CeciliaCotrimprocessodeescrita_Oiticica

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escritos de artistas

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    Hlio Oiticica

    Fatos, Notebook,

    1973Fonte: http://

    www.itaucultural.org.br/

    aplicexternas/enciclopedia/ho/

    home/index.cfm

    C O L A B O R A E S C E C I L I A C O T R I M

    prefiro meus textos poticos, que nas-

    cem na rua, em toda parte

    Hlio Oiticica, Londocumento, agosto de 1969

    Quando comecei a rever meu dirio

    filmado, percebi que ele continha tudo

    o que no havia em Nova York

    Jonas Mekas, Movie Journal, 1972

    In New York was still winter but the

    wind was full of spring

    Jonas Mekas, Walden

    Revejo blocos esparsos2 de Walden, deJonas Mekas. No momento em que escre-vo, ouo, mais do que vejo o filme, que desfilaparcialmente escondido sob a tela de texto.Apenas um rudo indeterminado e denso,como vento, ressoando por diversos blocosde imagens, rearranjando-as, conectando-as deoutro modo parte das operaes de deslo-camento e entrecruzamento, constantes nessefilme-experimento. A sinfonia montona quese instala por algum tempo, apenas pulsaoe ritmo (respirao de um animal ou de umamquina, rumor de um trem em movimen-to), logo cortada ou sobreposta a rudosde rua, saltos de sapato em estacato sobrecaladas e conversas calmas, canes anti-gas, mantras hare-krishna, poemas entoados,a voz do cineasta em duplo de storyteller.

    Arte e deriva: a escrita como processo-inveno1

    Cecilia Cotrim

    Aborda a escrita como processo-inveno, em sua articulao com a obra e com o

    campo de eventos, constituindo espcies de dispositivos poticos em deriva, mem-

    branas arte/vida.

    Arte contempornea, escrita, processos, deriva.

    Investimento no arquivo? Se h aqui o dese-jo de criar um atraso na durao do mundo,a resposta a uma necessidade ontolgicade anamnesia, de deixar o trao de um coti-diano que escapa,3 ao se deixar inscrever,algo das imagens j estaria mesmo desloca-do, no sistema de diferenas que vai sendocriado, nesse fluir instvel e descontnuo. Odirio filmado, observam beauvais eBouhours, desafia a cronologia da filmageme ope a fragmentao de uma narrativa maisou menos explodida continuidade dos pla-nos.4 O que se percebe, entre os vriostextos e imagens que se entrecruzam, velo-cidades e ritmos que se superpem ou sealternam, algo como um processo infinitode reiterao e desvio. Reinventar o presentevia o passado, a cidade de Nova York se-gundo estratos de memrias e luzes daLitunia e, ao reler a cidade, criar uma es-crita do cotidiano, justo, segundo Blanchot,o que h de mais difcil a descobrir.5 Man-tendo-se na planeza do dia-a-dia, Mekas re-pete em seu filme algo do carter inesgot-vel da poesia romntica o mergulho daarte na dimenso da vida. Em Walden (1964-69) como em 365 Films (2007), o mergu-lhar coincide com a construo de um siste-

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    ma flmico, medium no-especfico mas dis-seminado em campo, onde se d o des-dobrar-se de estratgias de deslocamentoem um programa progressivo. Seria pre-ciso lanar-me, fundir-me com a realida-de que eu estava filmando, colocar-me aliindiretamente, por meio do ritmo, da ilu-minao, da exposio, dos movimentos,6

    anota Mekas, comparando a experinciado movie journal escrita fragmentria dodirio literrio.

    Volto ento ao que seria um dos primeirosblocos desse texto cotidiano, em Walden.Notes and Sketches. marcante, talvez mes-mo determinante, a passagem em que acmera acompanha (sempre trepidante, sen-svel ao toque de Mekas), as mos de umamulher que cruzam a tela/o plano de umajanela, em pequenos gestos de regar e re-mexer a terra mida de uma jardineira comflores vermelhas. A ao meio frentica des-ses braos e mos, fragmentos animados,contrasta com um plano de paisagem quaseesttico (como um De Chirico, com a ruacortada pela luz em diagonal), em uma ten-so que j indica a inscrio da imagem nadimenso atual de percursos, memrias,desejos, passados, presentes.7 Imagem aber-ta, em devir: trata-se da inveno de umaescrita instvel, da criao de regiesintersticiais. A arte aqui corresponde ex-perincia da multiplicidade, prope-se aacompanhar o fluir de diferenas. Nada seafirma alm do prprio caminhar. Esse esta-do errtico e lbil definiria, em parte, a con-dio das obras que abordamos. Assim, nos-sos problemas se estendem de fragmentosde Mekas ao projeto NBP,8 de RicardoBasbaum, inspirados por uma imagem deAntonioni: uma pgina dupla de jornal querola ao vento pelo calamento de pedra deuma rua, em uma breve seqncia de De-serto Vermelho, a cmera seguindo os aca-sos do solo. Somos levados por traos de

