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i Celia Maria Nunes As possibilidades da mediação do Sociodrama como leitura política da exclusão social nos grupos de Educação de Jovens e Adultos sob a perspectiva de Emancipação na concepção de Paulo Freire. Campinas 2012

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Celia Maria Nunes

As possibilidades da mediação do Sociodrama

como leitura política da exclusão social nos grupos

de Educação de Jovens e Adultos sob a perspectiva

de Emancipação na concepção de Paulo Freire.

Campinas 2012

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

TÍTULO: AS POSSIBILIDADES DA MEDIAÇÃO DO SOCIODRAMA COMO

LEITURA POLÍTICA DA EXCLUSÃO SOCIAL NOS GRUPOS DE EDUCAÇÃO

DE JOVENS E ADULTOS SOB A PERSPECTIVA DE EMANCIPAÇÃO NA

CONCEPÇÃO DE PAULO FREIRE .

Autor: CELIA MARIA NUNES Orientador: Prof. Dr. Valério José Arantes

Este exemplar corresponde à redação final da Dissertação

de Mestrado em Psicologia Educacional defendida por

CELIA MARIA NUNES e aprovada pela Comissão

Julgadora.

2012

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho a minha inesquecível tia Helena

(in memoriam) pela dedicação e incentivo oferecido

antes, durante e seguramente, por toda a minha

trajetória de vida e trajetória profissional.

Dedico ao meu irmão César, presença de força, sabedoria

e generosidade em nossa família desde a infância.

Com habilidade e amor intenso esteve sempre à frente

de nossos caminhos mudando o rumo de

nossas histórias...

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AGRADECIMENTOS

A Deus, Ser maior, causa da minha vontade, persistência e conquista.

Ao meu companheiro João Bosco, pelo incentivo, apoio e suporte dessa

caminhada que com suas palavras e atitudes me motivou em todos os momentos, sobretudo

nas horas de desânimos, dificuldades e sentimentos de fracasso.

Agradeço aos meus filhos Celinha, Bia, Cesar, Lui, Cris e Bruna pela

compreensão e paciência nos momentos em que estive ausente; por representarem a

esperança na minha vida e pelos netos que são a minha alegria.

Aos meus pais (in memoriam), que espiritualmente sempre me acalentaram em

todos os momentos da minha vida.

Agradeço aos meus irmãos Cesar, Celso e Cleya pelo incentivo, apoio, e,

principalmente, pela convivência familiar nesta caminhada.

Ao meu orientador Profº Drº Valério José Arantes, pela orientação e confiança.

Obrigada por me permitir um novo olhar em educação.

Aos sujeitos, colaboradores desta pesquisa, pelos seus saberes, disponibilidade

e entusiasmo dispensados e pelo aprendizado construído em grupo.

A todos os professores de curso de Mestrado pelas suas exigências, que me

conduziram aos desafios, construindo um “pilar” para continuar.

Aos professores que fazem parte da banca examinadora pelas contribuições na

construção desta pesquisa.

Agradeço a todos os meus amigos, pelas sinceras críticas, pelo incentivo e pelas

orações.

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“É preciso ousar para dizer cientificamente que

estudamos, aprendemos, conhecemos com o corpo inteiro. Com os sentimentos, com as emoções, com os desejos, com os medos, com as dúvidas, com a paixão e também com a razão crítica. Jamais com esta apenas. É preciso ousar para jamais dicotomizar o cognitivo do emocional.”

Paulo Freire

"Existem palavras sábias, mas a sabedoria não é suficiente, falta ação.”

Jacob Levy Moreno

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RESUMO Essa dissertação se propõe a articular as originais contribuições de dois grandes

pensadores, Paulo Freire (1921-1997) e Jacob Levy Moreno (1889-1974), na consideração

da Educação brasileira recente. Para isso, propomos neste trabalho como metodologia o

Psicodrama criado por Moreno e a proposta filosófica emancipatória de Paulo Freire. As

técnicas do psicodrama no enfoque pedagógico possibilitaram o envolvimento do próprio

pesquisador com a situação pesquisada, permitindo que a metodologia utilizada partisse do

referencial da pesquisa participante. Trata-se, de uma pesquisa qualitativa de natureza

hermenêutica e de fundamentação histórica e crítica, conforme reconhecimento acadêmico.

O manejo destas técnicas no processo de educação de jovens e adultos na periferia de São

Paulo buscou resgatar a identidade subjetiva e formar a consciência social sobre exclusão

nos movimentos sociais e populares de educação no bairro Jardim da Conquista, numa

perspectiva de emancipação na concepção de Paulo Freire. Os procedimentos adotados

consistiram na sistematização dos registros existentes e na realização de quatro encontros

de discussão com os participantes do grupo analisado que no decorrer da pesquisa, ao

colocar também seus sentimentos e sua percepção do outro, intervir espontaneamente,

refinar seu sentimento de empatia, focar objetivamente uma situação e reconhecer desejos e

sentimentos seus no outro, estiveram ativamente trabalhando suas histórias de vida e

colaborando uns com os outros no entendimento e resolução de várias facetas de sua

trajetória. Opta-se nesse trabalho compartilhar algumas ideias e experiências,

essencialmente, por acreditar na indissociabilidade do pensamento e da emoção, do

cognitivo e do afetivo, no dinamismo do processo de aprender. Pelos resultados aferidos

pela pesquisa observa-se que, para o educando jovem e adulto ter prazer nos seus estudos é

necessário que ele se reconheça como agente deste processo, podendo fazer escolhas de

maneira autônoma, livre e espontâneo-criativa. Esta proposta de trabalho com o uso do

sociodrama e do psicodrama pedagógico associado às ideias de Paulo Freire procurou

resgatar a espontaneidade dos educandos, rompendo com os padrões de comportamento

estereotipados que levam à automatização dos discentes em seu processo de aprendizagem,

bem como buscou a construção total do homem, quer quanto aos conteúdos acadêmicos,

quer na formação de seu caráter social.

PALAVRAS-CHAVE: Psicologia; Educação; Psicodrama; Movimentos sociais;

Emancipação.

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ABSTRACT

This dissertation aims to articulate the unique contributions of two great thinkers,

Paulo Freire (1921-1997) and Jacob Levy Moreno (1889-1974), in consideration of the

recent Brazilian Education. We propose in this paper as a methodology created by Moreno

Psychodrama and emancipatory philosophical proposal of Paulo Freire. The techniques of

psychodrama in pedagogical approach enabled the researcher's own involvement with the

situation investigated, allowing the methodology of a research framework departed

participant. It is a qualitative nature of reasoning and hermeneutics historical and critical, as

academic recognition. The management of these techniques in the education of youth and

adults in the outskirts of São Paulo tried to rescue the subjective identity and build

awareness about social exclusion in social movements and popular education in the Jardim

da Conquista, a perspective of emancipation in the design of Paul Freire. The procedures

adopted consisted in the systematization of existing records and the performance of four

meetings with discussion group participants who analyzed during the research, also to put

your feelings and perception of others, intervene spontaneously refine their sense of

empathy, focus a situation objectively and recognize their feelings and desires on the other,

were actively working on their life stories and collaborating with each other in

understanding and resolving many facets of his career. Opta up this work to share ideas and

experiences, essentially, for believing in the inseparability of thought and emotion, the

cognitive and the affective, the dynamism of the process of learning. The results measured

by the survey shows that, for educating young adult and take pleasure in their studies is

necessary that he be recognized as an agent of this process and can make choices

autonomously, free and spontaneous-creative. This proposed work with the use of

psychodrama and sociodrama associated with pedagogical ideas of Paulo Freire sought to

rescue the spontaneity of the students, breaking the stereotyped patterns of behavior that

lead to the automation of the students in their learning process and sought to build total

man, whether in relation to academic content, either in forming its social character.

Key words: Psychology; Education; Psychodrama; Social Movements;

Emancipation.

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................................. 01

1. CAPÍTULO I: BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E ANÁLISE DOS

FUNDAMENTOS POLÍTICOS DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS NO BRASIL E A

PEDAGOGIA DA AUTONOMIA. .............................................................................................. 11

1.1. Breve histórico da Trajetória das Políticas de EJA no Brasil .............................................12

1.2. Paulo Freire e a Educação de Jovens e Adultos no Brasil .................................................19

1.2.1. O Processo de Alfabetização de Angicos ..............................................................................20

1.3. Educação Popular: perspectivas e realizações .................................................................22

1.4. A Pedagogia da Autonomia e seus Saberes Necessários .................................................30

2. C APÍTULO II: O PS ICODRAMA E A EDUCAÇÃO: FUNDAMENTOS E

POSSIBILIDADES INSTITUCIONA IS E POLÍTICAS. ............................................................ 37

2.1. Breve biografia do criador do Psicodrama .......................................................................40

2.2. Psicodrama: principais conceitos e técnicas ....................................................................42

2.2.1. Teoria dos papéis .................................................................................................................43

2.2.2. Espontaneidade ....................................................................................................................48

2.2.3. Tele .......................................................................................................................................50

2.2.4. Conservas culturais ..............................................................................................................51

2.2.5. Catarse ..................................................................................................................................51

2.3. A Ação Psicodramática .....................................................................................................52

2.3.1. Egos auxiliares ......................................................................................................................52

2.3.2. Role Playing ..........................................................................................................................53

2.4. Os Fundamentos da Ação Psicodramática ....................................................................................54

2.5. Psicodrama Pedagógico ........................................................................................................57

3. cAPÍTULO III: ARTICULAÇÃO DA PEDAGOGIA DA AUTONOMIA COM O

PSICODRAMA PEDAGÓGICO EM GRUPOS DE ALFABETIZAÇÃO DE PESSOAS

ADULTAS: Possibilidades e disposições ..................................................................................... 63

3.1. Freire e Moreno: Primeiras Reflexões .............................................................................66

3.2. Jogo Dramático e Psicodrama: semelhanças e diferenças ................................................69

3.3. Alfabetização libertadora no contexto psicodramático ...................................................70

3.4. Característica do bairro Jardim da Conquista ....................................................................71

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3.5. Identidade do Grupo analisado ...........................................................................................72

3.5.1. Características do Grupo .........................................................................................................74

3.6. Técnicas de Psicodrama aplicadas no contexto alfabetizador .........................................75

3.6.1. Técnica de “Jornal Vivo” .........................................................................................................78

3.7. Freire e Moreno: aproximações ......................................................................................78

3.8. Apresentação da proposta da pesquisa empírica. ............................................................82

3.9. Relato, análise e processamento teórico da pesquisa empírica ......................................86

3.9.1. Descrição dos Encontros ............................................................................................................87

3.9.1.1. Primeiro encontro: Vida Maria................................................................................................88

3.9.1.2. Segundo encontro: Dia 22 de maio de 2012 ..........................................................................89

3.9.1.3. Terceiro encontro Dia 29 de maio de 2012 ............................................................................91

3.9.1.4. Quarto encontro – Dia 06 de junho de 2012 ........................................................................98

CONS IDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................................... 103

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................................ 111

ANEXOS ..................................................................................................................................... 115

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho de pesquisa vincula-se ao programa de Pós Graduação da

Unicamp, na linha de pesquisa denominada Psicologia e Desenvolvimento Humano, mais

especificamente no grupo de pesquisa conhecido como LPG (laboratório de pesquisa genética).

O tema de nossa investigação constitui-se num desafio: articular as originais

contribuições de dois grandes pensadores, Paulo Freire (1921-1997) e Jacob Levy Moreno (1889-

1974), na consideração da Educação brasileira recente. Paulo Freire é muito conhecido e

amplamente divulgado no campo educacional, já o psiquiatra Jacob Levy Moreno é bem menos

conhecido no campo da educação, embora tenha muitos adeptos e defensores no campo da

Psicologia, mais notadamente aquela que tem uma preocupação clínica e social.

A justificativa original de nosso trabalho investigativo apontava a potencial riqueza

desses dois grandes autores do século XX. Nesse sentido, somos levados a afirmar que o

pensamento de Paulo Freire tenha alcançado a identidade de uma teoria da Educação singular e

única nesse período histórico. Desenvolveremos argumentos e contextualizações para buscar

comprovar essa afirmação no transcorrer da presente dissertação.

As motivações para a produção deste trabalho acadêmico advêm de nossas origens

sociais e de nosso compromisso profissional e popular, no âmbito da educação paulista.

Acreditamos que construí-lo com coerência metodológica, contribuindo para o estudo do

problema da exclusão social e escolar, fenômeno presente no cenário da educação atual, poderá

apontar para uma possibilidade de trabalho pedagógico crítico e dinâmico nos grupos de pessoas

jovens e adultas.

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A primeira grande indagação que impulsionou nossa investigação resume-se na

seguinte digressão: que contextos e disposições aproximariam Freire de Moreno, que disposições

ou fatores unificariam ou desagregariam suas teorias e articulações pedagógicas, originais e

singulares? Foram estas nossas grandes perguntas e motivações.

Os estudos sobre Paulo Freire, sua vida, sua obra e seu pensamento sãos incontáveis,

no Brasil e no mundo todo. Há diversas dissertações e teses nas universidades, referentes ao seu

pensamento e obra. Encontram-se também muitas articulações entre os fundamentos de seu

trabalho pedagógico e outros autores de destaque em diversas e distintas áreas. Todavia, análise

sobre as aproximações e distanciamentos conceituais entre o pensamento de Paulo Freire e Jacob

Levy Moreno não é tão comum, o que faz de nossa pesquisa poder ser tomada como uma original

proposta de estudo, ao mesmo tempo em que não nos facultam tantas fontes e inspirações.

Já os estudos sobre Jacob Moreno também são relativamente, abundantes, pela

originalidade de suas criações, pela potencialidade de conceitos, métodos e técnicas, com

destaque para a importância que tomou sua concepção de Psicodrama, notadamente quando

aplicada ao campo pedagógico. Moreno, no entanto, é muito mais conhecido e pesquisado na área

clínica, sendo mais raros os trabalhos que abordam sua teoria na área da educação.

Desse modo, podemos observar que, a tarefa de reunir num trabalho de Mestrado em

Educação, na área de Psicologia da Educação, em discorrer sobre esses dois autores é uma tarefa

desafiadora e exigente, seja pelas riquezas de cada um desses autores, considerados em si

mesmos e em suas respectivas áreas de atuação, seja na originalidade da síntese que pode surgir

quando articulados organicamente num todo interpretativo.

As reflexões apresentadas neste trabalho tratam de mostrar a educação de jovens e

adultos (EJA) como expressão da educação popular (EP). A Educação Popular como concepção

geral da educação, passou por diversos momentos epistemológico-educacionais e organizativos,

desde a busca da conscientização, que deveria atuar sobre o nível cultural das camadas populares,

em termos explícitos dos interesses delas, chegando até a defesa de uma escola pública popular.

A Educação de jovens e Adultos no Brasil como educação popular e como prática

educativa, como teoria pedagógica que nasceu, principalmente na América Latina, no calor das

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lutas populares, contribuiu para que ideias e atividades essenciais na educação brasileira

mudassem e inovassem. Jezine (2003, p.156) conta que a educação de adultos em nosso meio

desenvolveu-se a partir das atividades de alfabetização, dentro da concepção de universalização

do ensino e do conhecimento surgidos com a ideia de democratização que, de certo modo,

buscava a homogeneização cultural através da escola.

É na década de 1960 que aparecem as obras e ações de Paulo Freire e sua equipe de

trabalho, que dão uma virada no enfoque da educação popular, ao propor que os processos

metodológicos para a alfabetização de adultos transcendam as técnicas e centrem-se em

elementos de conscientização. Lançam seu manifesto contra a educação bancária que desumaniza

o homem e o converte num depósito de conteúdos; e propõem como saída a Educação

Problematizadora. O desafio proposto por Freire era conceber a alfabetização de adultos para

além da aquisição e produção de conhecimentos cognitivos, mesmo sendo estes necessários e

imprescindíveis.

O pensamento pedagógico de Paulo Freire, assim como sua proposta para a

alfabetização de adultos inspiraram os principais programas de alfabetização e educação popular

que se realizaram no país no início dos anos da década de 1960. Esses programas foram

empreendidos por intelectuais, estudantes e pessoas de lideranças católicas engajados numa ação

política junto aos grupos populares.

Segundo Jezine (2003, p.157), esses movimentos "tinham como objetivo promover a

conscientização do povo, para que este pudesse atuar transformando sua realidade". Esses

diversos grupos foram se articulando e passaram a pressionar o governo federal para que os

apoiasse e estabelecesse uma coordenação nacional das iniciativas.

Em janeiro de 1964, foi aprovado o Plano Nacional de Alfabetização, que previa a

disseminação por todo o Brasil de Programas de Alfabetização orientados pela proposta de Paulo

Freire. No dizer de Fávero (1983), os anos 1960-64 foram, particularmente, críticos e criativos

em quase tudo.

O paradigma pedagógico que se construiu nessas práticas baseava-se num novo

entendimento da relação entre a problemática educacional e a problemática social. Antes

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apontado como causa da pobreza e da marginalização, o analfabetismo passou a ser interpretado

como efeito da situação de pobreza gerada por uma estrutura social não igualitária.

Era preciso, portanto, que o processo educativo interferisse na estrutura social que

produzia o analfabetismo. Nesse sentido, "a educação de adultos teria, portanto, objetivos de

integração do homem marginal nos problemas da vida cívica e de unificar a cultura brasileira”

(PAIVA, 1987, p.184).

Mesmo com alguns avanços em termos quantitativos, no nível de escolarização, a

taxa de analfabetismo da população segundo estimativas obtidas com base na PNAD 2001,

atestam para o fato de 12,4% das pessoas com mais de 15 anos de idade ainda não foram

alfabetizadas. (Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios PNAD de 2001).

Apesar de queda anual e de marcantes diferenças regionais e setoriais, a existência

de pessoas que não sabem ler ou escrever por falta de condições de acesso ao processo de

escolarização deve ser motivo de autocrítica constante e severa dos setores civis e políticos, bem

como por uma possível transformação da sociedade.

Assim sendo, os conceitos de pedagogia do oprimido; de conscientização, de

comunidade aprendente; de educação como busca da liberdade e prática da autonomia, em

Paulo Freire tornaram-se categorias centrais da concepção de EJA de cunho emancipatório.

Tratamos disso no primeiro capítulo.

Para o segundo capítulo, nossa pretensão foi explorar os conceitos de Psicodrama,

Sociodrama e Sociometria de Moreno que guardam múltiplas identidades com o pensamento de

Paulo Freire e potenciais aspectos e dimensões didáticas para o encaminhamento das práticas de

EJA, numa perspectiva participativa, intersubjetiva e humanizadora, fundamentada na ação. Esse

foi o horizonte inspirador de nossa investigação.

A principal contribuição de Jacob Levy Moreno (1989-1974) à Psicologia encontra-se

no fato deste ser o criador do Psicodrama, Sociodrama e da Sociometria, conceitos cada vez mais

difundidos pelo mundo, inclusive no Brasil, onde o número de adeptos cresce a cada dia.

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Talvez, as inovadoras teorias moreniana sejam tão atrativas na atualidade por

articularem-se a proposta de uma “revolução criadora”, isto é, e de recuperar a espontaneidade, e

consequentemente a criatividade e inventividade inatas ao homem, que são dificultadas ou

perdidas no decorrer do desenvolvimento pelas pressões do meio ambiente e do cotidiano, cada

vez mais aflitivo e destrutivo.

Vivemos em grupos humanos como numa família ou uma rede social onde estamos

inseridos; parece muito claro que nesses contextos as relações estão se tornando cada vez mais

superficiais, necessitando de ações que estimulem a criatividade e aprofunde as relações sociais,

finalidade do Psicodrama.

Entretanto, é possível observar, inclusive na literatura brasileira, que muitos autores

se utilizam da teoria e prática psicodramática numa escolha à sua maneira e conveniência, como

por exemplo, o Psicodrama Pedagógico, os Jogos Psicodramáticos, o Jornal Vivo, etc.

Também é possível encontrarmos uma variedade de críticas em torno das obras de

Moreno; em sua defesa e em sutis acusações de que o criador do Psicodrama e da Sociometria

utilizou uma forma pouco sistemática de transmitir sua criação. Essa “leitura” do legado

moreniano pode ter sido a brecha para as várias interpretações e para as diferentes escolhas dos

eixos teóricos observados na literatura brasileira, oriundas do potencial teórico e prático da

Teoria de Moreno. Enfim podemos dizer: a teoria de Moreno é uma teoria em processo...

Contudo, o que parece comum às várias interpretações é o entendimento de que o

Psicodrama com seus eixos teóricos conduzem, quando praticado, a uma aquisição preciosa e

libertadora. À compreensão de que resultados evidenciam que o uso deste método resgata a

espontaneidade das pessoas rompendo com os padrões de comportamento estereotipados que

levam à automatização.

No terceiro capítulo lograremos realizar o estudo das possibilidades metodológicas

dos jogos psicodramáticos em situações de exclusão social e escolar. Tencionamos desenvolver

estudo comparativo sobre os princípios orientadores e os entrelaçamentos da Teoria

psicodramática com os constituintes filosóficos da Pedagogia de Paulo Freire, buscando os

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pontos de aproximação e de distanciamento entre as teses do Teatro da Espontaneidade e as bases

conceituais de uma Educação Popular Emancipatória na obra de Paulo Freire.

Na metodologia aplicada utilizamos técnicas do Psicodrama Pedagógico como:

discussões em grupo, dramatizações, leituras e reflexões de textos de gênero jornalístico com

conteúdos relevantes para o grupo pesquisado. No final da pesquisa, como forma de avaliação

das atividades realizadas, os educandos responderam a um questionário no qual continha questões

abertas.

O Psicodrama Pedagógico compreende uma modalidade de Psicodrama vinculado à

educação, que começou a ser praticado por volta de 1963, pela pedagoga argentina Maria Alicia

Romaña, após sua formação como psicodramatista. Contudo, Alicia Romaña relata que a data da

apresentação oficial do Psicodrama Pedagógico, foi agosto de 1969, em Buenos Aires,

consequência das demonstrações realizadas por ela no IV Congresso Internacional de

Psicodrama. Como consequência deste trabalho, Romaña foi convidada para orientar a formação

psicodramática de educadores em São Paulo.

Acreditamos que a Educação Popular como base filosófica necessita de um método

que a oriente (uma pedagogia) e neste caso, nos desafia a investigar as relações entre o

Psicodrama, como contribuição psicológica e as intenções de emancipação humana pela via da

educação, na obra de Paulo Freire. Buscaremos nas obras básicas de Freire e de Moreno, através

das produções de teses e dissertações sobre o objeto, as potencialidades pedagógicas dessas

proposições, no campo específico dos grupos de jovens e adultos, para tratar da categoria da

exclusão, afeita aos dois autores.

Buscaremos investigar as relações entre o Psicodrama e a Educação Popular,

entendida esta na dimensão posta por Melo Neto (2008):

“[...] como um fenômeno humano de apropriação e produção de bens culturais por meio do trabalho que expressa um sistema aberto de ensino e aprendizagem com teorias intercomunicantes. Esse fenômeno comporta uma teoria do conhecimento referenciada na realidade, tendo o mundo concreto como anterioridade, com metodologias (pedagogia) incentivadoras à participação e ao empoderamento das pessoas. Passa a exigir conteúdos e técnicas de avaliação processuais, permeado por uma base política estimuladora de transformações sociais. Fenômeno humano que se orienta por anseios de liberdade, justiça,

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igualdade e, sobretudo, felicidade”(MELO NETO, 2008, p. 95).

Pensando as relações entre os jogos psicodramáticos como método na Pedagogia,

junto aos grupos de jovens e adultos, e fundado em uma concepção de Educação Popular

Emancipatória, com base em Freire, a pesquisa buscou relatar no terceiro capítulo, os processos

de intervenção com os sujeitos educativos (os jovens e adultos e os professores), pela via da

investigação e valorização de suas subjetividades, procedimento fundamental no Psicodrama,

para melhorar a qualidade das relações interpessoais na sociedade e, por conseguinte, na escola,

marcadamente com os grupos de jovens e adultos e suas histórias de exclusão social e escolar.

Utilizamos como um instrumento para a leitura política sobre o “modo de ser e ver o

mundo” dos sujeitos pesquisados no presente trabalho o “Jornal Vivo” e “jogos psicodramáticos”

– técnicas do Psicodrama. O uso de jornais em sala de alfabetização e a dramatização de

conceitos nos fazem pensar numa educação de forma abrangente e interdisciplinar, possibilitando

articular práticas e saberes em diferentes níveis de compreensão. A técnica do “jornal vivo” é

uma facilitadora para a alfabetização dos educandos jovens e adultos, pois permite que esses

educandos fiquem bastante envolvidos e interessados na atividade. A vivência envolvida

proporciona a possibilidade de se “libertar” no sentido de não ter medo de errar ao dramatizar a

notícia, se arriscando mais, tornando-se mais criativo e possibilitando ampliar sua autonomia no

sentido de buscar novas informações a respeito das coisas que conheceu e vivenciou na sala de

aula, sejam elas experiências ocorridas no grupo ou mesmo individualmente.

O “jornal vivo” ou "jornal dramatizado" criado por Moreno tem como proposta fazer uma

síntese entre o teatro e o jornal. Ele retira do jornal as manchetes e as notícias diárias e, a partir da

sua leitura, obtém os estímulos necessários para realizar uma dramatização de forma improvisada

e espontânea.

Tomando o educando como sujeito de sua aprendizagem, Freire propunha uma ação

educativa que não negasse sua cultura, mas que fosse transformando através do diálogo. Freire

referia-se a uma consciência ingênua ou intransitiva, herança de uma sociedade fechada, agrária e

oligárquica, que deveria ser transformada em consciência crítica, necessária ao engajamento ativo

no desenvolvimento político e econômico da nação. No atual contexto, acreditamos que se faz

mais do que necessário, frente à concepção dominante de educação que reforça, na prática, a

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exclusão social e a não-solidariedade humana, uma metodologia para pessoas adultas pautada na

ação (Psicodrama), na reflexão (Educação Popular), com possibilidades de reação transformadora

pelos sujeitos emancipados.

Moreno afirmou que o homem deve sim, ser educado, porém, com um significado

maior que a mera ilustração intelectual, dando a importância à ilustração emocional. Realçou

que é a deficiência na espontaneidade, para poder usar a inteligência disponível e mobilizar as

emoções cultivadas, o principal problema da aprendizagem. Em síntese, segundo Moreno, era

necessário um vasto programa de preparação e de treinamento para a

espontaneidade/criatividade a fim de se educar os seres humanos (RAMALHO, 2001, p.33).

Enfim, a educação que se impõe no decorrer da história aos que verdadeiramente se

comprometem com a libertação não pode fundar-se numa compreensão dos homens como seres

"vazios” a quem o mundo "encha” de conteúdos; não pode basear-se numa consciência

espacializada, mecanicistamente compartimentada, mas nos homens como "corpos conscientes” e

na consciência como consciência intencionada ao mundo. Para Paiva, (1987, p.184) “Não pode

ser a concepção banal do educando como depósito de conteúdos, mas a da problematização dos

homens em suas relações com o mundo”

Elegemos como fontes de nossa investigação as próprias produções de J. L. Moreno e

Paulo Freire, seus principais livros, suas categorias e conceitos. Em segundo lugar buscamos

interpretar o pensamento de Freire e Moreno a partir de nossas próprias convicções e escolhas.

Nessa encruzilhada encontramos nosso ponto de equilíbrio. E nos perguntamos: como

entender e inspirar ações para o manejo do psicodrama pedagógico nas turmas e salas de

Educação de Jovens e Adultos? Seriam as premissas libertadoras de Paulo Freire irmãs solidárias

da espontaneidade, do senso de igualdade e das expressões de coletividade e diálogo expostos por

Moreno, um caminho possível?

Esse é o escopo da nossa pesquisa, explorar conceitos e categorias de dois eminentes

autores referenciais, no âmbito da Educação de Jovens e Adultos, em seu estado e em suas

características institucionais atuais no Brasil. Depois de justificada nossas intenções primárias

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buscamos desenvolver as principais descobertas, contradições e potencialidades dessa

articulação.

Temos consciência do necessário rigor do nosso trabalho e buscamos em Frigotto

(1989, p. 45) nossa inspiração. Para ele, o processo dialético “implica rupturas - no dizer de

Gramsci, uma catarse e um processo de trabalho e aproximações sucessivas da verdade que por

ser histórica, sempre é relativa”.

Trata-se, portanto, de uma pesquisa qualitativa de natureza hermenêutica e de

fundamentação histórica e crítica, conforme reconhecimento acadêmico dessa metodologia.

Sabemos que uma pesquisa não condensa totalmente a realidade. Essa é sempre maior

do que dela se diz. Mas as pesquisas são iniciativas e intenções históricas e datadas, de

compreensão do grande movimento da sociedade como um todo, na direção de superações. Nesse

sentido o presente trabalho reflexivo pode ser uma inspiração desafiadora a novos

questionamentos, ampliando o leque das perguntas, muito mais do que vangloriar-se das

possíveis respostas.

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1. CAPÍTULO I: BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E ANÁLISE DOS FUNDAMENTOS POLÍTICOS DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS NO BRASIL E A PEDAGOGIA DA AUTONOMIA.

Uma reconhecida tradição epistemológica afirma que são duas as dimensões da

pesquisa: uma, a ordem da investigação, na qual se parte do particular para o geral; e outra, a

ordem da exposição, que parte do geral para o particular. Essa é a nossa inspiração inicial nessa

tarefa de escrever a presente dissertação. Partimos, na ordem da pesquisa, de um problema

concreto que desafiava nossa prática: como criar, desenvolver ou sistematizar metodologia ou

didáticas participativas, coletivas e emancipatórias para as populações diversas das classes de

Educação de Jovens e Adultos?

Tínhamos, além de nossas inspirações de formação, alguns autores referenciais de

alta potencialidade didática para esse universo educacional, buscamos desenvolver as originais

preposições de sua teoria e metodologia de alfabetização e ensino.

Mas, no contraditório da prática diária percebíamos que algumas questões

educacionais permaneciam travadas ou inacessíveis no processo de aprendizagem por razões que

desconhecíamos de imediato. Depois de observar atentamente reconhecemos que as dimensões

subjetivas e intersubjetivas ficavam em segundo plano no processo de ensino e formação de

jovens e adultos. Com toda a riqueza, a pedagogia de Paulo Freire não acentuava tais dimensões

pelas razões conjunturais nas quais elas foram produzidas.

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Tivemos que buscar outros autores para fazer essa complementação conceitual e

metodológica. Saímos da pedagogia e buscamos a rica morada da psicologia. Depois de andar por

suas principais tradições e escolas, todas singulares e originais, deparamo-nos com o pensamento

e a obra de Jacob Levy Moreno. Esse encontro pode ser entendido como aquelas realizações que

mudam radicalmente nossa vida. Ao ler e nos apropriarmos das contribuições teóricas e

metodológicas de Moreno vimos acontecer um desvelamento, pessoal e subjetivo, em primeira

instancia e social e coletivo numa segunda dimensão.

Foi quando tivemos a motivação intuitiva de trazer moreno para o lado de Paulo

Freire. Fizemos isso na prática de jovens e adultos e nos movimento populares que atuamos nos

anos iniciais desse milênio. Depois de olhar essa trajetória ousamos transformar a intuição inicial

em um projeto de pesquisa, que se traduziu na ordem de investigação do presente trabalho.

