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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da ComunicaçãoXXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016
Cemitério do Esplendor: Notas Sobre a Impermanência1
Luciano Viegas da SILVEIRA²Universidade Federal da Minas Gerais, Minas Gerais, MG
Resumo
Este texto investiga a noção de experiência, conforme proposta pelo pragmatista JohnDewey (1859 – 1952), em correlação ao que a filosofia budista entende por impermanência.Em um segundo momento observamos em que medida a questão da impermanênciacontamina as operações fílmicas em Cemitério do Esplendor, do tailandês ApichatpongWeerasethakul, ao sustentar transições sensoriais, aproximando-se do que May AdadolIngawanij (2015) denomina realismo performativo.
Palavras-chave: Cinema; pragmatismo; budismo; Apichatpong Weerasethakul;comunicação.
Notas sobre a impermanência
Em Experiência e Natureza, livro editado em 1925, o filósofo pragmatista John
Dewey procura se afastar do dualismo racionalista bastante em voga no meio científico de
sua época que opunha, de um lado o homem, de outro a natureza. Sua abordagem não deixa
de ressoar contemporânea, enquanto as ciências duras avançam no sentido de um
produtivismo cego, teleológico e tecnológico, em consonância com o imperativo bélico-
econômico, futurista e distópico quanto aos seus porvires (a cidade falida de Detroit, a
região devastada de Fukushima, o Rio Doce e Xingu do Consórcio Belo Monte são
protótipos). Tempos sombrios da macropolítica, orientada para a devastação da natureza
tanto quanto dos homens, com agravo especialmente para os sem-parte na esfera pública,
conforme diz Jacques Rancière, o que reforça o pensamento deweyano de que persiste uma
rachadura, não-reconciliada, entre homem e natureza, seja no âmbito científico ou social.
Dewey (1980) propunha de fato um método empírico em filosofia, que considerava
o conhecimento como resultante de investigações práticas, não dependente de inferências
transcendentais da razão ou de conceitos dados previamente (antifundacionalismo), daí sua
proeminência como pensador da escola pragmatista. Sob esta visada o conhecimento
poderia advir tão somente de uma participação vital no mundo, o que Dewey procurou
elucidar em diversas obras através do conceito de “experiência”.
1 Trabalho apresentado no GP Teorias do Jornalismo do XVI Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, eventocomponente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.
² Mestrando do PPG em Comunicação da UFMG, e-mail: [email protected].
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Seguindo a leitura de Thamy Pogrebinschi (2005), Dewey se distingue, no
pensamento pragmatista, em relação a outros autores exponenciais como Charles S. Peirce e
William James, justamente pela ênfase que atribui à noção de contextualismo. Se para o
primeiro o pragmatismo consistia em uma teoria dos signos, para o segundo se tratava de
uma teoria da verdade, assumida como um processo ininterrupto que jamais repousaria em
qualquer espécie de significação final, compreensão que Dewey conserva. Para o
pragmatismo, nisso os três autores coincidem, nenhum conceito pode ser tratado como
ponto de partida, tampouco como ponto de chegada, tudo se daria no nível relacional, do
processo enquanto tal, portanto da experiência. Dewey (1980, p.9) reconhece tomar
emprestada de James a expressão experiência em seu sentido duplo, que denota tanto aquilo
que os homens fazem, quanto ao que padecem, ação ativa e afetação passiva,
simultaneamente, pois “não admite divisão entre ato e matéria, sujeito e objeto”. Os
pragmatistas sintonizam com a compreensão de seus contemporâneos em outras disciplinas,
tais como a teoria da relatividade einsteiniana, que rompe com a objetividade da mecânica
clássica, e a teoria darwinista, quanto à sua suposição de que seres vivos se modificariam
pela interação com o ambiente, recusa portanto de considerar a vida em formas fixas e
absolutas.