    uma potica que parece enfim encontrar suarealizao na constituio de uma dinmicaentre arte e mundo. Quando ando pela ci-dade com a cmera eu avano, e meusolhos so como janelas abertas, e eu vejo ascoisas, e as coisas caem em meus olhos,9

    escreve Mekas.

    Com um toque no teclado retomo o filmee me deparo com um trecho do dirio Reel3, entre dois interttulos: Black power e WhatLeslie saw thru the coop window? Ointerttulo, esse trao que une/separa os seg-mentos de Walden, aqui, como em um co-mentrio para iniciados no jogo, dobra-seironicamente sobre a tenso explosiva doslogan afirmativo do poder negro. inscri-o rpida do primeiro interttulo seguem-se imagens captadas da demolio de umprdio por oprarios quase todos pretos, e, ento, aps outro interttulo (WhatLeslie saw ?), da rua o dirio salta paraum dos lugares do poeta-voyeur: crispado,desde Baudelaire, mas atrado pela vidraa,sempre tensionando estratos de discursoentre arte e vida. O perfil do cineasta emcontraluz, em sua mesa de trabalho, ima-gem que se contrape e se conecta ener-gia e dureza da vida de labor na rua, emum caos ps-nevasca visto atravs. E, comoo dirio se confunde com o filme de famlia,Leslie, de chupeta e fraldas, tambm apare-ce colada janela, e observa as obras na ruapela vidraa, de p, delicadamente descala,sobre o parapeito. O filme desloca-se entopor mais outra rua, mais outra janela, fazen-do apelo a membranas de contato, trazen-do a pergunta que indica a raiz do proble-ma. O que se d a ver na superfcie de tan-tos gestos cotidianos? Pois o cotidiano, iden-tificado banalidade, o que importa, se-gundo Blanchot, por reenviar a existncia aseu movimento circular, espontaneidadeprpria do que se vive, a sua experincia-limite, enfim. Vibrando entre a escrita e o

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    apagamento dos eventos, o cineasta traba-lha aqui como o poeta-sismgrafo. Desejaque suas plpebras sejam cortadas, para queassuma seu pronto pertencimento ao mun-do das coisas. Pois, diz Hofmannsthal, paraele, humanos, coisas, pensamentos e sonhosso o mesmo Ele nada pode omitir. Anenhum ser, nenhuma coisa, nenhum fan-tasma, nenhum espectro infantado pelo es-prito humano ele deve fechar os olhos. Di-ramos que seus olhos no tm plpebras.10

    filtros/membranas

    ho nykFATOS12 jun. 73NINHOS Babylonests : (nome dado tendoainda como fascnio fcil New York comoBabilnia > no q (vejo e quero hoje) sejade todo intil : proposio de jogo-luxo-prazer, q no so mais aqui ligados a sonhosromnticos de aspirao aristocracia ut-pica (salo de cristal luzes de seda) mas pr-tica de experimentalidades no formuladas()

    meu ninho conjugado tv ainda espao-sala conjugado e no dinamicamentemutvel : por preguia, claro : adiar meudia-a-dia : adiar at a morte : mas como tertempo e fazer do abrigo o abrigo sonhado? mesmo a relao dentro-fora, com a rua :sempre a mesma, agora, hoje mudei : colo-quei o cobertor amarelo numa, o lenol bran-

    co noutra janela : filtros que quebram a luze positividade de dia que comea sol quen-te e busy : mveis : no ter q aceitar o nupermanente da janela q abre pra rua