Nesse momento assumimos a tarefa de relatar e expor a trajetória empreendida. Nesse

primeiro capitulo buscaremos descrever as principais etapas, os conceitos fundamentais e as

inspirações hegemônicas que sustentaram as políticas, as metodologias e disposições pedagógicas

de educação de jovens e adultos no Brasil. Nessa tarefa exporemos igualmente os principais

marco do pensamento de Paulo Freire e sua possível apropriação sempre atual nas políticas de

Educação de Jovens e Adultos no país.

1.1. Breve histórico da Trajetória das Políticas de EJA no Brasil

Os estudos de BIGNARD (UNESCO, 2010, p.5-17) sobre políticas públicas e

sociedade civil na construção da EJA condensaram uma breve trajetória das políticas públicas

que foram elaboradas e implantadas para a promoção da educação de pessoas adultas na história

brasileira nestes últimos anos (décadas entre 1920-2000). Faremos aqui uma retomada dessa

trajetória para condensar as bases históricas e as diretrizes políticas hegemônicas dessa

modalidade de educação e de ensino em nossa realidade educacional.

Segundo ele, esta modalidade, a (EJA), teve seus primeiros ensaios na década de

1920, período em que tivemos o início de mobilizações em torno da educação como dever do

Estado, período com intensos debates políticos e culturais e questionamentos sobre a identidade

nacional, sobre o sentido de nação.

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Começou assim a proposição de uma Pedagogia Libertária, que travou uma luta

contra o analfabetismo de 75% da população da época, e contra as políticas para a Educação de

Adultos que só visavam aumento do número de eleitores.

Nessa época ainda, ocorrem as primeiras greves operárias e nascia a imprensa

operária, derivada do movimento operário de linha anarquista e anarco-sindicalista, conforme

atestam os registros históricos.

Na década de 1930 a EJA começa a delimitar seu espaço na Educação Brasileira,

aproveitando do apogeu do Movimento Escola Nova, buscando um avanço da qualidade do

ensino oferecido a esta população, propondo melhorias nos materiais didáticos e espaços

pedagógicos. Segundo Feitoza (2008):

Nos finais de 1931, durante a IV Conferencia Nacional de Educação, católicos e liberais confrontam-se no processo que culminou com a publicação do “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova” (1932), enfileirando-se em organizações distintas: a ABE (associação Brasileira de Educação, onde se agruparam os renovadores e a CCBE (confederação Católica Brasileira de Educação, criada em 1933 e que congregou os conservadores [...] (FEITOZA, 2008, p. 56).

Feitoza (2008) ainda considera que:

Como marco teórico do período, percebemos na formulação do “Manifesto”, a ideia de que a educação é o problema fundamental do país, acima das questões de ordem econômica, pois para os renovadores, a educação e a cultura seriam os caminhos para o desenvolvimento. O sistema educacional para os autores do Manifesto, não era compatível com as demandas de desenvolvimento do país, descompasso atribuído a fatores políticos, filosóficos e didáticos pedagógicos [...] (Idem).

Nas décadas de 1940 e 1950 temos a luta pela ampliação da oferta da educação,

inclusive a de Jovens e Adultos, gerando campanhas nacionais de combate ao analfabetismo, a

realização da I Conferência Internacional sobre Educação de Adultos (Dinamarca), tendo como

eixo central a educação de Adultos para “o respeito aos direitos humanos e para a construção de

uma paz duradoura, que seria uma educação continuada, mesmo depois da escola.” (GADOTTI,

2001, apud BIGNARDE, 2010, p.12).

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Podemos observar que, no decorrer desse período, já nos é apresentado uma

movimentação que prenuncia os históricos entraves na educação brasileira, cujas concepções

variam conforme os distintos interesses. Feitoza (2008, p. 57) prossegue nos conduzindo pela

história da Educação nesse contexto:

O período de 1930-1950 tem como eixos constituir-se em Estado Nacional Desenvolvimentista, no avanço cidadão e na criação das indústrias de base [...] quando efetivamente o Brasil inicia o processo de industrialização e a educação passa a ter um sentido pragmático, para o desenvolvimento do modelo, sendo consideráveis os investimentos em educação pública, elementar, nos processos de alfabetização de jovens e adultos, na profissionalização acelerada (FEITOZA, 2008, p. 65).

Mesmo antes do término dos anos 1950 se extinguem as campanhas por criticar as

orientações pedagógicas das mesmas e o seu financiamento ser contestado. No ano de 1958

acontece o II Congresso Nacional de Educação de Adultos - Paulo Freire é uma expressão do

campo progressista da educação neste evento.

Em 1961 nasce o Movimento de Educação de Base (MEB), movimento de cultura

popular vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Em janeiro de 1964, foi

aprovado o Plano Nacional de Alfabetização, que tinha implantação prevista em todo o território

nacional, baseado na proposta de Paulo Freire, no apogeu da atuação do educador. O Plano

Nacional de Educação surgiu em 1962, elaborado já na vigência da primeira Lei de Diretrizes e

Bases da Educação Nacional, ( Lei nº 4.024, de 1961) que previa a disseminação por todo o

Brasil, de programas de alfabetização orientados pelas propostas do grande pensador brasileiro.

O pensamento de Paulo Freire, assim como sua proposta para a alfabetização de

adultos, inspiraram os principais programas de alfabetização e educação popular que se

realizaram no país no início dos anos 1960. Esses programas foram empreendidos por

intelectuais, estudantes e líderes católicos engajados numa ação política junto aos grupos

populares. No interior de documentos oficiais encontramos o registro abaixo.

Desenvolvendo e aplicando essas novas diretrizes, atuaram os educadores do MEB – Movimento de Educação de Base, ligado à CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, dos CPCs – Centros de Cultura Popular, organizados pela UNE – União Nacional dos Estudantes, dos Movimentos de Cultura Popular, que reuniam artistas e intelectuais e tinham o apoio de administrações municipais (...). Em janeiro de 1964, foi aprovado o Plano

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Nacional de Alfabetização, que previa a disseminação por todo o Brasil de programas de alfabetizações orientados pela proposta de Paulo Freire (MEC, 1997, p. 23).

Essa proposta foi interrompida com o Golpe Militar de 1964 e seus promotores foram

duramente reprimidos. O governo assume o controle dos Programas de Alfabetização de Adultos,

tornando-os assistencialistas e conservadores. Nesse período lançou-se o MOBRAL –

Movimento Brasileiro de Alfabetização, que era um movimento ideológico padronizado.

O MOBRAL expandiu-se por todo o território nacional, diversificando sua atuação.

Das iniciativas que derivaram desse programa, o mais importante foi o PEI – Programa de

Educação Integrada, uma forma condensada do antigo curso primário. Referendado após a III

Conferência Internacional sobre Educação de Adultos, realizado em Tóquio, em 1972, com o

objetivo de reintroduzir Jovens e Adultos ao sistema formal de educação, o Mobral espalhou-se

pelo país.

Entretanto, quando já havia encerrado o período para o cumprimento da meta, o

IBGE registrou 25,5% de pessoas analfabetas na população de 15 anos ou mais. O programa

passou por diversas alterações, ampliando sua área de atuação para campos como a educação

comunitária e a educação de crianças.

O ensino supletivo, implantado em 1971, apesar do pragmatismo, foi um marco

importante na história da educação de Jovens e Adultos do Brasil. Foram criados os Centros de

Estudos Supletivos em todo o País, com a proposta de ser um modelo de educação do futuro,

atendendo às necessidades de uma sociedade em processo de modernização.

O objetivo era escolarizar um grande número de pessoas, mediante um baixo custo

operacional, satisfazendo às necessidades de um mercado de trabalho competitivo, com exigência

de escolarização cada vez maior.

No início da década de 1980, a sociedade brasileira viveu importantes transformações

sócio-políticas com o fim dos governos militares, como a campanha nacional a favor das eleições

diretas. Neste processo de democratização do país, motivados pelos debates sociais e populares,

pela constituinte, surgem novos e críticos movimentos na realidade brasileira; como os Sem Teto,

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MST (Movimento dos Sem Terra), Movimento Contra a Fome e a Miséria e pela Vida,

Movimentos de Mulheres, Homossexuais, Movimento Sindical, CUT, pastorais sociais, etc. Era a

formação de um novo bloco histórico de forças sociais e políticas na direção da superação das

marcas autoritárias da ditadura militar vigente.

Nesse período, Paulo Freire ingressa como professor titular na faculdade de Educação

da Universidade Estadual de Campinas (1980-1991), depois de sua volta do exílio.

Em 1985, o MOBRAL foi extinto, sendo substituído pela Fundação EDUCAR.

Acontece a IV Conferência Internacional sobre Educação de Adultos, em Paris. O contexto da

redemocratização possibilitou a ampliação das atividades da EJA. Estudantes, educadores e

políticos organizaram-se em defesa da escola pública e gratuita para todos, principalmente com a

nova Constituição de 1988, que trouxe importantes avanços para a EJA, devido à obrigatoriedade

e gratuidade do ensino fundamental, dando garantia constitucional também para os que a ele não

tiveram acesso na idade apropriada.

No entanto, a partir dos anos 1990, a EJA começou a perder espaço nas ações

governamentais, já em março de 1990, com o início do governo Collor, a Fundação EDUCAR foi

extinta e todos os seus funcionários colocados em disponibilidade. De acordo com Feitoza

(2008):

Em termos de ações em EJA, a fundação EDUCAR assemelhou-se aos critérios estabelecidos pelo MOBRAL, contudo apresentando-se como uma agencia de fomento, ao assessorar e investir recursos em diversas iniciativas, nos campos formal, não formal e informal, sendo menos diretiva que o MOBRAL, em seus instrumentos de atuação: o processo de formação dos educadores buscava a qualificação profissional; eram educadores os professores habilitados, alunos do antigo magistério do ensino médio e os estudantes universitários; havia uma “cartilha do Programa de Educação Básica da Fundação EDUCAR [...] norteadora dos pressupostos do PEB, com livros para alunos e professores” (FEITOZA, 2008, p. 117).

Em nome do enxugamento da máquina administrativa, a União foi se afastando das

atividades da EJA e transferindo a responsabilidade para os Estados e Municípios, causando uma

lacuna nas políticas públicas para a Educação de Jovens e Adultos.

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Nesse período acontece na Tailândia/Jomtiem, a Conferência Mundial de Educação

para Todos, onde foram estabelecidas diretrizes planetárias para a Educação de Crianças, Jovens

e Adultos.

Em 1996 a Emenda constitucional 14, idealizada no governo de Fernando Henrique

Cardoso (FHC), suprimiu a obrigatoriedade do Poder Público em oferecer o Ensino Fundamental

aos Jovens e Adultos que não tiveram acesso e suprimiu o artigo 60 que determinava acabar com

o analfabetismo em dez anos. Esta emenda criaria ainda o FUNDEF e não incluiria a EJA na

distribuição dos recursos.

Neste mesmo ano temos a Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB 9394/96,

que modifica a nomenclatura “Ensino Supletivo” para “EJA”. Dedica dois artigos (arts. 37 e 38),

no Capítulo da Educação Básica, Seção V, para reafirmar a obrigatoriedade e a gratuidade da

oferta da educação para todos que não tiveram acesso na idade própria, mas não trata da questão

do analfabetismo, e reduz a idade para realização dos exames em relação à Lei 5692/71.

No ano de 1997 aconteceu na Alemanha/Hamburgo, a V Conferência Internacional

de Educação de Jovens, promovida pela UNESCO (Organização das Nações Unidas). Essa

conferência representou um importante marco, na medida que estabeleceu a vinculação da

Educação de Adultos ao desenvolvimento sustentável e equitativo da humanidade.

O Conselho Nacional de Educação sob a coordenação do Conselheiro Carlos Roberto

Jamil Cury aprovaria o Parecer nº 11/2000 – CEB/CNE, que trata das Diretrizes Curriculares

Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos. Também foi homologada a Resolução nº 01/00 –

CNE que trata das Diretrizes Curriculares para a EJA.

Mudando a nomenclatura de ensino supletivo para EJA, enfatiza o direito público

subjetivo dos cidadãos à educação, estabelece as funções: reparadora; equalizadora e

qualificadora. Distingue a EJA da aceleração de estudos, assinala a necessidade de

contextualização do currículo e das metodologias, recomenda a formação específica dos

educadores.

A Lei n. 10.172/2001 Plano Nacional de Educação - MEC estabelece as seguintes

metas para a Educação de Jovens e Adultos:

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Alfabetizar em cinco anos dois terços do contingente total de analfabetos, de modo

a acabar com o analfabetismo em uma década.

Assegurar, nesse mesmo prazo, a oferta de EJA primeiro segmento do ensino

fundamental para 50% da população de 15 anos e mais, que não tiveram acesso a

esse nível de escolaridade.

Garantir, até o ano de 2010, a oferta de curso no segundo segmento do ensino

fundamental, para toda a população de 15 anos e mais que concluiu as quatro

séries iniciais.

Dobrar em cinco anos e quadruplicar em dez anos a capacidade de atendimento

nos curso de EJA de Nível Médio.

Estas metas devem ser trazidas conforme os contextos locais nos Planos Estaduais de

Educação e Planos Municipais de Educação e implicam numa expansão quantitativa da oferta em

EJA.

Mais adiante, em janeiro de 2003, o MEC anunciou que a alfabetização de Jovens e

Adultos seria uma prioridade do novo governo federal. Para isso, foi criada a Secretaria

Extraordinária de Erradicação do Analfabetismo, cuja meta seria erradicar o analfabetismo

durante o mandato de quatro anos do governo Lula, medida esta que não se deu nesse tempo, mas

manteve sua finalidade.

A partir dos estudos de Bignard (UNESCO, 2010) elaboramos uma sucinta

contextualização das políticas públicas historicamente constituídas e implantadas na Educação

brasileira para a Educação de pessoas jovens e adultas. Acreditamos que descrevê-las aqui se fez

necessário para a compreensão de nossa realidade educacional elitista, como nos situa FEITOZA

(2008, p.44) citando NUNES (1999) “É nesse cenário controverso que se torna crucial recuperar

o sentido amplo da educação, enquanto produção social de homens e mulheres e o sentido

restrito, como escolarização e letramento”.

Depois de recuperar uma breve recomposição histórica dos movimentos de Educação

de Jovens e Adultos no Brasil buscaremos apresentar as identidades de uma proposta de cunho

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emancipatório e transformador, referendada na proposição do educador Paulo Freire, uma de

nossa referências basilares.

1.2. Paulo Freire e a Educação de Jovens e Adultos no Brasil

Paulo Reglus Neves Freire, nordestino, pernambucano, profeta e poeta da educação

como prática da liberdade, (título de um de seus livros) nasceu em 1921 e faleceu em 1997, tem

sido um dos estudiosos mais referenciados no Brasil e no mundo, dada a sua trajetória ímpar no

campo do conhecimento e da práxis política e educacional. Assim, tanto se escreveu sobre a sua

obra como também se utilizou (e se utiliza) dela nos mais diversos tipos de estudos e de

abordagens.

Paulo Freire tem em sua trajetória a luta pela conquista coletiva da formação para a

leitura e escrita uma rica base de sustentação filosófica, científica, econômica, cultural, religiosa e

política.

Segundo Scocuglia (2000, p. 81), entre os movimentos mais importantes da década

1960, principalmente no Nordeste, em que se desenvolveram atividades não só em alfabetização

de jovens e adultos, como também educação de base ou cultura popular, estão o Movimento de

Educação de Base (MEB) com suas escolas radiofônicas; a Campanha de Educação Popular na

Paraíba (CEPLAR); a Campanha de Alfabetização no Rio Grande do Norte “De pé no chão

também se aprende a ler” e o Movimento de Cultura Popular (MCP) que iniciou no Recife, se

estendendo depois para as zonas rurais.

Em torno das propostas educacionais do educador Paulo Freire, o “Método freireano”

ganhou destaque como proposta para alfabetizar adultos, desenvolvida para substituir o sistema

tradicional na alfabetização de adultos.

Logo, a experiência de Angicos, Rio Grande do Norte ganhou ênfase, pelo sucesso na

alfabetização de 300 pessoas em 40 horas, apesar de ter recebido ajuda da Usaid (United States

Agency for International Development), naquele momento considerada uma agência afinada com

os interesses da ditadura militar vigente e, portanto, rejeitada pelas forças sociais que combatiam

o regime autoritário daquele momento.

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1.2.1. O Processo de Alfabetização de Angicos

O professor Paulo Freire sugeriu uma proposta pedagógica, em que o diálogo se

desenvolve sobre a realidade concreta, sobre situações existenciais, trabalhando conceitos e

experiências do cotidiano dos estudantes, que passariam a ser construtores do seu conhecimento e

não apenas receptores.

Dessa forma, Freire nos assevera:

Na luta entre o dizer e o fazer em que nos devemos engajar para diminuir a distância entre eles, tanto é possível refazer o dizer para adequá-lo ao fazer quanto mudar o fazer para ajustá-lo ao dizer, por isso a coerência por forçar uma nova opção. [...] (FREIRE, 2007, p. 91).

Por isso, o método Paulo Freire buscava revelar a situação social dos educandos, para

que estes não se conformassem com a realidade histórica, no qual estavam inseridos. Em uma

releitura de mundo, de homem e de sociedade, essa pedagogia buscava vincular a prática

educacional ao contexto social, político e cultural desta localidade.

As famosas “Quarenta Horas de Angicos” tratavam-se de uma proposta de educação

experimental que aconteceria em um período de três anos, para alfabetizar cerca de 100 mil

adultos, tendo inicio em 1963, como um projeto piloto de alfabetização de adultos em 40 horas,

contando com o auxílio de estudantes universitários, monitores e organizadores, que se

deslocaram cerca de 170 km da capital do Estado, para chegar a Angicos.

Sendo orientado por Paulo Freire, o Professor Marcos Guerra ficou responsável pela

capacitação da equipe pedagógica, contribuindo para que a experiência desse certo. Foram

utilizadas diversas metodologias, sempre baseadas no método freireano, os participantes do

projeto analisaram a realidade na qual os estudantes estavam inseridos para a escolha do

vocabulário linguístico a ser utilizado.

As situações pedagógicas se davam com a elaboração de temas geradores escolhidos

através de debates com os estudantes, criação de situações existenciais típicas dos angicanos,

elaboração de fichas de roteiro para auxiliar os coordenadores no debate e elaboração de fichas de

leituras silábicas correspondentes aos temas geradores.

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As aulas também eram projetadas em slides que, pela falta de energia elétrica, eram

movidos a querosene. Os encontros aconteciam à noite numa sala pequena, iluminada por um

candeeiro também a querosene, ou nas casas dos próprios alunos, onde na maioria das vezes

crianças, jovens e adultos (de faixa etária variada), como por exemplo, dona Maria Hermínia de

72 anos, compartilhavam do mesmo clima de descobertas e aprendizagem, tal como Freire nos

conta que:

A pesquisa do que chamava universo vocabular nos dava assim as palavras do Povo, grávidas de mundo, elas nos vinham através da leitura do mundo que os grupos populares faziam. Depois, voltavam a eles, inseridas no que chamava e chamo de codificações, que são representações da realidade (FREIRE, 1989, p. 18).

As discussões se desenvolviam nos Círculos de Cultura, que eram espaços de

alfabetização e de conscientização, as palavras não eram apenas soltas ao ar, mas repletas de

significados, expressando os anseios, as inquietações e os sonhos de um povo que não se

reconhece ainda sequer como povo, naquela conjuntura, herança de séculos de dominação,

exploração e abandono.

O processo de alfabetização se dava a partir do tema gerador que eram figuras e/ou

palavras códigos do cotidiano daquelas pessoas. Tome-se como exemplo o trabalho com a

palavra geradora SALINA, já que o sal fazia parte da economia do Rio Grande do Norte e alguns

participantes faziam alguma atividade envolvendo esse produto.

Estes trabalhadores, inclusive questionavam as más condições desse tipo de trabalho

e os danos causados à saúde. A palavra salina era estudada analiticamente com suas respectivas

famílias (ex.: sa - se - si - so - su; la - le - li - lo - lu; na - ne - ni - no - nu.), que depois se

transformavam em palavras, frases, parágrafos, textos. Todas as etapas eram alternadas e / ou

acompanhadas pela discussão da realidade. SILVA; ALCÂNTARA; ELEUTÉRIO (2006) sobre

essa prática descreve:

As aulas eram desenvolvidas através de situações-problema, estimulando a participação e o posicionamento crítico do educando, de modo que o adulto se educava mediante a discussão de suas experiências de vida com outros indivíduos que participavam das mesmas experiências, num processo em que o homem “aprende a si mesmo e aos outros sob a mediação do mundo”. Assim se dava a leitura da palavra, passando pelo reconhecimento dos fonemas e das

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sílabas até a leitura de frases que traduzem as relações com o mundo (SILVA; ALCÂNTARA; ELEUTÉRIO 2006, p. 8).

A partir dessa prática inovadora de ensino-aprendizagem, muitos cidadãos

aprenderam a discutir, a questionar, modificar, renovar, compreender e corrigir as suas

realidades, de acordo com seu cotidiano.

Numa percepção de educação freireana, observa-se que o indivíduo já possui um

conhecimento decodificado, ou seja, um conhecimento prévio das coisas, tornando-se viável uma

aprendizagem através dessa experiência de educação libertadora.

Freire propõe o trabalho com palavras geradoras que são um incentivo à participação

dos educandos, que se sentem desafiados a assumir o papel de sujeitos do processo de

aprendizagem da leitura e da escrita, como também a discutirem a realidade que os cerca.

1.3. Educação Popular: perspectivas e realizações

A educação popular constitui-se uma forma de educação que visa contribuir com o

processo de conscientização das classes consideradas como subalternas.

A partir de uma teoria referenciada na realidade e de uma base ética e política voltada

à transformação social, ela aposta em metodologias (pedagogias) que estimulam a luta coletiva

pela emancipação dos oprimidos no sistema capitalista.

O elemento popular não se apresenta aqui apenas para adjetivar um tipo específico de

educação, mas para diferenciá-la como a que “é capaz de contribuir para a construção de

direção política dos setores sociais que estão à margem do fazer político” (MELO NETO, 2004).

De acordo com esse autor:

[...] embora a categoria popular adquira uma plasticidade conceitual, ao pensá-la de forma dialética, no contexto de sua historicidade, algo é popular se tem origem nas postulações dos setores sociais majoritários da sociedade ou de setores comprometidos com suas lutas, exigindo-se que as medidas a serem tomadas beneficiem essas maiorias (MELO NETO, 2004, p. 158).

É no contexto do Nacional Desenvolvimentismo, sobretudo no governo de Juscelino

Kubitschek (1956-1961), que emergem, no Brasil, as raízes da educação popular. Conforme

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Bezerra (1984, p. 17) nesse período histórico surge “um movimento de expressão popular em

cujo interior se inscreveram as mais diversas iniciativas de cunho educativo”.

Segundo o autor:

Se por um lado a ênfase no nacionalismo e no progresso da fase desenvolvimentista fazia com que as instituições estatais ou paraestatais e as frações sociais nitidamente elitistas promovessem movimentos educativos para “disciplinar o preenchimento do papel social das camadas populares no interior do modelo de sociedade mantido pelas elites” [...], por outro lado o debate acerca de uma identidade cultural e a busca pela democratização da cultura permitiram a emergência de um movimento popular que posteriormente possibilitou a presença das expressões de cultura e de educação popular do setor universitário, o surgimento dos Centros Populares de Cultura – CPCs da UNE e das UEE e, paralelamente, as iniciativas da Igreja (como o Movimento de Educação de Base) e dos grupos de profissionais liberais (a exemplo dos Movimentos de Cultura Popular) (BEZERRA,1984, p. 17).

Para Bezerra (1984, p.33), as atividades educativas características dessa época

dividem-se em três grupos de atividades: alfabetização, educação de base e cultura popular.

Apesar de estarem relacionadas entre si, essas categorias, a autora nos diz:

[...] que as origens dos dois primeiros grupos (alfabetização e educação de base) estavam mais ligadas à instrução, à transmissão do saber compatível com o progresso e vinculadas à insuficiência e à ineficácia do ensino formal e dos seus sistemas, posteriormente foi que seus universos de trabalho seguiram no caminho pedagógico para conscientização das camadas populares, enquanto que o último grupo (cultura popular) esteve, desde o início, voltado para ‘a afirmação de uma cultura verdadeiramente nacional, a luta contra a invasão cultural, contra o imperialismo e a desnacionalização, a democratização pela valorização da expressão cultural e política das camadas populares (BEZERRA, 1984, p. 33).

Diante desse contexto, a autora considera (BEZERRA, 1984, p. 33-34) que o conjunto de

práticas de educação popular reveladas pelos movimentos educativos que se afirmam no período

de 1959/64 estava predominantemente voltado para o exercício da cidadania, para afirmação e

desempenho, pelas camadas populares, do papel que deveriam assumir no cenário sócio-político;

buscava a convocação de alinhamentos dos grupos populares em um movimento de resistência ao

imperialismo e não à integração dos indivíduos ao sistema e, ao mesmo tempo, propunha

desvendar os conflitos sociais e o reconhecimento das tensões existentes em nome da construção

de uma força de pressão suficiente para mudar as condições sociais postas.

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Assim, é a partir dos movimentos educativos voltados à hegemonia dos setores

populares do início dos anos de 1960 que nasce, no país, a educação popular sistematizada por

Paulo Freire, o qual a define como:

É exatamente a que, substantivamente democrática, jamais separa do ensino dos conteúdos o desvelamento da realidade. É a que estimula a presença organizada das classes sociais populares na luta em favor da transformação democrática da sociedade, no sentido da superação das injustiças sociais. É a que respeita os educandos, não importa qual seja sua posição e classe e, ao mesmo tempo, leva em consideração, seriamente, o seu saber de experiência feito, a partir do qual trabalha o conhecimento com rigor de aproximação aos objetos. [...] É a que não considera suficiente mudar apenas as relações entre educadora e educandos, amaciando essas relações, mas, ao criticar e tentar ir além das tradições autoritárias [...] critica também a natureza autoritária e exploradora do capitalismo (FREIRE, 2007, p. 103-105).

A educação popular nos moldes da perspectiva freireana é, ainda, enquanto prática

eminentemente política, a que se aproxima da comunidade e dos movimentos populares com os

quais aprende para a eles poder ensinar também.

Essa proposta educacional surge, pois, no terreno fértil das utopias de independência,

autonomia e libertação, que propunham um modelo de desenvolvimento baseado na justiça

social. Para esse modelo de educação popular a conquista do Estado era fundamental. Porém esse

processo foi interrompido pela brutal intervenção militarista e autoritária.

A educação popular refugiou-se, então, nas Organizações Não-Governamentais

[ONGs] e, alguns casos, na clandestinidade. Conforme Gadotti:

[...] desde então a educação popular tem-se constituído num paradigma teórico que trata de codificar e descodificar os temas geradores das lutas populares busca colaborar com os movimentos sociais e os partidos políticos que expressam essas lutas. Trata de diminuir o impacto da crise social na pobreza e de dar voz a indignação e desespero moral do pobre, do oprimido, do indígena, do camponês, da mulher, do negro, do analfabeto e do trabalhador industrial. Faz-se necessário lembrar que outras formas de educação foram denominadas de popular, mas que, na verdade, eram populistas, pois, embora também fossem direcionadas às classes subalternas não buscavam contribuir com a emancipação destas e sim com a reprodução da ideologia dominante (GADOTTI, 2000, p. 292).

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É evidente que a democratização da alfabetização das classes consideradas

subalternas é algo extremamente importante, mas não é suficiente para que uma educação seja

popular.

Na perspectiva freireana, é preciso que a educação popular vá além da

democratização da alfabetização; deve estar voltada para a conscientização da população,

conscientização de sua condição social e econômica na sociedade.

Uma educação em que haja, conforme Gadotti (2000, p. 293), em processo

sistemático de participação na formação, fortalecimento e instrumentalização das práticas e dos

movimentos populares com o objetivo de apoiar a passagem do saber popular ao saber orgânico,

ou seja, do saber da comunidade ao saber de classe na comunidade.

O autor assinala que a grande utopia da educação popular dos anos de 1960 visava à

conquista do Estado e a mudança radical da política econômica e social. E hoje, o que se assiste é

a educação popular dispersando-se em milhares de pequenas experiências, perdendo aquela

grande unidade teórica, mas ganhando em diversidade.

Para Barreiro (1980):

Não resta dúvida de que ocorreram modificações importantes em grupos e movimentos de Educação Popular. Desde o aparecimento das primeiras experiências continentais, até o momento atual, a maior parte dos grupos reformulou, às vezes drasticamente a sua fundamentação teórica, o sentido e a estratégia de sua ação, e aspectos da metodologia de mobilização e formação de quadros populares (BARREIRO,1980, p. 30).

Contudo, diante dessa diversidade de práticas que vem se identificando como

educação popular, emerge, por parte dos educadores desse campo, a preocupação com a

qualidade de tais atividades. Um exemplo disso são as conclusões do Seminário Taller sobre

educação popular na América Latina e no Caribe, realizado em La Paz, Bolívia, no ano de 1990,

cujos registros no livro “Educação popular” – utopia latino-americana demonstrou que as maiores

preocupações dos participantes deste seminário eram oriundas das crises tanto do discurso como

da prática em educação popular, que se expressam, por um lado, na insuficiência do discurso para

falar e dar conta da ação e, por outro, nos problemas que afetam as práticas e especificidades no

contexto social e político da região.

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Tais análises não negam os avanços da educação popular, entretanto, apontam os

desafios que emergem para esse paradigma educativo em face da realidade contemporânea da

América Latina.

A partir de um olhar acerca da especificidade e rigorosidade interna, os participantes

do Seminário Taller tanto constataram uma rica variedade de práticas que se identificam como

educação popular como a ausência de sistematizações de tais atividades, ou seja, o

desconhecimento da qualidade destas.

O consenso dessas discussões reflete que, dada a tendência geral da educação

popular, de um discurso ligado a uma leitura das dimensões estruturais da dominação e

funcionamento da sociedade, restou pouco espaço para análises teóricas dos problemas cotidianos

e processos de constituição da subjetividade dos sujeitos. O que demonstrou, para os

participantes, um descuido no que tange à compreensão da natureza simbólica das práticas

educativas, sua especificidade pedagógica e as características dos cenários e processos cotidianos

nos quais estas transcorriam. De qualquer forma, dada essa preponderância das questões políticas

sobre as questões psicossociais entendemos que isso tenha sido naquele momento, reflexo do

próprio processo, pois segundo Barreiro (1980, p. 32) “toda prática educativa tem uma

explicação política” e ainda:

Uma ação transformadora de estruturas sociais, compreendida como tarefa de responsabilidade popular, é tanto mais autêntica e eficaz quanto mais estabelecidas sobre a viabilidade de participação e crítica de seus agentes. A Educação Popular pode ser, concretamente, um instrumento de desenvolvimento da consciência crítica popular, na medida em que aporta instrumentos para que os agentes populares de transformação sejam capazes de viver ao longo de sua ação, essa dinâmica do concreto na relação ação-reflexão [...] (BARREIRO, 1980, p. 32).