Essa concepção de um empirismo naturalista em Dewey (1980, p.5) considera a
experiência entre coisas interagindo como dado primário, “que avança para dentro da
natureza; tem profundidade”. Fluxo contínuo do qual o sujeito humano participa pois não
poderia se dissociar do ambiente que o circunda. Por essa via pensamos uma aproximação
entre o enfoque pragmatista no contexto e a noção budista de samsara, que iremos expor
segundo as apresentações de Padma Samten (2001), brasileiro ordenado lama (transmissor
de ensinamentos) na linhagem Ningma, a mais antiga do budismo tibetano, e de Sogyan
Rinpoche (2005), discípulo de Jamyang Khyentse Chökyi Lodrö, um dos mais respeitados
mestre espirituais do Tibete no século XX. Ressaltamos que a apreensão dos conceitos
centrais para o budismo a serem aqui expostos pelos intercessores do pensamento tibetano
não compromete nossa posterior abordagem do filme Cemitério do Esplendor, de
Apichatpong Weeresathakul - embora na Tailândia vigore outra tradição, a Theravada,
partilhada por cerca de 95% da população - pois abordaremos noções que são comuns entre
as linhagens.
Devemos destacar de início que a compreensão do que seja o indivíduo, segundo o
budismo, não o encerra na experiência única de uma vida - como faria a psicologia
behaviourista, em busca de explicações mentais, que Dewey (1980) desmonta –, pelo
contrário, orienta seus praticantes a tomar conhecimento das existências cíclicas. Este
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aspecto percorre o cinema de Apichatpong Weerasethakul. Samsara diz respeito aos ciclos
de sofrimento (duka) aos quais permanecemos presos quando nos deixamos levar pelas
chamadas seis emoções perturbadoras, que são de acordo com Padma Samten (2001, p.25):
“orgulho, inveja, desapego/apego, obtusidade mental, carência e raiva/medo”. Estamos
sujeitos igualmente a impulsos internos causadores destes sofrimentos, manifestações não-
conscientes, que nos incitam a reproduzir ações prejudiciais, no presente, aos outros e por
consequência a nós mesmos (inseparatividade), bem como por padrões mal resolvidos em
existências anteriores, o que se denomina karma. Quando operamos dentro dos padrões
kármicos de sofrimento, sem a atenção voltada para o aqui-agora da experiência cotidiana,
tendemos a repeti-los indefinidamente (isto é samsara), guiados por um senso de dualidade
(sujeito/objeto) que não nos permite reconhecer a inseparatividade fundamental entre as
coisas, suas afetações recíprocas. Padma Samten (2001, p.61) elucida esta ideia da
inseparatividade por uma metáfora da visão: “Tudo aquilo que focamos é inseparável de
nossos olhos”.
Se por um lado Dewey constata que a concepção de um mundo mental, o da
investigação psicológica, seja a própria origem do que chamamos subjetividade, em que o
mental é reificado ao ser tomado como o todo da experiência, a filosofia budista por sua vez
afirma a existência de um mundo mental, porém tendo em vista sua necessária dissolução.
Isto porque o reconhecimento da existência mental não viria a reforçar o sujeito e suas
convicções, pelo contrário, através de um trabalho interno de autobservação é que o sujeito
teria a chance de despojar-se das armadilhas egóicas que o retém na roda de samsara. O
autoconhecimento torna-se ferramenta de ação, investigação de si mesmo e para além,
participação vital no mundo, que conduz ao desapego do “em si mesmo”, de uma
individualidade que era alçada como a totalidade da experiência e seu limite. Toda prática
meditativa teria como propósito o reconhecimento da equanimidade entre os pontos de vista
interno e externo, o que Sogyal Rinpoche (2005, p.75) expõe pela metáfora bastante
conhecida da jarra vazia: “O espaço de dentro é exatamente o mesmo que o espaço de fora;
apenas as frágeis paredes da jarra separam um do outro”. Trata-se de reconhecer que o
unviverso mental do indivíduo é extramente limitado se comparado ao que o budismo
entende como a verdadeira natureza da mente, ilimitada e ao alcance de todos pela
meditação e por outras práticas. Como um modo de introduzirmos a discussão em torno do
filme Cemitério do Esplendor, de Apichatpong Weerasethakul, destacamos uma sequência
em que ocorre uma prática de meditação conduzida – a descrição do contexto tailandês e da
narrativa terão lugar mais à frente. Seria importante dizer, por enquanto, apenas que o filme
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se passa em um hospital e que a meditação é proposta enquanto técnica de cura capaz de
aumentar a energia vital dos pacientes [Figuras 1 e 2].