    O trecho, extrado de um notebook11 deHlio Oiticica belo manuscrito datado deNova York, junho de 1973 , remete a umtermo inventado pelo artista em outra pas-sagem de sua escrita in progress: experin-cia-limite. Tal condensao, quem sabe ins-pirada na Conversa infinita de MauriceBlanchot,12 nomeia provisoriamente, no con-texto de uma carta, o desdobramento deum tipo de experincia que se coloca noslimites de um tipo de produo positiva ede negao de produo : q no quer serobra mas q quer manifestar-se no tempo eno espao e q por isso mesmo contradi-o e limite.13 A frmula, recriada por HO,viria portanto enfatizar um dos aspectosmarcantes da arte na era da indeterminao,do propor-propor14 a transgresso, o trans-bordamento que se traa infra-mince nosprprios limites da relao entre arte e mun-do: produo positiva de viver negativo,voil!.15

    A escrita-inveno de Oiticica tem carterprogressivo e hiperblico,16 como pode ime-diatamente revelar sua espacializao, seucaminhar que segue o encadeamentoininterrupto de sinais de : (dois-pontos). Dedentro da experincia do limite surge o pr-

    Artur Barrio,

    Mensagem 16

    maro de 1971Fonte: http://

    www.muvi.advant.com.br/

    artistas/a/artur_barrio/

    mensagem.htm

    C O L A B O R A E S C E C I L I A C O T R I M

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    prio ilimitado, de dentro do impossvel, damais valia de vazio, o jogo das possibilida-des. Qual o excesso que faz com que oacabamento seja ainda e sempreinacabado?,17 pergunta Blanchot. EmOiticica, a escrita, desdobrada entre arte evida, tempo e espao, aparece como o maispotente programa artstico (e crtico) nessemomento. Projeto-limite: Conglomerado.Trata-se da concepo de um lugar de ins-crio para a arte experimental brasileira, umdispositivo textual que retomaria certos pro-gramas modernos, como o Athenum, ou oAlmanaque do Blaue Reiter, porm dessavez em verso rebaixada, pop-tropicalista.Para o artista e propositor, a escrita ser umtipo de membrana, o abrigo sonhado que jse anuncia na mesma carta : Neville meuamor tenho escrito muita coisa em apon-tamentos e textos enormes : () no que-ro lhe dizer porque aqui, j q iria ao infini-to : o q decidi foi o seguinte : uma srie detextos e assuntos que so especiais e dedifcil publicao em media brasileira ()vou publicar aqui, junto com essa grandeminha : seria assim um volume separadosob o ttulo de DOCUMENTOS DEEXPERIMENTALIDADE BRASILEIRA : tex-tos, fotos, excertos como sinais espaciaisescritos, potico-espacial-fotoimagem, etc.,()

    Estamos no corao da potica de Oiticica,nesses tempos em que o artista, de Londrese de Nova York, repensa a produo con-tempornea brasileira e recoloca os termosde sua prpria obra. Oiticica realiza assim,em plena deriva, uma escrita crtica/poticainfinita, puro jogo e inveno, texto que sur-ge como o filtro/cobertor na janela do con-jugado de Nova York, confundindo-se comninhos, parangols e probjetos, e jogandoconceitualmente segundo a modalidade doredingote conceitual informe,18 de Bataille.Mas a membrana/abrigo de Oiticica nos tra-

    ria rapidamente a outra janela e a um mo-mento bem mais recente da arte brasileira,precisamente a uma outra espcie de dirio,criado por Artur Barrio em lminas de car-to coladas janela de seu ateli emCopacabana. So notas, desenhos, rabiscos,pequenos objetos agregados de formadescontnua, como a indicar o lance. Atrasosobre papel sobre vidro. A estrutura tende,de dentro mesmo da esfera ntima do dese-nho, da escrita diria, multiplicidade domundo. Como escreve Ricardo Basbaum, preciso propor que este resduo ou objetoao meu lado um som qualquer na rua, umelemento arquitetnico, tudo afinal nosenvolve e nos toca de forma decisiva(deliberadamente ou por acaso) enquantofonte selvagem do sensvel; e preciso en-frentar a tarefa de responder e evidenciaresta pluriestimulao.19

