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Três Aberturas em Ontologia: Frege, Twardowski e Meinong. Organização, tradução e apresentação de Celso R. Braida 2005

Celso Braida - Três Arberturas Em Ontologia. Frege, Twardowski e Meinong

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  • Trs Aberturas em Ontologia:Frege, Twardowski e Meinong.

    Organizao, traduo e apresentao de Celso R. Braida

    2005

  • Trs Aberturas em Ontologia: Frege, Twardowski e Meinong.Organizao, traduo e apresentao de Celso R. Braida.Verso DigitalRocca Brayde, Florianpolis, 2005.

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  • CELSO R BRAIDA

    Trs Aberturas em Ontologia:Frege, Twardowski e Meinong

    Textos traduzidos:

    G. FregeLeis bsicas da Aritmtica, Prlogo

    K. TwardowskiSobre a doutrina do contedo e do objeto das representaes ( 1-7)

    A. MeinongSobre a teoria do objeto

    Rocca Brayde - 2005

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  • SumrioUma apresentao enviesada . . . . 7

    Friedrich Ludwig Gottlob Frege . . 11-Prlogo s Leis bsicas da Aritmtica . . . 13

    Kasimir Twardowski . . . . 43-Para a doutrina do contedo e do objeto das representaes 45 1. Ato, contedo e objeto de representao . . . 45 2. Ato, contedo e objeto do juzo . . . 47 3. Nomes e representaes . . . . 53 4. O representado . . . . . 55 5. As assim chamadas representaes sem objeto . 65 6. A diferena do contedo e do objeto de representao 76 7. Descrio do objeto de representao . . 82

    Alexius Meinong . . . . 91-Sobre a teoria do objeto . . . . 931. A questo . . . . . . 932. O pr-juzo a favor do efetivo . . . 953. Ser-tal e no-ser . . . . . 994. O extra-ser do objeto puro . . . . 1015. Teoria do objeto como Psicologia . . . 1066 Teoria do objeto como teoria dos objetos do conhecimento . . . . . 1107 Teoria do objeto como lgica pura . . . 1138 Teoria do objeto como Teoria do conhecimento . 1159 Teoria do objeto como cincia especial . . 11910 A teoria do objeto nas outras cincias. Teoria geral e teoria especial do objeto . . . . 12211 Filosofia e teoria do objeto . . . . 12712 Concluso . . . . . . 139

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  • Uma apresentao enviesada[Celso R. Braida]

    O conceito de objeto foi esvaziado pelas principais doutrinas filosficas recentes sob a alegao de que a cons-cincia e ou a linguagem constituem a objetividade dos objetos. A tese da relatividade ontolgica, nas verses fenome-nolgicas e lgico-semnticas, tornou-se consensual e pr-domina o pensamento filosfico e cientfico. Que esta predo-minncia tenha de ser repensada poucos percebem, embora j se perceba que esse consenso est fundado em bases infundadas. Na origem desse esvaziamento est a eleio da anlise da conscincia e da linguagem, enquanto disciplina inaugural do pensamento, a partir da qual todos os contedos dignos de serem pensados deviam ser abordados, e a con-seqente eliminao de conceitos metafsicos tais como os de ser, substncia, essncia, etc., do discurso filosfico. Entre-tanto, com esse mesmo gesto tambm acreditou-se poder des-cartar os conceitos ontolgicos de entidade, objeto, proprie-dade, relao, etc., enquanto relativos, por conseguinte, elimi-nveis. Todavia, a prpria formulao da tese da relatividade ontolgica supe objetos e propriedades como relativos a algo e, nesse sentido, no pode ser usada para eliminar os conceitos ontolgicos, sob pena de jogar este algo em relao a que tudo relativo para o domnio do impensado e do no-relativo.

    Agora, se a noo de objeto ocupa nas filosofias met-dicas ps-kantianas o lugar antes reservado noo de ente (on, esse, seiende), uma teoria do objeto pode ser vista, ento, como uma abertura ontolgica. Abertura no sentido dos enxa-dristas, a saber, enquanto tomadas de decises e aes iniciais. Eu penso, a partir desse vis, que os textos aqui traduzidos, de Frege, Twardowski e Meinong, apresentam trs aberturas de possveis ontologias. E, assim como no Xadrez, embora uma abertura seja em larga medida decisiva para a partida, ela no

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  • suficiente para a finalizao. Esses trs exemplos de recome-os no-metafsicos em ontologia constituem ainda hoje desa-fios a serem realizados. Jogar em conformidade com suas decises e regras, penso eu, ainda interessante e frutfero. Russell, Whitehead, Wittgenstein, Carnap, Hartmann, Husserl, Heidegger, Quine, entre outros, se apropriaram e usaram de modo particular essas aberturas, e ao menos trs grandes movimentos filosficos do sculo XX da receberam influxos decisivos: a filosofia analtica da linguagem, a fenomenologia e a escola polonesa. Todavia, como bem sabemos, os usos de uma abertura, mesmo quando vencedores, no esgotam nem excluem outros e melhores usos, alm de justamente poderem ser apontados, do ponto de vista instaurado pela abertura, como fracassos e desvios a serem evitados.

    Nas trs aberturas aqui consideradas est claramente estabelecida como fundante e indispensvel a relao com algo distinto e no imanente conscincia e linguagem. O ser-consciente pensado como um estado de remisso a algo que no na e nem da conscincia, do mesmo modo que o ser-significativo. Na formulao dos trs autores essa tese aparece na afirmao da exterioridade do objeto em relao representao e conscincia. Com esse lance, abandona-se o princpio segundo o qual ser e pensar so o mesmo e, tambm, o princpio da imanncia segundo o qual somente podemos pensar o que est em nossa mente. Frege era explcito quanto a esse ponto, ao dizer: existe algo que no minha idia e que, ainda assim, pode ser objeto de minha considerao, de meu pensar. O cerne do debate, portanto, no obstante girar em torno da noo de entidade e de objeto, implica uma reviso da teoria do juzo (e da proposio) e da compreenso mesma do que pensar. As diferenas entre os trs autores aqui reunidos surgem justamente da maneira distinta pela qual respondem s perguntas o que expresso por uma sentena?, O que significa julgar? e O que significa pensar?. Frege abandona completamente a teoria tradicional do juzo e do pensamento, modificando inclusive os fundamentos da lgica, enquanto

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  • que Twardowski e Meinong reformulam a teoria do juzo e da conscincia, herdadas de Kant e Mill.

    Os trs textos apresentam aberturas para uma nova ontologia sem propriedades transcendentais e sem formas substanciais. Dito francamente, a relatividade ontolgica j est ali formulada de modo explcito. Todavia, ao dizer isso, eu na verdade pretendo sugerir que esses textos podem ser usados, ex contrario, como antdotos contra o consenso gene-ralizado em torno do relativismo ontolgico e do subjetivismo metdico que permeiam quase toda a filosofia e reflexo culta hodiernas, que tm por bvio que a realidade uma construo e que todo pensamento, por estar referido apenas aos seus construtos, sempre relativizvel. Os trs autores, em algum momento de sua reflexo, fazem uso da noo de algo distinto de nosso pensamento e discurso, da noo de algo que no construto nosso e ao qual nos referimos ao pensar e falar, e pelo qual pensamentos e discursos podem ser aferidos e referendados. A minha leitura desses textos, e nisso eu vou contra o consenso acima citado, os toma como fundando a posio de que os conceitos ontolgicos (entidade, objeto, propriedade, relao, etc.) no so redutveis aos conceitos noemticos (pensamento, conscincia, conceito) e nem aos conceitos semnticos (linguagem, gramtica, sentido). A noo de algo a que o pensamento, e ou a linguagem, se dirige enquanto seu real, implica, a meu ver, que nenhuma teoria filosfica da conscincia (e do pensamento) e nenhuma teoria da linguagem (e da gramtica) podem substituir a ontologia (e a lgica). Por esse vis, os trs textos podem servir de base para distinguir entre os objetos ditos e pensados dos objetos reais ou efetivos e, desse modo, serem lidos como aberturas legitimadoras da necessidade das noes ontolgicas.

    A ontologia foi, ao longo do sculo XX, subsumida e substituda por procedimentos de anlises semnticas, grama-ticais e fenomenolgicas, e explicitamente o conceito forte de objeto, e de entidade, foi definido em termos gramaticais, fenomenolgicos e psicolgicos. Os trs textos aqui selecio-

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  • nados, em geral, so mencionados por aqueles que defendem estes procedimentos. Todavia, eu penso poder encontrar nes-ses textos justamente a crtica antecipada, e correta, s tendn-cias relativizantes e esvaziadoras da ontologia. O ponto dessa resistncia o conceito de algo independente e diferente de qualquer contedo mental ou lingstico, relativamente ao qual pensamentos e enunciaes so, ao contrrio do enun-ciado da tese da relatividade ontolgica, relativos.

    Florianpolis, Abril de 2005.

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  • Friedrich Ludwig Gottlob Frege(1848-1923)

    Nascido em 8 de Novembro de 1848, em Wismar, Frege foi mate-mtico, lgico e filsofo, considerado o fundador da lgica matemtica moderna e tambm o fundador da assim chamada filosofia analtica da linguagem, tendo influenciado deci-sivamente a Filosofia do sculo XX por sua recusa do empirismo, do psicologismo e do formalismo. O seu estilo lcido e conciso, e sua preocu-pao em explicitar todos os passos do pensamento, rapidamente fizeram seus textos clssicos filosficos. Entre as principais obras esto: Begriffsschrift (Conceitografia), eine der arithme-tischen nachgebildete Formelsprache des reinen Denkens , Halle a. S., 1879; Die Grundlagen der Arithmetik (Os fundamentos da Aritmtica): eine logisch-mathematische Untersuchung ber den Begriff der Zahl, Breslau, 1884; Funktion und Begriff: Vortrag, gehalten in der Sitzung vom 9. Januar 1891 der Jenaischen Gesellschaft fr Medizin und Naturwissenschaft, Jena, 1891; ber Sinn und Bedeutung, in Zeitschrift fr Philosophie und philosophische Kritik, C (1892): 25-50; ber Begriff und Gegenstand, in Vierteljahresschrift fr wissenschaftliche Philosophie, XVI (1892): 192-205; Grundgesetze der Arithmetik (Leis bsicas da Aritmtica), Jena: Verlag Hermann Pohle, Band I (1893), Band II (1903); Was ist eine Funktion?, in Festschrift Ludwig Boltzmann gewidmet zum sechzigsten Geburtstage, 20. Februar 1904, S. Meyer (ed.), Leipzig, 1904, pp. 656-666; Der Gedanke. Eine logische Untersuchung, in Beitrge zur Philosophie des deutschen Idealismus I (1918): 58-77.

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  • Prlogo s Leis bsicas da AritmticaFriedrich Ludwig Gottlob Frege

    [Grundgesetze der Arithmetik, Begriffsschriftlich abgeleitet; Zweite unvernderte Auflage; Hildesheim, Georg Olms, 1962; pp. v-xxvi.]

