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Universidade de Aveiro Ano 2012 Departamento de Educação Fernando Jorge da Costa Figueiredo CEGUEIRA CONGÉNITA NA CONSTRUÇÃO DA REALIDADE BIOFÍSICA E PSICOSSOCIAL Dissertação apresentada à Universidade de Aveiro para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Ciências da Educação, realizada sob a orientação científica do Doutor Evaristo Vicente Fernandes, Professor Associado com Agregação da Universidade de Aveiro e coorientação da Doutora Maria da Conceição Martins, Professora Coordenadora da Escola Superior de Saúde do Instituto Politécnico de Viseu Apoio financeiro da FCT no âmbito do POPH/FSE

Cegueira Congénita Na Construção Da Realidade Biofísica e Psicossocial

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O presente estudo teve como objetivo geral comparar a representação mental da realidade em crianças cegas congénitas, com a construção mental da realidade em crianças videntes, ao frequentarem o mesmo contexto de aprendizagem no Ensino Básico da Escola Regular (EBER). Esta comparação visou os seguintes objetivos específicos: (i) caracterizar as representações mentais construídas pelas crianças cegas congénitas a frequentar o EBER, (ii) comparar as representações mentais construídas pelas crianças cegas congénitas com as representações mentais construídas pelas crianças videntes, (iii) caracterizar as representações mentais que as crianças cegas congénitas constroem acerca da sua integração no EBER e (iv) caracterizar as representações mentais que os alunos videntes constroem acerca da integração das crianças cegas no EBER.O enquadramento teórico centrou-se nos conceitos de cegueira, desenvolvimento infantil e representações mentais.Metodologicamente, optámos por um design de estudos de caso múltiplos, com múltiplas unidades de análise. Para a recolha de dados recorremos a (i) entrevistas, (ii) conversas informais, (iii) questionário sociométrico e (iv) análise documental.Os resultados sugerem (i) ausência de diferenças significativas entre o grupo de sujeitos cegos congénitos e o grupo de videntes na identificação de estímulos de natureza percetual, (ii) ausência de diferenças significativas na riqueza, na complexidade e no total, entre as representações mentais evocadas por cegos congénitos e as representações mentais evocadas por videntes, (iii) ausência de diferenças significativas na natureza das informações entre as representações mentais evocadas por cegos congénitos e as representações mentais evocadas por videntes, (iv) ausência de diferenças significativas entre cegos congénitos e videntes, no número de preferências recebidas, no valor relativo tendo em consideração as ordens das preferências recebidas e no número de preferências recíprocas, (v) os videntes emitiram significativamente mais preferências que os respetivos pares cegos congénitos e (vi) o número de preferências emitidas pelos cegos congénitos está significativa e inversamente relacionado com as diferenças entre a riqueza, a complexidade e o total das representações mentais de cegos congénitos e videntes.

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  • Universidade de Aveiro Ano 2012

    Departamento de Educao

    Fernando Jorge da Costa Figueiredo

    CEGUEIRA CONGNITA NA CONSTRUO DA REALIDADE BIOFSICA

    E PSICOSSOCIAL

    Dissertao apresentada Universidade de Aveiro para cumprimento dos requisitos necessrios obteno do grau de Doutor em Cincias da Educao, realizada sob a orientao cientfica do Doutor Evaristo Vicente Fernandes, Professor Associado com Agregao da Universidade de Aveiro e coorientao da Doutora Maria da Conceio Martins, Professora Coordenadora da Escola Superior de Sade do Instituto Politcnico de Viseu

    Apoio financeiro da FCT no mbito do POPH/FSE

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    o jri

    presidente Prof. Doutor Manuel Antnio Assuno Reitor e Professor Catedrtico da Universidade de Aveiro.

    Prof. Doutor Feliciano Henriques Veiga Professor Associado com Agregao do Instituto de Educao da Universidade de Lisboa.

    Prof. Doutor Evaristo Vicente Fernandes Professor Associado com Agregao da Universidade de Aveiro.

    Prof. Doutor Joo Carvalho Duarte Professor Coordenador da Escola Superior de Sade do Instituto Politcnico de Viseu.

    Prof. Doutora Maria da Conceio Almeida Martins Professora Coordenadora da Escola Superior de Sade do Instituto Politcnico de Viseu.

    Prof. Doutora Anabela Maria Sousa Pereira Professora Auxiliar com Agregao da Universidade de Aveiro.

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    agradecimentos

    Ao meu orientador, Professor Evaristo Fernandes, pelo apoio e abertura manifestados ao longo de todo o trabalho, pela pertinncia das suas sugestes que contriburam para enriquecer esta investigao, pela transversalidade dos seus conhecimentos e pelo estmulo empaticamente encorajador e de exigncia profissional;

    minha co-orientadora, pelo privilgio de partilhar dos seus conhecimentos;

    Aos professores e alunos que connosco colaboraram nas escolas onde decorreu a recolha de dados, pelo seu esprito de colaborao, essencial viabilizao deste trabalho;

    Isabel e Constana, razes motivadoras de ancoragem em bom porto;

    A todos os meus alunos.

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    palavras-chave

    Cegueira, cegueira congnita, desenvolvimento infantil, representaes mentais, necessidades educativas especiais, educao especial.

    resumo

    O presente estudo teve como objetivo geral comparar a representao mental da realidade em crianas cegas congnitas, com a construo mental da realidade em crianas videntes, ao frequentarem o mesmo contexto de aprendizagem no Ensino Bsico da Escola Regular (EBER). Esta comparao visou os seguintes objetivos especficos: (i) caracterizar as representaes mentais construdas pelas crianas cegas congnitas a frequentar o EBER, (ii) comparar as representaes mentais construdas pelas crianas cegas congnitas com as representaes mentais construdas pelas crianas videntes, (iii) caracterizar as representaes mentais que as crianas cegas congnitas constroem acerca da sua integrao no EBER e (iv) caracterizar as representaes mentais que os alunos videntes constroem acerca da integrao das crianas cegas no EBER. O enquadramento terico centrou-se nos conceitos de cegueira, desenvolvimento infantil e representaes mentais. Metodologicamente, optmos por um design de estudos de caso mltiplos, com mltiplas unidades de anlise. Para a recolha de dados recorremos a (i) entrevistas, (ii) conversas informais, (iii) questionrio sociomtrico e (iv) anlise documental. Os resultados sugerem (i) ausncia de diferenas significativas entre o grupo de sujeitos cegos congnitos e o grupo de videntes na identificao de estmulos de natureza percetual, (ii) ausncia de diferenas significativas na riqueza, na complexidade e no total, entre as representaes mentais evocadas por cegos congnitos e as representaes mentais evocadas por videntes, (iii) ausncia de diferenas significativas na natureza das informaes entre as representaes mentais evocadas por cegos congnitos e as representaes mentais evocadas por videntes, (iv) ausncia de diferenas significativas entre cegos congnitos e videntes, no nmero de preferncias recebidas, no valor relativo tendo em considerao as ordens das preferncias recebidas e no nmero de preferncias recprocas, (v) os videntes emitiram significativamente mais preferncias que os respetivos pares cegos congnitos e (vi) o nmero de preferncias emitidas pelos cegos congnitos est significativa e inversamente relacionado com as diferenas entre a riqueza, a complexidade e o total das representaes mentais de cegos congnitos e videntes.

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    keywords

    Blindness, congenital blindness, child development, mental representations, special educational needs, special education.

    abstract

    The general objective of the present study was to compare the mental representation of reality in congenitally blind children with the mental construction of reality in seeing children, when attending the same learning context of Regular Basic Education (EBER). This comparison had the following specific objectives: (i) to characterise the mental representations constructed by congenitally blind children attending EBER, (ii) to compare the mental representations constructed by congenitally blind children with the mental representations constructed by seeing children, (iii) to characterise the mental representations that congenitally blind children construct regarding their integration in EBER, and (iv) to characterise the mental representations that the seeing students construct about the integration of blind children in EBER. The theoretical framework focused on the concepts of blindness, child development and mental representations. Methodologically, we chose a multiple-case study design, with multiple analysis units. To gather data we relied on (i) interviews, (ii) informal conversations, (iii) a sociometric questionnaire, and (iv) document analysis. The results suggest (i) an absence of significant differences between the group of congenitally blind subjects and the group of seeing subjects when identifying stimuli of a perceptual nature, (ii) an absence of significant differences in the wealth, complexity and, in total, between the mental representations evoked by the congenitally blind and the mental representations evoked by seeing subjects, (iii) an absence of significant differences in the nature of the information between the mental representations evoked by the congenitally blind and the mental representations evoked by the seeing, (iv) an absence of significant differences between the congenitally blind and the seeing, in the number of received preferences, in relative value, keeping in mind the orders of preference received and the number of reciprocal preferences, (v) the seeing subjects issued significantly more preferences than their congenitally blind peers and (vi) the number of preferences issued by the congenitally blind is significantly and inversely related to the differences between wealth, complexity and total mental representations of the congenitally blind and the seeing.

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    Mots-cls

    Ccit, ccit congnitale, dveloppement infantile, reprsentations mentales, besoins ducatifs spciaux, ducation spciale.

    rsum

    Lobjectif gnral de la prsente tude est de comparer la reprsentation mentale de la ralit chez des enfants aveugles congnitaux la construction mentale de la ralit chez les clients voyants frquentant le mme contexte dapprentissage de lEnseignement Basique de lEcole Rgulire (EBER). Cette comparaison est le rsultat des objectifs spcifiques suivants : (i) caractriser les reprsentations mentales construites par les enfants aveugles congnitaux frquentant lEBER (ii) comparer les reprsentations mentales construites par les enfants aveugles congnitaux aux reprsentations mentales construites par les enfants voyants, (iii) caractriser les reprsentations mentales que les enfants aveugles congnitaux construisent sur leur intgration lEBER et (iv) caractriser les reprsentations mentales que les lves voyants construisent sur lintgration des enfants aveugles lEBER. Lencadrement thorique sest concentr sur les concepts de ccit, dveloppement infantile et reprsentation mentale. Mthodologiquement, nous avons choisi un design dtudes de cas multiples avec plusieurs units danalyse. Pour obtenir les donnes, nous avons mis en place des (i) entrevues (ii) conversations informelles (iii) un questionnaire sociomtrique et (iv) lanalyse de documents. Les rsultats suggrent (i) labsence de diffrences considrables entre le groupe de sujets aveugles congnitaux et le groupe de voyants lors de lidentification de stimulations caractre perceptuel, (ii) labsence de diffrences significatives dans la richesse, la complexit et au total entre les reprsentations mentales voques par des aveugles congnitaux et les reprsentations mentales voques par les voyants, (iii) labsence de diffrences significatives dans la nature des informations entre les reprsentations mentales voques par les aveugles congnitaux et les reprsentations mentales voques par les voyants, (iv) labsence de diffrences significatives entre aveugles congnitaux et voyants en nombre de prfrences reues, dans la valeur relative tenant compte des ordres des prfrences reues et le nombre de prfrences rciproques, (v) les voyants ont mis considrablement plus de prfrences que leurs pairs voyants congnitaux et (vi) le nombre de prfrences mises par les aveugles congnitaux est important et inversement li aux diffrences entre la richesse, la complexit et la totalit de reprsentations mentales des aveugles congnitaux et des voyants.

