7
BIBLIOïECA SEDESruWES Perguntas Se não me engano, o incômodo é semelhante àquele causado por declarações públicas de ateísmo e, ultimamente, também de socia- lismo: por que não guardar para si as con- vicções sobre assuntos tão privados como Deuseaordemsocial? Roberto Schwarz [:sre.rnros No FIM Do sECULo e na Argentina. Luzes e sombras dcfinem uma paisagem conhecida no Ocidente, mas os con- trastes sobressaem, aqui, por dois motivos: nossa marginalidade cìuanto ao "primeiro mundo" (daí o caráter tributário de muitos processos cujos centros de iniciativa se encontram em outro lugar); e a solene indiferença com que o Estado entrega ao rnercado a gestão cultural, sem estabelecer para si uma política cle contrapeso. Como outras nações da América, a Argentina vive o clima do que se chama "pós-modernidade" no marco paradoxal de uma nação fraturada e empobrecida. Vinte horas diárias de televisão, em cinqüenta canais, e uma escola desar- mada, sem prestígio simbólico nem recursos materiais; paisa- gens urbanas traçadas segundo o último design do mercado in- ternacional e serviços urbanos em estado crítico. O mercado audiovisual distribui suas bagatelas e aqueles que podem consu- mi-las se entregam a essa atividade como se fossem moradores

Cenas da Vida Pós-Moderna

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Cenas da Vida Pós-Moderna

BIBLIOïECA

SEDESruWES

Perguntas

Se não me engano, o incômodo é semelhante

àquele causado por declarações públicas de

ateísmo e, ultimamente, também de socia-

lismo: por que não guardar para si as con-

vicções sobre assuntos tão privados como

Deuseaordemsocial?Roberto Schwarz

[:sre.rnros No FIM Do sECULo e na Argentina. Luzes e sombras

dcfinem uma paisagem conhecida no Ocidente, mas os con-

trastes sobressaem, aqui, por dois motivos: nossa marginalidade

cìuanto ao "primeiro mundo" (daí o caráter tributário de muitos

processos cujos centros de iniciativa se encontram em outro

lugar); e a solene indiferença com que o Estado entrega ao

rnercado a gestão cultural, sem estabelecer para si uma política

cle contrapeso. Como outras nações da América, a Argentina

vive o clima do que se chama "pós-modernidade" no marco

paradoxal de uma nação fraturada e empobrecida. Vinte horas

diárias de televisão, em cinqüenta canais, e uma escola desar-

mada, sem prestígio simbólico nem recursos materiais; paisa-

gens urbanas traçadas segundo o último design do mercado in-

ternacional e serviços urbanos em estado crítico. O mercado

audiovisual distribui suas bagatelas e aqueles que podem consu-

mi-las se entregam a essa atividade como se fossem moradores

Page 2: Cenas da Vida Pós-Moderna

CENAS DA VIDA PÓS-MODERNÂ

dos bairros ricos de Miami. Os mais pobres só podem con-

seguir o Jost-food televisivo; os menos pobrcs consomem este

e alguns outros bens, enquanto se lembram clos bons tempos

da escola pública, a qual seus filhos já não poderlr fì'eqüentar,

ou na qual seus filhos já não recebem o que eles receberam;

os demais, como em qualquer parte, escolhem o clue clr"riserem.

Ao que parece, é escassa a preocupação clcspcrtada por

essa desigualdade. Aqueles que não lhe dãro importância aderem

aos grandes grupos (em que militam inclusive intolcctuais): os

neoliberais convictos, para os quais os pobrcs nlto interessam,

uma vez que taÌ interesse lhes obrigaria a tttn invcstimento

público de tradução probÌemática em termos clc clisptrtas elei-

torais ou de "paz social"; e os neopopulisras clc rncrcado, que

pensam que os pobres têm tantos recursos culturais clue podem

fazer literalmente qualquer coisa com o fast-Jbod cla televislto.

Ambos os grupos se esquecem de que nem os velhos populistas

nem os velhos liberais jamais praticaram a incliÍèrença frente

à desiguaÌdade cuÌtural, embora tenham sustentaclo cliagnósticos

e programas diferentes.

