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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016 Cemitério do Esplendor: Notas Sobre a Impermanência 1 Luciano Viegas da SILVEIRA² Universidade Federal da Minas Gerais, Minas Gerais, MG Resumo Este texto investiga a noção de experiência, conforme proposta pelo pragmatista John Dewey (1859 – 1952), em correlação ao que a filosofia budista entende por impermanência . Em um segundo momento observamos em que medida a questão da impermanência contamina as operações fílmicas em Cemitério do Esplendor, do tailandês Apichatpong Weerasethakul, ao sustentar transições sensoriais, aproximando-se do que May Adadol Ingawanij (2015) denomina realismo performativo. Palavras-chave: Cinema; pragmatismo; budismo; Apichatpong Weerasethakul; comunicação. Notas sobre a impermanência Em Experiência e Natureza, livro editado em 1925, o filósofo pragmatista John Dewey procura se afastar do dualismo racionalista bastante em voga no meio científico de sua época que opunha, de um lado o homem, de outro a natureza. Sua abordagem não deixa de ressoar contemporânea, enquanto as ciências duras avançam no sentido de um produtivismo cego, teleológico e tecnológico, em consonância com o imperativo bélico- econômico, futurista e distópico quanto aos seus porvires (a cidade falida de Detroit, a região devastada de Fukushima, o Rio Doce e Xingu do Consórcio Belo Monte são protótipos). Tempos sombrios da macropolítica, orientada para a devastação da natureza tanto quanto dos homens, com agravo especialmente para os sem-parte na esfera pública, conforme diz Jacques Rancière, o que reforça o pensamento deweyano de que persiste uma rachadura, não-reconciliada, entre homem e natureza, seja no âmbito científico ou social. Dewey (1980) propunha de fato um método empírico em filosofia, que considerava o conhecimento como resultante de investigações práticas, não dependente de inferências transcendentais da razão ou de conceitos dados previamente (antifundacionalismo), daí sua proeminência como pensador da escola pragmatista. Sob esta visada o conhecimento poderia advir tão somente de uma participação vital no mundo, o que Dewey procurou elucidar em diversas obras através do conceito de “experiência”. 1 Trabalho apresentado no GP Teorias do Jornalismo do XVI Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. ² Mestrando do PPG em Comunicação da UFMG, e-mail: [email protected] .

Cemitério do Esplendor: Notas Sobre a Impermanênciaportalintercom.org.br/anais/nacional2016/resumos/R11-0686-1.pdf · Rinpoche (2005), discípulo de Jamyang Khyentse Chökyi Lodrö,

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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da ComunicaçãoXXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

Cemitério do Esplendor: Notas Sobre a Impermanência1

Luciano Viegas da SILVEIRA²Universidade Federal da Minas Gerais, Minas Gerais, MG

Resumo

Este texto investiga a noção de experiência, conforme proposta pelo pragmatista JohnDewey (1859 – 1952), em correlação ao que a filosofia budista entende por impermanência.Em um segundo momento observamos em que medida a questão da impermanênciacontamina as operações fílmicas em Cemitério do Esplendor, do tailandês ApichatpongWeerasethakul, ao sustentar transições sensoriais, aproximando-se do que May AdadolIngawanij (2015) denomina realismo performativo.

Palavras-chave: Cinema; pragmatismo; budismo; Apichatpong Weerasethakul;comunicação.

Notas sobre a impermanência

Em Experiência e Natureza, livro editado em 1925, o filósofo pragmatista John

Dewey procura se afastar do dualismo racionalista bastante em voga no meio científico de

sua época que opunha, de um lado o homem, de outro a natureza. Sua abordagem não deixa

de ressoar contemporânea, enquanto as ciências duras avançam no sentido de um

produtivismo cego, teleológico e tecnológico, em consonância com o imperativo bélico-

econômico, futurista e distópico quanto aos seus porvires (a cidade falida de Detroit, a

região devastada de Fukushima, o Rio Doce e Xingu do Consórcio Belo Monte são

protótipos). Tempos sombrios da macropolítica, orientada para a devastação da natureza

tanto quanto dos homens, com agravo especialmente para os sem-parte na esfera pública,

conforme diz Jacques Rancière, o que reforça o pensamento deweyano de que persiste uma

rachadura, não-reconciliada, entre homem e natureza, seja no âmbito científico ou social.