Embora a condução da prática seja entrecortada, na imagem, pela anotações que a
personagem Jenjira lê em seu próprio diário, que contradizem ou colocam em dúvida a fala
do instrutor, ou então atestam suas lamentações e falta de disciplina para realizações
conscientes, ainda assim podemos apreender alguns trechos do que ele se propõe a
transmitir, que transcrevo abaixo:
Nosso problema é que pensamos muito. Todos os dias, todas as noites. Ànoite chamamos isso de sonhar. Todos sonhamos. Nós não podemos pararos sonhos, não mais do que os pensamentos. Como não podemos pará-los,devemos ser mais conscientes deles. Estarmos conscientes de nossopensamentos e de nossos sonhos (…) Céu e inferno, virtude e pecado, nãosão nada mais do que suposições. Nós não devemos ficar muito apegadosa isso. Ao meditar exercemos a nossa mente. Luzes e visões são causadaspelas reações químicas no cérebro. Quando dormimos a mente permanececonsciente. Cada pessoa que exerce sua mente pode atingir a consciência.
Nós vamos fazer um exercício simples. Não pensem de mais. Sentem-sedireito. Lentamente, fechem os olhos. Concentrem-se no topo de seucorpo e em seu cérebro. Reduzam os seus pensamentos para a base de seucorpo, sob seus pés. Agora movam as faces, com que se parece? Olhempara si mesmos. Suas sobrancelhas, seus olhos. Tentem imaginá-los.Como suas orelhas se parecem? Foquem a sua boca e agora o seu queixo.Lentamente movam sua atenção para a base do seu nariz. Deixem aenergia se espalhar, mais e mais, para fora de seu corpo, até que encha oquarto. Movam esta bola de energia para o campo, lá fora. Uma vez queestá fora, deixem-na se expandir. Deixem-na flutuar até o céu, até que elaatinja a lua. Da lua, deixem-na se espalhar ainda mais, até as estrelas,espalhando-se sobre todas as estrelas. Agora, tragam de volta essa energia,devolvam-na lentamente para si mesmos (trecho do filme Cemitério doEsplendor)
Observamos uma convergência entre o que o ensino da meditação revela sobre a
natureza da mente, tanto no filme quanto na percepção dos mestres tibetanos, e a crítica que
Dewey (1980, p.19) instaura contra o modelo reinante da cognição estritamente mental e
subjetiva: “a noção da onipresença de toda experiência cognitiva compreensiva resulta, por
Figura 1 Figura 2
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lógica necessária, na construção de um sólido muro entre o sujeito experienciante e a
natureza que é experienciada”. Advogam a limitação do sujeito enquanto tal. Para a
filosofia pragmatista o indivíduo torna-se diminuto diante daquilo que experimenta, “o eu
se torna não apenas um peregrino como ainda um estranho, não naturalizado nem
naturalizável, no mundo” (DEWEY, 1980, p.19).