    Janela.. 12h..18h.. 3h.. 5h, realiza-do em 1999, significaria a

    manifestao de um desejo de contato coma dinmica da rua, como nas aventuras

    deambulatrias de Barrio, em incio dos anos70. Vem lembrana o caderno-livro

    de 1971 que descreve e traz os registrosfotogrficos de um

    surpreendente deslocamento pelas ruas doRio de Janeiro, Mensagem 16: uma

    tesoura um espelho de metal cromado so-bre um espelho com moldura de madeira

    vermelha/descascada, espelho este cobertopor uma camada de cola semi

    transparente. Disposio/colocao destapea por vrios locais (pea nica)

    abrangendo/realizando assim, aps 4 dias 4noites, o trabalho mensagem 16.20

    Mensagem 16, revivendo a radicalidade po-tica do 4 dias 4 noites,

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    prope, de algum modo, a criao de mem-branas de contato com bueiros,

    calamentos, com esse estrato do manguepulsante que cobria nossas bordas de litoral

    atlntico os intestinos do asfalto.21

    Assim como no projeto Deflagramento desituaes sobre ruas, 1970,

    Mensagem 16 insinua uma espcie de cir-cuito potico. Ou, promete o artista:

    continuidades eltricas.22

    Como pensa Derrida, nessa escrita estamossempre em transformao: Vive-se na es-crita e escrever um modo de vida.23

    A nfase nessas passagens parece explicitar,do mesmo modo que os filtros de Oiticicanas janelas de Nova York, ou os diagramasNBP, a ambigidade dessa escrita entre in-terior/exterior, uma espcie de mergulhoao avesso.24 Pois ser artista deve ser acer-tar as contas e medir foras com este traoreal do mundo, frente a frente a um exces-so de realidade liminar que no nos aban-dona nunca, escreve Basbaum.25

    Deslocamento

    Com freqncia, a cmera poderia estre-mecer, como um raio, at seu olho e, emuma trepidao dos dedos26 assimStanley Brakhage tenta articular palavras aomovimento quase instantneo dos gestos deJonas Mekas. Penso em alguns trechos dedirios urbanos. Penso de imediato na mas-sa sonora, na variedade de rudos de rua,nas cortinas trepidantes de imagens cintilan-tes, opacas, horizontais, verticais, de Shibuya,de yann beauvais. Aqui as imagens desfazem-se todo o tempo em pensamento do vdeo,da captura, montagem e da exibio amembrana pensada na dimenso do pixel edos modos digitais de desdobramento des-se medium em campo.

    Mas mais ainda o registro, tambm urgen-te, de Edson Barrus, em This is my heart,27

    que vem em mente lendo o trecho deBrakhage. A pea foi criada bem em meioaos fluxos excessivos da megacidade, dandoa pensar que s as intensidades passam ecirculam.28 Dentro do metr de Berlim, a

    Artur Barrio

    Janela 12h.....18h..... 3h.....

    5h, Rio de Janeiro, 1999Fonte: http://

    www.muvi.advant.com.br/artistas/a/

    artur_barrio/janela.htm

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    extrema ateno de Barrus engendra o vdeoque registra num rasgo o abandono nascapitais da Europa globalizada. O colapso dolugar, o tempo eclipsado. Captura = proje-o: em uma precisa estratgia com sua di-gital de bolso, Barrus acompanha a disrupoda narrativa atravs do prprio movimentoe rudos bruscos do trem, e quase faz coin-cidir o enquadramento com o deslizar, pelavidraa lateral, de paisagens nubladas. Asimagens so ritmadas por gritos de umamulher africana que, envolta em pane-jamentos avermelhados, manifesta a falta delugar, a falta de calor, o desabrigo. O poucoque se v de relance (trata-se de uma pre-sena/ausncia) e que perdura so manchasvermelhas, lembrando a agitao das peque-nas telas algerianas de Delacroix.

    No apenas como mais um de seusManifestons! que invadem algumas pginasdo You Tube, Barrus parece dar aqui novosentido interveno situacionista, retoman-do, em sua arte austera, a observao deMichel Foucault segundo a qual a transgres-so um gesto que diz respeito ao limite; a, na magreza da linha, que se manifesta oraio de sua passagem.29

    NBP

    um programa para sbitas mudanas.

    Quais? Como? Quando?

    Deixe-se contaminar:

    Elas sero fruto de seu prprio esforo.

