp. 41-59: II: 1985-1989: id.: pp. 123-136; Z. Alszeghy, Il senso della fede e lo sviluppo dogmatico, in R. Latourelle, org., Vaticano II: Bilancio e prospettive. venticinque anni dopo. 1961-1987, Assisi, Cittadella, 1987, I, pp. 136-151.

11

Page 12: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

Quanto às estruturas internas da Igreja, cabe apontar três problemas básicos. Um primeiro, estritamente teológico e espinhoso, consiste em distinguir na Igreja as instituições imutáveis de direito divino (jure divino) e as mutáveis (jure ecclesiastico). Um segundo se refere ao desfazimento de estruturas eclesiásticas arcaicas, hoje sem sentido, à transformação de outras e à criação de novas. Um terceiro diz respeito à maneira como se designam ou se escolhem as pessoas para os diversos ministérios na Igreja, desde o Primado até os ministros leigos da comunidade.

V. Ministério ordenado

Em relação às estruturas da Igreja, excele a questão do ministério ordenado, da atual figura do presbítero, do celibato obrigatório, da concepção monocêntrica da Igreja no nível romano, diocesano e paroquial. Na história da Igreja, depois dos primeiros séculos de hesitação, os ministérios se cristalizaram fundamentalmente no episcopado, presbiterato e diaconato e até hoje não sofreram nenhuma mudança profunda. Teologicamente parece que a questão esteja mais aberta e que seja possível pensar outros tipos de ministério ordenado na Igreja, desvinculado da figura atual do bispo ou presbítero.

VI. Ecumenismo

O ecumenismo saiu do Concílio incentivado, alentado por muitas esperanças e por atos isolados, embora significativos e simbólicos por parte dos últimos Pontífices Paulo VI e João Paulo II. No entanto, surgiram novos percalços e sobretudo não se avançou na linha sacramental, na intercomunhão, na reorganização do poder sacramental e jurisdicional da Igreja católica.

Permanecem, portanto, impasses estruturais, jurídicos, canônicos em contraste com os gestos pessoais de abertura e avançados de membros das diversas Igrejas cristãs, como já explicitei em parágrafo acima.

VII. Diálogo inter-religioso

O Concílio abriu espaço para o diálogo inter-religioso. A Igreja tem crescido muito nesse ponto. Talvez seja o tema mais importante e promissor, apesar de suas imensas dificuldades teológicas e pastorais no atual debate teológico e para a vida pastoral-missionária da Igreja. O Concílio Vaticano II reconheceu o pluralismo de fato. Está em aberto o pluralismo de direito. Lá se superou definitivamente o exclusivismo. Ancorou-se num inclusivismo ainda estreito. Vários teólogos tentam avançar para um inclusivismo aberto ou mesmo pensar o pluralismo em termos de diálogo inter-religioso. O problema cristológico continua no centro das discussões.

VIII. Questão da mulher

Um grande silêncio no Concílio foi a questão da mulher. Hoje, sobretudo depois da IV Conferência Mundial sobre a Mulher, organizada pela ONU em Benjing (4-15 set

12

Page 13: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

1995), se recoloca com agudeza e premência mais uma vez a questão da mulher. Em alocução feita na véspera de começar a Conferência de Benjing, João Paulo II, da sacada de sua residência de verão em Castelgandolfo, lançou um apelo à comunidade eclesial a fim de que favorecesse a participação da mulher, de todas as formas, em sua vida interna. Entre os possíveis campos de sua atuação na Igreja apontou: Ensino da Teologia, a liturgia nas formas consentidas pela lgreja, inclusive no serviço ao altar, os conselhos pastorais, as várias instituições eclesiais, a cúria e vários tribunais eclesiásticos, novas formas de participação na vida das paróquias por falta de clero, exceto as tarefas propriamente sacerdotais (9). Ficou praticamente fechada a questão do acesso da mulher ao ministério ordenado. Essa questão se porá, sem dúvida, não necessariamente por movimento interno dentro da Igreja católica, mas à medida que o diálogo ecumênico avançar com Igrejas que têm pastoras ordenadas.

IX. Revisão do Código de Direito canônico

Merece estudos sérios a maneira como o Código do Direito Canônico, promulgado no Pontificado de João Paulo II (1983) incorporou o espírito do Concílio ou se manteve ainda preso a visões anteriores ou conseguiu conjugar a dupla concepção de Igreja "societas perfecta" e Igreja "communio ecclesiarum". Tema fascinante que ultrapassa os moldes desse texto e a competência do autor. Remeto ao estudo de E. Corecco (10).

X. Liberdade de pesquisa

Ultimamente tem-se tornado grave a tensão entre a pesquisa teológica e o controle exercido pela Congregação para a Doutrina da Fé. Vários teólogos de renome internacional receberam “Notificatio” de Roma.

XI. Relação entre Igreja universal e particular

Víamos que uma das inversões eclesiológicas foi o deslocamento da identificação da Igreja universal com Roma para a valorização da universalidade realizada nas Igrejas locais. Constatávamos então os dois pontos de partida para entender a relação entre Igreja universal e Igreja particular, simbolizados na “amigável discussão” entre o Cardeal Ratzinger e o Cardeal Kasper (11).

XII. Questões morais: matrimoniais, sexuais

O Concílio pronunciou-se pouco sobre questões morais, matrimoniais. Naqueles idos, discutia-se entre os moralistas a doutrina tradicional de Pio XI e Pio XII que vedava qualquer meio artificial no controle do nascimento. Paulo VI criou uma primeira

9 . Alocução de 3 set 1995.10 . E. Corecco, La réception de Vatican II dans le Code de Droit Canonique, in G. Alberigo - J.-P. Jossua, La réception de Vatican II, Paris, du Cerf, 1985, pp. 327-391.11 . W. Kasper, On the Church. A friendly reply to Cardinal Ratzinger, in America 184 (2001), n. 14, pp. 8-12.

13

Page 14: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

comissão para estudar a questão, que terminou com a maioria não vendo que tais meios fossem intrinsicamente desonestos. Paulo VI, porém, não satisfeito, reservou a si tal questão e tirou-a do âmbito das discussões conciliares. Mais tarde reafirmou a tradição anterior com a Encíclica Humanae vitae (12). É conhecida a reação crítica que tal Encíclica teve fora e dentro da Igreja.

XIII. Diálogo com as ciências

Trata-se de um diálogo de extrema urgência com as ciências. O caso Galileu ensinou-nos a tomar posição de maior prudência e abertura diante de questões científicas, sem precipitações dogmáticas. A Igreja não deve necessariamente ter sempre respostas prontas para tudo. Certos intervalos de silêncio e de espera não contradizem a sua missão, já que a assistência do Espírito Santo não significa nenhuma luz especial e objetiva para entender as questões. Mas a coragem e denodo em debruçar-se sobre os argumentos e ponderá-los em diálogo com as diversas ciências.

XIV. Clima de experiências nos diversos campos

Tornou-se um lugar comum dizer que o Vaticano II foi antes um espírito que documentos, antes um clima que normas, antes invenção que regulamentação. Ele criou na liturgia, na Vida Religiosa e na pastoral um ambiente de liberdade e criatividade. Infelizmente parece que o fôlego foi curto. Muitas circunstâncias sociais, culturais e eclesiais intervieram a ponto de deter esse movimento de vida, Nem despontou a aurora e logo, contrariando as leis da natureza, se fez tarde ou até mesmo noite.

XV. Distância da Igreja e o cotidiano das pessoas

O Concílio é um imenso kairós. Não valeu pelo tamanho da mobilização de pessoas e recursos, mas por sua força espiritual. Nesse sentido, K. Rahner relativizou-lhe o aspecto institucional, ao dizer numa primeira conferência pública depois dele: “tudo o que se faz na Igreja, tudo o que é institucional, jurídico, sacramental, toda palavra, toda ação, bem como toda reforma de qualquer elemento eclesial, em última análise, - se retamente entendido e não com ressaibos de egolatria -, é tudo um serviço, puro serviço, mera oferta de ajuda em favor de algo inteiramente diverso, algo de todo simples e, por isso mesmo, inefavelmente difícil e sagrado. Este algo é a Fé, a Esperança e o Amor, a serem instalados no coração dos homens. Para usar um exemplo tirado da ciência profana, podemos dizer que acontece aqui coisa muito parecida com o processo de extração do rádio. Sabe-se que é necessário escavar uma tonelada de minério de urânio para se obter 0,14 gramas de rádio. E, não obstante, paga a pena fazer-se tal esforço”. “É que também um Concílio procura o coração do homem, o coração que, crendo, esperando

12 . Paulo IV, Humanae Vitae carta encíclica de Sua Santidade o Papa Paulo VI sobre a regulação da natalidade, São Paulo, Paulinas, 1968.Páginas 34 p.

14

Page 15: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

e amando, cede e se entrega ao mistério de Deus. Não fora assim, o Concílio não passaria de uma horrível representação teatral e de uma autolatria do homem e da Igreja” (13).

XVI. Prosseguir o avanço no campo da Doutrina Social da Igreja

É uma tarefa muito próxima do coração das Igrejas da América Latina. A Gaudium et spes foi a carta magna da Doutrina Social da Igreja. Além dela, significou enorme avanço social a Declaração Dignitatis humanae sobre a liberdade religiosa. A herança social humanista do Vaticano II recebeu continuidade nos documentos posteriores do Magistério Pontifício de Paulo VI (14) e João Paulo II (15). Muitas conferências regionais, como na América Latina por meio dos documentos de Medellín, Puebla e menos profeticamente de Santo Domingo, e conferências episcopais, como no Brasil com uma produção crítica e corajosa nos anos do regime militar, enriqueceram altamente tal Ensinamento social (16).

XVII. Retomar a questão dos pobres

Foi um sonho de João XXIII que a Igreja saísse do Vaticano II bem próxima dos pobres de modo que estes se sentissem em casa no seu seio. Mas no enorme acervo de documentos, as pepitas de ouro sobre os pobres se perdem.

Há duas maneira de retomar a questão dos pobres: resistir e avançar.

III. Linhas de força do Vaticano II

Pensar numa recepção do Vaticano II implica captar-lhe alguns pontos fundamentais que podem conseguir consenso amplo. Embora o tenhamos analisado sob duas chaves fundamentais, indicado inversões eclesiológicas e proposto pedras de toque temáticas, o Concílio, como todo, é sobretudo uma perspectiva nova de interpretar o projeto salvífico de Deus realizado em Jesus Cristo pela força atuante do Espírito, cujo sacramento fundamental é a Igreja (17).

13 . K. Rahner, Vaticano II: Um começo de Renovação, São Paulo, Herder, 1966, pp. 45.47s.14 . Basta recordar de Paulo VI: Populorum progressio (1967) e Octogésima adveniens (1971) e o Sínodo sobre a Justiça.15 . João Paulo II, Laborem exercens (1981), Sollicitudo rei socialis (1987) e Centesimus annus (1991).16 . Vejam da CNBB: Comunicação pastoral ao Povo de Deus (1976), Exigências cristãs de uma Ordem Política (1977), Igreja e problemas da terra (1980), Reflexão cristã sobre a conjuntura política (1981), Solo urbano e ação pastoral (1982), Por uma nova ordem constitucional (1986), Exigências éticas da ordem democrática (1989), Ética, pessoa e Sociedade (1993).17 . P. S. Lopes Gonçalves. A teologia do Concílio Vaticano II e suas conseqüências na emergência da Teologia da libertação, in P. S. Lopes Gonçalves - V. I. Bombonatto, org., Concílio Vaticano II. Análise e prospectivas. São Paulo, Paulinas, 2004, pp. 69-94.

