CE x Brasil - o Caso Dos Pneus

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caso dos pneus remoldados

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    V.4, N. 3, maio 2007

    ISSN 1808678 - 0

    PARTICIPAO DA SOCIEDADE CIVIL: COMRCIO, SADE E MEIO AMBIENTE NA OMC

    COMUNIDADES EUROPIAS VS. BRASIL: O CASO DOS PNEUS

    Coordenao:

    Juana Kweitel (CONECTAS)

    Michelle Ratton Sanchez

    Elaborao e edio do relatrio:

    Andr Tavares Barbosa

    Priscila Spcie

    Data do Fechamento do Relatrio

    03/05/07

    Rua Rocha, 233 - 7 andar - Bela VistaCEP 01331-050 - So Paulo - SP

    http://[email protected]

    ISSN 1808 - 6780

  • V.4, N. 3, maio 2007

    V.4, N. 3, maio 2007CADERNOS DIREITO GV - N17

  • PARTICIPAO DA SOCIEDADE CIVIL: COMRCIO, SADE E MEIO AMBIENTE NA OMC CADERNO - 17

    CADERNOS DIREITO GV 1

    CADERNOS DIREITO GV

    V. 4, N. 3, maio 2007

    ISSN 1808-6780 Maio 2007 So Paulo SP Publicao Bimestral da Fundao Getulio Vargas Escola de Direito de So Paulo (DIREITO GV) TIRAGEM: 300 EXEMPLARES CDG - Cadernos Direito GV, MAIO DE 2007 So Paulo Ed. Fundao Getulio Vargas ISSN 1808-6780 BIMESTRAL

    Revista da Escola de Direito de So Paulo (DIREITO GV) da Fundao Getulio Vargas

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    CADERNOS DIREITO GV 2

    EDITORES Maio, 2007, Jos Rodrigo Rodriguez.

    INCLUI BIBLIOGRAFIA

    DIREITO PERIDICOS. I. So Paulo. DIREITO GV Todos os direitos desta edio so reservados ED. FGV.

    DISTRIBUIO Comunidade cientfica: 300 exemplares

    REVISO

    Ana Mara Frana Machado

    PRODUO INDUSTRIAL Impresso e acabamento: Grfica FGV

    Data da Impresso: Maio/2007 Tiragem: 300

    PERIODICIDADE Bimestral

    CORRESPONDNCIA Rua Rocha, 233, 7 andar Bela Vista

    CEP 01331-050 So Paulo SP - Brasil Tel: (11) 3281-3304 / 3310

    http://www.direitogv.com.br Email: [email protected]

    CADERNO DIREITO GV

    V. 4, N. 3, Maio 2007

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    CADERNOS DIREITO GV 3

    NDICE

    Apresentao ..........................................................................................................................7

    PARTE I A caracterizao do caso dos pneus ..................................................................11

    I. Introduo.......................................................................................................................11

    II. Os pneus e os problemas de sade pblica e meio ambiente: as aes de controle do

    governo brasileiro ...........................................................................................................13

    III. Consequncias das restries de importao de pneus reformados pelo Brasil: marco

    normativo brasileiro e diretrizes das CE no caso dos pneus...........................................17

    IV. A controvrsia entre Uruguai e Argentina: sua retomada no Mercosul .........................21

    V. Desafios de coordenao para uma ao governamental comum e interesses no

    governamentais em jogo.................................................................................................22

    PARTE II os argumentos do Brasil e das Comunidades Europias ..................................27

    I. Os argumentos das Comunidades Europias..................................................................27

    II. As possibilidades de defesa do Brasil ............................................................................28

    A. A proibio de importao de pneus reformados como medida de proteo de sade

    pblica e do meio ambiente. ......................................................................................28

    1. Alnea (b)...............................................................................................................29 2. Alnea (g)...............................................................................................................30 3. Caput......................................................................................................................31 4. Debates ..................................................................................................................32

    B. O levantamento da proibio de importao de pneus reformados em benefcio de

    Argentina, Uruguai e Paraguai como medida adotada no mbito de um Acordo

    Regional de Comrcio ...............................................................................................34

    1. Requisitos e dvidas quanto aplicao do art. XXIV do GATT ........................34 2. Aplicao do art. XXIV em face da jurisprudncia do OSC.................................35

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    CADERNOS DIREITO GV 4

    3. Aplicao do art. XXIV ao caso dos pneus ...........................................................36 4. Debates ..................................................................................................................37

    C. A proibio de importao de pneus reformados adotada pelo Brasil

    fundamenta-se na Conveno da Basilia sobre Transporte Transfronteirio de

    Resduos Perigosos e sua Disposio ........................................................................38

    1. Conveno da Basilia vs. normas do GATT........................................................39 2. Enquadramento dos pneus reformados como resduos perigosos, conforme o

    disposto na Conveno ..........................................................................................39 3. A proibio da importao de pneus remoldados face Conveno ....................41 4. Debates ..................................................................................................................42

    PARTE III - Os interesses da sociedade civil: a apresentao de amicus curiae.................45

    I. Surgimento e fundamentao legal no mbito da OMC ...............................................45

    II. Dados estatsticos dos amici curiae na OMC ...............................................................46

    III. A praxe do procedimento para apresentao do amicus curiae e a sua apresentao no

    caso dos pneus...............................................................................................................47

    IV. Debates ..........................................................................................................................49

    PARTE IV reflexos do seminrio e prximos passos .......................................................53

    I. As argumentaes e debates do seminrio e a defesa brasileira na OMC ....................53

    II. A atuao de organizaes da sociedade civil no caso .................................................54

    PARTE V apndices e anexos ...........................................................................................58

    I. Documentos disponibilizados pelos palestrantes ........................................................59

    II. Apndice 1 siglas e outras expresses tcnicas ........................................................60

    III. Apndice 2 Linha do tempo (inclui calendrio para os procedimentos

    no OSC).......................................................................................................................62

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    CADERNOS DIREITO GV 5

    IV. Apndice 3 - Lista de ONGs pelo movimento No importao de pneus usados,

    referente ao PLS216/2003...........................................................................................66

    V. Anexo 1 - Dados sobre a importao brasileira de pneus usados e reformados..........68

    VI. Anexo 2 Taxa de incidncia da dengue no Brasil (1986-2004) ...............................69

    VII. Anexo 3 - Dados de Exportao e Importao de Pneus Usados e Reformados da

    Unio Europia; de Importao pelo Brasil e Exportao da Unio Europia para o

    Brasil............................................................................................................................70

    VIII. Anexo 4 Mapa da distribuio de empresas destinadoras de pneus e dos pontos de

    coleta ...........................................................................................................................72

    IX. Anexo 5 Meta e destinao de pneumticos inservveis. Porcentagem de destinao

    sobre a meta fixada na Resoluo

    CONAMA 258/99. ......................................................................................................73

    X. Anexo 6 Carta de Organizaes da Sociedade Civil aos Comissrios europeus de

    Meio Ambiente e Comrcio Exterior relativa ao caso dos pneus................................74

    XI. Anexo 7 - Agenda do Encontro ...................................................................................77

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    CADERNOS DIREITO GV 6

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    CADERNOS DIREITO GV 7

    Apresentao

    No dia 18 de maio de 2006 foi realizado na Escola de Direito de So Paulo da Fundao

    Getlio Vargas (DIREITO GV) o encontro Participao da Sociedade Civil: Comrcio,

    Sade e Meio Ambiente na OMC Comunidades Europias vs. Brasil: o caso dos pneus.

    Este evento promove um amplo debate sobre o caso dos pneumticos reformados1

    (WT/DS332), apresentado na Organizao mundial do Comrcio (OMC) pelas

    Comunidades Europias (CE) contra o Brasil, no ano de 2005 e ainda em andamento

    (v. Apndice 2).

    Na DIREITO GV esse debate se insere no mbito do Projeto sobre Comrcio e

    Desenvolvimento Sustentvel, lanado no incio de 2004, sob coordenao da Profa.

    Michelle Ratton Sanchez. A principal finalidade deste Projeto consiste na capacitao e

    difuso do conhecimento sobre temas de comrcio internacional, com a preocupao do

    desenvolvimento sustentvel e est relacionado, na DIREITO GV, s linhas de pesquisa em

    Direito dos Negcios e Desenvolvimento Econmico e Social e de Instituies do Estado

    de Direito e Desenvolvimento Poltico e Social.

    Desde 2004, vrias atividades foram realizadas no mbito deste Projeto, mediante parcerias

    com diversos organizadores, financiadores e colaboradores. Dentre tais atividades,

    destacam-se os encontros anuais do Frum Contexto Internacional e Sociedade Civil

    (FOCOS) Cadernos DIREITO GV 12 e 14 e as publicaes (bimestrais e quinzenais) do

    peridico PONTES entre comrcio e desenvolvimento sustentvel.

    Alm disso, a execuo do Projeto inclui a realizao de debates e mesas redondas com o

    intuito de fomentar a ampliao do debate acadmico para uma pluralidade de atores

    (representantes governamentais, sindicatos, organizaes no-governamentais (ONGs),

    1 Embora o objeto do contencioso na OMC seja os pneus reformados, aparecero, ao longo deste Caderno, informaes relativas aos pneus usados de uma forma geral. Cf. Portaria MDIC/Inmetro 133/2001, os pneus reformados so uma espcie de pneus usados, que foram processados a fim de que suas carcaas pudessem ser reutilizadas. Tal reutilizao pode se dar de trs formas: recauchutagem, recapagem ou remoldagem. Na recapagem, o pneu reformado pela substituio de sua banda de rodagem; na recauchutagem, o pneu reformado pela substituio de sua banda de rodagem e de seus ombros; e remoldados so os pneus reformados que tiveram suas bandas de roldagem, ombros e flancos substitudos. Para a ntegra desta portaria, consultar , acesso em: 19 de abril de 2007.

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    CADERNOS DIREITO GV 8

    entidades empresariais, etc), com vistas a propiciar uma anlise crtica das questes em

    pauta na agenda da poltica externa brasileira e da poltica internacional.

    Nesse sentido, o encontro Participao da Sociedade Civil: Comrcio, Sade e Meio

    Ambiente na OMC Comunidades Europias vs. Brasil: o caso dos pneus originou-se da

    parceria da DIREITO GV com o Center for International Environmental Law (CIEL), a

    Conectas Direitos Humanos e o Frum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o

    Meio Ambiente e Desenvolvimento (FBOMS), e contou com o apoio da Fundao

    Friedrich Ebert Stiftung (FES-Brasil) e do Observatrio de Polticas Pblicas de Direitos

    Humanos no Mercosul.