Dewey (1980) propunha de fato um método empírico em filosofia, que considerava

o conhecimento como resultante de investigações práticas, não dependente de inferências

transcendentais da razão ou de conceitos dados previamente (antifundacionalismo), daí sua

proeminência como pensador da escola pragmatista. Sob esta visada o conhecimento

poderia advir tão somente de uma participação vital no mundo, o que Dewey procurou

elucidar em diversas obras através do conceito de “experiência”.

1 Trabalho apresentado no GP Teorias do Jornalismo do XVI Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, eventocomponente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.

² Mestrando do PPG em Comunicação da UFMG, e-mail: [email protected].

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Seguindo a leitura de Thamy Pogrebinschi (2005), Dewey se distingue, no

pensamento pragmatista, em relação a outros autores exponenciais como Charles S. Peirce e

William James, justamente pela ênfase que atribui à noção de contextualismo. Se para o

primeiro o pragmatismo consistia em uma teoria dos signos, para o segundo se tratava de

uma teoria da verdade, assumida como um processo ininterrupto que jamais repousaria em

qualquer espécie de significação final, compreensão que Dewey conserva. Para o

pragmatismo, nisso os três autores coincidem, nenhum conceito pode ser tratado como

ponto de partida, tampouco como ponto de chegada, tudo se daria no nível relacional, do

processo enquanto tal, portanto da experiência. Dewey (1980, p.9) reconhece tomar

emprestada de James a expressão experiência em seu sentido duplo, que denota tanto aquilo

que os homens fazem, quanto ao que padecem, ação ativa e afetação passiva,

simultaneamente, pois “não admite divisão entre ato e matéria, sujeito e objeto”. Os

pragmatistas sintonizam com a compreensão de seus contemporâneos em outras disciplinas,

tais como a teoria da relatividade einsteiniana, que rompe com a objetividade da mecânica

clássica, e a teoria darwinista, quanto à sua suposição de que seres vivos se modificariam

pela interação com o ambiente, recusa portanto de considerar a vida em formas fixas e

absolutas.

Essa concepção de um empirismo naturalista em Dewey (1980, p.5) considera a

experiência entre coisas interagindo como dado primário, “que avança para dentro da

natureza; tem profundidade”. Fluxo contínuo do qual o sujeito humano participa pois não

poderia se dissociar do ambiente que o circunda. Por essa via pensamos uma aproximação

entre o enfoque pragmatista no contexto e a noção budista de samsara, que iremos expor

segundo as apresentações de Padma Samten (2001), brasileiro ordenado lama (transmissor

de ensinamentos) na linhagem Ningma, a mais antiga do budismo tibetano, e de Sogyan

Rinpoche (2005), discípulo de Jamyang Khyentse Chökyi Lodrö, um dos mais respeitados

mestre espirituais do Tibete no século XX. Ressaltamos que a apreensão dos conceitos

centrais para o budismo a serem aqui expostos pelos intercessores do pensamento tibetano

não compromete nossa posterior abordagem do filme Cemitério do Esplendor, de

Apichatpong Weeresathakul - embora na Tailândia vigore outra tradição, a Theravada,

partilhada por cerca de 95% da população - pois abordaremos noções que são comuns entre

as linhagens.

Devemos destacar de início que a compreensão do que seja o indivíduo, segundo o

budismo, não o encerra na experiência única de uma vida - como faria a psicologia

behaviourista, em busca de explicações mentais, que Dewey (1980) desmonta –, pelo

contrário, orienta seus praticantes a tomar conhecimento das existências cíclicas. Este

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aspecto percorre o cinema de Apichatpong Weerasethakul. Samsara diz respeito aos ciclos

de sofrimento (duka) aos quais permanecemos presos quando nos deixamos levar pelas

chamadas seis emoções perturbadoras, que são de acordo com Padma Samten (2001, p.25):