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    NDICE INTRODUO .......... PARTE I ENQUADRAMENTO TERICO ........................ CAPTULO I: CEGUEIRA 1. A CEGUEIRA AO LONGO DO TEMPO ..... 2. O CONCEITO NA ACTUALIDADE ..... 3. CLASSIFICAES DE CEGUEIRA ........ 4. CAUSAS .... CAPTULO II: DESENVOLVIMENTO DA CRIANA VIDENTE E DA CRIANA CEGA

    CONGNITA ... 1. DESENVOLVIMENTO SENSORIAL ....... 1.1. A VISO ...... 1.2. O TATO .......

    1.3. A AUDIO ............ 1.4. O OLFATO ...

    1.5. O PALADAR .... 1.6. A PERCEO .......... 2. DESENVOLVIMENTO COGNITIVO ...... 2.1. AT AOS DOIS ANOS ........ 2.2. DOS DOIS AOS SEIS ANOS ...... 2.3. DOS SEIS AOS ONZE ANOS .........

    2.4. A PARTIR DOS ONZE ANOS ....

    2.5. DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM VERBAL ...... 3. DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL ........ 4. DESENVOLVIMENTO MOTOR ...... 5. DESENVOLVIMENTO SOCIAL ...... 5.1. O PAPEL DOS CUIDADORES ADULTOS ...... 5.2. O PAPEL DOS PARES ........

    6. A VARIABILIDADE INDIVIDUAL ...... 7. IMPLICAES EDUCATIVAS ........ CAPTULO III: REPRESENTAES MENTAIS ..... 1. EVOLUO HISTRICA DO CONCEITO ....... 2. O CONCEITO NA ACTUALIDADE ........ 2.1. O PAPEL DA MEMRIA NA CONSTRUO DAS REPRESENTAES MENTAIS 2.2. MODELOS EXPLICATIVOS DAS REPRESENTAES MENTAIS: A TEORIA DO

    PROCESSAMENTO DUAL DE ALLAN PAIVIO .

    2.3. MODELOS EXPLICATIVOS DAS REPRESENTAES MENTAIS: A CONVERGNCIA DIVERGNCIA DE ANTNIO DAMSIO ...

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    3. CARACTERSTICAS DAS REPRESENTAES MENTAIS ...... 4. CASOS PARTICULARES: ALUCINAES, SONHOS E FALSAS MEMRIAS ........ 5. O ESTUDO DA ATIVIDADE CEREBRAL COMO CAMINHO PARA

    COMPREENSO DA CEGUEIRA E DAS REPRESENTAES MENTAIS ..... 5.1. ATIVIDADE CEREBRAL E CEGUEIRA ... 5.2. ATIVIDADE CEREBRAL E REPRESENTAES MENTAIS . 6. O ESTUDO DAS REPRESENTAES MENTAIS EM VIDENTES ....... 7. O ESTUDO DAS REPRESENTAES MENTAIS EM CEGOS CONGNITOS .. 8. IMPLICAES EDUCATIVAS DO ESTUDO DAS REPRESENTAES MENTAIS . PARTE II ESTUDO EMPRICO CAPTULO IV: METODOLOGIA ...

    1. QUESTES DA INVESTIGAO E OBJETIVOS ............................. 2. VARIVEIS: FENMENOS A ESTUDAR ...... 2.1. VARIVEIS INDEPENDENTES ........ 2.1.1. Operacionalizao das variveis independentes .... 2.1.2. Estudo piloto: como foram selecionados os estmulos evocadores das

    representaes mentais ..... 2.2. VARIVEIS DEPENDENTES ................................ 2.2.1. Operacionalizao das variveis dependentes ........ 2.3. VARIVEIS DE CONTROLO .... 2.3.1. Operacionalizao das variveis de controlo ..... 3. HIPTESES .................................. 4. AMOSTRA ........ 4.1. SELEO DA AMOSTRA ..... 4.2. CARACTERIZAO DA AMOSTRA ........... 4.2.1. Idade e gnero ....... 4.2.2. Retenes, ciclo e ano de escolaridade ....

    4.2.3. Caracterizao geral ........ 5. PROCEDIMENTOS TICOS ..... 6. INSTRUMENTOS DE COLHEITA DE DADOS ..... 6.1. ENTREVISTA ......

    6.1.1. Pr teste das entrevistas (entrevistas piloto) ....... 6.1.2. Construo e validao das entrevistas definitivas: anlise e seleco dos itens 6.1.3. Validao das entrevistas definitivas segundo a natureza do estmulo ....... 6.1.4. Validao das entrevistas definitivas: componentes da varivel Representao

    Mental e suas relaes ..... 6.1.5. Estimao da fiabilidade dos resultados das entrevistas definitivas ........ 6.2. CONVERSA INFORMAL .......

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    6.3. QUESTIONRIO SOCIOMTRICO ......... 6.4. ANLISE DOCUMENTAL ........ 7. PROCEDIMENTOS DE ANLISE DE DADOS ...... 7.1. ANLISE DE CONTEDO .... 7.1.1. Anlise lexical e sintctica .... 7.1.2. Anlise temtica frequencial .... 7.1.3. Anlise da enunciao ... 7.3. ANLISE SOCIOMTRICA ...... 7.4. ANLISE ESTATSTICA ....... CAPTULO V APRESENTAO DE RESULTADOS ....... 1. NDICE DE RIQUEZA VOCABULAR (irv) ................................. 1.1. COMPARAO DO NDICE DE RIQUEZA VOCABOLAR ENTRE AS CRIANAS

    CEGAS CONGNITAS E AS VIDENTES 1.2. RELAES DO NDICE DE RIQUEZA VOCABULAR COM AS REPRESENTAES

    MENTAIS ....................................................................................................................

    2. REPRESENTAES MENTAIS CONSTRUDAS PELAS CRIANAS CEGAS CONGNITAS E SEUS PARES VIDENTES, SEGUNDO A NATUREZA DO ESTMULO ...

    2.1. IDENTIFICAO DOS ESTMULOS ... 2.2. RIQUEZA DAS REPRESENTAES MENTAIS ......... 2.3. COMPLEXIDADE DAS REPRESENTAES MENTAIS ... 2.4. TOTAL DAS REPRESENTAES MENTAIS ..... 2.5. NATUREZA DAS INFORMAES NAS REPRESENTAES MENTAIS .. 3. COMPARAO DAS REPRESENTAES MENTAIS CONSTRUDAS PELAS

    CRIANAS CEGAS CONGNITAS COM AS REPRESENTAES MENTAIS CONSTRUDAS PELAS CRIANAS VIDENTES ..

    3.1. IDENTIFICAO DOS ESTMULOS ... 3.2. RIQUEZA DAS REPRESENTAES MENTAIS ..... 3.3. COMPLEXIDADE DAS REPRESENTAES MENTAIS ... 3.4. TOTAL DAS REPRESENTAES MENTAIS . 3.5. NATUREZA DAS INFORMAES NAS REPRESENTAES MENTAIS... 4. ANLISE QUALITATIVA DAS REPRESENTAES MENTAIS DOS SUJEITOS

    CEGOS CONGNITOS E DOS SEUS PARES .... 4.1. CATEGORIA: PALAVRAS ABSTRATAS ....

    4.1.1. Estmulo: sujidade .... 4.1.2. Estmulo: rejeitar . 4.1.3. Estmulo: limpeza 4.1.4. Estmulo: amizade 4.1.5. Palavras abstratas: sntese ..

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    4.2. CATEGORIA: PALAVRAS CONCRETAS ..

    4.2.1. Estmulo: montanha . 4.2.2. Estmulo: estrela ....... 4.2.3. Estmulo: neve ... 4.2.4. Estmulo: nuvem ... 4.2.5. Palavras concretas: sntese ... 4.3. CATEGORIA: OBJECTOS TRIDIMENSIONAIS .

    4.3.1. Estmulo: limo . 4.3.2. Estmulo: esfera ... 4.3.3. Estmulo: seixos .... 4.3.4. Estmulos: seixos rolados e polidos .. 4.3.5. Objectos tridimensionais: sntese ... 4.4. CATEGORIA: FIGURAS EM RELEVO

    4.4.1. Estmulo: tringulo .. 4.4.2. Estmulo: rectngulo ... 4.4.3. Estmulo: crculo . 4.4.4. Estmulo: casa . 4.4.5. Figuras em relevo: sntese .. 4.5. CATEGORIA: SONS ......

    4.5.1. Estmulo: galo a cantar 4.5.2. Estmulo: co a ladrar . 4.5.3. Estmulo: piano 4.5.4. Estmulo: beb a chorar .. 4.5.5. Sons: sntese .. 4.6. SNTESE DA ANLISE QUALITATIVA ..... 5. INTEGRAO SOCIAL DAS CRIANAS CEGAS CONGNITAS NO EBER 5.1. INTEGRAO SOCIAL DE C1 NO EBER ... 5.2. INTEGRAO SOCIAL DE D1 NO EBER ... 5.3. INTEGRAO SOCIAL DE E1 NO EBER ... 5.4. INTEGRAO SOCIAL DE F1 NO EBER .... 5.5. INTEGRAO SOCIAL DE G1 NO EBER .. 5.6. INTEGRAO SOCIAL DE H1 NO EBER ... 5.7. INTEGRAO SOCIAL DOS CEGOS CONGNITOS NO EBER: ANLISE

    COMPARATIVA COM O GRUPO DE VIDENTES ...

    5.8. INTEGRAO SOCIAL DOS CEGOS CONGNITOS NO EBER: SNTESE ... 6. INTEGRAO NO EBER E SUAS RELAES COM A RIQUEZA, A

    COMPLEXIDADE E O TOTAL DAS REPRESENTAES MENTAIS CAPTULO VI DISCUSSO DOS RESULTADOS ...

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    1. REPRESENTAES MENTAIS DA REALIDADE FSICA . 1.1. IDENTIFICAO DOS ESTMULOS PERCETIVOS .. 1.2. RIQUEZA, COMPLEXIDADE E TOTAL DAS REPRESENTAES MENTAIS .. 1.3. NATUREZA DAS INFORMAES NAS REPRESENTAES MENTAIS .. 2. REPRESENTAES MENTAIS DA REALIDADE SOCIAL ESCOLAR ... 3. RELAES ENTRE AS REPRESENTAES MENTAIS DA REALIDADE FSICA E

    AS REPRESENTAES MENTAIS DA REALIDADE SOCIAL ESCOLAR . CAPTULO VII CONCLUSES .. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .. ANEXOS . ANEXO 1 Conjunto inicial de estmulos por categorias .... ANEXO 2 Questionrio sociomtrico .... ANEXO 3 Guio das entrevistas definitivas .. ANEXO 4 Estmulos por ordem de apresentao ... ANEXO 5 Autorizao e parecer da Direo Geral de Inovao e Desenvolvimento Curricular . ANEXO 6 Ofcio aos Conselhos Executivos .. ANEXO 7 Ofcio aos professores ... ANEXO 8 Ofcio aos encarregados de educao . ANEXO 9 Guio das entrevistas exploratrias .. ANEXO 10 Durao dos estmulos sonoros ...

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    NDICE DE QUADROS Quadro 1 Idade e gnero dos sujeitos da amostra ... Quadro2 Retenes, ciclo e ano de escolaridade dos sujeitos da amostra ...... Quadro 3 Grau mdio de concretizao das palavras estmulo ... Quadro 4 Correlao item-totais para palavras abstratas .... Quadro 5 Correlao item-totais para palavras concretas .. Quadro 6 Correlao item-totais para figuras em relevo .... Quadro 7 Correlao item-totais para objetos tridimensionais ... Quadro 8 Correlao item-totais para sons ..... Quadro 9 Correlaes natureza do estmulo totais .. Quadro 10 Correlaes das componentes da varivel Representao Mental .... Quadro 11 Coeficientes de fiabilidade interna .....

