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89 #10 Citação recomendada || CABRERA, Ana (2014): “A memória e o esquecimento: a censura do Estado Novo em Portugal perante três peças de autores espanhóis” [artigo online], 452ºF. Revista eletrónica de teoria da literatura e literatura comparada, 10, 89-110, [Data de consulta: dd/mm/aa], <http://www.452f.com/pdf/numero10/10_452f-mono-ana-cabrera-orgnl.pdf> Ilustração || Laura Castanedo Artigo || Recebido: 15/07/2013 | Aceite pela Comissão Científica: 27/10/2013 | Publicado: 01/2014 Licença || Reconhecimiento-Não comercial-Sem obras derivadas 3.0 License A MEMÓRIA E O ESQUECIMENTO: A CENSURA DO ESTADO NOVO EM PORTUGAL PERANTE TRÊS PEÇAS DE AUTORES ESPANHÓIS Ana Cabrera Centro de Investigação Media e Jornalismo, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa [email protected]

Censura Do Estado Novo Em Portugal

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    Citao recomendada || CABRERA, Ana (2014): A memria e o esquecimento: a censura do Estado Novo em Portugal perante trs peas de autores espanhis [artigo online], 452F. Revista eletrnica de teoria da literatura e literatura comparada, 10, 89-110, [Data de consulta: dd/mm/aa],

    Ilustrao || Laura CastanedoArtigo || Recebido: 15/07/2013 | Aceite pela Comisso Cientfica: 27/10/2013 | Publicado: 01/2014Licena || Reconhecimiento-No comercial-Sem obras derivadas 3.0 License

    A MEMRIA E O ESQUECIMENTO: A CENSURA DO ESTADO NOVO EM PORTUGAL PERANTE TRS PEAS DE AUTORES ESPANHISAna Cabrera Centro de Investigao Media e Jornalismo, Faculdade de Cincias Sociais e Humanas da Universidade Nova de [email protected]

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    Resumo || O objetivo deste artigo analisar o funcionamento da censura ao teatro em Portugal a partir da anlise de trs obras teatrais: La Casa de Bernarda Alba, de Federico Garca Lorca (apresentada em 1947); Las Quinas de Portugal, de Tirso de Molina (apresentada em 1968) e El Triciclo, de Fernando Arrabal (apresentada em 1968). O estudo est centrado em dois momentos distintos do Estado Novo: o final dos anos 40, altura em que a organizao censria entra num processo de reestruturao; e o perodo dos anos 60, durante o qual se verificou um recrudescimento dos processos censrios, muito em funo de um fechamento do regime de Salazar. Este trabalho, baseado num estudo de fontes, pretende dar a conhecer a representao dos processos censrios e os seus efeitos na sociedade e na cultura portuguesas.

    Palavras-Chave || Estado Novo | Censura ao Teatro | Histria | Memria.

    Abstract || The goal of this article is to analyze the functioning of theater censorship in Portugal based on the analysis of three theatrical plays: La Casa de Bernarda Alba, by Federico Garca Lorca (presented in 1947); Las Quinas de Portugal, by Tirso de Molina (presented in 1968), and El Triciclo, by Fernando Arrabal (presented in 1968). The study focuses on two distinct periods of the Estado Novo: the final years of the 1940s, when censorship apparatus underwent a period of reorganization, and the 1960s, when censorship grew stronger once again as a result of Salazar regimes increasing rigidity. Relying on archival evidence, we attempt to reveal the representation of censorship processes and their effects on Portuguese society and culture.

    Keywords || Estado Novo | Theatre Censorship | History | Memory.

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    Estamos em 1971, e Mirek diz: a luta do homem contra o poder a luta da memria contra o esquecimento

    (Kundera, 1986:11).

    0. Apresentao

    Os regimes polticos autoritrios ou totalitrios tm um particular cuidado no trabalho de ocultao seletiva da realidade, como eixo fundamental da promoo do iderio oficial junto do pblico. As novas ideias, valores e concees devem sobrepor-se e ajustar-se ao plano onde se inscrevem a concatenao dos atos (Leroi-Gourhan, 1964-65), e atuar sobretudo no campo da memria tnica que, como o autor defende, assegura os comportamentos das sociedades.

    No regime poltico de Salazar, a memria coletiva foi objeto de manipulao, atravs da edificao de novos objetos que se ajustavam aos anteriormente existentes. Esta situao foi criada pela inveno de uma ideia de povo, com as suas danas folclricas, os seus trajes tradicionais, os seus cantares, a sua religiosidade, e o seu modelo familiar com um forte carter patriarcal. O Estado Novo estabeleceu uma ideia de simplicidade do povo portugus, forjada na ignorncia e no analfabetismo, aliados a uma coragem perante a defesa dos valores da Ptria. As figuras histricas so mitificadas de forma a servir de guia para a ao. A apologia dos heris da Ptria foi construda com base numa outra manipulao: a construo de uma Histria oficial do regime, positivista, fatual, baseada na ao de individualidades, todas elas provenientes das elites e mostradas ao povo como os avs da sua descendncia e o exemplo a seguir.

    Neste contexto, a cidade de Guimares alada a bero da Ptria, Afonso Henriques a fundador da nao, e o Infante D. Henrique, tido como exemplo de castidade, transforma-se no idelogo de uma Escola de Sagres que nunca existiu, onde os heris dos descobrimentos e das conquistas alm-mar se formavam. Tudo isto era concebido no contexto de um processo de inculcao ideolgica orientado para um povo tido como recetivo e moldvel aos novos valores.