“orgulho, inveja, desapego/apego, obtusidade mental, carência e raiva/medo”. Estamos

sujeitos igualmente a impulsos internos causadores destes sofrimentos, manifestações não-

conscientes, que nos incitam a reproduzir ações prejudiciais, no presente, aos outros e por

consequência a nós mesmos (inseparatividade), bem como por padrões mal resolvidos em

existências anteriores, o que se denomina karma. Quando operamos dentro dos padrões

kármicos de sofrimento, sem a atenção voltada para o aqui-agora da experiência cotidiana,

tendemos a repeti-los indefinidamente (isto é samsara), guiados por um senso de dualidade

(sujeito/objeto) que não nos permite reconhecer a inseparatividade fundamental entre as

coisas, suas afetações recíprocas. Padma Samten (2001, p.61) elucida esta ideia da

inseparatividade por uma metáfora da visão: “Tudo aquilo que focamos é inseparável de

nossos olhos”.

Se por um lado Dewey constata que a concepção de um mundo mental, o da

investigação psicológica, seja a própria origem do que chamamos subjetividade, em que o

mental é reificado ao ser tomado como o todo da experiência, a filosofia budista por sua vez

afirma a existência de um mundo mental, porém tendo em vista sua necessária dissolução.

Isto porque o reconhecimento da existência mental não viria a reforçar o sujeito e suas

convicções, pelo contrário, através de um trabalho interno de autobservação é que o sujeito

teria a chance de despojar-se das armadilhas egóicas que o retém na roda de samsara. O

autoconhecimento torna-se ferramenta de ação, investigação de si mesmo e para além,

participação vital no mundo, que conduz ao desapego do “em si mesmo”, de uma

individualidade que era alçada como a totalidade da experiência e seu limite. Toda prática

meditativa teria como propósito o reconhecimento da equanimidade entre os pontos de vista

interno e externo, o que Sogyal Rinpoche (2005, p.75) expõe pela metáfora bastante

conhecida da jarra vazia: “O espaço de dentro é exatamente o mesmo que o espaço de fora;

apenas as frágeis paredes da jarra separam um do outro”. Trata-se de reconhecer que o

unviverso mental do indivíduo é extramente limitado se comparado ao que o budismo

entende como a verdadeira natureza da mente, ilimitada e ao alcance de todos pela

meditação e por outras práticas. Como um modo de introduzirmos a discussão em torno do

filme Cemitério do Esplendor, de Apichatpong Weerasethakul, destacamos uma sequência

em que ocorre uma prática de meditação conduzida – a descrição do contexto tailandês e da

narrativa terão lugar mais à frente. Seria importante dizer, por enquanto, apenas que o filme

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se passa em um hospital e que a meditação é proposta enquanto técnica de cura capaz de

aumentar a energia vital dos pacientes [Figuras 1 e 2].

Embora a condução da prática seja entrecortada, na imagem, pela anotações que a

personagem Jenjira lê em seu próprio diário, que contradizem ou colocam em dúvida a fala

do instrutor, ou então atestam suas lamentações e falta de disciplina para realizações

conscientes, ainda assim podemos apreender alguns trechos do que ele se propõe a

transmitir, que transcrevo abaixo:

Nosso problema é que pensamos muito. Todos os dias, todas as noites. Ànoite chamamos isso de sonhar. Todos sonhamos. Nós não podemos pararos sonhos, não mais do que os pensamentos. Como não podemos pará-los,devemos ser mais conscientes deles. Estarmos conscientes de nossopensamentos e de nossos sonhos (…) Céu e inferno, virtude e pecado, nãosão nada mais do que suposições. Nós não devemos ficar muito apegadosa isso. Ao meditar exercemos a nossa mente. Luzes e visões são causadaspelas reações químicas no cérebro. Quando dormimos a mente permanececonsciente. Cada pessoa que exerce sua mente pode atingir a consciência.