15

Page 16: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

O Concílio propôs uma série de novas leituras de binômios clássicos do pensamento teológico e da vida cristã. E de maneira didática seguirei o mesmo método que usei quando da conclusão da eclesiologia. Trata-se de um movimento que tem um ponto de partida que era antes mais acentuado e que agora é matizado pela presença clara e explícita do outro pólo.

De uma compreensão literal, quase mecânica a modo de ditado da Palavra de Deus, para o emprego dos métodos lingüísticos e hermenêuticos próprios da análise das palavras humanas. Toma-se consciência de que é na palavra humana que Deus se revela.

De tradições cada vez mais constringentes para o encontro com a grande Tradição que liberta. Para criar a identidade tridentina carregara-se a mão sobre a disciplina na liturgia, na vida eclesiástica, na prática sacramental com sempre mais numerosas exigências e tradições. A volta às fontes da grande Tradição trouxe uma reavaliação das tradições, com conseqüente abolição das julgadas caducas e sem sentido.

De uma fé situada no tribunal de julgamento sobre as ciências para um deixar-se criticar por elas, oferecendo o serviço humilde de sua contribuição. Até a modernidade, a fé se julgava senhora absoluta de toda verdade e desde essa soberania pontificava sobre todas as outras ciências. Era a rainha da monarquia absoluta. Doravante saiu do palácio e foi para a praça conversar com os outros saberes na qualidade de companheira.

De uma Igreja una e universal para muitas Igrejas. A comunhão das Igrejas entre si com Roma constitui a face da Igreja católica. Já estudamos essa inversão acima.

De um Deus restrito a uma presença na verdadeira religião judaico-cristã para um Deus presente em todas as religiões e experiências religiosas das pessoas. Passa-se de um monoteísmo rígido a uma compreensão de muitos nomes de Deus. Deus tem muitos nomes (18).

Do monolitismo salvífico para a presença da salvação em muitas formas quer religiosas quer seculares. Parte do Extra ecclesiam nulla salus para extra mundum nulla salus. Rejeitava-se como erro todo pluralismo. Passou-se a aceitar o fato para pensar o pluralismo de direito.

Da predominância de uma única forma sobrenatural de amar a Deus para muitas expressões humanas de amor a Deus nas realidades e pessoas. Há uma unidade radical do amor a Deus e aos irmãos de modo que se ama a Deus nas realidades humanas.

Do acento sobre a divindade de Jesus para a valorização de sua humanidade. “Tão humano assim, só pode ser Deus mesmo” (L. Boff). Na humanidade de Jesus se manifesta sua divindade e nela a encontramos.18 . J. Hick, God has many names; Britain’s New Religious Pluralism. London, Macmillan, 1980.

16

Page 17: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

Do sacramento como canal da graça para a realidade de símbolo e sinal de um encontro entre a liberdade humana com a oferta de graça por parte de Deus. O sacramento lança uma ponte entre a visibilidade e a graça provocando o ser humano a um encontro pessoal com Deus.

Resumindo, o Concílio Vaticano é antes um espírito que um conjunto de documentos. E os adjetivos desse espírito se multiplicam, favorecendo a liberdade, a criatividade, a participação, a responsabilidade pessoal, comunitária e social.

Conclusão

O Concílio Vaticano II trouxe mais fortemente à consciência do fiel a dialética entre mistério e história. “A história é propriamente o campo da atuação dos seres humanos, aberto à presença do mistério de Deus que se revela no tempo, no espaço e na cultura” (19). Consolidam-se a hermenêutica teológica, a consciência do pluralismo teológico num contexto de existência de teologias contextuais. Termina a Cristandade e o monopólio teológico ocidental europeu (20).

A recepção do Vaticano II na Igreja do Brasil

Prof. Dr. José Oscar Beozzo

Introdução

O Vaticano II foi o primeiro Concílio realmente universal na composição dos seus membros vindos em representação de igrejas dos cinco continentes.

Em todo acontecimento eclesial, mormente naqueles, como os Concílios, destinados a marcar em profundidade a vida da igreja, três elementos devem ser tomados em consideração: o evento em si, os documentos nele aprovados e finalmente a sua recepção.

A recepção é o elemento de verificação mais importante, pois revela quais dimensões foram capazes de passar para o quotidiano da igreja, que outras deixaram de ser assimiladas e até mesmo as que foram seletivamente abandonadas.

A recepção é definida por Congar como “o processo pelo qual um corpo torna sua uma verdade, uma determinação que não se deu a si mesmo, reconhecendo que a medida promulgada é uma regra que convém à sua vida. A recepção é mais do que obediência. É uma contribuição própria de consentimento, eventualmente de juízo, na qual se expressa a vida de um corpo que exerce suas capacidades espirituais”.

19 . P. Lopes Gonçalves, op. cit., p. 79.20 . P. Lopes Gonçalves, op. cit., p. 70.

17

Page 18: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

Ao nos debruçarmos sobre a recepção do Vaticano II, devemos atentar para um dado, tranquilamente aceito pela historiografia: tratou-se de um Concílio dominado por bispos e teólogos da Europa, de modo particular, da Europa Central21.

Estudar, pois, a sua recepção no Brasil que é parte de um processo mais geral da recepção do Concílio pela Igreja na América Latina, significa interrogar-se sobre a maneira como áreas relativamente periféricas para a gestação e produção do Concílio aprestaram-se para a sua recepção e a realizaram à sua maneira.

O tema é tanto mais interessante, quanto foram justamente essas áreas relativamente marginais durante a gesta conciliar que se tornaram das mais relevantes para sua recepção, durante o período pós- conciliar.

Para apresentar o panorama desta recepção na igreja do Brasil, vamos nos restringir a um instrumento de caráter colegial que a orientou, o “Plano de Pastoral de Conjunto”, o PPC, aprovado em 1965, ao apagar das luzes do Concílio.

O PPC poderia, com proveito, ser comparado à recepção que se deu para toda a América Latina, por intermédio da II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano realizada em Medellín, na Colômbia, em 1968 (24/08 a 06/09).

Nesse caso, encontrar-nos-íamos diante de duas formas diferentes de recepção:

- a primeira, a de uma Igreja local, porém de dimensões continentais, foi preparada ao longo dos últimos meses do Concílio e teve seus resultados vazados sob a forma de diretrizes para a ação eclesial;

- a segunda, envolvendo Igrejas da América do Norte (México), América do Sul e do Caribe, num processo mais dilatado de praticamente três anos, teve suas conclusões exaradas em documentos semelhantes aos do Concílio, embora com uma metodologia distinta.

21 Um indicador material desta hegemonia européia encontra-se no quadro das intervenções na Aula Conciliar. Estas totalizaram 2.234 ao longo das quatro sessões: 7,79% (163) foram devidas a padres conciliares da África; 9,53% (213) a padres da América do Norte; 0,08% (19) a padres da América Central e do Caribe; 8,90% (199) a padres da América do Sul, sendo 2,86% (64), devidas ao Brasil; 13,16% (294) a padres da Ásia; 0,07% (8), a padres da Oceania e 59,54% (1.330) a padres da Europa. Se subtrairmos dos vários continentes, o grande número de bispos europeus ordinários do lugar, principalmente em regiões missionárias, e agregarmos suas intervenções às dos bispos do continente europeu, esta preponderância se tornaria ainda mais evidente. Para a tabela das intervenções por países e continentes, cf. G. CAPRILE, Il Concilio Vaticano II (vol. V. Roma 1968) 556-557. 4 CNBB, Plano de Pastoral de Conjunto - 1966-1970 (Rio de Janeiro 1966). Usaremos da abreviação PPC, para citar o Plano de Pastoral de Conjunto de 1965. 5 CELAM, Conclusões de Medellín. A Igreja na atual transformação da América Latina à luz do Concílio (Petrópolis, 1971).

18

Page 19: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

Todas as duas estavam animadas, porém, por uma preocupação nitidamente pastoral, mas que acabavam tendo, mesmo não sendo a intenção, evidentes repercussões no campo teológico.

A recepção do Vaticano II (1962-1965) na Igreja do Brasil, um país de dimensões continentais, com 182 circunscrições eclesiásticas, com um território bem maior do que o da Europa, se forem excluídas as terras pertencentes à Rússia europeia, colocava problemas particularmente difíceis.

Tratava-se de um país que, menos de um século antes, por ocasião do Vaticano I (1869- 70), contava com 9 milhões de habitantes, 15% dos quais ainda escravos, e com apenas doze dioceses, uma das quais vacante.

Sete bispos brasileiros foram a Roma para o anterior concílio, o Vaticano I, o primeiro em que a Igreja brasileira tomava parte. Ficaram praticamente perdidos entre os mais de 750 padres conciliares ali presentes, pois nunca nos três séculos anteriores, algum bispo do Brasil havia estado em Roma, obrigados que foram pelo Padroado régio a tratarem de todos os assuntos eclesiásticos com o Rei de Portugal e depois com o Imperador do Brasil, pelas mãos dos quais haviam sido elevados ao episcopado.

Em 1965, porém, a população do país subira a 80,7 milhões de habitantes e o número de circunscrições eclesiásticas havia passado de 12 para 182. Em que pesem os esforços desenvolvidos pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), nos seus dez primeiros anos (1952-1961), havia sido muito difícil, até então, articular numa rede estreita de mútuas relações todas estas circunscrições, em função das distâncias entre si e de suas raízes históricas muito distintas:

Assim, à véspera do Concílio Vaticano II, o outrora minúsculo episcopado brasileiro, à época do Vaticano I, havia se tornado o terceiro mais numeroso do mundo, depois do italiano e do norte-americano.

Enquanto o episcopado mundial de cerca de mil prelados no Vaticano I, pouco mais que dobrara por ocasião do Vaticano II, o do Brasil havia sido multiplicado por dezessete. Sua população católica passou a superar a de todos demais países de antiga ou nova cristianização.

Colocar, pois, a questão da recepção do Vaticano II significa interrogar-se sobre as condições concretas, para implementá-la. Entre as condições que facilitaram a recepção, algumas antecederam o Concílio, outras foram forjadas durante o evento conciliar e outras, finalmente, no imediato pós-concílio.

1. Condições prévias ao concílio, para sua boa recepção

Entre as condições que precederam o Concílio e facilitaram, posteriormente, a sua recepção, quatro merecem especial destaque:

19

Page 20: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

a) A existência de movimentos apostólicos leigos afinados com os rumos que tomariam posteriormente as reformas conciliares, notadamente o movimento do apostolado dos leigos e leigas, concretizado sobretudo nos diversos ramos juvenis da Ação Católica (Juventude Agrária Católica, a JAC; Juventude Estudantil Católica, a JEC; Juventude Independente Católica, a JIC; Juventude Operária Católica, a JOC e Juventude Universitária Católica, a JUC), o movimento litúrgico e o movimento bíblico.

b) A criação de uma estrutura de articulação e animação da vida da Igreja no seu nível mais alto, concretizada na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), criada em 1952 e na Conferência dos Religiosos/as do Brasil (CRB), fundada em 1954, reunindo os superiores/as maiores e os provinciais e as provinciais das ordens e congregações religiosas masculinas e femininas estabelecidas no Brasil.