    Estamos, assim, perante um regime poltico-ideolgico que pretende lanar um vu sobre a memria inculcando-lhe outros cnones. A produo cultural apoiada e dirigida pelo Secretariado Nacional de Propaganda (1933), liderado por Antnio Ferro1, pretende criar uma imagem de Portugal que acomode a ideologia do Estado Novo.

    NOTAS

    1 | Antnio Ferro (1895-1956) foi jornalista, escritor e poltico. Inicialmente esteve ligado ao movimento modernista foi editor da revista Orpheu. Mentor da Poltica do Esprito que aplica atravs de mltiplas iniciativas e sobretudo atravs do Secretariado de Propaganda Nacional (1933), mais tarde designado Secretariado da Informao Nacional, o qual dirige at 1949. Foi um admirador confesso de Benito Mussolini, inmeras vezes referido ao longo das entrevistas que fez a Salazar.

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    Regressamos frase de Kundera, na abertura deste artigo: as ditaduras apagam rostos das fotografias como forma de votar ao esquecimento as figuras incmodas, apagam-nas da memria coletiva, e, assim, a luta do homem contra o poder transforma-se na da memria contra o esquecimento.

    Mas h outras formas de promover o esquecimento e apagar a memria: as proibies, a interdio, a represso e o recalcamento, que procedem a uma naturalizao dessas atitudes de reconfigurao da memria coletiva. O Estado Novo usou-as todas. Criou mesmo um aparelho governamental de controlo. A PVDE, criada em 1933, mais tarde transformada em PIDE (1945) e, no final da dcada de 1960, convertida em DGS, foi uma polcia poltica criada para controlar, prender e matar os portugueses dissidentes do regime. A censura, que funcionava como uma Secretaria de Estado, organizada em diversos departamentos, controlava a imprensa e toda a produo cultural produzida em Portugal, bem como a do estrangeiro que pretendia entrar no pas (teatro, cinema, livros, letras de canes).

    Criou tambm estruturas de enquadramento e de doutrinao: os Sindicatos Nacionais, a Mocidade Portuguesa, a Federao Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT), entre outras. No entanto, as estruturas polticas que constituram os pilares do regime foram, sem dvida, a polcia poltica e a censura.

    Neste estudo partimos de dois pressupostos: a identificao da censura ao teatro no contexto da poltica do Estado Novo em Portugal; o aparelho censrio como instrumento de represso criatividade, diversidade, originalidade, diferena e independncia.

    Pretendemos tambm apresentar as descontinuidades na ao censria ao teatro. No no sentido de procurar traar limites que seriam, na verdade, cortes arbitrrios como alerta Michel Foucault (1988). Mas no sentido de procurar mudanas na estrutura censria que tenham tido efeitos nas formas de atuar e que podem ser percecionadas atravs da anlise dos documentos. Como sublinha Jacques Le Goff, a periodizao o principal instrumento de inteligibilidade das mudanas significativas (Le Goff, 1984: 178).

    No contexto geral da atuao da censura em Portugal, vamos analisar trs obras de autores espanhis, censuradas em dois momentos diferentes do regime: La Casa de Bernalda Alba, de Federico Garca Lorca (1947); Las Quinas de Portugal, de Tirso de Molina (1968) e El Triciclo, de Fernando Arrabal (1968). Estas obras nada tm em comum para alm de serem, todas elas, de autores espanhis de referncia. Esta , justamente, uma forma de tornar mais evidente o aparelho ideolgico do Estado Novo. A anlise das proibies, a forma como os censores argumentam e os aspetos que elegem

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    como interditos, perigosos, indesejveis e imorais so elementos centrais para compreender a extenso ao censria.

    A escolha de obras de autores espanhis justifica-se pela necessidade de compreender se as identidades ideolgicas dos dois Estados Ibricos eram motivo para apaziguar a atitude dos censores. Ou, se pelo contrrio, existiam preconceitos ancorados numa histria comum de guerras e ocupaes.

    Por outro lado, entre 1947 e 1968, as relaes entre os dois Estados crisparam-se em razo dos caminhos divergentes que seguiram: Espanha entra, a partir dos anos 50, numa espiral de desenvolvimento, adere ONU e subscreve as orientaes quanto descolonizao; Portugal, por sua vez, opta pela manuteno das colnias, situao que o isolou, cada vez mais, do mundo.

    Um dos objetivos centrais desta investigao analisar obras teatrais proibidas ou cortadas para compreender o funcionamento do aparelho censrio do Estado Novo, as diferenas no tempo da sua atuao, e os argumentos que os censores evocaram para justificar os seus procedimentos. Estas trs peas no foram escolhidas de forma aleatria. So de diferentes autores, representam diferentes pocas, embora nem todas estejam na mesma situao face censura. Enquanto El Triciclo de Fernando Arrabal foi proibido, tal como Las Quinas de Portugal de Tirso de Molina, La Casa de Bernarda Alba, apesar de ter criado uma expectativa de proibio, foi aprovada sem cortes. Esta ltima situao criou espanto, tanto nos atores como nos produtores, tanto mais que Federico Garca Lorca era um republicano e um assumido simpatizante da esquerda, o que para o Estado Novo significava ser comunista. E, se observamos este facto luz do conhecimento que temos hoje das prticas, dos cdigos morais e restries da poca, interrogamo-nos acerca das razes da tomada de posio dos censores.

    Este uma investigao que se baseia na anlise de fontes. A documentao examinada foi de diversos tipos e provenincias: por um lado, os cdigos legais aplicados ao teatro e ao cinema durante o perodo em estudo, e, por outro, a documentao de arquivo do Secretariado Nacional da Informao e Turismo2. Este arquivo concentra a informao produzida na Comisso de Exame e Classificao de Espectculos durante o Estado Novo. Esta informao est distribuda por duas entidades: o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, que detm a maior parte do esplio, e o Arquivo do Museu do Teatro.