    Neste livro encontram-se axiomas nos quais se baseia a aritmtica, demonstrados com sinais especiais, cujo conjunto eu chamo conceitografia. Os mais importantes teoremas (Stze) foram reunidos em parte no final juntamente com sua traduo. Porm, como se poder ver, no foram considerados aqui os nmeros negativos, fracionais, irracionais, nem os complexos, como tampouco a adio, a multiplicao, etc. Nem sequer os teoremas sobre os nmeros naturais foram apresentados com a completude projetada no incio. Em particular, falta ainda o teorema de que o nmero dos objetos que caem sob um conceito finito, se finito o nmero de objetos que caem sob um conceito a que o primeiro est subordinado. Razes externas levaram-me a reservar a prosecuo desses estudos, assim como o tratamento dos demais nmeros e das operaes de clculo; a publicao desses resultados depender da aceitao que encontre este primeiro tomo. O que ofereo aqui suficiente para dar uma idia de meu procedimento. Pode ser que se julgue como desnecessrios os teoremas sobre o nmero infinito1. Para a fundamentao da aritmtica em sua extenso habitual eles de fato no so necessrios; mas, a sua deduo mais simples que a dos teoremas correspondentes para nmeros finitos e pode servir como preparao para estes. Ainda aparecem teoremas que no tratam de nmeros, mas que so utilizados nas demonstraes. Eles tratam, por exemplo, da sucesso em

    1 A cardinalidade de um conjunto infinito enumervel.

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  • uma srie, da univocidade das relaes, das relaes compos-tas e acopladas, da figurao mediante relaes e semelhantes. Esses teoremas poderiam ser atribudos, talvez, a uma teoria combinatria ampliada.

    As demonstraes esto contidas unicamente nos pargrafos intitulados Construo (Aufbau), enquanto que os intitulados Anlise (Zerlegung) facilitam a compreenso, ao descrever provisoriamente em esboos toscos a marcha da demonstrao. As demonstraes mesmas no contm nenhu-ma palavra (Worte), mas se realizam apenas com meus sinais (Zeichen). Estes apresentam-se visualmente como uma srie de frmulas, separadas por traos contnuos ou descontnuos, ou por outros sinais. Cada uma dessas frmulas um enunciado completo, com todas as condies que so necessrias para sua validade (Gltigkeit). Essa completude, que no permite pressupostos tcitos subentendidos, parece-me indispensvel para o rigor da demonstrao.

    A passagem de um enunciado para o seguinte procede segundo as regras que se encontram reunidas no 48, e no se d nenhum passo que no cumpra estas regras. Como e segundo que regras se faz a inferncia indicado pelo sinal que se encontra entre as frmulas, enquanto que conclui uma cadeia dedutiva. Aqui deve haver enunciados que no podem ser deduzidos de outros. Estes so em parte as leis fundamentais que reuni no 47, e em parte as definies que se encontram juntas no final numa tabela com a indicao das passagens em que aparecem pela primeira vez. Numa conti-nuao desta tarefa aparecer sempre de novo a necessidade de definies. Os princpios que se deve seguir para introduzir as definies esto expostos no 33. As definies no so propriamente criadoras e, conforme creio, no podem ser; elas apenas introduzem designaes (nomes) abreviadas que pode-riam ser evitadas se o tamanho no produzisse nesse caso dificuldades externas insuperveis.

    O ideal de um mtodo estritamente cientfico da mate-mtica que procurei realizar aqui e que bem poderia ser

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  • denominado euclidiano, vou descrever da seguinte maneira. Que tudo seja demonstrado, isto certamente no se pode exigir, porque impossvel; mas, pode-se exigir que todos os enunciados utilizados sem demonstrao sejam declarados explicitamente como tais, para que se veja claramente sobre o que descansa a construo inteira. Por isso h que se esforar para reduzir ao mximo o nmero de leis primitivas, demonstrando tudo o que seja demonstrvel. Alm disso, e assim vou mais alm de Euclides, exijo que se mencionem previamente todos os modos de deduo e de inferncia empregados. Do contrrio no se pode assegurar o cumpri-mento da primeira exigncia. No essencial, eu acredito haver alcanado este ideal. Apenas em alguns poucos pontos poder-se-ia levantar exigncias de maior rigor. Para alcanar maior rapidez e no cair numa extenso desmedida, eu me permiti fazer uso da intersubstituibilidade dos membros inferiores (condies) e da fuso de membros inferiores iguais, e no reduzi os modos de deduo e de inferncia ao menor nmero. Quem conhece meu livrinho Begriffschrift (Conceitografia) poder deduzir do que se diz ali como se poderia satisfazer tambm aqui exigncias mais rigorosas, mas ao mesmo tempo saber que isto traria consigo um aumento considervel de extenso.

    No geral, creio eu, as correes que com razo podem ser feitas a este livro no se referiro ao rigor, mas apenas a escolha das inferncias e dos passos intermedirios. Freqente-mente se apresentam vrios caminhos possveis para se levar a cabo uma demonstrao; eu no procurei explorar todos eles e por isso possvel, inclusive provvel, que nem sempre eu tenha escolhido o mais curto. Quem tiver algo a objetar nesse sentido que o faa melhor. Outras coisas tambm sero discutveis. Alguns teriam preferido estender mais o conjunto de modos de deduo e inferncias admitidos, para conseguir assim uma maior mobilidade e brevidade. Mas, nisto devemos nos deter em algum ponto, se que se admite o ideal que propus, e seja qual for o ponto em que nos detemos, sempre

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  • haver algum que pode dizer: teria sido melhor admitir ainda mais modos de deduo.

    Pela ausncia de lacunas nas cadeias dedutivas conse-gue-se explicitar cada axioma, pressuposio, hiptese, ou como se queira chamar, sobre as quais transcorre a demonstra-o; e assim obtemos um fundamento para o julgamento da natureza epistemolgica da lei demonstrada. Certamente afir-mou-se repetidas vezes que a aritmtica no mais do que lgica desenvolvida; mas, isto permanece discutvel enquanto aparecerem nas demonstraes passos no dados segundo as leis lgicas reconhecidas, mas que paream descansar em um conhecimento intuitivo. Somente a partir do momento em que estes passos se decomponham em passos lgicos simples, poderemos estar convencidos de que na base no h nada seno lgica. Reuni tudo o que pode facilitar o julgamento de se uma cadeia dedutiva concludente ou de se suas premissas so slidas. Se algum encontrasse algo errado deveria poder indicar exatamente onde se acha o erro segundo sua opinio: nas leis fundamentais, nas definies, nas regras ou em sua aplicao num determinado lugar. Se tudo se encontra em ordem, ento se conhece exatamente os fundamentos sobre os quais se baseia cada teorema em particular. Somente pode haver discusso, pelo que posso ver, a respeito de minha lei fundamental do curso de valores (V), que talvez os lgicos no a considerem apropriada, ainda que se pense nela quando se fala, por exemplo, de extenses de conceito. Eu a tomo como puramente lgica. Em todo caso, aqui indicado o lugar onde a diferena pode se dar.

    O meu objetivo exige muitos afastamentos em relao ao que comum em matemtica. As exigncias de rigor nas demonstraes tm como conseqncia inevitvel um maior comprimento das demonstraes. Quem no leve em conside-rao este fato, ficar surpreendido com a complicao resul-tante aqui na demonstrao de um enunciado que ele acredita compreender imediatamente num nico ato cognitivo. Isto ser especialmente surpreendente se se compara com o escrito

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  • do Sr. Dedekind Was sind und was sollen die Zahlen? (O que so e o que devem ser os nmeros?), o mais profundo que conheci nos ltimos tempos sobre a fundamentao da aritmtica. Em um espao muito menor, examina as leis da aritmtica at um nvel muito superior do que se considera aqui. Esta brevidade, naturalmente, apenas se consegue deixando que muito fique propriamente sem demonstrar. O Sr. Dedekind diz freqen-temente apenas que a demonstrao procede a partir de tais e tais enunciados; utiliza pontos, como em m (A, B, C, ...); em nenhuma parte encontramos uma compilao das leis lgicas ou de outro tipo postas como base, e se estas tivessem sido postas, no haveria nenhuma maneira de controlar se real-mente no foram utilizadas outras; pois, para isso as demons-traes deveriam aparecer no apenas indicadas, mas condu-zidas sem lacunas. O Sr. Dedekind tambm da opinio de que a teoria dos nmeros uma parte da lgica; mas, seu escrito apenas contribui para dificultar esta opinio, porque as expresses empregadas por ele, como sistema, uma coisa pertence a uma coisa, no so usuais em lgica e no podem ser reduzidas a nada reconhecidamente lgico. No digo isso como reprovao; pois, seu mtodo pode ter sido o mais til para ele tendo em vista seu objetivo; apenas o digo para tornar por contraste mais claro meu propsito. O comprimento de uma demonstrao no deve ser medido com a rgua. Pode-se fazer com que uma demonstrao parea breve sobre o papel facilmente, pulando membros intermedirios da cadeia dedu-tiva e deixando passos apenas indicados. Geralmente nos contentamos com que cada passo da demonstrao nos parea evidentemente correto, e isto lcito se apenas queremos convencer da verdade do enunciado por demonstrar. Mas, quando se trata de proporcionar uma compreenso da nature-za desta evidncia, este procedimento no suficiente, mas h que escrever todos os estgios intermedirios, para jogar sobre eles toda a luz de nossa conscincia. Os matemticos costu-mam estar interessados apenas no contedo do enunciado e em que seja provado. Aqui o novo no o contedo do

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  • enunciado, mas como a demonstrao realizada, sobre quais fundamentos ela se apia. No se deve estranhar que este ponto de vista essencialmente distinto exija tambm outro tipo de tratamento. Se se demonstra da maneira usual um dos nossos enunciados, facilmente se passar por alto algum enunciado que parece desnecessrio para a demonstrao. Porm, sob um exame mais detalhado de minha demonstrao se ver, segundo creio, que esse enunciado indispensvel, a no ser que se queira tomar um caminho completamente diferente. Por isso, talvez, encontrem-se aqui e ali em nossos enunciados condies que a primeira vista paream desneces-srias, mas que logo mostram-se necessrias, ou que pelo menos somente podem ser abandonadas com algum outro enunciado por demonstrar.

    Eu realizo aqui um projeto que j havia tido em vista no meu Begriffschrift do ano de 1879 e que anunciei em meus Fundamentos da aritmtica do ano de 1884.1 Eu quero demons-trar com a prtica minha concepo sobre o nmero que expus no ltimo dos livros citados. O fundamental de meus resulta-dos expressei ali, no 46, dizendo que a atribuio de nmero contm uma assero (Ausage) sobre um conceito (Begriffe); e nisto se baseia a presente exposio. Se algum tem uma concepo diferente, que tente fundamentar sobre ela median-te sinais uma exposio conseqente e til, e ver como no se pode. Na linguagem natural, a situao no obviamente to transparente; mas, se se examina cuidadosamente, se achar que tambm aqui ao atribuir-se um nmero emprega-se sempre um conceito, e no um grupo, um agregado ou algo do tipo e que, inclusive se isto ocorre alguma vez, o grupo ou o agregado sempre est determinado por um conceito, quer dizer, pelas propriedades que deve ter um objeto para per-tencer ao grupo, enquanto que para o nmero comple-tamente indiferente o que torna grupo o grupo, sistema o sistema, ou as relaes que tm as partes entre si.