O problema é que o foco na prática cotidiana desconectada do todo social oculta a

realidade, uma vez que esta não se manifesta de maneira imediata, através da aparência. Ao se

apegar à micronarrativa em detrimento da explicação globalizante muitos educadores passam a

considerar apenas a questão da cotidianidade e excluir a historicidade, a enfatizar a

individualidade, a alteridade, a diferença regional, local, rejeitando as concepções pedagógicas

direcionadas às mudanças estruturais.

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Segundo Gadotti e Torres (1994, p. 49), os debates do Seminário Taller visavam

melhorar a qualidade dos processos educativos que vinham sendo implementado, o que implica,

por um lado, analisar com maior profundidade os processos de aprendizagem que se promovem o

problema da transmissão de conhecimento e sua articulação com o saber popular, a transferência

dos recursos simbólicos e materiais e a relação de autonomia ou dependência que estabelecem as

Organizações Não-Governamentais – ONGs com as organizações sociais, por outro lado,

constatar como o problema das competências do Estado surge com importância no debate dos

educadores populares.

Os temas abordados como fundamentais nas conclusões advindas das discussões

realizadas no mencionado seminário, os quais ainda hoje nos levam a uma maior e melhor

reflexão sobre a educação popular, foram os seguintes:

a) educação popular e a construção de um novo discurso;

b) questões metodológicas da educação popular;

c) a transformação de saberes e o problema da autonomia;

d) cultura e educação popular;

e) Estado, poder e educação popular;

f) educação popular e escola pública;

g) gênero e educação popular e,

h) formação dos educadores populares.

Assim sendo, os educadores concluíram que, perante a diversidade de temas e, ao

mesmo tempo, dos urgentes desafios, resulta a necessidade de realizar maiores investigações

sobre o trabalho da educação popular. Não apenas da realidade socioeconômica, mas, sobretudo,

do mundo simbólico da cultura, das concepções do mundo, valores, etc. Investigações que levem

em consideração as diferenças.

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O Seminário Taller reiterou que as agências de cooperação deveriam desenvolver

estratégias que permitissem superar a dissociação entre fazer educação popular e investigar a

educação popular.

Em outras palavras, devia-se trabalhar para evitar a já conhecida divisão entre teoria e

prática, problemática que aflige o campo da educação como um todo, até os dias atuais. De

acordo com Arantes:

[...] a escola fica destinada a ser um depósito (grifo nosso) de cultura, onde as pessoas vê buscar o que poderiam encontrar em qualquer biblioteca e, de modo geral, os educadores sabem que armazenar conhecimentos, nem sempre implica em aprendizagem significativa, ou seja, que mobiliza significados (pensar) e sentimentos (sentir) associados a experiências (agir) (ARANTES, 1993, p. 7).

Ademais, afirmou o quanto é imprescindível que o educador popular abarque outros

níveis de conhecimento, e um deles seria a reformulação do poder. Isso porque não se pode

afirmar a tentativa da criação de uma sociedade alternativa se não ocorre, na prática, a superação

da concepção clássica do poder vigente na sociedade, continua o mesmo:

O papel do educador, [...] tem sido o de um mero transmissor de conhecimentos, o que o torna um profissional desrespeitado [...] por ser visto como um cúmplice de um sistema educacional que exige apenas um rendimento, produtividade e eficácia na utilização do intelecto (ARANTES, 1993, p. 7).

Ressalte-se, porém, que nesse contexto dos anos 1990, Paulo Freire já destacava a

existência de um equívoco nos novos debates sobre a educação popular: o de que a “boa”

educação popular é a que se despreocupa com o desvelamento da realidade, com a razão de ser

dos fatos, reduzindo a prática educativa ao ensino puro dos conteúdos. “Este equívoco é tão

carente de dialética quanto o seu contrário: o que reduz a prática educativa a puro exercício

ideológico” (FREIRE, 2007, p. 110).

Para Freire, preocupar-se com o ensino puramente técnico, com a transmissão de um

suposto conjunto de conhecimentos necessários às classes populares para a sua sobrevivência é

típico do discurso neoliberal e, mais do que uma postura politicamente conservadora, esta é uma

posição epistemologicamente insustentável. Arantes analisa essa metodologia e aponta para outro

procedimento.

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A práxis pedagógica convencional, apesar de seus inegáveis aspectos positivos, tem sido considerada insatisfatória por professores e alunos no cotidiano educacional, para o atendimento de uma população caracterizada por viver num ambiente que muda com bastante frequência. Essas frequentes e rápidas transformações geram insatisfações que implicam na busca de novas alternativas para o ensino, diferenciadas das monótonas aulas carregadas de exposição verbal, de tal modo a dinamizar as relações professor-aluno e aluno-aluno) (ARANTES, 1993, p. 8).

Apesar do mencionado equívoco, toda literatura da educação popular registra,

conforme Sales (1999, p. 72), a preocupação com a transformação da realidade. É por isso que

não se deve tomar a práxis como uma categoria filosófica obsoleta no pensamento pedagógico;

ao contrário, ela está mais do que atual, tendo em vista que, de acordo com Vázquez (1977):

[...] une compreensão teórica à ação real, com vistas à transformação radical da sociedade. (...) a práxis é ‘atividade material do homem que transforma o mundo natural e social para fazer dele um mundo humano (VÁZQUES, 1977, p. 03).

É ele quem vai dizer que o homem comum encontra-se imbricado numa rede de

relações sociais e enraizado num determinado terreno histórico e que, portanto, sua própria

cotidianidade está condicionada histórica e socialmente, e o mesmo se pode dizer de sua própria

atividade prática. Ou seja, somente a partir da superação do ponto de vista espontâneo ou

instintivo, isto é, da consciência comum, é que se pode unir de modo consciente pensamento e

ação.

A educação popular, na tentativa de contribuir com o desenvolvimento da capacidade

crítica das classes consideradas subalternas, busca essa compreensão teórica, ao mesmo tempo

em que, na luta pelo protagonismo dos sujeitos sociais, também está buscando a ação real desses

sujeitos. Isso significa dizer que esse modelo educativo, enquanto práxis educativa visa estimular

a práxis social. Conforme Freire (1977, p. 84) a própria “educação se re-faz constantemente na

práxis”.

Nos anos 1990 e seguintes assistimos ao rearranjo das forças econômicas e sociais do

capitalismo num fenômeno que ficou conhecido como Globalização. Ao analisar a relação entre

globalização e educação Dale (2004) entende que é “através da influência sobre o Estado e sobre

o modo de regulação que a globalização tem os seus mais óbvios e importantes efeitos sobre os

sistemas educativos nacionais” (DALE, 2004, p. 441).

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Apesar dessa influência, afirma que as variações nacionais continuam fortes, a cultura

mundial está longe de ser homogênea e que, portanto, a incorporação de um único modelo pode

acontecer a um nível meramente ritual. Daí a relevância das políticas e práticas educativas no

processo de transformação da realidade imposta pelas classes dominantes.

Enfim, diante de uma nova realidade mundial, mas ainda marcados por heranças

políticas e educacionais excludentes e opressoras, buscamos reconstituir a utopia e a prática de

uma educação de jovens e adultos sustentada sobre as premissas da Educação Popular e da

Emancipação, com a conjunção de formas e mediações de educação que recuperem os avanços e

instrumentos já constituídos e apropriem-se de novas metodologias para desvelar as necessidades

sociais, bem como as disposições subjetivas e intersubjetivas inalienáveis. Esse será o propósito

de nosso próximo capítulo, aliar o resgate das premissas e mediações libertadoras do pensamento

de Paulo Freire, no contexto presente, com as originais e singulares mediações do pensamento de

Jacob Levy Moreno. Esperamos que esse desafio fortaleça nossas convicções e frentes de lutas e

enfrentamentos!

Diante de contínuas e eficientes formas de exclusão social e escolar presentes na

tradição educacional de nosso país a Educação de Jovens e Adultos passou a ser a mais próxima e

real forma de superar as contradições estruturais e estigmas e repor a possibilidade da

emancipação. Dessa forma, retomamos o pensamento de Paulo Freire e sua atualidade, para

postá-lo com alguma originalidade, junto à hermenêutica existencial e psicológica de Moreno,

predominantemente coletivista e solidária, na direção de novos horizontes para a Educação de

Jovens e Adultos no nosso meio.

1.4. A Pedagogia da Autonomia e seus Saberes Necessários

Escrito na maturidade e no auge da sabedoria de Paulo Freire, sua última obra

publicada em vida, “Pedagogia da Autonomia”, propõe a discussão sobre a formação docente ao

lado da reflexão sobre a prática educativo-progressiva em favor da autonomia do Ser dos

educandos, ou seja, educar para a emancipação no sentido de conferir a eles a possibilidade de

reconhecer-se como sujeito e interferidor na realidade em que está inserido.

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Freire salienta nessa obra a importância do formando, (professor/educador) se

convencer que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para sua

produção ou a sua construção (FREIRE, 1996, p. 22).

O livro “Pedagogia da Autonomia” apresenta propostas de práticas pedagógicas

necessárias à educação como forma de construir a autonomia dos educandos, valorizando e

respeitando sua cultura e seu acervo de conhecimentos empíricos junto à sua individualidade.

Paulo Freire defende a prática pedagógica que busca formar eticamente os

educadores, conscientizando-os sobre a importância de estimular os educandos a uma reflexão

crítica da realidade em que está inserido.

O livro é dividido em três capítulos:

1) Não há docência sem discência;

2) Ensinar não é transferir conhecimento;

3) Ensinar é uma especificidade humana.

Cada capítulo é subdividido em nove tópicos os quais trazem o que o ensinar exige.

No decorrer do texto tentaremos trazer as idéias principais de cada capítulo, explicitando, em

cada tópico, o que o ensinar exige.

No primeiro capítulo, Não há docência sem discência, Freire ressalta a importância

de se considerar os saberes indispensáveis a prática docente para todos os educadores,

independente da sua opção política ideológica, bem como a importância de reflexões deste tipo,

quando pensamos em formação docente e prática educativa-crítica.

O sujeito que vai ser formado não deve considerar-se como um paciente que recebe

os conhecimentos-conteúdos-acumulados pelo sujeito que sabe. Pelo contrário, é preciso ficar

claro, que embora diferentes entre si, educador e educando, quem ensina aprende ao ensinar e

quem aprende ensina ao aprender (FREIRE, 1996, p.27).

Como Freire, acreditamos que um dos entraves para a educação libertadora

emancipatória seja a prática “bancária”. Freire definiu como educação “bancária” aquela em

que a única margem de ação que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos,

guardá-los e arquivá-lo (FREIRE, 1989, p.58). Freire critica e recusa o ensino “bancário” já que

este inibe o desenvolvimento da curiosidade epistemológica, sem a qual não se alcança o

conhecimento. Paulo Freire apresenta a possibilidade do educador e do educando poderem

contornar a situação: é a força criadora do aprender de que fazem parte a comparação, a

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repetição, a constatação, a dúvida rebelde, a curiosidade não facilmente satisfeita, que supera os

efeitos negativos do falso ensinar (FREIRE, 1996, p.25).

Assim, como possibilidade de formação de discentes críticos, que não aceitem ser

meros depositários de conhecimento, no primeiro tópico do primeiro capítulo da obra Pedagogia

da Autonomia o autor discute que ensinar exige rigorosidade metódica. O educador deve reforçar

nos educandos sua capacidade crítica, sua curiosidade, sua insubmissão. Em seguida trata da

questão de que ensinar exige pesquisa

Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino [...]. Enquanto ensino continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando, intervenho intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade (FREIRE, 1996, p.29).

No terceiro tópico, ensinar exige respeito dos educandos, Freire traz a questão do

quanto é importante aproveitar a experiência que os alunos trazem para a sala de aula, seus

conhecimentos. É fundamental discutir com estes, a razão de ser de alguns de seus saberes

socialmente construídos na prática comunitária, em relação com o ensino dos conteúdos. Freire

traz a análise que ensinar exige criticidade, destacando que a superação se dá na medida em que

a curiosidade ingênua, se criticiza (FREIRE, 1996, p.31). Levanta a discussão a respeito de que

o ensinar exige estética e ética, enfatizando que a passagem da ingenuidade à criticidade tem de

ser feita em conjunto com a rigorosa formação ética, ao lado sempre da estética.

Freire assevera para a responsabilidade de compreender a figura do educador como

referência pessoal para o educando:

Ensinar também exige corporeificação das palavras pelo exemplo. É necessário que o professor, que verdadeiramente ensina, negue como falsa a fórmula “faça o que eu mando e não faça o que eu faço”. Quem pensa certo sabe “que as palavras a que falta a corporeidade do exemplo, pouco ou quase nada valem”. Pensar certo é fazer certo (FREIRE, 1996, p. 34).

Paulo Freire (1996) prossegue enfatizando que

É próprio do pensar certo a disponibilidade ao risco, a aceitação do novo e a rejeição a qualquer forma de discriminação. A grande tarefa do sujeito que pensa certo não é transferir, depositar, oferecer, doar ao outro, tomado como paciente de seu pensar, a inteligibilidade das coisas, dos fatos, dos conceitos. A tarefa coerente do educador que pensa certo é, exercendo como ser humano a irrecusável prática de inteligir, desafiar o educando com quem se comunica e a quem comunica, produzir sua compreensão do que vem sendo comunicado (FREIRE, 1996, p. 38).

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Desta forma, para o autor (FREIRE, 1996, p. 38) ensinar exige reflexão crítica sobre

a prática. É necessária uma rigorosidade metódica, a qual vai caracterizar a curiosidade

epistemológica, levando o sujeito ao verdadeiro aprender.

Para finalizar o primeiro capítulo, Freire destaca que o ensinar exige reconhecimento

e a assunção da identidade cultural, como podemos ver

Uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as condições em que os educandos em suas relações uns com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiam a experiência profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar (FREIRE, 1996, p. 41).

O segundo capítulo, Ensinar não é transferir conhecimento, destaca-se a ideia de que

saber ensinar é criar as possibilidades para a sua própria produção ou sua construção (FREIRE,

1996, p.47). Para Freire o professor precisa estar aberto às indagações, à curiosidade, às

perguntas dos alunos, as suas inibições; um ser crítico e inquiridor, inquieto em face da tarefa

de ensinar e não a de transferir conhecimento.

Para isso precisamos estar certos, de que, segundo Freire:

Ensinar exige consciência do inacabamento do ser, que é próprio da experiência vital do ser humano, é por meio desta consciência de inacabamento, que o ser entra num permanente movimento de busca. É nesta inconclusão do ser, que vemos a educação como processo permanente. Por sermos seres inacabados, devemos atentar ao fato que somos condicionados (FREIRE, 1996, p.47).

Deste modo, ensinar também exige o reconhecimento de ser condicionado. A

possibilidade que temos de ir além é que diferencia o ser condicionado do ser determinado.

Passamos assim, a ser sujeito e não apenas objeto da nossa história, pois não devemos ver

situações como fatalidades e sim estímulo para mudá-las.

No terceiro tópico do segundo capítulo, ensinar exige respeito à autonomia do ser do

educando, o que significa respeito à dignidade de cada um, Paulo Freire alerta para um ponto

crucial na vida escolar dos alunos: as relações no ambiente escolar. Segundo Freire:

O professor que desrespeita a curiosidade do educando, o seu gosto estético, a sua inquietude, a linguagem, mais precisamente, a sua sintaxe e a sua prosódia; o professor que ironiza o aluno, que o minimiza, que manda que “ele se ponha em seu lugar” ao mais tênue sinal de sua rebeldia legítima, tanto quanto o professor que se exime do cumprimento de seu dever de propor limites à liberdade do aluno, que se furta ao dever de ensinar, de estar respeitosamente presente à

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experiência formadora do educando, transgride os princípios fundamentalmente éticos de nossa existência (FREIRE, 1996, p. 59-60).

Observa-se então, que ensinar exige bom senso. O educador necessita vigiar a todo o

momento seu bom senso, pois, na avaliação de sua prática:

O professor autoritário, o professor licencioso, o professor competente, sério, o professor incompetente, irresponsável, o professor amoroso da vida e das gentes, o professor mal-amado, sempre com raiva do mundo e das pessoas, frio, burocrático, racionalista, nenhum desses passa pelos alunos sem deixar sua marca (FREIRE, 1996, p. 66).

O respeito à pessoa do educando, à sua curiosidade, à sua timidez, não deve ser

suscetível a procedimentos inibidores que desrespeite os educandos em sua identidade. Assim,

(FREIRE, 1996, p. 68) ensinar também exige humildade, tolerância e luta em defesa dos direitos

dos educandos.

No tópico seguinte, ensinar exige também apreensão da realidade, ou seja, a

capacidade de aprender, não apenas para nos adaptar, mas, sobretudo para transformar a

realidade, para nela intervir, recriando-a (FREIRE, 1996, p. 69).

Freire ressalta a impossibilidade do educador se colocar frente aos educando com

neutralidade política Os docentes precisam assumir sua posição política diante da realidade, já

que a prática educativa é política e não neutra. Em nome do respeito aos alunos, os educadores

não devem omitir-se, ocultando sua opção política, assumindo uma neutralidade que não existe

(idem).

No sétimo tópico, ensinar exige alegria e esperança, destaca-se a relação entre a

alegria necessária à atividade educativa e a esperança. A esperança de que professor e alunos

juntos podem aprender e ensinar, produzir e juntos igualmente resistir aos obstáculos à alegria

(FREIRE, 1996, p.74).

Dentro do processo de esperança apreende-se que ensinar exige a convicção de que a

mudança é possível. O papel do ser humano no mundo é o de buscar intervir, não apenas

constatar os fatos que ocorrem. Constatando, nos tornamos capazes de intervir na realidade,

tarefa incomparavelmente mais complexa e geradora de novos saberes do que simplesmente a de

nos adaptar a ela (FREIRE, 1996, p.77).

Para que a mudança ocorra é necessário que o ser se inquiete. Para Freire isto vai ser

conseguido por meio da curiosidade do educando. Com isso, ensinar exige curiosidade. Se a

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curiosidade estiver domesticada, o sujeito alcança a memorização mecânica do seu objeto de

estudo, mas não aprendizado real (idem).

Freire defende o estimular da pergunta, da reflexão crítica em lugar da passividade

em face da explicação discursivas do professor. Com isso o autor não nega a importância de

momentos explicativos, narrativos em que o professor expõe ou fala do objeto. Na verdade

destaca-se que o educador e educando saibam que sua postura é dialógica, aberta, curiosa, é não

passiva

É importante que professor e alunos se assumam epistemologicamente curiosos. O bom professor é o que consegue enquanto fala, trazer o aluno até a intimidade do movimento de seu pensamento. Sua aula é assim um desafio e não uma “cantiga de ninar”. Seus alunos cansam, não dorme. Cansam porque acompanham as idas e vindas de seu pensamento, surpreende suas pausa, suas dúvidas, suas incertezas (FREIRE, 1996, p. 86).

O terceiro capítulo, Ensinar é uma especificidade humana, inicia a discussão

explicitando que ensinar exige segurança, competência profissional e generosidade. A auto

segurança tem uma relação direta com a competência profissional. O professor que não leva a

sério sua formação, não tem força moral para coordenar suas atividades. Também, (FREIRE,

1996, p. 87) uma qualidade indispensável aos professores nas suas relações com as liberdades é

a generosidade.

No primeiro tópico do terceiro capítulo, Freire destaca que outro saber indispensável

é não separar prática de teoria, autoridade de liberdade, respeito ao professor de respeito aos

alunos, ensinar de aprender. Desta forma, ensinar exige comprometimento com a tarefa de

professor, o qual vai buscar uma melhora constante no desempenho. Este desempenho deve ser

avaliado tanto pelo professor quanto pelo aluno. Cabe ao professor estar atento aos sinais que o

aluno dá à respeito das atividades desempenhadas por este professor frente aos alunos. Ensinar

exige compreender que a educação é uma forma de intervenção no Mundo. Intervenção que vai

além do conhecimento dos conteúdos ensinados e/ou aprendidos; implica tanto o esforço da

reprodução da ideologia dominante quanto o seu desmascaramento (FREIRE, 1996, p. 95).

De acordo com Freire Ensinar exige liberdade e autoridade. Neste tópico, discute-se

precisamente a questão dos limites sem os quais a liberdade se perverte em licença e a autoridade

em autoritarismo. Dentro desta liberdade e autoridade, Paulo Freire coloca que

O educador precisa conscientizar-se da impossibilidade da educação ser neutra, assim precisa forjar um saber especial, que motiva e sustenta a luta e a tomada de decisões. Isto implica que “ensinar exige tomada consciente de decisões” se a

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educação não pode tudo, alguma coisa fundamental a educação pode. “Se a educação não é a chave das transformações sociais, não é também simplesmente reprodutora da ideologia dominante” (FREIRE, 1996, p.112).

Dentro do processo educativo é fundamental saber escutar, ensinar exige saber

escutar. Escutar é obviamente algo que vai além da possibilidade auditiva de cada um. Escutar

significa a disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para a abertura à fala do

outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro (FREIRE, 1996, p. 114).

Segundo Freire Ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica:

Os professores devem estar atentos ao poder do discurso ideológico. A ideologia está diretamente ligada a capacidade de ocultação da verdade dos fatos, com o uso da linguagem para penumbrar a realidade, ao mesmo tempo em que nos tornam míopes e nos ensurdece. Assim, aceitamos passivamente as coisas como fatalidades, sem indagações. “Ensinar exige disponibilidade para o diálogo”0. A prática do docente deve ser permeada pela abertura aos outros, pela disponibilidade curiosa à vida, a seus desafios (FREIRE, 1996, p.116).

O autor finaliza este capítulo e essa sua obra salientando que ensinar exige querer

bem aos educandos. Este querer bem significa ser afetivo, expressar a afetividade sem sustos e

medos. O educador precisa ser autêntico na relação com os educandos (FREIRE, 1996, p.118).

De forma geral, acreditamos poder observar pela análise da obra “Pedagogia da

Autonomia” de Paulo Freire, que a prática educativa é um constante exercício em favor da

construção e do desenvolvimento da autonomia de professores e alunos, não obstante

transmitindo saberes, mas dando significados aos saberes construídos conjuntamente. Esse

exercício, o ensinar, quando praticado da forma ensinada por Paulo Freire, transcende ao

ambiente escolar e se reconstrói constantemente pela vida afora, porque educador e educandos

apreenderam a beleza da Sabedoria. Como seres inacabados, professores e alunos, sabedores

humildes desta condição humana, se engrandecem na Constância da busca do Conhecer. Sujeitos

conscientes de seu estar no mundo... Sujeitos libertados da ignorância do não conhecer-se

transformador de sua realidade. Sujeitos! Emancipados!

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2. CAPÍTULO II: O PSICODRAMA E A EDUCAÇÃO: FUNDAMENTOS E POSSIBILIDADES INSTITUCIONAIS E POLÍTICAS.

O presente capítulo tem como objetivo contextualizar a original contribuição de Jacob

Levy Moreno para a educação, além de constatar sua reconhecida riqueza na tradição da

Psicologia. Essa contextualização buscará apresentar uma breve biografia de Moreno, com

destaque para os principais fatos e acontecimentos que engendraram sua singular compreensão da

Psicologia e de suas possibilidades, bem como terá como intenção conquistar a apropriação de

suas principais categorias e conceitos. Há uma imensidão de conceitos, de identidades e

grandezas distintas no pensamento de Moreno, escolhemos algumas delas em função de sua

potencial exploração no campo da EJA.

O Psicodrama pode ser definido como método de pesquisa e intervenção nas relações

interpessoais, nos grupos, entre grupos ou de uma pessoa consigo mesma, a ação psicodramática

mobiliza um grupo para vivenciar a realidade a partir do reconhecimento das diferenças e dos

conflitos, facilitando a busca de alternativas para a resolução do que é revelado, expandindo os

recursos disponíveis.

De acordo com BERMUDEZ (1970, p. 15) o Psicodrama pode ser considerado como

um dos meios psicoterápicos mais inovadores, pois suas técnicas desenvolvem pela ou na

representação dramática a abordagem e a exploração das mais genuínas qualidades e contradições

do ser humano e de seus vínculos. A ação unida à palavra possibilita o mais completo

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desdobramento do conflito, do drama que ocupa o protagonista no espaço dramático. Na cena o

indivíduo pode representar seus conflitos passados e presentes e também externar seus temores,

suas expectativas, seus projetos e dúvidas sobre o futuro explorando suas relações com o presente

e o passado.

Dessa forma, o Psicodrama possibilita acontecer, em um ambiente grupal na

ocorrência do processo de ensino e aprendizagem, podendo ser na escola institucionalizada ou em

qualquer outro espaço, as condições psicológicas e afetivas para que as atividades se

desenvolvam e possam resultar em aprendizados significativos, diferentemente do ambiente

formal da maioria das escolas que conhecemos, como nos situa Arantes (1993, p.8):

A escola tem sido um espaço onde os alunos recebem um acúmulo de informações, cuja maior parte nunca terá utilidade no decorrer de suas vidas. A preocupação com a formação de seres humanos aptos a viver no seio de uma sociedade, que deveria ser a função real do sistema educacional, não só tem sido negligenciada pela grande maioria dos educadores, como também incentivada por uma sociedade mais interessada em quantidade do que em qualidade.

O autor prossegue em sua análise sobre o ambiente escolar e nos alerta:

Que a atrofia dos aspectos sentir e agir tem sido responsável, em parte, pelo progressivo aumento da frieza emocional na relação entre as pessoas, mais especificamente no meio educacional, devido as restrições ao uso do corpo (que é a sede de nossos sentimentos) durante as aulas, onde o intelecto (que é a sede de nossos pensamentos) é enfatizado (Idem).

Arantes (1993, p.10) ressalta que se pode responsabilizar a educação formal pela

passividade “patológica” dos alunos que ficam um grande período sem poder gastar suas

energias. Ele busca nas palavras se um saudoso ex- diretor (1977) da Faculdade de Educação da

Unicamp, Professor Montezuma a corroboração para suas afirmações. Montezuma teorizava que

“o que salva a integridade psicológica de nossos alunos são os momentos de intervalo dentro da

escola”.

As consequências da falta de comprometimento da maioria dos envolvidos com a

instituição escolar em promover uma metodologia menos passiva, apontada por Arantes (1993)

ultrapassam os “muros da escola.” Dessas crianças, adolescentes e jovens, as quais são exigidas

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demasiadas “disciplina” pode-se esperar respostas inadequadas, já que necessitam canalizar as

energias próprias de sua fase de desenvolvimento para os objetivos definidos pela escola.

O Psicodrama, em suas nuances, pode ser utilizado como uma “ferramenta” na

construção de um espaço escolar mais próximo dos anseios dos nossos alunos. Seu dinamismo

pode servir como estratégia para que a aprendizagem aconteça dentro das relações que o grupo

faz com o conteúdo estudado, com o seu corpo e com suas emoções transpassando por todas as

dimensões tanto as objetivas quanto as subjetivas. Para Arantes (1993):

O Psicodrama, sem abandonar as técnicas verbais, acrescentou as técnicas de ação e, sem desrespeitar as individualidades, faz atendimento individual, de casal, de família, enfatizando uma preparação para o trabalho em grupo (ARANTES, 1993, p. 11).

A teoria psicodramática consiste num método de investigação e tratamento de

problemas psicológicos criado pelo médico romeno Jacob Levy Moreno no princípio do século

XX. Essa teoria reúne em sua base teórica elementos do teatro e da psiquiatria e tem como

recurso de ação a dramatização (MENEGAZZO, 1994, p.69).

Formulado para ser trabalhado em grupo, dentro de um enfoque terapêutico ou social,

o psicodrama foi inicialmente dirigido a pacientes com comprometimento psiquiátrico ou

emocional, que eram incentivados a representar com textos improvisados. Moreno acreditava que

a dramatização era o método por excelência para se resgatar a espontaneidade e chegar ao

autoconhecimento.

O corpo é uma peça-chave, pois, de acordo com a técnica, os pensamentos e as

emoções se expressam em atos organizados e representados no palco. Para Moreno (1993, p.

156), “o jogo psicodramático possibilita que o indivíduo entre em contato com seus conflitos, que

antes permaneciam no inconsciente”. Durante as sessões de psicodrama, “os participantes são

estimulados a expressar livremente as criações de seu mundo interno, seja na produção mental

de uma fantasia concretizada em cena ou numa determinada atividade corporal”.

Não há como pensar o Psicodrama, seus instrumentos, a estrutura de uma sessão,

desvinculado de papéis e atores que os vivenciam. Toda dramatização, jogo ou qualquer técnica

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psicodramática somente pode acontecer quando papéis são colocados em ação e, através destes,

personagens interatuam vinculando-se entre si como interlocutores.

No Psicodrama, encontrando-se com seu eu em papéis imaginários ou

correspondentes a funções assumidas dentro da realidade social, espera-se que o indivíduo

recupere a capacidade de realizar transformações autênticas em sua vida, nas suas relações e no

meio onde vive.

2.1. Breve biografia do criador do Psicodrama

Jacob Levy Moreno (1889-1974), criador do Psicodrama e do Sociodrama, dedicou-

se grande parte de sua vida à investigação psicológica e social, foi um homem de ampla cultura,

de fortes ideias religiosas e filosóficas, amante do teatro e incansável investigador do ser humano

e de seus vínculos afetivos (FOX, 2002, p.17).

Aos cinco anos de idade mudou-se com a família para Viena e foi neste local que

vivenciou a brincadeira de ser deus. Nessa brincadeira, em que ele e várias outras crianças

jogavam com o papel de ser deus e os anjos, Moreno estava sentado no "trono de deus", uma

cadeira em cima de caixotes empilhados sobre uma mesa e um dos "anjos" solicitou-lhe que

voasse. Ele atendeu e acabou caindo no chão fraturando o braço direito.

Aos 28 anos, Moreno formou-se em Medicina. Logo se interessou por teatro. Até aos

31 anos de idade Moreno fez parte de um grupo religioso que criou a Religião do Encontro. Eles

expressavam sua rebeldia diante dos costumes estabelecidos usando barbas, vivendo pelas ruas à

maneira dos mais pobres e procurando novas formas de interar com as pessoas. Neste tempo ele

ia ao jardim de Viena, e brincava de improviso com as crianças.

Em 1921, criou o Teatro da Espontaneidade. A ideia era de fazer uma apresentação

espontânea sem decorar falas, era feito tudo no momento. Nessa experiência, ele criou o Jornal

Vivo, que ele e o grupo dramatizavam o jornal diário.

Depois de anos trabalhando no hospital, usando o teatro da espontaneidade, criou o

Teatro Terapêutico. Fazia um teatro de vanguarda para a época que experimentava revoluções

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nesta arte. Tendo descoberto o valor terapêutico do teatro transformou o Teatro terapêutico em

Psicodrama terapêutico.

O Psicodrama surgiu então, com o intento de tratar e curar o público de uma

enfermidade, uma síndrome cultural e patológica que o grupo compartilhava e que afligia a

sociedade.

Em 1925, Moreno emigrou para os Estados Unidos e foi nesse país que Moreno

introduziu o termo Psicoterapia de Grupo e fez estudos para a mensuração das relações

interpessoais criando a Sociometria.