Não surpreende que muito poucos se prcocLlpcrÌr com

um tema cujo mero enunciado resulta irrisório etn nre io it csse

clima: o lugar da arte e da cultura culta na vida social (c acres-

centaria: o lugar das humanidades na virada civilizatória tecno-

científica). Parece um assunto fora de moda, ao qual se clcdicam

apenas os Lrniversitários especializados, ou os próprios artistas,

ainda qLrc nem sempre interesse a uns e outros. A cluestão da

arte - nho como debate restrito a especialistas, c sint como

debate intelectual público -

não figura em qualcluer agenda.

Nho obstantc, nruitos sabem que este foi urn tcrrta central

para os dois sóculos clue estamos deixando para tnis. Pro-

vavelmente essa ccntluliclitrlc desvaneceu-se para sernprc. Ainda

assim, não existe <lutrir ltivirlacle humana que nos possa colocar

Pergunt/1s

diante de nossa condição subjetiva e social com a mesma

intensidade e riqueza de sentidos que a arte, sem que essa

experiência exija, como a religião, uma afirmação da transcen-

dôncia. Os neopopulistas de mercado (que praticam a ironia ou

o dcsencanto pós-moderno) desprezam a questão como resíduo

arcuico das boas consciências pequeno-burguesas; junto com

os rrooliberais, confiam no mercado, porque pensam que ali

curlu um poderá escolher livremente sua reprodução de Picasso

or.r scll disco da Filarmônica de Berlim, se tiver vontade e

corrrlições de pagar. Num mundo onde quase todos coincidem

crrr cliagnosticar uma "escassez de sentidos", ironicamente,

cssc diagnóstico não considera a arte tal como ela é: uma

pnitica que se define na produção de sentidos e na intensidade

lìllrnal e moral.A Argentina, como quase todo o Ocidente, vive numa

crcscente homogeneização cultural, onde a pluralidade de ofer-

tls não compensa a pobreza de ideais coÌetivos, e cujo traço

biisico é, ao mesmo tempo, o extremo individualismo. Esse

traço se evidencia na chamada "cultura jovem" tal como de-

Í'inida pelo mercado, e num imaginário social habitado por dois

Í'antasmas: a liberdade de escolha sem limites como afirmação

abstrata da individualidade e o individualismo programado. As

contradições desse imaginário são as da condição pós-moderna

realmente existente: a reprodução clônica de necessidades no

afã de que satisfazê-las é um ato de Ìiberdade e diferenciação.

Se todas as sociedades têm se caracterizado pela reprodução

de desejos, mitos e condutas (porque a continuidade também

depende disto), esta sociedade o faz com a idéia de que a re-

produção em pauta é um exercício da autonomia dos sujeitos.

Nesse paradoxo baseia-se a homogeneizaçã,o cultural realizada

sob as ordens da liberdade absoÌuta de escolha.

Parece oportuno propor aqui pelo menos algumas per-

guntas, embora se saiba de antemão que elas ficarão sem

Page 3: Cenas da Vida Pós-Moderna

lo ( I tì/\\ t)^ vil)^ l,(ls-MoDElì.NÁ

r('sl)()slr. Slìo pcrguntas que servem para assinalar um pro-lrlt'rrr:r, rruris clo que para encontrar sua soluçlìo. Os problemas

r;rrt' t'rrlìc:rrturnos de fato não têm, como nunca tiveram os

prolrlcrrrirs sociais, uma solução inscrita em seu enunciado.'l lrlrr sc antes de perguntar para fazer ver do que para encon-

llrr, tlc: irnccliato, um plano de ação. Não são perguntas sobre,, tlttc.lìtz.cr, mas sobre como armar umo perspeL'tivu para ver.

lloje, se algo pode definir a atividade intelectual, seria

prt't'isrrrrrcnte a interrogação sobre aquilo que purcce inscritonr rÌirtr,rrgz-iÌ clas coisas, a fim de mostrar que os cr,tiscts não são

irtt'vitrivcis. À variada gama de determinismos quc agitam suas

lrrrrrtlcilas de aceitação e adaptação (o determinismo técnico, o

tlc(crrrrinismo de mercado, o determinismo neopopulista), gos-

llrriu cle opor questões cuja única pretensão é perturbar as jus-lil'icativas, laudatórias ou cínicas, do existente. Examinar o que

cstii tlackr pressupondo que ele resultou de ações sociais cujo

lrorlcr- nfro é ;rbsoluto: o que está dado é a condição de uma ação

.lirttrrtt, e não seu limite.Varnos pôr à prova três espaços: o dos meios audiovisuais

c scr.l lììercado; o das antes denominadas culturas populares;

o cla artc e da cultura "culta".