    Foram analisados os Processos da Direco Geral de Censura e as Actas das Comisses de Censura. Os primeiros, para alm da documentao burocrtica relativa aos pedidos de apreciao,

    NOTAS

    2 | Este fundo documental est sediado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT) e concentra a informao acerca da atuao dos censores, os relatrios, os pareceres em relao s peas, as apreciaes dos ensaios gerais, os pareceres sobre os recursos e as atas das Comisses de Censura.

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    contm os pareceres de cada um dos censores intervenientes. As segundas relatam o que se passava nas reunies semanais da Comisso de Censura.

    1. O fim da Guerra e a fundao do Secretariado Nacional de Informao e Cultura Popular

    Em 1944, e antevendo o final da guerra e a vitria dos aliados, a propaganda cede lugar informao, com a substituio do SPN pelo SNI (Secretariado Nacional de Informao, Cultura Popular e Turismo).

    Esta operao constituiu de facto uma mudana estrutural dos servios. Ao contrrio do que seria de esperar, o SNI no descentraliza nem promove aberturas em nenhum dos setores que transitam de uma estrutura para a outra. Desde logo, porque fica na dependncia direta de Salazar, depois, porque rene num s organismo uma srie de servios que tinham estatuto prprio e autnomo.

    Antnio Ferro vai ainda dirigir o SNI at 1949 como Secretrio Nacional. O diploma concede um perodo de transio (que se vai prolongar at 1947): At integrao efectiva da Inspeco dos Espectculos no Secretariado haver delegados deste junto dela, a fim de estabeleceram a necessria coordenao entre os dois organismos, designadamente, no que se refere censura teatral e cinematogrfica3.

    As atribuies do SNI no campo da cultura popular so, a orientao, o estmulo e a coordenao de todas as actividades que se destinem a elevar o nvel moral e intelectual do povo portugus e a exaltar e valorizar a sua individualidade nacional4.

    Com efeito, a determinao de que a censura ao teatro e ao cinema era feita a pedido dos interessados, imposta pelo Art. 3. do Decreto-lei n. 34590, de 11 de Maio de 1945. O mesmo decreto prev tambm que: A Comisso de Censura constituda pelo Secretrio-Geral do Ministrio, pelo Inspector dos Espectculos, que sero respectivamente o presidente e vice-presidente, e por mais nove vogais e um secretrio, nomeados pelo Ministro da Educao Nacional5. Alm do mais, a Comisso de Censura ao Teatro e Cinema contar com mais trs delegados nomeados pelo SNI.

    Todos os espetculos eram sujeitos censura prvia. Em relao ao teatro os censores liam as obras e aprovavam, reprovavam ou aprovavam com cortes. As peas reprovadas ficavam interditas a qualquer representao em todo o territrio nacional. As obras

    NOTAS

    3 | Decreto-lei n. 34133 de 24 de novembro de 1944, Art., 5, 3. .

    4 | Decreto-lei n. 34134 de 24 de novembro de 1944, Regulamento dos Servios do Secretariado Nacional da Informao, Cultura Popular e Turismo. II, 1) Generalidades. Art.. 2.

    5 | Decreto-lei n. 34590 de 11 de maio de 1945, Art. 15.

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    teatrais, quando aprovadas, eram ainda sujeitas a um outro escrutnio: o ensaio geral. Este era obrigatoriamente supervisionado pelos mesmos censores que tinham lido a pea. Neste ensaio geral, a observao dos censores centrava-se no texto, para verificarem se os cortes eram respeitados, nos cenrios, para assegurarem que todos os elementos eram apropriados e nos adereos e figurinos que deviam respeitar a moral e a decncia. Na verdade, o ensaio supervisionava se a criatividade dos encenadores e atores no tinha dado outros sentidos ao texto, como forma de contornar as proibies da censura.

    Rapidamente os censores sentem necessidade de ter regras claras para aplicar tanto no teatro como no cinema. O vogal Dr. Sacramento Monteiro foi incumbido da organizao de um regulamento para a censura ao cinema. Em contrapartida a Comisso aprova as instrues para a censura ao teatro, tendo em vista o teatro de Revista Portuguesa:

    Primeiro) Durante os ensaios de censura s podero permanecer na sala de espectculos, alm dos censores, os autores e componentes da emprsa. Estes ensaios devem realizar-se com os mesmos cenrios, caracterizaes e indumentria que ho-de figurar nas representaes pblicas. vedado aos censores, em caso de no observncia destas regras, autorizarem o ensaio.Segundo) A Comisso designar os censores que devem assistir a cada ensaio de censura, mas o seu nmero ser de dois, pelo menos, quando se trate de ensaios de revista.Terceiro) Os pedidos de censura de peas sero acompanhados dos respectivos poemas dactilografados, em duplicado e apresentados com uma antecedncia de quinze dias. Os aditamentos nas revistas podem ser apresentados at quarenta e oito horas antes da primeira representao. vedado aos censores receberem directamente das emprsas as peas ou os aditamentos.Quarto) O texto aprovado pela Comisso de Censura ser rigorosamente observado durante a representao. As infraces podem levar suspenso temporria ou definitiva do espectculo.Quinto) As peas, depois de entregues, sero distribudas na primeira reunio da Comisso e por esta apreciadas na reunio seguinte mediante parecer escrito do respectivo censor. A Comisso reunir em todas as teras feiras6.

    Estas regras demonstram, por um lado, a necessidade de instruir os novos vogais com normas claras de ao. Trata-se de uma resposta ao funcionamento da censura sob a tutela da Inspeco Geral de Espectculos que, muitas vezes, foi permissivo e cedeu a presses dos empresrios. Por fim, nota-se que a integrao da Inspeco Geral dos Espectculos no Secretariado7 no deve ter sido fcil, nem deve ter sido simplificada pelo Coronel scar de Freitas, que passa agora a segunda figura na hierarquia da instituio.