    Quadro 12 Comparao do irv das crianas cegas congnitas com o irv das crianas videntes .. Quadro 13 Relaes do irv com as representaes mentais totais e respetivos nveis de riqueza e

    complexidade .

    Quadro 14 Identificao de objetos tridimensionais, figuras em relevo e sons .. Quadro 15 Identificao de estmulos tcteis e sons ... Quadro 16 Identificao de objetos tridimensionais e figuras em relevo ............................... Quadro 17 Comparao da riqueza das representaes mentais evocadas a partir de (i) estmulos

    semnticos e (ii) estmulos percetivos ... Quadro 18 Comparao da riqueza das representaes mentais evocadas a partir de (i) estmulos

    tcteis e (ii) estmulos auditivos .... Quadro 19 Comparao da riqueza das representaes mentais evocadas por cada um dos

    conjuntos de estmulos de natureza diferente .... Quadro 20 Comparao mltipla da riqueza das representaes mentais evocadas por cada um dos

    conjuntos de estmulos de natureza diferente .... Quadro 21 Comparao da complexidade das representaes mentais evocadas a partir de (i)

    estmulos semnticos e (ii) estmulos percetivos ... Quadro 22 Comparao da complexidade das representaes mentais evocadas a partir de (i)

    estmulos tcteis e (ii) estmulos auditivos ........ Quadro 23 Comparao da complexidade das representaes mentais evocadas por cada um dos

    conjuntos de estmulos de natureza diferente ........ Quadro 24 Comparao mltipla da complexidade das representaes mentais evocadas por cada

    um dos conjuntos de estmulos de natureza diferente Quadro 25 Comparao dos totais das representaes mentais evocadas a partir de (i) estmulos

    semnticos e (ii) estmulos percetivos ... Quadro 26 Comparao das representaes mentais totais evocadas a partir de (i) estmulos tcteis

    e (ii) estmulos auditivos ............

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    Quadro 27 Comparao das representaes mentais totais evocadas por cada um dos conjuntos de estmulos de natureza diferente ...

    Quadro 28 Comparao mltipla dos totais das representaes mentais evocadas por cada um dos conjuntos de estmulos de natureza diferenta

    Quadro 29 Natureza das informaes nas representaes mentais evocadas a partir de (i) estmulos semnticos e (ii) estmulos percetivos ...

    Quadro 30 Natureza das informaes nas representaes mentais evocadas a partir de (i) estmulos tcteis e (ii) estmulos auditivos ..

    Quadro 31 Natureza das informaes nas representaes mentais evocadas para cada um dos conjuntos de estmulos de natureza diferente ....

    Quadro 32 Comparao mltipla das informaes imagticas evocadas por cada um dos conjuntos de estmulos de natureza diferente (cegos congnitos) ..

    Quadro 33 Comparao mltipla das informaes de natureza sentimental evocadas por cada um dos conjuntos de estmulos de natureza diferente (cegos congnitos) ...

    Quadro 34 Comparao mltipla das informaes de natureza imagtica evocadas por cada um dos conjuntos de estmulos de natureza diferente (videntes) .....

    Quadro 35 Comparao mltipla das informaes de natureza verbal evocadas por cada um dos conjuntos de estmulos de natureza diferente (videntes) .......

    Quadro 36 Identificao de objetos tridimensionais, figuras em relevo e sons .. Quadro 37 Identificao de estmulos tcteis ...... Quadro 38 Identificao de estmulos percetivos (total) .... Quadro 39 Riqueza total e riqueza das representaes mentais evocadas por estmulos semnticos

    e por estmulos percetivos .

    Quadro 40 Riqueza das representaes mentais evocadas por estmulos tcteis Quadro 41 Riqueza das representaes mentais evocadas por (i) palavras abstratas, (ii) palavras

    concretas, (iii) objetos tridimensionais, (iv) figuras em relevo e (v) sons ..... Quadro 42 Complexidade total e complexidade das representaes mentais evocadas por estmulos

    semnticos e por estmulos percetivos .......

    Quadro 43 Complexidade das representaes mentais evocadas por estmulos tcteis .. Quadro 44 - Complexidade das representaes mentais evocadas por (i) palavras abstratas, (ii)

    palavras concretas, (iii) objetos tridimensionais, (iv) figuras em relevo e (v) sons ... Quadro 45 Total e representaes mentais totais evocadas por estmulos semnticos e por

    estmulos percetivos ..

    Quadro 46 Representaes mentais totais evocadas por estmulos tcteis ..... Quadro 47 Representaes mentais totais evocadas por (i) palavras abstratas, (ii) palavras

    concretas, (iii) objetos tridimensionais, (iv) figuras em relevo e (v) sons . Quadro 48 Natureza das informaes nas representaes mentais evocadas por estmulos (i)

    semnticos e (ii) percetivos

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    Quadro 49 Natureza das informaes nas representaes mentais evocadas por estmulos tcteis ... Quadro 50 Natureza das informaes nas representaes mentais evocadas por cada um dos

    conjuntos de estmulos de natureza diferente .... Quadro 51 Matriz sociomtrica da turma frequentada por C1 ... Quadro 52 Matriz sociomtrica da turma frequentada por D1 Quadro 53 Matriz sociomtrica da turma frequentada por E1 .... Quadro 54 Matriz sociomtrica da turma frequentada por F1 .... Quadro 55 Matriz sociomtrica da turma frequentada por G1 Quadro 56 Matriz sociomtrica da turma frequentada por H1 Quadro 57 Comparao (i) das preferncias recebidas, (ii) dos valores relativos s ordens de

    enumerao, (iii) das preferncias recprocas e (iv) das preferncias emitidas, entre os sujeitos cegos congnitos e os videntes .

    Quadro 58 Integrao social no EBER e suas relaes com as representaes mentais evocadas (i) por estmulos semnticos e (ii) por estmulos percetivos ..

    Quadro 59 Integrao social no EBER e suas relaes com as representaes mentais evocadas por estmulos tcteis ..

    Quadro 60 Integrao social no EBER e suas relaes com as representaes mentais evocadas por estmulos de natureza diferente ...

    Quadro 61 Integrao social no EBER e suas relaes com as diferenas das representaes mentais, entre cegos congnitos e videntes (valor total, estmulos semnticos e estmulos percetivos) ..

    Quadro 62 Integrao social no EBER e suas relaes com as diferenas das representaes mentais, entre cegos congnitos e videntes (estmulos tcteis) .

    Quadro 63 Integrao no EBER e suas relaes com as diferenas das representaes mentais, entre cegos congnitos e videntes (estmulos de natureza diferente) ....

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    NDICE DE FIGURAS Figura 1 O olho humano ....

    Figura 2 Processos de recolha de dados .....

    Figura 3 Palavras estmulo quanto ao grau de concretizao .... Figura 4 Distribuio dos itens por categorias (pr seleo final) . Figura 5 - Distribuio dos itens por categorias (ps seleo final) . Figura 6 Padres da anlise s representaes mentais evocadas pela palavra abstrata rejeitar ... Figura 7 Demostrao de afetos segundo as representaes mentais evocadas pela palavra abstrata

    amizade ..

    Figura 8 Representaes mentais evocadas pela palavra concreta estrela . Figura 9 Representaes mentais evocadas pela palavra concreta neve ................................ Figura 10 Representaes mentais evocadas pela palavra concreta nuvem .. Figura 11 Representaes mentais evocadas pelo objeto tridimensional limo Figura 12 Representaes mentais evocadas pelo objeto tridimensional esfera ................................ Figura 13 Representaes mentais evocadas pelos objetos tridimensionais seixos .. Figura 14 Representaes mentais evocadas pelo objeto tridimensional seixos rolados e polidos ... Figura 15 Representaes mentais evocadas pela figura em relevo tringulo ...

    Figura 16 Representaes mentais evocadas pela figura em relevo retngulo .. Figura 17 Representaes mentais evocadas pela figura em relevo crculo ..

    Figura 18 Representaes mentais evocadas pela figura em relevo casa .. Figura 19 Representaes mentais evocadas pelo som galo a cantar Figura 20 Representaes mentais evocadas pelo som co a ladrar .. Figura 21 Representaes mentais evocadas pelo som do piano ...

    Figura 22 Representaes mentais evocadas pelo som beb a chorar ... Figura 23 Sntese dos resultados da anlise da enunciao ... Figura 24 Sociograma das preferncias emitidas e recebidas por C1 ....

    Figura 25 Sociograma das preferncias emitidas e recebidas por D1 ....

    Figura 26 Sociograma das preferncias emitidas e recebidas por E1 Figura 27 Sociograma das preferncias emitidas e recebidas por F1

    Figura 28 Sociograma das preferncias emitidas e recebidas por G1 .... Figura 29 Sociograma das preferncias emitidas e recebidas por H1 ...

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    LISTA DE SIGLAS

    DGIDC Direo Geral de Inovao e Desenvolvimento Curricular

    EBER Ensino Bsico da Escola Regular

    EE Educao Especial

    ini informao de natureza imagtica

    ins informao de natureza sentimental

    inv informao de natureza verbal

    irv ndice de riqueza vocabular

    NEE Necessidades Educativas Especiais

    p nmero de preferncias emitidas

    p nmero de preferncias recprocas

    p brut nmero de preferncias recebidas

    p val valor relativo tendo em considerao as ordens das preferncias recebidas

    om ordem mdia

    OMS Organizao Mundial de Sade

    SD Sistema Disposicional

    SI Sistema Imagtico

    SRI Sistema de Representao Imagtica

    SRV Sistema de Representao Verbal

    ZDC Zonas de Convergncia - Divergncia

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    INTRODUO

    Desde o incio da dcada de noventa do sculo passado, assistimos a um interesse crescente pela educao das crianas categorizadas como apresentando Necessidades Educativas Especiais (NEE) e suas modalidades, nomeadamente a incluso (UNESCO, 1994) na escola regular. Efetivamente, podemos considerar este perodo como uma referncia no que a este tema diz respeito, nomeadamente com a realizao pelas Naes Unidas da Conferncia Mundial de Educao Especial, da qual resultou a clebre e celebrada Declarao de Salamanca.

    A atualidade no , nem ser nunca em matria de Educao, o destino final. Ter de assumir-se, certamente, como mais uma passagem, mas uma passagem de exigncia pedaggica, social e humana. A Sociedade e as suas instituies, nomeadamente a Escola, devero proporcionar as condies essenciais construo pessoal do bem-estar fsico, emocional e social, de acordo com o conceito de sade estabelecido pela Organizao Mundial de Sade (Andrade, 1995; Tones, 1987). De acordo com o pensamento de Fernandes (2006), entendemos que a misso da Escola contribuir para o desenvolvimento de todos os alunos (com e sem NEE), a nvel cognitivo, emocional, fsico e social, potenciando dessa forma um projeto de vida e uma vivncia assente no bem-estar. Nas suas palavras: com manuteno de um continuado estado de bem-estar em todas as dimenses da sua individualidade, o que o far funcionar de modo integrado e orientado para o desenvolvimento e concretizao de suas potencialidades individuais (Fernandes, 2006, p. 20). Para ajudar a Escola a cumprir esta misso, necessrio aprofundar o conhecimento acerca dos alunos, mobilizando esse conhecimento para a preparao adequada dos professores, assim como para o estabelecimento de pontes de intercomunicao entre a escola e a famlia. Um Currculo historicamente centralizado como o nosso (Roldo, 1999), apesar das brechas que vai abrindo flexibilizao e diferenciao, pensado em funo da norma, do aluno mdio. Em consequncia, os professores conhecem melhor o aluno mdio e, no essencial, foi para trabalhar com ele que foram formados. nesta realidade que emergem (ou submergem) as crianas com NEE: O que sabemos acerca destas crianas?; O que importa investigar para aprofundar o conhecimento acerca delas?; Como mobilizar este conhecimento para formar adequadamente pais, professores, auxiliares de aco educativa e a prpria Sociedade?;

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    Como educar as crianas com NEE?; De que forma, um currculo homogneo, pensado no abstrato em funo do aluno mdio, pode valorizar e educar na diferena?