    Outro projeto de iniciativa da DIREITO GV, em parceria (financiamento) com o Banco

    Interamericano de Desenvolvimento, que impulsionou a organizao do debate sobre o caso

    dos pneus a Casoteca Latino-americana de Direito e Polticas Pblicas, que visa

    construo de um acervo latino-americano de casos didticos sobre Direito e Poltica

    Pblica. Dentre os dez primeiros casos que compem a inaugurao (agosto de 2006) desse

    acervo, temos o caso didtico A guerra dos pneus, elaborado pelo pesquisador Fbio

    Morosini.2

    Alm de permitir o contato entre os diversos interlocutores para a continuidade do debate

    plural e a troca de experincias sobre a temtica do comrcio e desenvolvimento

    sustentvel, os principais objetivos do encontro, relatados neste Caderno, consistiram em:

    discutir os problemas decorrentes da importao brasileira de pneus usados e reformados,

    analisar a regulamentao nacional relacionada ao caso dos pneus, discutir as decises em

    questo no mbito do Mercosul, alm de debater os possveis argumentos do Estado

    brasileiro no sistema de soluo de controvrsias da OMC.

    O encontro contou com a participao de diversas organizaes da sociedade civil brasileira

    e algumas organizaes da regio do Mercosul. Como palestrantes, foram convidados

    representantes do Governo brasileiro de ministrios diretamente envolvidos no caso

    (Ministrio das Relaes Exteriores MRE; Ministrio do Meio Ambiente MMA; e

    2 Disponvel em: . Acesso em abr 2007.

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    CADERNOS DIREITO GV 9

    Ministrio da Sade MS) e outros profissionais especializados em questes centrais

    relacionadas ao caso, como advogados e acadmicos.

    Para abordar os dois principais eixos de discusso (i) anlise da regulamentao nacional e

    das decises sobre o tema no mbito do Mercosul e (ii) debate sobre possveis argumentos

    abordados no mbito da OMC, o evento se dividiu em seis sesses de debate. No primeiro

    bloco, houve trs sesses, nas quais foram trazidos para a mesa: (i) a apresentao do caso

    dos pneus na OMC; (ii) uma discusso sobre a cadeia produtiva, marco normativo e aes

    governamentais; e (iii) a relao entre multilateralismo e regionalismo, com nfase no

    artigo XXIV do GATT (relativo a acordos regionais de livre comrcio) e nos laudos

    arbitrais aprovados no Mercosul sobre a matria. No segundo bloco do evento,

    correspondente s trs ltimas sesses, destacaram-se os seguintes temas: (i) defesa do

    meio ambiente e da sade pblica no mbito da OMC (artigo XX do GATT); (ii) anlise da

    controvrsia luz da Conveno da Basilia sobre o Controle de Movimentos

    Transfronteirios de Resduos Perigosos e sua Disposio; e (iii) interesses e participao

    da sociedade civil (amici curiae na OMC).

    Assim, esta publicao traz uma sntese das exposies e questes levantadas ao longo do

    debate, com o objetivo de contribuir para a divulgao das informaes pertinentes ao caso,

    incentivar o aprofundamento dos principais pontos discutidos durante o encontro e, por fim,

    estimular futuros debates sobre a controvrsia e os temas a ela conexos. O programa

    detalhado e a lista de participantes do evento constam das ltimas pginas deste Caderno.

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    CADERNOS DIREITO GV 10

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    CADERNOS DIREITO GV 11

    PARTE I A CARACTERIZAO DO CASO DOS PNEUS

    I. Introduo

    O caso Brazil measures affecting imports of retreated tyres (DS332), em que o Brasil

    demandado pelas CE perante o rgo de Solues de Controvrsias (OSC) da OMC, teve

    incio no dia 20 de junho de 2005. Neste dia, as CE requisitaram um pedido de consultas

    com o Brasil, para esclarecer algumas medidas restritivas importao de pneus usados e

    reformados, impostas por este. Aps o resultado no satisfatrio das consultas, que

    ocorreram em 20 de julho de 2005, as CE solicitaram o estabelecimento do painel3, em 17

    de novembro de 2005. O Brasil bloqueou esta primeira tentativa mas, aps a segunda

    solicitao das CE, em 20 de janeiro de 2006, o painel foi finalmente instaurado. No dia 17

    de maro do mesmo ano, foram divulgados os termos de referncia do painel, assim como o

    nome dos painelistas indicados.4

    Conforme calendrio estabelecido para os procedimentos, em 27 de abril de 2006 as CE

    protocolaram sua primeira petio junto ao Painel e, em 8 de junho de 2006, o Brasil

    apresentou a primeira petio (de defesa) ao caso DS3325.

    Em seguida, no dia 3 de julho, 7 organizaes da sociedade civil apresentaram um Amicus

    Curiae perante o painel: Associao de Combate aos Poluentes (ACPO), Associao de

    Proteo ao Meio Ambiente de Cianorte (APROMAC), CIEL, Centro de Derechos

    3 WT/DS332/4. Alm da proibio pela legislao brasileira para a importao de pneus usados e reformados, as principais medidas questionadas pelas CE, dizem respeito imposio de multa em razo da importao, comercializao, transporte, armazenagem, guarda ou manuteno em depsito de pneus reformados importados. Referem-se, ainda, no aplicao destas medidas contra os pases do Mercosul, em decorrncia de uma deciso do sistema de soluo de controvrsias do bloco no caso em que o Brasil foi demandado pelo Uruguai. Segundo as CE, tais medidas seriam contrrias aos compromissos assumidos pelo Brasil com base nos artigos I:1, III:4, XI:1 e XIII:1 do GATT-1994. Essas e outras informaes so detalhadas a seguir. 4 WT/DS322/5. Todos os documentos relativos ao caso encontram-se disponveis em , acesso em: 19 de abril de 2007. 5 Dos 350 casos apresentados ao OSC, desde a criao da OMC, em 1995, o Brasil participou em 22 casos como demandante, em 13 casos como demandado (incluindo o DS332) e em 38 casos como terceiro interessado. Para mais detalhes sobre os caso que conta(ra)m com a participao do Brasil no OSC da OMC, ver , acesso em: 19 de julho de 2006.

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    CADERNOS DIREITO GV 12

    Humanos y Ambiente (CEDHA), Conectas, Justia Global e Instituto por um Planeta

    Verde.6

    Posteriormente, ocorreu a primeira audincia com o painel, entre os dias 5 e 7 de julho.

    Brasil e CE, ento, apresentaram ao painel uma segunda petio, no dia 11 de agosto e, no

    dia 4 de setembro, decorreu a segunda audincia com o painel. Conforme o artigo 12.8 do

    Entendimento sobre Soluo de Controvrsias (ESC), o painel deveria emitir o relatrio

    final em at seis meses aps a sua constituio portanto, at setembro de 2006. No

    entanto, os painelistas solicitaram, por duas vezes, o adiamento da prolao da deciso

    final.7 Embora o relatrio final no tenha sido disponibilizado ao pblico ainda, j existem

    notcias a respeito do contedo da deciso.8

    Os interesses em jogo na disputa (WT/DS332), quanto s conseqncias imediatas com

    base numa deciso proferida pelo OSC, podem ser ilustrados, simplificadamente, conforme

    a seguinte polarizao: proibio (Brasil) ou liberalizao (CE), sem excees, da

    importao de pneus reformados pelo Brasil.

    Hoje, o Brasil probe a importao de pneus usados, de forma geral, alm de impor multas

    no caso de descumprimento de sua legislao, com exceo importao proveniente dos

    Estados partes do Mercosul. As CE, no entanto, questionam tais restries e desejam que

    seja imposta a obrigatoriedade de liberalizao e que, por extenso, seja excluda a

    exceo concedida aos Estados partes do Mercosul. Nesse sentido, o Brasil deseja legitimar

    tais medidas perante o OSC da OMC. Face ao questionamento das CE, o Brasil procura

    sustentar a legitimidade de tais medidas perante o OSC da OMC.

    Para os participantes do encontro parece claro que o contencioso da OMC em discusso

    bastante complexo e aborda diversas questes referentes relao entre Comrcio, Meio

    Ambiente e Sade, comercializao de produtos novos e usados, ao multilateralismo e

    regionalismo, ao envolvimento de mais de 10 pases como terceiros interessados no mbito

    6 O Amicus encontra-se disponvel em , acesso em: 19 de abril de 2007. 7 WT/DS322/6 e WT/DS322/7. 8 Para maiores informaes, acesse , acesso em: 19 de abril de 2007.

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    CADERNOS DIREITO GV 13

    de um contencioso na OMC e s possibilidades de atuao da sociedade civil organizada

    por meio da apresentao de amici curiae.

    De maneira geral, os problemas relacionados ao caso dos pneus na OMC foram

    apresentados pelo Primeiro-Secretrio do MRE, Haroldo Ribeiro, com nfase no histrico

    da legislao interna brasileira. Alguns detalhes sobre a cadeia produtiva, complementaes

    ao marco normativo brasileiro e aes governamentais relevantes para o litgio foram

    apresentados por Maria Gricia Grossi (MMA) e Mrcio Freitas (IBAMA), enquanto que

    Raquel Biderman Furriela (CES-FGV) e Jeffer Castelo Branco (ACPO) contriburam para

    o debate com seus comentrios e opinies.

    II. Os pneus e os problemas de sade pblica e meio ambiente: as aes de controle do

    governo brasileiro

    Uma das principais perguntas subjacentes no caso dos pneus e que do respaldo

    legislao brasileira : o que fazer com os pneus inservveis?

    Conforme exposio e dados trazidos por representantes do IBAMA e MMA, a destinao

    de pneu inservvel um problema mundial: a quantidade de pneus inservveis gerados por

    EUA e CE de 300 milhes ao ano cada; pelo Japo, 102 milhes ao ano; e pelo Brasil, 40

    milhes ao ano. No caso das CE, dos 300 milhes de pneus inservveis gerados, 80 milhes

    so dispostos em aterro os quais, no entanto, em razo da Diretiva 1999/31/CE, deveriam

    ter outra destinao a partir de 2006. Alm disso, 20 milhes de pneus que atualmente so

    co-processados em fornos de cimenteiras tero que seguir legislaes de emisses mais

    restritas a partir de 2008, o que encarecer drasticamente o processamento de pneus por

    esta tecnologia. Uma vez que, para as CE, a exportao de pneus usados uma forma de

    destinao ambientalmente adequada e j que no h mercado nas CE para os pneus

    reformados sugere-se que estes pneus sejam encaminhados ao Brasil, caso seja liberada a

    importao de pneus usados.

    Os Pases Desenvolvidos (PDs) produzem enormes quantidades de pneus inservveis e,

    apesar de controlarem sua coleta, encontram cada vez mais limitaes para sua destinao

  • PARTICIPAO DA SOCIEDADE CIVIL: COMRCIO, SADE E MEIO AMBIENTE NA OMC CADERNO - 17

    CADERNOS DIREITO GV 14

    final. No Brasil, as principais dificuldades para controlar os impactos ambientais e sade

    relacionados aos pneus inservveis, referem-se sua coleta9, falta de controle na entrada

    de pneus usados importados que aumentam o passivo ambiental e, sobretudo, sua

    destinao final.