Nós vamos fazer um exercício simples. Não pensem de mais. Sentem-sedireito. Lentamente, fechem os olhos. Concentrem-se no topo de seucorpo e em seu cérebro. Reduzam os seus pensamentos para a base de seucorpo, sob seus pés. Agora movam as faces, com que se parece? Olhempara si mesmos. Suas sobrancelhas, seus olhos. Tentem imaginá-los.Como suas orelhas se parecem? Foquem a sua boca e agora o seu queixo.Lentamente movam sua atenção para a base do seu nariz. Deixem aenergia se espalhar, mais e mais, para fora de seu corpo, até que encha oquarto. Movam esta bola de energia para o campo, lá fora. Uma vez queestá fora, deixem-na se expandir. Deixem-na flutuar até o céu, até que elaatinja a lua. Da lua, deixem-na se espalhar ainda mais, até as estrelas,espalhando-se sobre todas as estrelas. Agora, tragam de volta essa energia,devolvam-na lentamente para si mesmos (trecho do filme Cemitério doEsplendor)

Observamos uma convergência entre o que o ensino da meditação revela sobre a

natureza da mente, tanto no filme quanto na percepção dos mestres tibetanos, e a crítica que

Dewey (1980, p.19) instaura contra o modelo reinante da cognição estritamente mental e

subjetiva: “a noção da onipresença de toda experiência cognitiva compreensiva resulta, por

Figura 1 Figura 2

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lógica necessária, na construção de um sólido muro entre o sujeito experienciante e a

natureza que é experienciada”. Advogam a limitação do sujeito enquanto tal. Para a

filosofia pragmatista o indivíduo torna-se diminuto diante daquilo que experimenta, “o eu

se torna não apenas um peregrino como ainda um estranho, não naturalizado nem

naturalizável, no mundo” (DEWEY, 1980, p.19).

A fim de nos aproximarmos do contexto cultural tailandês, pretendemos avaliar

ainda o que Dewey (1980) entende por “conjuntos de crenças e antecipações”, fatores que

buscam se sobrepor à experiência primária, hábitos arraigados que se transmitem sob o peso

da autoridade e da tradição. Thamy Pogrebinschi (2005, p.50) comenta que a crença guia os

desejos e dá forma às ações e “não é, portanto, um modo transitório da consciência, ela é

um hábito essencialmente duradouro”. O pragmatismo não julga, tampouco defende a

inexistência das crenças, o que seria antirrealista de sua parte, convém sobretudo considerá-

las no seio da experiência, nas relações fecundas que entretemos a partir do que as crenças

nos orientam. Devemos reiterar, a este respeito, que o budismo não é uma crença

messiânica, os ensinos de Buda não têm a pretensão de se fixarem à figura do Sidarta

Gautama histórico que atingiu o estado de iluminação, pelo contrário, as lições se espraiam,

se atualizam em novas compreensões. Buda é como se denomina todo praticante

interessado em sua própria liberação das armadilhas egóicas, aquele que deseja

conscientemente se desvencilhar do ciclo de samsara. Por isso a crença nas chamadas

nobres verdades que Buda legou conduz, em seu limite, à própria desaparição destas,

quando o praticante descobre a natureza ilimitada da mente e a transitoriedade de todas as

coisas experienciadas no mundo, bem como se apazigua em sua própria finitude. Não se

trata portanto de outro fundacionalismo metafísico, verdades eternas e imutáveis, contra as

quais Dewey teria objeções; mas práticas imanentes.

Outra noção central do pensamento budista é a de impermanência, que Sogyal

Rinpoche (2005, p. 34) aborda ao tratar do “problema” (para o ocidental) da morte, por isso

resgata um ensaio de Michel de Montaigne, que brinca com a morte: “Não sabemos onde a

morte nos espera: então vamos por ela esperar em toda parte. Praticar a morte é praticar a

liberdade. Um homem que aprendeu como morrer desaprendeu a ser escravo”. Na segunda

parte do texto abordaremos o que são os bardos da vida e da morte, no entendimento de

Sogyal Rinpoche. Padma Santem (2001) trata da impermanência sob o ângulo da fixidez

das crenças, ou seja, quando recusamos reconhecê-la e estabelecemos pontos referenciais

muito sólidos na condução de nossas vidas, apostamos em uma segurança que é ilusória. Ao

cabo de um tempo determinado tomamos consciência de que as coisas se desfazem,

inescapavelmente. Da mesma maneira ocorre com as emoções, tão logo elas se preciptam,

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perturbando ou aprazendo nossos corpos, tão logo elas tendem a se dissipar para que outras

emoções venham tomar lugar - assim também se movem as nuvens no céu, transitórias, já o

firmamento segue resplandecendo as estrelas, cuja impermanência, em função de nosso

ponto de vista por demais limitado e fugaz, não somos capazes de perceber (Sogyal

Rinpoche, 2005). Revelação da natureza ilimitada do cosmos! O pensamento de Dewey

(1980, p.21) recusa toda solidez e segurança, entende que a “realidade” tenha um caráter

arbitrário, necessariamente incerto: “o variável, o mutável, é um desafio constante. Onde as

coisas mudam, algo pende sobre nós”.