Quanto ao primeiro: Será mesmo indispensável aceitar a

rc<lrgluriz.açho da cultura produzida pela mídia audiovisual sob

ls Íìlrrrras propagaclas por um mercado que opera confbrme:r le i ckr bcncÍ'ício e, em nosso caso, sem contrapesos do Estado

rrcrrr rllr cslcra pública'? Mercado e revolução audiovisual terãosoltllrtlo scrrs tlcslinos a ponto de somente o mercado possi-

bilittrr ir irrovução aucliovisual? Intervir no mercado implicarárrecc:sslrritrrrcrì[c corìvcl'tcr-se em obstáculo ao desenvolvi-lÌÌcnIo c ì exprrrrsrio tlc trrna nova cultura?

Qrlrrrto lro st'gtrrrtkl: Qual é a situação das chamadas

cultur-us popululcs nir crrcrrrz.ilhada entre as instituiçõcs cm crise

Perguntas ll

c a abundância audiovisuaÌ? Como se movimenta o círculo no

qual o sentido comum espontâneo é um composto do materiaÌ

oÍ'crccido pela mídia e dos traços de velhas imposições, expe-

riôrrcias e carências simbólicas? O que fazem as culturas po-

pulrrrcs com os bens culturais do mercado? Será inevitável a

clcscstruturação das culturas populares não vinculadas às

rnitliliticas?

Quanto ao terceiro: Será mesmo necessário resignar-se

lì'crrtc ao caráúer restrito da cultura "culta"? A arte será para

senÌl)rc (ou sempre terá sido) uma atividade de ociosos, ex-

tnìvtgantes predestinados e mandarins? A maré nos terá

rrÍ'itslado definitivamente das tradições culturais, apagando todos

os lastros? Haverá lugar para a arte na vida ou arte e vida se

cxcluem por princípio sociológico e estético?

Tais perguntas desenham um mapa de hipóteses. Quem

lrs Íìlrrnulou foi alguém que, na ruptura da imagem do intelec-

trurl, encontra não o momento de sepultar-lhe piedosamente,

nurs sim de aprender a evitar os equívocos e o orgulho desme-

rlido que a caracterizaram. Por causa desses equívocos e desse

orgulho, muitos desejam enterrá-lo para sempre, porque foi um

legislador soberbo ou um profeta solitário demais. Mesmo

assim, os erros do passado não bastam para exigirem de nós

o silêncio. É verdade que a voz da crítica não pertence somente

aos intelectuais, mas existe um dever do saber que ainda detém

lìrrça moral. A história dirá, em questão de décadas, se o final

deste século realmente viu o ocaso definitivo do intelectual

crítico.Enquanto isso, não devemos nos apressar.

Page 4: Cenas da Vida Pós-Moderna

Abundância e pobreza

Cidade

lrnr l,rt.rrrns CTDADES NÃo EXISTE um "centro". Quer dizer: um

Irrgur geográfico preciso, marcado por monumentos, cruzamen-

tos de certas ruas e avenidas, teatros, cinemas, restaurantel,

conf'eitarias, ruas de pedestres, anúncios luminosos cintilando

rro líquido também luminoso e metálico que banha os edifícios.

Antes, podia-se discutir se o "centro" de fato terminava em tal

rua oLì um pouco depois, mas ninguém discutiria a existência

rììcsma de um único centro: imagens, ruídos, horários dife-

lcntes. Ia-se ao "centro"; partindo dos bairros, como se fosse

rurna atividade especial, de feriado, como programa noturno,

para as compras ou, simplesmente, para ver e estar no centro.

Los Angeles (essa imensa cidade sem centro) não é tão incom-

preensível como foi, nos anos 60. Muitas cidades latino-

americanas, entre elas Buenos Aires, entraram num processo

cle "angelenizaçáo".*

As pessoas hoje pertencem mais aos bairros urbanos (e

aos "bairros audiovisuais") do que nos anos 20, quando a ida

* Nas últimas páginas deste livro os leitores encontrarão as referências

bibliográficas com que cada capítulo dialoga.