A fim de nos aproximarmos do contexto cultural tailandês, pretendemos avaliar
ainda o que Dewey (1980) entende por “conjuntos de crenças e antecipações”, fatores que
buscam se sobrepor à experiência primária, hábitos arraigados que se transmitem sob o peso
da autoridade e da tradição. Thamy Pogrebinschi (2005, p.50) comenta que a crença guia os
desejos e dá forma às ações e “não é, portanto, um modo transitório da consciência, ela é
um hábito essencialmente duradouro”. O pragmatismo não julga, tampouco defende a
inexistência das crenças, o que seria antirrealista de sua parte, convém sobretudo considerá-
las no seio da experiência, nas relações fecundas que entretemos a partir do que as crenças
nos orientam. Devemos reiterar, a este respeito, que o budismo não é uma crença
messiânica, os ensinos de Buda não têm a pretensão de se fixarem à figura do Sidarta
Gautama histórico que atingiu o estado de iluminação, pelo contrário, as lições se espraiam,
se atualizam em novas compreensões. Buda é como se denomina todo praticante
interessado em sua própria liberação das armadilhas egóicas, aquele que deseja
conscientemente se desvencilhar do ciclo de samsara. Por isso a crença nas chamadas
nobres verdades que Buda legou conduz, em seu limite, à própria desaparição destas,
quando o praticante descobre a natureza ilimitada da mente e a transitoriedade de todas as
coisas experienciadas no mundo, bem como se apazigua em sua própria finitude. Não se
trata portanto de outro fundacionalismo metafísico, verdades eternas e imutáveis, contra as
quais Dewey teria objeções; mas práticas imanentes.
Outra noção central do pensamento budista é a de impermanência, que Sogyal
Rinpoche (2005, p. 34) aborda ao tratar do “problema” (para o ocidental) da morte, por isso
resgata um ensaio de Michel de Montaigne, que brinca com a morte: “Não sabemos onde a
morte nos espera: então vamos por ela esperar em toda parte. Praticar a morte é praticar a
liberdade. Um homem que aprendeu como morrer desaprendeu a ser escravo”. Na segunda
parte do texto abordaremos o que são os bardos da vida e da morte, no entendimento de
Sogyal Rinpoche. Padma Santem (2001) trata da impermanência sob o ângulo da fixidez
das crenças, ou seja, quando recusamos reconhecê-la e estabelecemos pontos referenciais
muito sólidos na condução de nossas vidas, apostamos em uma segurança que é ilusória. Ao
cabo de um tempo determinado tomamos consciência de que as coisas se desfazem,
inescapavelmente. Da mesma maneira ocorre com as emoções, tão logo elas se preciptam,
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perturbando ou aprazendo nossos corpos, tão logo elas tendem a se dissipar para que outras
emoções venham tomar lugar - assim também se movem as nuvens no céu, transitórias, já o
firmamento segue resplandecendo as estrelas, cuja impermanência, em função de nosso
ponto de vista por demais limitado e fugaz, não somos capazes de perceber (Sogyal
Rinpoche, 2005). Revelação da natureza ilimitada do cosmos! O pensamento de Dewey
(1980, p.21) recusa toda solidez e segurança, entende que a “realidade” tenha um caráter
arbitrário, necessariamente incerto: “o variável, o mutável, é um desafio constante. Onde as
coisas mudam, algo pende sobre nós”.
Em Cemitério do Esplendor (2015) observamos que a questão da impermanência é
mobilizada como uma importante linha de força - inclusive por apresentar forças um tanto
indiferentes à tensão mesma que as põe em movimento - que tanto caracteriza o tempo
diegético quanto corrobora para a invenção de uma ambiência particular. Vemos acima
como a impermanência chega a imbuir uma operação fílmica que concerne à transição
[Figura 5] entre planos [Figuras 3 e 4]. Neste caso o recurso de sobreposição de imagens
opera paulatinamente numa sequência que dura cerca de dois minutos. Trata-se da transição
entre um segmento em que o soldado Itt e sua cuidadora Jenjira se encontravam no cinema
de um shopping [Figura 3], até o ponto em que ele cai no sono e precisa ser carregado de
volta pelos seguranças, e o ambiente do hospital [Figura 4] onde Itt já se encontra
novamente em repouso. Enquanto o fundo opaco das imagens desvanece, resta em cena o
encontro luminoso entre o LED da escada rolante do shopping e os tubos-fluidos de alta
Figura 3
Figura 5
Figura 4
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tecnologia que tratam os pacientes do hospital. Mais para o começo do filme, essa
tecnologia curiosa é apresentada ao modo de uma anedota: os tubos garantiriam aos
soldados do hospital, que padecem por conta de pesadelos e de uma misteriosa doença do
sono, a promessa de bons sonhos. Por fim: a eficácia dos aparelhos seria comprovada pelo
seu uso bem-sucedido pelas tropas norte-americanas no Afeganistão!