Em Cemitério do Esplendor (2015) observamos que a questão da impermanência é

mobilizada como uma importante linha de força - inclusive por apresentar forças um tanto

indiferentes à tensão mesma que as põe em movimento - que tanto caracteriza o tempo

diegético quanto corrobora para a invenção de uma ambiência particular. Vemos acima

como a impermanência chega a imbuir uma operação fílmica que concerne à transição

[Figura 5] entre planos [Figuras 3 e 4]. Neste caso o recurso de sobreposição de imagens

opera paulatinamente numa sequência que dura cerca de dois minutos. Trata-se da transição

entre um segmento em que o soldado Itt e sua cuidadora Jenjira se encontravam no cinema

de um shopping [Figura 3], até o ponto em que ele cai no sono e precisa ser carregado de

volta pelos seguranças, e o ambiente do hospital [Figura 4] onde Itt já se encontra

novamente em repouso. Enquanto o fundo opaco das imagens desvanece, resta em cena o

encontro luminoso entre o LED da escada rolante do shopping e os tubos-fluidos de alta

Figura 3

Figura 5

Figura 4

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tecnologia que tratam os pacientes do hospital. Mais para o começo do filme, essa

tecnologia curiosa é apresentada ao modo de uma anedota: os tubos garantiriam aos

soldados do hospital, que padecem por conta de pesadelos e de uma misteriosa doença do

sono, a promessa de bons sonhos. Por fim: a eficácia dos aparelhos seria comprovada pelo

seu uso bem-sucedido pelas tropas norte-americanas no Afeganistão!

Ainda sobre esta transição entre planos [Figura 5] convém acrescentar a máxima

frequentemente retomada pelo teórico Júlio Bressane do cineasta francês Abel Gance: “O

cinema é a música da luz”. Para Bressane (1996), durante 100 anos o cinema se constituiu

como uma história da transparência (projeção de fotogramas vazados, atravessados pela luz,

a sombra é que organizava a imagem), enquanto a opacidade seria uma característica do

digital (força instantânea, capacidade plástica, elasticidade). São dois tempos distintos de

trabalho quanto à captação das imagens e sua manipulação posterior. Apichatpong

Weeresethakul opta por gravar as imagens no suporte da película e por editá-las com o

recurso dos softwares de última geração. Sem dúvida um traço da arte contemporânea:

posicionar-se exatamente na intersecção entre o antigo e o novo, ou seja, clareza do

presente. Impermanência no cinema [Figuras 6 e 7] e impermanência do cinema.

Realismo Performativo

Seria possível abarcar de Cemitério do Esplendor, para este texto, apenas algum

aspecto específico bastante restrito diante da multiplicidade de questões que nele estão

latentes em seu cerne, tais como a tensão que se modula entre o visível e invisível e a

figuração do corpo mediúnico, o que nos demandaria uma investigação mais demorada. Por

esse motivo decidimos modestamente rastrear em que medida a impermanênia enquanto

dado imanente à experiência cultural tailandesa se desdobra em operações fílmicas de

transição, seja entre planos ou entre dimensões sensíveis, para tanto nos irá ajudar a noção

de realismo performativo, cunhada por May Adadol Ingawanij (2015).