    Ricardo Basbaum

    A observao acima leva ao mvel do pro-jeto NBP: o virus poema que multiplica per-guntas e desperta o exerccio potico noslimites entre corpo, pensamento, e mundo.Evocando a costura de um imensoparangol imaterial, NBP retoma perguntasde nossa vanguarda neoconcreta, entretan-to com alguns deslocamentos crticos. Bus-ca-se um procedimento que desestabilize edesnaturalize as prticas e normas do circui-

    to de arte, criando novas linhas que iro atra-vessar a prpria configurao dos gestos: vi-das e afetos so conectados s proposiesvisando explorao dos limites do cotidia-no, em sua microssensorialidade o poti-co delineando aqui possibilidades de trans-formao nessa esfera. NBP nos mantm li-gados ao problema da criao de membra-nas de contato, de regies intermedirias quepodem gerar sries de diagramas, poemas,danas, prosas, desenhos, vdeos, composi-es musicais, redes e, enfim, o projeto as-sume a alteridade, busca a escrita de umromance crtico coletivo. o que parece in-dicar todo o humor que tambm atravessaVoc gostaria de participar de uma experi-

    ncia artstica?, em que se lana a possibili-dade do envolvimento do outro como par-ticipante em um conjunto de protocolosindicativos dos efeitos, condies e possibi-lidades da arte contempornea.30

    Os projetos envolvem um objeto/marca,segundo o texto do artista, uma forma de-senhada para ser implantada na memria,como inscrio de um trauma vindo da ge-lia adversa em que se movia a Gerao80. Da marca/objeto, de presena topregnante, como que extrada a mobilida-de de um dispositivo intersticial capaz dedesdobrar perguntas dentro de perguntas,implicado na criao de estratgias de dife-renciao, como revela a bula do Voc gos-taria?: As experincias que voc realizartornam visveis redes e estruturas de media-o, indicando a produo de diversos tiposde relaes e dados sensoriais: os conjuntosde linhas e diagramas, trazidos ao primeiroplano a partir de sua utilizao, so mais im-portantes que o objeto.31

    Enfatizando a microssensorializao ver/ler,os diagramas NBP so estruturas abertas aodevir. Constituem um anti-palimpsesto que,como teoria de artista,32 opera entre as di-menses plstica e discursiva. Trata-se de

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    uma escrita-limite, atenta captura do siste-ma normativo, que no deixa de buscarmodos de resistncia ao desempenho daindstria cultural, programa a ser desdobra-do como um jogo, nos prprios termos dapergunta: o que pode a arte?33

    Reinventando os princpios das criaes ex-pandidas neoconcretas, NBP e Voc gosta-ria? se pretendem experincias transfor-madoras tanto para o participante comopara o artista e o prprio objeto.34 Os pro-jetos visam criao de um campo de aescoletivas, funcionando ao modo da conta-minao virtica e buscando uma modalida-de de escrita ampliada: diante do fluxo cres-cente das experincias propostas, a escritado artista torna-se pequena e busca auxliode outros colaboradores na construo deum discurso de mltiplas vozes aponta-se a necessidade de um romance crticoenquanto rgo sensorial coletivo, comoperfil de uma configurao discursiva queresponda alta demanda das respostasdos participantes, instituindo um dilogoem fluxo.35

    Gilles Deleuze nos desafia a pensar o dispo-sitivo em termos dinmicos: processos, mo-vimentos, tenses, linhas mveis e mltiplas,

    em vez de oposies binrias fixas. E essano-estabilidade seria, alis, um atributoconstitutivo do prprio dispositivo: Em pri-meiro lugar [um dispositivo] uma espciede novelo ou meada, um conjuntomultilinear. composto por linhas de natu-reza diferente e essas linhas do dispositivono abarcam nem delimitam sistemas ho-mogneos por sua prpria conta [o objeto,o sujeito, a linguagem], mas seguem direesdiferentes, formam processos sempre inst-veis.36 Em Re-projecting, trabalho desenvol-vido na cidade de Utrecht em maio de 2008,o espaamento que se vai estabelecendoentre mapa, marca NBP, diagrama e situa-es de vida busca mais uma vez abrir apreenso sensvel uma modalidade particu-lar de intercruzamento entre texto e obrade arte.37 O mapa, como em Borges eSmithson, desdobra-se temporalmente epode at vir a ganhar algumas linhas ma-teriais (e imaginrias) no mundo. Cada pon-to determina um encontro possvel, fixa umaespcie de rendez-vous, um relogismo, uminterstcio do sonho com a vida terrena, lem-brando o tom de Eisenman em seu Proces-sos do intersticial: Uma arquitetura de fun-cionamento maqunico seria no-subordina-da s leis da semelhana ou utilidade e no