Ainda sobre esta transição entre planos [Figura 5] convém acrescentar a máxima
frequentemente retomada pelo teórico Júlio Bressane do cineasta francês Abel Gance: “O
cinema é a música da luz”. Para Bressane (1996), durante 100 anos o cinema se constituiu
como uma história da transparência (projeção de fotogramas vazados, atravessados pela luz,
a sombra é que organizava a imagem), enquanto a opacidade seria uma característica do
digital (força instantânea, capacidade plástica, elasticidade). São dois tempos distintos de
trabalho quanto à captação das imagens e sua manipulação posterior. Apichatpong
Weeresethakul opta por gravar as imagens no suporte da película e por editá-las com o
recurso dos softwares de última geração. Sem dúvida um traço da arte contemporânea:
posicionar-se exatamente na intersecção entre o antigo e o novo, ou seja, clareza do
presente. Impermanência no cinema [Figuras 6 e 7] e impermanência do cinema.
Realismo Performativo
Seria possível abarcar de Cemitério do Esplendor, para este texto, apenas algum
aspecto específico bastante restrito diante da multiplicidade de questões que nele estão
latentes em seu cerne, tais como a tensão que se modula entre o visível e invisível e a
figuração do corpo mediúnico, o que nos demandaria uma investigação mais demorada. Por
esse motivo decidimos modestamente rastrear em que medida a impermanênia enquanto
dado imanente à experiência cultural tailandesa se desdobra em operações fílmicas de
transição, seja entre planos ou entre dimensões sensíveis, para tanto nos irá ajudar a noção
de realismo performativo, cunhada por May Adadol Ingawanij (2015).
Figura 6 Figura 7
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Cemitério do Esplendor parece tornar imagem aquilo que Dewey (1980, p.4) previa
para caracterizar a experiência: “não é alguma camada infinitamente fina ou um primeiro
plano da natureza, mas penetra dentro dela, atingindo suas profundezas” - descoberta de
camadas sensíveis, um passeio através delas - “de maneira tal que seu apoderar-se é capaz
de expansão; constrói túneis em todas as direções, e ao fazê-lo traz à superfície coisas
anteriormente ocultas” (DEWEY, 1980, p.4). Força imponderável, instantânea, das imagens
nas transições entre planos [Figuras 6 e 7], por mais efêmeras que sejam, são passagens que
deslocam a primazia do olhar sobre os outros sentidos, ao tornar visível toda uma amplidão
de mundos sensíveis. Sinestesia e mais, excedência das possibilidades delimitadas que
concerniam aos sentidos, aquilo que Bressane (1996, p. 77) aprecia na obra do Padre
Antonio Vieira, quando ele prosa: “Onde o dizer é fazer o ouvir é ver. Suponhamos que
diante de uma visão estupenda, saiam os sentidos fora de sua esfera e inaugurem o ver com
os ouvidos e o ouvir com os olhos”. Nesta sequência que dura pouco mais de um minuto
[Figura 6] vemos o céu, em sua impermanência, refletido na água calma – não
imaginávamos se tratar de um reflexo até que irrompe na imagem um protozoário
transparente [Figura 7], num único impulso. Todo cambia. Visita estrangeira que “mergulha
o céu na água”. Cai o firmamento! Ao contrário da sequência anterior que analisamos
[Figura 5], aqui a transição não é sequer anunciada por um dégradé, tudo acontece no
mesmo plano. Cantasse Mercedes Sosa: “Cambia lo superficial, cambia también lo
profundo, cambia el modo de pensar, cambia todo en este mundo”.