A CNBB foi ideia do até então Assistente Geral da Ação Católica Brasileira (ACB), o Pe. Helder Pessoa Camara. Em 1950, durante o I Congresso Internacional de Leigos, partilhou-a com o substituto da Secretária de Estado, Giovanni Baptista Montini que a defendeu junto a Pio XII. A CNBB veio inteiramente calcada na experiência dos leigos, com suas equipes nacionais e seus planos anuais de trabalho. Por muitos anos, a CNBB ocupou os espaços da própria Ação Católica, na Rua México, 10, no Rio de Janeiro (RJ) e valeu-se sempre da assessoria e apoio secretarial destes mesmos leigos e leigas.

c) O surgimento de uma estrutura de articulação continental que ampliava os horizontes da Igreja do Brasil e a colocava na trama complexa da realidade latino-americana, a partir da criação do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM), por ocasião do XXXIV Congresso Eucarístico Internacional do Rio de Janeiro e da I Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, em julho de 1958.

d) A elaboração do Plano de Emergência (PE), em 1962, dez anos depois da criação da CNBB.

O planejamento pastoral foi um pedido de João XXIII a toda a América Latina, em discurso ao CELAM, em novembro de 1958, por ocasião de sua IIIa. Assembleia Geral10. Depois de repassar as dificuldades da Igreja no continente, cujos problemas ocupavam também o coração do Papa, João XXIII convidava os pastores a empregarem meios especiais para enfrentá-los.

A recomendação do Papa não teve consequências práticas e, por isto, o plano de pastoral de conjunto solicitado em 1958 foi peremptoriamente urgido pelo mesmo Papa, a 8 de novembro de 1961. João XXIII enviou Carta Apostólica ao episcopado Latino-Americano depois que, em meados de 1961, a revolução cubana de 1959, declarou seu caráter socialista, entrando em rota de colisão com setores importantes da Igreja local, de modo particular, com os bispos, o clero e a classe média que frequentava os colégios de religiosos e religiosas.

20

Page 21: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

Cuba, país católico e ao mesmo tempo atravessado por profundas e injustas desigualdades sociais não era muito diferente do restante da América Latina, onde a inquietação social colocara muitos deles na orla de uma revolução social.

A passagem de Cuba para o campo socialista, em tempos de acirrada guerra fria, demonstrava a vulnerabilidade política, social e religiosa do continente, fazendo soar o alarme nos Estados Unidos. Este lançou em 1961 sua campanha de apoio à reforma agrária e a outras reformas sociais ao sul do Rio Grande, juntamente com um arremedo de Plano Marshall, a Aliança para o Progresso.

O alarme soou igualmente na Santa Sé que urgiu de toda a Igreja, de modo particular na Europa, Canadá, Estados Unidos, apoio apostólico e financeiro para a Igreja da América Latina. A criação da Adveniat na Alemanha é fruto desta conjuntura eclesial, assim como a de outros organismos de solidariedade, seja no plano dos recursos materiais, seja no dos recursos humanos, tais como o Seminário de Verona, o Centro do Episcopado Italiano para a América latina (CEIAL) na Itália; o Colégio para a América Latina de Louvain, na Bélgica; o Comité Episcopal France Amérique Latine (CEFAL), na França, a Comissão Episcopal Canadense da América Latina (C.E.C.A.L), no Canadá, o Secretariado para a América Latina no seio da Conferência Episcopal norte-americana. Na Irlanda, o Papa pediu aos bispos que à Sociedade de São Columbano, responsável pelo Seminário Nacional de Maynooth, fossem dados “os poderes e as faculdades para recrutar, enviar à América Latina e ajudar de todas as formas os sacerdotes devidamente autorizados, a um tempo pelo seu próprio bispo e pelo bispo da diocese para onde vão”.

Apelos semelhantes foram lançados a outros países, de modo particular à Espanha. Esta já contava, naquela ocasião, com 18.000 religiosos, religiosas e irmãos leigos, além de 650 padres seculares e 50 missionários leigos trabalhando nos vários países da América Latina. Em 1963, João XXIII pede aos bispos espanhóis que enviem outros 1.500 padres seculares, ao longo de três anos.

Às diferentes igrejas locais da América Latina e do Caribe, João XXIII pediu um esforço redobrado de mobilização e articulação dos seus recursos materiais e humanos em torno a um plano de pastoral.

No Brasil, o Plano de “Emergência” foi preparado às pressas como o próprio nome o indica e aprovado durante a V Assembleia Ordinária da CNBB de 2 a 5 de abril de 1962, já às vésperas do Concílio.

Ao mesmo tempo em que contemplava o princípio do planejamento pastoral, preparava as estruturas da própria CNBB e da Igreja do Brasil para aplicá-lo. A principal decisão foi a de descentralizar a sua implementação, criando-se os sete primeiros regionais da CNBB e solicitando-se de cada diocese o estabelecimento de um secretariado do PE, para servir de elo de ligação com as estruturas nacionais e de centro propulsor das diretrizes do plano a nível local.

21

Page 22: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

2. Condições para a recepção ativadas durante o concílio

Ao lado do dinamismo da CNBB e do seu secretário geral, Helder Camara, algumas condições colaboraram sobremaneira para a atuação e o dinamismo do episcopado brasileiro no Concílio e para o encaminhamento de sua recepção. Destacamos três dentre elas:

a) o fato de os bispos brasileiros morarem juntos num local espaçoso e privilegiado, o melhor de todos em Roma, a casa da Ação Católica Italiana, a Domus Mariae, situada na Via Aurélia, nº 480, não longe da Basílica de São Pedro e ao lado do Colégio Pio Brasileiro, onde estudavam uma centena de teólogos e filósofos brasileiros, alunos da Pontifícia Universidade Gregoriana. A Domus Mariae, construída ao fundo de um grande terreno, era um espaço tranquilo, rodeado de árvores e possuía um grande salão propício para conferências e sessões plenárias de um episcopado numeroso como o brasileiro. Oferecia, ao mesmo tempo, um grande número de salas que permitiam o trabalho em pequenos grupos, mas amplas o suficiente, para abrigarem os participantes de todo um regional da CNBB.

b) O deliberado programa de reciclagem do episcopado, tateante no primeiro período conciliar e bem elaborado nos seguintes. Uma das maiores dificuldades para bispos chegando depois de anos mergulhados em trabalhos pastorais e administrativos, era a de acompanhar o debate teológico e o alcance das diferentes propostas de texto defendidas pelas várias correntes teológicas e ideológicas, que se confrontavam na aula conciliar, nos jornais e nos folhetos, artigos e livros que eram entregues aos padres conciliares. Para obviar a esta dificuldade, começaram a ser convidados teólogos, bispos e cardeais mais em vista no Concílio, para falarem ao episcopado brasileiro. Foram dez conferências na primeira sessão do Concílio; vinte e cinco, na segunda; vinte e cinco na terceira, e trinta na quarta e última sessão. As conferências seguidas de debates e estudos facilitavam a preparação, discussão e aprovação de posições coletivas do episcopado brasileiro nas suas intervenções e votações. Noventa ao todo, estas conferências foram assim avaliadas por um dos padres conciliares brasileiros, Dom Francisco Austregésilo de Mesquita Filho, bispo de Afogados da Ingazeira, PE: “O Concílio valeu-me como uma universidade. Foi a maior reciclagem que pude fazer na vida”.

Outro padre conciliar, Dom Agnelo Rossi, então arcebispo de Ribeirão Preto, SP falando das conferências e do próprio Concílio, escrevia aos seus diocesanos: “Fomos alunos da melhor e mais importante Universidade do mundo. Voltamos aos bancos escolares, tendo como companheiros e mestres, homens de todas as raças e de todos os povos...”.

c) As duas assembleias da CNBB realizadas, uma, durante a terceira sessão conciliar em 1964, para mudança dos estatutos e adequação antecipada das estruturas da entidade, para a aplicação do concílio e eleição da nova diretoria; a outra, extraordinária,

22

Page 23: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

ao longo dos três meses da última sessão, de setembro a novembro de 1965, dedicada à discussão e aprovação do Plano de Pastoral de Conjunto (PPC) destinado a traduzir na prática, em face da realidade brasileira, as decisões do Concílio.

Teste importante para a recepção geral do Concílio foi o da esfera da liturgia. O esquema discutido na primeira sessão conciliar (outubro e novembro de 1962) foi emendado, votado e finalmente promulgado ao final da segunda sessão (04-12-1963), para entrar em vigor em 1964. A conferência deu um mandato inequívoco, com mais de 90% dos votos, a um de seus membros, Dom Clemente Isnard OSB, para implementar a reforma litúrgica.

A singular conjunção entre um Plano de Pastoral (PE) apenas aprovado e, a necessidade de revê-lo ou mesmo de elaborar outro completamente diferente, colocou a questão da recepção do concílio e de sua aplicação pastoral ao Brasil, na agenda da CNBB e de seu secretário geral, desde as primeiras semanas do Concílio.

Data do final da primeira sessão um lúcido documento redigido por Dom Helder Camara e enviado a outros irmãos do episcopado ao redor do mundo. Foi imediatamente traduzido ao inglês e ao francês. Trata-se de documento todo ele voltado para as questões do pós-concílio e de sua recepção cujo original em português escrito na primeira inter-sessão e datado de 23 de janeiro de 1963, com anotações de próprio punho de Dom Helder, encontra-se nos arquivos da CNBB, em Brasília21. Pe. Luiz Carlos Luz Marques dedicou cuidadosa análise a este documento.

A proposta de recepção que começou a ser discutida desde o final da primeira sessão conciliar, ganhou corpo com a convocação da VI Assembleia Geral da CNBB, de 26 de setembro a 11 de novembro de 1964, para mudança de seus estatutos e eleições. Neste momento, a CNBB já trabalhava com um pé no Concílio e com outro no pós-concílio, voltando-se para sua recepção e implementação na vida da Igreja do Brasil.

Este direcionamento torna-se ainda mais decisivo em 1965, durante a última sessão conciliar quando é convocada a VII Assembleia Geral Extraordinária da CNBB que se estende pelos três meses finais do Concílio. Nestes meses, o episcopado brasileiro encontra-se inteiramente empenhado na discussão e aprovação do Plano de Pastoral de Conjunto, o PPC.

Pode-se quase falar de dois concílios desenrolando-se paralelamente: um universal, na parte da manhã, na Aula Conciliar e outro particular da igreja do Brasil, na parte da tarde e de noite, nos locais da Domus Mariae.

Ainda que paralelos, encontram-se eles em íntima correlação e sinergia entre si. Ousamos dizer que, com o ritmo truncado da última sessão conciliar, ocupada em boa parte por votações e, em determinados momentos, entrando em recesso, sem congregações gerais23, a fim de dar às comissões conciliares tempo para ultimar o

23

Page 24: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

trabalho de triagem e incorporação dos modos e redação dos esquemas para novas votações, o concílio local da Igreja brasileira, ganhou mais espaço e preponderância.