    1 Compare-se com a Introduo e os 90 e 91 de Fundamentos da Aritmtica; Breslau, edio de Wilhelm Koeber, 1884.

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  • A razo de porque a realizao atrasou tanto depois de seu anncio em parte se deve a transformaes internas da conceitografia, que me obrigaram a abandonar o manuscrito que estava j quase terminado. Explicarei aqui brevemente estes melhoramentos. Os sinais primitivos empregados no meu Begriffschrift aparecem aqui de novo com uma nica exceo. Em vez de trs traos paralelos empreguei o sinal de igualdade usual, posto que me convenci que na aritmtica este tambm se refere ao mesmo que eu quero designar. Com efeito, uso a palavra igual com a mesma referncia que coincidente com ou idntico a, e realmente assim como se usa tambm na aritmtica o sinal de igualdade. O paradoxo que aparentemente surge da provm, sem dvida, da ausn-cia da distino entre sinal e designado. Claramente na equa-o 22=2+2 o sinal da esquerda diferente do que est direita; mas, ambos designam ou se referem ao mesmo nmero.1 Aos sinais primitivos antigos adicionei somente dois: o esprito suave para designar o curso de valores de uma funo e um sinal que deve substituir o artigo definido da linguagem natural. A introduo do curso de valores das funes um progresso essencial, a que se deve uma mobi-lidade muito maior. Os sinais derivados anteriores podem ser substitudos agora por outros sinais, mais simples, se bem que as definies da univocidade de uma relao, da sucesso em uma srie, da figurao sejam as mesmas que eu havia fornecido em parte no Begriffschrift e em parte nos Fundamentos da Aritmtica. Mas, os cursos tm alm disso uma grande impor-tncia fundamental; pois, eu defino o nmero mesmo como uma extenso de conceito, e as extenses de conceito so, segundo minha concepo, cursos de valores. Sem estes, por-tanto, no se poderia chegar a nenhuma parte. Os antigos sinais primitivos que reaparecem externamente no-alterados e cujo algoritmo apenas foi modificado, foram providos,

    1 Naturalmente, tambm posso dizer: o sentido do sinal que est direita diferente do sinal que est esquerda; mas, a referncia a mesma. Veja-se meu ensaio Sobre o sentido e a referncia, supra, pp. 49 e ss..

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  • todavia, de esclarecimentos diferentes. O anterior trao de contedo torna a aparecer como horizontal. Estas so conse-qncias da evoluo de minhas concepes lgicas. Antes havia distinguido, no que por sua forma externa um enun-ciado afirmativo (Behauptungssatz), duas coisas: 1) o reconheci-mento da verdade, 2) o contedo que reconhecido como verdadeiro. Ao contedo eu chamava contedo judicvel (beurtheilbaren Inhalt). Este agora analisado no que eu chamo pensamento (Gedanken) e valor de verdade (Wahrheistwerth). Isso conseqncia da distino entre sentido (Sinn) e refe-rncia (Bedeutung) de um sinal (Zeichen). Nesse caso, o sentido do enunciado (Satzes) o pensamento e sua referncia o valor de verdade. A isto se soma ainda o reconhecimento de que o valor de verdade o verdadeiro. Com efeito, eu distingo dois valores de verdade: o verdadeiro e o falso. Isto justifiquei detalhadamente em meu ensaio antes citado sobre o sentido e a referncia. Aqui direi somente que unicamente deste modo pode-se conceber corretamente o estilo indireto. Com efeito, o pensamento, que nos demais casos o sentido do enunciado no estilo indireto passa a ser sua referncia. At que ponto tudo se faz mais simples e rigoroso mediante a introduo de valores de verdade, apenas se poder ver com um estudo detalhado deste livro. Estas vantagens sozinhas representam j um grande peso no prato a favor de minha concepo, que naturalmente a primeira vista pode parecer estranha. Tambm caracterizei mais claramente que no Begriffschrift a essncia da funo (Function) em contraposio ao objeto (Gegenstande). Disto resulta adicionalmente a distino entre as funes de primeira e segunda ordem. Tal como expus em minha confe-rncia sobre Funo e conceito,1 os conceitos e as relaes so funes, no sentido ampliado por mim desta palavra, e desse modo devemos distinguir tambm conceitos de primeira e segunda ordem, relaes da mesma ordem e de ordens distintas.

    1 Jena, ed. Hermann Pohle, 1891. (cf. Supra, pp. 17 e ss).

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  • Como se v, no transcorreram em vo os anos desde a publicao do meu Begriffschrift e de meu Fundamentos: fize-ram amadurecer a obra. Mas, precisamente isto que eu consi-dero como progresso essencial, no posso ocultar-me, repre-senta tambm um grande obstculo no caminho da difuso e do efeito de meu livro. E aquilo que constitui uma parte no pequena de seu valor, a saber, a rigorosa ausncia de lacunas nas cadeias dedutivas, temo que no ser bem recebida. Distanciei-me demais das concepes usuais, imprimindo com isso certo carter paradoxal s minhas idias. fcil tropear aqui e ali, ao folhear o livro rapidamente, com alguma expres-so que parece estranha e que provoca um prejuzo desfa-vorvel. Eu mesmo posso compreender em certa medida esta resistncia com a qual se defrontaro minhas inovaes, j que eu mesmo, para alcan-las, tive que superar primeiro algo semelhante. Pois, cheguei a essas expresses no por acaso ou por nsias de novidade, mas constrangido pela coisa mesma (durch die Sache selbst gedrngt).

    Com isto chego ao segundo motivo do atraso: a deses-perana que s vezes me atacava ante fria recepo, ou melhor dizendo, ante falta de recepo feita s minhas obras antes mencionadas por parte dos matemticos1 e a m vontade das correntes cientficas contra as quais meu livro ter que lutar. J a primeira impresso tem que produzir espanto: sinais desconhecidos, pginas inteiras de frmulas extravagantes. Desse modo, durante anos dediquei-me a outras questes. Mas, no podia deixar por muito tempo na gaveta os resultados de meus pensamentos, que me pareciam valiosos, e o esforo empregado exigia sempre novos esforos para que o trabalho no fosse em vo. Por isso no me livrava do assunto. Num caso como esse, em que o valor do livro no pode

    1 Em vo se procuraria meus Fundamentos da Aritmtica no Jahrb. ber die Fortschritte der Math. (Anurio dos progressos da Matemtica). Outros investigadores no mesmo campo, os senhores Dedekind, Otto stolz, v. Helmholtz parecem desconhecer meus trabalhos. Tampouco Kronecker os menciona em seu ensaio sobre o conceito de nmero.

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  • determinar-se mediante uma leitura rpida, a crtica deveria propiciar o comeo. Mas, em geral, a crtica se paga muito mal. Um crtico nunca poder esperar ser compensado em dinheiro pelo esforo que representa um estudo profundo deste livro. Apenas me resta esperar que algum acredite de antemo muito no tema e que espere interiormente uma recompensa suficiente, e que transmita logo ao pblico o resultado de seu exame consciencioso. No se trata de que a mim apenas possa satisfazer um comentrio elogioso. Pelo contrrio! No posso seno preferir um ataque apoiado num conhecimento profun-do do que um elogio em termos gerais que no toca no ncleo da questo. Ao leitor que queira se adentrar no livro com tais propsitos, gostaria aqui de facilitar-lhe o trabalho com algu-mas advertncias.

    Antes de tudo, para se obter uma idia aproximada de como expresso pensamentos com meus sinais, ser til exami-nar detalhadamente na tbua dos axiomas mais importantes alguns dos mais simples, ao lado dos quais est uma traduo. Desse modo, pode-se descobrir o que os demais, para os quais no h traduo, querem dizer. Depois, pode-se comear com a introduo e enfrentar a apresentao da conceitografia. Contudo, aconselho que no incio faa-se apenas uma leitura rpida e no se detenha muito diante de dvidas particulares. Algumas consideraes seriam necessrias para poder respon-der a todas as objees, mas no so essenciais para a compre-enso dos enunciados ideogrficos. Para isso eu indico a segunda parte do 8, que na pgina 12, comea com as pa-lavras Se definimos agora ...; alm disso, a segunda parte do 9, que na pgina 15 comea com as palavras Quando digo em geral ..., e finalmente todo o 10. Em uma primeira leitura, estas passagens podem ser deixadas de lado. O mesmo vale para os 26 e 28 at o 32. Ao contrrio, gostaria de observar que so especialmente importantes para a compre-enso a primeira parte do 8 e alm disso os 12 e 13. Uma leitura mais detalhada pode comear com o 34 e chegar at o final. Ento, ocasionalmente o leitor dever retroceder aos

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  • lidos com pouca ateno. Isso facilitado pelo ndice de termos no final e pelo ndice de contedos. As dedues dos 49 at o 52 podem servir como preparao para a compreenso das demonstraes mesmas. Todos os modos de inferncia e de deduo e quase todas as aplicaes de nossas leis fun-damentais aparecem j neste ponto. Depois que se tenha chegado at o fim procedendo desse modo, se poder ler a apresentao da conceitografia uma vez mais em seu contexto e completamente, tendo em vista ento que as estipulaes que no se utilizam de pronto, e que por isso parecem desne-cessrias, servem para o cumprimento do princpio funda-mental de que todos os sinais formados regularmente devem referir-se a algo, princpio este que essencial para se alcanar um rigor absoluto. Desta maneira creio que desaparecer aos poucos a desconfiana que minhas inovaes podem despertar no comeo. O leitor ver que meus princpios nunca conduzem a conseqncias que ele mesmo no deva reconhecer como corretas. Talvez, tambm dever admitir ento que antes havia superestimado o esforo necessrio, que meu proceder sem saltos na realidade facilita a compreenso, uma vez que se superaram os obstculos que se originam na novidade dos sinais. Possa eu ter a felicidade de encontrar um semelhante leitor e crtico! Pois, um comentrio baseado numa olhada superficial seguramente seria mais prejudicial do que benfico.