Gostaríamos de abordar apenas mais uma modulação da impermanência em
Cemitério do Esplendor, em aproximação com o conceito de realismo performativo,
adotado por May Adadol Ingawanij (2015), pesquisadora tailandesa, para tratar de dois
filmes anteriores de Apichatpong Weerasethakul, Mal dos trópicos (2004) e Tio Bonmee,
que pode recordar suas vidas passadas (2010). Convém, entretanto, esclarecer algo mais
sobre o fime, seu contexto e narrativa. Rodado na cidade natal do cineasta, Khon Kaen, no
Figura 8 Figura 9
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nordeste da Tailândia, é mais uma parceria com a atriz que atravessa tantos de seus filmes,
Jenjira Pongpas [Figura 8]. Ela se torna voluntária para tratar de soldados que sofrem de
uma doença do sono, num hospital onde outrora funcionava uma escola, em que estudou
quando mais jovem. Ocorre do lado de fora do hospital uma obra, com a presença de uma
retroescavadeira, aparentemente conduzida pelas tropas do exército, sequência que abre o
filme e o pontua em vários momentos, até o final, como pano de fundo [Figura 9]. Portanto
se aborda explicitamente a transformação, no tempo, dos lugares e de seus usos – já outra
nuance da impermanência. Jenjira se afeiçoa rapidamente por Itt, o soldado de quem cuida
como voluntária, ele também aprecia sua companhia, entretanto interagem muito pouco,
visto que ele está quase sempre dormindo. Surge então a figura de Keng, uma médium
capaz de penetrar no sonho dos soldados e traduzi-los aos seus familiares, corpo que se
oferece como mediador de relações, que de outro modo seriam inviáveis [Figuras 12 e 13].
Ela também irá mediar a relação entre Itt e Jenjira.
May Adadol Ingawanij (2015) destaca uma característica dos rituais budistas e
animistas da Tailândia: os familiares costumam fazer oferendas aos seus mortos, pedindo
que não passem por maiores sofrimentos no espaço-tempo indeterminado em que esperam
por suas futuras reencarnações. Sogyal Rinpoche (2005, p.143) trata da questão da morte a
partir dos bardos, palavra tibetana que designa simplesmente “transição” ou “o intervalo
entre o encerramento de uma situação e outra”. Seriam quatro os estados intermediários que
encaramos em nossas existências cíclicas: o bardo “natural” da vida; o bardo “doloroso” da
morte; o bardo “luminoso” do dharmata; o bardo “cármico” do vir-a-ser. O primeiro diz
respeito a uma compreensão, difundida entre os mestres budistas, de que o período de uma
vida, desde o nascimento até a morte, consiste apenas em uma transição. O segundo bardo
corresponderia aos instantes que começam com o processo do morrer e culminam com a
(re)descoberta da natureza ilimitada da mente. O terceiro abrange a experiência do pós-
morte e o que se chama de “grande de luminosidade”. Por fim, o bardo cármico seria este
ao qual Ingawanij (2015) se refere, o estado intermediário que dura até o momento do
renascimento. Na compreensão de Sogyal Rinpoche (2005) os bardos seriam todos eles
diferentes realidades da mente, oportunidades de aprendizado, que poderiam ser
descobertos em suas inter-relações, também através da prática da meditação. O terceiro
bardo, do dharmata, poderia ser experienciado em vida, se tomássemos consciência, pela
prática, do momento limítrofe transitório entre estar acordado e o instante que precede o
início dos sonhos:
Sonhar tem afinidade com o bardo do vir-a-ser, o estado intermediárioonde você tem um “corpo mental” clarividente e de grande mobilidadeque passa por todos os tipos de experiência. Também quando sonhamos
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temos um tipo semelhante de corpo, o corpo onírico, em que vivemostodas as experiências da vida onírica (RINPOCHE, 2005).