    No caso brasileiro, o problema agravado em parte pela situao atual da aplicao da

    resoluo 258/99 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA)10. Tal resoluo

    no resolveu os problemas relativos coleta de pneus e as dificuldades de controle

    principalmente relacionadas emisso de certificados, ao gerenciamento das destinadoras e

    importaes de veculos, por exemplo.

    Dentre os principais problemas ambientais, discutidos durante o encontro, foram citados (i)

    a dificuldade de decomposio - o pneu considerado no biodegradvel, com tempo de

    decomposio indeterminado; (ii) pneus inservveis ocupam grande volume e dificultam a

    compactao em aterros; (iii) ocasionam, no caso da queima, a liberao de substncias

    txicas e cancergenas, poluentes orgnicos e inorgnicos, tais como dioxinas; (iv)

    contribuem para assoreamento de rios e enchentes; alm de (v) pneus serem considerados

    excelentes criadouros de insetos vetores de doenas localizadas em pases de clima tropical

    como a dengue e febre amarela.

    verdade, no entanto, que existem alternativas para a destinao de pneus usados. As

    principais formas de destinao final de pneus inservveis existentes no Brasil seriam: (i)

    us-los em asfalto e pavimentao de vias (asfalto-borracha); (ii) co-processamento em

    fornos de cimento o pneu adicionado ao forno rotativo, que opera na temperatura de

    1300 C, como combustvel alternativo, pelo seu alto poder calorfico; (iii) co-

    processamento na usina de xisto betuminoso Processo PETROSIX (PETROBRS) que

    9 Para o mapa ilustrativo da distribuio das empresas destinadoras de pneus e pontos de coleta, apresentado pelo IBAMA, ver anexo 4. 10 Dados sobre as metas e destinao de pneumticos inservveis, alm da porcentagem de destinao sobre a meta fixada na Resoluo CONAMA 258/99, foram apresentados pelo IBAMA. Cf. Anexo 5. Esta resoluo encontra-se disponvel em , acesso em: 19 de abril de 2007.

  • PARTICIPAO DA SOCIEDADE CIVIL: COMRCIO, SADE E MEIO AMBIENTE NA OMC CADERNO - 17

    CADERNOS DIREITO GV 15

    consiste na pirlise (aprox. 500 C) do xisto com os pneus (cerca de 5% peso) para

    liberao de leo e gs; (iv) fabricao de artefatos de borracha, como pisos, tapetes, solas

    de sapato, etc; e (v) utilizao em controle de eroso, absoro de impactos, parques de

    diverso, etc. Os dados abaixo reproduzidos mostram o percentual de distribuio dos

    pneus inservveis conforme o tipo de destinao final:

    Salienta-se, no entanto, que todas as formas de destinao geram impacto ambiental, quer

    por meio de emisses txicas, quer pela gerao de resduos que necessitam de tratamentos

    especiais. Apresentam, ainda, problemas de controle, de monitoramento e de capacidade de

    instalao.

    Com efeito, segundo dados do MMA, o Brasil possui hoje em torno de 2000 quilmetros de

    asfalto-borracha, porm esta tecnologia recente e ainda no usual no pas, alm de ainda

    no estarem disponveis estudos sobre sua manuteno. Com relao ao co-processamento

    em fornos de cimento, seria necessrio um equipamento de alto custo para o controle

    especfico de emisses atmosfricas. Quanto ao co-processamento com xisto betuminoso,

    nota-se que 42 % (peso) do seu rendimento geram resduos que retornam para a rea

    mineradora.

    Alm disso, no caso das cimenteiras, enfatizam-se os problemas decorrentes das emisses

    de dioxinas e furanos, observando que o padro de emisses no Brasil de 0,5 g, enquanto

    D i s t r i b u i o d a s P r i n c i p a i s D e s t i n a e s d e P n e u s - B r a s i l 2 0 0 4

    3 1 %

    5 %5 8 %

    6 % C im e n t e ir a

    E x t r a o e T r a t a m e n t o d e M in e r a is

    L a m in a o e f a b r ic a o d ea r t e f a t o s d e b o r r a c h aO u t r o s ( e x p o r t a o d e d e r iv a d o se t c )

    Fonte: Ibama, 2006.

  • PARTICIPAO DA SOCIEDADE CIVIL: COMRCIO, SADE E MEIO AMBIENTE NA OMC CADERNO - 17

    CADERNOS DIREITO GV 16

    que nas CE no pode passar de 0,1 g. Acrescenta-se ainda que, das 47 cimenteiras do pas,

    apenas 21 esto licenciadas para co-processar resduos industriais. Na extrao e tratamento

    minerais, problematiza-se o resultado do co-processamento (52% leo; 2,4% gua; 3,6%

    gs; 42% resduo potencialmente perigoso), alm das dificuldades de secagem no filtro

    prensa. No caso das laminadoras, atenta-se para o problema do mercado informal e do

    aproveitamento abaixo de 100% com conseqente gerao de resduos.

    Alm dos impactos ambientais decorrentes das formas de destinao final de pneus

    inservveis expostas acima, so tambm evidentes os problemas dos pneus reformados.

    No caso da reforma de pneus, os problemas se diferenciam, contudo, conforme o pneu

    utilizado enquanto matria-prima para a reforma seja nacional ou importado. Quando o

    pneu usado na reforma nacional, existem dificuldades para a coleta (poucos pontos de

    coleta, pouca oferta e alto custo de transporte) e m qualidade da matria prima, em virtude

    especialmente da alta rodagem desses pneus (pneus carecas so praticamente inservveis,

    sem possibilidade de reforma). J a principal vantagem na reciclagem do pneu usado

    nacional est no prolongamento de sua vida til e conseqente menor gerao de resduos.

    No caso da importao de pneus usados para reforma, aumenta-se o risco para a segurana

    ambiental pelas dificuldades de controle da origem e do nmero de reformas j realizadas,

    alm do risco para a sade, em razo da falta de controle epidemiolgico de vetores de

    doenas. Neste caso, agrava-se ainda mais o problema ambiental por causa da menor vida

    til desses pneus e pela conseqente gerao mais rpida de resduos11. Destaca-se, ainda, o

    problema de ordem operacional relativo dificuldade de controle do bem usado vs. resduo;

    e, por fim, o problema de natureza comercial referente abertura ao mercado de bens de

    consumo usados. Com relao principal vantagem, indica-se o baixo custo desses pneus

    usados importados enquanto matria-prima, uma vez que no necessitam de coleta.

    11 Cf. dados do MMA, a maioria dos pneus usados importados que entram no Brasil so utilizados em veculos de passeio e s podem ser reformados uma vez (segundo norma do INMETRO). Desta forma, esses pneus tm menor tempo de vida til e, conseqentemente, tornam-se resduos em menor tempo, o que pode dobrar o passivo ambiental. Nota-se, conforme dados do MMA, que, s em 2004, o Uruguai exportou ao Brasil aproximadamente 130 mil unidades de pneus recauchutados/remoldados, sendo mais de 90% pneus de veculos de passeio.

  • PARTICIPAO DA SOCIEDADE CIVIL: COMRCIO, SADE E MEIO AMBIENTE NA OMC CADERNO - 17

    CADERNOS DIREITO GV 17

    Algumas alternativas que buscam solucionar o problema interno concentram-se na

    possibilidade de melhorar a inspeo veicular, um procedimento que pode aumentar a

    gerao de pneus para reforma que j se encontram em territrio nacional. Tal

    procedimento traria ainda o efeito positivo de reduo dos acidentes de trnsito. Outra

    opo aponta para a integrao do ciclo de coleta (ponto de troca como ponto de coleta e

    seleo do destino do pneu), com expectativa tambm de reduo do custo de transporte

    para a coleta. Haveria, por fim, a possibilidade de uso da reforma como crdito de

    destinao, o que traria maior incentivo reciclagem, maior vida til aos pneus e menor

    gerao de resduos, alm da maior facilidade de controle na coleta regulada pelo prprio

    mercado, em que a destinao final passaria a ser o foco principal.

    Nesse sentido, ressalta-se a idia de que a posio brasileira no seria contra a reforma de

    pneus, uma vez que reforada a conscincia das vantagens do prolongamento de sua vida

    til, desde que seja uma reforma de carcaas geradas no territrio nacional, em obedincia

    ao princpio da preveno e reduo da gerao de resduos. A restrio importao de

    pneus usados, contudo, seria uma medida para evitar a entrada de resduos de outros pases

    no Brasil. Isso porque, apesar dos pneus usados servirem como matria prima, em um

    primeiro momento, pelo fato de terem uma vida til menor do que a do pneu importado

    novo, logo se tornaro resduos em territrio brasileiro. Sugere-se ainda que uma parte

    desses pneus usados antes mesmo de entrarem em territrio brasileiro j so pneus

    inservveis, ou seja, resduos.

    III. Consequncias das restries de importao de pneus reformados pelo Brasil:

    marco normativo brasileiro e diretrizes das CE no caso dos pneus

    Para uma melhor compreenso dos interesses das CE, no se pode considerar somente o

    que ocorreu a partir de 20 de janeiro de 2006, data de estabelecimento do painel na OMC.

    preciso voltar para o procedimento interno de investigao realizado pela CE (o qual deve

    ser informado ao pas investigado conforme as regras da OMC) e iniciado pelo Bureau

    International Permanent des Associations de Vendeurs et Rechapeurs de Pneumatiques

    (BIPAVER), em 5 de novembro de 2003. O objetivo de tal procedimento seria identificar e

  • PARTICIPAO DA SOCIEDADE CIVIL: COMRCIO, SADE E MEIO AMBIENTE NA OMC CADERNO - 17

    CADERNOS DIREITO GV 18

    eliminar as prticas comerciais supostamente ilegais que prejudicavam a exportao de

    pneus reformados por parte das CE. Assim, o litgio entre Brasil e CE, que agora objeto

    de um painel na OMC, na realidade, iniciou-se h muito tempo, quando as CE comearam a

    se sentir prejudicada pela regulamentao normativa adotada pelo Brasil.

    De fato, a legislao brasileira probe a importao de bens de consumo usados, o que

    implicitamente inclui pneus usados, de uma forma geral, desde o incio da dcada de 90,

    com a edio da Portaria No 8/91, do Departamento de Comrcio Exterior (DECEX).12

    A partir de 1992, quando foi realizada a segunda Conferncia Mundial para o Meio

    Ambiente e Desenvolvimento (ECO-92), cresceu a conscientizao de que os resduos

    apresentam srios riscos ao meio ambiente e sade humana. Aps a ECO-92, o Brasil,

    como pas sede da conferncia, editou normativa ambiental, a Portaria Normativa No 138-

    N, de 22/12/1992, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais

    Renovveis (IBAMA), desta vez com a expressa proibio importao de pneus usados.