3. A elaboração do plano de pastoral de conjunto, PPC: sua significação e singularidades

O plano, para cuja elaboração o novo presidente da CNBB, Dom Agnelo Rossi deu o sinal verde, no curso da terceira sessão conciliar, implicou a cooperação estreita entre colaboradores permanentes da CNBB, representados de modo particular pelo subsecretário geral, o Pe. Raimundo Caramuru Barros 24, encarregado mor da elaboração do Plano e pessoas vindas da esfera pública na área do planejamento governamental, de maneira especial o técnico da Fundação Getúlio Vargas e do Departamento de Planejamento Urbano de São Paulo, FranciscoWhitaker, um ex dirigente nacional da JUC e, por isto mesmo, com fácil trânsito nas áreas de Igreja.

A primeira e quiçá a mais importante singularidade do PPC é a de envolver, desde logo, certa leitura do Vaticano II, privilegiando determinados documentos, enfatizando algumas temáticas caras à experiência pastoral da Igreja do Brasil e acrescentando dimensões pouco trabalhadas nos documentos do Concílio, mas cruciais para igreja local, como a da catequese.

Sua significação maior foi a de permitir à Igreja do Brasil, sair do Concílio, com um plano de trabalho para a recepção e implantação do espírito e das diretivas do Vaticano II, já aprovados pelo conjunto dos Bispos. Seria impensável, uma vez terminado o Concílio, com as distâncias do país e o isolamento de muitas das regiões em particular da Amazônia, convocar de novo os bispos todos do Brasil, por um período suficientemente longo, para permitir a preparação de tal plano de pastoral.

O PPC propunha-se como objetivo geral, “criar meios e condições para que a Igreja do Brasil se ajuste, o mais rápido e plenamente possível, à imagem de Igreja do Vaticano II”.

O Plano está dividido em três partes:

I ª - Introdução Geral do Plano.

II ª - Diretrizes fundamentais da Ação Pastoral

III ª - Plano nacional das atividades da CNBB

A primeira parte corresponde à Introdução geral do Plano, e apresenta dados gerais sobre a CNBB, sua história e suas finalidades, assim como o objetivo geral deste Plano, sua ligação com o Plano de Emergência, e os princípios básicos que orientaram a formulação das diretrizes.

A segunda parte corresponde ao pano de fundo de toda formulação do Plano e de seu desenvolvimento. A partir dos objetivos de ação da Igreja, traça as diretrizes que

24

Page 25: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

formulam as opções feitas e fundamentam as decisões a serem tomadas no seu detalhamento e desdobramento; estabelece igualmente os princípios gerais de aplicação destas diretrizes aos planos nacional, regionais e diocesanos.

A terceira parte contém o Plano nacional de atividades da CNBB, e define os objetivos do trabalho, a sistemática adotada, os responsáveis pela execução, as tarefas, datas, prazos”.

O PPC estrutura suas propostas de implantação da reforma conciliar em torno a seis linhas pastorais que tentam reduzir a uma síntese operativa o conjunto das constituições, decretos e declarações do Vaticano II:

“Linha de trabalho nº 1: Promover uma sempre mais plena unidade visível no seio da Igreja Católica.

Linha de trabalho n º 2: Promover a ação missionária

Linha de trabalho n º 3: Promover a ação catequética, o aprofundamento doutrinal e a reflexão teológica.

Linha de trabalho n º 4: Promover a ação litúrgica.

Linha de trabalho n º 5: Promover a ação ecumênica.

Linha de trabalho n º 6: Promover a melhor inserção do povo de Deus como fermento na construção de um mundo segundo os desígnios de Deus”.

Algumas destas linhas estão diretamente coladas a um ou mais dentre documentos conciliares: a linha 1 correspondendo à Constituição Dogmática Lumen Gentium sobre a Igreja, ao decreto Apostolicam Actuositatem sobre o apostolado dos leigos, ao decreto Perfectae Caritatis sobre a vida religiosa consagrada e ao Decreto Christus Dominus sobre o governo das dioceses, conferências episcopais e conselhos de presbíteros e de pastoral; a dois, ao Decreto Ad Gentes, sobre a atividade missionária da Igreja e igualmente ao decreto Perfectae Caritatis sobre a reforma da vida religiosa e importância do seu empenho missionário; a três, à Constituição Dogmática Dei Verbum, sobre a Palavra de Deus; a quatro, à Constituição da Liturgia Sacrosanctum Concilium; a cinco, ao decreto sobre o Ecumenismo Unitatis Redintegratio; a seis, à Constituição Pastoral Gaudium et Spes sobre a Igreja no mundo de hoje.

Alguns dos documentos conciliares, que não estavam ainda promulgados nos dias da aprovação do PPC, ficaram, de certo modo, na sombra, como a declaração Dignitatis Humanae sobre a Liberdade Religiosa, promulgada somente na Sessão Pública de 7 de dezembro de 1965. Outros não recebem também uma menção direta no PPC, talvez por sua pequena incidência na realidade eclesial brasileira, como o Decreto Orientalium Ecclesiarum, voltado para as Igrejas Católicas Orientais.

25

Page 26: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

Concluindo, a CNBB aponta a razão e a expectativa presentes no projeto: “Este Plano visa, pois, ser o esforço coordenado e conjunto para que a Igreja no Brasil possa realizar, o mais plenamente possível, o que Deus dela espera nos próximos cinco anos”.

Outra singularidade do Plano é investir, para a sua aplicação, na nova estrutura mais descentralizada da CNBB que passa dos sete regionais até então existentes, para treze. Ao mesmo tempo em que se regionalizava, a CNBB potenciava seus instrumentos de ação em âmbito nacional, criando quatro novos secretariados (Ministério Sacerdotal Pastoral Extraordinária, Apostolado das Religiosas e Pastoral das Prelazias)”.

Com o secretariado do Apostolado das Religiosas, a CNBB procurava atrair e articular o verdadeiro exército de religiosas, cerca de 37.747, três vezes mais numerosas que a soma de todos os sacerdotes religiosos (7.515) e de todo o clero secular (4.628)39. A experiência de os bispos enquadrarem a partir da CNBB a vida religiosa feminina, no intuito de integrá-la no esforço pastoral das dioceses, em que pese seu sucesso, revelou-se inadequada. Na década de 70, este secretariado foi extinto, voltando a CNBB a articular-se com a CRB (Conferência dos Religiosos do Brasil), para todos os esforços e iniciativas comuns entre a conferência dos bispos e a conferência dos religiosos.

Outro secretariado estratégico foi o das Prelazias visando tirar do secular isolamento eclesial a região amazônica40. No passado, suas duas dioceses, a de São Luiz do Maranhão (1677) e a de Belém do Pará (1719), nunca foram sufragâneas da Arquidiocese da Bahia, mas sim diretamente de Lisboa. A região não era também regida pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1707, a legislação eclesiástica em vigor para todo o Brasil, até a introdução da nova legislação do Concílio Plenário Latino-Americano (Roma, 1899), a 1o . de janeiro de 1900. A região amazônica dependia das Leis e Regimentos de Missão, a típica legislação das áreas indígenas, ou ainda das Constituições do Arcebispado de Lisboa ao qual estavam subordinadas as dioceses de São Luiz e de Belém.

O Secretariado para a Pastoral Extraordinária tentava englobar uma série de novos desafios, como o da pastoral das grandes cidades, o dos meios de comunicação social, dos universitários e intelectuais e que não encontravam guarida nos demais secretariados.

4. No pós-concílio, a implementação das reformas

Alguns aspectos do PPC tiveram uma extensa e duradoura influência na vida da Igreja do Brasil e na recepção do Vaticano II:

a. O Plano lançou uma série de levantamentos e pesquisas de caráter social, religioso e histórico acerca dos principais aspectos da realidade brasileira e da inserção e atuação da Igreja nesta mesma realidade. As pesquisas, num total de dezenove, estavam divididas em três blocos:

26

Page 27: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

- um primeiro, contemplava as pesquisas, em número de nove, à base de entrevistas de campo em áreas escolhidas por amostragem: 1. Clero, religiosas e leigos; 2. Estrutura da Igreja; 3. Motivação religiosa e comportamento moral; 4. Categorias mentais do povo e comunicação da Palavra de Deus; 5. Situação atual do anúncio missionário; 6. Situação atual da pastoral litúrgica; 7. Situação atual da catequese; 8. Igreja e Família e 9. Igreja e Educação42;

- o segundo, as pesquisas, em número de quatro, à base de documentos existentes e da observação direta: 1. A Igreja e a Opinião Pública; 2. Bens Eclesiásticos; 3. Migrações e estações de embarque e desembarque; 4. Locais de turismo;

- e o terceiro, as pesquisas, em número de seis, à base de estudos interpretativos de dados e documentos já existentes: 1. História Religiosa; 2. Ciências Sagradas; 3. Expressões Religiosas; 4. Igreja e Ecumenismo; 5. Igreja e Desenvolvimento; 6. Elementos socioeconômico-culturais.

Buscou-se, por primeira vez, fundamentar as decisões pastorais num melhor conhecimento da realidade, recorrendo-se amplamente às contribuições das ciências sociais. As pesquisas foram acompanhadas de um programa de reflexão e elaboração teológica pastoral: “Objetivo deste programa é dar à ação da Igreja um fundamento sempre mais sólido à luz da reflexão teológico pastoral”.

Foi desencadeado, assim, um rico processo de interação entre ciências sociais, teologia e pastoral que inspirou posteriormente o método e muitas das melhores intuições da teologia da libertação durante os anos 70 e 80.

b) O Plano dedicou especial atenção à formação e treinamento de bispos, sacerdotes, religiosas e leigos para implementar o PPC. Vários institutos nacionais de formação, respaldados pela CNBB foram fundados: o Instituto Superior de Pastoral Litúrgica (ISPAL), para a Liturgia, no Rio de Janeiro, RJ; o Instituto Superior de Pastoral Catequética (ISPAC), para a Catequese, em Salvador, BA; o Instituto Superior de Pastoral Vocacional (ISPAV), no Rio de Janeiro, RJ; o Instituto Nacional de Apostolado dos Leigos (INAL), para o apostolado dos leigos. Mais tarde, estes institutos, com exceção do ISPAC da Bahia fundiram-se no Instituto Nacional de Pastoral (INP), que perdeu, entretanto, o dinamismo inicial de centro de formação, convertendo-se num laboratório de reflexão teológica e pastoral a serviço da CNBB. Num outro nível, muitas dioceses fundaram institutos teológico-pastorais para educar e treinar seus agentes de pastoral ou promoveram pelo menos uma intensa reciclagem das pessoas envolvidas nas atividades da igreja: catequistas, equipes de liturgia, responsáveis pelos cursos de preparação aos sacramentos, mormente batismo e matrimônio. O florescimento de uma teologia local aconteceu não nos seminários - que passaram por profunda crise de identidade e de projeto -, sendo a maioria deles fechados ou nas faculdades de teologia, mas no processo de reflexão teológica que acompanhou os esforços de renovação eclesial. De modo particular, o surgimento das comunidades eclesiais de base (CEBs)