Figura 6 Figura 7

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Cemitério do Esplendor parece tornar imagem aquilo que Dewey (1980, p.4) previa

para caracterizar a experiência: “não é alguma camada infinitamente fina ou um primeiro

plano da natureza, mas penetra dentro dela, atingindo suas profundezas” - descoberta de

camadas sensíveis, um passeio através delas - “de maneira tal que seu apoderar-se é capaz

de expansão; constrói túneis em todas as direções, e ao fazê-lo traz à superfície coisas

anteriormente ocultas” (DEWEY, 1980, p.4). Força imponderável, instantânea, das imagens

nas transições entre planos [Figuras 6 e 7], por mais efêmeras que sejam, são passagens que

deslocam a primazia do olhar sobre os outros sentidos, ao tornar visível toda uma amplidão

de mundos sensíveis. Sinestesia e mais, excedência das possibilidades delimitadas que

concerniam aos sentidos, aquilo que Bressane (1996, p. 77) aprecia na obra do Padre

Antonio Vieira, quando ele prosa: “Onde o dizer é fazer o ouvir é ver. Suponhamos que

diante de uma visão estupenda, saiam os sentidos fora de sua esfera e inaugurem o ver com

os ouvidos e o ouvir com os olhos”. Nesta sequência que dura pouco mais de um minuto

[Figura 6] vemos o céu, em sua impermanência, refletido na água calma – não

imaginávamos se tratar de um reflexo até que irrompe na imagem um protozoário

transparente [Figura 7], num único impulso. Todo cambia. Visita estrangeira que “mergulha

o céu na água”. Cai o firmamento! Ao contrário da sequência anterior que analisamos

[Figura 5], aqui a transição não é sequer anunciada por um dégradé, tudo acontece no

mesmo plano. Cantasse Mercedes Sosa: “Cambia lo superficial, cambia también lo

profundo, cambia el modo de pensar, cambia todo en este mundo”.

Gostaríamos de abordar apenas mais uma modulação da impermanência em

Cemitério do Esplendor, em aproximação com o conceito de realismo performativo,

adotado por May Adadol Ingawanij (2015), pesquisadora tailandesa, para tratar de dois

filmes anteriores de Apichatpong Weerasethakul, Mal dos trópicos (2004) e Tio Bonmee,

que pode recordar suas vidas passadas (2010). Convém, entretanto, esclarecer algo mais

sobre o fime, seu contexto e narrativa. Rodado na cidade natal do cineasta, Khon Kaen, no

Figura 8 Figura 9

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nordeste da Tailândia, é mais uma parceria com a atriz que atravessa tantos de seus filmes,

Jenjira Pongpas [Figura 8]. Ela se torna voluntária para tratar de soldados que sofrem de

uma doença do sono, num hospital onde outrora funcionava uma escola, em que estudou

quando mais jovem. Ocorre do lado de fora do hospital uma obra, com a presença de uma

retroescavadeira, aparentemente conduzida pelas tropas do exército, sequência que abre o

filme e o pontua em vários momentos, até o final, como pano de fundo [Figura 9]. Portanto

se aborda explicitamente a transformação, no tempo, dos lugares e de seus usos – já outra

nuance da impermanência. Jenjira se afeiçoa rapidamente por Itt, o soldado de quem cuida

como voluntária, ele também aprecia sua companhia, entretanto interagem muito pouco,

visto que ele está quase sempre dormindo. Surge então a figura de Keng, uma médium

capaz de penetrar no sonho dos soldados e traduzi-los aos seus familiares, corpo que se

oferece como mediador de relações, que de outro modo seriam inviáveis [Figuras 12 e 13].

Ela também irá mediar a relação entre Itt e Jenjira.

May Adadol Ingawanij (2015) destaca uma característica dos rituais budistas e

animistas da Tailândia: os familiares costumam fazer oferendas aos seus mortos, pedindo

que não passem por maiores sofrimentos no espaço-tempo indeterminado em que esperam

por suas futuras reencarnações. Sogyal Rinpoche (2005, p.143) trata da questão da morte a

partir dos bardos, palavra tibetana que designa simplesmente “transição” ou “o intervalo

entre o encerramento de uma situação e outra”. Seriam quatro os estados intermediários que

encaramos em nossas existências cíclicas: o bardo “natural” da vida; o bardo “doloroso” da

morte; o bardo “luminoso” do dharmata; o bardo “cármico” do vir-a-ser. O primeiro diz

respeito a uma compreensão, difundida entre os mestres budistas, de que o período de uma

vida, desde o nascimento até a morte, consiste apenas em uma transição. O segundo bardo

corresponderia aos instantes que começam com o processo do morrer e culminam com a