    Essa normativa foi reforada, no ano de 1993, com a ratificao pelo Brasil da Conveno

    da Basilia sobre o Controle de Movimentos Transfronteirios de Resduos Perigosos e sua

    Disposio, adotada em 198913. Tal ao resultou na regulamentao interna da importao

    de resduos pelo CONAMA, a exemplo da Resoluo CONAMA No 7, de 04/05/1994 que

    substituiu a Portaria Normativa IBAMA, de 1992. Hoje, a regulamentao do CONAMA

    em vigor Resolues CONAMA No 23, de 12/12/1996, e No 235, de 07/01/98 define

    claramente a proibio importao de pneus usados.14

    Alm das normas ambientais, a legislao comercial brasileira Portaria Interministerial

    (do Ministrio da Fazenda e do Ministrio do Desenvolvimento, Indstria e Comrcio -

    MDIC) No. 3, de 12/09/95, e Portaria da Secretaria de Comrcio Exterior (SECEX) No 8,

    12 A referida portaria foi publicada no DOU de 14/05/91. O DECEX um rgo vinculado ao Poder Executivo, pela Secretaria de Comrcio Exterior (SECEX) do Ministrio do Desenvolvimento, Indstria e Tecnologia (MDIC). 13 A Conveno foi adotada na Basilia, Sua, em 22 de maro de 1989. No Brasil, foi internalizada pela promulgao do Decreto 875, de 19/07/93 disponvel em , acesso em: 19 abr. 2007. 14 Tais resolues encontram-se disponveis em e , acesso em: 19 de abril de 2007.

  • PARTICIPAO DA SOCIEDADE CIVIL: COMRCIO, SADE E MEIO AMBIENTE NA OMC CADERNO - 17

    CADERNOS DIREITO GV 19

    de 25/09/00 reforou as determinaes de proibio de importao de pneus usados e

    explicitou, tambm, a proibio da importao de pneus recauchutados.

    Apesar das restries impostas pela legislao brasileira, o Brasil aumentou a importao

    de pneus reformados, seja de forma explicitamente ilegal, seja pela concesso de liminares

    do judicirio brasileiro15. O pico desta importao ocorreu no ano de 1998.16 Entre alguns

    outros fatores, em razo disso, no entanto, o CONAMA adotou as Resolues 264 (de

    26/08/99)17 e 316 (de 29/10/02)18, acompanhadas de Portarias do Instituto Nacional de

    Metrologia, Normalizao e Qualidade Industrial (INMETRO), com a finalidade de evitar

    as interpretaes aplicadas na concesso de liminares para a importao de pneus usados.

    mesma poca, com a entrada de novos vetores da Dengue (aedes aegypti), cujo principal

    meio de criao so carcaas de pneus, a doena alastrou-se por todo o territrio brasileiro e

    transformou-se em verdadeira epidemia. Houve, ainda, uma urbanizao da febre amarela

    (transmitida pelo mesmo vetor). A partir de ento, a importao de pneus tornou-se um

    problema de carter no apenas ambiental, mas tambm de sade pblica. 19

    No por acaso que, em 1999, o CONAMA adotou, pela Resoluo No 258, em vigor

    desde 1 de janeiro de 2002, o princpio de responsabilidade do importador de pneus novos

    e dos fabricantes quanto coleta e destinao final, ambientalmente adequada aos pneus

    inservveis existentes no territrio nacional.20

    15 Cf. MMA(2006), Com o uso de liminares concedidas pela Justia s empresas reformadoras, entre 1990 e 2004 entraram no pas mais de 34 milhes de unidades, de acordo como o Ministrio do Desenvolvimento, Indstria e Comrcio Exterior. 16 Nota-se que a maior parte dessa importao foi proveniente da Unio Europia. Cf. Dados do Anexo 1. 17 Dispe sobre os procedimentos de licenciamento ambiental para o co-processamento de resduos em fornos rotativos de clnquer, para a fabricao de cimento. A resoluo encontra-se disponvel em , ltima consulta em 19 de abril de 2007. 18 Dispe sobre procedimentos e os critrios para o funcionamento de sistemas de tratamento trmico de resduos. Disponvel em , acesso em: 19 de abril de 2007. 19 Segundo dados do Ministrio da Sade, durante a dcada de 90, houve um aumento da taxa de incidncia da dengue no territrio brasileiro, observado com maior evidncia a partir de 1995 (87 casos por 100.000 habitantes), e nos anos seguintes, respectivamente 117 casos (1996), 156 (1997), subindo para 326 casos em 1998. Cf. dados do grfico (Anexo 2) sobre a evoluo histrica da taxa de incidncia de dengue no Brasil, entre 1986 e 2004 e v. MS (2005). 20 Ver nota 10.

  • PARTICIPAO DA SOCIEDADE CIVIL: COMRCIO, SADE E MEIO AMBIENTE NA OMC CADERNO - 17

    CADERNOS DIREITO GV 20

    Em 2001, a normativa ambiental brasileira foi recrudescida pelo Decreto 3.919 de

    14/09/2001, que passou a considerar a importao de pneus usados ou reformados tambm

    como infrao administrativa e estipulou uma multa de R$ 400,00 por unidade importada21.

    At ento, tais medidas eram aplicadas sem exceo quanto origem do pas exportador.

    Em 2002, no entanto, por decorrncia da deciso do Tribunal Arbitral Ad Hoc do Mercosul

    tomada em 9 de janeiro, em favor do Uruguai22, a SECEX editou a Portaria No 2, de

    8/03/02, com autorizao para a importao de pneus remoldados provenientes de pases do

    Mercosul.23 Nesse mesmo sentido, o Decreto 3.919/01 foi alterado pelo Decreto 4.592 de

    11/02/0324 para excluir tal importao da sano administrativa.

    Por fim, nota-se que, ao passo que a legislao brasileira, conforme exposto acima, passou

    a limitar cada vez mais a entrada de pneus usados e reformados no pas, com exceo dos

    pneus provenientes dos pases do Mercosul, a legislao das CE acentuou

    consideravelmente a necessidade de exportao destes mesmos tipos de pneus, em

    detrimento de dar-lhes uma destinao final no seu prprio territrio. Nesse sentido,

    destacam-se trs diretivas: (i) Diretiva 1999/31/EC, que probe em todos os pases

    membros, desde 16 de julho de 2006, o armazenamento ou descarte de pneus usados

    ainda que triturados - em aterros. Com isto, seria necessrio arranjar uma outra forma de

    destinao para cerca de 26 % (cerca de 80 milhes de toneladas) dos pneus europeus, que

    at ento eram destinados aos aterros; (ii) Diretiva 2000/53/EC, sobre Veculos no Fim de

    21 O Decreto 3.919/01 acrescentou o seguinte artigo ao Decreto 3.179/99: "Art. 47-A. Importar pneu usado ou reformado: Multa de R$ 400,00 (quatrocentos reais), por unidade. Pargrafo nico. Incorre na mesma pena, quem comercializa, transporta, armazena, guarda ou mantm em depsito pneu usado ou reformado, importado nessas condies.". O Decreto 3.919/01 encontra-se disponvel em , acesso em: 19 de abril de 2007. 22 Cf. Laudo do Tribunal Arbitral Ad Hoc do MERCOSUL constitudo para entender da controvrsia apresentada pela Repblica Oriental do Uruguai Repblica Federativa do Brasil sobre Proibio de Importao de Pneumticos Remoldados (Remolded) Procedentes de Uruguai, disponvel em , ltima consulta em julho de 2006. 23 Publicada no DOU em 11/03/02. Disponvel em , acesso em: 19 de abril de 2007. 24 Cf Art. 1 deste decreto: O art. 47-A do Decreto no 3.179, de 21 de setembro de 1999, passa a vigorar acrescido do seguinte pargrafo, renumerando-se o atual pargrafo nico para 1o:" 2o Ficam isentas do pagamento da multa a que se refere este artigo as importaes de pneumticos reformados classificados nas NCM 4012.1100, 4012.1200, 4012.1300 e 4012.1900, procedentes dos Estados Partes do MERCOSUL, ao amparo do Acordo de Complementao Econmica no 18." O Decreto 4592 encontra-se disponvel em , acesso em: 19 de abril de 2007.

  • PARTICIPAO DA SOCIEDADE CIVIL: COMRCIO, SADE E MEIO AMBIENTE NA OMC CADERNO - 17

    CADERNOS DIREITO GV 21

    Sua Vida til, que determina, por exemplo, a remoo de pneus de veculos que sero

    destrudos, para assegurar que eles no sejam jogados em aterros; e (iii) Diretiva

    2000/76/EC, sobre Incinerao de Resduos, que visa preveno e limitao da

    poluio. Para tanto, dever-se-ia aumentar o controle sobre os impactos ambientais de

    resduos queimados, inclusive pneus.25

    IV. A controvrsia entre Uruguai e Argentina: sua retomada no Mercosul

    Curiosamente, no mesmo perodo em que as CE questionavam o Brasil, o tema voltou a ser

    debatido no sistema de soluo de controvrsias do Mercosul, desta vez, entre Argentina e

    Uruguai. Em 2005 foi instaurado, no mbito do Mercosul, um tribunal arbitral ad hoc para

    analisar a controvrsia entre Uruguai e Argentina relativa proibio de importao de

    pneus reformados imposta por esta, mediante a lei 25626 de 08/08/02.26.

    De um lado, o Uruguai argumentava que a medida argentina violava os artigos 1 a 5 do

    Tratado de Assuno (TA), que o acordo constitutivo do Mercosul, por caracterizar uma

    restrio livre circulao de bens dentro deste bloco. Argumenta, ainda, que a normativa

    argentina ofende as Decises 22/00 e 57/00 do Conselho de Mercado Comum do Mercosul

    relativas a acesso a mercados.

    De outro lado, a Argentina sustentava a legalidade de sua normativa interna com base na

    aplicao de princpios que excepcionam o livre comrcio. Com efeito, o artigo 2(b) do

    Anexo I do TA remete ao artigo 50 do Tratado de Montevidu de 1980 (constitutivo da

    Associao Latinoamericana para o Desenvolvimento e Integrao ALADI) que, por sua

    vez, estabelecia uma srie de excees ao princpio do livre comrcio. Dentre elas, a

    25 V. MMA (2005: 7). Cf. tambm, CIEL (2006: 2). As Diretivas encontram-se disponveis, respectivamente, em e , acesso em: 19 de abril de 2007. 26 A deciso do tribunal, emitida em 25 de outubro de 2005, encontra-se disponvel em , acesso em: 19 de abril de 2007.

  • PARTICIPAO DA SOCIEDADE CIVIL: COMRCIO, SADE E MEIO AMBIENTE NA OMC CADERNO - 17

    CADERNOS DIREITO GV 22

    proteo da vida e da sade das pessoas (inciso d), utilizada pela Argentina para justificar

    a proibio de importao de pneus reformados.