Page 5: Cenas da Vida Pós-Moderna

14 CENAS DA VIDA PÓ5-MoDERNA

ao "centro" prometia um horizonte de desejos e perigos, a ex-ploração de um território sempre diferente. Dos bairros de clas-se média, já não se vai ao centro. As distâncias se encurtaram,não só porque a cidade deixou de crescer, mas porque as pes-

soas já não se deslocam por ela, de ponta a ponta. Os bairrosricos configuraram seus próprios centros, mais lirnpos, maisordenados, mais bem vigiados, mais iluminad<ls c com ofertasmateriais e simbólicas mais variadas.

Ir ao centro não é o mesmo que ir ao shopping center,ainda que o significante "centro" se repita nas cluas expressões.

Em primeiro lugar pela paisagem: o shopping ccnter, seja qualfor sua tipologia arquitetônica, é um simulacro dc ciclaiJe deserviços em miniatura, onde todos os extreÌÌìos do urbano fo-ram liquidados: as intempéries, que as passarclas c arcaclas doséculo XIX apenas interromperam, sem anular; os ruíclos, que

não correspondiam a uma programação unificada; o claro-es-curo, produto da colisão de luzes diferentes, contrárias, quedisputavam, reforçavam-se ou, simplesmente, ignoravam-seumas às outras; a grande escala produzida pelos eclifícios cle

vários andares, o pé-direito duplo ou triplo dos cinemas e

teatros, as superfícies envidraçadas três, quatro, até cincovezes maiores que a mais ampla das lojas; os monumcntosconhecidos que, por sua permanência, beleza ou feiúra, eramos signos mais poderosos do texto urbano; a proliÍ'eração deanúncios de dimensões gigantescas, no alto dos edifíci<ts, per-correndo dezenas de metros, ao Ìongo de suas Íachaclas, ousobre as rnarquises, em grandes letras garrafais, Íìxadas sobreas viclraças rlc clczcnas de portas de vaivém, em chapas relu-zentes, escuclos, plrirréis pintados sobre os umbrais, cartazes,apÌiques, letrciros, lrrrúncios impressos, sinais de trânsito. Esses

traços, produzidos ìs vczss por acaso, às vezes por design, são(ou eram) a [tarca tle urnu identidade urbana.

Abundância e pobreza

lìoje, o shopping contrapõe a essa paisagem do "centro"

sr,rl l)roposta de cápsula espacial acondicionada pela estética do

rrrcrcltl<1. Num ponto, todos os shopping centers são iguais:

crn Minneapolis, em Miami Beach, em Chevy Chase, em New

l)ort, cm Rodeo Drive, em Santa Fe e Coronel Díaz, cidade

dc Ilucnos Aires. Para um recém-chegado de Júpiter, somente

o papcl moeda e a língua dos vendedores permitiria saber onde

cslli. A constância das marcas internacionais e das mercadorias

so sorna à uniformidade de um espaço sem qualidades: um vôo

interplanetário a Cacharel, Stephanel, Fiorucci, Kenzo, Guess

e McDonalds, numa nave fretada sob a insígnia das cores uni-clas das etiquetas do mundo.

A cápsula pode ser um paraíso ou um pesadelo. O ar

se renova com a reciclagem dos condicionadores; a temperatura

é boa; as luzes são funcionais e não entram no conflito do claro-

escuro, que sempre pode parecer ameaçador; outras ameaças

siro neutralizadas pelos circuitos fechados, que fazem a infor-mação fluir até o pan-óptico ocupado pelo pessoal da segurança.

Como numa nave espacial, é possível realizar ali todas as ati-

vidades reprodutivas da vida: come-se, bebe-se, descansa-se,

consomem-se mercadorias e símbolos segundo regras não es-

critas porém absolutamente claras. Como numa nave espacial,

perde-se com facilidade o sentido da orientação: o que se vê

clc um ponto de vista é tão parecido com o panorama do lado

oposto que só os especialistas, os profundos conhecedores de

pcquenos detalhes e os que se locomovem de olho num mapa

seriam capazes de dizer onde estão a cada momento. De todo

rnodo, isto, saber onde se está a cada momento, não tem im-portância. O shopping não é para ser percorrido do início ao

Í'inr, como uma rua ou uma galeria; no shopping, é preciso ca-

rrrinhar com a decisão de aceitar as armadilhas do acaso, ainda

r5

Page 6: Cenas da Vida Pós-Moderna

16 cENAS D^ vrDA pós-MoDERNA

que nem sempre e ainda que não de todo. euem se esquivaraltera a lei espacial do shopping, em cujo tabuleiro os avanços,retrocessos e repetições casuais são uma estratégia de venda.