(re)descoberta da natureza ilimitada da mente. O terceiro abrange a experiência do pós-

morte e o que se chama de “grande de luminosidade”. Por fim, o bardo cármico seria este

ao qual Ingawanij (2015) se refere, o estado intermediário que dura até o momento do

renascimento. Na compreensão de Sogyal Rinpoche (2005) os bardos seriam todos eles

diferentes realidades da mente, oportunidades de aprendizado, que poderiam ser

descobertos em suas inter-relações, também através da prática da meditação. O terceiro

bardo, do dharmata, poderia ser experienciado em vida, se tomássemos consciência, pela

prática, do momento limítrofe transitório entre estar acordado e o instante que precede o

início dos sonhos:

Sonhar tem afinidade com o bardo do vir-a-ser, o estado intermediárioonde você tem um “corpo mental” clarividente e de grande mobilidadeque passa por todos os tipos de experiência. Também quando sonhamos

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temos um tipo semelhante de corpo, o corpo onírico, em que vivemostodas as experiências da vida onírica (RINPOCHE, 2005).

César Guimarães e Bruno Leal (2008, p.6) recordam que Dewey, no livro Arte como

experiência, distingue as expressões “ter experiência” e “ter uma experiência”. A primeira

denotaria indiferença, teria por características ser “rotineira, mera repetição, submissa a

convenções práticas e prodecimentos intelectuais e, consequentemente, dispersa,

fragmentada” (GUIMARÃES, LEAL, 2008, p.6). Já “ter uma experiência” seria da ordem

da intensidade. Em Cemitério do Esplendor, Jenjira tem uma experiência ímpar. Depois de

fazer oferendas às deidades locais no santuário budista [Figura 10], ela se vê surpreendida,

numa tarde qualquer, enquanto come frutas do lado de fora do hospital, por uma

manifestação das deusas, que aparecem em traje comum, como humanas [Figura 11], para

agradecer pelo que ela havia ofertado, mas também para partilhar uma história antiga sobre

a região. Elas contam que ali onde funciona o hospital havia um palácio, há milhares de

anos atrás, onde eclodiu uma guerra entre dois reinos. Os soldados do hospital não

poderiam jamais se curar da doença do sono, pois os espíritos dos reis seguiam drenando a

energia dos soldados vivos para manter em curso suas batalhas, que se desenrolavam ainda

em outra dimensão. Jenjira bem se lembra que, na época em que estudava na escola,

costumava sentir muito sono.

Quando May Adadol Ingawanij (2015) propõe como chave de leitura para a obra de

Apichatpong Weeresethakul a noção de realismo performativo, ela pretende dar conta desta

ordem de acontecimentos frequentes em seus filmes que desafiam a explicação racionalista.

Como poderiam os humanos conviver com os deuses e com os fantasmas, comunicar-se

com animais, colocar seus corpos mediúnicos à disposição dos espectros, ter consciência de

suas vidas passadas e reencarnações, metamorfosear-se em outros seres? Tudo isso se passa

nos filmes, entretanto, somente porque são crenças constituintes do povo tailandês,

animismo herdado do povo khmer que habitava a Indochina, e ainda hoje práticas

cotidianas de muitos. Nesse sentido a noção de realismo no cinema, em seu sentido

Figura 10 Figura 11

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tradicional, estaria comprometida quando estes fatos nos são apresentados sem alarde,

evidenciando a permeabilidade dos mundos humanos e não-humanos. Cinema que

combina, nas palavras de Ingawanij (2015), “intensidade sensorial” e “reflexividade

temporal”. Cai por terra o privilégio da visão e da perspectiva monocular, entra em jogo a

percepção espectral, através do som e da tatilidade, como modos de experienciar o mundo

em seu âmago diverso. “Concepção do eu como algo permeável à multiplicidade das

formas de vida” (INGAWANIJ, 2015). Se para Dewey o indivíduo não é o dado primeiro,

mas sim a relação, seria o caso de reconhecermos em Cemitério do esplendor essa

“desindividuação” fundamental que se apresenta sob a forma da experiência mediúnica

[Figuras 12 e 13]. Assim, este texto lança uma primeira abordagem, que põe e relação o

budismo e o pragmatismo, e especula por outras chaves de leitura para uma pesquisa em

andamento sobre o filme Cemitério do Esplendor.

REFERÊNCIAS

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Figura 12 Figura 13