    Em sua deciso, o tribunal arbitral considerou haver um conflito entre dois princpios

    consagrados no mbito da normativa do Mercosul, quais sejam, o livre comrcio e a

    preservao ambiental e da sade das pessoas. No entanto, ao destacar que os pneus de fato

    constituam-se em um resduo e que geravam inmeros problemas ambientais; e que os

    pneus reformados no poderiam ser novamente reaproveitados, fato que levaria a um

    aumento substancial do passivo ambiental, o tribunal, por 2 votos a 1, deu ganho de causa

    Argentina e, portanto, privilegiou, neste caso concreto, a aplicao do princpio da proteo

    ambiental e da sade humana em detrimento do princpio do livre comrcio.

    No entanto, o Uruguai recorreu ao Tribunal Permanente de Reviso (TPR) que, ao

    reexaminar o laudo arbitral, reverteu a deciso do tribunal ad hoc. Com efeito, o TPR

    entendeu que no havia um conflito de princpios, conforme havia decidido o tribunal ad

    hoc. Havia sim excees ao princpio do livre-comrcio que, para serem legalmente

    aplicadas, deveriam preencher alguns requisitos (proporcionalidade, carter no

    discriminatrio e justificativa da medida, por exemplo) que, segundo o TPR, neste caso

    especfico no foram preenchidos.27

    V. Desafios de coordenao para uma ao governamental comum e interesses no

    governamentais em jogo

    Alm das dificuldades de implementao da legislao brasileira interna, os principais

    desafios de coordenao para uma ao de sucesso no caso em questo traduzem a

    necessidade de o Brasil tomar uma posio comum tanto internamente, quanto no mbito

    do Mercosul.

    27 O laudo do Tribunal Permanente de Reviso encontra-se disponvel em , acesso em: 19 de abril de 2007.

  • PARTICIPAO DA SOCIEDADE CIVIL: COMRCIO, SADE E MEIO AMBIENTE NA OMC CADERNO - 17

    CADERNOS DIREITO GV 23

    A flexibilizao da legislao brasileira face s decises do Mercosul, apesar de necessria

    quanto ao esforo de se seguir o princpio constitucional de busca da integrao regional na

    Amrica Latina28, enfraquece o esforo do governo (e.g. IBAMA e CONAMA, no mbito

    do MMA; DECEX e SECEX junto ao MDIC; e Ministrio da Sade), de manter uma

    poltica coerente que proba a importao de pneus usados e reformados como forma de

    evitar a acumulao de resduos txicos e poluentes em territrio nacional, e assim, o

    escopo de proteo do meio ambiente e sade pblica.

    Em relao ao Mercosul, embora Brasil e Argentina pretendam adotar uma poltica

    comum do Mercosul contra a entrada de resduos - principalmente decorrentes da

    importao de pneus usados - h uma enorme dificuldade para a obteno do apoio de

    Paraguai e Uruguai, a exemplo da controvrsia no mbito do Mercosul entre Uruguai e

    Argentina tratada acima.

    Ademais, o desgaste do esforo do governo federal aumenta em virtude do descumprimento

    da legislao brasileira por parte dos importadores de pneus usados e pela falta de controle

    quanto s concesses de liminares pelo Judicirio brasileiro. Segundo dados do IBAMA,

    entre 2003 e 2005, foram identificadas mais de 20 importadoras de pneus usados que

    descumpriam a Resoluo 258/1999 do CONAMA. A tabela abaixo mostra alguns dos

    autos de infrao lavrados pelo IBAMA, em junho de 2005, em virtude do descumprimento

    dos dispositivos da Resoluo, contra empresas fabricantes e importadoras de pneus novos

    nos estados de So Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul em virtude do

    descumprimento da Resoluo n 258/1999 do CONAMA29.

    28 V. Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988, art. 4, pargrafo nico. 29 Cf. MMA (2005: 22).

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    CADERNOS DIREITO GV 24

    Dados sobre as multas aplicadas pelo descumprimento da Resoluo 258/99 EMPRESA TOTAL NO

    DESTINADO EM TONELADAS

    VALOR DA MULTA

    Bridgestone Firestone do Brasil Indstria e Comrcio Ltda

    71.180,20 R$ 4.270.812,00

    Goodyear do Brasil Produtos de Borracha Ltda

    101.163,21 R$ 6.069.792,60

    Industrial Levorin S.A 30,20 R$ 1.812,00 Maggion Indstria de Pneus e Mquinas Ltda

    2.305,99 R$ 138.359,40

    Pirelli Pneus S.A. 108.480,48 R$ 6.508.828,80Rinaldi S.A Indstria de Pneumticos 2.197,01 R$ 131.820,60Sociedade Michelin de Participao, Indstria e Comrcio Ltda

    56.489,01 R$ 3.389.340,60

    Souza Pinto Indstria e Comrcio de Artefatos de borracha Ltda

    110,43 R$ 33.129,00

    Fonte: Ibama, 2005

    Com relao ao descumprimento do Decreto 3919/2001, em 2005, foram multadas mais

    de 15 empresas, no Paran, Santa Catarina, So Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal no

    total de R$23.954.000. Abaixo, segue lista exemplificativa de empresas autuadas pela

    venda de pneus usados30.

    Dados sobre as multas aplicadas pelo descumprimento do Decreto 3919/2001.

    Empresa multada Estado Unidades de pneus usados vendidos

    Valor da multa

    Ribor Exp. Imp. Com. Rep. LTDA

    SC 25.721 R$ 10.288.400,00

    Jurandir e Borges Com. e Representaes LTDA

    SC 900 R$ 360 mil

    BS Colway LTDA PR 3.626 R$ 1.450.400,00

    Maratona Comrcio de Pneus e Carcaas LTDA

    PR 4.504 R$ 1.801.600,00

    Novabresso Remoldagem de Pneus LTDA

    SC 2.000 R$ 800 mil

    Fonte: Ibama, 2005

    30 Cf. MMA (2005: 23).

  • PARTICIPAO DA SOCIEDADE CIVIL: COMRCIO, SADE E MEIO AMBIENTE NA OMC CADERNO - 17

    CADERNOS DIREITO GV 25

    Em 2005, o volume de importao de pneus usados aumentou 40% em relao ao ano de

    2004, em um total de 10,5 milhes de unidades, dos quais a maior parte entrou no pas

    amparada em liminares judiciais.31 J no incio de 2006, continuaram as apreenses de

    carcaas de pneus importadas ilegalmente32.

    Esses dados tambm apresentam um obstculo implementao da Conveno de

    Estocolmo para a Eliminao de Poluentes Orgnicos Persistentes, em vigor, no Brasil,

    desde 200533. Como o objetivo de proteger a sade humana e o meio ambiente dos

    poluentes orgnicos persistentes, essa Conveno inclui medidas que visam a reduzir ou

    eliminar as liberaes de resduos decorrentes de produo e uso intencionais e no-

    intencionais, alm de medidas para reduzir ou eliminar as liberaes de estoques e

    resduos.34

    Alm disso, ressaltam-se as crticas quanto ao problema de coordenao entre os Poderes

    Executivo, Legislativo (leis e projetos de lei atuais) e Judicirio (caso das liminares), apesar

    de uma certa coordenao dos Ministrios envolvidos diretamente no caso (MRE e MMA

    notadamente).

    No embate em se fazer cumprir a legislao brasileira e os compromissos internacionais

    assumidos pelo pas, a discusso sobre a liberalizao das importaes de pneus usados

    pelo Brasil ecoa na Cmara dos Deputados e no Senado e pode ser ilustrada pela

    apresentao de projetos de leis nas duas casas. Enquanto tramita na Cmara dos Deputados

    o Projeto de Lei (PL) 203/91 sobre a Poltica Nacional de Resduos Slidos , no Senado

    est em andamento a tramitao do Projeto de Lei do Senado (PLS) 216/2003 que dispe

    31 Cf. O Estado de So Paulo, Apesar de vetada, importao de pneus usados cresce 40%, 16 de fevereiro de 2006 (disponvel em

  • PARTICIPAO DA SOCIEDADE CIVIL: COMRCIO, SADE E MEIO AMBIENTE NA OMC CADERNO - 17

    CADERNOS DIREITO GV 26

    sobre as exigncias de contrapartida ambiental pela colocao de pneus no mercado

    interno, sejam eles importados ou fabricados no Brasil.35

    As discusses no Congresso Nacional e no Senado tambm so acompanhadas pela

    contraposio de interesses organizados, por parte de grupos de interesses do setor privado

    e de representantes de ONGs, seja diretamente em Braslia, seja por meio da apresentao

    de suas posies junto mdia nacional.

    Pelo embate apresentado na mdia nacional, dentre os representantes do setor privado, de

    um lado, esto os fabricantes brasileiros e a Associao Nacional da Indstria de

    Pneumticos (ANIP), que pressionam os deputados contra a liberalizao da importao; e

    de outro, empresas de remoldagem (na verso dos importadores), representadas pela

    Associao Brasileira da Indstria de Pneus Remoldados (ABIP) que, alm de

    demonstrarem preocupao com matria-prima supostamente no disponvel no Brasil,

    alegam que os argumentos de preocupao ambiental mascaram uma questo de ordem

    econmica em favor das multinacionais fabricantes de pneus (Goodyear, Bridgestone /

    Firestone, Pirelli e Michelin)36.

    Com relao aos representantes de ONGs de proteo sade e ao meio ambiente e de

    direito humanos, em geral, dentre outras, uma coalizo apia o governo junto ao MMA

    contra a liberalizao da importao de pneus usados. Em carta aberta ao Senado Federal,

    datada de 14 de junho de 2005, 11 ONGs manifestaram-se contra o PLS 216/2003 e

    contaram com a adeso de mais de 50 outras organizaes da sociedade civil37.