    Por isso, seguramente as perspectivas de meu livro so pequenas. Em todo caso h que se descontar todos os matem-ticos que ao topar com expresses lgicas, como conceito, relao, juzo, pensam: methaphysica sunt, non leguntur! E tambm os filsofos que ao ver uma frmula exclamam: mathematica sunt, non leguntur!, e sero muito poucos os que no so de um ou de outro tipo. Talvez no seja grande o nmero de matemticos que se interessam pela fundamen-tao de sua cincia, e tambm esses freqentemente parecem ter muita pressa para logo deixar para trs de si as bases iniciais. E apenas me atrevo a esperar que minhas razes para o penoso rigor e para a extenso que a ele est conectada

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  • convenam a muitos deles. O que se tornou habitual tem grande poder sobre as faculdades. Se comparo a aritmtica a uma rvore que em cima desdobra-se numa multiplicidade de mtodos e teoremas, enquanto que suas razes penetram na profundidade, ento, parece-me que o impulso de buscar as razes, na Alemanha pelo menos, demasiado fraco. Mesmo numa obra que se poderia contar nessa direo, a lgebra da Lgica, do Sr. Schrder, impe-se de incio o impulso em direo copa e, antes de se ter alcanado uma profundidade maior, efetua um giro para o alto e para o desenvolvimento de mtodos e teoremas.

    Tambm desfavorvel para meu livro a inclinao to difundida de admitir-se como disponvel (vorhand) apenas o sensvel (sinnliche). O que no pode ser percebido com os sentidos, pretende-se negar ou passar por cima. Agora, os objetos da aritmtica, os nmeros, so de natureza no-sens-vel. Ento, como se resolve? Muito facilmente! Tomam-se os sinais numricos pelos nmeros. Nos sinais se tem algo visvel, e isto obviamente o principal. Seguramente os sinais tm propriedades totalmente distintas das dos nmeros; mas, que importa? Simplesmente imputa-se a eles as propriedades dese-jadas mediante supostas definies. Seguramente um enigma como pode dar-se uma definio quando no entra em questo qualquer conexo entre sinal e designado. Fundem-se o sinal e o designado tornando-os o mais indistinguveis possvel; ento, conforme seja necessrio, pode-se afirmar a existncia indicando a tangibilidade dos signos1, ou das propriedades legtimas dos nmeros. s vezes parece que se consideram os sinais numricos como figuras de xadrez e as chamadas defi-nies como regras do jogo. O sinal no designa nada, ento, mas a coisa mesma (die Sache selbst). Claramente, assim se

    1 V. E. Heine: Die Elemente der Functionslehre (Os elementos da teoria das funes), no Crelles Journal, n74, p. 173: Com respeito definio coloco-me no ponto de vista puramente formalista, ao denominar nmeros certos sinais perceptveis, de modo que no se pe em questo a existncia destes nmeros.

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  • passa por cima de um detalhe, a saber, que com 32+42=52 expressamos um pensamento (Gedanken), enquanto que uma disposio de figuras de xadrez no afirma nada (nichts besagt). Quando algum se contenta com tais superficialidades no h lugar, naturalmente, para uma considerao mais profunda.

    Aqui importante ter uma idia clara do que definir e do que se pode conseguir mediante definies. Com freqn-cia parece que se atribui definio uma fora criadora, enquanto que na realidade no ocorre outra coisa seno que se faz ressaltar algo delimitando-o e atribuindo-lhe um nome. Assim como o gegrafo no cria nenhum mar quando traa fronteiras e diz: a poro de superfcie ocenica limitada por estas linhas eu denominarei Mar Amarelo, assim tampouco o matemtico pode criar nada propriamente mediante suas definies. No se pode atribuir a uma coisa magicamente, por simples definio, uma propriedade que j no tenha antes, a no ser a de chamar-se com o nome que lhe foi atribudo. Mas, que uma figura em forma de ovo, que se cria sobre o papel com tinta, tenha que receber mediante definio a propriedade de que somada a um d um, isto somente posso considerar uma superstio cientfica. Do mesmo modo poderia fazer-se, por simples definio, de um acadmico preguioso um aplicado. A confuso nasce aqui facilmente por falta de distin-o entre conceito e objeto. Se se diz: Um quadrado um retngulo em que os lados que se tocam so iguais, define-se o conceito quadrado, ao indicar as propriedades que algo deve ter para cair sob este conceito. A estas propriedades eu chamo caractersticas do conceito. Mas, observe-se que estas caracte-rsticas do conceito no so suas propriedades. O conceito quadrado no um retngulo; apenas os objetos que caem sob este conceito so retngulos, do mesmo modo como o conceito pano negro no negro nem pano. Que exista tais objetos ainda no sabemos diretamente por meio da definio. Suponhamos agora que se queira definir o nmero zero, por exemplo, dizendo: algo que somado a um d um. Com isto definiu-se um conceito, ao indicar a propriedade que deve ter um objeto

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  • que caia sob o conceito. Mas, esta propriedade no proprie-dade do conceito definido. Pelo que parece, as pessoas imagi-nam seguidamente que, mediante a definio, cria-se algo que, somado a um, d um. Erro grave! Nem o conceito definido tem esta propriedade, nem a definio garante que o conceito no seja vazio. Isto demanda primeiro uma investigao. Somente quando se provou que existe um objeto e apenas um objeto com a propriedade requerida, que se est em condies de dar a este objeto o nome prprio zero. Criar o zero , pois, impossvel. Repetidas vezes eu expus esta opinio, mas, pelo que parece, sem xito.1

    Tampouco por parte da lgica dominante pode se esperar compreenso da diferena que fao entre a caracte-rstica (Merkmal) de um conceito e a propriedade (Eigenschaft) de um objeto;2 pois, a lgica atual parece estar completamente infectada de psicologia. Quando, em vez da coisa mesma, se consideram somente suas imagens subjetivas (subjectiven Abbilder), as representaes (Vorstellungen), perdem-se natural-mente todas as diferenas reais mais finas e, ao contrrio, aparecem outras que para a lgica carecem totalmente de valor. E com isso passo a falar do que dificulta o influxo de meu livro sobre os lgicos. Se trata da perniciosa ingerncia da psicologia na lgica. Para o tratamento dessa ltima cincia deve ser decisiva a concepo das leis lgicas, e isso por sua vez depende de como se entende a palavra verdadeiro. Que as leis lgicas devem ser normas para o pensamento alcanar a verdade, algo reconhecido certamente por todo o mundo; s que se esquece isso muito facilmente. Aqui o duplo sentido da palavra lei enganador. Em um sentido ela diz o que , em outro ela prescreve o que deve ser. Apenas nestes sentidos as leis lgicas podem ser chamadas leis do pensamento, ao estabelecerem o modo como se h de pensar. Toda lei que diz

    1 Pede-se aos matemticos que no gostam de extraviar-se pelos caminhos da filosofia que interrompam aqui a leitura do Prlogo.

    2 Na Lgica do Sr. B. Erdmann no encontro nenhum indcio dessa importante diferena.

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  • o que pode conceber-se tambm como uma prescrio, posto que h que se pensar de acordo com ela, e neste sentido portanto uma lei do pensamento. Isto vale para as leis geo-mtricas e fsicas no menos do que para as lgicas. Estas merecem com maior direito o nome de leis do pensamento, apenas se com isto queremos dizer que so mais gerais, que sempre prescrevem como se h de pensar sempre que se pense. Porm, o termo lei do pensamento induz opinio errnea de que estas leis regem o pensamento do mesmo modo que as leis naturais os acontecimentos do mundo exte-rior. Nesse caso, no podem ser outra coisa que leis psico-lgicas; pois, o pensamento um processo mental (seelischer Vorgang). E se a lgica tivesse alguma coisa a ver com estas leis psicolgicas, ento, ela seria parte da psicologia. E assim concebida de fato. Estas leis do pensamento so consideradas, ento, como normas no sentido de que representam o padro mdio, do mesmo modo que se pode dizer como ocorre a digesto sadia no homem, ou como se fala de maneira grama-ticalmente correta, ou como algum veste-se modernamente. Em tal caso, somente se pode dizer: segundo estas leis se rege o padro mdio que os homens tomam por verdadeiro, atualmente e na medida em que se conhecem os homens; assim, pois, se algum quer concordar com o padro mdio, deve seguir estas leis. Mas, assim como o que hoje moderno dentro de certo tempo j no ser mais, e entre os chineses agora no , assim tambm somente de maneira limitada se pode propor as leis lgicas como determinantes. Certamente, se que na lgica se trata do que se toma por verdadeiro e no do que verdadeiro! E isto o que confunde os lgicos psicologistas. Assim por exemplo, o Sr. Erdmann equipara, no primeiro tomo de sua Lgica,1 pp. 272-75, a verdade (Wahrheit) com a validade geral (Allgemeingltigkeit) e fundamenta esta na certeza geral sobre o objeto acerca do qual se julga, e esta certeza por sua vez se baseia no acordo geral dos emissores de

    1 Halle a. S., Max Niemayer, 1892.

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  • juizos (allgemeine bereinstimmung der Urtheillenden). Defini-tivamente, portanto, reduziu-se assim a verdade ao tomar por verdadeiro (Frwahrhalten) dos indivduos. Contra isto eu apenas posso replicar: ser verdadeiro (Wahrsein) algo distinto de ser tomado por verdadeiro, seja por parte de um indivduo, seja por muitos, ou todos; e o primeiro no pode ser reduzido ao segundo em nenhum caso. No h contradio em que seja verdadeiro algo que todos tm por falso. Por leis lgicas no entendo leis psicolgicas do tomar por verdadeiro, mas as leis do ser verdade (Gesetze des Wahrseins). Se verdade que eu escrevo isto em minha casa em 18 de julho de 1893, enquanto l fora sopra o vento, seguir sendo verdade ainda que todos os homens considerem isto falso. E como o ser verdade independente de que algum o reconhea como tal, resulta que as leis da verdade no so leis psicolgicas, mas antes marcos cravados em um solo eterno, que certamente podem ser renegados por nosso pensamento, mas nunca removidos. E posto que o so, so determinantes para o nosso pensamento, se este quer alcanar a verdade. Estas leis no esto para nosso pensamento na mesma relao que as leis gramaticais para a linguagem, de modo que fossem a expresso da natureza de nosso pensamento humano e se modificassem com ela. Com-pletamente diferente , naturalmente, a concepo de lei lgica do Sr. Erdmann. Ele duvida de sua validade incondicionada, eterna, e pretende limit-la ao nosso pensamento, tal como este agora (p. 375e s.). Nosso pensamento sem dvida somente pode significar o pensamento da humanidade conhecida at agora. Conforme isso, ficaria aberta a possibilidade de que se descobrissem homens ou outros seres que pudessem emitir juizos contraditrios com nossas leis lgicas. E, se isso ocor-resse realmente? O Sr. Erdmann diria: vemos, pois, que estes princpios no valem universalmente. Sem dvida! Se devem ser leis psicolgicas, sua expresso verbal deve dar a conhecer a espcie de ser cujo pensamento est empiricamente deter-minado por elas. Eu diria: existem seres, portanto, que no conhecem certas verdades diretamente como ns, mas que