    Compreende-se ento que havia uma certa promiscuidade entre os

    NOTAS

    6 | Livro n. 1, Actas da Comisso de Censura dos Espectculos, Acta de 20 de maro de 1945, 3. SNI-IGE/ANTT

    7 | Livro n. 1, Actas da Comisso de Censura dos Espectculos, Acta de 8 de julho de 1947 122. A integrao ser um processo muito lento e s se vai tornar efetiva em 1947. SNI-IGE/ANTT

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    vogais e os empresrios do teatro. E no sentido de superar esta situao que o vogal Martins Lage apresentou antes da ordem do dia a seguinte proposta que foi imediatamente aprovada:

    Primeira Que as emprsas teatrais sejam notificadas de que devem submeter apreciao da Comisso de Censura os ttulos das peas que projectem representar, antes de as mesmas serem objecto de qualquer publicidade. A aprovao dos ttulos, precedendo a censura do texto das peas, ser de carcter provisrio.Segunda Que os vogais da Comisso de Censura quando impedidos, por motivo justificado, de efectivar o cumprimento das suas funes nos trabalhos que lhes tenham sido distribudos, os devolvam sem prejuzo de tempo para os interessados, ao Inspector dos Espectculos, que imediatamente proceder sua redistribuio dentro da referida escala8.

    Notava-se uma forte preocupao na eficcia do funcionamento das Comisses de Censura e procurava-se que cada censor cumprisse escrupulosamente as suas funes. Por isso, a reunio seguinte regressa s regras e diretrizes que deviam ser aplicadas com rigor e uniformidade, sendo que o prprio Secretrio Nacional da Informao que redige as normas:

    Primeira Os cortes parciais no texto das peas incidiro essencialmente sbre palavras, frases, cenas ou rubricas de expresso, sentido ou efeito atentatrio da correco e higiene da linguagem, da moral e dos costumes sos, e ainda do bom doutrinarismo social, poltico e religioso do ambiente nacional.Segunda A proibio integral das peas poder verificar-se quando o assunto de natureza imoral ou amoral fr desenvolvido com inteno apologtica, e o seu desfecho seja favorvel ao triunfo dos factos, ideias ou doutrinas condenveis expostas. Neste caso, porm, a resoluo ser prviamente submetida apreciao do Secretrio Nacional da Informao, antes de ser comunicado pela Inspeco dos Espectculos ao interessado9.

    Na verdade, o ano de 1947 fundamental na organizao dos servios, no estabelecimento de regras da censura, bem como dos procedimentos dos censores e das suas relaes pessoais com os empresrios do teatro. Recomendava-se aos censores uma estrita separao entre as suas funes e os empresrios teatrais. Nas Actas da Comisso de Censura encontramos diversas recomendaes a este respeito. Tambm, por isso, se cria um aparelho burocrtico que afasta os censores dos empresrios, atores e encenadores, de forma a no estarem expostos a presses.

    2. La Casa de Bernarda Alba ou a revolta contra o autoritarismo

    neste contexto, de alguma desorganizao dos servios da censura ao teatro devido ao perodo de transio que tinha sido

    NOTAS

    8 | Livro n. 1, Actas da Comisso de Censura dos Espectculos, Acta de 15 de abril de 1947 110. SNI-IGE/ANTT

    9 | Livro n. 1, Actas da Comisso de Censura dos Espectculos, Acta de 12 de agosto de 1947 127. SNI-IGE/ANTT

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    definido pelos legisladores, que Amlia Rey Colao10 leva cena La Casa de Bernarda Alba de Federico Garca Lorca.

    Lorca escreveu esta pea em 1936, e nunca a viu encenada, pois nesse mesmo ano assassinado pelas milcias franquistas em Alfacar, uma terra a cerca de oito quilmetros de Granada. O contexto poltico e social do drama constitui um retrato de uma Espanha rural, onde predomina a grande propriedade e as poderosas casas familiares terratenentes, conservadoras, absolutamente dominadas pela hierarquia poltica e familiar e profundamente controladas pela Igreja.

    A cena passa-se na Andaluzia onde predomina o culto das tradies descritas. Bernarda Alba matriarca de uma famlia onde s h mulheres, dominadas pela sua voz e pelo seu basto. Na sua casa prevalece uma moral catlica fundamentalista. Pela morte de seu marido, um luto pesado devia ser prolongado por oito anos, o que obrigava as suas filhas a viverem confinadas ao espao domstico. Alheia ao conflito entre as filhas, Bernarda, cega pelo seu poder, no compreende o efeito devastador que o jovem Pepe Romano exerce sobre todas as suas filhas. No entanto, Pepe noivo da filha mais velha (Angstias), a nica com bens herdados de seu pai (primeiro casamento de Bernarda). Este jovem constitui, de facto, o centro da disputa e do desejo de todas as outras irms.