    35 No mbito do Congresso Nacional, a disputa acirrou-se quando, em 21 de junho de 2006, a Comisso Especial da Cmara aprovou o projeto que autorizava a importao de pneus usados. A aprovao foi anulada, em seguida (28 de junho), a pedido do deputado Luciano Zica (PT-SP), contrrio ao projeto, em razo do relator, deputado Feu Rosa (PP-ES) ser autor de outra proposta sobre a mesma questo, o que contraria o regimento da Cmara. V. O Estado de So Paulo, Comisso da Cmara aprova importao de pneus usados, de 22 de junho de 2006; Aprovao de importao de pneus usados pode ser revista, de 23 de junho de 2006; e Comisso da Cmara ter de rever projeto sobre pneus, de 29 de junho de 2006 (disponvel em

  • PARTICIPAO DA SOCIEDADE CIVIL: COMRCIO, SADE E MEIO AMBIENTE NA OMC CADERNO - 17

    CADERNOS DIREITO GV 27

    PARTE II OS ARGUMENTOS DO BRASIL E DAS COMUNIDADES EUROPIAS

    I. Os argumentos das Comunidades Europias

    Quando da realizao do encontro na DIREITO GV, a petio inicial das CE j havia sido

    apresentada ao painel, na OMC. Tal documento, no entanto, no havia sido disponibilizado

    ao pblico em geral poca, o que dificultou o acesso aos argumentos que delimitariam o

    campo de anlise pelo OSC. Atualmente, os documentos apresentados pelas CE ao painel j

    se encontram disponveis ao pblico.38 De maneira geral, possvel identificar os seguintes

    argumentos levantados pelas CE no caso dos pneus, e a sua respectiva fundamentao na

    normativa do GATT 1994:

    (i) A proibio de importao de pneus reformados instituda pelo Brasil constitui

    uma violao ao art. XI:1 do GATT 1994, pois significa uma medida restritiva

    de importao que no se inclui dentre aquelas permitidas pelo referido artigo

    (direitos aduaneiros, impostos ou outros encargos);

    (ii) A multa de R$ 400 por unidade de pneu reformado importado fere o art. III:4 do

    GATT 1994, j que na medida em que no aplicada aos pneus reformados

    produzidos no Brasil impe um tratamento menos favorvel a tais pneus

    produzidos nas CE em face daqueles produzidos no Brasil;

    (iii) O levantamento da proibio da importao apenas para pneus reformados

    oriundos de outros pases membros do Mercosul implica na violao do art. I:1

    do GATT 1994, pois consiste em um benefcio concedido a tais pases que no

    foi estendido aos outros Membros da OMC, como as CE;

    (iv) A manuteno da proibio da importao de pneus reformados para todos os

    outros pases no membros do Mercosul viola o art. XIII:1 do GATT 1994, pois

    constitui uma restrio quantitativa ao comrcio de carter discriminatrio, na

    medida em que no aplicvel a todos os Membros da OMC.

    38 As duas peties escritas apresentadas pelas CE ao painel, bem como suas sustentaes orais, encontram-se disponveis na pgina eletrnica da Comisso Europia relativa a questes comerciais: , acesso em: 24 de outubro de 2006.

  • PARTICIPAO DA SOCIEDADE CIVIL: COMRCIO, SADE E MEIO AMBIENTE NA OMC CADERNO - 17

    CADERNOS DIREITO GV 28

    A indicao desses argumentos refora a anlise de uma boa parte dos temas levantados

    para discusso durante o encontro na DIREITO GV, abaixo detalhados.

    II. As possibilidades de defesa do Brasil

    Dentre as principais possibilidades aventadas para a defesa do Brasil, foram analisadas as

    seguintes durante o encontro em So Paulo:

    i) a proibio da importao de pneus reformados uma

    medida de proteo da sade pblica e do meio ambiente,

    fundamentada nos art. XX(b), XX(g) e XX caput do GATT

    1994);

    ii) o levantamento da proibio para os pases do Mercosul e a

    sua manuteno para os restantes pases uma medida

    tomada no mbito de um Acordo Regional de Comrcio,

    conforme o art. XXIV do GATT 1994;

    iii) a proibio de importao de pneus reformados respaldada

    pelo art. 4 da Conveno da Basilia.

    A. A proibio de importao de pneus reformados como medida de proteo de

    sade pblica e do meio ambiente.

    Uma das idias discutidas no evento foi a de que a posio do governo brasileiro pode

    encontrar respaldo no art. XX do GATT 1994. Tal artigo permite aos Membros da OMC

    adotarem medidas em nome da proteo de determinados bens jurdicos como a sade

    pblica e o meio-ambiente, previstos nas alneas (b) e (g), respectivamente ainda que

    tais medidas no se coadunem plenamente com as obrigaes assumidas no mbito desta

    organizao.

  • PARTICIPAO DA SOCIEDADE CIVIL: COMRCIO, SADE E MEIO AMBIENTE NA OMC CADERNO - 17

    CADERNOS DIREITO GV 29

    O artigo XX representaria, portanto, uma exceo geral regulamentao do GATT e,

    sua aplicao e interpretao no deveriam ser restritivas e visariam ao equilbrio entre

    as obrigaes assumidas perante os outros Membros da OMC e os objetivos

    reconhecidos pelo prprio artigo.

    Alis, ressaltou-se durante o encontro que as CE no questionam os objetivos da medida

    adotada pelo Brasil (proteo sade pblica e ao meio ambiente), mas sim o fato de

    esta medida implicar numa restrio, de carter discriminatrio, ao comrcio com outros

    membros da OMC.

    Um proposta possvel seria, ento, uma argumentao do art. XX estruturada em duas

    etapas. A primeira corresponderia ao enquadramento da medida brasileira nas alneas (b)

    e (g) do art. XX; a segunda, ao enquadramento da mesma medida no caput do referido

    artigo.

    1. Alnea (b)

    A alnea (b) dispe sobre a aplicao de medidas necessrias proteo da sade e

    da vida das pessoas e dos animais e preservao dos vegetais. O requisito de

    necessidade trazida por esta alnea refere-se exigncia de se provar que a proibio

    de importao de pneus usados ou reformados foi instituda diante da inexistncia de

    qualquer outra medida que pudesse solucionar a questo. A existncia de uma outra

    medida cabvel poderia ser comprovada por meio de 3 critrios: (i) se fosse

    razoavelmente disponvel (o que implica na anlise dos custos e das dificuldades de

    fato de adoo da medida); (ii) se oferecesse o mesmo nvel de proteo da outra

    medida (algo que varia conforme o valor do bem protegido); (iii) se implicasse em

    menor restrio ao comrcio.

    Haveria ainda outras medidas cabveis, conforme os requisitos da alnea (b), que

    poderiam substituir a proibio da importao:

    a) a reexportao, para os pases de origem, dos pneus reformados importados, aps a

    sua utilizao. Surgem, no entanto, dois obstculos. O primeiro deles refere-se

    Conveno da Basilia, que probe a adoo de tal medida; o segundo seria a

  • PARTICIPAO DA SOCIEDADE CIVIL: COMRCIO, SADE E MEIO AMBIENTE NA OMC CADERNO - 17

    CADERNOS DIREITO GV 30

    necessidade de manuteno de registro de todos os pneus vendidos, algo um tanto

    invivel devido predominncia da informalidade no setor;

    b) estabelecimento de quotas a serem aplicadas no discriminadamente, conforme

    prev o art. XIII do GATT 1994.

    2. Alnea (g)

    A alnea (g) dispe sobre a aplicao de medidas relativas conservao dos

    recursos naturais esgotveis, se tais medidas forem aplicadas conjuntamente com

    restries produo ou ao consumo nacionais.

    Diferentemente da alnea (b), que estabelece um requisito de necessidade para a

    aplicao da medida, a alnea (g) demandaria uma relao estreita e real entre a

    medida adotada e o objetivo almejado. O objetivo, alis, seria a proteo de

    recursos naturais esgotveis que, segundo decidido pelo OSC no caso dos

    camares (WT/DS58 - United States - Import Prohibition of Certain Shrimp and

    Shrimp Products) refere-se a entidades tanto biticas quanto abiticas, embora

    durante as negociaes do GATT 1994 a alnea (g) almejasse proteo apenas de

    entidades biticas.

    Alm de pressupor uma relao estreita e real entre a medida adotada e o objetivo

    almejado, a aplicao da alnea (g) exige restries produo ou ao consumo

    nacionais. Isto significa um tratamento justo (chamado de even handed), mas no

    idntico entre os bens importados e nacionais. No caso especfico dos pneus usados

    e reformados, a indicao do histrico de medidas internas adotadas para o setor

    (como a regulamentao do depsito de resduos) e a demonstrao de que a

    conduta brasileira est em consonncia com medidas adotadas por outros pases

    seria uma possvel alternativa para o preenchimento deste requisito especfico da

    alnea (g).

  • PARTICIPAO DA SOCIEDADE CIVIL: COMRCIO, SADE E MEIO AMBIENTE NA OMC CADERNO - 17

    CADERNOS DIREITO GV 31

    3. Caput

    Superada a anlise da possibilidade de aplicao das alneas (b) e (g) como

    fundamento para a proibio de importao de pneus usados e reformados pelo

    Brasil, tambm foi discutida a aplicao do caput do art. XX ao caso em questo. O

    caput estabelece que desde que essas medidas no sejam aplicadas de forma a

    constituir quer um meio de discriminao arbitrria, ou injustificada, entre os pases

    onde existem as mesmas condies, quer uma restrio disfarada ao comrcio

    internacional, disposio alguma do presente captulo ser interpretada como

    impedindo a adoo ou aplicao, por qualquer Parte Contratante, das medidas

    (...).

    Um meio de discriminao arbitrria ou injustificada constituir-se-ia uma vez que a

    medida adotada fosse aplicada de maneira rgida, inflexvel e incoerente. J o fato

    de a medida consistir em uma restrio disfarada ao comrcio internacional pode

    ser evidenciado pela prpria estrutura da medida adotada.

    No caso da medida adotada pelo Brasil, a justificativa de que no se trata de uma

    restrio ao comrcio internacional passa pela avaliao do mercado interno de

    pneumticos especificamente, pela existncia ou no da necessidade de importar

    pneus para reforma, ou se a produo domstica de pneus novos j suficiente para

    suprir a demanda.

    Alm disso, para que a medida adotada pelo Brasil encontre fundamento no caput

    do art. XX, seria preciso sustentar que o tratamento diferenciado concedido aos

    pases membros do Mercosul no consiste em um meio discriminatrio ou em uma

    restrio ao comrcio entre pases onde prevalece a mesma situao. Nesse

    contexto, sugere-se ressaltar as iniciativas de negociao de um regime prprio para

    os pneus reformados no mbito do Mercosul e a atuao do Brasil, tanto em nvel

    regional quanto multilateral, nesse sentido, fato que evidenciaria a inexistncia de

    unilateralismo por parte da medida brasileira.

    Por fim, sugeriu-se que seria justamente no exame da aplicao do caput do art. XX

    medida brasileira questionada que se colocariam os maiores problemas. Isso

  • PARTICIPAO DA SOCIEDADE CIVIL: COMRCIO, SADE E MEIO AMBIENTE NA OMC CADERNO - 17

    CADERNOS DIREITO GV 32

    porque tendo em vista as medidas legais adotadas pelo Brasil e as limitaes de

    levantamento de dados, dificilmente seria possvel comprovar a adequao das

    medidas de restrio importao em relao s exigncias acima descritas do

    caput.

    4. Debates

    No debate que seguiu apresentao desse argumento, ressaltou-se o papel

    exercido pelo art. XX do GATT 1994. Com efeito, este serviria de ponte de

    comunicao entre o regime jurdico do comrcio internacional e outros regimes

    jurdicos internacionais (como o ambiental e o de direitos humanos) e permitiria a

    prevalncia de determinados valores (como sade pblica e meio ambiente,

    essenciais para o caso discutido) sobre valores estritamente econmicos.