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  • talvez estejam obrigados a trilhar pelo longo caminho da induo. Mas, o que ocorreria se tambm se encontrassem seres cujas leis de pensamento contradissessem totalmente as nossas e, portanto, tambm sua aplicao conduzisse a resultados opostos? O lgico psicologista no poderia fazer mais do que reconhecer isso e dizer: para estes seres valem essas leis, para ns aquelas. Eu diria: aqui ns temos um tipo de loucura at agora desconhecido. Quem entende por leis lgicas aquelas que prescrevem como se h de pensar, ou leis do ser verdade, no leis naturais do assentimento humano, esse perguntar: Quem tem razo? Quais leis do tomar por verdadeiro esto de acordo com as leis da verdade? O lgico psicologista no pode fazer estas perguntas; pois, com elas admitiria leis do ser verdade que no seriam psicolgicas. H pior maneira de falsear o sentido da palavra verdadeiro do que quando se pretende incluir uma relao com o emissor do juzo? Que no se me objete que o enunciado Eu estou com fome pode ser verdadeiro para um e falso para outro! O enunciado bem pode ser, mas o pensamento no; pois, a palavra eu se refere na boca de outro a outro homem, e por isso o enunciado emitido pelo outro expressa outro pensamen-to. Todas as determinaes de lugar, de tempo, etc. pertencem ao pensamento cuja verdade est em questo; o ser verdadeiro mesmo no espacial e nem temporal. O que realmente diz o princpio de identidade? Algo assim: No ano 1893 imps-svel para os homens admitir que um objeto distinto dele mesmo?, ou isso: Todo objeto idntico a si mesmo? A primeira lei trata de homens e contm uma determinao temporal; na segunda no se fala nem de homens nem de tempo. Esta uma lei do ser verdadeiro, aquela uma lei do assentimento humano. O contedo de ambas completamente distinto, e so independentes entre si, de modo que nenhuma das duas segue-se da outra. Por isso, muito confuso designar ambas com o mesmo nome de princpio de identidade. Tais confuses de coisas radicalmente distintas so as responsveis pela terrvel falta de claridade que encontramos nos lgicos

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  • psicologistas.Agora, a pergunta de por que e com que direito ns

    reconhecemos como verdadeira uma lei lgica, apenas pode ser respondida pela lgica reconduzindo-a a outras leis lgi-cas. Onde isto no possvel, a resposta fica em aberto. Saindo da lgica podemos dizer: por nossa natureza e pelas circuns-tncias externas estamos obrigados a emitir juzos, e quando emitimos juzos no podemos prescindir desta lei a da iden-tidade, por exemplo ; devemos admiti-la se no queremos fazer cair nosso pensamento em confuso e renunciar, definiti-vamente, a qualquer juzo. No vou discutir nem apoiar esta opinio, e apenas observar que aqui no temos nenhuma conseqncia lgica. No se d nenhuma razo do ser verda-deiro, seno de nosso assentimento. E mais: esta nossa impos-sibilidade de prescindir da lei no nos impede de supor seres que prescindam dela; mas, nos impede sim de supor que estes seres tm razo; tambm nos impede de duvidar se so eles ou ns que temos razo. Pelo menos isso vale para mim. Se outros num s respiro se atrevem a reconhecer e duvidar de uma lei, isso me parece como a tentativa de sair da prpria pele, do que no posso seno prevenir veementemente. Quem admitiu uma vez uma lei do ser verdade, ter admitido com isso uma lei que prescreve como se h de julgar sempre, onde, quando e por quem quer que seja julgado.

    Olhando o conjunto, parece-me que a origem da polmica a distinta concepo da verdade. Para mim, ela algo objetivo, independente do emissor de juzos, para os lgi-cos psicologistas, no. O que o Sr. B. Erdmann chama certeza objetiva somente o reconhecimento geral por parte dos emissores de juzos, que, portanto, no independente destes, seno que pode modificar-se com sua natureza mental.

    Podemos conceber a diferena com maior generali-dade ainda: eu reconheo um domnio do objetivo no-efetivo (Objectiven Nichtwirklichen), enquanto que os lgicos psicolo-gistas consideram o no-efetivo como o subjetivo (Subjectiv) sem mais. E, obviamente, no se v claramente por que aquilo

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  • que tem uma existncia (Bestand) independente do emissor de juzos deva ser efetivo, isto , deva poder atuar diretamente ou indiretamente sobre os sentidos. No se pode descobrir uma tal relao entre os conceitos. Inclusive podem dar-se exem-plos que mostram o contrrio. O nmero um, por exemplo, no facilmente considerado como efetivo (wirklich), se no se seguidor de J. S. Mill. Por outra parte, impossvel atribuir a cada homem o seu prprio um; pois, primeiro haveria que se investigar at que ponto coincidem as propriedades destes uns. E se algum dissesse um vezes um um e outro dissesse um vezes um dois, apenas se poderia constatar a diferena e dizer: o teu um tem esta propriedade, o meu esta outra. No teria nenhum sentido uma discusso acerca de quem tem razo nem tambm a tentativa de ensinar; pois, para isto faltaria uma comunidade de objeto. Evidentemente, isto totalmente contrrio ao sentido da palavra um e ao sentido do enunciado um vezes um um. Dado que o um, enquanto que o mesmo para todos, apresenta-se a todos do mesmo modo, to impossvel investig-lo por meio da observao psicolgica quanto a Lua. Se bem que existem representaes do um nas mentes individuais, estas devem ser distinguidas do um, do mesmo modo que as representaes da Lua devem ser distinguidas da Lua mesma. Como os lgicos psicologistas ignoram a possibilidade do no-efetivo objetivo, tomam os conceitos por representaes, com o que atribuem o seu estudo psicologia. Mas, a verdadeira situao impe-se fortemente para que isto se realize. E assim se chega a uma oscilao no uso da palavra representao: por um lado, ela parece se referir a algo que pertence vida mental do indivduo e se funde com outras representaes, e se associa a elas segundo leis psicolgicas; por outro lado parece se referir a algo que se apresenta a todos do mesmo modo, sem que se nomeie ou sequer se pressuponha um sujeito de representao. Estes dois usos so inconciliveis; pois, estas associaes ou fuses ocor-rem somente no sujeito de representao e ocorrem somente em um estado que to absolutamente peculiar a este sujeito

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  • de representao como sua alegria ou dor. No se deve esque-cer que nunca as representaes de homens diferentes, por mais parecidas que possam ser, o que, por outro lado, ns no podemos comprovar exatamente, no coincidem em nenhum ponto, e devem ser diferenciadas. Cada um tem as suas repre-sentaes, que no so por sua vez as do outro. Naturalmente, entendo aqui representaes no sentido psicolgico. O uso vacilante desta palavra provoca confuso e ajuda aos lgicos psicologistas a ocultar sua debilidade. Quando se por fim a isto! Desse modo tudo arrastado definitivamente para o domnio da psicologia; desaparece cada vez mais a fronteira entre o objetivo e o subjetivo, e inclusive os objetos efetivos so tratados psicologicamente como representaes. Pois, o que o efetivo seno um predicado? E, que so os predicados lgicos seno representaes? Assim desemboca tudo no idealismo e, sendo mais conseqentes, no solipsismo. Se cada um desig-nasse com a palavra Lua algo distinto, a saber, uma de suas representaes, do mesmo como a exclamao Ai! expressa sua dor, ento, estaria justificado o modo de considerao psicologista; mas, uma discusso sobre as propriedades da Lua careceria de objeto: algum poderia muito bem afirmar de sua Lua o contrrio do que outro diria da sua, com a mesma razo. Se no pudssemos conceber mais do que est em ns mes-mos, seria impossvel uma disputa de opinies, uma compre-enso mtua, porque faltaria o terreno comum, e este no pode ser nenhuma representao no sentido da psicologia. No haveria nada parecido com a lgica, que estivesse encar-regado de arbitrar a disputa de opinies.

    Mas, para no dar a impresso de que estou lutando contra moinhos de vento, vou mostrar em um livro deter-minado o afundamento incontornvel no idealismo. Escolho para isto a antes mencionada Lgica do Sr. B. Erdmann como uma das obras mais recentes da orientao psicologista, a que ningum negar certa importncia. Consideremos o seguinte enunciado (I, p85):

    Assim, a psicologia ensina com certeza que os objetos

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  • da memria e da imaginao so, tal como os da representao patolgica alucinatria e ilusria, de natureza ideal.... Ideal tambm todo o domnio das representaes propriamente matemticas, desde a srie dos nmeros at os objetos da Mecnica.

    Que comparao! O nmero dez deve tambm estar no mesmo nvel que o das alucinaes! Aqui se confunde, evidentemente, o no-efetivo objetivo com o subjetivo. Algu-mas coisas objetivas so efetivas, outras no. Efetivo somente um dos tantos predicados, e lgica no lhe interessa mais que o predicado algbrico aplicado a uma curva. Naturalmente, por causa dessa confuso, o Sr. Erdmann se perde na metafsica, por mais que tente manter-se livre dela. Considero um sintoma seguro de erro que a lgica necessite da metafsica e da psico-logia, cincias estas que precisam dos princpios da lgica. Qual aqui a verdadeira base originria sobre a qual tudo repousa? Ou como no conto de Mnchausen, que ele mesmo saia do pntano puxando-se pelos cabelos? Duvido muito dessa possibilidade e suspeito que o Sr. Erdmann ficar atola-do em seu pntano psicolgico-metafsico.

    No existe uma verdadeira objetividade para o Sr. Erdmann, pois tudo representao. Nos convenceremos disso por meio de suas prprias afirmaes. Na pgina 187 do primeiro volume, lemos:

    Na medida em que uma relao entre coisas repre-sentadas, o juzo pressupe dois pontos relacionais, entre os quais tem lugar. Como assero (Aussage) sobre o representado, exige que um destes pontos relacionais defina-se como objeto do qual se assere algo, o sujeito ..., o segundo como objeto que se assere, o predicado.... Antes de tudo, vemos aqui que tanto o sujeito, do qual se assere algo, como o predicado, so quali-ficados de objeto ou representado. Em vez de o objeto, poderia ter dito tambm o representado; com efeito, lemos (I, p.81): Pois os objetos so o representado. Mas, ao inverso, tambm todo o representado deve ser objeto. Na pgina 38 diz-se:

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  • Por sua origem, o representado divide-se, por um lado, em objetos da percepo sensorial e da conscincia de si mesmo, e por outro, em primitivos e derivados.

    O que nasce da percepo sensorial e da conscincia de si , sem dvida, de natureza mental. Os objetos, o repre-sentado e com isso tambm sujeito e predicado so atribudos psicologia. Isto confirmado pela seguinte passagem (I, pp. 147 e 148):

    o representado ou a representao como tal. Pois, ambos so uma e a mesma coisa: o representado represen-tao, a representao o representado.

    A palavra representao geralmente tomada em sentido psicolgico; que este tambm seja o uso dado pelo Sr. Erdmann vemos pelas passagens:

    Conscincia, por conseguinte, sentir, representar, querer o geral (p. 35), e O representar compe-se das repre-sentaes... e pelo fluxo de representaes (p. 36).