27

Page 28: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

imersas em muitos conflitos de ordem social ou política e das novas formas de intervenção apostólica, como o das muitas e variadas pastorais (pastoral da terra, pastoral indigenista, pastoral operária, pastoral da juventude, pastoral universitária, pastoral da mulher marginalizada, pastoral da criança ou dos meninos e meninas de rua e assim por diante), tornaram-se um constante estímulo e desafio para uma reflexão teológica colada à realidade e inovadora, no seu método e nas suas temáticas.

c) A resolução mais importante do PPC foi a de propor um novo modelo de Igreja que facilitasse a plena participação de todos os batizados na base da sociedade e da Igreja. A porta de entrada para a tematização das CEBs no PPC é a dinamização das paróquias, mas a proposta ganha logo na prática autonomia de voo e configuração própria. Ao tratar da comunidade de Igreja, o PPC constata a dificuldade de as paróquias se converterem em comunidades vivas, concluindo: “Faz-se urgente uma descentralização da paróquia, não necessariamente no sentido de criar novas paróquias jurídicas, mas de suscitar e dinamizar, dentro do território paroquial, comunidades de base (como as capelas rurais), onde os cristãos não sejam pessoas anônimas que apenas buscam um serviço ou cumprem uma obrigação, mas sintam-se acolhidos e responsáveis, e delas façam parte integrante, em comunhão de vida com Cristo e com todos os seus irmãos”. A implementação das CEBs, como a forma normal de ser Igreja, foi a meu ver, a decisão de fato crucial para o futuro da Igreja do Brasil. As CEBs tornaram-se o lugar e a ocasião para o florescimento de novos ministérios leigos e de lideranças eclesiais populares. Facilitaram igualmente a participação de todos os batizados como integrantes do único “povo de Deus” na vida da Igreja e em muitas de suas esferas de decisão. As CEBs moldaram uma forma de vivência eclesial que facilitou a vinculação entre a fé e a vida quotidiana; a celebração litúrgica e o compromisso social e político. As CEBs abriram igualmente caminho para uma revolução silenciosa no sentido de se superar a exclusão das mulheres dentro de estruturas eclesiásticas tradicionalmente dominadas por homens e nitidamente marcadas pela sua marginalização. Dentro das CEBs não havia nenhum obstáculo mais estrutural para a participação e liderança das mulheres em todos os aspectos da vida das comunidades.

d) Hoje em dia, segundo recente levantamento promovido pela CNBB, cerca de 85% das celebrações dominicais na Igreja do Brasil são presididas não por ministros ordenados mas por leigos dirigentes das comunidades e, na maior parte delas, por mulheres. Há, portanto, uma clara contradição entre certo tipo de teologia e normas disciplinares e a prática quotidiana das comunidades que os bispos do Brasil não conseguem, ou melhor dizendo, são impedidos por Roma, de resolver. O caminho normal, já aventado no Concílio por alguns bispos do Brasil, notadamente por Dom Pedro Paulo Koop53, bispo diocesano de Lins, SP e por Dom Austregésilo de Mesquita Filho54, bispo de Afogados da Ingazeira, PE, e tantas vezes reproposto de maneira majoritária pelo episcopado, desde a Assembleia da CNBB de 1969, seria o de reconhecer estes ministérios leigos, de um lado e, de outro, ordenar estes ministros como

28

Page 29: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

presbíteros de suas comunidades de modo a assegurar às mesmas o seu direito à celebração não só da Palavra de Deus, mas também da Eucaristia e do sacramento da reconciliação.

e) A leitura quotidiana da Bíblia, seja pessoalmente seja nos círculos ou grupos bíblicos, tem alimentado a fé, a vida e a espiritualidade dos fiéis, particularmente nas comunidades de base. A frequentação da Palavra de Deus nos meios populares colocou as premissas para um encontro ecumênico entre o povo pobre das comunidades de base católicas e participantes das igrejas protestantes. O primeiro passo para um contato massivo com a Bíblia veio de uma iniciativa ecumênica tomada pela Comunidade de Taizé da França, à raiz da amizade que se estabeleceu durante o Concílio entre os monges de Taizé e bispos do Brasil. Um grupo de Taizé veio ao Brasil para abrir uma comunidade em Olinda, na Arquidiocese de Recife. Acolhido por Dom Helder Camara, ficou, inicialmente, alojado no mosteiro de São Bento daquela cidade. Logo após o término do Concílio, a comunidade de Taizé doou um milhão de exemplares do Novo Testamento, numa versão popular, e que foi praticamente distribuído entre os membros das incipientes comunidades de base espalhadas por todo o país56. A ida da Bíblia para as mãos do povo provocou um esforço exegético sem precedentes na história do Brasil e da América Latina, todo ele voltado para uma leitura popular da Bíblia, ancorada na articulação entre fé e Bíblia e na busca de uma leitura comunitária, orante e ao mesmo tempo militante e comprometida da Palavra de Deus. A Bíblia tornou-se companheira fiel da caminhada das CEBs e suscitou iniciativas ecumênicas fecundas, como o Centro Ecumênico Bíblico (CEBI).

f) Para o nascimento e difusão das CEBs foi crucial o papel desempenhado pelas religiosas. Respondendo, com audácia e generosidade ao apelo do episcopado, um grande número dentre elas, vindas de diferentes ordens e congregações abandonaram o conforto de seus colégios voltados para jovens da classe média ou da elite e foram viver entre os mais pobres nas favelas, na periferia das grandes cidades ou em áreas social e pastoralmente desassistidas da zona rural.

g) A anterior experiência da Igreja do Brasil no Movimento de Educação de Base (MEB), inspirado nas teorias pedagógicas de Paulo Freire e a capacitação destas religiosas adquirida em seus estudos e na sua prática educacional converteram-se lentamente numa provada prática metodológica de participação criativa e responsável e numa verdadeira escola de cidadania. As CEBS foram o berço de novas lideranças populares educadas no contato com a Bíblia, com a realidade, com a vida da comunidade e com o compromisso social. Das CEBs, brotaram a maioria dos movimentos populares brasileiros da década de 70 e algumas das melhores lideranças das oposições sindicais. Estas renovaram profundamente a vida e a prática dos sindicatos operários urbanos ou forneceram os primeiros quadros para a criação dos sindicatos de trabalhadores rurais62. O Partido dos Trabalhadores (PT) criado em 1979, encontra suas raízes, tanto nas

29

Page 30: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

lideranças saídas do movimento das oposições sindicais quanto nas CEBs e pastorais sociais da Igreja Católica.

h) Numa de suas últimas circulares, ao final do Vaticano II, escrevia Dom Helder: “A querida CNBB, dentre todas as conferências episcopais, é a que está mais avançada para o após-concílio. Dispõe de um plano de pastoral de conjunto, calcado nas constituições e nos decretos conciliares, desdobrado em cinco anos e já contando com os recursos financeiros (recebidos da hierarquia alemã) e de excepcional equipe humana...”. Neste comentário, o ex-secretário geral da CNBB indicava um dos elementos, sem o qual, seria impossível compreender o dinamismo pós-conciliar da Igreja do Brasil e, de modo particular, a implementação do PPC. Sem os recursos propiciados por Adveniat, seria impensável a realização das dezenove custosas pesquisas levadas adiante pelo CERIS; a manutenção dos novos centros de formação e treinamento que forneceram inicialmente bolsas integrais para os participantes de seus cursos vindos de todo o país e o sustento, mesmo com salários para lá de modestos, da equipe de assessores e assessoras que passaram a trabalhar em tempo integral na CNBB e a percorrer todo o país. Estas equipes propunham-se a ajudar as dioceses na preparação de seus quadros para a renovação conciliar nas bases da Igreja e na elaboração dos próprios planos diocesanos de pastoral, com a criação dos respectivos secretariados encarregados de sua implementação.

Finalizamos nosso estudo com a apreciação sobre o Plano de Pastoral de Conjunto por parte do Pe. Gervásio Queiroga, um estudioso da vida da Igreja no Brasil e das repercussões do Concílio na sua pastoral: “o PPC, fruto de um diálogo continuado e proveitoso entre teologia pastoral e planejamento” possibilitou à Igreja no Brasil a aquisição de “um alto grau de rentabilidade e eficiência, como também elevado nível organizacional, sem prejuízo da dimensão teológica aprofundada”.

Conclusão

Nesta revisitação histórica das relações entre o Concílio Vaticano II e a Igreja do Brasil, o enfoque principal repousou no processo de recepção do evento conciliar, ressaltando-se a sua originalidade no caso brasileiro.

Deve-se notar, entretanto, que não se pode isolar a recepção brasileira da recepção latino-americana, uma impulsionada pela CNBB e outra pelo CELAM. Aconteceu, de modo particular durante o Concílio e no imediato pós-concilio, uma intensa e profunda interação entre as diversas igrejas do continente, sendo este um dos frutos mais relevantes do processo conciliar. Seu resultado mais visível foi a criação de uma nova identidade destas igrejas, levando-se a falar daí para frente, com muita propriedade, de uma pastoral, de uma teologia e de um rosto eclesial Latino-Americano e caribenho.

O caminho escolhido para cernir o nó das relações entre o Concílio e a igreja do Brasil, colocou em evidência a vantagem de se escolher eventos e momentos de alta

30

Page 31: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

densidade colegial, como a elaboração do PPC, neste sentido, acontecimento correlato à própria experiência de sinodalidade do próprio Concílio.

De outro lado, esta escolha trouxe consigo limitações, sendo talvez a principal, que procuramos entretanto, minorar ao longo do estudo, a de deixar um tanto na sombra o quotidiano da vida eclesial, lugar onde se pode, de fato, verificar o grau e a profundidade da recepção concreta do Concílio.

Mas é precisamente examinando o dinamismo das CEBs, das pastorais sociais, dos movimentos leigos, da reflexão bíblico-teológica latino-americana que se pode dizer que o Concílio Vaticano II encontrou no Brasil e na América Latina e Caribe, um campo privilegiado de sua recepção e de novos e singulares desdobramentos pastorais e teológicos.

a. Pode o Vaticano II ser bússola para a Igreja do Brasil no séc. XXI?