    Neste contexto, observa-se ainda que a aplicao do art. XX produz um impacto

    institucional substancial na OMC, uma vez que permite a utilizao, pelos painis e

    pelo rgo de Apelao (OA), de fontes distintas dos Acordos da OMC para a

    soluo dos litgios. Tal como ocorrido no caso dos camares (WT/DS58), em que

    foi utilizada a Conveno da ONU sobre o Direto do Mar. Em virtude destes fatos

    nota-se, contudo, que a aplicao do art. XX se d em limites muito estritos e

    especficos.

    Quanto anlise da alnea (g) do art. XX do GATT 1994, em sentido diverso ao

    argumento apresentado, no entanto, sustenta-se que o governo no se esforava

    suficientemente para restringir a produo e o consumo internos, como exige. Em

    primeiro lugar, a parte final da alnea (g) no poderia ser aplicada de maneira

    literal. A restrio da produo e do consumo internos de pneus reformados

    impediriam o aumento da vida til dos pneus e gerariam um passivo ambiental

    ainda maior. Assim, seria contrria ao esprito de proteo ambiental que

    fundamenta a proibio da importao. Alm disso, no se trataria de omisso do

    governo brasileiro em fazer valer a norma quanto ao tratamento dos pneus usados

    nacionais (enforcement), mas sim de incapacidade do setor privado em no

    conseguir cumprir a norma (particularmente a resoluo 258/99 do CONAMA, que

  • PARTICIPAO DA SOCIEDADE CIVIL: COMRCIO, SADE E MEIO AMBIENTE NA OMC CADERNO - 17

    CADERNOS DIREITO GV 33

    atribui s fabricantes de pneus a responsabilidade de lhes dar, depois de usados,

    uma destinao ambientalmente adequada). Neste caso, portanto, seria um

    problema de compliance.

    Outro ponto relaciona-se ao fato de que a proibio da importao de pneus usados

    ou reformados no seria a soluo definitiva para todos os problemas ambientais

    causados pelo uso de pneus at porque estes permanecem indispensveis para o

    setor de transportes. Trata-se apenas de uma medida cujo objetivo evitar uma

    gerao ainda maior e mais rpida de resduos j que o ciclo de vida de um pneu

    reformado menor do que o de um pneu novo e todos os problemas correlatos

    (propagao de doenas, dengue, gastos excessivos para o combate destes

    problemas, etc.).

    Dentre os outros pontos abordados nos debates, destacaram-se:

    (a) a importncia do papel que as ONGs podem desempenhar no caso dos

    pneus, quer atravs do fornecimento de expertise em matria de sade

    pblica ou de meio-ambiente para o governo brasileiro, quer atravs do

    estmulo formao de uma opinio pblica quanto ao tema, especialmente

    nas CE, quer, ainda, pela apresentao de um amicus curiae ao painel

    instaurado;

    (b) a incoerncia e o enrijecimento da conduta do bloco europeu ao longo da

    controvrsia. Vale dizer, em nome do princpio da boa-f e do clean hands

    (segundo o qual ningum pode alegar a prpria torpeza em juzo), as CE no

    poderiam agir em relao ao Brasil de forma completamente oposta

    conduta que adotam internamente;

    (c) o fato de que, em ltima anlise, o caso lida com a proteo dos direitos

    humanos, concretamente com o direito sade e preservao ambiental, j

    que h uma relao muito prxima entre o excesso de pneus usados, sem

    destinao, e a disseminao de doenas comuns no Brasil, como a dengue e

    a malria; e

  • PARTICIPAO DA SOCIEDADE CIVIL: COMRCIO, SADE E MEIO AMBIENTE NA OMC CADERNO - 17

    CADERNOS DIREITO GV 34

    (d) o fato de que, em princpio, o nus da prova cabe ao Brasil, por se tratar de

    uma medida de proteo sade pblica e ao meio ambiente e, portanto,

    fundada no art. XX. A despeito disso, nota-se que, semelhana do que

    ocorrera no caso gambling (United States Measures Affecting the Cross-

    Border Supply of Gambling and Betting Services DS 285), incumbiria s

    CE apontar e demonstrar quais as medidas alternativas proibio da

    importao seriam igualmente cabveis.

    B. O levantamento da proibio de importao de pneus reformados em benefcio de

    Argentina, Uruguai e Paraguai como medida adotada no mbito de um Acordo

    Regional de Comrcio

    Uma outra idia discutida no encontro refere-se possibilidade de utilizao pelo

    governo brasileiro do art. XXIV do GATT 1994 para justificar o levantamento da

    proibio para os pases do Mercosul ao mesmo tempo em que a mantinha para todos os

    outros pases. Segundo o pargrafo 5 deste artigo, os dispositivos deste Acordo

    (GATT 1994) no impediro a formao de Unies Aduaneiras, reas de Livre

    Comrcio ou a adoo de acordos provisrios necessrios para a formao de Unies

    Aduaneiras ou reas de Livre Comrcio entre seus Membros, desde que preenchidos

    os requisitos apresentados nas alneas subseqentes.

    A estruturao deste argumento poderia ser dividida em 3 partes: (i) requisitos e dvidas

    quanto aplicao do art. XXIV; (ii) aplicao do art. XXIV em face da jurisprudncia

    do OSC; e (iii) possibilidade de aplicao do art. XXIV ao caso dos pneus.

    1. Requisitos e dvidas quanto aplicao do art. XXIV do GATT

    O art. XXIV constitui uma exceo regra da nao mais favorecida e evidencia a

    relao entre regionalismo e multilateralismo. Seu mbito de aplicao restringe-se a

    3 tipos de associaes: (a) rea de Livre Comrcio (sub-pargrafo 8(a)); (b) Unio

    Aduaneira (UA) (sub-pargrafo 8(b)); (c) Acordo provisrio tendente a uma das duas

    associaes acima, dentro de um prazo razovel.

  • PARTICIPAO DA SOCIEDADE CIVIL: COMRCIO, SADE E MEIO AMBIENTE NA OMC CADERNO - 17

    CADERNOS DIREITO GV 35

    As dvidas quanto aplicao em geral deste art. XXIV surgem exatamente em

    virtude dos critrios que definem o que seja cada uma dessas associaes. Em relao

    UA, o sub-pargrafo 8(a)(i) pressupe a eliminao de tarifas e outras

    regulamentaes comerciais restritivas em relao ao essencial dos intercmbios

    comerciais entre os territrios constituintes da Unio ou pelo menos em relao ao

    essencial das trocas comerciais de produtos originrios nestes territrios como

    condio necessria para a caracterizao de uma UA. Em relao a este dispositivo,

    questiona-se o que significa outras regulamentaes comerciais restritivas, essencial

    das trocas comerciais e quais os critrios necessrios para a determinao do que

    sejam produtos originrios nestes territrios. No que tange aos acordos provisrios,

    questiona-se o que se entende por prazo razovel para que um acordo deste tipo

    leve criao de uma rea de Livre Comrcio ou de uma UA.

    Uma outra dvida relativa aplicao do artigo XXIV surge em virtude de um de

    seus requisitos de aplicao. Com efeito, o sub-pargrafo 5(a) dispe que em relao

    Unio Aduaneira, ou a acordos provisrios tendentes formao de uma Unio

    Aduaneira, as tarifas e outras regulamentaes comerciais impostas quando da criao

    de tal Unio ou da celebrao de tal acordo em relao ao comrcio com as partes

    contratantes no partes de tal Unio ou de tal acordo provisrio no sero, no

    conjunto, maiores ou mais restritivas que a incidncia geral de tarifas e

    regulamentaes comerciais aplicveis nos territrios constituintes previamente

    formao de tal Unio ou adoo de tal acordo provisrio. Outro questionamento

    se daria, ento, em saber quais os critrios para a certificao de que as tarifas e outras

    barreiras ao comrcio no sejam, em conjunto, mais elevadas ou mais rigorosas que

    as vigentes anteriormente ao estabelecimento da UA.

    2. Aplicao do art. XXIV em face da jurisprudncia do OSC

    No caso Turkey Restrictions on Imports of Textile and Clothing Products

    (WT/DS34), em que a ndia atuava como demandante, o painel estabelecido para

    analisar a controvrsia considerou, em maio de 1999, as restries quantitativas

    aplicadas pela Turquia aos produtos txteis da ndia como inconsistente em relao

    normativa do GATT e do Acordo sobre Txteis e Vesturio, e acabou por recusar a

  • PARTICIPAO DA SOCIEDADE CIVIL: COMRCIO, SADE E MEIO AMBIENTE NA OMC CADERNO - 17

    CADERNOS DIREITO GV 36

    argumentao turca de que as restries estariam protegidas pela exceo do art.

    XXIV do GATT (j que a Turquia havia estabelecido em maro de 1995 uma UA

    com as CE). Ao analisar o litgio em sede de recurso, o OA entendeu que o art. XXIV

    permite a adoo de determinadas medidas inconsistentes com a normativa do GATT,

    desde que o Membro que as estabeleceu prove: (i) existncia de uma UA nos termos

    do sub-pargrafo 8(a) eliminao de restries comerciais com respeito ao essencial

    dos intercmbios comerciais e estabelecimento de uma tarifa externa comum; (ii) no

    violao dos requisitos do sub-pargrafo 5(a) que estabelece que os direitos

    alfandegrios praticados em conjunto pela UA no sejam mais elevados ou mais

    rigorosos que os anteriormente praticados pelos membros de tal Unio anteriormente

    sua constituio; e (iii) que a formao da UA no ocorreria caso tal medida no

    fosse adotada.

    3. Aplicao do art. XXIV ao caso dos pneus

    Com base neste raciocnio, considera-se que a aplicao do art. XXIV do GATT 1994

    como justificativa para o tratamento diferenciado dado aos pases do Mercosul quanto

    importao de pneus usados ou reformados dependeria da demonstrao de que:

    a) O Mercosul uma UA nos termos dos sub-pargrafos 8(a) e 5(a) do artigo em

    questo. Nesse sentido, caberia ao Brasil demonstrar a eliminao de restries

    comerciais em relao ao essencial do intercmbio comercial entre os Estados

    partes do Mercosul e, igualmente, o estabelecimento de uma Tarifa Externa

    Comum;

    b) A medida brasileira de restrio importao de pneumticos de terceiros pases

    necessria para o estabelecimento ou manuteno do Mercosul enquanto UA.

    Em relao a este ltimo item, pode ser considerado de difcil verificao, j que o

    Mercosul fora criado em 1991 e a proibio brasileira de importao de pneus usados

    ou reformados ocorreu somente em 2000. Alm disso, a manuteno do Mercosul

    seria perfeitamente plausvel ainda que no houvesse a restrio importao de

    pneus usados ou reformados para pases de fora do bloco.

  • PARTICIPAO DA SOCIEDADE CIVIL: COMRCIO, SADE E MEIO AMBIENTE NA OMC CADERNO - 17

    CADERNOS DIREITO GV 37

    Prope-se, ento, o estabelecimento de um regime de regras de origem, que garanta a

    entrada no Brasil de pneus usados ou reformados dos pases do Mercosul sem

    estender isto a terceiros pases. Assim, os pneus brasileiros circulariam livremente

    pelo Mercosul ao passo que os pneus de pases terceiros teriam circulao nos demais

    pases do Mercosul, condicionada tarifa de exportao.