César Guimarães e Bruno Leal (2008, p.6) recordam que Dewey, no livro Arte como
experiência, distingue as expressões “ter experiência” e “ter uma experiência”. A primeira
denotaria indiferença, teria por características ser “rotineira, mera repetição, submissa a
convenções práticas e prodecimentos intelectuais e, consequentemente, dispersa,
fragmentada” (GUIMARÃES, LEAL, 2008, p.6). Já “ter uma experiência” seria da ordem
da intensidade. Em Cemitério do Esplendor, Jenjira tem uma experiência ímpar. Depois de
fazer oferendas às deidades locais no santuário budista [Figura 10], ela se vê surpreendida,
numa tarde qualquer, enquanto come frutas do lado de fora do hospital, por uma
manifestação das deusas, que aparecem em traje comum, como humanas [Figura 11], para
agradecer pelo que ela havia ofertado, mas também para partilhar uma história antiga sobre
a região. Elas contam que ali onde funciona o hospital havia um palácio, há milhares de
anos atrás, onde eclodiu uma guerra entre dois reinos. Os soldados do hospital não
poderiam jamais se curar da doença do sono, pois os espíritos dos reis seguiam drenando a
energia dos soldados vivos para manter em curso suas batalhas, que se desenrolavam ainda
em outra dimensão. Jenjira bem se lembra que, na época em que estudava na escola,
costumava sentir muito sono.
Quando May Adadol Ingawanij (2015) propõe como chave de leitura para a obra de
Apichatpong Weeresethakul a noção de realismo performativo, ela pretende dar conta desta
ordem de acontecimentos frequentes em seus filmes que desafiam a explicação racionalista.
Como poderiam os humanos conviver com os deuses e com os fantasmas, comunicar-se
com animais, colocar seus corpos mediúnicos à disposição dos espectros, ter consciência de
suas vidas passadas e reencarnações, metamorfosear-se em outros seres? Tudo isso se passa
nos filmes, entretanto, somente porque são crenças constituintes do povo tailandês,
animismo herdado do povo khmer que habitava a Indochina, e ainda hoje práticas
cotidianas de muitos. Nesse sentido a noção de realismo no cinema, em seu sentido
Figura 10 Figura 11
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tradicional, estaria comprometida quando estes fatos nos são apresentados sem alarde,
evidenciando a permeabilidade dos mundos humanos e não-humanos. Cinema que
combina, nas palavras de Ingawanij (2015), “intensidade sensorial” e “reflexividade
temporal”. Cai por terra o privilégio da visão e da perspectiva monocular, entra em jogo a
percepção espectral, através do som e da tatilidade, como modos de experienciar o mundo
em seu âmago diverso. “Concepção do eu como algo permeável à multiplicidade das
formas de vida” (INGAWANIJ, 2015). Se para Dewey o indivíduo não é o dado primeiro,
mas sim a relação, seria o caso de reconhecermos em Cemitério do esplendor essa
“desindividuação” fundamental que se apresenta sob a forma da experiência mediúnica
[Figuras 12 e 13]. Assim, este texto lança uma primeira abordagem, que põe e relação o
budismo e o pragmatismo, e especula por outras chaves de leitura para uma pesquisa em
andamento sobre o filme Cemitério do Esplendor.
REFERÊNCIAS
BRASIL, A. 2006. Ensaios de uma imagem só. In: Devires, v.3 n.1. Belo Horizonte, 2006.BRESSANE, J. Alguns. Rio de Janeio: Imago, 1996.DEWEY, J. La experiencia y la naturaleza. Ciudad de México: FCE, 1948.DEWEY, J. Os pensadores. São Paulo: Abril, 1980.INGAWANIJ, M. A. O animismo e o cinema realista performativo de Apichatpong Weerasethakul. In: Coleção Cinusp v.7, Realismo fantasmagórico. São Paulo, 2013.POGREBINSCHI, T. Pragmatismo. Teoria Social e Política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2005.RINPOCHE, S. O livro tibetano do viver e do morrer. São Paulo: Talento, 2005.SAMTEN, P. Meditando a vida. São Paulo: Fundação Petrópolis, 2001.
Figura 12 Figura 13