    Por isso no deveramos estranhar que um objeto surja pela via psicolgica:

    Na medida em que uma massa de percepes ... apresenta algo anlogo a estmulos anteriores e s excitaes provocadas por eles, reproduz os resduos da memria que procediam do anlogo nos estmulos anteriores e funde-se com eles para formar o objeto da representao apercebida (I, p.42).

    Na pgina 43, mostra-se, por exemplo, como se cria por meios puramente psicolgicos, sem prancheta, tinta, prensa e sem papel, um relevo de cera da Madonna sixtina de Rafael. Depois disso, ningum pode duvidar de que o objeto, do qual se afirma algo, h-de ser, segundo a opinio do Sr. Erdmann, o sujeito de uma representao no sentido psicolgi-co, o mesmo que o predicado, o objeto que afirmado. Se isto fosse correto, de nenhum sujeito poder-se-ia afirmar com verdade que verde; pois, no h representaes verdes. Eu tampouco poderia afirmar de um objeto (Subjecte) a indepen-dncia em relao ao ser representado ou em relao a mim, o

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  • representador, como tampouco minhas decises so indepen-dentes de minha vontade nem de mim, o querente, e seriam aniquiladas comigo caso eu fosse aniquilado. Para o Sr. Erdmann no h, pois, uma objetividade autntica, como tambm se deduz do fato de que pe o representado ou a representao em geral, o objeto no sentido mais geral da pala-vra, como gnero supremo (genus summum) (p. 147). Ele , portanto, um idealista. Se os idealistas pensassem de modo consequente, no considerariam o enunciado Carlos Magno conquistou os saxes nem verdadeiro nem falso, seno como poesia, tal como estamos acostumados a conceber, por exemplo, o enunciado Nessus levou Deanira para o outro lado do rio Euenus, pois tambm o enunciado Nessus levou Deanira para o outro lado do rio Euenus apenas poderia ser verdadeiro ou falso se o nome Nessus tivesse um portador. Desse ponto de vista, certamente no seria fcil demover os idealistas. Mas, no temos porque admitir isso, que falsifiquem o sentido do enunciado como se eu quisera afirmar algo acerca de minha representao quando falo de Carlos Magno; eu quero designar um homem independente de mim e de minha representao e afirmar algo sobre ele. Pode-se conceder aos idealistas que a execuo desse propsito no totalmente segura, que talvez sem querer eu abandone a verdade para cair na poesia. Mas, com isso nada alterado no sentido. Com o enunciado esta ramagem verde no expresso nada sobre minha representao; com as palavras esta ramagem no designo nenhuma de minhas representaes, e, se assim o fizesse, o enunciado seria falso. Aqui aparece uma segunda falsificao, a saber, que minha representao do verde seja afirmada de minha representao desta ramagem. Eu repito: neste enunciado no se trata absolutamente de minhas repre-sentaes; desse modo seria atribudo a ele um sentido com-pletamente diferente. Diga-se de passagem, absolutamente no entendo como uma representao pode ser afirmada de algo. Assim mesmo seria uma falsificao se se quisesse dizer que, no enunciado a Lua independente de mim e do meu repre-

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  • sentar, minha representao do ser independente de mim e de meu representar sejam afirmados de minha representao da Lua. Desse modo se abandonaria a objetividade no sentido prprio da palavra e posto algo muito diferente no seu lugar. Certamente possvel que ao emitir um juzo ocorra tal jogo de representaes; mas, no este o sentido do enunciado. Tambm pode-se observar que no mesmo enunciado, e com o mesmo sentido do enunciado, o jogo de representaes pode ser completamente diferente. E esta manifestao logicamente indiferente tomada por nossos lgicos como o real objeto de sua investigao.

    Como compreensvel, a natureza do tema evita um afundamento no idealismo, e o Sr. Erdmann no estaria disposto a admitir que para ele no h objetividade autntica; mas, igualmente compreensvel a vanidade desse esforo. Pois, se todos os sujeitos e todos os predicados so represen-taes, e se todo pensamento no seno a produo, conexo e modificao de representaes, no se compreende como se pode alcanar algo objetivo. Uma indicao desse vo esforo j o uso das palavras representado e objeto, que primeira vista parecem querer designar algo objetivo em contraposio representao, mas apenas parecem; pois, est claro que se referem a mesma coisa. Para que, ento, esta profuso de expresses? Isto no difcil de advinhar. Note-se tambm que se fala de um objeto da representao, embora o objeto mesmo tenha de ser uma representao. Este seria, logo, uma repre-sentao da representao. A que relao de representaes nos referimos aqui? Por mais obscuro que isto seja, tambm compreensvel, sem dvida, como o conflito da natureza da questo com o idealismo pode dar origem a semelhante emba-rao. Por todos os lados vemos como aqui se confundem o objeto, do qual fao uma representao, com esta representa-o, e depois volta a aparecer a diferenciao. Este conflito ns o detectamos tambm no seguinte enunciado:

    Pois uma representao cujo objeto geral nem por isso , como tal, como evento da conscincia, geral, como

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  • tampouco real uma representao porque seu objeto posto como real, nem um objeto que sentimos como doce... dado por representaes que em si mesmas sejam doces (I, p. 86).

    Aqui predomina a verdadeira situao com toda sua fora. Eu quase poderia estar de acordo; mas, observemos que, segundo os princpios erdmannianos, o objeto de uma repre-sentao e o objeto que dado por representaes so tambm representaes, de modo que toda defesa em vo. Peo que se retenha na memria as palavras como tal, que aparecem similarmente na seguinte passagem, tambm na pgina 83:

    Quando se afirma a realidade de um objeto, o sujeito material deste juzo no o objeto ou o representado como tal, mas o transcendente, que se pressupe como fundamento ntico (Seinsgrundlage) desse representado, que se manifesta por meio do representado. Nesse caso no se deve supor que o transcendente seja o incognoscvel..., mas que sua transcen-dncia consiste apenas na sua independncia em relao ao ser representado.

    Outra v tentativa de sair do pntano! Se tomamos estas palavras a srio, ento dito que nesse caso o sujeito no uma representao. Mas, se isso possvel, ento, no se compreende por que no caso de outros predicados, que indi-cam modos especiais de atuao ou efetividade, o sujeito material deva ser absolutamente uma representao, por exemplo, no juzo a Terra magntica. E assim chegaramos ao resultado de que somente em alguns poucos juzos o sujeito material deveria ser uma representao. Mas, uma vez que se admitiu no ser essencial nem para o sujeito nem para o predicado que seja uma representao, ento, retira-se o solo de apoio dos ps da lgica psicologista. Todas as conside-raes psicolgicas de que esto cheios atualmente nossos livros de lgica aparecem ento como carentes de finalidade.

    Porm, certamente no devemos levar to a srio a transcendncia do Sr. Erdmann. Basta apenas recordar uma de suas afirmaes (I, p. 148): Ao gnero supremo est subordi-nado tambm o limite metafsico de nossa representao, o

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  • transcendente, e ele se afunda; pois, este gnero supremo (genus summum), segundo ele, precisamente o representado ou a representao como tal. Ou ser que a palavra transcen-dente anterior deve ser empregada noutro sentido diferente desse? Em todo caso, teria que se pensar o transcendente como estando subordinado ao gnero supremo.

    Todavia, detenhamo-nos um pouco na expresso co-mo tal! Considere-se o caso em que algum quisesse fazer-me acreditar que todos os objetos no so nada mais do que imagens sobre a retina de meu olho. Tudo bem, eu ainda no respondo nada. Mas, ele prossegue afirmando que a torre maior do que a janela pela qual eu penso ver a primeira. Obviamente, diante disso eu diria: ou bem no so nem a torre nem a janela imagens retinianas em meu olho, e nesse caso a tor-re pode ser maior que a janela; ou bem a torre e a janela, como tu dizes, so imagens em minha retina, e ento a torre no maior, mas menor que a janela. Agora, ele quer escapar do embarao com o como tal e diz: com certeza a imagem reti-niana da torre como tal no maior do que a da janela. Diante disso, eu quase poderia sair da pele e gritar para ele: pois ento a imagem retiniana da torre no maior que a da janela, e se a torre fosse a imagem retiniana da torre e a janela a imagem retiniana da janela, ento, a torre no seria maior que a janela, e se tua lgica te ensina algo diferente porque no serve para nada. Esse como tal uma inveno excelente para autores confusos que no querem dizer nem sim nem no. Mas, eu no tolero esta vacilao entre ambos, e pergunto: se de um objeto se afirma a efetividade, ento o sujeito material do juzo a representao, sim ou no? Se no , o sem dvida o trans-cendente que se pressupe como fundamento ntico dessa re-presentao. Mas, esse transcendente, por sua vez, represen-tado ou representao. Assim somos conduzidos suposio ulterior de que o sujeito do juzo no o transcendente repre-sentado, mas o transcendente pressuposto como fundamento ntico desse transcendente representado. Desse modo, sempre teramos de ir adiante; porm, por mais longe que fssemos,

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  • nunca sairamos do subjetivo. Do mesmo modo, poderamos comear o mesmo jogo com o predicado, e no apenas com o predicado efetivo, mas igualmente com doce. Neste caso, dira-mos primeiro: se de um objeto se afirma a efetividade ou a doura, o predicado material no a efetividade ou a doura representadas, mas o transcendente pressuposto como funda-mento do representado. Mas, desse modo no descansaramos nunca, e sempre teramos de ir mais alm. O que se apreende de tudo isso? Que a lgica psicologista est numa vereda sem sada ao conceber sujeito e predicado dos juzos como repre-sentaes no sentido da psicologia, que as consideraes psico-lgicas so to pouco adequadas em lgica como em astrono-mia ou geologia. Se queremos sair do subjetivo, devemos con-ceber o conhecimento como uma atividade que no produz o conhecido, mas que agarra (ergreift) algo que j existe. A imagem do agarrar muito adequada para explicar a questo. Se eu agarro um lpis, ocorrem em meu corpo certos proces-sos: excitaes nervosas, alteraes na tenso e na presso dos msculos, tendes e ossos, modificaes na circulao sangu-nea. Mas, o conjunto desses processos no o lpis, nem o produz. Este subsiste (besteht) independente de tais processos. E essencial para o agarrar que haja a algo que seja agarrado; as modificaes internas por si s no so o agarrar. Assim, tambm, o que apreendemos mentalmente (geistig erfassen) subsiste independentemente dessa atividade, das representa-es e suas modificaes, que pertencem ou acompanham essa apreenso; no nem a totalidade desses processos, nem produzido por eles como parte de nossa vida mental.