    Por fim, seria possvel chegar concluso de que o art. XXIV do GATT 1994 teria

    grandes possibilidades de no ser aceito pelo painel como um argumento vlido

    favorvel ao Brasil. Alm disso, tratar-se-ia de um argumento que enfraqueceria o

    argumento do art. XX (b) e (g), mencionado na seo anterior.

    O mais adequado seria, portanto, o Brasil argumentar que a proibio de importao

    de pneus reformados tinha carter erga omnes e no admitia excees ao Mercosul.

    4. Debates

    Nos debates que se seguiram argumentao acima exposta, ressaltou-se que a

    utilizao do art. XXIV do GATT suscita a questo do regionalismo e, nesse

    contexto, os participantes do encontro evidenciaram a necessidade de

    institucionalizao e de coordenao de uma poltica comercial comum no Mercosul,

    que seja informada por alguns princpios gerais, como o da proteo ambiental. As

    questes ambientais suscitadas com a destinao dada aos pneus usados poderiam

    gerar ainda violaes a uma srie de acordos ambientais multilaterais e, assim, a

    anlise da controvrsia no deveria cingir-se ao que apenas financeiramente vivel,

    mas sim ao que economicamente vivel, conforme entendimento da sociedade

    brasileira como um todo. Foi suscitada, por fim, a possibilidade de se condenar as

    empresas brasileiras favorveis importao de pneus usados ou reformados por

    litigncia de m-f, j que, diante da proibio da importao, recorreram ao Poder

    Judicirio e obtiveram liminares que lhes permitiram manter os nveis de importao

    e que estimularam o questionamento da medida brasileira em sede regional e, agora,

    em sede multilateral.

    Outro problema levantado durante o debate expressa a idia de que o OA abriu um

    perigoso precedente no caso da Turquia, j que se incumbia na responsabilidade de

  • PARTICIPAO DA SOCIEDADE CIVIL: COMRCIO, SADE E MEIO AMBIENTE NA OMC CADERNO - 17

    CADERNOS DIREITO GV 38

    analisar se determinada associao se constitua ou no em uma UA tarefa esta a

    cargo do Comit sobre Acordos Regionais do Comrcio, cujo funcionamento no

    atende demanda, pois dos mais de 300 acordos regionais existentes, conseguiu

    analisar apenas um (firmado entre Repblica Tcheca e Eslovquia).39

    Alm disso, a utilizao do art. XXIV obrigaria o Brasil a demonstrar perante o painel

    que o Mercosul , de fato, uma UA, o que traria diversos impactos a todos os pases

    membros do bloco, j que este se considera uma UA ainda em formao.

    Por fim, nota-se que o cerne da controvrsia no a proibio da importao em si,

    mas o seu levantamento para os pases membros do Mercosul. Quanto a este ponto,

    uma das justificativas traz a idia de que se trata de um imperativo da legislao do

    Mercosul incorporada ao ordenamento jurdico brasileiro (lei interna, portanto), que

    obriga o Brasil a cumprir os laudos arbitrais proferidos no mbito do Mercosul em

    que um deles havia considerado a proibio da importao como inconsistente em

    relao normativa do Mercosul.

    C. A proibio de importao de pneus reformados adotada pelo Brasil fundamenta-

    se na Conveno da Basilia sobre Transporte Transfronteirio de Resduos

    Perigosos e sua Disposio

    O objetivo de justificar a proibio de importao de pneus usados ou reformados com

    base na Conveno da Basilia consiste em afastar a incidncia direta das normas do

    GATT.

    O raciocnio, neste caso, basear-se-ia em trs etapas subseqentes: (i) prevalncia das

    normas da Conveno da Basilia sobre as normas do GATT; (ii) enquadramento dos

    pneus reformados como resduos perigosos, conforme o disposto na Conveno; e (iii) a

    proibio da importao de pneus reformados face Conveno.

    39 Ressalta-se que o mencionado Comit j terminou a primeira fase de reviso da poltica comercial do Mercosul. Cf. Pontes Quinzenal, vol. 1, n. 7, 20 abr 2006. Disponvel em . acesso em: 25 out 2006.

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    CADERNOS DIREITO GV 39

    1. Conveno da Basilia vs. normas do GATT

    A normativa do GATT regula o comrcio internacional como um todo. Nesse sentido,

    pode-se consider-la uma lei geral. J a Conveno da Basilia legisla sobre um

    aspecto especfico do comrcio internacional qual seja, aquele que tem como objeto

    da relao de troca um determinado resduo perigoso. Diante disso, possvel

    caracterizar a Conveno da Basilia como uma lei especial. Conseqentemente, dado

    o princpio de que a lei especial derroga a lei geral, seria possvel afirmar que, em

    termos de comrcio internacional de resduos perigosos, a legislao aplicvel seria a

    Conveno da Basilia e no as normas do GATT.

    2. Enquadramento dos pneus reformados como resduos perigosos, conforme o

    disposto na Conveno

    Anteriormente Conveno da Basilia no havia uma definio nem interna ao

    Brasil nem internacional do que fosse resduo. Havia ento duas correntes relativas

    ao tema. A primeira, mais restritiva, considerava como resduo apenas aquilo que

    fosse de fato descartado; a segunda, mais ampla, considerava como resduo no

    apenas aquilo que fosse descartado, mas tambm aquilo que fosse suscetvel de

    reaproveitamento. Esta ltima definio de resduo acabaria por prevalecer no mbito

    da Conveno da Basilia.

    Por sua vez, a periculosidade do resduo est associada ao destino que se d

    substncia. Portanto, em tese, qualquer resduo poderia ser perigoso. Especificamente,

    a Conveno da Basilia prev em seu art. 1 duas categorias de resduos perigosos:

    (a) resduos contidos nos anexos da Conveno; (b) resduos considerados como tal

    pela legislao interna de cada Estado parte da Conveno.

    Em relao aos resduos perigosos expressamente previstos na Conveno, dois

    anexos foram especialmente dedicados ao tema. O Anexo I identifica como perigosos

    os resduos que se encaixem em um dos seguintes critrios: (i) origem perigosa (ex.:

    resduos hospitalares); ou (ii) elemento constitutivo perigoso (ex.: resduos que

    contenham arsnico). J o Anexo III estabelece como critrio para a verificao da

    periculosidade de determinado resduo a caracterstica da matria ou seja,

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    CADERNOS DIREITO GV 40

    substncias que, de uma forma geral, causem impactos no meio ambiente (ex.:

    resduos que contenham explosivos).

    Os resduos perigosos previstos no mbito da Conveno podem ser divididos, ainda,

    em duas classes: (a) aqueles sobre os quais se tem a certeza da periculosidade; e (b)

    aqueles sobre os quais no se tem a certeza de que sejam de fato perigosos. Em

    conseqncia, estes ltimos so considerados resduos de periculosidade no

    presumida. Tal diferenciao influencia diretamente o nus da prova, j que no

    primeiro caso tal nus caberia a quem afirma no se tratar de resduo perigoso e, no

    segundo, a quem afirma tratar-se de resduo perigoso.

    De acordo com os anexos da Conveno, o pneu poderia ser considerado um resduo

    perigoso, na medida em que constitudo por algumas das substncias mencionadas

    no Anexo I (tais como o cdmio, o cobre e o zinco) e tambm pelo fato de causar

    impacto no meio ambiente (o que permitiria inclu-lo no Anexo III). Tratar-se-ia, no

    entanto, de um resduo de periculosidade no presumida, em que o nus da prova

    caberia a quem o considera perigoso. Se se considerar que as primeiras medidas de

    restrio circulao e destinao de pneus usados em seu territrio foi a CE, neste

    litgio em concreto, o nus da prova poderia recair sobre a prpria CE.

    O pargrafo 1(b) do art. 1 da Conveno, por sua vez, estabelece que sero resduos

    perigosos aqueles no includos na alnea (a) [includos nos anexos], mas definidos

    ou considerados perigosos pela legislao interna da partes que seja Estado de

    exportao, de importao ou de trnsito. Assim, ainda que o pneu no fosse

    considerado como um resduo perigoso com fundamento nos anexos da Conveno,

    seria considerado como tal perante os outros Estados parte da Conveno caso a

    legislao brasileira assim o previsse. Portanto, embora no haja nenhuma norma

    explcita que classifique o pneu como um resduo perigoso, as restries impostas ao

    setor de pneumticos pelas normas editadas para tanto demonstrariam que o Brasil,

    ainda que implicitamente, considera-o como um resduo perigoso.

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    CADERNOS DIREITO GV 41

    3. A proibio da importao de pneus remoldados face Conveno

    A definio do que seja um resduo perigoso e a incluso dos pneus dentro desta

    categoria de fundamental importncia para a justificativa da proibio de

    importao adotada pelo Brasil. Afinal, o art. 4 da Conveno da Basilia outorga s

    partes a faculdade de proibirem a importao ou exportao de determinado resduo

    perigoso. Como conseqncia, a alnea (b) do referido artigo estabelece que as partes

    proibiro ou no permitiro a exportao de resduos perigosos ou outros resduos s

    partes que tenham proibido a importao de tais resduos, desde que esta proibio

    lhes seja comunicada em conformidade com a alnea (a) do presente artigo.

    Assim, uma vez proibida a importao de pneus usados ou reformados pelo Brasil, os

    membros das CE - que, assim como o Brasil, fazem parte da Conveno no

    poderiam permitir a exportao destes pneus para o territrio brasileiro.

    O principal problema deste raciocnio trataria do fato de no ter havido qualquer

    comunicao da proibio de importao aos outros pases membros da Conveno,

    atravs do Secretariado desta, como exige o art. 4. Assim, as CE poderiam

    argumentar que a inexistncia de tal comunicao indicaria que o Brasil considera o

    pneu como um resduo no perigoso. luz do princpio da publicidade da legislao

    interna, no entanto, as CE teriam cincia da regulamentao brasileira sobre a matria

    e, portanto, o dever de notificar previsto no art. 4, ao menos em relao s CE,

    encontrar-se-ia cumprido. E, ainda que se considerasse inexistente tal notificao, o

    objetivo primordial do sistema de soluo de controvrsias da OMC no seria de

    punio, mas sim de cumprir a lei. Nesse sentido, o Brasil poderia perfeitamente

    corrigir a sua omisso e notificar agora os membros da Conveno de que proibiu a

    importao de pneus usados ou reformados.

    Por fim, refora-se a idia de que, embora o litgio possua duas dimenses

    ambiental e comercial a defesa brasileira poderia centrar-se nos aspectos

    ambientais, at porque sugeriu-se que, em termos estritamente comerciais, a proibio

    no se justificaria.

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