Gilles Routhier

Em sua carta apostólica Novo millenio ineunte, João Paulo II, no final de uma longa reflexão sobre os desafios da Igreja, apresenta o concílio Vaticano II como uma bússola fiável para a marcha da Igreja no curso do século que se aproximava. É preciso ler este estrato conclusivo, antes de nos interrogar sobre seu significado:

Na luz do Concílio

57. Caros irmãos e irmãs, que riquezas o Concílio Vaticano II nos deu em suas orientações! É por isso que, preparando o grande Jubileu, eu tinha pedido que a Igreja se interrogue sobre a recepção do concílio.44 Isso foi feito? […] À medida que passam os anos, esses textos não perdem nada de seu valor nem de sua força. É necessário que eles sejam lidos de maneira apropriada, que sejam conhecidos e assimilados, como textos qualificados e normativos do Magistério, no interior da Tradição da Igreja. No término do Jubileu, sinto mais do que nunca o dever de indicar o Concílio como a grande graça da qual a igreja beneficiou no século XX: ele nos oferece uma bússola fiável para nos orientar no caminho do século que começa. (NMI 57)

Trata-se de uma posição bastante engajada : de um lado, um julgamento nítido sobre o Vaticano II apresentado como a grande graça da Igreja no séc. XX e no qual ele percebe as riquezas, um concílio que se deve receber, textos que devem ser lidos. Enfim, e é nisso que é preciso insistir, um concílio que serve como “bússola fiável para nos orientar no caminho do século que começa”. Será que temos esta opinião e o Vaticano II é a bússola para nos orientar? É evidente que nem todos assinariam a esta tomada de posição pontifícia, no momento em que foi feita. Não só os partidários de Lefebre, com quem as relações foram rompidas, que não gostariam de assinar esta postura. Mesmo os partidários de João Paulo II pediriam para diluir um pouco a firmeza de sua tomada de posição. No momento em que ele assim se engajava, vários, nesses tempos incertos,

31

Page 32: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

engrossavam o número dos que queriam voltar a posições aparentemente mais seguras. Diante da perda de credibilidade da Igreja no Ocidente e das importantes mutações sociais e culturais, o que devia levar a um refluxo do catolicismo na sociedade, alguns começara a ter medo, se interrogando sobre o fundamento das reformas conciliares. Não tocando ainda a terra prometida e se sentido tomados na armadilha do deserto, eles se puseram a murmurar, arrependidos de terem se colocado em marcha um dia, a convite do concílio. Para eles, o concílio não era a bússola fiável da qual falava João Paulo II, bússola capaz de orientar o caminho da Igreja no curso do terceiro milênio, mas uma bússola doida que levava a igreja a se perder. Inseguros, eles privilegiam uma posição de retorno atrás. Nesse caso, a interpretação global que eles faziam do Vaticano II era comandada pelo medo suscitado pela situação na qual se encontrava a Igreja, jogada de um lado para o outro nas vagas agitadas e que enfrentava ventos contrários, e a tentação de segurança que responde e este medo. Esta reação de busca de segurança vem do mal estar que provam alguns na situação atual da igreja e do mundo. Confrontados ao pluralismo que desenvolve certa incerteza no plano das crenças, eles apreciam se encontrar numa situação onde tudo é bem definido e no seu lugar.

Para a nova geração, o concílio parece pertencer a outro mundo e, à medida que ele se afasta de nós, apesar de todas as comemorações que buscam celebrá-lo, ele faz parte dos textos antigos, que se olha com curiosidade, como esses objetos que testemunha outra época. Como então pode ele ser visto como uma bússola fiável proposta à Igreja para as próximas décadas. Eis, parece, o desafio de hoje para os professores quando buscam transmitir a herança do concílio a uma nova geração para que, por sua vez eles vivam dela.

1. Vaticano II: uma bússola fiável?

Este subtítulo é uma equação de dois desconhecidos. De um lado, o termo “Vaticano II”. Trata-se de algo que parece claro, mas será que estamos de acordo sobre o que é o Vaticano II?. Temos uma compreensão comum ? Gilles Routhier busca esclarecer esta questão no texto que se segue. Ele também busca esclarecer a metáfora da bússola.

Primeiro é preciso ler o conjunto da carta apostólica na qual aparece a expressão, no n. 57, da Carta apostólica de João Paulo II. No conjunto de sua carta na qual ele fala do concílio, que cita 16 vezes, João Paulo II não recorda nenhuma prescrição particular ou nenhum ensinamento específico. O concílio que vem em cada etapa do desenvolvimento da carta é apresentado primeiro (n. 2) como momento de renovação para tornar a Igreja capaz de retomar com elã o anúncio do evangelho. O concílio é visto como momento de escuta do que o Espírito diz à igreja (no 3). Em seguida, o concílio é considerado como um apelo lançando todos à santidade (no 31). Mais especificamente, ele aborda domínios : a vida litúrgica e a participação nos sacramentos (no 35), a escuta da Palavra de deus sobre a qual o concílio « sublinhou o papel proeminente […] na vida da Igreja » (no 39), os meios para proteger e alimentar a comunhão (no 44), o engajamento

32

Page 33: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

social (no 52), o diálogo inter-religioso (no 55) e, finalmente, a leitura dos sinais dos tempos (no 56). A referência ao Vaticano II é então constante e sempre há uma mesma relação com o concílio: voltar a ele para nele encontrar as grandes orientações. É assim que ele nos conduz a olhar o concílio como uma bússola. A função que ele confere ao concílio, é a de dar uma orientação, de indicar uma direção e não de prescrever, sobre este ou aquele ponto particular, normas precisas e definitivas a seguir ou regras de conduta determinadas a seguir. O concílio que dá então à igreja grandes orientações, uma direção.

A relação ao concílio e a seus ensinamentos se apresenta então numa nova perspectiva. Não se trata mais, como nas décadas que se seguiram a ele, de aplicar ou de por em obra cada um dos ensinamentos particulares. A mais de cinquenta anos de distância, a igreja, posta em situação de dever inventar nu novo contexto, é chamada a discernir o caminho a seguir. Quais são os recursos dos quais ela dispõe para operar esse discernimento, para encontra sua rota neste novo século. João Paulo II sugere que este processo de discernimento chama uma necessária regulação e o concílio serviria então â igreja de bússola fiável lhe permitindo de operar o discernimento do caminho que ela é chamada a seguir na história. A relação ao concílio é então modificada pois não é mais vista como uma série de temas ou de questões (os conteúdos), mas ele se apresenta como um momento de discernimento que supõe a escuta da Palavra de Deus e daquilo do qual são portadores os destinatários, ou seja, o rumor do mundo que encontra eco nas entranhas de Deus. O concílio, através de seu corpus, reenvia a esta experiência teologal profunda de discernimento que se exprime através desta dupla escuta que os conduz a realizar um ato de tradição, ou seja a reimpressão para hoje do depósito da fé. Em suma, hoje, quando se inaugura uma nova fase da recepção do Vaticano II, é toda a igreja que é chamada a realizar o aprendizado realizado pelos padres conciliares no decorrer do concílio, ou, em outros termos, a discernir, através de uma dupla releitura da Escritura e dos gritos do mundo (alegrias, esperanças, tristezas e angústias), a rota da igreja para o próximo século. A fazer isso, ela recebe o princípio de pastoralidade posto em valor por João XXIII em seu discurso de abertura do concílio. Este, pelo fato de ter proposto primeiro à igreja um método de discernimento e em seguida grandes orientações que se relacionam antes de tudo com a escuta da Palavra de Deus, à atitude da Igreja para com o mundo, à inteligência da relação com os outros e à participação de todos os batizados na vida da Igreja etc.

Dito isto, esta relação com o concílio, que não é antes de tudo de aplicação, não é separada dos textos. João Paulo II, ao nos dizer para tomar o concílio como bússola para a marcha da Igreja neste século, não deixa de nos propor de ler os textos, de os conhecer e os assimilar. Há, no entanto, em filigrana, em sua carta apostólica, um método de leitura dos textos do Vaticano II. Sua leitura, que não retoma cada documento uns após os outros, mas capta o corpus como conjunto, com seus eixos transversais, o conduz a valorizar algumas orientações maiores, grandes linhas de condutas, pontos de referência

33

Page 34: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

para o caminho da Igreja neste século. É assim que o concílio pode ser compreendido como uma bússola que permite de encontrar uma direção a seguir na situação presente, quando a igreja deve afrontar novos desafios e encontrar novas situações.

2. Um método de leitura

Como vimos anteriormente, João Paulo II não só reconhece o valor duradouro dos textos do Concílio Vaticano II ("À medida que os anos passam, estes textos não perdem nada do seu valor ou brilho."), mas ele enfatiza que "é necessário que eles sejam lidos de maneira apropriada”. Bento XVI disse quase a mesma coisa quando ia abrir o jubileu marcando o 50º aniversário do Concílio Vaticano II: "os documentos do Consílio representam uma enorme riqueza para a formação das novas gerações cristãs, para a formação de nossa consciência. Então leiam-nos... "Essas injunções pontifícias para retornar aos textos do Concílio Vaticano II e lê-los põem logo em seguida o problema de nosso relacionamento com esses textos e o do método de leitura que vamos reter. Estas duas questões são por sinal interligadas.22»

Como nós nos aproximamos do texto e o que nele procuramos? Espontaneamente, somos levados a pensar que os textos e documentos nos fornecem ensinamentos, comunicam informações ou só veiculam "conteúdos", correndo o risco de reduzir o Vaticano II a uma soma de enunciados portadores de conteúdo que é necessário se apropriar. De acordo com esta perspectiva, somos levados a procurar nos textos do Vaticano II ensinamentos que são ainda relevantes hoje e as ideias que poderíamos tomar para guiar a Igreja, dar-lhe ânimo e contribuir a orientá-la. O concílio como bússola significaria que temos a tarefa de colocar em prática uma série de ensinamentos conciliares. Trata-se aí de uma abordagem dos textos e documentos que os reduz a conteúdos, ensinamentos próprios a veicular e a difundir ideias. Tal abordagem privilegia um método de análise de conteúdos, no qual se isolam as unidades proposicionais no texto a fim de identificar as principais categorias. Certamente esta abordagem, que consiste em procurar nos textos e documentos conteúdos proposicionais ou ensinamentos é familiar aos teólogos. Ela conduz levantar uma lista de ensinamentos do Vaticano II (proposições ou ideias), seja sobre a liberdade religiosa, a participação de todos na vida da Igreja, sobre os bispos, o ecumenismo, a cultura, a família, o comunismo, os leigos, a Palavra de Deus, a catequese, a guerra e a paz, a exegese, a adaptação da vida religiosa, o ministério dos sacerdotes, as religiões não-cristãs etc. Uma abordagem dos textos conciliares a partir de um método de análise de conteúdo nos conduz a levantar uma lista quase que interminável de conteúdos específicos.

Este método analítico, legítimo e necessário, é próprio, se for acompanhado, ao mesmo tempo, de uma abordagem mais sintética que desmembra o corpus conciliar, reduzindo-o tantos ensinamentos sobre questões específicas. Ele se concentra sobre enunciados que tende a isolar, impedindo assim de captar o Vaticano II como um todo

22 Homélie de Benoît XVI à Frascatti, le 15 juillet 2012.

34

Page 35: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

integrado ou como um conjunto unificado, reduzindo-o a um agregado de ensinamentos particulares23. Podemos, com efeito, glosar e comentar ao infinito os ensinamentos do concílio sobre o "subsistit in" ou sobre a hierarquia das verdades sem chegar, porém, a captar as intuições mestras do concílio das quais é preciso se alimentar ainda hoje. Além do mais, este método não nos permite ligar esses ensinamentos com o evento conciliar em suas diversas dimensões, os textos e os documentos estando desligados do gesto dos Padres conciliares e do meio conciliar que os produziu, separados da experiência que o viu nascer e das questões que estão em sua origem. Necessária, esta abordagem analítica entrada sobre os conteúdos das declarações, se absolutizada, se revela redutora no sentido de que não se dá a si mesma acesso ao "ensinamento" do Concílio Vaticano II e risca de fossilizar a palavra viva dirigida à Igreja em vista de sua crescente renovação. Reduzida à dimensão única de coleção de enunciados, o Vaticano não pode representar a bússola dada à Igreja para guiá-la no século XXI, seguindo os termos de João Paulo II, pois ele é em parte cortado de sua seiva.