    Adela, a irm mais nova, no se conforma com o luto e as proibies:

    Adela: Pienso que este luto me ha cogido en la peor poca de mi vida para pasarlo.Magdalena: Ya te acostumbrars.Adela: (Rompiendo a llorar con ira) No, no me acostumbrar! Yo no quiero estar encerrada. No quiero que se me pongan las carnes como a vosotras. No quiero perder mi blancura en estas habitaciones! Maana me pondr mi vestido verde y me echar a pasear por la calle! Yo quiero salir!11

    Adela que vai disputar o poder da me e afirmar a sua independncia, a sua personalidade, a sua vontade, e a liberdade de dispor do seu corpo, como se depreende destes excertos que so respostas s perguntas de suas irms:

    Adela: (Fuerte.) Djame ya! Durmiendo o velando, no tienes por qu meterte en lo mo! Yo hago con mi cuerpo lo que me parece!Martirio: Slo es inters por ti!Adela: Inters o inquisicin. No estabais cosiendo? Pues seguir. Quisiera ser invisible, pasar por las habitaciones sin que me preguntarais dnde voy! []Adela: Me sigue a todos lados. A veces se asoma a mi cuarto para ver si duermo. No me deja respirar. Y siempre: Qu lstima de cara! Qu lstima de cuerpo, que no va a ser para nadie! Y eso no! Mi cuerpo ser de quien yo quiera!12

    NOTAS

    10 | Amlia Rey-Colao foi uma das mais proeminentes mulheres do teatro portugus do sculo XX, influenciou fortemente a produo teatral e a formao e promoo de jovens atores. Em 1921 funda com seu marido a Companhia Teatral Rey Colao-Robles Monteiro, com sede no Teatro Nacional D. Maria II. Esta companhia viria a extinguir-se em 1988.

    11 | Lorca, Federico Garcia, La Casa de Bernarda Alba, p. 15.

    12 | Ibidem p. 22

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    Adela envolve-se com Pepe Romano. A sua revolta e frustrao explodem quando as irms lhe contam que Pepe vem pedir a mo de Angstias.

    Adela tem a coragem de rejeitar o cdigo de honra que obriga a mulher ao recatamento e afirma no s a sua sexualidade, como contesta abertamente o poder da me quando, no confronto com ela, lhe parte o basto, smbolo da sua autoridade:

    Adela: (Hacindole frente.) Aqu se acabaron las voces de presidio! (Adela arrebata un bastn a su madre y lo parte en dos.) Esto hago yo con la vara de la dominadora. No d usted un paso ms. En m no manda nadie ms que Pepe!13

    Bernarda, profundamente injuriada no seu orgulho e domnio, sai de cena e ouve-se um tiro. Adela precipita-se para onde estava Pepe. Quando perguntam a Bernarda se o matou, esta responde: no fue culpa ma. Una mujer no sabe apuntar14. Adela, supondo Pepe morto, enforca-se.

    Esta histria fortssima. Do mago familiar emerge um enorme poder que se sobrepe vontade individual e aos sonhos da jovem Adela. Nota-se tambm aqui uma outra associao, desta vez com o poder poltico do ditador Franco, que se estabeleceria depois da escrita da pea. Tambm os valores do Estado franquista, alicerados na tradio, nos bons costumes, na famlia, na religio e numa vigorosa autoridade patriarcal, a que se associa o medo do enfrentamento. Tal como Adela, os opositores ao regime franquista so presos, torturados e assassinados. Mostra-se como, numa sociedade dominada pelo medo e pela ditadura, as relaes de poder se repercutem e se plasmam nos ncleos subordinados.

    No entanto, em Portugal a obra no proibida pela censura. Apesar de reunir todos os ingredientes que normalmente indicavam a proibio da pea ter sido escrita por Federico Garca Lorca, considerado, aos olhos do Estado Novo como um comunista, ocorrer um suicdio (a sua divulgao ou enunciao eram proibidas nesta poca), e o enredo estar repleto de conotaes polticas subversivas.

    poca, estes aspetos foram secundarizados pelos censores j que deram prioridade leitura mais imediata que a pea oferece e que se ajustava ao iderio do Estado Novo: a autoridade da me de famlia, a tradio, a honra, a obedincia, a moral, a religio e os bons costumes.

    Ainda assim, tal como explicmos anteriormente, as comisses de censura estavam em processo de reorganizao e, de certa forma, procurava-se pr ordem na sua atividade, separando a funo do

    NOTAS

    13 | Ibidem p. 49

    14 | Ibidem, p. 49.

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    censor das presses dos empresrios. A companhia que levou cena esta pea era das mais prestigiadas, mais conceituadas e mais respeitadas no pas. O facto de esta pea ser proposta pela companhia Amlia Rey Colao-Robles Monteiro era, quanto bastasse, para apaziguar os receios dos censores. Maria Barroso15, a atriz que, na altura, encarnava o papel de Adela, sustenta a sua convico de que os censores no tero compreendido o alcance da pea, nem a crtica social e poltica feita ao autoritarismo16.

    3. A censura em Portugal nos anos 60

    Os anos 60 correspondem ao incio do declnio do salazarismo. Vrios fatores contriburam para a situao. As presidenciais de 1958 marcam um impacto na vida poltica do pas. Nunca, at ento, um candidato contra o regime tinha afrontado diretamente Salazar. Humberto Delgado rene toda a oposio, recolhe um tumultuoso apoio popular, faz declaraes pblicas estrondosas e corre o pas de norte a sul numa intensa campanha eleitoral completamente desconcertante para o regime. A farsa eleitoral colocou Amrico Tomaz na Presidncia, mas simultaneamente regista-se o fim das eleies presidenciais, em resultado de uma alterao na Constituio que cria um colgio eleitoral para o efeito (Rosas, 1994: 199).

    O incio da guerra colonial representou um ataque a um dos pilares do salazarismo. O primeiro grande abalo deu-se em dezembro de 1961, quando a Unio Indiana invade os territrios de Goa, Damo e Diu. Salazar nunca reconheceu a soberania indiana naqueles territrios que se mantinham representados na Assembleia Nacional. Mas as movimentaes nos fruns internacionais indicavam que estvamos perante uma ofensiva internacional contra o colonialismo portugus. A poltica externa portuguesa permanecia indiferente face s decises da ONU.