    Neste contexto, o nosso trabalho de doutoramento pretende ser um contributo para a clarificao deste tema, nomeadamente a Educao das crianas cegas congnitas, procurando responder ao seguinte problema de investigao:

    Ao frequentarem o mesmo contexto de aprendizagem no Ensino Bsico da Escola Regular, a representao mental da realidade em crianas cegas congnitas semelhante representao mental da realidade em crianas videntes?

    Neste problema emergem dois conceitos cujas relaes procuramos estudar, o conceito de condio visual dos sujeitos e o conceito de representao mental. No que respeita condio visual constitumos dois grupos de sujeitos com condies visuais diferentes, um grupo de sujeitos cegos congnitos e um grupo de sujeitos videntes, grupos estes equivalentes em termos de idades, gneros, anos e ciclos de escolaridade, inseridos num mesmo contexto de aprendizagem, o EBER (Ensino Bsico da Escola Regular). No que respeita representao mental da realidade, estudmos a representao mental da realidade fsica e a representao mental da realidade social em contexto escolar. No nosso trabalho, a construo terica deste conceito assentou em dois modelos explicativos: a Teoria do Processamento Dual1 proposta por Allan Paivio e o modelo de Convergncia Divergncia proposto por Antnio Damsio. Uma vez que ambos os modelos preveem a possibilidade das representaes mentais serem traduzveis em descries verbais, a nossa recolha de dados incidiu essencialmente na aplicao de entrevistas, nas quais e perante condies pr-determinadas solicitmos aos sujeitos que nos relatassem oralmente as suas representaes mentais. Para o estudo das representaes mentais da realidade fsica apresentmos de forma aleatria e um de cada vez, vrios estmulos com os quais pretendamos evocar essas mesmas representaes. Estes estmulos podem agrupar-se, de acordo com a sua natureza, em (i) palavras abstratas, (ii) palavras concretas, (iii) objetos tridimensionais, (iv) figuras em relevo e (v) sons. Para o estudo das representaes mentais da realidade social, recorremos ao questionrio sociomtrico junto dos sujeitos cegos congnitos e dos seus pares videntes da turma. Na realizao da entrevista e aps

    1 Dual Coding Approach no original.

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    recolhermos as representaes mentais acerca da realidade fsica, colocmos algumas questes abertas acerca da integrao social das crianas cegas congnitas, com o intuito de completar as informaes acerca das representaes da realidade social escolar. Para a anlise dos dados recolhidos atravs da entrevista recorremos a uma anlise de contedo de natureza quantitativa (anlise lexical e sinttica e anlise temtica frequencial) e a uma anlise de contedo de natureza qualitativa (anlise da enunciao). Os dados recolhidos atravs do questionrio sociomtrico foram analisados atravs do clculo dos ndices sociomtricos recomendados e descritos na literatura.

    As razes que sustentam o presente problema radicam na prpria evoluo dos modelos explicativos da mente humana e do seu funcionamento. Com o advento das teorias construtivistas da aprendizagem, da sua assimilao e implementao graduais ao nvel das concees e prticas dos professores, com particular nfase a partir dos anos 80 do sculo passado, rejeitam-se as ideias de matriz behaviorista, segundo as quais a mente das crianas um balde vazio ou uma tbua rasa, que compete escola encher ou preencher, se depois de cheia continuarem a existir espaos vazios (Pereira e Duarte, 1992). Assim, as teorias construtivistas, as quais adotamos, assumem que:

    o sujeito no se limita a acumular passivamente as informaes. Pelo contrrio, tem um papel ativo no processamento da experincia e da informao, determinado pelo seu quadro referencial terico preexistente. A realidade , deste modo, apercebida e construda de forma pessoal por cada observador (Pereira e Duarte, 1992, p. 65).

    Percebe-se, assim, a necessidade de investigar sobre a lgica e a origem das representaes mentais que crianas e jovens (antes, durante e aps o ensino formal) constroem dos fenmenos e situaes concretas dos seus quotidianos escolares e no escolares, de forma a conceber e implementar estratgias pedaggicas adequadas (Cachapuz, 1997, Veiga et al., 2000). Desde os anos 80 do sculo passado que se vem construindo um corpo terico vasto, assente nos resultados de numerosas investigaes sobre as representaes das crianas ditas normais, como demonstram as revises da literatura efetuadas por Pereira e Duarte (1992) e por Santos (1991). No entanto, o interesse pelas representaes mentais das crianas com NEE tem sido incipiente e de pouca relevncia, ou como afirmam Veiga et al. (2000), as investigaes nesta rea so praticamente inexistentes (p. 35). Uma vez que o conceito de NEE representa mltiplas

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    situaes, resulta proporcionalmente uma escassez ainda mais notria, quando pensamos no caso concreto das crianas com cegueira congnita a frequentar o EBER. Esperamos ajudar a minorar esta carncia, fazendo luz sobre algumas das representaes mentais das crianas cegas congnitas, as quais podero constituir uma ferramenta de trabalho para os profissionais da Educao, ajudando a conceber e implementar estratgias pedaggicas adequadas ao desenvolvimento destas crianas.

    O prprio estudo das representaes mentais das crianas ditas normais tem assente, maioritariamente, numa conceo reducionista do conceito de representao mental. Essa conceo reducionista assenta, tradicionalmente, nas relaes das representaes mentais com a memria e os processos mnemnicos (Almaraz, 1997; Paivio, 1971). Tem assumido particular relevncia a investigao acerca da memorizao de listas de palavras (abstratas ou concretas), de objetos, imagens, sons, etc. Os objetivos visados com a maioria destas investigaes visam, essencialmente, o sucesso ou no na reteno e evocao destes materiais, no incidindo nas representaes enquanto (re)construes mentais da realidade, de natureza complexa, dinmica e multimodal2, assim como nos significados que os sujeitos lhes atribuem. Se me permitido, passo a relatar um episdio vivenciado por mim e que pode ilustrar essa natureza complexa, dinmica e multimodal das representaes mentais, muito alm da memorizao de palavras, objetos ou smbolos. Hoje de manh, enquanto me barbeava e sem que nenhum estmulo em particular me tivesse afetado, diria portanto quase sem intencionalidade, assomaram-me mente memrias da minha infncia. Conscientemente, a primeira imagem de que tive conscincia foi de quando eu, o tio3 Coelho e o seu filho levmos a mula deles a pastar, imagem visual entremeada com imagens tcteis do plo do animal. Seguiu-se, quase de imediato e sem qualquer esforo intencional da minha parte, a imagem visual de uma arrecadao onde o tio Coelho guardava as batatas, entremeada com imagens olfativas caractersticas destes locais, imagens tcteis de quando ajudava a retirar os renovos4 das batatas e imagens sentimentais de felicidade vivida naquele tempo. Tal como anteriormente, de forma quase imediata e sem qualquer esforo intencional da minha parte,

    2 Que implica representaes mentais de diferentes naturezas: visuais, auditivas, tcteis, olfativas, gustativas,

    propriocetivas, sentimentais e simblico-verbais. 3 A palavra tio era utilizada na aldeia onde cresci, como alis em muitos outros locais, como um epteto

    marcador de afinidade e no, necessariamente, de laos de consanguinidade. 4 Habitualmente designados olhos ou grelos.

  • 21

    surgiu-me a imagem visual imaginada de um acontecimento que, na poca, foi vivido pelo meu av materno junto dessa arrecadao e por ele me foi relatado verbalmente, de quando ele ali se deparou com uma cobra. Quase sem pensar surgiu-me uma representao de natureza simblico-verbal, na qual e atravs da minha linguagem interior me questionava sobre a minha idade na poca, colocando hipteses e refletindo sobre as mesmas (cinco, seis anos?). So representaes como estas que pretendemos estudar e com o desenho de investigao que nos propusemos seguir, procurmos ir de encontro s representaes mentais evocadas nos sujeitos atravs dos vrios estmulos evocadores, enquanto (re)construes mentais desses estmulos plenas de significados pessoais. Um outro lado reducionista das investigaes acerca das representaes mentais est relacionado com a sua centrao excessiva nas representaes mentais de natureza visual. A par do sentido da viso (Ballesteros e Heller, 2006), tambm a investigao das representaes mentais tem privilegiado a natureza visual das mesmas, em detrimento das representaes mentais de natureza tctil, auditiva, olfativa, gustativa e propriocetiva. No nosso trabalho, ao recorrermos a estmulos de naturezas diferentes (tcteis, auditivos e verbais), pensamos estar a contribuir, modestamente, para a correo desta desfasagem.

    A defesa social e poltica pela implementao da integrao de crianas com NEE na escola regular assenta, geralmente, na ideia de que resultam exclusivamente ganhos para estas crianas e de forma quase automtica. Em consequncia, no se questiona(m) o(s) modelo(s) utilizado(s) e no se ponderam os modelos alternativos, nomeadamente e a ttulo de exemplo, o adotado no Centro Infantil Helen Keller e descrito em Dias (1995). No modelo comummente adotado, a criana com NEE integrada num grupo de crianas ditas normais, na convico de que esta vivncia ir ajud-la a desenvolver competncias sociais, indispensveis vida em Sociedade. Ao pretendermos estudar as representaes da realidade social, procuramos colocar prova estas convices, muitas vezes assentes em ideias do senso comum ou meramente economicistas. Por outras palavras, procuramos analisar a distncia que separa o otimismo do currculo enunciado e a articulao terica e de alguns documentos de poltica educativa, da inadequao, frequente, do currculo implementado, uma vez que, como afirma Doll (1986), dentro da escola que o currculo acontece. Estamos convictos, que o nosso estudo ir contribuir para um melhor conhecimento dos processos de aprendizagem e pensamento das crianas cegas congnitas, assim como da sua integrao na escola regular. De acordo com Canrio (1999):

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    Isto significa romper com a viso desvalorizada das comunidades e das crianas, presente nas polticas oficiais, e pelo contrrio privilegiar a visibilidade dos pontos de vista dos aprendentes (p. 30). Por outras palavras, a realidade experienciada pelas crianas e pelos jovens nos

    contextos educacionais no poder ser completamente compreendida atravs de inferncias ou assumpes feitas pelos adultos, ou seja, os significados que as crianas e os jovens atribuem s suas experincias no esto necessariamente em sintonia com as dos seus professores e dos seus pais (Lloyd-Smith e Tarr, 2000).