    Vemos agora como os lgicos psicologistas borram distines reais mais finas. A confuso entre caracterstica e propriedade j foi mencionada. Com ela est relacionada a diferena acentuada por mim entre objeto e conceito, como tambm a que h entre conceitos de primeira e de segunda ordem. Estas distines, naturalmente, so irreconhecveis pa-ra os lgicos psicologistas; pois, para eles tudo representao. Por isso tambm carecem de uma concepo correta do tipo de

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  • juzos que em Portugus fazemos com h*. Esta existncia confundida pelo Sr. Erdmann (Lgica, I, p. 311) com a efetivi-dade, que, como vimos no diferenciada claramente da obje-tividade. De que coisas afirmamos propriamente que efetivo quando dizemos que h razes quadradas de quatro? Seria do 2 ou do 2? Mas, absolutamente nem um nem outro so aqui nomeados. E se eu quisesse dizer que o nmero dois atua, ou que atuante ou efetivo, isto seria falso e totalmente diferente do que quero dizer com o enunciado h razes quadradas de quatro. A confuso que ocorre aqui quase a mais grosseira possvel; pois, no ocorre entre conceitos da mesma ordem, mas so mesclados um conceito de primeira ordem e um de segunda. Isto caracterstico da grosseria da lgica psicolo-gista. Se, em geral, se alcanou um ponto de vista mais livre, espanta-se de que tal erro possa ser cometido por um lgico profissional; porm, naturalmente, primeiro h que se ter com-preendido a diferena entre conceitos de primeira e segunda ordem, antes que se possa medir a magnitude desse erro e disso a lgica psicologista sem dvida incapaz. O obstculo com que quase sempre esta choca-se que seus representantes esperam milagres do aprofundamento psicolgico, quando este no mais do que uma falsificao psicolgica da lgica. E assim aparecem nossos grossos livros de lgica nas estantes, inchados de insana gordura psicolgica que oculta todas as formas mais finas. Desse modo faz-se impossvel uma colabo-rao frutfera entre matemticos e lgicos. Enquanto que o matemtico define objetos, conceitos e relaes, o lgico psico-logista espreita o acontecer e a transformao das represen-taes e, no fundo, as definies do matemtico apenas podem parecer-lhe insensatas, porque no refletem a essncia da representao. Ele olha dentro de sua cmara psicolgica e diz para o matemtico: no vejo nada de tudo isso que tu defines. E o outro apenas pode responder: no me admira, pois no est ali onde procuras.

    * N. T. Tomei a liberdade de substituir aqui im Deutschen e es gibt por em Portugus e h.

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  • Isso basta para tornar claro, por contraposio, meu ponto de vista lgico. A distncia com respeito lgica psico-logista me parece to grande que no h perspectivas de que meu livro influa agora j sobre ela. Parece-me como se a rvore plantada por mim devesse levantar um peso descomunal para procurar espao e luz. E, contudo, no quisera abandonar a esperana de que mais tarde meu livro possa contribuir para derrubar a lgica psicologista. Para isso no dever faltar-lhe certo reconhecimento por parte dos matemticos, o qual os forar a enfrentar-se com ele. E creio poder esperar certo apoio dessa parte; pois, obviamente, os matemticos tm que fazer causa comum contra os lgicos psicologistas. Logo que estes se dignem a estudar seriamente meu livro, ainda que ape-nas para atac-lo, creio terei vencido. Pois, toda a Parte II na realidade uma prova de minhas concepes lgicas. De ante-mo improvvel que semelhante construo pudesse estar alicerada sobre uma base insegura e errada. Qualquer um que tenha outras concepes pode tentar montar sobre elas uma construo semelhante e acabar por ver, segundo creio, que no funciona ou pelo menos que no funciona to bem. E como refutao, eu apenas poderia admitir que algum mos-trasse na prtica que com outras concepes bsicas diferentes se pode construir um edifcio melhor e mais slido, ou que algum me mostrasse que meus princpios conduzem a conse-quncias manifestadamente falsas. Mas, isso ningum conse-guir. E assim pode ser que este livro contribua, ainda que tarde, para uma renovao da lgica.

    Jena, julho de 1893.

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  • Kasimir Twardowski(1866 1938)

    Nascido em 20 de Outubro de 1866, em Viena, Kasimir Twardowski foi aluno de Franz Brentano e doutourou-se em 1891, sob a orientao de R. Zimmer-man, sendo considerado um dos co-fundadores da assim chamada teoria dos objetos, juntamente com Meinong. Trans-feriu-se para a Polnia, onde foi o prin-cipal responsvel pela fundao, em 1897, do primeiro Seminrio Polons de Filosofia, da Sociedade Polonesa de Psicologia Experimental, em 1901, e da Sociedade Filosfica Polonesa, em 1904.Nas palavras de Alfred Tarski, A maioria dos pesquisadores que seguiram a filosofia das cincias exatas na Polnia foram indireta-mente ou diretamente discpulos de Twardowski, embora sua prpria obra dificilmente possa ser posta dentro desse domnio. As suas principais obras so: ber den Unterschied zwischen der klaren und deutlichen Peception und der klaren und deutlichen Idee bei Descartes (1892); Zur Lehre vom Inhalt und Gegenstand der Vorstellungen. Eine psychologische Untersuchung, 1894; Wybrane pisma filozoficzne, PWN, Warszawa 1965; Rozprawy i artykuly filozoficzne, PWN, Lww 1927; "Actions and Products. Comments on the Border Area of Psychology, Grammar and Logic" (1912), in J. Pelc (ed.), Semiotics in Poland 1894-1969, Reidel-PWN, Dordrecht-Warszawa 1979; "Remarks on the Classification of Views on the Relation between the Soul and the Body", Axiomathes, vol. VI, n.1, 1995, pp.25-30; "Imageries", Axiomathes, vol. VI, n.1, 1995, pp. 79-104

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  • Para a doutrina do contedo e do objeto das representaes

    Uma investigao psicolgica deKazimir Twardowski

    [Zur Lehre vom Inhalt und Gegenstand der Vorstellungen, Eine psychologische Untersuchung. Wien, A. Hlder, 1894. 1- 7, s. 3-40.]

    1. Ato, contedo e objeto de representao.Uma das mais conhecidas proposies da Psicologia

    que a cada fenmeno psquico relaciona-se um objeto ima-nente (immanenten Gegenstand). O estar dado de tal relao uma marca caracterstica dos fenmenos psquicos, que se diferenciam por ela dos fenmenos fsicos. Aos fenmenos psquicos do representar, do julgar, do desejar e do detestar corresponde um representado, julgado, desejado e detestado, e os primeiros sem os ltimos seriam absurdos. Esta circuns-tncia, mencionada pelos escolsticos e j antes por Aristteles, foi recentemente considerada em toda a sua importncia por Brentano que, entre outras coisas, fundamentou a classificao dos fenmenos psquicos no tipo de relao, como a que ocorre entre representar e representado, etc.1

    Com base nessa relao a um objeto imanente pr-pria dos fenmenos psquicos costuma-se distinguir entre ato (Act) e contedo (Inhalt) em todos os fenmenos psquicos, os quais so representados sob um duplo ponto de vista. Quando se fala de representaes (Vorstellungen) tanto se pode enten-der o ato de representao (Vorstellungacte), a atividade de representar, quanto tambm significar com esta expresso o representado, o contedo da representao (Vorstellungsinhalt).

    1 Franz Brentano, Psychologie vom empirischen Standpunkte, Leipzig 1874. II. Buch, 1. Cap. 5 und 6. Cap. 2.

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  • E assim se tornou comum, onde poderia haver a menor possibilidade de mal-entendido, em vez da expresso repre-sentao, usar uma das duas expresses ato de represen-tao e contedo de representao.

    Mesmo evitando-se assim a confuso do ato psquico com seu contedo, resta ainda por ser superada uma ambi-gidade sobre a qual Hfler chamou a ateno. Aps ele pronunciar-se sobre a relao com um contedo, prpria dos fenmeno psquicos, ele continua: 1. O que ns chamamos 'contedo da representao e do juzo' encontra-se inteira-mente no interior do sujeito, tal como o ato de representao e de juzo. 2. As palavras 'Gegenstand' e 'Object' so usadas em dois sentidos: por um lado, para aquele existente em si (an sich Bestehende), ... para o qual nosso representar e julgar igualmente se dirigem, por outro, pela 'imagem' (Bild) psquica em ns existente mais ou menos aproximada daquele real (Realen), aquela quase-imagem (mais precisamente: signo) idntica ao que em (1.) denominou-se contedo. Em contra-posio ao Gegenstand ou objeto, suposto como independente do pensamento, denomina-se o contedo de um representar e julgar (igualmente, sentir e querer) tambm o objeto imanente ou intencional desses fenmenos psquicos.1

    A partir disso diferencia-se o objeto (Gegenstand), para o qual nosso representar igualmente se dirige, do objeto imanente (immanenten Object) ou do contedo (Inhalt) de repre-sentao. Esta distino nem sempre feita e, entre outros, tambm Sigwart no a percebe.2 A linguagem facilita, como to seguidamente, tambm aqui a confuso de coisas dife-rentes, na medida em que permite que tanto o contedo quan-to o objeto sejam o representado. Mostrar-se- que tambm a expresso representado ambgua do mesmo modo que a expresso representao. Esta serve para designar o ato e o

    1 Logik, Unter Mitwirkung von Dr. Alexius Meinong, verfasst von Dr. Alois Hfler, Wien, 1890; 6.

    2 Vergl.. Hillebrand, Die neuen Theorien der kategorischen Schlsse, Wien, 1891, 23.

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  • contedo, tanto quanto aquela para designar o contedo, o objeto imanente, e para designar o objeto no imanente, o que est diante da representao.

    Esta investigao tratar da separao entre o repre-sentado no primeiro sentido, onde isso significa o contedo, e o representado no outro sentido, onde serve para designar o objeto; em suma, considerar o contedo de representao (Vorstellungsinhaltes) e o objeto de representao (Vorstellungs-gegenstande) separadamente e a relao mtua entre os dois.

    2. Ato, contedo e objeto do juzo.A suposio que os juzos (Urteile) demonstram, rela-

    tivamente distino entre contedo e objeto, algo semelhante s representaes. Se tivermos sucesso em descobrir no dom-nio do julgar tambm uma distino entre contedo e objeto do fenmeno, ento isto poderia ser vantajoso para o esclare-cimento da relao anloga no caso das representaes.