    A rebelio no norte de Angola, com incio a 15 de maro de 1961, conduziu a mortes de civis. Salazar determinou para Angola rapidamente e em fora. Esta guerra, depois alargada Guin e a Moambique, obrigou a um reforo dos meios militares e a um recrutamento de contingente de tropas que integrava, obrigatoriamente, todos os jovens do sexo masculino, com mais de 18 anos. Esta guerra transformou-se na lenta agonia do regime, que se prolongar at ao 25 de Abril de 1974.

    Alm do mais, uma srie de acontecimentos evidenciavam a debilidade do regime e demonstraram que a conspirao se fazia tambm do lado de dentro. o caso do assalto ao Santa Maria17, a

    NOTAS

    15 | Maria Barroso foi atriz de cinema e de teatro, diretora do Colgio Moderno e Primeira Dama de Portugal na altura em que Mrio Soares foi Presidente da Repblica.

    16 | Depoimento de Maria Barroso de 3 de Junho de 2013.

    17 | O paquete Santa Maria foi tomado de assalto na madrugada de 22 de Janeiro de 1961 quando navegava nas Carabas. Vinte operacionais, dirigidos por Henrique Galvo, apossam-se dos comandos do navio sequestrando os passageiros, que s sero libertados a 2 de Fevereiro.

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    Abrilada18, o assalto ao quartel de Beja19 e o incio da crise acadmica de Maro de 1962. As crises acadmicas vo ser persistentes ao longo da dcada e vo reunindo diversas correntes ideolgicas, reivindicaes e lideranas. A agitao social foi tambm aumentando e abrangendo diversos setores produtivos.

    Toda esta conjuntura explica o recrudescimento da resposta repressiva do regime. A PIDE refora a sua ateno e procura os lderes da agitao, multiplica a superviso sobre os portugueses atravs de todo o aparelho repressivo: prises, tortura e funcionamento do Tribunal Plenrio. justamente por isso que o aparelho censrio que atuava sobre a imprensa, teatro, cinema, livros, msica e tradues, refina os seus procedimentos. O teatro foi penalizado com uma censura muita mais violenta e sistemtica.

    Os critrios de atuao dos censores foram objeto de um maior rigor, nomeadamente na anlise dos textos, na encenao das peas, na coreografia e na indumentria. Enfim, tudo o que encenao dizia respeito foi submetido a um critrio mais apertado (Cabrera, 2013, 2010, 2009, 2008). A censura muda muito entre 1960 e 1968.

    Uma das primeiras medidas tomadas logo no incio dos anos 60 foi a alterao do presidente da Comisso. Eurico Serra d lugar a Quesada Pastor que define assim as suas diretrizes para a censura ao teatro: Em resumo e respondendo directamente: a bitola tem de ser reduzida20.

    Nesta fase de reforo das medidas repressivas, os censores passam a ter uma ateno especial em relao forma como so tratadas determinadas figuras histricas. Neste sentido, o vogal Caetano Carvalho alerta para a situao da pea D. Leonor Teles e sugere o seguinte:

    convinha efectuar alguns cortes e suprimir certos gestos menos correctos que porventura possam diminuir aos olhos do pblico o facto histrico ou as figuras de que se ocupa essa obra de teatro. Julgo mesmo que dever ser motivo de preocupao da Comisso evitar a todo o transe que representaes de peas desse gnero possam induzir os espectadores em interpretaes errneas21.

    O presidente determina tambm que a Comisso passe a funcionar em grupos de trs vogais que devem reunir todos os dias da semana, menos quarta-feira, dia destinado reunio plenria da Comisso. Alm disso, as peas reprovadas pelo vogal responsvel pela sua leitura deviam ser apresentadas ao presidente que analisaria a necessidade de um novo exame22.

    Diversos indicadores comprovam a dureza da atuao dos censores

    NOTAS

    18 | Golpe de Estado liderado por Jlio Botelho Moniz, ministro da Defesa e figura importante na hierarquia militar, que decorreu entre 11 e 13 de Abril de 1961. O objetivo da movimentao era derrubar Salazar, liberalizar e modernizar o pas.

    19 | Golpe liderado pelo capito Varela Gomes e por Manuel Serra (comandante da parte civil), que ocorreu na noite de 31 de Dezembro de 1961. Trata-se de uma intentona planeada com o acordo do general Humberto Delgado. Embora no exlio, na sequncia das eleies de 1958, Delgado chegou a entrar no pas clandestinamente para levar a cabo este golpe militar que resultaria em fracasso.

    20 | Livro n. 10, Actas da Comisso de Censura, Acta de 29 de Maro de 1960. SNI-IGE/ANTT

    21 | Livro n. 10, Actas da Comisso de Censura, Acta de 5 de Abril de 1960. SNI-IGE/ANTT

    22 | Livro n. 10, Actas da Comisso de Censura, Actas de 29 de Maro e de 5 de Abril de 1961.

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    de teatro: a interveno direta do presidente e vice-presidente da Comisso, indicaes sobre medidas repressivas e conversas intimidatrias com empresrios e atores, a comparncia constante dos censores nas representaes das peas e revistas mais polmicas, a presena nos teatros do presidente e vice-presidente, as constantes orientaes acerca de procedimentos, a suspenso de quadros, o aumento dos cortes e das proibies, a identificao das peas e revistas que s deviam ser representadas em Lisboa e no Porto. Eram, ainda, proibidas todas as peas que evocassem a guerra e os seus malefcios, bem como todas as que tivessem intenes pacifistas.