    Em consonncia com as ideias anteriores, nossa inteno tentar ver o mundo com os olhos das crianas cegas que so, para alm dos restantes sentidos, a mente. Este conhecimento poder contribuir para uma cuidadosa identificao e avaliao das necessidades e potencialidades da criana com NEE, a fim de potenciar a organizao de um programa adequado, integrador e integrado no sistema educativo regular. Assim, os resultados deste estudo, contribuindo para a compreenso dos processos de aprendizagem e pensamento das crianas cegas congnitas, podero constituir-se como uma mais-valia para a prtica pedaggica dos professores regulares e de apoio, ajudando-os a adequar ou mesmo a conceber metodologias de trabalho mais adequadas a estas crianas. Por outro lado, ao estudar o processo de integrao na perspetiva dos sujeitos cegos congnitos e dos seus pares videntes, ajudar a compreender as relaes sociais que se estabelecem entre estes dois grupos, pelo que poder contribuir para guiar a interveno dos professores, no sentido de incrementarem e/ou melhorarem as relaes sociais entre alunos cegos e videntes. A este propsito, Correia, Cabral e Martins (1999) afirmam que os alunos ditos normais podem constituir um fator fundamental para o xito da integrao atravs das interaes positivas que desenvolvem com os seus colegas, ajudando-os e assumindo o papel de tutores e amigos (p. 167).

    Ao estudarmos a integrao das crianas categorizadas como possuindo NEE, recolhendo e analisando as suas prprias percees, poderemos tambm contribuir para o Desenvolvimento Curricular, com alguma clarificao e compreenso acrescidas deste processo, tantas vezes mal compreendido, alvo que de fundamentalismos a seu favor ou contra si. Com a desmistificao destes fundamentalismos, poderemos compreender melhor o momento atual do processo de integrao, em termos tericos e prticos, ajudando a delinear os caminhos possveis para o futuro. Os resultados deste trabalho, ao contriburem para um melhor conhecimento das crianas cegas congnitas, nomeadamente das suas

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    necessidades e potencialidades, podero constituir uma mais-valia no momento de pensar, desenhar e implementar uma matriz curricular adaptada a estas crianas. Como afirma Jimnez (1997), as adaptaes curriculares so a mais importante estratgia de interveno na resposta s necessidades educativas especiais (p. 15). Tambm para Correia e Rodrigues (1999), no ser possvel atender complexidade e diversidade das NEE, sem adaptar e diferenciar o Currculo Escolar a cada situao concreta. Estes autores acrescentam que o professor dever tomar em considerao, na elaborao de adaptaes curriculares para alunos individualmente considerados, aqueles aspetos que a investigao e a prtica tm posto em destaque relativamente s incidncias especficas de alguns dfices (sensoriais, motores, intelectuais, emocionais, de comportamento) nas aprendizagens escolares (p. 109).

    A prtica, a investigao e a legislao, salientam a necessidade de encontrar modelos de colaborao entre a Escola e a Famlia, particularmente no caso das crianas com NEE. Como afirmam Kirk e Gallagher (2002), nas ltimas dcadas comeamos a entender mais a dor e o stress dos que tm uma criana deficiente e o grau de coragem e apoio externo necessrios para que os pais mantenham o seu equilbrio nestas circunstncias (p. 11). Estes autores classificam como um passo importante a mudana do papel dos pais, que conduziu sua participao significativa nos programas de interveno. O Decreto-Lei n3/2008 prev e apela, a uma participao extensiva dos Encarregados de Educao nos processos de Educao Especial (EE) dos seus educandos com NEE. Assim, no ponto 1 do artigo 3, refere-se que os pais ou encarregados de educao tm o direito e o dever de participar activamente, exercendo o poder paternal nos termos da lei, em tudo o que se relacione com a educao especial a prestar ao seu filho, acedendo, para tal, a toda a informao constante do processo educativo (ME, 2008, p. 155). No que diz respeito ao processo de avaliao, na alnea c do ponto 1 do artigo 6 afirma-se a necessidade de assegurar a participao activa dos pais ou encarregados de educao, assim como a sua anuncia (p. 156). O artigo 30 prev o desenvolvimento de aces de apoio famlia (p. 163). Entendemos que o conhecimento mais aprofundado da criana cega congnita por parte dos seus pais e/ou Encarregados de Educao, poder melhorar substancialmente a colaborao destes com a Escola. Os pais necessitam saber como o filho progride na escola e como ajud-lo a reforar os seus conhecimentos e capacidades (Horton, 2000). Cremos que este trabalho ir contribuir para aprofundar esta colaborao. Ao mesmo tempo, poder

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    ajudar a construir um ambiente familiar estimulante e construtivo, conferindo alguma orientao na relao da famlia com a criana cega congnita, nos estmulos que lhe so proporcionados e na Educao formal considerada mais adequada.

    Numa perspetiva mais abrangente, contribuindo para conhecer melhor o mundo das crianas portadoras de cegueira congnita, pensamos estar a contribuir, ainda que humildemente, para a formao de uma Sociedade com mais igualdade de oportunidades para estas crianas enquanto crianas que so e, futuramente, enquanto adultos e cidados de pleno direito. Para tal, fundamental reestruturar falsas concees que ainda hoje perpassam em pais, educadores e na Sociedade em geral, aprofundando e divulgando os vrios fatores com elas relacionados (Nielsen, 1999).

    No que respeita s opes tericas e metodolgicas deste trabalho, Paivio (1990) diz-nos que saber como representamos mentalmente a informao e a utilizamos para interagir com o mundo de forma adaptativa, constitui um problema extraordinariamente difcil, talvez o mais difcil de toda a Cincia. De acordo com ele, implica questes relacionadas com a natureza do conhecimento e do pensamento, com os comportamentos observveis, com a atividade cerebral, com o desenvolvimento, etc. Sendo um problema to complexo, o autor no encontra acordo definitivo acerca da(s) forma(s) de abordar o problema, quer terica quer empiricamente, sendo certo que a controvrsia est inerente ao prprio trabalho cientfico. Escolhemos uma passagem de Gregory (1979) para ilustrar estas ideias: frequentemente muito difcil estabelecer se um efeito visual deve ser considerado pertencente psicologia, fisiologia ou fsica. Todas essas reas ficam muito misturadas. Todos estes contributos conduzem-nos a uma outra consequncia, a injustia de no podermos dedicar a merecida ateno a todos os novos contributos que vo emergindo em cada uma dessas reas cientficas. Sendo as representaes mentais um fenmeno construdo no crebro, entendemos no seguimento de Damsio (2010) que ser, talvez, um pouco desproporcionado falar de teoria ou teorias, pois a menos que se trabalhe numa escala suficientemente grande, a maior parte das teorias no passam de hipteses (p. 36). Assim, preferimos e utilizamos a expresso enquadramento terico como alternativa a fundamentao terica. Atendendo multiplicidade de reas de conhecimento que contribuem para o estudo das representaes mentais e escassez de consensos, mesmo no seio de uma mesma disciplina, temos como arriscado e difcil tomar

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    a direo de uma nica corrente terica na qual fundamentar o nosso trabalho. Assim, optmos por uma abordagem mais abrangente, prospetando contribuies de diferentes quadrantes e construindo um enquadramento terico, procurando interligaes entre fenmenos anatmicos e fisiolgicos, comportamentais, desenvolvimentais, mentais e cerebrais.

    No presente trabalho, em termos organizacionais, seguem-se os captulos I, II e III, no qual apresentamos o enquadramento terico subjacente em trs partes: Captulo I Conceito de Cegueira, Captulo II - Desenvolvimento da criana vidente e da criana cega congnita, Captulo III - Conceito de representao mental. No captulo IV Metodologia, apresentamos as questes de investigao, os objetivos, as variveis e as hipteses, os participantes, os procedimentos ticos, os instrumentos e os procedimentos de anlise de dados . Os resultados so apresentados no captulo V, de acordo com a seguinte sequncia: ndice de riqueza vocabular, representaes mentais construdas pelas crianas cegas congnitas e seus pares videntes, segundo a natureza do estmulo, comparao das representaes mentais construdas pelas crianas cegas congnitas com as representaes mentais construdas pelas crianas videntes, anlise das representaes mentais dos sujeitos cegos congnitos e dos seus pares videntes, integrao social das crianas cegas congnitas no EBER e integrao no EBER e suas relaes com a riqueza, a complexidade e o total das representaes mentais. No captulo VI apresentaremos a discusso dos resultados, para de seguida nos determos nas concluses (captulo VII), nomeadamente na confirmao ou na refutao das hipteses, nas limitaes e implicaes do presente estudo, bem como nas recomendaes para futuras investigaes.

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    PARTE I

    ENQUADRAMENTO TRICO

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    CAPTULO I: CEGUEIRA

    Neste captulo apresentamos (i) uma abordagem histrica da cegueira, (ii) o conceito na atualidade, algumas (iii) classificaes e (iv) causas da cegueira.

    1. A CEGUEIRA AO LONGO DO TEMPO At meados do sculo XX, os conhecimentos acerca da viso e da cegueira eram reduzidos e esparsos, tanto na comunidade cientfica como na Sociedade em geral. Como em muitos outros campos, o conhecimento cientfico acerca da viso e da cegueira cresceu exponencialmente e com diversos propsitos, desde os meramente tericos aos aplicados na recuperao da viso de sujeitos cegos. O conhecimento da Sociedade em geral parece estar muito marcado pelas matrizes culturais subjacentes, evidenciando uma evoluo mais lenta em relao ao conhecimento cientfico, estando muito marcado por aquilo que Gil (2000) chama de mitos, crendices e supersties, como caracterstico do conhecimento que se convencionou chamar de senso comum.

    Na Grcia Antiga, nomeadamente em duas das suas cidades-estado mais emblemticas, Atenas e Esparta, o infanticdio de crianas com deficincias notrias era prtica corrente, por razes e com base em princpios e procedimentos distintos, tal como defendemos noutro local (Figueiredo, 2010a). Quando, por alguma razo escapavam da morte, nomeadamente em Atenas onde os pais tinham o direito a proferir a sentena final, juntar-se-iam, certamente, aos que cegaram tardiamente, na juventude ou na idade adulta. Segundo Gil (2000), a cegueira representava um estigma, palavra cujo significado se associava existncia de sinais corporais marcadores de uma condio moral inferior logo, os estigmatizados deviam ser evitados, principalmente em locais pblicos. A autora acrescenta que a cegueira, como outras deficincias, estava entre os estigmas denunciadores de pssimo carcter seus portadores eram marginalizados, excludos do convvio social (p. 18). Tal conceo refletia-se na literatura e na mitologia de ento, com dipo a furar os prprios olhos para se castigar de ter morto o seu prprio pai e desposado a me, e Tirsias castigado por Hera com a cegueira (Oliveira, 1998). Nesta poca, Aristteles considerava a viso como o sentido mais importante do Homem, fonte de um adequado conhecimento do mundo, ideias retomadas sculos mais tarde por Locke (Nunes, 2004). Assim, o cego era considerado como algum incapaz de conhecer adequadamente

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    quer o mundo fsico, quer o mundo social, logo algum que s poderia viver margem desses mundos.

    No decurso da Idade Mdia, a relao da Sociedade com a cegueira, no se distanciou da relao com as demais deficincias, em suma, um castigo divino (Gil, 2000). Tratando-se da Idade Mdia, em que os clssicos foram, de alguma forma esquecidos, no podemos deixar de assinalar uma certa familiaridade com a Antiga Grcia. Na Idade Mdia havia apenas um Deus, misericordioso, mas para quem a cegueira continuava a ser uma forma de castigo. Os cegos chegaram a ser associados imagem do diabo e a atos de feitiaria e bruxaria, sendo alvo de exorcismos, perseguies, julgamentos e execues (Correia e Cabral, 1999a; Jimnez, 1997). Esta associao divina perpassa ainda hoje na cultura popular portuguesa, de matriz vincadamente catlica romana. Quando criana lembro-me de brincar imitando algum coxo ou cego e de ser severamente repreendido pela minha av, com o argumento de que Deus me podia castigar.