Faleceu em Beacon, em 14 de maio de 1974, aos 85 anos de idade e pediu que em sua

sepultura fossem gravadas as seguintes palavras: “Aqui jaz aquele que abriu as portas da

Psiquiatria à alegria.” Não há dúvidas que ele tinha consciência de sua atuação e de sua original

forma de encarar a vida!

Podemos perceber na história da vida de Jacob Moreno que a origem do Psicodrama

sempre esteve relacionada à arte e que também se tratava de uma pessoa incomum. Fox diz que:

A despeito do sentido de grandeza, de genialidade, mesmo, vivenciado por muitos que vieram para sua órbita, entretanto, Moreno tinha uma personalidade problemática. Talvez, especialmente, por ter sido tão criativo, sua megalomania normalis não conheceu limites (FOX, 2002, p. 25).

Segundo Marineau (1992, p. 59), na juventude, Moreno era um homem religioso, teve

como influência o Hassidismo, o existencialismo e o humanismo. Sócrates, Dante, Kierkegaard,

Nietzsche e Bergson foram alguns dos autores lidos pelo criador do Psicodrama. Moreno também

foi colaborador da Daimon Magazine, revista existencialista e expressionista que contava

também com Martin Buber, Max Scheller, Jakob Wasserman, Kafka e outros.

Jacob Levy Moreno nos deixou um legado teórico amplo e relevante, porém, mais

que isso ele nos apresentou uma imensurável proposta de viver de maneira plena e absoluta, se

acreditarmos e nos propusermos a isso, faremos muito mais por nossa ilimitada existência.

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2.2. Psicodrama: principais conceitos e técnicas

Com a leitura das obras de Jacob Levy Moreno, é possível aceitar a ideia que o

psicodrama possui um grande conteúdo emocional, pois surgiu como uma nova dinâmica e

inovadora linha de investigação para o conhecimento e terapia dos conflitos psicológicos.

O Psicodrama possui o conceito de espontaneidade-criatividade; a teoria dos papeis; a

psicoterapia grupal como pontos básicos da sua teoria, além de outros como: Tele (capacidade de

se perceber de forma objetiva o que ocorre nas situações e o que se passa entre as pessoas),

Empatia (tendência para se sentir o que se sentiria caso se estivesse na situação e circunstâncias

experimentadas pela outra pessoa.), Co-inconsciente (vivências, sentimentos, desejos e até

fantasias comuns a duas ou mais pessoas, e que se dão em "estado inconsciente".) e Matriz de

Identidade (lugar do nascimento).

Além desses conceitos, considerando que sobre alguns deles trataremos mais

detalhadamente no decorrer desse capítulo, a teoria psicodramática compreende conceitos como,

sociodinâmica, sociometria, sociatria, entre outros:

A sociodinâmica – se interessa pela dinâmica dos grupos e utiliza como método o

role playing ou o jogo de papeis.

A sociometria – visa medir as relações entre os membros do grupo evidenciando

as preferências e evitações presentes nas relações grupais. Utiliza como método o

teste sociométrico.

A sociatria – busca tratar as relações grupais e utiliza três métodos: o sociodrama,

a psicoterapia de grupo e o psicodrama.

A grandeza do universo teórico que constitui o Psicodrama criado por Jacob Levy

Moreno nos desperta para a necessidade de agrupá-los nesse trabalho, de forma que possamos

selecionar aqueles que nos parece de maior e menor interesse para a nossa dissertação, porém, há

também aqueles que, pela sua relevância, não poderiam ser abreviados, dessa forma, calculamos

divisá-los de maneira sequencial, relacionando-os entre si como é próprio da proposta moreniana.

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2.2.1. Teoria dos papéis

De acordo com Holanda (1998) etimologicamente diversos termos dão origem à

palavra papel com diferentes sentidos. O termo vem do latim medieval rotulus (derivado de

rota = roda) que pode significar tanto "uma folha enrolada contendo um escrito", bem como

"aquilo que deve recitar um ator numa peça de teatro".

No sec. XI o termo era utilizado também no sentido de "função social", "profissão".

O termo francês "rôle", o inglês "role" e o castelhano "rol" igualmente têm sua origem na mesma

etimologia latina "rotulus".

A palavra papel na língua portuguesa, etimologicamente, vem do grego papyros, e do

latim papiro. Papiro designava um arbusto do Egito de cuja entrecasca se fazia o papel, obtendo-

se o material para a escrita.

O significado de rôle é o de uma folha contendo um escrito e o de papel o material

utilizado na confecção da folha. Da mesma forma, a palavra portuguesa papel significa, de modo

geral, o material utilizado para a escrita. Constata-se que os significados originais de rotulus

foram incorporados à língua portuguesa pela palavra papel. Isso porque, além de indicar o

material utilizado na escrita (papiro), papel refere-se também à "personagem representada por um

ator", ou à "parte que cada ator desempenha no teatro, no cinema, na televisão, etc." e, ainda, à

"atribuição de natureza moral, jurídica, técnica, etc.", isto é, desempenho, função, como papel de

pai, juiz, médico, por exemplo.

Para Jacob Levy Moreno (1993), além das definições relacionadas à arte teatral, papel

pode ser definido como “uma função assumida na realidade social”. Vejamos:

O papel também pode ser definido como uma parte ou um caráter assumido por um ator, uma pessoa imaginária como Hamlet animada por um ator para a realidade. O papel ainda pode ser definido como uma personagem ou função assumida na realidade social, por exemplo, um policial, um juiz, um médico, um deputado (MORENO, 1993, p. 206).

O autor também define papel como “as formas reais e tangíveis que o “eu” adota”

(p.206), tais como o papel de pai, padeiro, piloto.

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Moreno afirma (1993):

O desempenho de papeis é anterior ao surgimento do ego. Os papeis não decorrem do eu mas o eu pode emergir dos papeis. O fator S pode animar um gesto, mesmo que nenhum “eu” nem o “outro” social estejam ainda envolvidos se não houver linguagem nem maquinaria social disponível para a sua comunicação (MORENO, 1993, p.210).

Os papéis e suas relações entre si são os fenômenos mais importantes de uma cultura,

(Moreno, 1993), sendo todo papel uma fusão de elementos coletivos e individuais, ou seja,

elementos privados, sociais e culturais.

Para Gonçalves (1988), o conceito de papel envolve inter-relação e ação,

pressupondo o papel complementar: pai-filho, professor-aluno, etc., e é a menor unidade

observável da conduta. A base psicológica para todo desempenho de papéis é a matriz de

identidade, onde estes surgem. Segundo o autor, podemos dizer que há três tipos de papéis:

Psicossomático: papel de quem come, dorme, etc. Estes papéis não permitem uma

relação pessoa para pessoa, pois não há diferenciação, mas são complementados

pelos papéis de matriz (a mãe que alimenta);

Social: opera na função realidade e na dimensão social de inter-relação, a mãe, o

filho, o professor e o cristão, são exemplos de papéis sociais;

Psicodramático: corresponde à dimensão psicológica do “eu” e em sua função

fantasia, uma mãe, um professor, um marido.

Os papéis psicodramáticos e sociais surgem na terceira fase da matriz, juntamente

com a brecha entre a fantasia e a realidade e a inversão de papéis.

Para o aprendizado e a medição de papéis utilizamos (Moreno, 1992, p. 98):

Role taking ou tomada de papéis que é a representação do papel já estabelecido,

sem que haja liberdade no desempenho.

Role playing ou jogo de papéis onde se exercita um papel em status nascendi,

havendo alguns parâmetros estabelecidos.

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Role creating ou criação de papéis no qual se permite grande liberdade,

colocando-se situações para que se possa reagir espontaneamente.

Segundo o próprio criador do Psicodrama, o conceito de papel é um dos mais

significativos conceitos dentro da nova estrutura da ciência da Psiquiatria (1993). Ele argumenta

na defesa de sua contribuição para tal conceito:

É um “mito” que o sociólogo norte-americano G.H.Mead tenha exercido uma influência marcante sobre a formulação do conceito psiquiátrico de “papel” e de sua psicopatologia. A formulação e desenvolvimento desse conceito e das técnicas de desempenho de papéis é de exclusivo domínio dos especialistas em psicodrama (MORENO,1993, p. 24).

Moreno continua:

O que nós, os especialistas em psicodrama, fizemos, foi (a) observar o processo do papel no próprio contexto da vida; (b) estudá-lo em condições experimentais; (c) empregá-lo como método psicoterapêutico (terapia da situação e do comportamento); e (d) examinar e treinar o comportamento no “aqui e agora” (adestramento de papel, adestramento da conduta e espontaneidade) (Idem).

A relevância dada ao conceito de papel neste trabalho deve-se ao fato de que,

segundo Moreno, (1993):

Antes e imediatamente após o nascimento, o bebê vive num universo indiferenciado, a que eu chamei de “matriz da identidade”. Essa matriz é existencial mas não é experimentada. Pode ser considerada o locus donde surgem,em fases graduais, o eu e suas ramificações, os papeis. Os papeis são os embriões, os precursores do eu [...] (MORENO,1993, p. 25).

2.2.1.1. Matriz de identidade

O conceito de matriz de identidade desenvolvido por Moreno (1993) refere-se ao

conjunto de condições psicológicas e sociais no qual a criança é inserida ao nascer. Gonçalves

assegura que:

A matriz de identidade, no seu sentido mais amplo, é o lugar do nascimento (lócus nascendi). Moreno a definiu também como placenta social pois, à maneira da placenta, estabelece a comunicação entre a criança e o sistema social da mãe, incluindo aos poucos os que dele são mais próximos (GONÇALVES 1988, p. 60).

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Ao longo de seu desenvolvimento emocional e construção de sua identidade, ela

passa por seguintes fases:

As fases da Matriz, segundo Moreno (1993), são:

Fase do duplo – fase de indiferenciação, a criança, a mãe e o mundo são uma coisa

só. A criança é dependente do outro para fazer o que não pode fazer ainda,

necessitando de ego auxiliar ou doublé (inspirado no cinema).

Fase do espelho – há dois momentos nesta fase. No primeiro, a criança concentra

sua atenção em si e, no segundo momento, passa a concentrar atenção no outro,

ignorando a si. Nesta fase a criança olha no espelho e diz ser outro bebê.

Fase da inversão – primeiramente a criança representa o papel do outro, mas não

aceita o outro em seu papel; depois passa a haver a inversão simultânea de papéis.

Acerca da “brecha entre a fantasia e a experiência da realidade” fenômeno que ocorre

entre as fases de desenvolvimento da criança, vejamos o que Moreno nos diz:

Num certo ponto do desenvolvimento infantil, com o inicio do “segundo” universo, a personalidade passa a estar normalmente dividida. Formam-se dois conjuntos de processos de aquecimento preparatório – um de atos de realidade, outro de atos de fantasia – e começam se organizando. Quando mais talhado estiverem esses caminhos, mais difícil se torna passar de um para o outro sob o estímulo do momento (MORENO, 1993, p.123).

Moreno prossegue nos esclarecendo:

O problema não consiste em abandonar o mundo da fantasia em favor do mundo da realidade ou vice-versa, o que é praticamente impossível; trata-se, todavia, de estabelecer meios que permitam ao indivíduo ganhar completo domínio da situação, vivendo em ambos os caminhos mas capaz de transferir-se de um a outro (Idem).

Assim sendo, segundo o próprio autor “o fator que pode garantir esse domínio para uma

rápida transferência é a espontaneidade”. Esse conceito é uma categoria central do pensamento e

da ação de Moreno.

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2.2.1.2. Indiferenciação

É o momento evolutivo em que a criança ainda não se distingue das pessoas com

quem interage: ela e o mundo são uma única coisa, uma massa informe sem contornos definidos.

Pessoas e objetos se confundem; as fronteiras entre o interno e o externo estão diluídas.

2.2.1.3. Reconhecimento do Eu

Nesta fase, a criança está com sua atenção centrada em si: nos contornos do seu

corpo, no reconhecimento de si no espelho. Ao perceber que seu corpo está separado da mãe, das

pessoas, dos objetos, concentra sua energia em explorar o reconhecimento de suas fronteiras.

Este processo é o resultado de um contínuo jogo de papéis entre o bebê e seu ego-

auxiliar, a mãe. A partir das experiências psicossomáticas da alimentação e dos cuidados

maternos, a criança vai identificando suas necessidades e o movimento do outro para satisfazê-

las. É, portanto, sempre no contexto interpessoal que a aprendizagem emocional e a definição da

identidade se processam.

2.2.1.4. Reconhecimento do Tu

Caracteriza-se pela exploração do diferente, do que não é o eu. Através deste

processo de reconhecimento do que não é próprio, a criança fortalece a sua identidade. O tu,

nesse momento, é meramente instrumental, ou seja, está convenientemente a serviço do processo

de reconhecimento do eu. É a fase da exploração do mundo, do diferente, da descoberta de que o

outro age e reage diferentemente dela, criança.

2.2.1.5. Pré-inversão

É a fase em que a criança começa a se experimentar no papel do outro. Ainda é uma

vivência automatizada, carecendo de sensibilidade para a experiência alheia. É a fase da imitação,

do faz-de-conta, uma espécie de ensaio e preparação para uma futura inversão, quando a

reciprocidade estará então presente.

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2.2.1.6. Inversão de papéis

Experiência indicadora do amadurecimento emocional, em que o indivíduo não só se

percebe separado do outro como também é capaz de compreender a significação de sua vivência

diferenciada. A capacidade de se colocar no lugar do outro e a possibilidade de que este se

coloque em seu lugar criam as condições necessárias para que se realize um verdadeiro encontro,

uma experiência produtora de crescimento para ambos os participantes e fortalecedora do

vínculo.

Apesar de se iniciar com o nascimento e se desenrolar em grande parte nos primeiros

anos de vida de um indivíduo, este movimento evolutivo não é retilíneo e pode sofrer avanços e

retrocessos ao longo das várias vivências que pontuam a sua existência. Na adolescência, por

exemplo, as mudanças físicas, emocionais e sociais provocam uma reativação de vivências

características da fase do reconhecimento do eu. O momento de definição profissional para o

adulto jovem pode configurar-se como outro ponto crítico na construção e revisão de sua

identidade. É a partir da Matriz que nos definimos como indivíduos.

2.2.2. Espontaneidade

A espontaneidade é uma resposta nova a uma situação nova ou uma nova resposta a

uma situação antiga ou circundante. A palavra vem do latim sponte que significa “de livre

vontade” (Moreno1993, P. 32).

Gonçalves, (1988) afirma que: "na visão moreniana, os recursos inatos do homem são

a espontaneidade, a criatividade e a sensibilidade", e continua:

[...] a revolução criadora moreniana é a proposta de recuperação da espontaneidade e da criatividade, através do rompimento com padrões de comportamento estereotipados, com valores e formas de participação na vida social que acarretam a automatização. (GONÇALVES, 1988, p.45).

A oportunidade em vivenciar e resgatar a unidade, mesmo que “provisória”, entre

pensamento e emoção, se sentir reconhecido como um sujeito que atua e interfere na sociedade e,

que, portanto, é por ela também influenciado, pode se revelar como o ponto “alto” dos encontros

psicodramáticos. Ao participar de experiências com pessoas que desempenhem atividades

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diferenciadas, podemos perceber também diferentes níveis de resistências, de espontaneidade e

de dificuldades de rever papeis cristalizados.

Menegazzo (1994, p. 47) acredita que “isso implica colocar em crise os mitos

negativos, as conservas culturais e seus papeis, que permaneciam fixados as cenas nucleares

conflitivas do passado e vinculadas a valores-tabus, ideologicamente inquestionados”. Trata-se de

uma original forma de entender a relação entre arte, sentimento e coletividade.

Abandonar o velho mesmo quando ele não mais satisfaz, gera muitas angústias e

vontade de continuar acreditando no “mito do porto seguro”. A atividade concreta do homem

“determina” seus desejos, sua consciência, seus afetos, seus projetos, etc., de forma diferenciada.

Segundo Moreno (1993, p.37)

A espontaneidade e sua liberação atua em todos os planos das relações humanas quer seja comer, passear, dormir, ter relações sexuais, ou relacionar-se socialmente; manifesta-se na criação artística, na vida religiosa e no asceticismo [...] atua como o processo de respiração, inalando a psique e exalando espontaneidade [...] não é energia conservada, é uma disposição a responder tal como é requerido [...] responde ao impulso, servindo de mediadora da ação espontânea e criativa e produzindo as conservas culturais.

Para Moreno (1993, p. 37-39) a espontaneidade é uma função inata e cultural,

positiva e criadora, construtiva e adaptável, por isso está ligada a todos os aspectos do

desenvolvimento orgânico, mental, psicológico, social e espiritual do ser humano.

Ele se recusa a restringir as manifestações espontâneas, inclusive em seus aspectos

patológicos, acreditando que através da espontaneidade o próprio indivíduo e o grupo social seja

capaz de adaptações plásticas, originais e criativas, a qualquer tipo de situação.

Segundo Pierre Weil (1978, p.45-49) a nossa cultura é feita de criações sucessivas

que se transformam em tradições, o que Moreno denominou como ”conservas culturais”,

transmitidas de geração em geração. O homem torna-se um robô, que deixa de evoluir, síntese de

uma sociedade de estagnação. Para evoluir é preciso libertar-lhes a espontaneidade, que os fará

capazes de criar.

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A espontaneidade é uma reação incisiva, transformadora no aqui e agora, que permite

ao sujeito deixar de ser meramente aquilo que dele se espera socialmente. Weil salienta que este

mecanismo nos leva a decisão mais coerente com a essência do humano, uma revolução interna

que movimentaria o contexto social.

A libertação movida pela inquietude seria condição “sine qua non” para o ser e estar.

Todavia, Moreno não trabalhava com as noções de pulsão de vida e de morte. Destruição ocorre

quando não se usa o potencial criador. Segundo Moreno (1993, P. 55) mesmo em situações

asilares, de alienação mental, como certos casos de esquizofrenia, é possível reconhecer a

potencialidade da criação e da arte.

Dessa forma, Jacob Levy Moreno inaugura com sua obra a ideia do ser humano

espontâneo e criador. Ler seus escritos, conhecer sua vida, sua espontaneidade e seu potencial

criativo, significará nesta perspectiva, o entendimento do ser como aquele sujeito ao contínuo

processo de criação. Ou pelo menos abrir a possibilidade da escolha, e por que não da

criatividade como escolha? Este seria o princípio da “revolução criadora” proposta por Moreno,

onde ele afirma: “Deus é espontaneidade. Daí o mandamento: Sê espontâneo”.

Moreno refere-se às patologias da espontaneidade como respostas inadequadas às

novas situações, citando, por exemplo, a transferência como uma patologia da tele. Teoricamente,

a espontaneidade situa-se numa zona intermediária entre os componentes orgânicos e ambientais,

recebendo a influência de ambos, mas escapando ao controle destes para ligar-se a tele, outro

conceito fundamental da teoria moreniana que representa “a menor unidade de sentimento entre

duas pessoas” (Moreno, 1993, p. 39).

2.2.3. Tele

A tele consiste, basicamente, na capacidade de diferenciar pessoas, coisas e objetos

como partes separadas de si mesmo e comunicar-se empaticamente, respondendo com afeto,

rejeição ou neutralidade vincular, o que supõe certa indiferença ao outro, seja por falta de

proximidade física, conhecimento emocional ou diferenças de interesses e valores socioculturais.

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2.2.4. Conservas culturais

Às conservas culturais são atribuídas, segundo Moreno, apenas a função de um

produto acabado que adquiriu uma qualidade quase sagrada, entretanto, a função criadora pode

ser desabrochada lançando uma nova espontaneidade. A conserva cultural serve para preservar

valores de uma determinada cultura, pode assumir a forma material, como no exemplo dado por

Moreno (1992): “o livro é o arquétipo de todas as conservas culturais”. Ele prossegue:

a luta contra as conservas culturais é característica marcante de toda nossa cultura; expressa-se de várias formas na tentativa de escapar destas conservas. Este esforço de escapar do mundo-conserva parece tentativa de retornar ao seu paraíso perdido (MORENO,1992, p. 149).

As conservas culturais também podem apresentar-se sob a forma de rituais e

cerimônias. A justificativa do efeito nefasto das instituições na criatividade encontra-se na

própria definição de ato criador, que transforma logo em algo rígido.

2.2.5. Catarse

Encontramos na produção de Moreno sobre a teoria psicodramática, a fundamentação

da Catarse de integração, que segundo seu criador é a mobilização de afetos e emoções ocorridas

na interrelação, télica ou transferencial, de dois ou mais participantes de um grupo terapêutico,

durante uma dramatização, segundo Fox (2002, p. 95):

Historicamente, houve duas vias que conduziram à visão psicodramática da catarse. Uma delas vai do teatro grego ao teatro convencional de hoje, e com isso a aceitação do conceito aristotélico de catarse. A outra começa nas religiões orientais [...]. Essas religiões afirmam que um santo, para transformar-se num salvador [...] tem primeiro de salvar a si mesmo, [...] no caso grego, o processo de catarse mental como algo localizado no espectador, uma catarse passiva. No caso religioso, o processo de catarse foi localizado no próprio individuo, uma catarse ativa.

Podemos perceber que a dramatização é por excelência condição para o

autoconhecimento, o resgate da espontaneidade e a recuperação de condições para o inter-

relacionamento; como o caminho através do qual o indivíduo pode entrar em contato com

conflitos, que até então permaneciam em estado inconsciente.

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2.3. A Ação Psicodramática

O lugar do nascimento do psicodrama foi o teatro dramático de Viena. O psicodrama

desde seus primórdios estabeleceu uma composição basicamente grupal com a presença do

terapeuta, que atua como diretor da cena, com seus egos auxiliares; e de seus pacientes tanto

como protagonista ou como público.

Jacob Moreno, tomando do modelo teatral seus elementos, distingue, para a cena

psicodramática, cinco elementos ou instrumentos:

a) Cenário: neste continente desdobra-se a produção e nele podem-se representar

fatos simples da vida cotidiana, sonhos, delírios, alucinações.

b) Protagonista: o protagonista pode ser um indivíduo, uma dupla ou um grupo. É

quem, em Psicodrama, protagoniza seu próprio drama. Representa a si mesmo e

seus personagens são parte dele. Palavra e ação se integram, ampliando as vias de

abordagem.

c) Diretor: o psicoterapeuta do grupo é também o diretor psicodramático. Sua função

é propiciar e facilitar o bom desenvolvimento da cena dramática.

d) Egos-auxiliares: São as pessoas que contracenam com o protagonista, podendo ser

profissionais ou participantes do público que são convidados a subir no palco

terapêutico.

e) Público ou plateia: são os membros do grupo que participam assistindo a cena

dramática.

Buscaremos expressar a identidade e dinâmica de cada um desses agentes.

2.3.1. Egos auxiliares

Moreno (1993, p. 41) apresenta o psicodrama como uma psicoterapia que coloca o

paciente em um palco onde ele pode exteriorizar seus problemas com a ajuda de atores

terapêuticos.

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Na definição de Moreno, entendido por Fox, (2002, p. 39) um dos instrumentos

básicos para construir o mundo psicodramático de um paciente é o “ego-auxiliar, que representa

pessoas ausentes, desilusões, alucinações, símbolos, ideais, animais e objetos. Ele torna real,

concreto e tangível o mundo do protagonista”. Moreno (1993) acentua:

Os egos auxiliares são atores que representam pessoas ausentes, tal como aparecem no mundo privado do paciente [...] em vez de “falar” ao paciente sobre suas experiências internas, os egos auxiliares retratam-nas e tornam possível ao paciente encontrar no exterior as suas próprias figuras internas (MORENO, 1993, p. 43).

Moreno (1993, p. 44) ainda acrescenta que “Como a tarefa dos egos auxiliares é

representar as percepções dos pacientes dos papeis internos ou figuras que dominam o seu

mundo, quanto mais adequadamente às apresentem, maior será o efeito sobre o paciente”.

2.3.2. Role Playing

O jogo de papéis (role-playing) representação ou desempenho que

permite certo grau de liberdade. Consiste em jogar o papel explorando simbòlicamente suas

possibilidades de representação. Para Moreno, o jogo de papéis é ato, brincadeira espontânea; a

criação de papéis (role creating) deixa margem à iniciativa pessoal, como no caso do ator

espontâneo. Criar o papel é o desempenho de forma espontânea e criativa. E como todo papel

necessita de ator, em cada fase do processo de seu desenvolvimento encontram-se os atores

correspondentes: o "receptor", o "intérprete" e o "criador de papéis".

De acordo com Moreno (1993, p. 155) “Role playing é personificar outras formas de

existência, por meio do jogo. É uma forma especializada de jogo, apesar de o termo jogo ser

acompanhado frequentemente por conotações enganosas, ficando reduzida a interpretação dada

pelos adultos”. Moreno afirma que:

O role playing foi a técnica fundamental do Teatro da Espontaneidade Vienense. Devido ao papel predominante que a espontaneidade e a criatividade têm no role playing, foi denominado de role playing espontâneo-criativo. Consiste em colocar as pessoas (atores) em várias situações – alheias à situações em que vivem – e em vários papeis – alheios ao seu eu e aos seus papeis na vida particular (MORENO, 1993, p. 156).

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No entanto, Moreno distingue o Role playing como desempenho de papéis e não

como representação de papeis que segundo ele (1993, p. 29), “a representação do papel é uma

aptidão de desempenho”.

As técnicas do psicodrama são numerosas, algumas têm aplicações muito específicas

e quase todas são patrimônios dos egos auxiliares.

2.4. Os Fundamentos da Ação Psicodramática

A ação é uma condição indispensável na representação dramática. O ponto de partida

da ação dramática é sempre um conflito.

O psicodrama tem como base a crença no homem co-criador com Deus, que tem uma

centelha divina em si, nasce espontâneo e consequentemente criativo, mas vai embotando sua

criatividade, tendo a ação dramática o papel de resgatar essa espontaneidade. Para Moreno

(1993, p. 46) “a vida criativa é vida que cria a energia vital que opera no organismo corporal e

pessoal e através dele”.

Bermudez (1970, p.1) afirma que “o psicodrama é um método psicoterápico com

profundas raízes no teatro, na psicologia e na sociologia. Do ponto de vista técnico, é um

procedimento de ação e de interação. Seu núcleo é a dramatização”. Para esse autor há, no

psicodrama, uma interação de corpos e suas variadas expressões, interação esta que envolve um

compromisso total com o que se realiza. Desta forma, a participação corporal é um valioso

método para evidenciar as defesas conscientes e inconscientes do paciente, assim como suas

condutas patológicas. Vivenciando-se a ação psicodramática no “aqui – agora”, apresentam-se

todos os elementos emocionais e relacionais da situação, tratando o indivíduo em seu meio, não

desconsiderando o contexto social.

Para Menegazzo (1994, pp.64-65) “se não há conflito, jamais haverá ação

dramática”. O conflito dramático deve ser entendido como um antagonismo posto em cena. Por

isso, como ponto de partida, um conflito dramático implica uma oposição entre o objetivo do

protagonista e do antagonista. O autor cita como exemplo, do ponto de vista dramático, o beijo

entre dois atores no palco “(...) se o objetivo do protagonista for beijar para satisfazer o seu

desejo e o antagonista opõe-se ao beijo ou o recusa (...) existe um conflito dramático”.

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O Psicodrama está fundado no conceito de espontaneidade que se expressa através

dos papéis desempenhados pelos sujeitos. Segundo Moreno, o termo espontâneo é usado

erroneamente para descrever indivíduos cujo controle sobre suas ações está diminuído, já que

etimologicamente a palavra espontâneo deriva-se do latim “sponte” que significa “de livre

vontade”, como já citamos anteriormente.

Moreno afirma que a espontaneidade pode ocorrer tanto quando uma pessoa pensa,

como sente, funciona somente no momento em que surge; pode ser comparado, metaforicamente,

segundo Moreno (1992, p. 68), “à lâmpada que se acende e graças à qual tudo fica claro na

casa. Quando a luz se apaga, as coisas permanecem ocupando o mesmo lugar na casa, mas uma

qualidade essencial desapareceu”. Moreno assegura que o indivíduo não está dotado de um

reservatório de espontaneidade, esta dimensão está disponível e só funciona no momento de seu

surgimento. Quando o indivíduo se encontra numa situação nova ele utiliza o fator e

(espontaneidade) como orientação da forma de agir mais apropriada.

Segundo seu criador, o psicodrama pode ser vivenciado em todo e qualquer lugar,

embora o mais vantajoso seja um espaço terapêutico especialmente adaptado contendo um palco,

para ele:

Um psicodrama pode ser produzido em qualquer lugar, onde quer que os pacientes estejam: no lar, num hospital, numa sala de aula, num quartel. O seu “laboratório” instala-se em qualquer parte (MORENO, 1993, p 31).

Quantos aos participantes para a ação psicodramática terapêutica, Moreno definiu que

os principais participantes num psicodrama terapêutico são o protagonista ou sujeito; o diretor ou

terapeuta principal; os egos auxiliares; e o grupo (Idem).

Para a realização da seção psicodramática é necessário um tema, segundo Moreno:

Em geral, é importante que o tema, privado ou coletivo, seja um problema verdadeiramente sentido pelos participantes (reais ou simbólicos). Os participantes devem representar suas experiências espontaneamente, embora a repetição de um tema possa revestir-se com frequência, de vantagens terapêuticas (Idem).

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A prática psicodramática, em suas inúmeras modalidades, começa pelo envolvimento

das pessoas com o tema ou com a experiência a ser vivenciada, através de lembranças ou

histórias do cotidiano dos indivíduos e/ou das organizações.

Cabe ao diretor manejar as técnicas psicodramáticas, como recursos de ação, para

garantir o envolvimento do grupo e a escolha da cena protagônica, que refletirá a experiência dos

presentes. Ele vai convidando todos para participarem na criação conjunta do enredo,

favorecendo a emergência da realidade grupal.

Em relação ao protagonista, seja ele um sujeito ou o próprio grupo, Moreno diz:

O protagonista deve estar consciente ou inconscientemente motivado para que possa ser produtivo. O motivo poderá ser, entre outras coisas, o desejo de auto-realização, de alivio de sua angustia mental, de capacidade para funcionar adequadamente num grupo social. Ele sente-se frustrado, digamos, no papel de pai ou em qualquer outro papel de sua vida real, e desfruta da sensação de domínio e realização por meio do psicodrama, o qual lhe oferece uma satisfação simbólica ( MORENO,1993, p. 32).

A satisfação simbólica ao qual Moreno se refere, pode ser entendida como catarse,

que se difere de outras escolas da Psicologia contemporâneas de Moreno. Para ele, não se trata de

um processo passivo. Moreno (1993, p. 34) afirma que “O Psicodrama produz um efeito

terapêutico – não no expectador (catarse secundária), mas nos atores-produtores que criam o

drama e, ao mesmo tempo, se libertam dele”.

A catarse é parte importante do trabalho psicoterápico e a representação espontânea é

um instrumento facilitador de catarse, tanto como descarga afetiva ou ab-reação, que ocorre

quando acontece uma liberação de conteúdos e emoções reprimidos, como de integração, pela

qual, segundo Moreno (1993, p.35), enxergamos um novo universo e vemos a possibilidade de

um novo conhecimento, realizando o "eu" para maior integração social. Este fato é bem visível

no Psicodrama.