    A guerra colonial impunha determinadas normas censrias que se associavam aos aspetos de natureza moral (comprimento das saias, excesso de maquilhagem, partes do corpo descobertas, amores ilcitos, referncias a questes sexuais), de natureza religiosa, de natureza social (descontentamentos, tumultos, contestao), para alm da falta de respeito s figuras da Histria de Portugal. Nestas circunstncias, os censores propem alteraes aos textos, mudam os ttulos das peas, eliminam personagens, corrigem dilogos, intervm nos cenrios, na coreografia, no guarda-roupa, na maquilhagem, nos gestos e no tom de voz de atores, cortam alguns textos e probem outros.

    O presidente da Comisso, Quesada Pastor, no tem dvidas de que uma pea que de um autor comunista, nunca pode ser uma pea inocente, porque o autor no far arte pela arte, mas ter sempre certamente em vista outros fins o que implica a necessidade de redobrada ateno para tais casos23.

    A Comisso entrou num processo de delrio repressivo e excesso de zelo: peas como o Jardim das Cerejas de Anton Tchecov eram sucessivamente reapreciadas por um nmero cada vez maior de censores; Jlio Csar de William Shakespeare, O Comprador de Horas, uma comdia em trs atos de Jacques Deval, Bruscamente no Vero Passado de Tennessee Williams, so proibidas por no ser possvel extirpar-lhe os inconvenientes fundamentais com vista aprovao24.

    4. El Triciclo de Fernando Arrabal

    Arrabal nasce em Mellila em 1932 e em Madrid, em 1952, que comea a escrever as primeiras peas de teatro.

    Em 1952/53 escreve El Triciclo (inicialmente chamada Los Hombres del Triciclo), envia a obra ao prmio cidade de Barcelona e ganha.

    NOTAS

    23 | Livro n. 12, Actas da Comisso de Censura, Acta de 17 de Fevereiro de 1965. SNI-IGE/ANTT

    24 | Livro n. 12, Actas da Comisso de Censura, Acta de 24 de Maro de 1965. SNI-IGE/ANTT

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    Neste mesmo ano termina o segundo e terceiro anos de Direito. Em 1954 segue para Paris boleia para a assistir pea Me Coragem e consegue entrar no teatro de Sarah Bernard sem pagar. A partir de 1955 vai ficando em Paris. O seu primeiro exlio fisiolgico (contrai tuberculose), a seguir moral e, depois, esttico, como reao contra a literatura subjugada que ento se fazia em Espanha (Berenguer: 1994). A sua longa convalescena no o impede, porm, de escrever.

    Los Hombres del Triciclo estreia-se em 1958, no Teatro de Bellas Artes em Madrid, numa sesso nica organizada pelo grupo Dido, dirigido por Josefina Snchez Pedreo. uma obra que se situa num lugar indeterminado, mas que se pode intuir tratar-se da Espanha franquista sada da guerra civil. O sistema franquista ostracizava todos os que no se mostravam favorveis situao, ou que no estivessem do lado certo da guerra civil. Arrabal est do lado errado segundo o franquismo. A sua rutura com o franquismo produce tambin una forma paulatina irreversible, un tipo especfico de consciencia de exilio. Este exilio es inevitable porque el sistema es impenetrable, intransformable y niega todo el futuro al sector social de los marginados. Su discurso es comprensible para los no adictos, por eso surge la respuesta literaria de los marginados fuera de Espaa (Berenguer, 1994: 39).

    So quatro as personagens principais nesta pea (Apal, Climando, Mita e o Velho da Flauta). Climando, que lidera o grupo, pretende usar o triciclo como forma de sustento, mas a exigncia do pagamento do aluguer leva-o a um homicdio. Entra num estado de alheamento e nem se apercebe da chegada da polcia. Mita afasta-se do mundo e procura o suicdio, mas recompe-se quando se confronta com o dinheiro como forma de sobrevivncia. Apal dorme o tempo todo, eficaz quando decide atuar, mas revela-se incapaz de pactuar e argumentar. O Velho da Flauta assume a sua marginalidade, mas faz a mediao entre os dois mundos e ope-se radicalizao de Climando. Este grupo de marginalizados, apresentado por Arrabal, mostra que a alternativa a um regime opressor como o franquismo s possvel rompendo com o sistema.

    Segundo Berenguer (1994), Arrabal transpe para esta obra a impossibilidade da comunicao com uma ideologia e uma praxis poltica estranha e inacessvel. Arrabal usa uma estratgia em que as formas de comunicao, gestos, palavras e atitudes se tornam incompreensveis. este ato contnuo de comunicao falhada que Berenguer designa como la Ceremonia (Berenguer, 1994: 40). Esta mediacin esttica funciona como estructura significativa para materializar la falta de perspectiva de una comunidad, que en ltima instancia recurre a la utilizacin de un sistema repetitivo e inadecuado para expresar la falta total de futuro en su relacin con el universo que parece incomprensible porque condena a la

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    desaparicin (Berenguer, 1994: 41).

    El Triciclo d entrada nos servios de censura, pela primeira vez, a 29 de Maro de 1968. Trs grupos teatrais submetem a obra ao processo censrio para obter licena de representao: o Teatro Universitrio do Porto, o Grupo Cultural e Desportivo da Companhia Nacional de Navegao e o Colgio Universitrio Pio XII.

    O parecer definitivo dado a 16 de Abril de 1968. No relatrio l-se:

    H poucas semanas apreciei esta pea para ser representada no texto original, por uma companhia de teatro de universitrios espanhis em representao nica, num festival promovido para universitrios pelo Colgio Pio XII. Fora deste contexto, entendo reprovar a pea25.

    El Triciclo reprovada em Portugal. A nica autorizao dada ao Colgio Universitrio Pio XII para uma nica representao, no contexto de um festival, onde ia ser exibida pelo grupo de Teatro Universitrio de Valladolid.