    Certas culturas, continuando a exacerbar a diferena, fizeram-no em sentido positivo. Como nos diz Gil (2000) houve sociedades em que o cego era considerado um favorito dos deuses: com sua viso para dentro, ele veria coisas que escapavam aos demais (p. 18). Era assim considerado um ser superior, um privilegiado, mais capaz de se desenvolver espiritualmente, pois menos influencivel pelas iluses mundanas (Nunes, 2004; Oliveira, 1998). Numa reviso da literatura e tendo como contexto o Brasil, Nunes (2004) mostra que esta ambiguidade continua a perpassar, mesmo entre atuais e futuros professores. Alguns acreditam que o cego um deficiente global com limitaes severas de aprendizagem, enquanto outros lhes apontam uma inteligncia e uma espiritualidade extraordinrias.

    Foi no sculo XVIII (1787), em Paris, que se fundou a primeira escola para cegos, pela mo de Valentn Hay, tendo seguido o seu exemplo Edward Rushton em Liverpool (1791), Johann Klein em Viena (1804), August Zeune em Berlim (1806) e Jos Ricart em Barcelona (1820) (Tallav, 1998). Estas instituies destacaram-se pela sua natureza essencialmente educativa, rompendo com a tradio das instituies de natureza essencialmente assistencialista. Anos mais tarde, em 1825 surgiu o alfabeto de pontos criado por Braille para os cegos, o qual viria e continua a ser adotado mundialmente com o nome do seu criador (Tallav, 1998).

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    No que diz respeito a Portugal, o nosso pas no se distanciou muito do percurso seguido por outros pases europeus, nomeadamente a Frana (Dias, 1995). Ainda no sculo XIX, foi criada a Associao Promotora do Ensino dos Cegos, obra de vrias personalidades, nomeadamente Jos Cndido Branco Rodrigues, Joo de Deus, Fernando Pereira Palha, Victoriane Sigaud Souto, entre outras (Guerreiro, 1996). Tambm no sculo XIX, o rei D. Joo VI, a pedido de Jos Antnio Freitas do Rego, concede meios e contrata o sueco Aron Borg para a criao do Instituto de Surdos, Mudos e Cegos de Lisboa5, o qual veio posteriormente a integrar a Casa Pia (Dias, 1995). A partir da ltima dcada desse mesmo sculo fundaram-se algumas escolas-asilo, obras de benfeitores e benemritos, alguns dos quais cegos (Dias, 1995). Na transio do sculo XIX para o sculo XX, um nmero considervel de cegos no se limitava a sobreviver da mendicidade ou do assistencialismo institucional. Segundo relatos da poca, alguns cegos com formao lecionavam msica ou exerciam profisso musical, outros lecionavam instruo primria,

    Lngua Portuguesa e Lngua Francesa, sendo que a docncia ocorria, essencialmente, em instituies especializadas para a educao de cegos (Dias, 1995). Na nossa vizinha Espanha, a atividade musical constitua, tambm, uma das principais fontes de sustento para os cegos (Tallav, 1998).

    Em seguida, apresentamos os momentos mais marcantes da EE em Portugal, ao longo do sculo XX, tendo por base a resenha histrica efetuada por Correia e Cabral (1999b). De acordo com estes autores e tendo por referncia documentos do Ministrio da Educao, as primeiras experincias de integrao em Portugal consistiram na criao de classes especiais no Instituto Aurlio da Costa Ferreira, em 1944, destinados a alunos com problemas de aprendizagem e orientadas por professores especializados por esse Instituto. A utilizao do conceito de integrao neste contexto pode parecer abusiva, mas ela pretende sublinhar a rutura com o modelo institucional segregado e segregador, ainda dominante nesta poca. Na dcada de 60, sob a orientao da ento Direco-Geral da Assistncia, alargou-se o apoio integrao na escola regular de crianas e adolescentes com deficincia, promovendo programas destinados a alunos com deficincia visual, integrados em escolas preparatrias e secundrias das principais cidades do pas. Pela primeira vez, os alunos com deficincia poderiam participar em pleno na classe regular, decorrendo o trabalho de apoio em espaos prprios, as salas de apoio. Constitui um bom

    5 Borg havia sido responsvel pela criao de uma instituio equivalente em Estocolmo.

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    exemplo, a integrao em 1968 no ensino regular, na Escola Preparatria Francisco Arruda, dos primeiros alunos cegos e amblopes, oriundos do Centro Infantil Helen Keller e com apoio de professores do mesmo (Dias, 1995). Esta dinmica que se inicia em Portugal nos anos 60 , sem dvida, tardia em relao aos pases do norte da Europa; no entanto, no devemos esquecer a evoluo lenta da alfabetizao e da escolarizao em Portugal para as crianas ditas normais. O Censo de 1960 revelou, pela primeira vez, taxas de frequncia da escola para crianas normais, entre os 7 e os 9 anos, equivalentes s que os pases do norte da Europa revelavam j no incio do sculo XX (Candeias e Simes, 1999). Assim e no que diz respeito a Portugal, o incio da integrao das crianas com NEE, apesar de tardio, foi, em certa medida, atempado. No passado como na atualidade, muitas personalidades cegas se destacaram e destacam mundialmente em diversas reas, o que tem contribudo para enraizar a crena na educabilidade e nas potencialidades das pessoas cegas e deficientes em geral. No entanto, importa desmistificar a existncia de qualquer talento resultante diretamente da cegueira, como o mito de que os cegos tm um talento especial para a msica, como se no tivessem que aprender a escala musical, conhecer e treinar um determinado instrumento, com maiores ou menores dificuldades, muitas vezes equivalentes s sentidas pelos videntes em condies semelhantes. Entre estas personalidades destacamos, sem qualquer desprimor para as restantes, a ensasta Helen Keller pelo seu pioneirismo enquanto ativista dos direitos e da educao dos cegos, Ray Charles, Stevie Wonder, Andra Bocelli, Maria Teresa von Paradis e Joaqun Rodrigo pelas suas obras musicais de divulgao mundial, assim como Nicholas Sauderson e Benard Morin pelas suas investigaes matemticas. Experimentam-se hoje novas intervenes mdicas com o objetivo de recuperar, total ou parcialmente, a viso em pessoas cegas. Alm de novas tcnicas cirrgicas, tem-se experimentado e trabalhado em terapias genticas e em dispositivos tecnolgicos como o chamado olho binico. Com sucessos pontuais, esta demanda da Medicina conta j uma longa histria. Segundo Ninio (1994), h registos de no sculo XI se ter efetuado a primeira interveno cirrgica conhecida a um cego, realizada pela mo de um cirurgio rabe. A partir do sculo XVIII os registos so mais abundantes, com alguns casos de sucesso relatados, como o de um rapaz de13 anos que recuperou a viso, aps ser operado pelo cirurgio ingls Cheselden.

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    2. O CONCEITO NA ATUALIDADE Como todos os conceitos, o de cegueira evoluiu ao longo do tempo, de acordo com o percurso que procurmos esboar no ponto anterior. Em cada momento e o atual no exceo, a definio de um conceito resulta da necessidade de encontrar significados partilhados no seio das comunidades, sejam elas constitudas por investigadores, profissionais de diversas reas, polticos ou cidados em geral. Entendido desta forma, um conceito assume-se como um artefacto cultural abstrato, que no depende tanto do seu objeto real, mas do entendimento que um conjunto de pessoas elabora acerca do mesmo. Efetivamente, no se trata de ser ou no ser cego, porque algum com viso subnormal no vai ver mais ou menos mudando o significado de cegueira, mas do que significa ser cego perante uma determinada comunidade. No assim de estranhar, a coexistncia de diferentes definies de um conceito no interior de fronteiras mais ou menos estabelecidas, sendo que o conceito de cegueira no exceo. Esta tambm a posio de Zafra (1991), para quem os critrios para considerar uma pessoa como cega no so totalmente claros. Enquanto instituio de referncia, a Organizao Mundial de Sade (OMS) define cegueira como a incapacidade de ver (OMS, 2011a). De acordo com as suas indicaes de 2006 patentes no International Classification of Diseases 10 (OMS, 2011b), devem considerar-se quatro nveis funcionais ao nvel da viso: viso normal, incapacidade visual moderada, incapacidade visual severa e cegueira. Os nveis de incapacidade visual moderada e de incapacidade visual severa podem conjugar-se numa designao nica, a de baixa viso. Se combinarmos a baixa viso com a cegueira obtemos a incapacidade visual total, a qual se estima em 284 milhes de pessoas a nvel mundial (39 milhes de cegos + 245 milhes com baixa viso). Na faixa etria at aos 15 anos de idade, estima-se que existam 19 milhes de crianas com incapacidades visuais (2 milhes na Europa), sendo que 1,4 milhes sero irreversivelmente cegos (140 mil na Europa). Numa perspetiva mais tcnica:

    A OMS considera que existe deficincia visual quando a acuidade visual6 de ambos os olhos, com correco, igual a 0,3. A maioria dos pases considera cegueira quando a acuidade visual, com correco, igual ou inferior a 0,1, ou se existe uma reduo do campo visual7 inferior a dez graus (Martn e Bueno, 1997, p. 317).

    6 Acuidade visual a capacidade de perceber a figura e a forma dos objetos (Martn e Bueno, 1997).

    7 Campo visual o espao em que pode ser visto um objeto, enquanto o olhar permanece fixo num

    determinado ponto (Martn e Bueno, 1997).

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    Um indivduo que seja legalmente cego tem uma acuidade visual central de 20/200, ou menor, com correco no olho em melhores condies, ou tem um campo de viso muito limitado, cerca de 20 graus no ponto mximo de afastamento. Isto significa que, mesmo com correco, no se verifica mais do que 10% de viso normal no olho em melhores condies, sendo o campo de viso nunca superior a 20 graus. Um indivduo legalmente cego, se sujeito a correco, v a uma distncia de 6 metros o que, em condies normais, veria a uma distncia igual ou superior a 61 metros (Nielsen, 1999, p. 52).

    Entre a acuidade de 20/200 (1/10 ou 0,1 nas formas simplificadas) e a cegueira total, Dias (1995) define uma linha contnua onde distingue (i) a perceo de formas e cores com viso de dedos a 2,5 metros, (ii) perceo de vultos com viso de dedos a um metro, (iii) projeo luminosa com distino da luz e do lugar de emanao e (iv) perceo luminosa com distino entre luz e escurido.