Em Psicodrama, a importância da catarse é enfatizada por Moreno, tal como expõe

Martin (1996, p. 52) “a prova de que o trabalho dramático está sendo terapêutico ou não, é se

este produz catarse”. Kellermann (1998, p. 123) mostra o lugar da catarse no Psicodrama quando

diz que a função da catarse é a auto-expressão e o realce da espontaneidade.

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A auto-expressão envolve mais que liberação afetiva, envolve a comunicação das

realidades internas e externas (autoconhecimento). Em outra fase, o que foi liberado precisa ser

reintegrado. Deve-se fazer uma ponte entre o afetivo e o cognitivo para integrar a sessão.

Para Moreno (1993, p 38), o teste decisivo sobre se uma obra dramática é ou não uma

obra terapêutica “depende de se apurar se é ou não capaz de produzir a catarse em tipos

especiais de públicos, ou se é ou não capaz de suscitar um aquecimento preparatório de cada

membro do público para uma melhor compreensão de si mesmo ou uma melhor integração na

cultura em que participa”.

Podemos dizer, de acordo com Fox (2002, p. 31), que a melhor síntese de algumas

crenças fundamentais de Moreno é “a importância de vivenciar a verdade de uma pessoa por

meio da ação; o valor da realidade subjetiva; a premissa de um encontro vivo no aqui-e-agora

entre as pessoas [...] e um profundo igualitarismo”.

2.5. Psicodrama Pedagógico

Nesta parte discutiremos questões pertinentes ao Psicodrama Pedagógico, levando em

consideração pontos analisados por Romaña em seu livro Psicodrama Pedagógico (1987), bem

como do texto de Ramalho (2001) “A dinâmica de grupo aplicada à Educação: o Psicodrama

Pedagógico e a Pedagogia Simbólica”. Vale ressaltar que J. L. Moreno não desenvolveu nenhuma

teoria específica sobre o uso da metodologia psicodramática na área da Educação.

O Psicodrama Pedagógico foi apresentado oficialmente em 1969, pela professora

Maria Alicia Romaña, responsável pela criação e adaptação do Psicodrama Pedagógico, no IV

Congresso Internacional de Psicodrama, em Buenos Aires. Um grupo de seis psicoterapeutas

paulistas, formado por Íris de Azevedo, José Manuel D´Alessandro, Antonio Carlos Cesarino,

Laércio Lopes, Alfredo Correia Soeiro e Pedro Paulo Uzeda e Moreira, convidou o doutor

Jaime Rojas Bermudez e sua equipe, então radicados na Argentina, para treinamento e outros

subsídios para a utilização do Psicodrama. Seus fundadores foram os alunos da primeira turma.

Para a formação das turmas seguintes, a equipe argentina vinha a São Paulo a cada dois meses e

realizava sessões de Psicodrama diariamente durante uma semana (FLOREZ, 1986, p.17).

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Nesse mesmo ano a professora Romaña iniciou a formação de educadores no Grupo

de Estudos de Psicodrama em São Paulo. O grupo era formado por 60 pessoas dividido em quatro

turmas, com currículo próprio. Funcionava em local diferente do curso de Psicodrama

Terapêutico. (FLOREZ, 1986, p.3).

Quando Romaña criou este termo, Psicodrama Pedagógico, não foi sua intenção

estabelecer somente uma diferença entre a aplicação didática e terapêutica da dramatização, mas

sim reconhecer uma unidade básica, relativa à filosofia e fundamento de uma mesma técnica,

procurando identificar, através do “pedagógico”, fundamentalmente o marco referencial e o

campo de ação do educador. Para a criadora do termo

O educador, é aquele mestre, professor, assistente, orientador, instrutor, que, em qualquer tarefa educativa, procura conciliar a transmissão de conhecimentos sistemáticos, para uma melhor compreensão do mundo e das possibilidades do homem, com a necessidade de facilitar ao aluno o reconhecimento dessa sua realidade imediata e concreta, de modo que ele possa desenvolver tanto a sua compreensão crítica e ativa, como sua vontade transformadora ( ROMAÑA, 1987, p.14).

O Psicodrama, como método didático, proporciona a aquisição do conhecimento a

nível cognitivo e intelectual, bem como garante uma maior participação do aluno e a utilização

do seu corpo, permitindo ao professor, ao mesmo tempo, o manejo do grupo como unidade.

Com o Psicodrama Pedagógico alunos e professores compartilham a responsabilidade

pelo processo de aprendizagem. Assim, o aluno deve abandonar o papel de receptor passivo de

conhecimentos e adotar o papel de co-autor de resultados.

Segundo Moreno, a educação deve enfrentar a ordem social, as conservas culturais.

A psicodramatista Escolástica Puttini (apud Ramalho 2001) destaca que

O Psicodrama Pedagógico guarda a mesma visão de homem que norteia a filosofia Moreniana (...), um homem em relação, cujas características essenciais são a espontaneidade, a criatividade e a capacidade de perceber-se a si mesmo e o outro, com amplitude e profundidade. (ESCOLÁSTICA PUTTINI apud RAMALHO 2001, p.4).

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Ramalho (2001) assegura que Moreno falava da educação como uma estrutura que

tem como centro a espontaneidade. A sua educação na espontaneidade e criatividade era a base

para a escola. Ressaltamos que, de acordo com a autora (RAMALHO, 2001, p.8), na obra de

Moreno é comum encontrarmos referências a pedagogos da Escola Ativa, Rousseau, Pestalozzi e

Froebel, os quais lutavam para abolir os métodos tradicionais de ensino, compartilhando uma

visão de educação mais voltada para a vida do que para o saber, utilizando-se de meios como a

ação, o jogo, o contato com a natureza, o uso sistemático da dança, a música, entre outros.

Para Moreno espontaneidade é um fator inato, que se apresenta como uma forma de

energia em constante transformação, capacitando o homem para enfrentar situações novas e para

criar novas respostas às antigas situações. Moreno defendia que, com o desenvolvimento

insuficiente da espontaneidade-criatividade, indivíduos e grupos acumulariam ansiedade e

chegariam à enfermidade psíquica e social.

A metodologia psicodramática localiza inicialmente o conhecimento em sua “matriz

de identidade”, ou seja, na experiência da qual deriva. Em seguida, procura levar o aluno, através

da descoberta das conotações que conferem sentido ao conhecimento, a níveis cada vez mais sutis

de abstração e de generalização, com o objetivo de chegar a uma identificação a mais plena

possível, entre aquilo que está sendo conhecido e aquele que o está conhecendo.

Isto é conseguido porque, quem está conhecendo está, ao mesmo tempo, “fazendo”,

experimentando aquilo que conhece. Este “fazer” resgata o verdadeiro da palavra “ação”,

libertando-a da limitação clássica que lhe foi imposta pela escola. O Psicodrama aplicado à

Educação procura então “emocionalizar” conceitos teóricos previamente aprendidos. Para que o

aluno tenha sucesso neste processo é necessário que ele faça uso da sua espontaneidade, com o

objetivo de que esta venha à tona, libertando o aluno ao máximo nas dramatizações, como uma

forma de resolver a brecha entre a realidade e a fantasia, que se renova constantemente frente à

frequente solicitação da escola, no sentido de que o aluno integre novos conhecimentos.

O pensamento de Moreno se mostra fiel à concepção Fenomenológica Existencial da

Educação quando sua teoria reforça a necessidade da práxis-ação e a libertação, não

desvinculando o educando da sua realidade sócio-cultural. Para Ramalho (2001):

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O aluno deixa de aprender apenas através do intelecto para assimilar conhecimentos com sua personalidade global. O professor passa a ser um facilitador do processo que é assumido pelo aluno, criando um clima de liberdade e espontaneidade, no qual, este último desenvolverá o seu potencial e criará. Assim, o professor estará também ao lado do aluno, invertendo o papel com ele e sentindo melhor a sua realidade, promovendo um vínculo télico e não transferencial. Tal como define a concepção fenomenológica existencial, o fundamental no contexto pedagógico é a experiência vivida de Encontro entre o educador e o educando (RAMALHO, 2001, p.32).

Analisando a bibliografia de Paulo Freire, também podemos dizer que três filosofias

marcaram sucessivamente sua obra: o existencialismo, a fenomenologia e o marxismo sem, no

entanto adotar uma posição ortodoxa. Segundo Gadotti (2000) seu pensamento rompeu a relação

cristalizadora de dominação, buscando pensar a realidade dentro do universo do educando,

construindo a prática educacional considerando a linguagem e a história da coletividade,

elementos essenciais dessa prática (GADOTTI 2000, p. 25). Podemos perceber também pela

citação de Gadotti o quanto o pensamento de Freire se aproxima do ideal de Moreno. Suas

filosofias se entrelaçam visivelmente nas linhas de seus escritos.

Na sala de aula, como é grande a demanda de assuntos a serem estudados, algumas

vezes, pensa-se que a dramatização em sala de aula seja perda de tempo, coisa que nenhum

professor deseja, dada a urgência necessária ao cumprimento dos conteúdos previstos. Neste

caso, o que pode parecer perda de tempo ou mera forma de diversão, implica em uma verdadeira

“economia” de tempo, uma vez que o conhecimento adquirido dificilmente cai no esquecimento e

os frutos desse tipo de trabalho podem em geral ser percebidos mais adiante, quando sobre ele

apóiam-se novos conhecimentos.

Romaña (1987, p.36) alerta para o fato de que seja bom o professor começar a

utilizar a metodologia psicodramática levando em conta o contexto geral em que se dá o processo

de aprendizagem, já que o aluno sente a arritmia que se produz quando um professor utiliza as

técnicas dramáticas e os professores das outras matérias continuam trabalhando de maneira mais

ou menos tradicional. Nestes casos, é bom ir adequando o ritmo da utilização desta metodologia,

promovendo por sua vez uma unificação da metodologia geral.

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Há, de forma geral, uma tendência de muitos professores acreditarem que somente

algumas matérias podem utilizar esta metodologia. Na verdade todos os conhecimentos podem

ser trabalhados desta maneira. O que ocorre é que não se trabalha com os conhecimentos

“secundários”, ou “derivados”, e sim com os conhecimentos “geradores”, (em “conhecimentos

geradores” podemos perceber outra proximidade com o pensamento freireano, quando seu

método utiliza-se de palavras geradoras advindas da realidade dos educandos) com aqueles que

incluem o conceito ou a idéia geradora de outras possibilidades de aplicação.

O mesmo ocorre com os níveis de ensino, uma vez que se podem utilizar

dramatizações, tanto no nível primário como no secundário e mesmo no ensino superior.

Durante o trabalho utilizando-se do Psicodrama Pedagógico, é preciso respeitar os

três momentos (etapas) da ação dramática (aquecimento, dramatização e comentários), podendo

utilizar-se as outras duas etapas introduzidas por YOZO: processamento e processamento teórico,

anteriormente citado nesse trabalho. Devem-se utilizar os cinco elementos do Psicodrama:

protagonista, auditório, diretor, ego-auxiliar e palco/cenário (YOZO, 1996, pg. 20).

É aconselhável que haja a colaboração de um ou mais egos-auxiliares, de acordo com

o tamanho ou as características do grupo de trabalho. É evidente a dificuldade de introdução de

um colaborador neste tipo em sala de aula, levando-se em conta a forma pela qual estão

organizadas hoje as instituições de Ensino. Porém, considera-se prejudicial e muito negativa a

amputação de um elemento dinamizante e objetivador tão valioso como é o ego-auxiliar.

Romaña (1987) ressalta que

Muitas vezes crê-se que o ego-auxiliar, que colabora com o professor, deve dominar a matéria tanto quanto ele. Por esta razão, o papel é com frequência muito temido, sobretudo por egos-auxiliares que não trabalhem em educação e devem fazê-lo pela primeira vez [...]. O ego-auxiliar de educação deve receber uma boa formação psicodramática. Neste papel ele não vai ajudar o aluno a descobrir o conhecimento, mas contribuir, através do desempenho do papel complementar que se faça necessário, para que o aluno encontre o caminho que o aproximará do conhecimento (ROMAÑA, 1987, p.47).

Romaña (1987, p.52) esclarece que ela não propõe a metodologia psicodramática

como forma exclusiva, já que, evidentemente, tem também suas limitações, derivadas do fato de

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atuar em apenas um dos sentidos da dinâmica de ensino, ou seja, de dentro para fora do aluno. A

proposta é combinar esta metodologia com outras formas “renovadas”, que operam em sentido

contrário de fora para dentro. A técnica psicodramática pode combinar-se com qualquer

procedimento de tipo audiovisual, com qualquer técnica grupal, com diversas formas de ensino

programado, etc.

O que importa e precisa ser analisado é se nessas combinações a espontaneidade que

nos fala Jacob L. Moreno esteja sendo desbloqueada, se liberte das conservas culturais. A

manifestação espontânea assim como afirmou o criador da teoria psicodramática precisa

“emergir”, do interior para o exterior, (Arantes, 1996, p. 253) como o próprio significado (sua

sponte) latino do termo.

No livro organizado por Firmino Sisto (1996) Arantes afirma que a espontaneidade

É um potencial que permite ao organismo humano adaptar-se de forma adequada às situações que enfrenta no cotidiano. É de fundamental importância em nossa existência, permitindo a elaboração de respostas inéditas diante de problemas já vividos ou inesperados. São as respostas imprevisíveis que solucionam as situações mais complexas, e não as respostas estereotipadas, que nem sempre alcançam bons resultados (ARANTES, apud SISTO, 1996, p. 253).

Pierre Weil “entende que desbloquear no ser humano a espontaneidade significa

restaurar a capacidade de tomar com rapidez a decisão justa no momento exato, tratando-se,

portanto, de uma espécie de sabedoria em ação” (WEIL, 1990, p. 65).

Foram esses nossos objetivos nesse capítulo. Dominar com relativa propriedade as

técnicas e conceitos de Moreno, para justapô-las aos conceitos e categorias da ação educacional

de Paulo Freire, numa realidade de Educação de Jovens e Adultos na periferia de São Paulo. Essa

será a temática do capítulo seguinte.

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3. CAPÍTULO III: ARTICULAÇÃO DA PEDAGOGIA DA AUTONOMIA COM O PSICODRAMA PEDAGÓGICO EM GRUPOS DE ALFABETIZAÇÃO DE PESSOAS ADULTAS: POSSIBILIDADES E DISPOSIÇÕES

Esse capítulo pretende ser a exposição de um estudo sobre a possibilidade de

um processo de Alfabetização de Jovens e Adultos Psicodramática Emancipadora, ou seja,

sobre as contribuições de Jacob Levy Moreno e Paulo Freire para a prática pedagógica no

contexto Alfabetizador de Jovens e Adultos. Pretende estabelecer uma reflexão acerca da

relação entre a teoria Psicodramática de Moreno e o pensamento do educador Paulo Freire,

utilizando de algumas técnicas do Psicodrama nesse contexto de ensino-aprendizagem.

Achamos por bem apresentar primeiramente algumas definições que possam

trazer clareza para o capítulo em questão. Iniciaremos com a exposição dos Jogos

Psicodramáticos, suas aplicações e suas amplitudes porque este será um dos instrumentos

usados no desenvolvimento da referida pesquisa.

Buscamos na leitura de Ronaldo Yudi K. Yozo (1996), na sua obra “100 Jogos

para Grupos: Uma abordagem psicodramática para empresas, escolas e clínicas” algumas

dessas definições. Yudi Yozo é um reconhecido estudioso do tema Psicodrama no Brasil

que muito tem contribuído para a propagação da teoria e prática do ideal de Jacob Levy

Moreno nesse país. De acordo com Yozo (1996, p. 20) a estrutura básica de procedimentos

em Jogos psicodramáticos baseia-se nos princípios do psicodrama, onde consideram-se

três Contextos, cinco Instrumentos e três Etapas para a operacionalização de uma sessão

psicodramática.

O Contexto: Yozo busca a definição de Contexto em GONÇALVES (1988)

entre outros; para Gonçalves, Contexto, “é o encadeamento de vivências privadas e

coletivas, de sujeitos que se inter-relacionam numa contingência espaço-temporal”

(GONÇALVES, 1988, apud YOZO, 1996, p. 20)

Yozo prossegue distinguindo os três contextos do Psicodrama:

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[...] a) Contexto social: constituído pela própria realidade social, envolvendo desde o tempo cronológico até o espaço concreto e geográfico, [...] b) Contexto grupal: constituído pelo próprio grupo (diretor, egos e participantes), leis, normas e condutas particulares, [...] e c) Contexto dramático: constituído pela própria realidade dramática. É o momento do jogo, do “como se”. É a separação da realidade com a fantasia, do indivíduo com o papel e configura a distinção entre o contexto grupal e dramático. Prevalecem o mundo imaginário e a fantasia, num ambiente protegido. O espaço devidamente delimitado pode ser ampliado ou reduzido. Geralmente é neste contexto que ocorrem os insights e a catarse de integração (YOZO, 1996, p. 20).

Os Instrumentos: Segundo Yozo (1996, p. 20) Instrumentos são os recursos

utilizados para executar o método psicodramático e suas técnicas. São: Diretor, Ego-

Auxiliar, Protagonista, Cenário e Auditório.

Yozo (1996) prossegue nas definições esclarecendo as funções específicas do

diretor, que segundo ele, são três e consta de:

A.1 – Produtor – Seleciona os jogos a serem utilizados [...] A.2 – Diretor – Dá inicio ao jogo dramático, estabelece as regras, [...]. Dirige o Ego-Auxiliar (profissional ou natural). Fornece as “senhas”. Encerra o jogo. Deve estar sempre atento à dinâmica do Protagonista e do grupo, principalmente no que se refere às suas emoções e pensamentos, durante o jogo. A.3 – Analista social – Analisa os dados levantados pelo Ego e expressa suas opiniões (processamento), completando e ampliando esta ‘leitura’ para todos (Ego-Auxiliar, Protagonista e auditório) (YOZO, 1996, p. 21).

As Etapas: Na leitura de Yozo (1996, p. 21) temos a seguinte definição de

Etapas: são as fases de procedimento na utilização de um jogo dramático. O autor elabora

as definições para cada Etapa que constituem a ação psicodramática: Aquecimento

(inespecífico e específico; Dramatização e Comentários. Yozo ainda acrescenta à Teoria

Psicodramática dois novos conceitos com o intuito de oferecer uma melhor divisão

metodológica da proposta:

Processamento: é a releitura da dramatização e dos Comentários, processada pelo Ego-Auxiliar e Diretor, direcionando-os aos seus objetivos. [...] Processamento teórico: geralmente utilizado na empresa e escola, enquanto método psicodramático, para a introdução de conceitos ou objetivos propostos (YOZO, 1996, p. 22).

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Yozo (1996) e Castanho (1990) trazem a definição sobre jogos dramáticos que

gostaríamos de enfatizar para o propósito dessa pesquisa

O jogo dramático não é apenas aquele que é dramatizado. Não consideramos uma brincadeira infantil de fadas ou de super-heróis como jogo dramático, embora seja jogo, haja dramatização; é o compromisso dos jogadores em viver algo que os comove, que os arrebata, que os envolve num conflito (CASTANHO, 1990, apud YOZO 1996, p. 16).

É com os jogos dramáticos nessa perspectiva psicológica, portanto, jogos

psicodramáticos que buscamos estruturar e desenvolver a presente pesquisa.

Contudo, Yozo (1996) nesse sentido afirma que podemos definir o conceito de

jogo dramático como uma atividade que permite avaliar e desenvolver o grau de

espontaneidade e criatividade do indivíduo, através de suas características, estado de

ânimo e/ou emoções na obtenção e resolução de conflitos ligados aos objetivos propostos

(YOZO, 1996, p. 16).

Também é imprescindível, segundo Yozo, diferenciar o Jogo Dramático que

está inserido na teoria do Psicodrama do termo jogo dramático utilizado no Teatro, este

último com o objetivo de desenvolver somente o papel de ator. Na teoria Psicodramática é

Jogo porque promove o lúdico e é dramático pela proposta de trabalhar os conflitos que

surgem (YOZO, 1996, p. 17).

Essa dimensão dos Jogos acabou marcando profundamente nossa formação,

nesse processo de pesquisa. Tínhamos sido educadas para entender que o jogo era uma

dimensão inicial da formação da criança, de suposta menos importância, e tínhamos até

assumido a função meramente inicial dos jogos no processo de ensino e aprendizagem, não

necessariamente com o devido reconhecimento de sua importância estrutural. Se tínhamos

essa dimensão propedêutica e a indicação do universo lúdico da infância, não

conseguíamos entender a potencialidade dos jogos para a representação dos problemas e

das contradições de nossa formação subjetiva, e mesmo para o encaminhamento de

superações de nossas contradições de natureza afetiva, social ou pessoal.

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3.1. Freire e Moreno: Primeiras Reflexões

O interesse em reunir nesse trabalho esses dois conceituados pensadores da

Educação e da Psicologia, Paulo Freire (1922-1997) e Jacob L. Moreno (1889-1974)

emergiu da nossa prática como Educadora de Jovens e Adultos na periferia da cidade de

São Paulo.

No período, entre 1994-2006, como Educadora de EJA, tivemos a

oportunidade e a necessidade de realizar a coerente leitura e reflexão de parte da vasta obra

de Paulo Freire. Particularmente, um de seus livros “Pedagogia da Autonomia” (33ª edição-

1996) cuja síntese descrevemos no primeiro capítulo desse trabalho, nos inquietou

profundamente. Os “Saberes Necessários” descritos nas páginas da Pedagogia da

Autonomia são realmente imprescindíveis para a formação e para a prática do Magistério!

Essas considerações iluminavam nossa prática ainda recente e impunham diversas tarefas e

disposições de mudança, apropriação, acolhimento e dedicação à intenção de produzir

formas didáticas de abordar, manejar e repassar tais diretrizes e procedimentos.

Nessa atividade como Monitora de grupos de Educação de Jovens e Adultos

participamos de vários Cursos de Formação, promovidos pelas instâncias administrativas e

de gestão da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. Neles, as Dinâmicas de

Grupos eram os momentos que sempre me despertavam especial interesse. Augusto Boal

(2005) era leitura referencial sempre presente nesses cursos. Concordamos com Boal

principalmente quando diz:

Existe uma enorme quantidade de exercícios que se podem praticar, tendo todos, como primeiro objetivo, fazer com que o participante se torne cada vez mais consciente do seu corpo, de suas possibilidades corporais, e das deformações que o seu corpo sofre devido ao tipo de trabalho que realiza. Isto é, cada um deve sentir a “alienação muscular” imposta pelo trabalho sobre o seu corpo (BOAL, 2005, p.190).

Geralmente, esses cursos eram organizados em quatro momentos:

1. O palestrante fazia as colocações teóricas para a assembleia;

2. Dinâmica: vivência daquilo que foi exposto;

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3. Distribuição de conceitos pertinentes ao tema em grupos menores de acordo

com o número de participantes para reflexão e,

4. Sínteses dessas reflexões para discussão na assembleia.

Esses cursos em que participamos se fizeram importantes para despertar-nos

para a necessidade de praticar com meus educandos uma metodologia que facilitasse o

aprendizado desses adultos, já cansados da luta diária de trabalho; que não os deixassem

“presos” numa carteira por três horas; que tornasse esse processo de aprender significativo

e prazeroso.

A dinâmica dos jogos que aprendemos nos cursos citados acima foi reproduzida

nas nossas aulas. Os jogos psicodramáticos se insinuavam como instrumento pedagógico,

porém, não tínhamos o conhecimento da teoria psicodramática de Moreno. Essa carência

gerava alguma insegurança, o que nos motivava a buscar compreender os pressupostos

ontológicos, filosóficos e psicológicos da obra de Moreno, de modo a lograr apropriar-nos

deles numa dimensão educacional e pedagógica distinta, na Educação de Jovens e Adultos,

que igualmente são singulares pela sua identidade e pela cultura de sua vida material e

social.

Também considerávamos, como monitora em grupos de EJA, pela prática

pautada na proposta de Paulo Freire, com base na Educação Popular, e pudemos observar

maior interesse dos educandos em ler e escrever palavras, frases e textos a partir das

discussões acerca de nossa realidade social. Sabendo que na medida em que a intervenção

educativa é histórica, política e cultural, (Paludo 2001, p.96), acreditamos que toda

experiência teórico-prática realizada com as camadas populares sempre será única pelo fato

de partir de uma “leitura séria e crítica da realidade e que indica os percursos pedagógicos

a serem construídos, a partir da opção política e ética” (PALUDO, 2001, p.96). Se o ponto

de partida e de chegada da ação e reflexão da Educação Popular é a análise da realidade

social, esta deveria orientar e fecundar a dialética articulação teórico-prática .

Quando dizemos “nossa realidade” o fazemos pelo fato de, como moradora no

mesmo bairro, tanto eu quanto meus educandos, sofríamos cotidianamente as mesmas

dificuldades de ordem infra-estrutural; decorrências da nossa ação ao ocupar aquele espaço

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de terra para construir nossas moradias. A luta pela casa, pelo lugar para morar e residir,

pela habitação, tinha sido nosso universo comum.

Conhecida popularmente como “invasões” essas ocupações de terras, como na

nossa experiência, sofriam carências por um grande período, a falta de energia elétrica, de

água, de transporte coletivo, de asfalto, de equipamentos escolares e de saúde. Faltava tudo:

Postos de Saúde com profissionais para orientar, atender e acompanhar a população,

agentes para prevenir-se de doenças comuns nessas comunidades, principalmente, pela falta

de saneamento básico. Assim, nossas aulas se serviam para essas discussões e orientações.

As aulas eram também espaços coletivos de tomada de consciência das razões e causas das

dificuldades e carências sociais, mas também eram lugares de manifestação de instrumentos

de luta para a apropriação de condições de reivindicação e de superação dessas condições

sociais desumanas e excludentes.

Comumente, trazíamos para as discussões nas nossas aulas esses e outros

temas, sobre quais, poderíamos refletir, questionar e apontar possíveis soluções. Esses

“debates” como comentávamos instigava-nos ao engajamento nas lutas locais por melhorias

na infra-estrutura do bairro que estava sendo construído. A cada encontro em que era

proposta uma discussão desses temas relacionados aos nossos problemas cotidianos,

assistíamos a certa elevação no pensamento crítico, por parte da maioria dos debatedores.

As pessoas se dispunham à prática, ao engajamento nas reivindicações, aos abaixo-

assinados, às manifestações públicas frente aos Poderes Públicos Governamentais, etc.

Observávamos nos comentários e nas posturas adotadas posteriormente que muitas

daquelas pessoas tinham agora, depois de alguns encontros, posições diferentes diante das

mesmas situações: antes não se posicionavam nem a favor nem contrários e após alguns

encontros já se pronunciavam, colocavam suas “falas”, seus modos de ver e ser no mundo.

Quase sempre acabávamos desenvolvendo metas e encaminhamentos relevantes de cunho

sócio-político.

Fazíamos também, em alguns desses debates algumas encenações, nas quais,

muitas vezes, trocávamos de postos (papeis) para assegurar a defesa democrática da

representação deste ou daquele papel, pela qual, todos os pontos de vistas possíveis

deveriam ser observados antes de chegarmos a um possível consenso. Parece-nos hoje, que

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mesmo sem conhecer o ideal moreniano estávamos vivendo a proposta dos jogos

psicodramáticos – faltava-nos a teorização. E tínhamos acrescentado uma importante

dimensão aos propósitos de Moreno, a ação política e a forma coletiva de pensar a

realidade, tomar consciência dos conflitos e agir na direção de sua superação.

Começamos então, nesse período, a ler e apropriar-nos de alguns textos que

traziam como proposta o Psicodrama de Jacob Levy Moreno. Foi fácil perceber que entre

Freire e Moreno havia algumas similaridades na forma de pensar e agir, que deveriam ser

analisadas, comparadas e integradas, naquilo que tivessem de comum e de dimensão

articuladora.

Agora, decorridos alguns anos, ampliando a leitura sobre o Psicodrama de

Moreno, suas aplicações e as contribuições de outros autores sobre a teoria, trazemos a

proposta de realizar essa análise neste trabalho de pesquisa.

3.2. Jogo Dramático e Psicodrama: semelhanças e diferenças

Diniz (2001) apresenta as principais diferenças e semelhanças entre os conceitos

que constituem os Jogos Dramáticos e a teoria do Psicodrama. Segundo a autora o Jogo

Dramático e o Psicodrama têm fundamentos parecidos e envolvem muita semelhança,

tornando-se difícil demarcar suas diferenças (DINIZ, 2001, p.36).

Para Diniz (2001, p.37)

Tanto o Jogo dramático quanto o Psicodrama têm por princípio e base a improvisação. Consiste numa proposta de teatro espontâneo, em que prevalece a cena imprevista, com respeito e valorização da espontaneidade. Outra proposta comum [...] consiste na participação total da audiência [...] atores e público são os criadores no momento da dramatização.

Existem algumas diferenças entre o Jogo Dramático e o Psicodrama, mesmo tendo

procedimentos muito parecidos. A autora diz que o Psicodrama trata de imitar uma ação e

de significar essa ação mais intensamente. No Jogo Dramático a imitação se satisfaz em si

mesma, enquanto que no psicodrama, o objetivo visado pelo drama vai além da imitação

(DINIZ, 2001, p.37).

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Para concluir sobre essas diferenças e semelhanças, Diniz (2001, p.37) ressalta

que apesar de suas diferenças, o Jogo Dramático e o Psicodrama oferecem às pessoas um

espaço significante, de transformação de conceitos abstratos em imagens reais, ou,

mentalmente visíveis, através da cena improvisada. Portanto, vale a ressalva: O

Psicodrama, termo definido por J. L. Moreno (1984, p.12) como a ciência que explora a

“verdade” por métodos dramáticos e os Jogos dramáticos são fontes de criatividade no

processo criador do homem. Segundo Diniz: O processo criador é o próprio encontro do

homem com sua essência de ser (2001, p.48).

Instruídas por tais distinções pudemos buscar articular as propostas didáticas

decorrentes do manejo desses Jogos Dramático, com a mesma busca da materialização do

Psicodrama, em nossa prática de educação e de ação social emancipatória.

3.3. Alfabetização libertadora no contexto psicodramático

O ambiente significativo para o aprendizado seja de crianças ou de pessoas

adultas é um aspecto relevante que necessita de especial atenção dos educadores. O ser

humano necessita de espaços de desenvolvimento em que possa expressar e exercer com

liberdade sua criatividade, espontaneidade e inventividade – pressupostos da filosofia

freireana e da teoria moreniana. Os homens não são iguais e não nascem prontos, afirmam

esses dois estudiosos, e essa ontologia inspira largamente a articulação destes pensadores

magistrais.

Paulo Freire foi um dos educadores que mais influenciaram a educação

brasileira, daí o nosso interesse na busca de possíveis pontos comuns entre a teoria desse

educador e de J. L. Moreno com vistas a um melhor aproveitamento do processo de

educação de pessoas adultas. Tentaremos buscar especificamente, no contexto alfabetizador

de pessoas jovens e adultas, realizar a leitura política da exclusão social e escolar desses

educandos com base na filosofia freireana, utilizando-nos de técnicas de abordagem

psicodramática.

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Reafirmamos que a nossa intenção é promover um diálogo entre o Psicodrama

de J. L. Moreno e as ideias pedagógicas do educador brasileiro Paulo Freire porque

entendemos que nessa perspectiva podemos encontrar maneiras de criar e recriar um

contexto grupal como espaço/temporal alfabetizador com uma metodologia capaz de

possibilitar aos educandos a sua plena humanização.