    Ricardo Basbaum

    diagrama de Utrecht,

    2008

    Foto: Ricardo Basbaum

    C O L A B O R A E S C E C I L I A C O T R I M

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    produziria objetos formais conceitualmenteestveis, mas priorizaria condies do espa-o sempre em estado de devir Mas oque uma arquitetura do devir?38

    Em NBP como em Eisenman, o movimentopotico viria do contato entre (n +1) dia-gramas, sempre deslocados de suas deter-minaes anteriores. E, para encerrar comum desvio, um trecho levemente inspiradoem Felix Jair, msico duplo de Basbaum: Amusicalidade latente em NBP ainda algo aser exteriorizado com maior contundncia,mas fica desde j indicada esta presena aativar fluxos e ritmos de desdobramento doprojeto e acolhimento do outro como sea costura do projeto NBP pudesse ser per-cebida como um imenso parangol imaterialcomposto de malha plstico-discursiva pron-to a ser utilizado, assumindo vocaoverbivocovisual.39

    Cecilia Cotrim trabalha com ensino e pesquisa em histriada arte moderna e contempornea, no Programa de Ps-Graduao em Histria Social da Cultura, PUC-Rio.

    Notas

    1 O texto corresponde a uma conferncia realizada naEscola Letra Freudiana do Rio de Janeiro, em agos-to de 2008.

    2 Seria preciso aqui desde logo fazer uma espcie de adver-tncia, citando Jonas Mekas: Esse filme [Walden] sendoo que , quer dizer, uma srie de notas pessoais dizen-do respeito a acontecimentos, pessoas (amigos) e Natureza (as estaes) o autor no ficar aborrecidocom o espectador (ele quase o encoraja) se este prefe-rir ver apenas certas partes do trabalho (filme), segundoo tempo de que dispe, segundo suas preferncias ouqualquer outra boa razo. Jonas Mekas, dez. de 1969,in Light Cone Catalogue, Paris, Light Cone, 2001: 167.

    3 beauvais, yann, Bouhours, Jean-Michel. Le je la camra. InLe je film. Paris: Centre Georges Pompidou, 1995.

    4 Sobre a praxis de Mekas, os dois autores observam:Os filmes so construdos em dois tempos: antes,o registro, a captura das imagens, tomadas na ur-gncia; em seguida, a elaborao de uma constru-o flmica sofisticada, apelando ao jornal escrito,

    comentada pelo cineasta na trilha sonora, ou apre-sentada em interttulos. Id. ibid.

    5 Maurice Blanchot. LEntretien infini. Paris: Gallimard,1969: 355.

    6 Jonas Mekas, The Diary Film, 1972. In Sitney, P. Adams(org.). The Avant-garde Film. A reader of Theory andCriticism. Anthology Film Archives Series 3: 192.

    7 Como escrevem yann beauvais e Jean-Michel Bouhours,[o dirio] elaborado em tempo real, ou quase; comoo instantneo fotogrfico, ele abole a distncia do tem-po, e o trabalho mnemnico opera principalmente en-quanto interao do passado sobre um presente que seinscreve. Le je la camra.

    8 NBP = Novas Bases para a Personalidade.

    9 Jonas Mekas, The Diary Film, op. cit.: 192.

    10 Hugo von Hofmannsthal. Le pote et lpoque prsente.In Lettre de Lord Chandos et autres crits. Paris:Gallimard, 1992: 95.

    11 Ver Fatos, 1973, em: http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia/ho/home/index.cfm.

    12 Maurice Blanchot escreve em LEntretien infini, op. cit.:302: A experincia-limite a resposta que encontra ohomem quando decide colocar-se radicalmente emquesto.

    13 Ver Neville meu amor, carta de 21/07/1973, em: http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia/ho/home/index.cfm.

    14 Em A obra, seu carter objetal, o comportamento, Oiticicaanota: O artista no ento o que declancha os tiposacabados, mesmo que altamente universais, mas simprope propor, o que mais importante como conse-qncia (grifo meu). In Aspiro ao grande labirinto. Riode Janeiro, Rocco, 1986: 120.