    A conceo de cegueira apresentada anteriormente radica, essencialmente, na medicina. Com o tempo, a sua aplicao no campo educacional veio a revelar-se pouco satisfatria e desfasada, tendo-se constatado que sujeitos com a mesma acuidade visual poderiam apresentar capacidades visuais diferentes, nomeadamente quanto ao aproveitamento funcional que faziam da viso residual quando ela existia (Nunes, 2004). Foi para colmatar esta insuficincia da conceo mdica, que se procuraram concees de natureza funcional, mais adequadas ao contexto educativo. Funcionalmente, Martn e Bueno (1997) consideram cego, algum que no possui resduo visual ou possuindo-o, apenas permite a orientao em direo luz, perceber volumes e cores, assim como ler grandes ttulos, inviabilizando o uso habitual da leitura e da escrita. Para estes autores, as anomalias do campo visual tm maior importncia para a capacidade funcional do indivduo do que a prpria acuidade visual, pois influem na locomoo, leitura e possibilidade de utilizar imagens ampliadas (p. 319). Na busca de uma definio, tambm ela funcional, Kirk e Gallagher (2002) citam Barraga (1976), que considera cegas as crianas com ausncia total de viso ou que tm somente a perceo da luz, necessitando aprender Braille para ler e escrever, assim como outros meios no relacionados com o uso da viso. No conhecimento do senso comum subsiste a ideia de que a cegueira equivale a uma escurido total. Tal no corresponde verdade, quer porque a perceo residual da luz subsiste em muitos cegos, que assim so capazes de distinguir grandes manchas brancas, semelhantes s que os videntes sentem ao cerrar as plpebras, quer pelo envolvimento do prprio crebro nos processos da viso e da sua ausncia (Nielson, 1999; Ninio, 1994). Na

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    verdade, Gil (2000, 2002) lembra-nos que poucos portadores de deficincia visual so totalmente cegos, embora muitos, nomeadamente crianas com algum grau de viso, sejam considerados cegos e tratados como tal, perdendo os benefcios que a utilizao da viso residual poderia acrescentar ao desenvolvimento e qualidade de vida.

    3. CLASSIFICAES DE CEGUEIRA Em termos funcionais e educativos, as NEEs podem assumir um carcter

    permanente ou temporrio. Com base na classificao proposta por Correia e Cabral (1999c), considera-se a cegueira como NEE de carcter permanente, ou seja, so necessrias adaptaes estruturais do currculo, a manter durante grande parte ou todo o percurso escolar do aluno. Consideram-se adaptaes estruturais, a necessidade de introduzir ou retirar reas do saber assim como as estratgias de abordagem, enquanto adaptaes de contedo esto relacionadas com os conhecimentos a tratar no mbito de cada uma dessas reas. A literatura referida nos pontos seguintes, nomeadamente no desenvolvimento das crianas cegas congnitas e nas implicaes educativas, consensual na necessidade de adaptaes estruturais, como a aprendizagem da leitura e da escrita Braille, assim como da orientao com e sem bengala. As adaptaes de contedo parecem mais dependentes das variveis individuais associadas a cada sujeito e a cada contexto, podendo ou no ser necessrias.

    Uma outra classificao que no colide mas complementa a anterior, estabelece que a cegueira pode ser adquirida, situao em que o indivduo nasce dotado do sentido da viso, perdendo-o mais tarde, ou pode ser congnita, situao em que o indivduo nasce cego (ACAPO, 1996; Gil, 2000; Gil, 2002; Nunes, 2004; Ochaita e Rosa, 1995; Tallav, 1998). A lei alem considera que uma pessoa cega congnita total se tem disponveis apenas 5% da viso normal e se cegou antes dos dois anos de idade (Knauff e May, 2005). Na perspetiva mais aceite atualmente, cr-se que os cegos de nascimento ou que perderam a viso nos primeiros meses de vida no dispem de referncias visuais na sua memria, enquanto os portadores de cegueira adquirida em idade mais avanada, no s conheceram o mundo numa perspetiva visual, como puderam estabelecer relaes entre a perceo visual e a ttil, guardando na sua memria essas imagens e relaes, podendo experienciar imagens mentais ntidas de natureza visual (Bardisa, 1992; Gil, 2002; Heller e Ballesteros, 2006; Knauff e May, 2005; Masini, 2003). No mbito da classificao de cegueira

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    congnita, outros autores alargam o intervalo de tempo que medeia o nascimento e a perda de viso, considerando cegueira congnita quando a criana nasce cega ou se torna cega at aos cinco anos de idade (Nunes, 2004; Ormelezi, 2000). Com base na investigao, sustentam que at aos cinco anos no ocorre reteno de imagens visuais, ou seja, as memrias visuais no esto presentes e como tal, no podero constituir-se como referencial das representaes mentais. Tal no parece ser a posio defendida por Allan Paivio e por Jacques Vauclair. Estes autores apresentam evidncia emprica segundo a qual, as representaes de natureza imagtica ou no verbal comeam a estabelecer-se muito mais cedo na vida da criana, por volta dos seis meses de idade, tendo j sido identificados fenmenos de memria episdica de curta durao (seis segundos), em bebs com apenas alguns dias de vida (Paivio, 1990; Vauclair, 2008). Allan Paivio acredita que o desenvolvimento das representaes mentais ocorrer de forma contnua desde o nascimento, enriquecendo-se8 em relao a objetos, pessoas, locais, melodias, estados de dor ou alegria e acontecimentos, segundo diferentes perspetivas e diferentes modalidades sensoriais. Esta falta de consenso confirmada por Ballesteros e Heller (2006). Nas suas pesquisas encontraram investigadores que consideram cegueira adquirida apenas a que ocorre aps o incio da escolarizao, outros a que ocorre aps um ano de idade e outros, a que ocorre aps os dez anos de idade. Perante esta profuso de intervalos cronolgicos considerados por diferentes autores e tratando este trabalho de cegueira congnita, torna-se necessrio balizar o intervalo de idades considerado no presente trabalho, para a classificao de cegueira congnita. Adotmos uma das classificaes mais restritivas, a de cegueira congnita ser a que ocorre at a criana completar um ano de idade. Esta opo fundamenta-se nos dados apresentados por Mackay (2009) acerca da maturao cerebral. Sustenta o autor que aos seis meses de idade as crianas conseguem lembrar acontecimentos ocorridos apenas nas ltimas 24 horas, enquanto aos nove meses a memria abarca acontecimentos ocorridos, sensivelmente, at h um ms atrs. na transio do primeiro para o segundo ano de vida que ocorrem importantes mudanas, as quais se estendem ao longo do segundo ano e acarretam considerveis melhorias na memria de longa durao. Por outro lado, os adultos so incapazes de recordar acontecimentos vivenciados ao longo dos dois primeiros anos das suas vidas, fenmeno

    8 Enriquecimento significa a elaborao de uma representao mental integrada, a qual contempla o

    conhecimento dos objetos, das pessoas, dos acontecimentos e, mais tarde, da linguagem verbal, segundo diferentes perspetivas e diferentes modalidades sensoriais (Paivio, 1990).

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    conhecido como amnsia infantil (Vauclair, 2008). Congruentemente, todos os sujeitos da nossa amostra cegaram neste perodo das suas vidas, o que nos confere alguma validade acrescida ao minimizar a possibilidade de existirem memrias visuais.

    Nem sempre a palavra cegueira significa ausncia total de viso. Existem outras formas de cegueira, como por exemplo a cegueira para o vermelho e o verde, tambm conhecida como Daltonismo, em homenagem ao histrico qumico John Dalton, portador desta deficincia e que, em pleno sculo XVIII, foi o primeiro a dedicar-se ao seu estudo. Na atualidade, esta condio acomete, em mdia, um em cada doze homens, por ausncia nos cones9 de protenas fotorreceptoras sensveis ao vermelho e ao verde (Dolgin, 2009). Uma das razes para que esta condio tivesse passado despercebida at to tarde na histria da humanidade, poder estar relacionada com a pouca importncia que a perceo correta das cores assume no quotidiano, nomeadamente diferenas subtis de tonalidade (Ninio, 1994). Alguns ensaios clnicos de terapia gentica efetuados em machos de macacos esquilo tm demonstrado a possibilidade de reverter esta situao (Dolgin, 2009).

    4. CAUSAS Resulta do nosso problema e das nossas questes de investigao que a cegueira congnita assume um dos papis principais no nosso trabalho, o de varivel independente. Assim, no poderamos deixar de abordar as causas da cegueira em geral, com particular incidncia nas causas da cegueira congnita. Esta abordagem assumir a abrangncia necessria compreenso dos fenmenos, sem a exausto que seria prpria de um trabalho de natureza mdica e clnica, a qual ultrapassa os nossos objetivos, mas pugnando sempre pela necessria correo cientfica.

    Tendo como referncia a populao em geral e a nvel mundial, a OMS aponta como principais causas de cegueira (i) as cataratas (com particular incidncia nos pases subdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento), (ii) o glaucoma, (iii) a degenerao macular relacionada com a idade, (iv) a opacidade da crnea, (v) a retinopatia diabtica, (vi) o tracoma, (vii) a avitaminose A (particularmente sensvel nas crianas) e (viii) tumores (OMS, 2011a, 2011c). No seu trabalho Educao da Criana Excepcional, Kirk e Gallagher (2002) apontam, alm destas, outras possveis causas para a cegueira (i) doenas infeciosas, (ii) acidentes e ferimentos, (iii) envenenamentos, (iv) influncias pr-natais

    9 Ver ponto 1.1. do captulo II.

  • 37

    (inclusive a hereditariedade), (vi) retinopatia da prematuridade (antes designada fibroplasia retrolental), (vii) atrofia do nervo tico e (viii) albinismo. A OMS salienta que mais de trs quartos dos casos de incapacidade visual, na populao em geral e a nvel mundial, podem ou poderiam prevenir-se e tratar-se (OMS, 2011a). As mltiplas causas da cegueira, apontadas anteriormente, so condensadas por Nielsen (1999) da seguinte forma:

    Esta pode resultar de degenerao do globo ocular ou do nervo ptico, ou ento de problemas nas conexes nervosas que ligam o olho ao crebro. As leses cerebrais podem igualmente causar deficincia a este nvel. A cegueira frequentemente o resultado de uma leso ou de uma doena e ningum est imune a este tipo de deficincia (pp. 52-53).

    Pelas condicionantes espaciais e cronolgicas associadas a um trabalho desta natureza, optmos por desenvolver apenas aquelas causas associadas cegueira dos sujeitos da nossa amostra (ver ponto 4.2.3. do captulo IV). Dois dos sujeitos da nossa amostra cegaram em consequncia de retinopatia da prematuridade. Como se pode depreender da prpria designao, so os bebs prematuros os mais suscetveis a esta causa da cegueira, em virtude da exposio excessiva ao oxignio no interior das incubadoras (Ferreira, s/d; Gil, 2000; Kirk e Gallagher, 2002; Knauff e May, 2005; Ormelezi, 2000). Na descrio de Rosane Ferreira, Mestre em Oftalmologia e membro da Sociedade Brasileira de Oftalmologia Peditrica, os vasos sanguneos da retina desenvolvem-se centrifugamente (do centro para a periferia), partindo do nervo tico e atingindo a periferia por volta da quadragsima semana de vida. Assim, se ocorrer parto prematuro, com risco acrescido antes das 32 semanas de gestao, existe uma rea de isquemia retiniana perifrica, ou seja, ausncia de fornecimento sanguneo periferia da retina, sendo que quanto mais prematuro for o beb, maior ser esta rea. Tal situao de isquemia conduz libertao de um fator que conduz proliferao de vasos sanguneos na retina, que na maioria dos casos se desenvolvem naturalmente e a doena involui espontaneamente. Quando tal involuo no ocorre, os vasos continuam a crescer de forma errtica, com hemorragias e exsudao, que pode levar ao deslocamento da retina e cegueira. Como lembra Neves (2008), no momento atual da medicina, uma vez destruda a retina, a cegueira irrecupervel. A literatura aponta outros fatores que podero desencadear ou participar secundariamente na retinopatia da prematuridade: transfuso sangunea, hiperbilirrubinemia, avitaminose E, cardiopatias congnitas, apneia e hipocalcemia (Ormelezi, 2000). Dados de Kirk e Gallagher (2002) referem que na dcada de 50 do sculo XX, antes de se estabelecer a sua

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    causa principal, a retinopatia da prematuridade seria responsvel por mais de metade dos deficientes visuais daquela poca. Com a descoberta da sua causa, diminuiu-se a concentrao de oxignio nas incubadoras, diminuindo significativamente a sua prevalncia, mas no na totalidade, tal como estes dois casos testemunham. Dois outros sujeitos da nossa amostra cegaram em resultado de glaucoma congnito, que Gil (2000) define de forma simples como atrofia tica de natureza hereditria ou causada por infees virais, como por exemplo a rubola. Manifesta-se de forma lenta ou rpida, pela incapacidade de drenar o humor aquoso, que ao ficar retido provoca a distenso do globo ocular e consequentemente um aumento de presso no interior do mesmo, atrofiando o nervo tico, o que poder conduzir cegueira (Dias, 1995; Ormelezi, 2000). Constitua em 1995 a causa mais frequente de cegueira infantil em Portugal (Dias, 1995). Uma das meninas cegas da nossa amostra cegou em virtude de um acometimento do que se designa por persistncia de vtreo primrio hiperplsico, o qual encerra um amplo espectro de anomalias congnitas. Segundo Ferreira (s/d) tais anomalias resultam de falhas na reabsoro do vtreo primrio embriolgico, que persiste, assim como dos vasos hialides, vindo no conjunto a formar uma placa retrolental.