Freire e Moreno só compreendiam o humano como um ser em inter-relação

com o outro, com o mundo e consigo, e, portanto, um ser social. Trata-se de uma

antropologia de base sócio-interacionista. Como um ser/indivíduo que se desenvolve em

convívio. Um ser que se humaniza na coletividade, no Grupo. Parafraseando Lisboa da

Fonseca (1988): o grupo como coletivo, como sistema único de interações, com

características peculiares, num certo momento e local se constitui como propício a uma

proposta de facilitação para que essa “singularidade do grupo se constitua e se configure

dinamicamente da forma mais plena e espontânea, a partir da multiplicidade de interações

dos vários participantes, fundadas estas nas várias dimensões de suas atualidades

existenciais” (FONSECA, 1988, p. 101).

Ao compreendermos essa natureza social da concepção de homem e de mundo,

de FREIRE e MORENO, fomos tocadas pela potencialidade articuladora dessas premissas

num trabalho de alfabetização e de busca de consciência histórica e social.

3.4. Característica do bairro Jardim da Conquista

A pesquisa empírica relatada nesse capítulo foi realizada na zona leste da

cidade de São Paulo-SP, no bairro Jardim da Conquista (cuja conquista dessa área deu-se

pela organização de diversos Movimentos como os Sem-Casas, Sem Tetos, entre outros,

que desencadeou na ocupação dessa terra em 1989). Uma característica curiosa desse bairro

é que suas ruas (travessas) receberam seus nomes de títulos de músicas brasileiras, do

universo da MPB. Esse bairro está situado próximo à região de São Mateus (bairro) e divisa

com Santo André (município). Sua população atualmente conta em 12.000 famílias

aproximadamente (dado fornecido pela SABESP à Associação de Moradores do bairro).

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O trabalho de pesquisa de campo desenvolveu-se entre os meses de maio e

junho de 2012, em uma comunidade social de identidade religiosa católica, que cede seu

espaço físico para fins comunitários, entre esses, a promoção de projetos de Educação

voltada às pessoas adultas. Aí se encontra esse particular grupo, com o qual realizamos

nossa experiência empírica.

Atualmente, em relação às melhorias na infra-estrutura, os moradores do bairro

dispõem de dois Postos de Saúde, duas escolas estaduais de Ensino Fundamental I, II e

Médio, duas escolas municipais de Ensino Fundamental I e II e EJA, sendo uma delas

integradas ao Centro de Educação Unificado (CEU) e duas escolas municipais de Educação

Infantil (EMEI) e três CEIs – Centro de Educação Infantil (creche). Contudo, esses serviços

ainda são insuficientes para a população do bairro. Além disso, os moradores convivem

com a violência e a insegurança cotidianamente pela falta de Segurança Pública, pelo alto

índice de desemprego e pela patente falta de equipamentos de lazer, principalmente, para as

crianças e jovens sem condições econômicas para usufruir das atrações e eventos esportivos

e culturais realizados na grande metrópole.

3.5. Identidade do Grupo analisado

Para construirmos a identidade desse Grupo, buscamos como base conceitual

em Lisboa da Fonseca, na sua obra Grupo: fugacidade, ritmo e forma: processo de grupo e

facilitação na psicologia humanista (1988), na qual cita Buber ao analisar a categoria

Grupo; para Buber, grupo representa um espaço em que “a palavra nasce

substancialmente, vez, após vez, entre homens que, nas suas profundidades, são captados e

abertos pela dinâmica de um elementar estar juntos. O inter-humano propicia aqui uma

abertura àquilo de outra maneira estaria fechado” (M.BUBER, Do diálogo ao dialógico,

apud FONSECA, 1988, p.19). Fonseca assevera que

Ao pensarmos o “grupo” como configuração social humana, é importante que atentemos para o papel de mediação que ele desempenha entre o todo social e a particularidade do individuo. O grupo é uma configuração social intermediária que articula a realidade da esfera do indivíduo com as dinâmicas macrossociais (FONSECA, 1988, p.35).

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Concordados dessas especificidades, tínhamos interesse em buscar um grupo

que nos apresentasse as melhores condições para a realização da pesquisa. Dois aspectos

centrais deveriam ser observados: a) exclusão social e escolar; b) a didática voltada a esses

educandos. Interessava-nos que pudéssemos encontrar nesse grupo a sustentação prática

para a realização da nossa pesquisa. Nesse processo inicial, achamos ser essencial o que

para Fonseca podemos cultivar em grupos:

[...] é o papel do grupo humano de elaboração de necessidades genuinamente humanas e de constituição e reconstituição de individualidades criativas, que possam potencializar-se neles para objetivar e criar simultaneamente, nos limites de suas existências e na explicitação de suas personalidades, a essência humana de que são portadoras (FONSECA, 1988, p.36).

Após prévia visita às cinco comunidades do bairro Jardim da Conquista (quadro

1) que oferecem essa modalidade de ensino para os adultos não alfabetizados, constatamos

que em duas dessas comunidades esse trabalho ainda é realizado “informalmente”, sem

nenhum vínculo com a Secretaria da Educação do Município ou com algum outro órgão

público. Três delas recebem acompanhamento mensal do Supervisor da DRE/SME-SP –

Diretoria Regional de Educação/Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, e também

uma pequena “ajuda de Custo” para a Monitora que em troca tem a função de ensinar a

esses adultos e jovens o conhecimento básico de leitura, escrita e cálculos para

posteriormente realizar uma prova em Escolas Municipais para continuidade dos estudos

em outros níveis.

Embora se dediquem extremamente ao ensino, parte significativa desses

Educadores não tem formação especializada (Pedagogia ou Magistério) para desenvolver o

trabalho de Alfabetizar. No quadro 2 do presente estudo trazemos dados sobre a formação

das Educadoras envolvidas que atuam nessas comunidades atualmente.

Fizemos a escolha pelo Grupo formado pelas pessoas da Comunidade Sagrado

Coração de Jesus, situada na Avenida Somos Todos Iguais nº 312, que tem oferecido essa

modalidade de ensino para jovens e adultos desde 1996 quando foi inaugurada. A maioria

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dos educandos sujeitos da pesquisa são migrantes nordestinos, com idades entre 45 e 68

anos (quadro 3) e moradores do bairro em média à oito anos.

3.5.1. Características do Grupo

Os educandos pesquisados, em geral, são pessoas que não tiveram oportunidade de

estudar o suficiente quando crianças: em sua maioria trabalham como faxineiros, ajudantes,

pedreiros, porteiros, donas de casa; muitos estão desempregados, apesar de realizarem

"bicos" e trabalhos informais. A grande maioria é muito religiosa e alguns deles até faltam

na escola em dias letivos normais, pois também participam como voluntários em suas

igrejas com diferentes atribuições. A auto-estima dessas pessoas em geral é muito baixa,

impedindo-os de fazer as suas tarefas por medo de errar e insegurança. Eles têm grande

dificuldade de trabalhar em grupo a ponto de argumentar (S8) que o “máximo que dois

burros faziam juntos era pastar”. Possuem muita dependência da educadora, esperando que

ela esteja ao seu lado para “tudo”; não confiam nas ajudas oferecidas por alguns colegas e

até se auto-depreciam por estarem ali na sala.

Pudemos entender que essas ressonâncias na tradição oral dessas pessoas têm raízes

na longa e excludente tradição educacional e escolar do Brasil, marcada pela produção de

um modelo de educação e de escola como privilegio de poucos e nunca como um direito

social.

Quadro 1

Nome da Comunidade - Endereço

Funcionamento dos Grupos de Alfabetização

Comunidade Sagrado Coração de Jesus

Travessa Somos Todos Iguais nº 312

De 19h30min as 22h00min

Comunidade Natividade de Maria

Travessa Metamorfose nº 214

De 19h30min as 22h00min

Comunidade Maria Imaculada Travessa Vereda Tropical nº 356

De 19h00min as 21h30min

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Comunidade Espírito Santo Travessa Tardes de Lindóia nº 28

De 19h30min as 22h00min

Comunidade São Miguel (Paróquia)

Travessa Pé de Manacá nº 57

De 16h00min as 19h00min e De 19h30min as 22h30min

Localização e funcionamento dos núcleos nas comunidades-igrejas

Quadro 2

E D U C A D O R E S

LOCAL SEXO IDADE FORMAÇÃO Comunidade S. Coração de Jesus

Fem. 40 anos Ens. Superior completo (assistência Social)

Comunidade Natividade de Maria

Fem. 32 anos Ens. Médio incompleto

Comunidade Maria Imaculada

Fem. 35 anos Ens. Médio completo

Comunidade Espírito Santo

Fem. 25 anos Ens. Médio completo

Comunidade São Miguel Fem. 38 anos Ens. Superior incompleto

Formação e escolarização dos monitores que atuam em 2012

Sobre a evolução da integração de um indivíduo ao grupo, Yozo (1996, p. 32)

se refere a quatro momentos básicos: eu-comigo - momento em que se localiza e se

identifica num grupo, quem sou eu, como estou e como me sinto; eu e o outro -

identificação do outro, quem é o outro, como me aproximo, como me sinto; eu com o outro

- percebe-se o outro e principia a inversão de papéis, como é o outro, como ele se sente,

pensa e percebe em relação a ele; eu com todos - estabelecimento da relação com todos em

busca de identidade e coesão grupal. Esses momentos foram trabalhados durante as

diversas etapas do psicodrama pedagógico, o que favoreceu uma interação afetiva e efetiva

entre os participantes. A simplicidade das proposições das palavras, de fácil entendimento e

apropriação, parecia se traduzir em mais um convite para a organização e realização dos

processos educativos coletivos.

3.6. Técnicas de Psicodrama aplicadas no contexto alfabetizador

A proposta para os educandos de nossa pesquisa, primeiramente, foi utilizar

alguns jogos psicodramáticos, em sessões com duração de aproximadamente 2 horas, duas

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vezes por semana, entrepostos por situações de diálogos e observações regulares do grupo

em situações cotidianas do contexto alfabetizador. Esses jogos serviriam como

introdutores/sensibilizadores dos temas/categorias abordados nos nossos encontros.

Num segundo momento, a proposta foi utilizar-se da técnica “Jornal Vivo”

criada por Jacob L. Moreno que possibilita pela dramatização das leituras de jornais, a

vivência de situações cotidianas noticiadas e o apontamento de possíveis soluções para os

problemas de interesse social abordados.

Nesses encontros foram discutidas categorias emergidas através da aplicação

dos jogos psicodramáticos, que serviam de palavras geradoras para a construção de novas

palavras, pressupostos do método desenvolvido por Paulo Freire, com base na Educação

Popular. Geralmente, tratavam de questões relativas às ideologias que geram a exclusão

social e escolar, trazendo assim, para aquele contexto, as possibilidades de compreensão de

suas condições, superação e emancipação movidas pela dialogicidade dos temas tratados.

Como nos assegura Menegazzo (1994) “É o contexto dramático que ao oferecer as

possibilidades de confronto antagônico e coadjuvante, permite tornar atual na mente

humana, aquilo que era desconhecido até o momento” (MENEGAZZO, 1994, p.62).

Tentaremos assim, nesse capítulo, expor os resultados da Pesquisa de forma que

possamos evidenciar se o uso do método psicodramático – com os jogos psicodramáticos e

a técnica do “Jornal Vivo”– pôde resgatar a espontaneidade desses sujeitos, rompendo com

os padrões de comportamento estereotipados que levam à automatização dos educandos em

seu processo de ensino e aprendizagem e se são capazes de elevar o nível da consciência

crítica dessas pessoas à luz dos pressupostos filosóficos freireanos.

Iniciamos a trajetória empírica da Pesquisa no dia 03 de maio de 2012.

Encontramos um grupo constituído de pessoas, cuja maioria, veio para São Paulo,

(conforme demonstrado no quadro 3), há mais de 10 anos; com média de idade de 45 anos.

Entendemos que esse grupo é representativo da maioria dos grupos de Educação de Jovens

e Adultos que frequentam os outros contextos alfabetizadores oferecidos nas comunidades

do bairro onde se realizou a pesquisa.

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Quadro 3

Sujeito

Idade Sexo Nome (Iniciais) Origem (local de nascimento)

Tempo de residência

em São Paulo

Cidade Estado

01 67 anos masculino F. A. dos S. Serra Talhada PE 51 anos 02 66 anos masculino J. F. Q. O. Canindé CE 19 anos 03 66 anos feminino S. V. da S. Mamanguape PB 25 anos 04 63 anos feminino M. da G. F. Linhares ES 11 anos 05 58 anos masculino C. da J. L. Dourados MT 04 anos 06 55 anos feminino H. R. dos S. Jacobina BA 16 anos 07 49 anos masculino M. J. V. dos S. São Paulo SP 08 44 anos feminino D. P. A. Águas Belas PE 08 anos 09 42 anos feminino B. D. S. da S. Boqueirão PB 22 anos 10 38 anos feminino F. da S. A. Jacobina BA 31 anos 11 36 anos masculino T. R. da S. C. Formoso BA 03 anos 12 35 anos feminino C. E. S. da J. Santa Quitéria CE 19 anos 13 34 anos feminino U. F. dos S. Picos BA 10 anos 14 30 anos feminino G. R. F. da S. Loanda PR 25 anos 15 30 anos masculino B. V. de S. Arcoverde PE 20 anos 16 29 anos feminino S. M. N. A. São Paulo SP 17 28 anos masculino K. V. S. S. São Paulo SP 18 25 anos masculino D. M. da S. Itabira MG 02 anos

19 23 anos masculino S. G. F. dos S. São Paulo SP Grupo da Comunidade Sagrado Coração de Jesus no Jardim da Conquista

Nesse “movimento” de Educar encontramos professores que se tornaram

inesquecíveis para seus educandos pelo comprometimento conferido no processo de

desenvolvimento humano desses sujeitos e pela cumplicidade afetiva no decorrer do

convívio. A educadora do Grupo de Alfabetização no qual concretizamos nossa pesquisa é

uma dessas pessoas.

Os dados analisados foram coletados através de observações em participações

de aulas, questionários abertos e pelas gravações dos Comentários (terceira etapa da ação

psicodramática) gravados em áudio.

Esperamos que os resultados desta pesquisa evidenciem elementos importantes para

que o educador de pessoas adultas possa refletir sobre sua formação e prática, a fim de

buscar alternativas para a sua atuação, em sintonia com as mudanças provenientes das

necessidades educacionais inclusivas e da integralidade humana. A riqueza das situações

vividas é maior do que a nossa capacidade de reprodução, descrita e analisada, no presente

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relatório de pesquisa. Trata-se mesmo da natureza do trabalho investigativo, no qual a

ordem da realidade é bem maior do que a ordem da exposição e da relatoria do que se

percebeu nessa realidade.

3.6.1. Técnica de “Jornal Vivo”

O jornal vivo utiliza-se de uma das técnicas de psicodrama que aborda a

interioridade e a ação do indivíduo. No drama como expressão teatral, há uma referência à

contingência da vida humana como alguma coisa que não é necessariamente definitiva ou

imutável como no caso da tragédia. Portanto, o drama consiste em uma situação que se

desestabilizou - "saiu dos eixos" - e que pode nos trazer dor e sofrimento, mas que conta

com a possibilidade de ser modificada ou transformada por nossa vontade.

No “Jornal Vivo” as dramatizações são compostas a partir de uma linguagem

metafórica que utiliza códigos simbólicos para conferir significados subjetivos a fatos da

realidade, aumentando a possibilidade de recriar e de dar outros encaminhamentos aos fatos

e provocando novas leituras e compreensões.

O “jornal vivo” ou "jornal dramatizado" criado por Moreno tem como proposta

fazer uma síntese entre o teatro e o jornal. Ele retira do jornal as manchetes e as notícias

diárias e, a partir da sua leitura, obtém os estímulos necessários para realizar uma

dramatização de forma improvisada e espontânea. Trata-se de uma rica forma de assumir

para a exposição dos fatos e acontecimentos da vida das pessoas as mesmas legitimadas

formas de socialização que se propõe para a sociedade.

3.7. Freire e Moreno: aproximações

A idéia de implementar uma prática educativa pautada nas formas de pensar de

Moreno e Paulo Freire e, é claro, tendo a liberdade de criar coisas novas com base no que

foi proposto pela teoria de ambos, surgiu diante de uma necessidade encontrada em sala de

aula de alfabetização de jovens e adultos, de se unir uma teoria que explicasse a

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aprendizagem como função direta da criatividade, a um instrumento operacionalizador de

ensino, permitindo a livre expressão dessa criação.

No decorrer dessa prática percebemos que o Psicodrama contém pressupostos

semelhantes aos que dão base à teoria de Paulo Freire, tornando-a operativa no processo de

aprendizagem em grupos de EJA. Os pressupostos coincidentes são muitos, mas o

principal, além do privilégio concedido à espontaneidade, é que as bases educacionais do

Psicodrama convergem para as idéias de Freire na busca da construção total do homem,

quer quanto aos conteúdos científicos, quer na formação de seu caráter social.

Poderíamos iniciar nossa análise quanto ao valor dado à representação

dramática como elemento catalisador na Educação, interesse dos dois autores. Na atuação

de Freire encontramos demonstrações de seu interesse pela dramatização no processo

educativo quando:

Em 1953, com operários do Recife, Paulo Freire e Ariano Suassuna, desenvolveram uma experiência pioneira no SESI: lançaram as bases para a prática de um teatro popular autêntico, participante e comunicativo. Teatro como canal de conscientização, de leitura do mundo e comunicação entre palco e platéia, platéia e palco, sob mediação de um coordenador de debates, na figura de um personagem fantástico e mítico, cuja função seria a de precipitar comentários e diálogos com a platéia. Nessa experiência o teatro foi linguagem artística fundamental, aplicada à educação (VALE; JORGE & BENEDETTI, 2005, p.20).

Outra preposição dos dois autores é a possibilidade de se transformar a

realidade pessoal e social quando se tem consciência dessa condição de mudança por meio

da Educação, da espontaneidade, da criatividade e da inventividade.

Segundo Vale; Jorge, Benedetti, (2005, p. 21-23) já em 1958, no Rio de

Janeiro, Paulo Freire participa de um congresso educacional, no qual apresenta um trabalho

importante sobre educação e princípios de alfabetização. De acordo com suas idéias, a

alfabetização de adultos deve estar diretamente relacionada ao cotidiano do trabalhador.

Desta forma, o adulto deve conhecer sua realidade para poder inserir-se de forma crítica e

atuante na vida social e política. Em 1961, ele foi indicado para diretor do Departamento de

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Extensões Culturais da Universidade de Recife. No início desta década montou, no estado

de Pernambuco, um plano de alfabetização de adultos que serviu de base ao

desenvolvimento do que se denominou Método Paulo Freire de Alfabetização Popular,

reconhecido internacionalmente.

Este novo método de alfabetização de adultos marca uma significativa diferença

em relação aos métodos anteriores, pautados numa simples adaptação das cartilhas para

crianças, sendo assim bastantes infantilizados. Há diversas fontes e leituras desses

processos históricos e educacionais, o que buscamos destacar é a corajosa originalidade do

educador Paulo Freire e sua explicita opção de classe, na direção de criar e manejar um

instrumento a serviço da conscientização, da promoção da liberdade e da autonomia,

cultural, ética e política, de sujeitos sociais historicamente excluídos.

Ao invés de usar letras e palavras soltas, fragmentadas e descontextualizadas da

vida social e da experiência pessoal dos alunos, num aprendizado mecânico do “ba-be-bi-

bo-bu” ou de frases simplórias e alienantes, como “A baba é do boi”, Freire sugere partir

dos temas geradores, ou temas sociais colhidos do universo vocabular dos educandos,

abertos à discussão coletiva nos círculos de cultura e abertos à análise de questões

regionais e nacionais (VALE; JORGE, & BENEDETTI, 2005, p. 23).

Freire aplicou publicamente seu método, pela primeira vez no Centro de

Cultura Dona Olegarinha, um Círculo de Cultura do Movimento de Cultura Popular (MCP),

em Recife. Foi aplicado inicialmente com cinco alunos, dos quais três aprenderam a ler e

escrever em 30 horas, outros dois desistiram antes de concluir. Em 1962 ele teve sua

primeira oportunidade para uma aplicação significante de suas teorias, em Angicos, Rio

Grande do Norte, quando ele ensinou 300 cortadores de cana a ler e a escrever em apenas

45 dias (VALE; JORGE, & BENEDETTI, 2005, p. 26).

Baseado na experiência de Angicos, o então ministro da educação, Paulo de

Tarso C. Santos convida Paulo Freire, em 1963, para a coordenação do Programa Nacional

de Alfabetização. As metas eram alfabetizar cinco milhões de brasileiros, em dois anos, e

implantar, em 1964, mais de 20.000 círculos de cultura (VALE; JORGE, & BENEDETTI,

2005, p. 28).

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Mesmo que alguns governantes utilizassem a alfabetização apenas com

objetivos eleitorais (os analfabetos não podiam votar), o método Paulo Freire ia além, pois

buscava apoiar a transformação dos alfabetizandos em sujeitos de sua própria

aprendizagem, de seu próprio processo de conscientização, de seu protagonismo político,

de seu próprio projeto de vida. “A conscientização não pode parar na etapa do

desvelamento da realidade. A sua autenticidade se dá quando a prática de desvelamento da

realidade constitui uma unidade dinâmica e dialética com a prática da transformação”

(FREIRE, 1989, p.117).

Podemos dizer que essa nova conduta desse sujeito consciente é reconhecida

na teoria de Moreno pela proposta de catarse de integração, para Moreno esse conceito,

tanto na vertente pessoal como na vertente grupal, é sempre pensado como um ato de

verdadeiro renascimento, que estabelece o ser por meio da mudança e produz

transformações em seu mundo.

Menegazzo (1994, p. 94) considera que, segundo Moreno, toda mudança

terapêutica é em sua essência, um salto axiológico. Para ele

O acesso de uma pessoa a um novo modo de ser, por meio de um ato de criatividade, está baseado e sustentado em um novo valor que acaba de ser produzido. Além disso, o ato de criatividade é, em si mesmo, o ato de produção desse novo valor, sobre o qual irá se sustentar a nova conduta (MENEGAZZO, 1994, p. 94).

O Psicodrama aplicado à Educação é um notável instrumento, pois favorece a

ação sem despertar a competitividade, desenvolve senso de responsabilidade e cooperação,

valoriza a criatividade e permite a tomada de decisões, características estas desejáveis na

formação de qualquer individuo.

De acordo com Fox (2002, p. 52), mesmo a chamada abordagem grupal do

Psicodrama é, num sentido mais profundo, centrada no indivíduo. A platéia é organizada de

acordo com uma síndrome mental que todos os indivíduos participantes têm em comum, e

o alvo do diretor é alcançar cada individuo em sua própria esfera, separada dos demais. Ele

usa a abordagem grupal somente para alcançar, ativamente, mais que um indivíduo na

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mesma sessão, “A abordagem psicodramática trabalha principalmente com problemas

pessoais e visa à catarse pessoal; a abordagem sociodramática lida com problemas sociais

e almeja a catarse social” (FOX, 2002, p. 52).

Importa-se, nesse trabalho com grupos, como nos situa Weil (1990) seja

considerado que o fator S (espontaneidade) é um elemento que precisa ser desbloqueado.

Weil, ao citar Moreno assegura que esse fator é bloqueado por aquilo que Moreno

denomina de “conservas culturais”. Prosseguindo acrescenta que essas conservas são: “os

consensos vinculados com os diferentes papeis psicossomáticos, como os relativos à

alimentação ou ao sono, os papeis psicodramáticos, ligados às emoções e os papeis

sociodramáticos, como os do vendedor, do chefe de Estado ou do cientista” (WEIL, 1990,

p. 65).

Igualmente o trabalho de Freire é transformador por causa de seu compromisso

com a verdade e com o avanço da consciência crítica. A perspectiva do Psicodrama é

também, na sua base, um processo onde as pessoas e grupos podem buscar a

espontaneidade e criatividade. É o conhecimento ou a consciência crítica de si próprio e do

lugar que ocupa no mundo. “Exercitar e formar para a espontaneidade, eis a principal

tarefa da escola do futuro”. Eis o sábio conselho de J. L. Moreno.

Essas descobertas conceituais formaram a inspiração para a proposição e

manutenção de nossa intervenção no grupo e criteriosas análise de sua potencialidade.

3.8. Apresentação da proposta da pesquisa empírica.

As técnicas do Psicodrama podem ser adaptadas sem maiores problemas às

metodologias escolares comuns. Para Diniz (2001, p.25) o psicodrama pedagógico [...], os

jogos dramáticos podem ser aplicados como recursos didáticos, respondendo

vivencialmente aos planos curriculares. Quando se inicia um trabalho com o uso deste

método, geralmente, há uma reação de surpresa dos educandos, mas, aos poucos, estes

começam a sentir-se à vontade. Em alguns casos, há educandos que resistem à mudança da

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metodologia, e há até os que acham ridículo o que está se fazendo. Mas, todas as reações

acabam se tornando positivas, consideradas desde a perspectiva da dinâmica de grupo.

A aula em que se introduz o método pela primeira vez se torna muito espontânea

e como um catalizador que desencadeia a criatividade e, consequentemente, reduz as

“Conservas Culturais”. Na utopia Moreniana era a aprendizagem da espontaneidade o

veículo que poderia, inclusive, salvar o indivíduo e a sociedade como um todo. Dizemos

“salvar” no sentido de preservar a pessoa da negação de sua identidade pelas determinações

doutrinárias e dogmáticas impostas pela sociedade em seu conjunto.

É necessário que o educador trabalhe de forma segura e com afeto, para dar

tempo à entrada do maior número possível de educandos dentro da situação total. É

pertinente que a maior parte dos educandos participe do que está sendo vivenciado, mesmo

que esta participação seja de suas carteiras.

No decorrer dos encontros, nos momentos oportunos, são disponibilizadas

técnicas de aquecimento e relaxamento, observam-se os educandos mais sérios e justos no

desempenho de papeis que lhes são atribuídos, mais vivacidade na percepção dos

sentimentos e na intuição da ideia. Percebe-se também maior soltura no corpo e na ação

espontânea. Evidentemente que tais disposições são lentas e paulatinas, pois precisam

nascer da liberdade e do desejo de participação.

Os resultados dos trabalhos mostram que, depois da aplicação do Psicodrama,

observam-se mudanças no grupo como um todo.

Alicia Romaña enfatiza:

Há maior interação entre os alunos, as opiniões são mais sinceras, os comentários e as críticas são melhores aceitos e o conhecimento é utilizado como algo próprio e presente. Os papeis fixos e estáticos dentro do grupo começam a diluir-se. Pouco a pouco cada um vai tomando consciência da sua situação no grupo [...], à medida que os alunos evoluem, percebe-se que as técnicas dramáticas, ao mesmo tempo que facilitam a integração do conhecimento, facilitam a integração de aspectos socializantes e de estilos de conduta, que abrem novas perspectivas para a sua maneira de agir e de relacionar-se com seu ambiente (ROMAÑA, 1987, p.26).

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O que definimos como manejo do método psicodramático no ensino de adultos

é basicamente uma arte de perguntar, de situar o educando diante de um problema a ser

resolvido, para que ele encontre a resposta adequada. Para Kaufman (1992, p.14) a solução

do problema implica o relaxamento da “tensão por conhecer”. Sendo assim, o Psicodrama

na educação, segundo Kaufman (1992, p.15) não deve ser visto como um método novo, já

que, nesse sentido, em si mesmo o Psicodrama nada tem de “novo”, porque recorre à

maiêutica, ao mais antigo dos recursos que o homem já apelou, para ensinar e aprender.

Kaufman (1992) prossegue

Moreno considerava que as palavras eram insuficientes para a comunicação humana, podendo deformá-la. A ação, ao contrário das palavras, nos colocaria em comunicação direta com os acontecimentos, conduzindo à própria realidade, sendo mais completa e totalizadora. Assim, o ensino psicodramático não só envolveria o juízo crítico, a criatividade e a socialização do aluno, como favoreceria um bom clima emocional, a integração e a aprendizagem grupal, na medida em que conciliaria o conhecimento adquirido com a experiência vivida (KAUFMAN, 1992, p.15).

O Psicodrama contribui para que o educando coloque para fora o que “sabe” e o

compreenda como algo próprio, como algo seu. A metodologia psicodramática permite ao

educador verificar, numa situação “viva”, a validade do conhecimento que foi incorporado

através da rotina educativa, isto é, através de aulas expositivas, dialogadas, de trabalho de

pesquisa em grupos, através de leituras, mediante técnicas audiovisuais, etc. e retificar os

erros ou as distorções que se tenham produzido.

As dramatizações em sala de aula situam o educando num verdadeiro ato

dramático, no qual se parte de uma ruptura da estrutura livresca para chegar a uma nova

estrutura lógica, com valor no aqui-e-agora, mas que não contradiga necessariamente a

verdade que o conhecimento encerra. Os atos dramáticos não pretendem ser perfeitos, no

sentido de uma apresentação ou representação que é bem ou mal desempenhada. Na

verdade são situações sempre abertas para que prevaleça a verdade das pessoas no conjunto

das ações coletivas.

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Desta forma, quando for necessário, o educando utilizará este conhecimento,

pois este não vai ser mais vivenciado como algo que pertence ao livro e ao professor, mas

como uma propriedade do educando, algo que ele conhece.

No Psicodrama, o personagem protagônico é a pessoa do ator que está

desempenhando o papel principal. Ou seja, o ator faz o papel de si mesmo, não importando

se o texto pretende reproduzir uma situação de vida real do ator protagonista ou se o

enredo, montado com a participação de coadjuvantes, toma um rumo ficcional. Essa

original e reforçada dimensão confere ao instrumento uma riqueza sem par!

Paulo Freire, no livro Pedagogia do Oprimido, alerta-nos para a relação

professor-aluno que tem no ato de educar intenções ideológicas que contradizem a

humanização, a educação como ato narrativo que traz “a narração, de que o educador é o

sujeito. É preciso negar-se ao modelo que conduz os educandos à memorização mecânica

do conteúdo narrado. Mais ainda, a narração os transforma em ‘vasilhas’, em recipientes a

serem ‘enchidos’ pelo educador. Quanto mais vá ‘enchendo’ os recipientes com seus

‘depósitos’, tanto melhor educador será. E assim, segundo Freire(1989, p.61)

Quanto mais se deixem docilmente ‘encher’, tanto melhores educandos serão. Desta maneira, a educação se torna um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador o depositante. Em lugar de comunicar-se, o educador faz ‘comunicados’ e depósitos que os educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem (FREIRE 1989, p. 61).

Mudar essa prática educativa que tem no educando a figura de receptor de

dados, trazendo para o contexto de alfabetização a representação dramática desse recorte

metodológico de Ensino, apontando categorias para a reflexão das relações educador-

educando pode possibilitar a compreensão da consciência da ideologia social dominante,

intrínseca nesse modelo, e ainda estimular o mesmo ao desafiador desejo de emancipação

desses sujeitos.