O shopping, se for um bom shopping, corresponde a

uma ordenação total, mas sem deixar de, ao rnesrno tempo, dara impressão de percurso livre: trata-se cla deriva organizada domercado. Quem vai ao shopping para entrar, chegar a um deter-minado ponto, fazer uma compra e sair imecliatanìerÌte contradizas funções desse espaço que tem muito a ver corn a faixa deMoebius: passa-se de uma superfície a outra, cle um plano a

outro, sem dar-se conta de que se está atravcssanclo um limite.Justamente por isto é tão difícil perder-se nurn shopping: elenão foi feito para levar a um determinaclo ponto, em conse-qüência disto, em seu espaço sem hierarquias, tambénr é di-fícil saber se se está ou não perdido. O shopping nho é umlabirinto, de onde é preciso encontrar a saída; pelo contrário,só uma comparação superficial pode aproximar o shopping dolabirinto. O shopping é uma cápsula onde, se é possível nãoachar o que se procura, é completamente impossível perder-se.Só as crianças muito pequenas se perdem num shopping, por-que um acidente pode separá-las de outras pessoas e essa au-sência não é equilibrada com o encontro das mercaclorias.

Corno uma nave espacial, o shopping tem uma relaçãoindìJerattte com a cidade à sua volta: essa ciclade é sempre oespaço cxtcrno, sob a forma de autopista ladeada por favelas,avenida principal, bairro suburbano ou rua de pedestres. Dentrode urn shopping, ninguém se importaria em saber se determi-nada ala, onrlc se cncontrou a loja procurada, é paralela ouperpendicullìr iì unltÌ rua qualquer, no exterior; acima de tudo,o que não se potlc csquecer é em que prateleira está a merca-doria desejada. No slropping, não só se anula o sentido deorientação internu, corno também desaparece por completo a

Abundância e pobreza

ltcogllrÍiu urbana. Em contraste com as cápsulas espaciais, os

slroppings erguem muros frente às perspectivas externas. Como

rros crrssirìos de Las Vegas (e os shoppings aprenderam muitot'orrr l.irs Vegas), o dia e a noite não se distinguem: ou o tempo

rÌiì() l)lÌssí.Ì, ou o tempo que passa também é um tempo sem

t;rrirlitlldes.

A cidade não existe para o shopping, que foi construídoprrlir substituí-la. Por isto, o shopping se esquece daquilo que

o rrrcleia: não só fecha o recinto à vista do lado de fora, mas

rrintlu por cima irrompe, como que caído do céu, no meio de

rrrrr cluarteirão dessa mesma cidade que ignora; ou então está

i,'tÌtclo num terreno baldio junto à autopista, onde não existe

prrssado urbano. Quando o shopping ocupa um espaço marcado

pcla história (no reaproveitamento de mercados, docas, bar-

nrcires portuários e mesmo na reforma em segunda potência,

corìlo em gaÌerias comerciais que passam a ser galerias de

slroppings), usa-o como decoração, não como arquitetura.(luase sempre, inclusive no caso de shoppings "preservacio-

nistas" de arquitetura antiga, o shopping se incrusta num vaziorlc memória urbana, porque representa os novos costumes e

rrao precisa pagar tributo às tradições: onde o mercado decola,

o vento do novo se faz sentir com força.

O shopping é todo futuro: constrói novos hábitos, viraponto de referência, faz a cidade acomodar-se à sua presença,

crrsina as pessoas a agirem no seu interior. No shopping pode-

sc clescobrir um "protótipo premonitório do futuro": shoppings

t'rrtla vez mais extensos, dos quais nunca se precise sair, como

sc Íìrssem uma fábrica flutuante. Já são assim alguns hotéis-slroppings-spas-centros culturais de Los Angeles e, é claro, Las

Vt:ras. São aldeias-shoppings, museus-shoppings, bibliotecas e

t'scolas-shoppings, hospitais-shoppings.