    CAPTULO II: DESENVOLVIMENTO DA CRIANA VIDENTE E DA CRIANA CEGA CONGNITA

    A literatura relacionada com o desenvolvimento infantil versa, essencialmente, no caso das crianas videntes, escasseando estudos congneres baseados em crianas cegas, escassez ainda mais acentuada no caso da cegueira congnita. No obstante, procuraremos desenvolver suficientemente este ponto, para compreender o desenvolvimento da criana cega congnita nos seguintes nveis: sensorial, cognitivo, emocional, motor e social. nosso entendimento que as influncias da cegueira congnita no desenvolvimento infantil dos seus portadores, a existirem, sero mais facilmente explicitadas se, em paralelo, abordarmos o desenvolvimento das crianas videntes. Na frase anterior, fizemos questo de salientar e questionar a existncia de influncias da cegueira congnita no desenvolvimento infantil dos seus portadores, porque no claro nem linear, ou seja, no foi ainda determinada uma relao inquestionvel de causa efeito entre a cegueira

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    congnita e consequncias no desenvolvimento infantil. A literatura disponvel e que apresentaremos nos pontos seguintes vem subscrever estas dvidas, com resultados e interpretaes diversas de estudo para estudo, o que parece conduzir-nos a um outro fator essencial, a variabilidade individual. Os dados expostos nos pontos seguintes conduzem-nos a pensar que a cegueira no origina, necessariamente, problemas desenvolvimentais ou, pelo menos, no evidente que eles se manifestem de forma significativa, no obstante os caminhos e as velocidades variarem entre sujeitos cegos e, sobretudo, entre estes e os videntes (Martn e Bueno, 1997; Ochaita e Rosa, 1995). A ocorrerem, esses problemas estaro dependentes da severidade e tipo de perda visual, da idade da criana quando ocorre essa perda, assim como do nvel geral de funcionamento da criana (Nielsen, 1999). Existe mesmo alguma evidncia, baseada em dados empricos recolhidos em amostras que variam entre o estudo de caso individual e o estudo de dezenas de sujeitos, que aponta percursos de desenvolvimento mais adequados nas crianas cegas, quando comparadas com outras crianas com deficincias visuais menos severas, em contextos equivalentes (Kirk e Gallagher, 2002). Nos pontos seguintes aprofundaremos aspetos relacionados com (i) o desenvolvimento sensorial, (ii) o desenvolvimento cognitivo, (iii) o desenvolvimento emocional, (iv) o desenvolvimento motor e (v) o desenvolvimento social. A delimitao destas reas, como ser percetvel da leitura das mesmas, necessariamente artificial porque no existe na natureza nada escrito, um marcador que aponte inquestionavelmente o fim de uma e o incio de outra. So portanto decises tomadas com base na racionalidade humana e no pragmatismo que nos pareceu mais adequado aos objetivos a que nos propusemos. Por outras palavras, estas reas do desenvolvimento humano interpenetram-se a vrios nveis e profundidades, pelo que acontecer, por exemplo, no desenvolvimento emocional referir aspetos indissociveis do desenvolvimento social e vice-versa.

    1. DESENVOLVIMENTO SENSORIAL O desenvolvimento sensorial inicia-se muito antes do nascimento, no perodo pr natal, no qual os sistemas sensoriais, exceo da viso, alcanam a maturidade funcional segundo uma ordem de desenvolvimento comum aos vertebrados: tato equilbrio olfato e paladar audio viso (Vauclair, 2008).

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    1.1. A VISO Atendendo s metas estabelecidas para este trabalho, nas quais a cegueira congnita se assume como varivel independente, certamente ser compreensvel uma maior abrangncia no tratamento da viso, comparativamente aos outros sentidos. No deixaremos de os focar, at pela funo alternativa que podem desempenhar nos sujeitos cegos.

    A viso, a par da audio e em parte, do olfato, destacacaptar tanto os estmulos prximos como os distantes (Dias, 1995; Gil, 2000). Trataum dos nossos sentidos fsicos, uma vez que estimulado por um fenmeno fsico nas suas vrias manifestaes, a luz. O rgo responsvel pela captao dos estmulos luminosos que proporcionam a viso o olho, um sistema complexo de partes interimporta conhecer e compreender (

    Figura 1

    Vrios autores tm estabelecido comparaes entre o olho e uma mquina fotogrfica, as quais so consideradas por Neves (2008) como apropriadas, uma vez que, a mquina fotogrfica ter sido, segundo ele, inventada a partir dos conhecimentos qtnhamos da composio e funcionamento daquele rgo do corpo humano (p. 7). Nas palavras de Kirk e Gallagher (2002):

    Atendendo s metas estabelecidas para este trabalho, nas quais a cegueira congnita como varivel independente, certamente ser compreensvel uma maior

    abrangncia no tratamento da viso, comparativamente aos outros sentidos. No deixaremos de os focar, at pela funo alternativa que podem desempenhar nos sujeitos

    da audio e em parte, do olfato, destaca-se pela sua capacidade de captar tanto os estmulos prximos como os distantes (Dias, 1995; Gil, 2000). Trataum dos nossos sentidos fsicos, uma vez que estimulado por um fenmeno fsico nas suas

    nifestaes, a luz. O rgo responsvel pela captao dos estmulos luminosos que proporcionam a viso o olho, um sistema complexo de partes interimporta conhecer e compreender (figura 1).

    - Olho humano segundo Gregory (1979, p. 50)

    Vrios autores tm estabelecido comparaes entre o olho e uma mquina fotogrfica, as quais so consideradas por Neves (2008) como apropriadas, uma vez que, a mquina fotogrfica ter sido, segundo ele, inventada a partir dos conhecimentos qtnhamos da composio e funcionamento daquele rgo do corpo humano (p. 7). Nas palavras de Kirk e Gallagher (2002):

    Atendendo s metas estabelecidas para este trabalho, nas quais a cegueira congnita como varivel independente, certamente ser compreensvel uma maior

    abrangncia no tratamento da viso, comparativamente aos outros sentidos. No deixaremos de os focar, at pela funo alternativa que podem desempenhar nos sujeitos

    se pela sua capacidade de captar tanto os estmulos prximos como os distantes (Dias, 1995; Gil, 2000). Trata-se de um dos nossos sentidos fsicos, uma vez que estimulado por um fenmeno fsico nas suas

    nifestaes, a luz. O rgo responsvel pela captao dos estmulos luminosos que proporcionam a viso o olho, um sistema complexo de partes inter-relacionadas que

    79, p. 50)

    Vrios autores tm estabelecido comparaes entre o olho e uma mquina fotogrfica, as quais so consideradas por Neves (2008) como apropriadas, uma vez que, a mquina fotogrfica ter sido, segundo ele, inventada a partir dos conhecimentos que tnhamos da composio e funcionamento daquele rgo do corpo humano (p. 7). Nas

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    o olho humano tem um diafragma, a ris. Esta a parte muscular colorida que se expande e se contrai para regular a quantidade de luz admitida pela abertura central, a pupila. Atrs da ris encontra-se a lente do cristalino, que um corpo biconvexo elstico que focaliza sobre a retina a luz refletida dos objetos em uma linha de viso. A retina sensvel luz, e a camada mais interna de tecido no fundo do globo ocular. Contm os receptores neurais, que transformam a energia fsica da luz em energia neural (p. 185).

    Como evidencia a figura 1, existem no olho outros rgos funcionalmente imprescindveis, como a crnea que se situa na zona anterior da camada externa do globo ocular e transparente; existem os msculos ciliares responsveis pelas mudanas na forma do cristalino que permitem focar os objetos a vrias distncias; existem tambm os msculos oculares externos, responsveis pelo movimento do globo ocular na sua cavidade (Kirk e Gallagher, 2002; Mackay, 2009). O funcionamento defeituoso de qualquer um destes rgos passvel de afetar a viso, pois compete aos olhos enviarem para o crebro, via nervo tico, informao codificada em atividade neural, ou seja, cadeias de impulsos eltricos as quais, pelo seu cdigo e pelos padres de atividade cerebral, permitem representar objetos (Gregory, 1979). Muitas vezes, os olhos de algum com deficincia visual so externamente notados por diferenas anatmicas e funcionais, em relao aos olhos de algum vidente. A este respeito, Nielsen (1999) refere que:

    nascena, os do beb podem parecer vazios de expresso ou podem mesmo apresentar alguma desfigurao. As doenas que afectam o globo ocular podem tambm alterar o aspecto dos olhos. Um excesso de presso pode fazer com que os olhos fiquem protuberantes. Por estes factos, muitos indivduos cegos usam culos. Alguns podem us-los por razes estticas, enquanto outros aos quais ainda resta alguma viso til, o podem fazer para a melhorar um pouco (p.55).

    Tradicionalmente, a perceo de padres visuais atribuda exclusivamente a dois conjuntos de clulas existentes na retina, os cones e os bastonetes (Gregory, 1979; Habib, 2003; Mackay, 2009), enquanto as clulas ganglionares da retina surgem como responsveis, unicamente, pela deteo da presena ou ausncia de luz, contribuindo assim para a regulao de certas atividades cerebrais, como os ritmos circadianos. Aos bastonetes atribui-se a funo de captar a imagem do objeto, enquanto os cones so responsveis por perceber as diferentes cores (Neves, 2008). Investigaes recentes, conduzidas por Ecker e outros (2010) em ratos, sugerem que as clulas ganglionares podem ser mais

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    abundantes e diversificadas do que as teorias tradicionais sugerem, projetando-se assim num conjunto alargado de reas cerebrais, nomeadamente naquelas responsveis pela perceo visual. Numa das suas experincias, os autores criaram ratos geneticamente programados para no desenvolverem cones nem bastonetes, mantendo intactas as clulas ganglionares da retina. Quando sujeitos a um teste visual, estes ratos mostraram-se capazes de distinguir pad