    15 Hlio Oiticica, Neville meu amor, op. cit.

    16 Sobre a relao entre a escrita de Hlio Oiticica e apoesia progressiva romntica, ver tese de PatriciaDias Guimares: Poesia em Progresso: Romantismos,Vanguardas Modernas e o Experimentalismo de

    Hlio Oiticica. Programa de Ps-Graduaco em His-tria Social da Cultura, PUC-Rio, 2008.

    17 Blanchot, op. cit.: 308.

    18 Ref. ao conceito de informe de Georges Bataille: Umdicionrio comearia a partir do momento em que nomais fornecesse o sentido das palavras, mas suas tarefas.Assim, informe no apenas um adjetivo possuindo talsentido, mas um termo que serve para desclassificar,geralmente exigindo que cada coisa tenha sua forma.Aquilo que designa no possui direitos em qualquer sen-

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    tido, e se faz esmagar em toda parte como uma aranhaou um verme. Com efeito, para que os homens acad-micos fiquem contentes, seria necessrio que o univer-so adquirisse forma. A filosofia como um todo no pos-sui outro objetivo: trata-se de fornecer uma beca[redingote] quilo que , uma beca matemtica. Poroutro lado, afirmar que o universo no se parece comnada e que apenas informe equivale a dizer que ouniverso alguma coisa como uma aranha ou um escar-ro (traduo de Ricardo Basbaum). Ver Yve-Alain Boise Rosalind Krauss. Informe. Paris: Centre GeorgesPompidou, 1996.

    19 Ver Ricardo Basbaum, Dentro dgua. In Registros. Porto:Museu Serralves, 2000: 22.

    20 Artur Barrio. Caderno-livro Mensagem 16. Rio de Janei-ro: MAM-Rio, 1971. Coleo Gilberto Chateaubriand.

    21 Barrio observa: sobre essa questo do corpo relaciona-do s excrees, s secrees, acho que o cristianismoanulou de tal maneira o corpo, que o que existe comoexpresso interna do corpo passa a ser encarado comouma coisa atroz. Artur Barrio, entrevista a CamilloOsrio. In Cotrim, Cecilia; Basbaum, Ricardo; Resende,Ricardo. Panorama da Arte Brasileira 2001. So Paulo:MAM, 2001: 82.

    22 DeflSituao.+S+.Ruas.Abril...-1979. In Registros, op. cit.: 86.

    23 Jacques Derrida. Uma arquitetura onde o desejo podemorar. Entrevista de Jacques Derrida a Eva Meyer. InNesbitt, Kate (org.). Uma nova agenda para a arquitetu-ra. So Paulo: Cosac Naify, 2006: 169.

    24 Dentro dgua, op. cit.: 30.

    25 Ibid.: 22.

    26 Citado por beauvais e Bouhours, op.cit. Ver Jonas Mekas,Paris: RMN, 1992.

    27 http://fr.youtube.com/watch?v=7yS8_gXWlTc.

    28 Gilles Deleuze e Felix Guattari. Comment se faire un Corpssans Organes? In Mille Plateaux, Paris: Les ditions deMinuit, 1980: 189.

    29 Michel Foucault. Prface la transgression. In Critique, n.195-196, ago.-set. 1963: 754. (Hommage G. Bataille)

    30 Ricardo Basbaum. Voc gostaria de participar de umaexperincia artstica? (+ NBP). Vol. 1. Tese de Doutora-do. Programa de Ps-Graduao em Artes Visuais. ECA/USP, 2008: 10.

    31 Id., ibid.

    32 Id., ibid.

    33 Ver Suely Rolnik, Geopoltica da cafetinagem, s/d, dispo-

    nvel em http://www.rizoma.net.

    34 Basbaum, Voc gostaria..., op. cit., vol. 1: 13.

    35 Fluindo de diferena para diferena, entrevista de RicardoBasbaum a Cecilia Cotrim. In Cultura e Pensamento n.2, Braslia: MinC, 2007: 73.

    36 Gilles Deleuze, O que um dispositivo? Disponvelem http://www.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/art14.html

    37 Basbaum. Voc gostaria..., op. cit., vol. 1: 13.

    38 Peter Eisenman. Processes of the intersticial (1997). InWritten into the Void. Selected Writings 1990-2004.New Haven e Londres: Yale University Press, 2007: 57.

    39 Basbaum. Voc gostaria..., op. cit., vol. 1: 84.

    C O L A B O R A E S C E C I L I A C O T R I M