Cinquenta anos depois do Vaticano II, uma abordagem estreita dos textos faz leva a Igreja a correr o risco de reduzir seu alcance e seu caráter inovador como o fez a escolástica decadente e a dos comentadores, para não falar nada da escolástica dos manuais, que reduziu a potência inovadora da grande escolástica e limitado o elã intelectual que ela representava e a audácia que ela trazia, até esclerosá-la. Há o risco do mesmo estreitamento com o Vaticano II sobre o qual se pode comentar sem fim os enunciados e glosá-lo até o esgotamento de seus textos a partir, às vezes de um método de análise desenvolvido no quadro da neoescolástica e apropriado e este universo de pensamento, mas que constitui um quadro intelectual estrangeiro aos textos conciliares. Vários artigos consagrados ao Vaticano II partem de um tema, de uma ideia: colegialidade episcopal, o laicato, as comunicações sociais, etc. Vai-se ao texto em busca do que é dito nos textos conciliares a esse respeito.

Dito de outro modo, se implementou até aqui o método histórico-crítico para ler os textos do Concílio Vaticano II. Para cada texto, reconstituiu-se a história da redação, refinando cada vez mais este método na medida em que se tem acesso às fontes: debates in aula, processos verbais (oficiais e não oficiais) de discussões em comissão que indicam as escolhas que se fez, relationes e expansio modorum que indicam a intenção dos redatores, constitui de sinopses que apresentam os vários estados do texto, suas evoluções (aquilo ao qual se renuncia e as adições ou modificações na expressão), etc. Por ter praticado e por praticar ainda este método, conheço sua necessidade e seus limites.

Como a exegese histórico-crítica dos textos bíblicos, essa prática de leitura risca de não nos abrir ao "mundo do texto" ou ao mundo que nos abre o texto, seguindo a expressão de Ricoeur: "O que de fato deve ser interpretar num texto é uma proposição de 23 Voir G. Routhier, «L’herméneutique de Vatican II : de l’histoire de la rédaction des textes conciliaires à la structure d’un corpus», dans Vatican II. Herméneutique et réception, Montréal, Fides (coll. «Héritage et projet, 69), sp. p. 389-399.

35

Page 36: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

mundo, de um mundo tal que eu possa habitá-lo para nele projetar um de meus possíveis mais próprios. É o que eu chamo o mundo do texto, mundo próprio a este texto único” 24. Não se trata certamente, como na Escritura que constituía para Ricoeur o texto de referência de seus estudos, do "mundo novo, nova aliança, reino de Deus, novo nascimento"25, mas os textos conciliares desdobram um mundo (uma Igreja e um mundo) que vem interpelar o leitor.

Não se trata mais de conteúdos específicos, mas uma totalidade de significação que forma um horizonte global. Este mundo do texto, como sabemos, não está detrás do texto, mas diante dele: é o que o texto desdobra, descobre e revela. Para os textos do Concílio Vaticano II, trata-se de uma Igreja povo de Deus Igreja onde cada batizado, em razão do dom do Espírito Santo e de seu batismo, participa de maneira ativa não somente na liturgia, mas a toda a vida da Igreja. Trata-se também da família humana reconciliada da qual a Igreja é o germe e o sinal, até em sua liturgia. Trata-se de um mundo marcado pelo respeito e a estima entre crentes de diferentes tradições religiosas de um mundo marcado pelo encontro e o diálogo entre os cristãos. Eu poderia multiplicar os exemplos. Trata-se de uma realidade desdobrada diante do texto, mas sempre a partir do texto. O texto do Vaticano II abre um horizonte, anuncia de alguma forma um novo mundo que, embora atestado no texto, escapa ao fechamento do discurso. Ele aparece como um ponto de fuga, um horizonte.

Isso me conduz a propor outra abordagem, uma abordagem utilizada sobretudo em literatura e teorizado por H.R. Jaus, a do estudo do horizonte de expectativa 26. Segundo esta teoria, o público de leitores constitui um condicionamento indispensável na produção de uma obra literária que não pode ser compreendido fora deste campo social específico. Além do mais, a obra literária não poderia ser entendida sem levar em conta o horizonte de expectativa deste primeiro público de leitores27. Escrevemos para um público e em função das expectativas de um momento específico e dum contexto particular. Sempre há um « leitor implícito » quando se escreve alguma coisa28. Pode-se então ler os textos conciliares e melhor compreendê-lo tomando em conta e partindo do horizonte de expectativa do primeiro público leitor que se trata de reconstruir29.

Outra é, porém, a questão, de saber se é necessário relê-los no presente, quando o contexto mudou e que o horizonte de expectativa é muito diferente. Vale para os textos conciliares o que vale para os clássicos. Existem textos (ou obras teatrais, 24 Idem, p. 11525 Idem, p. 12626 Sur le concept d’horizon d’attente, voir H.R. Jauβ, Pour une esthétique de la réception, Paris, Gallimard, 1978. Voir également mon article «Horizons d’attente dans les Églises occidentales à la veille de Vatican II», Chiesa e storia, 3 (2013), p. 29-52. Sur l’horizon d’attente dans le domaine liturgique au Canada avant le concile, voir G. Routhier, « Les avents de la Constitution sur la liturgie. Les attentes du Canada francophone », Liturgie, foi et culture, 37, 176, p. 35-56.27 Voir H.R. JAUẞ, Pour une esthétique de la réception, sp. p.  49 ss.28 Voir W. Iser29 Voir G. Routhier, Vatican II: herméneutique et réception.

36

Page 37: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

cinematográficas, filosóficas, musicais) que são populares em seu tempo, mas que não são retomadas. Outros, ao contrário, são retomadas. É o que se chama de clássico. Essas obras são relidas, reinterpretadas, reapresentadas, reencenadas. Elas reencontram sem cessar novos públicos, mesmo se o horizonte de expectativa tenha evoluído. Elas conseguem tocar de novo, mesmo se se dirigem a um novo público, que vive em outro contexto.

No momento do concílio, os documentos do Vaticano II « energizaram » a Igreja, lhe deram fôlego, pelo fato que o que diziam correspondia, ou seja, respondiam a uma expectativa, e ao mesmo tempo não correspondiam mais simplesmente ao que era esperado. Eles abriam um espaço, mais que satisfaziam a uma expectativa. Eles representavam uma nova linguagem, uma maneira de falar, um estilo que reteve a atenção e cativaram. Se, hoje, só se lê os textos do concílio para neles encontrar o que se espera e confirmar o que se pensa, o Vaticano II não é um clássico e perde de imediato não somente sua atualidade, mas sua capacidade de atravessar o tempo. Como sublinha Hans Robert Jauss, se a distância entre a obra e o horizonte de expectiativa se estreita a ponto de a « consciência receptora não é mais obrigada a se reorientar rumo ao horizonte de uma experiência ainda desconhecida, a obra se aproxima da arte “culinária”, do simples divertimento, pois o texto não exige mais nenhuma mudança de horizonte, mas cumula, ao contrário, perfeitamente a expectativa suscitada e satisfaz o desejo30.»

Se os textos conciliares não têm a ver somente com a arte culinária e se têm o poder de transcender sua época para falar às pessoas de outra época, não os lemos mais simplesmente para ser confortados em nossas ideias, eclesiologia, e na própria concepção do ecumenismo, etc. Nós os lemos para ser deslocados, lançados para a frente, provocados a entrar no mundo do texto que nos conduz além de si. Podemos nos referir ao Vaticano II para ser confortado nas nossas próprias posições, reduzindo os textos conciliares a uma reserva de « dito » que apoiam nossas teses e justificam nossas posições. Ao contrário, podemos nos ao Vaticano II porque os conteúdos que nele encontramos são contrários a nossas próprias teses. Dito isso, essas duas posições são semelhantes e nada mais representam que duas faces de uma mesma moeda. Em nenhum caso desejamos que a leitura desses textos nos transforme, nos conduza alhures, nos coloque em desafio. Trata-se de uma letra morta, pois se sabe de antemão o que dizem e o que contêm e não se é disposto a se deixar atrapalhar pelo mundo do texto que vem ao encontro do mundo do leitor.

É preciso aceitar encontrar nesses textos uma potência de deslocamento de ideias recebidas, reunidas nas glosas e nos comentários, e consentir a relê-los com olhos novos, como se os descobríssemos pela primeira vez. Lá está, me parece, o que é mais urgente hoje. Se não nos admiramos com esses textos, é porque eles já se tornaram inertes para nós.

30 H.R. Jauβ, Pour une esthétique de la réception, Paris, Gallimard, 1978, p. 53.

37

Page 38: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

Num contexto diferente, a releitura da Constituição sobre a liturgia, por exemplo, vai produzir um efeito diferente num contexto cultural, social e eclesial que mudou profundamente. O horizonte de expectativa que é o do início do séc. XXI é suscetível de nos fazer ver significações latentes ou passadas até agora despercebidas. Se se considera os textos conciliares como clássicos, e não como textos de ocasião que se tornam rapidamente textos mortos, eles têm um potencial latente de significação para outra geração e podem ser retomados por um público cujo horizonte de expectativa não será o mesmo que era o de 1963.

É preciso então reler os textos conciliares para nos deixar surpreender por esses textos, para neles descobrir sempre algo novo. É este o desafio, pois retomar hoje um clássico, é fazer surgir algo novo e não simplesmente repetir o que já se sabe nele encontrar, glosar ou comentar sem fim na repetição dos primeiros comentadores. Dito de outro modo, como os comentadores da Suma teológica, vamos tornar estéril os textos conciliares numa nova neoescolástica de comentadores.

As teorias da recepção na história literária analisam os fenômenos de re-recepção de uma obra em função da mudança de horizontes de expectativa do público em outra época. Na medida em que os horizontes de expectativa se modificam, uma obra literária pode conhecer novas « concretizações » que não são simplesmente a reprodução de ideias contidas nos textos, mas a atualização de sentidos possíveis contidos nas obras literárias, mas pouco concretizadas até então em razão dos horizontes de expectativa diferentes dos públicos dos períodos anteriores31.

Não se trata então de simplesmente fazer a história da redação dos textos conciliares para assegurar o sentido que eles tinham para o redator, nem tampouco de retomar o comentário, redizendo essencialmente o que já se encontra nos comentários do passado. Uma nova geração deve retomar a leitura e aí fazer surgir significações passadas despercebidas até então. Em minha opinião, é preciso consentir em fazer esta leitura a partir de nossas questões de hoje, a interrogar com frescor os documentos conciliares que que não são considerados como um conjunto de enunciados ou de conclusões fechadas, mas como o gesto de uma assembleia que capta de maneira original essas questões, as trabalha segundo um método própria a fim de chegar a um discurso que marcou uma geração e que pode cativar uma nova hoje. É então que se poderá captar o « gesto » dos padres conciliares e, com eles, reencontrar esta estado de efervescência que os levou a pensar com frescor as questões às quais a igreja tinha confrontado no decorrer da segunda metade do séc. XIX e na primeira metade do séc. XX, sem chegar realmente a falar uma linguagem nova sobre essas diversas questões que nos ocupam ainda hoje.