17

Page 7: Cenas da Vida Pós-Moderna

lli i rr\, t,\ \il,,.\ t,()s,N,Í()t)lìtìNA

,\lrrrrrr.sc (lLle a cidadania se constitui no mercado e, port,,to, os slrollpings podem ser vistos como os monumentos deunr n()vo civismo: ágora, templo e mercado como nos forosrlrr vclha Itírlia romana. Nos foros havia oracrores e aucliência,políticos e plebeus a serem manobrados; também nos shoppingsos cidadãos desempenham papéis diferentes: uns compram, ou_tros simpÌesmente olham e admiram. Nos shoppings não se po_derá descobrir, como nas galerias do século XIX, uma arqueo_logia do capitalismo, senão sua realização mais plena.

Frente à cidade real, construícia no tempo, o shoppingapresenta seu modelo de cidade de serviços miniaturizada, quese autonomiza soberanamente clas tradições e clo seu entorno.Tem a atmosfera irreaÌ de uma cidade em miniatura, porquefoi construído muito rápido e não conheceu vacilações, marchase contramarchas, correções, destruições, influências de projetosmais amplos. A história está ausente, e, quando existe ali algode história, não se eviclencia o conflito apaixonante entre a re_sistência do passado e o impulso do presente. A história é usa_da para desempenhar um papel serviÌ, convertendo_se em deco_raçho banal: preservacionismo fetichista dc alguns muros comosc fbssem cascas. Por isto, o shopping está em perfeita sintoniacorìl a paixão pelo decorativismo manifesta<Ja pela arquiteturadita prís-moderna. No shopping de intenção preservacionista,a histririrr é paradoxalmente tratada como souve,nir e não comosuporÍc rrrutcrial de uma identidade e uma temporaìidade quesctììl)l'e altrcscntam ao presente seu conflito.

l)ispcrrsaclu a história, como cletalhe, o shopping sofredc u'a lrrrrrrúsilr rrccessária ao bom andamento de seus negócios,porquc sc os tl.ilços cla história forem evidentes clemais, supe_rando a í'Lrrrçu<l tlccorirtivl, o shopping viveria um choque defunções e sentirkrs. l)ir't o shopping, a única máquina semiótica

Abundância e Pobreza 19

t' ;r tk' scu próprio projeto. Em contrapartida, a história esbanja

:,r'rrlitkrs rlue o shopping não tem interesse em preservar, porque

('rÌr s('Ìr ospaço, além de tudo, os sentidos valem menos que

os srrÌrril'icantes.

O shopping é um artefato perfeitamente adequado à

lri;rtilesc clo nomadismo contemporâneo: qualquer pessoa que

It'rrlur usaclo um shopping uma vez pode usar qualquer outro,

t'rrr outriì cidade, mesmo estrangeira, da qual não conheça

s('(lucr a língua e os costumes. As massas temporariamente

rrirrrurrles que se movem segundo os fluxos do turismo encon-

triìrÌÌ rìo shopping a doçura do lar, onde se apagam os contra-

l('rìll)os da cÌiferença e do mal-entendido' Depois de uma tra-

vt'ssia por cidades desconhecidas, o shopping é um oásis onde

Itrrlo acontece exatamente como em casa: do exotismo que

rlclcita o turista até esgotá-lo, pode-se encontrar um repouso

('rìÌ espaços que são familiares, mas que não deixam de ser 'de

ccrta forma atraentes, uma vez que se sabe que eles estão no

"cstrangeiro", sendo, ao mesmo tempo, idênticos em toda par-

tc. Sem shoppings e sem clubes Mediterranée, o turismo de

lììilssas seria impensável: ambos proporcionam a segurança que

sti se sente na própria casa, sem perder-se completamente a

crnoção provocada pelo fato de que ela foi deixada para trás.

(luando o espaço estrangeiro e a força da incomunicabilidade

iìrìleaçam como um deserto, o shopping oferece o paliativo de

sua familiaridade.

Esta, no entanto, não é a única nem a mais importante

contribuição do shopping ao nomadismo. Pelo contrário, a

rrríquina perfeita do shopping, com sua lógica aproximativa, é,

t'rrr si mesma, um tabuleiro para a deriva desterritorializada. Os

l)()rìtos de referência são universais: logomarcas, siglas, letras,

t'ticyuetas não requerem que seus intérpretes estejam enraizados

--