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3.9. Relato, análise e processamento teórico da pesquisa empírica

A parte prática desta pesquisa foi realizada no salão comunitário da

Comunidade Católica Sagrado Coração de Jesus. Essa igreja localiza-se à Avenida Somos

Todos Iguais, nº 312, Jardim da Conquista – São Paulo/SP, como já relatamos.

A sala de aula onde ocorreram os encontros localiza-se no piso térreo da Igreja.

Seu espaço físico é constituído por carteiras, ventiladores, uma mesa com cadeira, armário;

quadro e giz, revistas, mural para afixar alguns trabalhos dos alunos, etc. Um cenário de

um equipamento religioso de praxe posto a serviço de uma finalidade educacional.

As atividades foram realizadas no grupo que frequenta à noite, e os encontros

aconteceram duas vezes por semana, durante, em média, duas horas a cada dia, sendo que

em um deles havia aplicação de técnicas psicodramáticas e em outro dia as observações

gerais do andamento das aulas sem a participação direta da pesquisadora. Buscávamos

nessa articulação observar e não dominar as dinâmicas próprias do grupo e de sua

finalidade.

Os materiais utilizados durante as aulas foram aparelho de som e TV, jornais,

revistas, vídeos e textos pertinentes à discussão, cartolina, lápis de cor, giz de cera, papéis,

barbantes, etc.

Dentro da proposta de uma didática em contexto de alfabetização com uso da

metodologia Psicodramática, foram utilizadas algumas técnicas inspiradas no Psicodrama

Pedagógico como: discussões em grupo, dramatizações, estudos e análise de conceitos de

algumas categorias, tais como: trabalho, justiça social, desigualdade social, mídia, educação

e escola.

A priorização nesta proposta de trabalhar com grupos teve o intuito de focar na

idéia de homem Moreniano como indivíduo social, o qual nasce em sociedade e necessita

dos outros homens para sobreviver. Segundo Gonçalves, Wolff & Almeida (1988, p. 46),

toda a teoria de Moreno traz a ideia do homem em relação, ou seja, o eixo principal de sua

teoria é a inter-relação pessoal.

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Foi possível perceber nesse processo que o uso da dramatização em sala de aula

proporciona aos educandos vivenciarem o “como se”. O “como se” do Psicodrama na

dramatização trata-se de fazer existir o sujeito espontâneo e criativo. Para isso, Moreno

recorreu ao teatro para ser o locus de suas pesquisas e criar o Psicodrama, já que o teatro é

um lugar de possibilidades inusitadas e é neste campo de virtualidades infinitas que a

liberdade de poder sonhar se faz presente.

A teatralização das atividades educacionais com os conteúdos propostas

mesclavam-se às identidades e estórias de vida produzindo o universo da formação e da

observação que pretendíamos analisar: a materialidade das proposições de Moreno e Freire

como construções de andaimes epistemológicos e políticos para a realização da tarefa de

educar, de humanizar e lograr gerar condições de apropriação da consciência critica sobre o

mundo nesses sujeitos aprendentes.

3.9.1. Descrição dos Encontros

Inicialmente observou-se que os educandos ao chegarem à sala e encontrá-la

arrumada em círculos, com aparelho de som e TV e com textos e temas para serem

discutidos por todos os presentes, expressavam um relativo estranhamento inicial, pois o

espaço não estava disposto como de costume, isso assustou-os um pouco. Eles receberam a

orientação para que todos falassem sobre suas expectativas, e principalmente, que aquelas

duas horas do nosso encontro, era um tempo e um espaço deles, um espaço no qual era

privilegiado o diálogo, o trazer de experiências e ou vivências pessoais, espaço este em que

era estimulada a não paralisação, o silêncio; todos eram instigados a trabalhar e refletir

sobre o tema proposto na aula.

O método psicodramático no ensino, de acordo com Romaña (1987, p.48), é

basicamente uma arte de perguntar, de situar o aluno diante de um problema a ser

resolvido para que ele encontre a resposta adequada. A solução do problema implica o

relaxamento da “tensão por conhecer”. Implica também numa problematização, segundo o

método Paulo Freire. Sendo assim, nossa primeira experiência nessa pesquisa foi tratar da

questão do analfabetismo.

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Os registros desses encontros foram feitos somente pela gravação audiofônica.

Acreditamos que qualquer outra forma de registro poderia inibir o grupo de educandos,

contradizendo a proposta dessa pesquisa cuja essência é a espontaneidade e a autonomia.

Desta maneira, após as dramatizações, no momento dos comentários, usamos um gravador

com o cuidado para não trazer qualquer constrangimento aos nossos sujeitos. Vale ressaltar

que foi comunicado aos mesmos sobre tal procedimento na apresentação inicial do projeto

de pesquisa, contando com o consentimento livre de todos.

O educando quando respeitado em sua autonomia, deixa fluir toda sua

espontaneidade e criatividade. Freire afirma: A alegria não chega apenas no encontro do

achado, mas faz parte do processo da busca. E ensinar e aprender não pode dar-se fora da

procura, fora da boniteza e da alegria.

Moreno assegurava que a educação deve enfrentar a ordem social, as conservas

culturais. Segundo Ramalho (2001, p. 36), Moreno falava da educação como uma estrutura

que tem como centro a espontaneidade. Para ele a espontaneidade age como um

catalizador que desencadeia a criatividade e, consequentemente, reduz as “Conservas

Culturais”.

Vejamos aqui excertos desses encontros, para ilustração de nossas premissas e

legitimação de nossas possíveis conclusões:

3.9.1.1. Primeiro encontro: Vida Maria

Dia 15 de maio de 2012

Neste primeiro encontro o aquecimento inespecífico foi feito com o

documentário “Vida Maria” um curta metragem de Marcio Ramos em animação que se

consagrou em 2007 nos festivais de cinema como o mais premiado do Brasil naquele ano.

Maria José, uma menina nordestina de cinco anos de idade é levada a largar os estudos para

trabalhar; enquanto trabalha, ela cresce e casa, tem muitos filhos e envelhece. O filme

retrata a vida das várias Marias daquela família que sucessivamente tem a mesma história

de vida.

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A proposta nesse encontro foi assistir ao filme e refletirmos sobre a realidade

social da família retratada na trama. Vale ressaltar que nesse momento, não foi solicitado

aos educandos que falassem de suas próprias vidas. No entanto, nos comentários, o que foi

evidenciado foi vários relatos pessoais relacionando-se com a personagem da trama. No

filme, “vemos a semelhança com a realidade vivida por muitas de nossas famílias” (S9).

Pelos comentários dos educandos, podemos acreditar que nos tempos passados

e mesmo em tempos atuais, freqüentando “escola” como dizem, essa constatação da

condição de analfabetos aflige uma significativa parcela do grupo desses educandos.

Segundo a fala do S5 “ainda tem muita gente no sertão nordestino que vive como no filme.

O S14 disse que ficou triste porque o entusiasmo da garotinha em aprender a ler e escrever

não parece que é importante para sua mãe, isso desanima a filha.

Outra observação interessante foi feita pelo S1 que apontou a influência da

família na formação das crianças: “elas se espelham nos pais”. No filme, em várias

gerações, a necessidade de trabalhar é o que mais interessa a mãe, pois precisa sustentar os

seus filhos com muito esforço.

3.9.1.2. Segundo encontro: Dia 22 de maio de 2012

Vídeo: Triste partida

música de Luiz Gonzaga - letra de Patativa do Assaré

Para refletirmos sobre a migração, visto que a maioria desses educandos não

nasceu na cidade de São Paulo, utilizamos para o aquecimento inespecífico o poema de

Patativa do Assaré “Triste partida” musicado pelo cantor nordestino Luiz Gonzaga, (anexo

2). Assistimos a um vídeo com imagens de uma família de retirantes nordestinos em

viagem para São Paulo, tendo como fundo musical o poema, escrito em 1983, cuja melodia

soa como um “lamento” daqueles que se viram obrigados a deixarem sua terra natal para

não perecer com a seca, que, como diz a música, “castigou” historicamente o nordestino

brasileiro por longo período.

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Nesse encontro, a etapa dos Comentários foi extremamente rica para os fins da

pesquisa. Pudemos observar o quanto os sujeitos ficaram emocionados ao assistirem o

vídeo. Pareceu-nos como retrato de suas próprias vidas! Ouvimos: (S15) “Eu também tinha

uma boneca dessa e que ficou perdida, eu sempre sonhava com ela e as vezes sonho até

hoje”. (S19) “Minha mãe costumava plantar roseiras em volta da casa e era eu que cuidava

delas”. (S5) “Meu pai tinha um sitiozinho que precisou vender porque perdeu toda a

lavoura com a seca (...)”. (S11) “Quando viemos pra São Paulo, a gente (eu e meus 8

irmãos pequenos) não sabia o que ia acontecer aqui com a gente, ficamos com medo de se

perder um do outro e nunca mais se encontrar” (S2) “Todo ano meu pai dizia que a gente

ia voltar pra nossa terra, mas a minha mãe falava que não queria ir porque aqui em São

Paulo pelo menos a gente passava menos fome que lá (...) porque aqui a patroa dela era boa

e deixava ela levar para casa as sobras de comida”.

O Sr. A. (S1) fez um emocionante relato de sua vinda para São Paulo quando

tinha 16 anos (hoje tem 69 anos). Este relato serviu como aquecimento específico para a

dramatização desse segundo encontro.

Cena 1: Na viagem, o tio de seu A. (representado pelo próprio Sr. A.) que

conduzia a família parou o caminhão na beira da estrada. Com uma carabina em mãos

ficava vigiando para que o jovem A. e seus irmãos colhessem as espigas de milho enquanto

a mãe de seu A. juntava gravetos de lenha para assar as espigas.

Dona M. da G. (S3)faz o papel da pessoa que vai decidir o que fazer quando o

dono da plantação de milho aparecer com os seus “capangas” – empregados que chegam

com a orientação para expulsar a família de A. de forma violenta, com empurrões e

pontapés.

Dona M. da G. (S3)diz que vai conversar. – “Conversando a gente se entende”!

Na cena, ela argumenta com os empregados do fazendeiro para que tenham compaixão de

quem está com fome. Nesse diálogo ela diz:

- Você tem filhos? Já ouviu eles te pedirem comida e você não ter? Já passou

fome? – Então deixa a gente ir embora em paz!

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3.9.1.3. Terceiro encontro Dia 29 de maio de 2012

“Jornal Vivo” Texto: Se deixarem a escola melhora – Revista Época (junho de 2007 Edição nº 472).

O trabalho iniciou-se com o aquecimento inespecífico, com a intenção de

descontrair o grupo e fazer com que eles centralizassem na proposta de trabalho. Foram

distribuídos pela sala cerca de oito artigos de jornais que versavam sobre as categorias

Trabalho (desemprego), Educação/Escola e Habitação.

Em seguida, foi pedido que os integrantes do grupo caminhassem pela sala,

observando os temas dos artigos e que escolhessem os artigos que gostariam de discutir. À

medida que um integrante escolhia o artigo, ele se posicionava diante dele. Sendo assim,

foram formados subgrupos em cada um deles.

O caminhar pela sala observando os artigos ocorreu de forma tranquila. Os

educandos facilmente concentraram-se na atividade e poucas foram as conversas durante o

processo de escolha.

À medida que os subgrupos foram sendo formados, alguns educandos

começaram a discutir, ainda enquanto se agrupavam o que possivelmente o artigo poderia

falar e o porquê de ter escolhido o tema. Três foram os artigos escolhidos, os quais

versavam sobre os temas:

1. Escola privada para todos?;

2. Se deixarem, a escola melhora;

3. O que as escolas precisam aprender.

Recolhem-se os textos que não foram eleitos e os textos escolhidos foram

organizados, de forma que os educandos pudessem formar filas diante de cada um.

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Novamente foi pedido aos alunos que caminhassem pela sala observando todos

os temas expostos. Neste momento inicia-se o aquecimento específico. Foi pedido que o

grupo escolhesse uma única notícia a ser dramatizada.

Mais de uma notícia foi eleita, e sendo assim, o critério de desempate foi a

notícia mais atraente para o grupo total de participantes, ou seja, o artigo que tivesse o

maior grupo de educandos. Este artigo foi escolhido como tema protagônico.

Desta forma, o artigo escolhido foi: “Se deixarem, a escola melhora”. Os

subgrupos se desfizeram e foi explicado que o artigo deveria ser lido pela educadora e

discutido pelo grupo e, em seguida, eles deveriam criar uma cena a ser dramatizada.

Foi formado um grande grupo e começaram a ler o artigo. Era incrível ver

como eles estavam engajados na tarefa. Em seguida iniciaram as discussões sobre o tema: o

que concordavam ou não com o artigo, fatos da vida pessoal que o artigo fez com que eles

relembrassem, etc. A partir daí, os integrantes do grupo começaram a definir a cena a ser

criada, os personagens, a distribuição das cenas, quem iria participar da cena e quem iria

auxiliar nos trabalhos, objetos que poderiam utilizar no cenário, falas, etc.

É importante ressaltar que o artigo serviu de estímulo para que ocorresse a

dramatização. Na verdade, os educandos não noticiaram a reportagem em si, mas a

enriqueceram com detalhes e interpretações de acordo com a criatividade dos próprios

atores.

Toda essa criação leva, segundo Paulo Freire (1996),

[...] à autonomia do ser dos educandos, valorizando e respeitando sua cultura e seu acervo de conhecimentos empíricos junto à sua individualidade. Assim, quando for necessário, o aluno utilizará este conhecimento, pois, este não vai ser mais vivenciado como algo que pertence ao livro e ao professor, mas, como uma propriedade do aluno, algo que ele conhece (FREIRE, 1996, p. 98).

Depois de alguns minutos, os educandos anunciaram que a cena estava pronta

para ser dramatizada. Eles não demonstraram dificuldade para criar a cena. Organizaram a

sala, colocando as cadeiras em forma de círculo. Cinco educandos ficaram na platéia, onze

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educandos participaram da cena como atores e a educadora assumiu a função de Ego-

Auxiliar do processo psicodramático.

Segundo Baptista & Costa (1998),

[...] a etapa de dramatização é constituída pela dramatização propriamente dita da notícia escolhida pelo grupo. Pretende-se que as cenas escolhidas e a representação dramática transcorram livremente. A notícia jornalística é então encenada e se presencia, nesse momento, a construção de um trabalho grupal. No palco passa a ocorrer a montagem e execução de uma obra teatral, geralmente disparada por um fato social. Os ingredientes essenciais dessa operação compõem-se de fantasia e realidade; o principal recurso é a ação e o grande “tempero”, a emoção (Baptista & Costa 1998, p. 47).

O diretor (a pesquisadora) anunciou que a dramatização seria dividida em dois

momentos. Iniciariam utilizando como cenário uma escola, a qual se denominou Escola de

Ensino Fundamental “Vovó Dida”.

A cena se passava na secretaria da escola, onde a “diretora e alguns

professores” conversavam. A conversa tinha como tema a queixa dos professores em

relação à falta de condições físicas na escola, a qual estava com várias salas com o telhado

quebrado: “- Quando chove não têm como dar aula, inunda tudo” (sic), “as cadeiras

quebradas, salas sem porta, sem ventilador, luzes queimadas, falta merenda escolar, falta

giz, água, etc. A diretora ouvia todas as reclamações e prometia aos “professores” resolver

os problemas.

Os professores, por sua vez, falavam estar cansados de promessas sem solução.

“- Não temos como trabalhar assim. É complicado para os alunos, freqüentarem uma escola

sem o mínimo de condições para que eles aprendam. Precisamos de coisas básicas para que

a escola funcione. A senhora nunca resolve nada. Já tem anos que tudo está do mesmo jeito.

Aliás, ‘pior’ (sic)”.

Os “professores” (na representação) se mostraram revoltados, querendo

mudanças. Em outra cena, a diretora tentava resolver os problemas, contudo, como

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centralizava todas as atribuições em seu cargo, não conseguia solucionar os problemas

sozinha.

Em seguida, o diretor da ação psicodramática anunciou que a próxima cena

seria em outra escola, a Escola Fundamental “Mara Vilhosa”. Nesta, a conversa com os

professores e a diretora era sobre as possíveis mudanças que poderiam ser implementadas

na escola. Os professores sugeriam algumas modificações e a diretora, juntamente com os

professores, distribuía as tarefas.

Nessas duas cenas representadas observamos a relevância para os educandos,

na maneira de se expressaram ao representar as duas situações dramáticas e nos

comentários, a necessidade do grupo de estar engajado; da responsabilidade de cada um

para a busca de soluções para determinado problema. De forma geral pôde-se observar que

os educandos durante os dois primeiros encontros foram desenvolvendo sua

espontaneidade e, no momento da técnica Jornal Vivo, puderam demonstrar essa total

espontaneidade na construção da cena. Percebeu-se que o grupo já não se encontrava mais

cristalizado no papel de aluno. A construção não foi uma mera repetição, mas, ao contrário,

um momento do potencial criativo atualizar-se e manifestar-se. Criar implicou a produção

de algo novo, a partir de algo que já é dado.

É importante destacar que a influência de Freire também está presente no teatro

pedagógico. Acreditamos que outras manifestações teatrais contemporâneas (“teatro de

conscientização”, “teatro dos oprimidos”), também mostram a influência de Freire, mesmo

que esta não seja abertamente admitida.

Para finalizar o trabalho, passamos para o momento do compartilhar. Vale

destacar que neste momento fica claro visualizar a catarse de integração na abordagem

Psicodramática, como nos situa Marra (2004):

[...] o objeto da pedagogia Moreniana é permitir um ambiente relaxado, isto é, a expressão dos estados de espontaneidade (sentimentos, sensações, impressões, pensamentos) para que a aprendizagem seja plena. Essa situação espontânea do grupo por meio da ação promove um efeito catártico ou curativo. Ao ver expressos na ação de seus sentimentos, seus pensamentos, suas imaginações, pode ter a clareza da necessidade de

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reformulações ou a constatação de uma satisfação que promove mudanças (MARRA, 2004, p.51).

O grupo comentou o quanto ficaram envolvidos com a cena e o quanto de

improviso surgiu no momento. “- Muita das coisas que aconteceram na cena saiu na hora.

Não tínhamos pensado em muitos detalhes, a gente queria fazer só o que era solicitado pela

senhora (pesquisadora). Na hora da cena muita coisa veio à nossa cabeça, parecia que tudo

era real” (sic) (Sujeito 19).

Essa improvisação, esse fluir livremente das ações e palavras dentro da

dramatização faz parte da proposta de Moreno, pois, ainda segundo Marra (2004),

[...] é um método psicopedagógico de trabalho com grupos que facilita a aprendizagem de papeis, ideias, conceitos e atitudes por meio da vivência sociopedagógica. Ele se apoia na ação e no conceito de espontaneidade, que são concebidos como resposta própria do indivíduo adequado às relações de seu contexto social. Tem uma proposta de transformação nos indivíduos e sistemas sociais (MARRA, 2004, p.47).

Alguns educandos afirmaram não acreditar que, de um artigo, iria surgir tanta

coisa. Outros relataram ter resistência a essa coisa de teatro e, quando perceberam que se

tratava disto, ficaram receosos, contudo, no decorrer do trabalho não se reconheciam. Essas

reações poderiam ser trabalhadas mais amplamente, pela riqueza que retratam e pela

potencialidade ética, estética e educacional que carregam e densificam.

Segundo Romaña (1997),

[...] quando se inicia um trabalho com o uso deste método, geralmente, há uma reação de surpresa dos alunos, mas, aos poucos, estes começam a sentir-se à vontade. Em alguns casos, há alunos que resistem à mudança da metodologia, e há até os que acham ridículo o que está se fazendo. Mas, todas as reações acabam se tornando positivas, consideradas desde a perspectiva da dinâmica de grupo (ROMANA,1997, p.65).

Alguns integrantes do grupo comentaram ter se mostrado surpresos com os

envolvimentos de pessoas, que na rotina diária das aulas se mostravam tímidos, mas, que na

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cena revelaram-se grandes atores. Neste momento, os considerados tímidos falaram da

emoção que a cena os fez sentir e do quanto se transportaram para a própria realidade de

seus trabalhos, onde possuem poucos espaços para discutir e implementar mudanças. “- a

gente fica preso a regras e não temos a mínima liberdade de criar” (sic), (S12).

Segundo Freire (FREIRE, 1996, p. 47), “ensinar não é transferir

conhecimento, saber ensinar é ‘criar as possibilidades para a sua própria produção ou sua

construção’”. Para Freire “O professor precisa estar aberto às indagações, à curiosidade,

às perguntas dos alunos, às suas inibições; um ser crítico e inquiridor, inquieto em face da

tarefa de ensinar e não a de transferir conhecimento” (idem).

Para Ramalho (2001) na ação psicodramática, com o Psicodrama aplicado à

Educação:

O professor passa a ser um facilitador do processo que é assumido pelo aluno, criando um clima de liberdade e espontaneidade, onde este último desenvolverá o seu potencial e criará. Assim, o professor estará também ao lado do aluno, invertendo o papel com ele e sentindo melhor a sua realidade, promovendo um vinculo télico e não transferencial (RAMALHO, 2001, p.3).

De acordo com os educandos, foi muito bom terem tido aulas com este método,

“- É uma aula diferente” (sic), (S19); “- A cena me fez ver coisas que quando ouvi a

professora ler o texto não tinha percebido. Parece que as ideias vieram à cabeça” (sic), (S8).

Percebe-se na fala do Sujeito 19 que ele já está funcionando como agente

multiplicador, podendo ser um recurso valioso no processo educativo. Segundo Marra

(2004),

“Uma das dimensões do papel de multiplicador é o sujeito em processo de mudança e possibilitando mudanças. O papel deste multiplicador será substituir uma percepção distorcida da realidade por uma percepção crítica, uma tomada de consciência. O multiplicador vincula, articula, expande seus horizontes e está comprometido em expandir o horizonte dos outros na relação. A reflexão vem junto com a ação e, logo, uma rede de sustentação fica presente” (MARRA, 2004, p. 89).

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Os atos dramáticos vividos pelos educandos propiciaram uma liberdade de

criação no aqui-e-agora, dentro do tema da aula. Esta forma de ensinar foi defendida por

Freire já que para ele a alfabetização era, ao mesmo tempo, um “ato de criação, capaz de

gerar outros atos criadores; uma alfabetização no qual o homem, que não é passivo nem

objeto, desenvolvesse a atividade e a vivacidade da invenção e reinvenção, características

dos estados de procura” (FREIRE, 1977, P.41).

Com o Psicodrama Pedagógico alunos e professores compartilham a

responsabilidade pelo processo de aprendizagem. Assim, o aluno pode abandonar ou

superar o papel de receptor passivo de conhecimentos e adotar o papel de co-autor de

resultados, de novas condutas e sujeito de novas práticas.

Decidimos por não usar questionário de perguntas de Múltipla escolha por se

tratarem de perguntas fechadas, que embora, apresentam uma série de possíveis respostas,

abrangendo várias facetas do mesmo assunto, poderiam constranger os educandos ou

confundir o propósito da pesquisa. Oferecemos um questionário com possibilidade de

respostas que demonstrasse algumas características pessoais desses sujeitos ao mesmo

tempo, que lhes desse a liberdade de registrar suas emoções na vivência psicodramática,

porém, sem obrigatoriedade de preenchimento parcial ou integralmente. Contudo, nossa

maior preocupação foi registrar e relatar os comentários realizados na terceira etapa dos

encontros. Fizemos a gravação de áudio desses comentários e estão transcritos em anexo

(IV) deste trabalho. Percebemos que a combinação de gravação de áudio com as respostas

abertas possibilita mais informações sobre o assunto, sem prejudicar a tabulação.

Os encontros sempre ocorreram como uma “sessão de Psicodrama” para

desenvolvimento de grupos. Porém, no psicodrama pedagógico, especificamente, a

aplicação de jogos psicodramáticos como no caso dos dois primeiros encontros dessa

pesquisa em que assistimos aos vídeos e depois comentamos sobre seus conteúdos, o

objetivo passa a ser o desenvolvimento de conceitos ou materialização de um fato através

da dramatização. No caso desses dois primeiros encontros, não houve a dramatização pelos

sujeitos da pesquisa, mas, pela dramatização das personagens foi possível discutir com o

grupo sobre a exclusão social dessa parcela de brasileiros: nordestinos migrantes e

analfabetos, em que eles próprios se projetaram.

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Da parte dos educandos, não existiram muitos problemas a serem apontados no

uso sistemático dos jogos psicodramáticos. Os alunos mais tímidos passaram a integrar-se

aos poucos, e os mais extrovertidos procuraram, no decorrer do tempo, a ceder lugar a

outros do grupo, durante as expressões dramáticas. Essa nobre troca de papeis, a partir da

espontaneidade das características de cada um dos sujeitos no grupo já denota uma

transformação ética e pessoal, empreendida no próprio processo de constituir os jogos.

3.9.1.4. Quarto encontro – Dia 06 de junho de 2012

“Jornal Vivo” Textos sobre: Saúde, Violência e Meio Ambiente

A vivência prática que será analisada aqui ocorreu durante um encontro com

cerca de duas horas e trinta minutos. Durante o aquecimento inespecífico foram

estabelecidos aproximadamente 10 minutos para fazer um pequeno preparo dos

participantes. Foi solicitado aos educandos que caminhassem pela sala como se estivessem

preparando-se para um passeio.

Em seguida eles receberam algumas instruções no sentido de juntarem-se em

grupos conforme cada pessoa se percebesse pertencer a ele; cada um deveria se direcionar

ao espaço de cada grupo que era desfeito assim que se ouvisse uma nova instrução, a saber:

grupos de casados, solteiros, divorciados, viúvos; grupos de pessoas que vieram do

nordeste, do norte, do sul, do centro-oeste, do sudeste; grupo de pessoas que vieram morar

em São Paulo há mais de 10 anos e há menos de 10 anos; grupo de pessoas que já tinham

estudado por algum tempo quando criança e os que só puderam estudar depois de adulto; e,

finalmente, grupo de pessoas que gostam de acompanhar as notícias por meio do jornal, da

televisão, do rádio e os que não dão importância para notícia. Para esta última formação

solicitou-se que os participantes caminhassem novamente por alguns segundos, e em

seguida ocorreu uma parada: nesse momento foi solicitado aos educandos que se

direcionassem aos diferentes locais da sala em que se encontravam alguns jornais,

apropriando-se de um jornal qualquer e sentando-se em seguida num local em que se

sentissem confortáveis.

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Logo em seguida fomos para o aquecimento específico que ocorreram em três

momentos. No primeiro momento - estimado em aproximadamente 15 minutos - cada

participante de posse de um jornal, foi convidado a folhear o conteúdo do mesmo e escolher

uma notícia obedecendo aos seguintes critérios: “Se você ainda não compreender o que está

escrito no mesmo, escolha uma imagem que lhe chama a atenção separando-a e tentando

encontrar as razões da sua escolha”; “se você já souber ler um pouco e compreende o título

ali escrito, separe a notícia pelo título”; e “se você já é um leitor, deve fazer a escolha da

sua notícia baseando-se não só na imagem do jornal, mas também na história ali

publicada”.

No segundo momento - com duração de aproximadamente 5 minutos - foi

solicitado aos educandos que se levantassem e caminhassem pela sala com a parte do jornal

já selecionada a fim de tentar encontrar entre os colegas outras notícias, outros títulos ou

outras imagens semelhantes ou que mais se aproximassem à sua escolha. Feito isso, um

novo agrupamento foi formado, desta vez por assuntos e assim se formaram grupos para os

seguintes grandes temas: saúde, violência e meio ambiente.

Durante o terceiro momento - de aproximadamente 20 minutos - nos grupos

temáticos, cada componente justificou as razões de sua escolha compartilhando-as com os

colegas e, assim que todos se posicionaram, o grupo escolheu uma única notícia em

comum. O passo seguinte foi a leitura com a mediação da educadora, discussão e

compreensão da notícia pelos componentes da equipe, de modo que todos conhecessem o

assunto tratado e planejassem uma dramatização da mesma.

Durante a etapa de desenvolvimento - de aproximadamente 25 minutos - cada

grupo preparou uma apresentação da sua notícia de forma dramatizada como em um teatro

improvisado e sem ensaios. Era uma condição básica que todos os componentes

necessitariam assumir um papel de modo a participar de alguma maneira da apresentação,

tornando-se personagens ou objetos citados na notícia, de modo que os outros grupos

conseguissem compreender o assunto apresentado. Ocorreu também a confecção de alguns

objetos para compor a cena que os atores utilizariam no momento da dramatização; estes

objetos foram construídos com folhas de jornal, papel crepom, cola, caneta, lápis, barbante

e tesoura. Os objetos criados nesse dia foram: toucas e máscaras médicas para o tema

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saúde; uma arma (revólver) para o tema violência; uma árvore para o tema meio ambiente.

Durante a apresentação foi reservado um tempo de aproximadamente 15 minutos para que

cada grupo pudesse preparar o cenário, apresentar a cena e explicar o título dado para a

apresentação.

Para a conclusão e o fechamento das diferentes vivências, foram reservados

aproximadamente 40 minutos. Esta foi a parte fundamental para a compreensão e discussão

do momento vivido por cada educando.

Formou-se um círculo com os presentes e todos foram convidados para falar

sobre o trabalho vivido, sua participação, seu sentimento, sua compreensão do assunto, as

suas descobertas, a atuação dos colegas e o apoio recebido.

Esta vivência procurou, sobretudo, explorar a criatividade, a participação, a

cooperação, o trabalho em equipe, a habilidade na construção dos objetos utilizados em

cena e, principalmente, a utilização do jornal como fonte para manter-se informado,

ampliando o conhecimento da língua escrita e a análise crítica acerca do meio social dos

educandos.

No dia seguinte, foram escritos na lousa os títulos dados pelos educandos às

notícias, fazendo-se uma breve recapitulação dos assuntos abordados e, em seguida, um

debate. Nesse momento foi enfatizada a importância de ter uma análise crítica dos

noticiários no sentido de fazer questionamentos a respeito das diferentes mídias e de como

certas notícias manipulam o leitor, beneficiando interesses econômicos, políticos ou de

classes sociais, e mostrando ao educando a necessidade de ser um leitor crítico,

independente e questionador.

Após esse debate os educandos que já tinham certo domínio da leitura e escrita,

foram convidados a escolher uma das notícias encenadas e a escrever sobre o que aprendeu;

sobre o que já sabia desse assunto e sobre qual sua opinião a esse respeito. Cada educando

teve a oportunidade de também propor algumas sugestões para os problemas abordados nas

diferentes notícias.

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Os educandos em início de aquisição da escrita puderam grifar diretamente no

jornal as palavras que reconheciam no texto por meio das cópias das mesmas fornecidas a

eles. Em seguida eles trabalharam em dupla sobre questões associadas às notícias. Por

exemplo: O nome dado às vivências era encontrado nas notícias? Coube também a estes

alunos escreverem os nomes dos objetos confeccionados para as peças construídas para as

cenas.

Esta vivência aumentou a auto-estima desses educandos já que ao se verem

interpretando diferentes papeis para os colegas, trabalharam o auto-reconhecimento e a

auto-valorização. Este trabalho foi realizado de forma não convencional e envolveu

recursos simples existentes na própria sala de aula: desta forma a aprendizagem pode

tornar-se mais agradável e mais próxima do conhecimento de mundo desses educandos.