    O que diferencia um do outro representaes e juzos e os constitui como classes de fenmenos psquicos claramente separadas o tipo especial de relao intencional ao objeto. Em que consiste esta relao no se deixa descrever, mas apenas esclarecer por meio da indicao daquilo que a experincia interna oferece. E a se mostra de modo claro a diferena entre os tipos pelos quais um ato psquico pode se relacionar com seu objeto. Pois no resta escondido para ningum que se trata de uma relao diferente, a cada vez, se algum meramente representa algo, ou se o reconhece, repudia. Entre esses dois tipos de relao intencional no h passagem, nem gradual nem descontnua. Trata-se de um equvoco acerca dos fatos acreditar que entre representar e julgar haveria alguma forma de passagem que estaria entre os dois. B. Erdmann apresenta uma dessas formas de passagem. Quando lembramos de um objeto, diz ele, fazemos um representao abstrata, ou pro-curamos nos esclarecer sobre as caractersticas de algum objeto composto, ns unimos ao objeto as sucessivas marcas distin-tivas involuntariamente e quase sem exceo com a ajuda de

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  • representaes de palavras. E isto de tal modo que elas so ditas, predicadas do objeto, portanto, este pensado como sujeito, aquelas como predicados de um juzo. Assim as representaes passam para o juzo; elas aparecem num des-dobramento de representao predicativa. E mais: Tambm a partir do lado oposto a diferena entre representao e juzo torna-se algo fluda... Ns podemos com efeito tambm sinte-tizar um juzo por meio de uma palavra. Palavras como imperativo categrico, estado, direito, polcia, religio, valor (em sentido de economia nacional), mercadoria, lei natural, no tm seu significado tanto nas representaes, mas antes nos juzos que, segundo o tipo de representao, so sinte-tizados atravs de uma palavra; todavia, na conscincia inter-vem apenas nos juzos. Onde o seu significado claro, ele dado por juzos, por sua definio, ali o processo de abstrao no qual eles se formam se completa por meio da linguagem.1 Estes os argumentos de Erdmann para a existncia de uma passagem, tambm afirmada em outros lugares, da repre-sentao ao juzo e vice-versa.2 Fcil mostrar o erro do desenvolvimento de Erdmann.

    No que concerne ao primeiro argumento de Erdmann, que afirma que ns sempre relacionamos do mesmo modo, involuntariamente, as caractersticas de um objeto composto ao mesmo objeto, de maneira que ele pensado como sujeito e as caractersticas como predicados de um juzo, trata-se de um argumento no congente. Pois, mesmo se fosse admitido que o fato de se representar um objeto composto ocorresse do modo proposto por Erdmann, a interveno de juzos, ou de uma

    1 B. Erdmann, Logique, Halle sur S., 1892, Tome I, 34.

    2 Cf. Bosanquet, Logic, Oxford, 1888, Tome I, p. 41: An idea or concept is not an image, though it may make use of images. It is a habit of judging with reference to a certain identity ... The purpose ... was to show, that the acts set in motion by the name and by the proposition are the same, and therefore the logical function of these forms would not be generally different. -- Do modo semelhante Schmitz-Dumont: O direito de estado significa a mesma coisa que quando se diz explicitamente: o estado possui certos direitos. Vierteljahrs-schrift fr wissenschaftliche Philosophie X, Jhrg., S. 205.

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  • forma de passagem entre representaes e juzos, no estaria demonstrada por isso. Se ns pensamos um objeto como um sujeito, e suas caractersticas como predicados de um juzo, representamos um sujeito de juzo, predicados de juzos e os prprios juzos, pois sujeito e predicado no podem ser representados enquanto tais seno numa reflexo simultnea sobre um juzo. Mas h obviamente uma grande diferena entre o fato de se representar um juzo e o fato de ter lugar um juzo (Fllen eines Urteils). Um juzo representado tampouco um juzo quanto cem tleres representados so uma posse. Embora, em vista disso, um objeto composto no possa ser representado sem a ajuda de desdobramentos de represen-tao predicativa, este enunciado (Aussagen) das caracters-ticas de um objeto como sujeito no , pois, seno um enun-ciado representado, ao qual, para passar ao estado de um enunciado efetivo, de um juzo, falta exatamente tudo o que um castelo pintado precisa para se tornar um castelo real. Se se representa o objeto composto ouro, se representa o ouro como amarelo, metlico, pesado, etc.. Isto quer dizer que os juzos o ouro amarelo, o ouro brilha como um metal, o ouro pesado, etc., so representados em conjunto; mas, justamente, estes juzos vm apenas representados, no reali-zados (gefllt). Se esse fosse o caso, como sustenta Erdmann, no se poderia nunca representar-se um objeto composto, analisado em suas caractersticas, sem afirmar qualquer coisa de verdadeiro ou de falso sobre este objeto. Esta conseqncia, posta em todas as direes, daria como resultado que no haveria seno representaes, no verdadeiro sentido da pala-vra, simples; e, por isso, Erdmann no se faria compreender.

    O segundo argumento de Erdmann para a presena de passagens entre a classe das representaes e a dos juzos to somente, visto de perto, uma inverso do primeiro e to pouco cogente quanto este. Deve-se admitir certamente que se pode sintetizar os juzos por uma palavra. E isto possvel de duas maneiras. Um juzo cujo modo de expresso habitual na lin-guagem o que se faz por uma frase (Satz) pode muito bem

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  • ser expresso numa frase que se compe apenas de uma nica palavra (Wort), ou bem ser proferido sem que haja uma sen-tena presente. O primeiro caso acontece em inmeras lnguas com o que se denomina frases sem sujeito, como em grego, latim, e todas as lnguas eslavas. Nesses casos, o juzo sin-tetizado por uma palavra, pois a frase significando o juzo aparece expressa por uma nica palavra. Mas os juzos podem ser tambm resumidos por uma palavra sem que, por esta mesma palavra, uma frase no sentido gramatical seja represen-tada. Quem faz o alerta Fogo!, ou outros do mesmo tipo, sintetiza numa s palavra a frase Isto queima e o juzo que significado por esta frase.

    Diferente desses casos aquele considerado por Erdmann. Verdade que onde a significao das palavras como estado, direito, etc., claro, ela dada por definies. Ora, as definies so, sem dvida alguma, frases. Porm, Erdmann esqueceu que s frases podem corresponder, en-quanto correlatos psquicos, no apenas juzos, mas ainda muitas outras coisas, por exemplo, desejos, etc.. Alm dos juzos efetivos, os juzos representados so tambm comuni-cados por frases. Quando algum descreve o objeto de sua representao, serve-se para isso de frases. Ele diz: A pea de ouro que eu me represento amarela, etc.. Mas isso que dado pela informao no um outro juzo diferente daquele que o falante que tem uma representao determinada; sobre o objeto de representao nenhum juzo feito; antes, apenas juzos sobre a constituio da pea de ouro representada. E estes juzos representados, por sua vez, so revestidos com a forma de uma ou vrias frases. Se a definio, como pensa Erdmann, no tem outra funo que indicar a significao clara de uma palavra, o nico juzo que ela contm ento aquele sobre a unio vlida para aqueles que falam de um nome determinado com uma significao determinada. Se algum diz: O estado uma comunidade pblica que une um povo residente sobre um certo domnio na reunio de gover-nantes e governados, no enuncia assim um juzo sobre o

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  • estado, mas somente sustenta que ele designa com a palavra estado um objeto cuja representao composta da maneira indicada. E a descrio dessa representao faz-se com a ajuda de frases que consistem de sujeito e predicado, mas cujos correlatos psquicos, longe de serem juzos, apresentam-se como representaes de juzos. V-se o quanto o segundo argumento de Erdmann est ligado por conexo ao primeiro e, com ele, se eleva e cai.

    A partir disso, ns vamos estabelecer firmemente que representao e juzo so duas classes claramente distintas de fenmenos psquicos, sem que se d entre eles qualquer forma de passagem.

    No que agora concerne ao objeto de juzo, o mesmo objeto que num caso simplesmente representado, pode noutro vir a ser julgado, reconhecido ou recusado. Que a essncia do juzo encontra-se precisamente no fato de reco-nhecer ou rejeitar foi mostrado por Brentano.1 O que reco-nhecido ou rejeitado o objeto do juzo. Com esta operao psquica dirigida a um objeto se entrelaa de uma maneira particular a existncia ou a no-existncia do objeto. Pois o que julgado o objeto; mas, na medida em que ele reconhecido a sua existncia parece ser reconhecida ao mesmo tempo; se ele denegado, a sua existncia tambm parece ser denegada. Quem acredita que no reconhecimento ou na denegao de um objeto que se d o reconhecimento ou denegao da ligao da caracterstica existncia ao objeto esquece que no reconhecimento de uma ligao as partes ligadas so elas mesmas reconhecidas de uma maneira implcita, mas que, pela negao de uma ligao, as partes singulares no so negadas. Na afirmao da existncia de A, A j reconhecido; atravs da negao da existncia de A, A tambm negado, o que no poderia ser o caso se se tratasse de uma ligao de A com a caracterstica existncia.2 E entretanto, pelo reconhecimento

    1 Op. Cit., livro 2, Cap. 7, 4 e s.

    2 Ibid., 5.

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  • de A, a sua existncia parece ser reconhecida e, pela negao da existncia de A, A tambm parece ser negado.

    Esta situao remete funo do ato de juzo que oferece o anlogo da funo do ato de representao, pelo qual, alm do objeto, o seu contedo tambm represen-tado. Do mesmo modo que no representar um objeto sobre o qual este representar se dirige no sentido prprio, um segundo elemento vem luz ainda, a saber, o contedo da represen-tao que, ele tambm, mas num outro sentido, tal como o objeto representado, igualmente o que afirmado ou nega-do por um juzo, sem ser o objeto do ato de julgar, o conte-do do juzo. Pelo contedo do juzo deve-se compreender a existncia de um objeto, aquele que se trata em cada juzo. Pois, quem faz um juzo afirma alguma coisa sobre a existncia de um objeto. Quando ele reconhece ou rejeita este objeto, ele reconhece ou rejeita tambm a sua existncia. O que no sentido prprio julgado o objeto mesmo; e, na medida em o objeto julgado, tambm a sua existncia parece ser julgada, mas num outro sentido.

    A analogia com as relaes que se encontram no domnio do representar perfeita. Aqui como l tem-se um ato psquico; aqui, o julgar, l, o representar. Este como aquele se ligam a um objeto suposto como independente do pensar. Assim como quando o objeto representado, quando ele julgado, vem luz alm do ato psquico e de seu objeto um terceiro elemento que por assim dizer um signo (Zeichen) do objeto: sua imagem psquica, na medida em que ele repre-sentado, e sua existncia, na medida em que julgado. Assim tanto se diz da imagem psquica de um objeto que ela representada, se diz de sua existncia que ela julgada; mas o objeto prprio do representar e do julgar no nem a imagem psquica do objeto nem sua existncia, mas o objeto mesmo. Entretanto, assim como a imagem psquica ou a existncia de um objeto no so idnticas a este, tampouco so semelhantes os sentido dos verbos relativos quando se denomina repre-sentado o contedo e o objeto de uma representao, e julga-

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  • do o contedo e o objeto de um juzo.

    3. Nomes e representaes.Mesmo se falar e pensar no estejam relacionados um

    com o outro numa relao de paralelismo completo, existe to-davia uma analogia entre os fenmenos psquicos e as formas da linguagem que os designam que pode servir para clarear as propriedades dominantes sobre o primeiro domnio, ao se mencionar as particularidades que so prprias s manifes-taes do outro domnio. A respeito da distino em consi-derao entre o contedo de representao e o objeto de repre-sentao, a considerao do nome (Namen) como o signo lingstico de uma representao que propiciar a tarefa.

    Uma questo seguidamente j levantada em relao aos nomes fo