Para retomar a leitura dos textos conciliares, sugiro uma segunda abordagem, a estilística32. O Vaticano II são textos conciliares, é um acontecimento que representa um marcador na história contemporânea, mas é também um estilo, um estilo que não engana,

31 Voir H. R. JAUẞ, Pour une esthétique de la réception, sp. p. 61 et 106-107.

38

Page 39: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

um estilo que o distingue dos outros concílios. De fato, um leitor não prevenido não pode confundir um texto do Vaticano II com o de outro concílio da época moderna tanto a diferença é perceptível. Como dizia Paulo VI, se no Vaticano II a igreja ofereceu ao mundo sua ajuda e seus meios de salvação, ela o fez, « lá se encontra a nova característica deste concílio […] de uma maneira que contrasta em parte com a atitude que marcou certas páginas de sua história », adotando “de preferência a linguagem da amizade, do convite ao diálogo33.» Não se pode interpretá-lo ignorando a novidade deste estilo e desta linguagem sem registrar o « contraste » entre este estilo e outras maneiras para a igreja de se dirigir ao mundo e propor seu ensinamento34.

Outros métodos de leitura pode ser praticados, métodos sincrônicos, estruturais etc. Pode-se constatar que o leque é amplo e que as possibilidades numerosas. Sem dúvida é quando se ultrapassa as leituras temáticas (análise de conteúdo), histórico-críticas ou linguísticas,35 que se pode chegar a considerar o Vaticano II como bússola, ou seja, um acontecimento e uma obra que abre o caminho da Igreja e lhe fornece uma orientação.

3. Em que o concílio é uma bússola segura hoje?

Ou agora dizer brevemente em que o Vaticano II pode ser uma bússola para hoje e para uma geração que cresceu num ambiente estrangeiro àquele em que viveram os padres conciliares. Entre os motivos que podemos ter para considerar o Vaticano II como uma bússola fiável para orientar a igreja católica no terceiro milênio, vem em primeiro lugar a consideração do estilo pastoral do concílio, o que constitui o traço distintivo com relação aos concílios precedentes. Se é preciso lembrar o Vaticano II hoje, é precisamente por causa de sua abordagem própria no anúncio do evangelho ao mundo. Para além de todos os ensinamentos particulares do Vaticano II, importantes que não sejam negligenciados, há sua maneira própria de entrar em relação com nossos contemporâneos para lhes anunciar o evangelho.

Seguindo a leitura que fazia Paulo VI, o Vaticano II representou um ato querigmático, os bispos tendo jogado plenamente no concílio o papel de testes fidei. Seguindo também sua expressão, a igreja, no Vaticano II, progrediu na arte de proclamar a centralidade do Deus vivo no coração da humanidade recolhendo-se para escutar nela a Palavra sempre atuante de Deus e seguindo a humanidade (o mundo atual) com seu amor. Aos olhos do papal, isso representa o gesto fundamental do concílio, com suas grandes

32 Voir Voir John W. O’Malley, «Erasmus and Vatican II : interpreting the Council», dans A. Melloni, D. Menozzi, G. Ruggieri et M. Toschi, Cristianesimo nella storia. Saggi in onore di Giuseppe Alberigo, Bologna, Il Mulino, 1996, p. 195-212. Aussi «Vatican II: Historical Pespectives on its Uniqueness and Interpretation», in L. Richard, D. Harrington, J. O’Mally (ed.), Vatican II. The Unfinished Agenda. A Look to the Future, New York, 1987, p. 22-32. Voir aussi G. Routhier, 33 Paul VI, «Linguaggio dell’amicizia e invito al dialogo : note di ‘stile conciliare’», dans M. Vergottini (Ed.), Nel cono di luce del Concilio, Roma, Seminarium, coll. «Quaderni dell Istituto», 26, 2006, p. 24.34 Voir mon article «El Concilio Vaticano II come estilo», Iglesia viva, 227 (2006), p. 23-44.35 Voir P. Bordeyne,

39

Page 40: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

coordenadas : a escuta da Escritura e a compreensão do mundo atual. Este gesto essencial no qual se concentra todo o trabalho que deu ao Vaticano II seu método próprio e seu caráter específico traduzido pelo conceito de « pastoralidade » me parece, para retomar a expressão de Paulo VI, um legado que é preciso hoje recolher.

Paulo VI, em sua alocução aos bispos italianos, apresentava o Vaticano II como o grande catecismo dos tempos modernos: “Devemos olhar o concílio com reconhecimento a Deus e com fidelidade para o futuro da igreja: ele será o grande catecismo dos novos tempos. »36 João Paulo II, que se fez o apóstolo da nova evangelização, voltou a essa afirmação de Paulo VI em sua exortação apostólica Catechesi tradendae.37 Podemos nos perguntar em que o concílio constitui um catecismo exemplar pra nosso tempo e em que ele pode orientar os esforços atuais no domínio da evangelização. Seria somente por seu conteúdo (seus enunciados e seu ensinamento) ou também e sobretudo por seu estilo38 ou sua maneira de exprimir a doutrina e de se dirigir a nossos contemporâneos ou, para retomar os temos de Paulo VI, em “sua arte de proclamar a doutrina ».

Também, no momento em que se questiona a ideia de nova evangelização proposta por João Paulo II, o concílio, cuja intenção e programa era anunciar o evangelho à humanidade, aparece hoje como uma pedra preciosa no itinerário da igreja católica. Para além de todos os seus ensinamentos particulares, é sua finalidade, sua perspectiva e seu método que é preciso guardar hoje na memória, para viver no presente e orientar nossa rota no futuro. Em suma, receber o concílio, não é somente retomar seus eununciados, às veses desligados e contados de seu contexto de enunciação, mas se apropriar desta maneira original de propor a doutrina e de entrar em relação com os outros. É isso, me parece, captar o concílio em sua unidade mais profunda e comrpeender de maneira sintética a partir de uma de suas características.

Bento XVI, em seu discurso à cúria romana do dia 22 de dezembro de 2005, chamava a atenção de sobre os discursos de abertura de João XXIII e o discurso de encerramento de Paulo VI, citando João XXII que dava como tarefa principal ao concílio a promoção da doutrina em nossa época ou a apresentação da doutrina de um modo que responda às exigências de nossa éoca, segundo o Papa João, retomado por Bento XVI,

O concílio « quer transmitir a doutrina de modo puro e íntegro, sem atenuação nem deformação » e ele continua : « Nosso dever não consiste somente em

36 Discorso di Paolo VI ai partecipanti all’Assemblea generale della Conferenza episcopale italiana, 23 juin 1966. 37 Voir Jean-Paul II, Exhortation apostolique post-synodale Catechesi tradendae, no 2.38 Sur la question, voir mon article « Il Vaticano II come stile », dans La Scuola Cattolica CXXXVI/1 (2008), p. 5-32, repris dans « Vatican II comme style », dans Penser l’avenir de l’Église, Montréal, Fides, 2008, p. 53-92. On verra aussi J. W. O’MALLEY, « Vatican II : Did Anything Happen? », Theological Studies, vol. 67, no 1, 2006, p. 3-33 et « The style of Vatican II », America, vol. 188, no 11, 2003, p. 11-14. Aussi, C. THEOBALD, La réception du concile Vatican II. I. Accéder à la source, Paris, Cerf, (coll. Unam Sanctam) 2009, sp. p. 281-701.

40

Page 41: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

conservar este tesouro precioso, como se nos preocupássemos unicamente da antiguidade, mas de nos consagrar com uma firme vontade e sem medo a esta rica tarefa, que nossa época exige... É necessário que esta doutrina certa e imutável, que deve ser fielmente respeitada, seja aprofundada e apresentada de um modo que corresponda às exigências de nosso tempo. De fato, é preciso fazer uma distinção entre o depósito da fé, ou seja, as verdades contidas em nossa venerável doutrina, e o modo como elas são enunciadas, lhes conservando, poré, o mesmo sentido e o mesmo alcance » (S. Oec. Conc. Vat. II Constitutiones Decreta Declarationes, 1974, pp. 863-865).

É este estilo pastoral do concílio que é preciso hoje aprofundar e retomar, pois, e é se encontra o grande paradoxo, é, segundo o papa Paulo VI, quando « o magistéro da igreja » « não quis se pronunciar sob forma de sentenças dogmáticas extraordinárias » que “ele estendeu seu ensinamento atuorizado a uma quantidade de questões que engajam hoje a consciência e a atividade do homem. » É quando “ele chegou a dialogar” com seus contemporâneos que ele conservou “a autoridade e a força que lhe são próprias ». É ainda quando “ele tomou a voz familiar e amiga da caridade pastoral » que se fez « escutar e compreender por todos os homens ». O paradoxo se torna ainda mais admirável quando Paulo VI acrescenta que « a igreja se proclamou servidora da humanidade justo nomomento em que seu magistério eclesiástico e seu governo pastoral revestiram, em razão da solenidade do concílio, um maior esplendor e uma força maior. » Não estamos longe aqui, do paradoxo desenvolvido pelo apóstolo Paulo que declarava « pois quando sou fraco, então é que sou forte » (2Cor 12,10). É quando a igreja se faz servidora que sua palavra tem mais autoridade, quando ela dialoga e toma a voz familiar e amiga que ela estende seu ensinamento autorizado. Em outras palavras, sempre seguindo o apóstolo das nações, « o que é fraco no mundo, Deus o escolheu para confundio o que é sábio”. Temos aqui toda uma visão do magistério da igreja e de seu exercício no mundo contemporâneo e, mais amplamente, uma visão das condições de possibilidade do anúncio do evangelho e de sua recepção. Isso parece corroborado no ministério petrino tal como o exerce Francisco.

O concílio, continua Paulo VI, « nao somente se dirigiu à inteligência especulativa, mas buscou se exprimir no estilo da conversaão ordinária. Ao fazer apelo à experiência vivida, utilizando os recursos do sentimento e do coração, ao dar à palavra mais atrativo, vivacidade e força persuasiva, ele falou ao homem de hoje, tal como ele é.. »39 Num outro texto, Paulo VI retomava a mesma ideia, observando que, se no Vaticano II a igreja ofereceu ao mundo sua ajuda e seus meios de salvação, ela o fez, «  lá está uma nova característica do concílio […] de uma maneira que contrasta com a atitude que marcou certas páginas de sua história, adotando “de preferência a linguagem da amizade, do convite ao diálogo. »40 Aqui ainda, como no discurso de encerramento do concílio, Paulo VI se refere ao discurso de abertura do concílio de seu predecessor, 39 Paul VI, « Discours de clôture du concile ».

41

Page 42: cdn.diocesedecolatina.com.br · Web viewcomo porção do Povo de Deus (toda a humanidade), Corpo de Cristo e com uma série de imagens bíblicas. Aprofunda a fonte de sua mensagem

discurso cujo caráter determinante não se pode negligenciar, mesmo não retomando aqui a análise.

Conclusão

Haveria ainda muito a dizer sobreo significado do concílio como bússola fiável para toda a igreja no decorrer deste milênio, bússola oferecida a uma nova geração.

40 Paul VI, « Linguaggio dell’amicizia e invito al dialogo : note di ‘stile conciliare’ », dans M. VERGOTTINI (éd.), Nel cono di luce del Concilio, Roma, Seminarium, (coll. Quaderni dell Istituto 26) 2006, p. 24.

42