Na fala do S11 podemos perceber foi interessante esse momento para a vida

dele e dos seus colegas do grupo: “mesmo que a gente seja bastante interessada, a gente

chega aqui muito cansado depois de um dia de trabalho, e quer logo ir para casa para

descansar, mas hoje, eu queria ficar por aqui e ‘brincar’ mais um pouco!”(sic).

Dessa forma, acreditamos ser imprescindível que o educador proporcione para

os alfabetizandos adultos uma aula agradável que os estimule para que não desanimem e

desista de frequentar o contexto alfabetizador. A técnica do “jornal vivo” propiciou este

ambiente estimulante.

Enfim, a riqueza das situações propostas foi amplamente vencida pela

abundancia e prodigalidade humana das situações vividas e observadas no grupo. Pudemos

compreender como é enriquecedor trabalhar com a potencialidade educacional de dois

grande autores e suas proposições para o entendimento da condição humana, a superação

dos problemas humanos, de diferentes causas e naturezas, e sobretudo como é possível unir

esses autores num projeto de educação e emancipação humana de adultos, como fizemos

em nossa recorte de observação e análise.

Certamente teríamos muitas outras tarefas e aspectos a destacar e comentar,

mas a exiguidade de nosso tempo de investigação e as demais obrigações da vida prática

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acabam por limitar essa possibilidade. Todavia, a despeito da finitude da presente

proposição, aprendemos em nosso corpo e em nossa alma, a riqueza da obra de FREIRE e

MORENO e a original forma de integrar suas contribuições na Educação de Jovens e

Adultos, em nossa realidade.

Cada um desses autores é grandioso, mas ousamos reproduzir aqui a famosa

assertiva de Bernard de Chartres:

“Subamos nos ombros dos gigantes para olhar mais longe. Mas não nos

esqueçamos nunca que, para que pudéssemos olhar mais distante e longe eles nos

seguraram nos ares, para que pudéssemos ver além. Reverencia os gigantes que te

seguraram no ar!”

Esse trabalho quer reverenciar a dois gigantes de nossa época, que nos

proporcionaram as condições de olhar mais longe, e de ver e buscar superar as marcas de

uma educação autoritária e excludente. Esses novos sujeitos históricos, nascidos desse

processo novo e exigente de empoderamento dos grupos e camadas sociais emergentes

recentes estão criando as condições para gerar um tempo e uma sociedade de contornos

solidários, sustentáveis e tolerantes, participados por todos!

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao chegarmos ao final desse relatório de um intenso trabalho de pesquisa

somos tomados por uma sensação polifônica, isto, é, de muitas vozes. Se, por um lado

prevalece a alegria pelo fim de um projeto, pelo cumprimento de uma tarefa acadêmica e

pessoal, pela finalização de nossa busca, por outro, desponta a grandiosa responsabilidade

de dar conta de tantas pessoas ainda excluídas da educação e da escola formal em nosso

país, carregados de signos de negação de sua cultura, identidades, premidos pela tradição

preconceituosa que se manifesta no desprezo a seu dizer, a seu fazer, a seu agir e conviver.

A educação popular de adultos, por um lado registra o esforço de imensas populações pelo

acesso e conquista da educação, mas, por outro, registra a falência de uma sociedade em

prover no tempo certo a educação e escola necessária à humanização e formação humana e

social.

Um aspecto singular que nos motivou na luta pela concretização deste projeto

foi o fato de acreditar que, apesar de todos os empecilhos para se educar, ainda existem

muitos professores cumprindo com excelência o seu papel, com plenitude, o que significa

ter afetividade, gostar do que faz ter compromisso e, primordialmente, acreditar que mesmo

não podendo transformar o mundo inteiro, a semente, a prática educativa crítica e

construtiva, poderá germinar, basta, para isso, o cuidado com o terreno, com a fertilização

necessária para plantar, nesse caso, o preparo do grupo de educandos para receber as

propostas de dialogar sobre as situações conflitantes cotidianas em busca de respostas

adequadas.

Paulo Freire destaca em grande parte de suas obras que um saber indispensável

para o professor é não separar prática de teoria, autoridade de liberdade, respeito ao

professor de respeito aos alunos, ensinar de aprender. Desta forma, segundo o autor, ensinar

exige comprometimento com a tarefa de professor, o qual vai buscar uma melhora

constante no seu próprio desempenho. Não se toma aqui o conceito de desempenho no

estreito jargão de produtividade, presente em marcos educacionais neoliberais e de

inspiração empresarial. Este desempenho deve ser avaliado tanto pelo professor quanto pelo

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aluno em termos mais amplos, éticos, estéticos, pedagógicos, culturais e políticos. Cabe ao

professor estar atento aos sinais que o aluno dá a respeito das atividades desempenhadas

por este professor frente aos alunos. Como educadora de jovens e adultos compreendemos a

profundidade dessas palavras, no oficio de entabular com nossos educandos essa troca de

dimensões essencialmente humanas.

O fato da escolha da teoria de Paulo Freire em detrimento de outra, deve-se ao

encanto das aspirações que sua teoria exprime, da sua paixão por educar, uma paixão que

transborda nos seus escritos, da busca de se conhecer e de se transformar, pressupondo a

consciência da incompletude do ser humano e da permanente tarefa de superação

decorrente dessa premissa. Daí o desejo de se modificar, de formar, não para que todos

pensem iguais, mas para que todos possam crescer, libertar-se e serem solidários, na base

do respeito à diferença. Sua preocupação era formar um cidadão com senso crítico da

realidade em que vive.

Também aprendemos que as ideias de Moreno, toda sua forma de pensar, de

agir e entender o homem busca, assim como Paulo Freire, empreender e desencadear o

processo de libertação do homem de suas amarras, de suas conservas, que podem levar os

homens a tornarem-se acríticos (ou cristalizados), aceitando a realidade como uma coisa

dada, sem perspectiva de mudanças. A luta pela inserção do Psicodrama de Moreno em sala

de aula é uma luta pelo não tradicional, pela mudança, pela liberdade de expressão e ação

dentro e fora da sala de aula, pelo diálogo, pela igualdade na relação professor-aluno. Trata-

se do desejo de obtenção de um espaço educativo não mero reprodutivo de saberes, teorias,

conceitos, mas, de um espaço de construção, criação.

Com a implementação no grupo de alfabetizandos jovens e adultos de nossa

pesquisa dos jogos psicodramáticos de forma geral e da técnica do Jornal Vivo,

especificamente, buscou-se ajudar o educador a alcançar na relação com seus educandos a

integração entre conhecimento adquirido e experiência vivida. Para isso foi necessário que

o educando deixasse fluir sua espontaneidade, libertando-se ao máximo nas dramatizações,

como uma forma de resolver a “brecha entre a realidade e a fantasia”, isto é, saber transitar

entre a realidade e a fantasia.

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Quando o trabalho com o “jornal vivo” iniciou, alguns educandos ficaram

tímidos, sem saber o que fazer, e até mesmo acanhados. Entretanto, passados os momentos

iniciais, vários deles aprovaram a iniciativa e abraçaram a ideia de trabalhar com o jornal,

sentindo-se importantes ao realizar as tarefas propostas, pois em muitos casos eles

assumiam diferentes personagens, como fazendeiros (proprietários de terras), professores,

policiais e diretores de escolas. A riqueza da realidade, apesar de suas contradições,

expressava-se no conjunto dos educandos em rico processo de descoberta de si e do mundo.

No geral, a consciência de cada um de si mesmo, do grupo, da escola, da

comunidade e do país muito se elevou. As leituras dos diferentes jornais aproximaram os

estudantes das coisas que acontecem no país, no seu entorno de vida, no bairro, na cidade, e

que direta ou indiretamente se refletem em suas vidas, tornando-os menos vulneráveis, por

exemplo, às manipulações e simplificações, próprias do senso-comum, observadas na

expressão comum aferida: – “passamos a refletir” – falou-nos um desses educandos. Além

disso, ao dramatizar a notícia e ao realizar as diferentes tarefas a respeito daquilo que

acabaram de encenar, o trabalho de produção escrita melhorou significativamente, pois

como eles já conheciam o assunto, as atividades textuais tornaram-se mais significativas e,

portanto, mais fáceis de serem executadas.

Infelizmente, vimos como característica possivelmente negativa desses grupos,

que de certa forma foi nosso interesse nessa pesquisa, o fato de muitos iniciarem nessas

comunidades para estudar com entusiasmo; só frequentarem por alguns meses sem concluir

ao menos um ano de Estudos, sem serem encaminhados para prosseguimento em outras

modalidades. Desistem ou se ausentam das aulas por tempo indeterminado sem apresentar

justificativas. Talvez, as nossas propostas metodológicas possam ser mais entusiásticas,

dinâmicas e libertadoras, ou as condições objetivas de vida devam ser mais bem estudadas

para não determinarem tanto essas predisposições aos projetos de oferta educacional.

Esta proposta de trabalho com o uso do sociodrama e do psicodrama

pedagógico associado às ideias de Paulo Freire procurou resgatar a espontaneidade dos

educandos, rompendo com os padrões de comportamento estereotipados que levam à

automatização dos discentes em seu processo de aprendizagem, bem como buscou a

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construção total do homem, quer quanto aos conteúdos acadêmicos, quer na formação de

seu caráter social.

Por meio desta pesquisa pôde-se conseguir, em sala de aula, um ambiente

relaxado e uma atmosfera cultural de confiança recíproca, coletiva e comum, para que a

aprendizagem dos educandos fosse plena. Isso vai direcionalmente ao encontro da

pedagogia Moreniana, a qual defende que a situação espontânea do grupo por meio da ação

promove um efeito catártico.

A forma como os trabalhos foram conduzidos fez com que os educandos

fossem a níveis cada vez mais sutis de abstração e de generalização, como é esperado de

um processo de consciência epistêmica e social. Isso foi conseguido porque quem está

conhecendo (os educandos) está, ao mesmo tempo, “fazendo”, experimentando aquilo que

conhece. Este “fazer” resgata o verdadeiro sentido da palavra “ação”, libertando-a da

limitação clássica que lhe foi imposta pelas conservas culturais.

Podemos visualizar que, na execução das dimensões postas pela prática, foi

possível utilizar as etapas do método de Paulo Freire: investigação, tematização e

problematização. Com estas etapas foi possível atingir a espontaneidade e criatividade

propostas por Moreno, bem como construir a autonomia dos educandos, valorizando e

respeitando sua individualidade. Assim como foi possível utilizar as três etapas do método

psicodramático: aquecimento, dramatização e comentários.

Portanto, como cita Paulo Freire em sua obra “Pedagogia da Autonomia”

(1996), o sujeito que vai ser formado não deve considerar-se como um paciente que recebe

os conhecimentos-conteúdos-acumulados pelo sujeito que sabe. É preciso ficar claro que

“quem ensina aprende ao ensinar e, quem aprende, ensina ao aprender” (p.27).

Moreno também não concorda com a ideia de que a pessoa aprenda sozinha, pois,

desta forma se deixará levar pela lei da inércia psíquica que induz o homem a repetir o já

feito, a tomar atitudes sempre iguais, a desenvolver a mesma conduta.

No Psicodrama, o conteúdo é vivenciado, dramatizado, passando a fazer parte

do sujeito, enquanto na aula expositiva, dependendo do nível de atenção do aluno apenas

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uma pequena parcela do que se apresenta ao aluno é fixada na memória. No método

psicodramático a ação é, em primeira instância, baseada no real, no vivencial, sendo

localizada com facilidade às ações da vida de cada sujeito, como defende Paulo Freire. O

método Psicodramático contribuiu para que o educando colocasse para fora o que “sabe” e

o que compreendeu como algo próprio, como algo seu. A metodologia psicodramática

permitiu ao educador verificar, numa situação “viva”, a validade do conhecimento que foi

incorporado através da rotina educativa.

Pelos resultados aferidos pela pesquisa observa-se que, para o educando jovem

e adulto ter prazer nos seus estudos é necessário que ele se reconheça como agente deste

processo, podendo fazer escolhas de maneira autônoma, livre e espontâneo-criativa.

Tanto Moreno quanto Freire prega a ação como meio de aprender,

estabelecendo que isso se faz mais facilmente através de técnicas ativas. “Aprender é

colocar o aprendizado na vida: é evidente o aspecto contextualizante das técnicas

dramáticas” (ROSINHA, 1999, p.82). Trata-se de uma educação posta a serviço da vida, da

felicidade, da dignidade da existência humana.

Freire e Moreno também destacam o respeito pelo desenvolvimento da

criatividade e espontaneidade, tornando possível estabelecerem-se correlações entre suas

ideias. De acordo com Gonçalves et. al. (1988, p.87), na visão Moreniana de homem, desde

o início, o homem traz consigo fatores favoráveis ao desenvolvimento da sua

espontaneidade, que não vem acompanhado por tendências destrutivas. Entretanto estas

condições, que favorecem a vida e a criação, podem ser perturbadas por ambientes ou

sistemas sociais constrangedores. Nesse caso, resta a possibilidade de recuperação dos

fatores vitais, através da renovação das relações afetivas e da ação transformadora sobre o

meio.

Estes ambientes ou sistemas sociais constrangedores podem sufocar a capacidade

criadora do homem. No momento em que a Espontaneidade se acumula e se deposita, ela se

transforma em Conserva Cultural, em algo que permanece em modos rígidos de ser e agir

sem autonomia pessoal. Esses conceitos morenianos retratam bem a mesma denúncia do

saber dogmático e da educação bancária de Freire.

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Assim sendo, segundo Gonçalves et.al (1998, p.89), estes ambientes ou

sistemas sociais podem conter elementos constrangedores que vêm prejudicar esse

potencial, resultando na cristalização de papéis, na estagnação do desenvolvimento do

homem e na reprodução destas conservas culturais, objetos materiais, comportamentos,

costumes e hábitos que se mantêm idênticos em uma determinada cultura.

Desta forma, é através do resgate da espontaneidade, concebida como a

capacidade de reagir a situações novas de maneira adequada, que o sujeito torna-se capaz

de criar respostas inéditas, renovadoras e transformadoras de situações preexistentes.

Podemos concluir que a proposta de educação de Paulo Freire e o projeto de

Psicodrama de Moreno tem como objetivo promover a ampliação da visão de mundo e, isso

só acontece quando essa relação é mediatizada pelo diálogo. A dialogicidade, para Paulo

Freire esta ancorada no tripé educador-educando-objeto do conhecimento. O Psicodrama,

por outro lado, é uma abordagem dialógica. A qualidade desta relação é caracterizada pela

mutualidade. Quando examinamos a necessidade de expressão verbal e recordamos que

para Paulo Freire a comunicação, o diálogo, é necessário para o aprender, porque

possibilita a socialização, percebemos que o diálogo entre os alunos e destes com o

professor nem sempre é permitido na didática tradicional, o que dificulta a construção do

conhecimento.

Paulo Freire tenta abolir dentro do processo ensino-aprendizagem, estes

ambientes sociais constrangedores. Para Freire (1996, p.21), educar é construir, é libertar o

homem do determinismo, passando a reconhecer o papel da história. A educação é uma

forma de intervenção no mundo. Intervir é agir. É ação.

Os resultados de nossa pesquisa demonstram o quanto é necessário os

educandos serem desafiados a refletir sobre seu papel na sociedade, a ampliar sua visão de

mundo, a formar sua consciência crítica. Podemos destacar também a relevância da relação

dos educandos entre si, dos educandos com a educadora e dos educandos com o conteúdo a

ser aprendido, como fator preponderante no processo de aprendizagem . Nós também

aprendemos com os educandos sujeitos de nossa pesquisa.

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Os resultados apresentados também mostraram que a leitura, apropriação e

manejo desses pressupostos e deste método produziram efeitos significativos sobre os

participantes no sentido do seu papel de multiplicador. A grande maioria revelou mudanças

de atitudes e alguns falaram do desejo da implementação, em seus locais de trabalho, de

novas atividades baseada nas técnicas ensinadas. Isto é especialmente importante na

formação de adultos, pois estamos lidando com pessoas que em sua maioria tem sob sua

responsabilidade a educação de filhos e netos e, assim, poderão multiplicar estes efeitos em

suas ações educativas.

Acreditamos que a utilização dos jogos psicodramáticos como método

pedagógico atingiu seu objetivo de ser instrumento para a leitura política da exclusão social

e escolar dos educandos em um grupo de Educação de Jovens e Adultos, quando propiciou

uma maior interação entre esses sujeitos; quando permitiu o desenvolvimento da co-

responsabilidade diante do que foi construído nos encontros/sessões; com a diluição dos

papéis fixos e estáticos dentro do grupo, percebida na mudança de atitude desses

indivíduos; na aprendizagem relacional e aprendizagem de novos papéis e conceitos, na

reflexão sobre a ótica do outro quando se escuta e dialoga; na tomada de decisão conjunta,

pela integração entre conhecimento adquirido e experiência vivida e também na criação de

modos alternativos de resolução de problemas. A utilização deste método adquiriu

importância, na visão dos educandos, por tornar o contexto alfabetizador um local

agradável, gerador de motivação, espontaneidade e criatividade, facilitador do crescimento

pessoal dos educandos e favorecendo a consolidação da aprendizagem, ao utilizar a

dramatização.

Segundo esses educandos, o ensino tradicional, torna, na maioria das vezes, a

aula cansativa e, desta forma, o processo de aprendizagem fica aquém das reais

possibilidades. E, além desse desconforto, é a manutenção dessas formas coercitivas e

excludentes que explica a grande dívida social e educacional presente no país, apesar de

sermos considerados hoje a sexta maior economia do mundo em termos de produtividade

capitalista (PIB).

Assim, consideramos ser necessário lutarmos por uma educação

problematizadora não só para pessoas adultas, mas, para esses indubitavelmente. Deve-se

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buscar um constante exercício em favor da construção e do desenvolvimento da autonomia

do professor e alunos, não somente transmitindo saberes, mas, dando significado,

construindo e redescobrindo, deixando fluir nos sujeitos a tele e sua espontaneidade-

criatividade. Precisamos mudar nossa práxis e criarmos mecanismos que tornem o ensino

mais motivador, contribuindo para a formação do educando como um todo. Esperamos que

este trabalho seja o princípio de uma série de outros projetos de pesquisas a serem

desenvolvidos sobre o tema.

Nesse final de nossa relatoria de uma pesquisa, na forma de dissertação de

Mestrado em Educação, na área de Psicologia Educacional, somos tomados por um

sentimento de dever cumprido e de uma vontade imensa de que essa trajetória inspire os

grupos e sujeitos sociais emancipados pela luta política a tomarem definitivamente sua

história nas próprias mãos.

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ANEXOS

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Primeiro encontro – dia 15 de maio de 2012 Documentário: Vida Maria

Diretor: Marcio Ramos

Ano:1995

Trilha sonora: Herlon Robson

Gênero: Animação

Duração: 9 minutos

Comentários do primeiro encontro:

S5 – “Desde seis anos de idade, quando meu pai morreu tive que virar adulta e

deixei de ser criança”. (fala decidida e claramente).

Ob. O Sujeito 5 (S5) descreve o cenário com flores, velas, crucifixo e comenta que

lembra bem porque tem a fotografia do pai morto, pois isto é um costume cultural, para as

crianças verem mais tarde a foto e terem certeza de que o pai morreu.

S13 – “Ninguém de minha família pode ajudar quando meu pai morreu. Todos já

tinham suas obrigações, seu trabalho na roça”...

S8 – “O meu pai morreu eu tinha mais ou menos a idade da menina do filme. Ele

morreu de tuberculose, sempre foi doente, desde solteiro. Minha mãe não sabia que ele era

doente quando se casaram”. “o casamento de meus pais foi contratado pelos pais deles.

Sempre foi muito difícil, o casamento foi só doença e trabalho”.

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S11– “Fiquei muito triste quando meu pai morreu”. “Sabia que eu ia ter que

ajudar minha mãe. Não sabia como ia ser sem ele”...

S8 – “Eu como filha mais velha, tive que assumir essa responsabilidade. Além

disto ela sempre fui a mais responsável, mais que os meus irmãos homens. Tive que ser

séria, responsável, e trabalhadora”.

S8 – “Sim, não tem outro jeito. E tem que ser forte”. “Nortista é forte, não chora,

não deve chorar, deve ser sério e responsável”.

S7 – “Sinto que vai ficando uma casca bem dura em volta da gente”.

Paramos aqui a dramatização e voltamos ao contexto grupal emocionados. Emoção

e vivências compartilhadas com o grupo.

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Foto 01

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Foto 02

Foto 03

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Foto 04

Segundo encontro – dia 22 de maio de 2012 Vídeo: Triste partida (música de Luiz Gonzaga- letra de Patativa do Assaré) Meu Deus, meu Deus

Setembro passou

Outubro e Novembro

Já tamo em Dezembro

Meu Deus, que é de nós,

Meu Deus, meu Deus

Assim fala o pobre

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Do seco Nordeste

Com medo da peste

Da fome feroz

Ai, ai, ai, ai

A treze do mês

Ele fez experiência

Perdeu sua crença

Nas pedras de sal,

Meu Deus, meu Deus

Mas noutra esperança

Com gosto se agarra

Pensando na barra

Do alegre Natal

Ai, ai, ai, ai

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Rompeu-se o Natal

Porém barra não veio

O sol bem vermeio

Nasceu muito além

Meu Deus, meu Deus

Na copa da mata

Buzina a cigarra

Ninguém vê a barra

Pois a barra não tem

Ai, ai, ai, ai

Sem chuva na terra

Descamba Janeiro,

Depois fevereiro

E o mesmo verão

Meu Deus, meu Deus

Entonce o nortista

Pensando consigo

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Diz: "isso é castigo

não chove mais não"

Ai, ai, ai, ai

Apela pra Março

Que é o mês preferido

Do santo querido

Senhor São José

Meu Deus, meu Deus

Mas nada de chuva

Tá tudo sem jeito

Lhe foge do peito

O resto da fé

Ai, ai, ai, ai

Agora pensando

Ele segue outra tria

Chamando a famia

Começa a dizer

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Meu Deus, meu Deus

Eu vendo meu burro

Meu jegue e o cavalo

Nós vamos a São Paulo

Viver ou morrer

Ai, ai, ai, ai

Nós vamos a São Paulo

Que a coisa tá feia

Por terras alheia

Nós vamos vagar

Meu Deus, meu Deus

Se o nosso destino

Não for tão mesquinho

Cá e pro mesmo cantinho

Nós torna a voltar

Ai, ai, ai, ai

E vende seu burro

Jumento e o cavalo

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Inté mesmo o galo

Venderam também

Meu Deus, meu Deus

Pois logo aparece

Feliz fazendeiro

Por pouco dinheiro

Lhe compra o que tem

Ai, ai, ai, ai

Em um caminhão

Ele joga a famia

Chegou o triste dia

Já vai viajar

Meu Deus, meu Deus

A seca terrível

Que tudo devora

Lhe bota pra fora

Da terra natal

Ai, ai, ai, ai

O carro já corre

No topo da serra

Oiando pra terra

Seu berço, seu lar

Meu Deus, meu Deus

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Aquele nortista

Partido de pena

De longe acena

Adeus meu lugar

Ai, ai, ai, ai

No dia seguinte

Já tudo enfadado

E o carro embalado

Veloz a correr

Meu Deus, meu Deus

Tão triste, coitado

Falando saudoso

Com seu filho choroso

Exclama a dizer

Ai, ai, ai, ai

De pena e saudade

Papai sei que morro

Meu pobre cachorro

Quem dá de comer?

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Meu Deus, meu Deus

Já outro pergunta

Mãezinha, e meu gato?

Com fome, sem trato

Mimi vai morrer

Ai, ai, ai, ai

E a linda pequena

Tremendo de medo

"Mamãe, meus brinquedo

Meu pé de fulô?"

Meu Deus, meu Deus

Meu pé de roseira

Coitado, ele seca

E minha boneca

Também lá ficou

Ai, ai, ai, ai

E assim vão deixando

Com choro e gemido

Do berço querido

Céu lindo azul

Meu Deus, meu Deus

O pai, pesaroso

Nos filho pensando

E o carro rodando

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Na estrada do Sul

Ai, ai, ai, ai

Chegaram em São Paulo

Sem cobre quebrado

E o pobre acanhado

Procura um patrão

Meu Deus, meu Deus

Só vê cara estranha

De estranha gente

Tudo é diferente

Do caro torrão

Ai, ai, ai, ai

Trabaia dois ano,

Três ano e mais ano

E sempre nos prano

De um dia vortar

Meu Deus, meu Deus

Mas nunca ele pode

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Só vive devendo

E assim vai sofrendo

É sofrer sem parar

Ai, ai, ai, ai

Se arguma notícia

Das banda do norte

Tem ele por sorte

O gosto de ouvir

Meu Deus, meu Deus

Lhe bate no peito

Saudade de móio

E as água nos óio

Começa a cair

Ai, ai, ai, ai

Do mundo afastado

Ali vive preso

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Sofrendo desprezo

Devendo ao patrão

Meu Deus, meu Deus

O tempo rolando

Vai dia e vem dia

E aquela famia

Não vorta mais não

Ai, ai, ai, ai

Distante da terra

Tão seca mas boa

Exposta à garoa

A lama e o paú

Meu Deus, meu Deus

Faz pena o nortista

Tão forte, tão bravo

Viver como escravo

No Norte e no Sul

Ai, ai, ai, ai

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Após a apresentação do vídeo música Triste partida para o grupo Sr.A. (S1)

erguendo o dedo se levanta, vem até a frente e diz:

“- É para falar? Não é?– eu quero contar minha história. Eu não cheguei a passar

fome no norte, mas, a vida era muito difícil, muito trabalhoso! Não tinha trabalho para

minhas irmãs e meu pai não queria que elas trabalhassem em casa de família. A nossa

família era muito grande. Meu pai botou na cabeça que lá não era lugar de viver. Meu pai

não dava veiz para ninguém. Apareceu de imediato alguém interessado em comprar nossa

terra. Meu pai vendeu nossa terra de porteira fechada. Fazíamos plantação de milho, de

aipim, de cana, de bananeira, nós tinha de tudo. Plantava “de meia” com os outros. Puxava

jacaré pelos pés...com a enxada”(sic)!

“- Um tio meu que foi até o Recife e na volta vinha para São Paulo, passou por lá,

pegou a gente e trouxe a nossa família. Viemos de Pau de arara”.

“- Viemos todo mundo pra qui trabalhar em fábrica, em mercado, atacadista. Eu

tinha dezesseis anos”.

“- No caminho, a gente encostava o caminhão na estrada e cozinhava, minha mãe

fazia canjica, fazia mingau com o milho que a gente encontrava na estrada.Também pegava

cana para comer no caminho. Foi muito gostoso”!

“- E aqui (São Paulo) foi outra vida, não aquela que a gente tinha lá”.

___________________________________________________________________

Relato feito pelo Sr A. no segundo encontro após a apresentação do vídeo com imagens de uma

família de retirantes que vendem suas terras e partem de pau-de-arara para São Paulo em busca de trabalho e

recursos econômicos. Enquanto vivem as desventuras da cidade grande, sonham em poder voltar para a terra

natal.

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Comentários – (segundo encontro). Terceira etapa do Psicodrama pedagógico

Sujeito 2 – M.F.S. “- Eu nunca passei fome porque sempre trabalhei em casa de

família... Mas meus irmãos – quatorze – passaram. A comida sempre foi pouca, mas,

mesmo pouca, quando tinha em casa (comida) e chegasse alguém que não tinha minha mãe

dava uma colher para que eles comessem junto com nós”.

Ao relatar M. chora e sua fala sai pausada como se essas lembranças

trouxessem a tristeza pela pobreza ao mesmo tempo satisfação em poder ter partilhado o

pouco que possuíam.

“- Faz um ano mais ao menos (continua M.) eu trabalhava com uma família que

não deixava eu nem fritar um hambúrguer nem salsicha, nem para a filha adotiva dela nem

para mim. Eles (o casal) brigavam por causa de comida, a comida vencia e aí jogava fora.

Só se preocupava com o marido e os seus filhos. Trabalhei por anos e ela nem depositou os

direitos trabalhistas. Só descobri que ela estava me enrolando quando fui atrás no INSS...”

(Instituto Nacional de Seguro Social).

Sujeito 3 – M.da.G. “- É interessante porque a gente já passou por isso! Porque eu já

passei fome! Eu também vim do nordeste”.

Sujeito 4 – F.D.V.“- Eu lembrei na exploração que os ‘bolivianos’ estão fazendo

com os outros que eles estão trazendo e colocando pra trabalhar pra eles direto, sem

descanso e com pouca comida” (sic).

Sujeito 5 – “- Meu pai tinha um sitiozinho que precisou vender porque perdeu toda a

lavoura com a seca”. Eu não cheguei a passar fome porque viemos embora, mas, meus

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irmãos mais velhos passaram fome antes de meu pai resolver vir embora. Ele não queria

deixar a terrinha” (sic).

Sujeito 6 – F.D.V. “- Todo ano meu pai dizia que a gente ia voltar pra nossa terra,

mas a minha mãe falava que não queria ir porque aqui em São Paulo pelo menos a gente

passava menos fome que lá em Pernambuco, porque aqui a patroa dela era boa e deixava

ela levar para casa as sobras de comida” (sic).

Sujeito 11 – M.M.S. “- Quando viemos pra São Paulo, a gente (eu e meus 8 irmãos

pequenos) não sabia o que ia acontecer aqui com a gente, ficamos com medo de se perder

um do outro e nunca mais se encontrar” (sic).

Sujeito 14 – “- Eu também tinha uma boneca dessa e que ficou perdida, eu sempre

sonhava com ela e as vezes sonho até hoje” (sic).

Sujeito 15 – “- Minha mãe costumava plantar roseiras em volta da casa e era eu que

cuidava delas” (sic).

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PARTICIPANTES DO SEGUNDO ENCONTRO - REPRESENTAÇÃO DA

MÚSICA TRISTE PARTIDA

FOTO 01

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FOTO 02

FOTO 03

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FOTO 04

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FOTO 05 Terceiro encontro – Dia 29 de maio de 2012

“Jornal Vivo” Texto: Se deixarem a escola melhora – Revista Época (junho de 2007 Edição nº 472).

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Se deixarem, a escola melhora revistaepoca.globo.com/Rev ista/Epoca/0,,EDR77590-6009,00.html 1/3

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Comentários – (terceiro encontro).

Sujeito 8 – “A cena me fez ver coisas que quando ouvi a professora ler o texto não tinha percebido. Parece que as ideias vieram à cabeça”(sic).

Sujeito 19 – “Muita das coisas que aconteceram na cena saiu na hora. Não tínhamos

pensado em muitos detalhes, a gente queria fazer só o que era solicitado pela senhora

(pesquisadora). Na hora da cena muita coisa veio à nossa cabeça, parecia que tudo era real”

(sic).

Sujeito 12 – “A gente fica preso a regras e não temos a mínima liberdade de criar”

(sic).

Sujeito 11 – “mesmo que a gente seja bastante interessado, a gente chega aqui muito

cansado depois de um dia de trabalho, e quer logo ir para casa para descansar, mas hoje, eu

queria ficar por aqui e ‘brincar’ mais um pouco!”(sic).

Neste encontro o pesquisador esteve envolvido como diretor do jogo psicodramático

(jornal vivo). Portanto, deste encontro não temos imagens (fotos).