    Esta pea reprovada, quer pelas posies polticas do autor, quer tambm pelo contedo. No julgamento dos censores uma obra sem sentido, incompreensvel e com uma mensagem de anarquia contra a sociedade estabelecida. Afinal, as personagens so ladres, marginais, no demonstram temor perante as autoridades e, para alm do homicdio, h um possvel suicdio. Toda a situao degradante aos olhos dos valores do Estado Novo: esta obra no respeita a ordem, a obedincia, o temor a Deus e escarnece da autoridade.

    5. Las Quinas de Portugal de Tirso de Molina

    Las Quinas de Portugal uma comdia de um importante autor espanhol do sculo XVII Tirso de Molina. Organizada em trs atos, ter sido escrita em 1638, dois anos antes da restaurao da independncia portuguesa. O pedido de autorizao para ser apresentada na Rdio Televiso Portuguesa (RTP) deu entrada na Inspeco dos Espectculos, a 4 de maro de 1968 e foi reprovada vinte e quatro dias mais tarde26.

    A comdia passa-se no tempo da reconquista crist e relata algumas batalhas onde, umas vezes eram os cristos vencedores, outras os mouros. Vrias peripcias burlescas envolvem, ao longo de trs atos, personagens como Afonso Henriques, Egas Moniz, Geraldo Sem Pavor, Gonalo Mendes da Maia, Pedro Afonso, Ismael, que simboliza o poder muulmano e uma outra personagem cmica, Brito, que est sempre presente e vai sofrendo mudanas de

    NOTAS

    25 | Processo N. 18653, Processos de Censura. SNI-DGE/ANTT

    26 | Processo N.18629, Processos de Censura. SNI-DGE/ANTT

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    personalidade ao longo da ao.

    Brito, que quem tem mais falas em toda a comdia, apresenta-se no incio como um pastor ignorante e bronco, encarna depois a personagem de um mouro cheio de humor e, finalmente, aparece como um cmico soldado das tropas vencedoras de Afonso Henriques (Roig, 2006). Brito a personagem simblica do processo de reconquista crist e muulmana, uma vez que se posiciona em conformidade com os vencedores das tropas em litgio.

    O processo foi distribudo ao censor Antnio Batalha Ribeiro. No primeiro e segundo relatrios l-se:

    Relatrio 1 Li a pea. Deve ser lida por outro vogal. Julgo resultar num espectculo na TV sem o mnimo de decoro que envolve figuras da histria ptria [Antnio Batalha Ribeiro].Relatrio 2 Julgo que no de autorizar esta pea para televiso. Alm dos receios manifestados pelo Exmo vogal que me antecedeu na leitura, certos aspectos sero completamente inintelegveis pelo grande pblico e outros chocantes no plano moral. Por outro lado no me pareceu oportuno, neste momento, fazer reviver nos termos em que se faz na pea, a luta contra os mouros [Assinatura ilegvel]27.

    O primeiro vogal, Batalha Reis, usa a palavra decoro no sentido de compostura, comedimento e at honestidade, para qualificar a obra em geral e, seguidamente, tropea no envolvimento das figuras da histria ptria. que o Estado Novo sempre usou determinadas figuras histricas como agentes simblicos e modelos idealizados, cujo exemplo devia ser seguido. Estas figuras so usadas como reserva identitria do carter, fora, raa e tenacidade dos portugueses. Representam o perfil idealizado do homem portugus e dos modelos de virtude para a juventude. O Estado Novo favorecia uma Histria de Portugal feita de heris, atos clebres, grandes personagens e grandes acontecimentos. Uma histria ideolgica construda com vista a legitimar o regime, a justificar e apontar os caminhos do futuro e a educar a juventude.

    A desconsiderao para com as figuras histricas era, portanto, um ilcito intolervel, tanto mais que se tratava dos fundadores da nacionalidade.

    Esta passagem refere-se, justamente, ponderao dos companheiros de Afonso Henriques, face aos perigos que so esperados no grande confronto que ser a batalha de Ourique:

    (Fala Gonzalo (Mendes da Maia) a Afonso Henriques)Gran seor: temeridadesQue traen consigo imposiblesCausan desaires terriblesY anuncian adversidades.

    NOTAS

    27 | Processo N.18629, Processos de Censura. SNI-DGE/ANTT

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    Cinco ejrcitos estn a nuestra vista de infieles;contra tantos, qu laurelestrece mil conseguirn?De doscientos y cincuentamil moros consta el blasfemo campo que, de extremo a extremo, sumas que agotan su cuentacubren valles y collados,como nosotros nacidosen nuestra Espaa, escogidos y en guerra experimentados28.

    No segundo parecer o censor corrobora inteiramente a opinio do seu colega, e acrescenta que o grande pblico (refere-se ao pblico de televiso), no ia compreender a pea. Os censores viam os portugueses em geral como pessoas simples e de fraca inteligncia. Mas refere tambm que havia aspetos chocantes do ponto de vista moral, provavelmente relativos forma como Brito se vai posicionando ao longo da pea pastor, mouro, homem de Afonso Henriques, enfim, um percurso tambm itinerante do ponto de vista religioso, de manifesta falta de f, mas comum realidade de uma poca onde os avanos e recuos no territrio Ibrico eram frequentes e os camponeses no mais faziam do que se refugiar junto dos novos senhores.

    O excerto do III ato acima transcrito refere-se ao conselho dado por Gonalo Mendes da Maia, conhecido como o Lidador, um dos mais importantes companheiros de armas, sempre presente ao lado de Afonso Henriques. Gonalo faz avisos srios acerca dos grandes perigos que esperam os portugueses na luta contra o enorme exrcito de muulmanos, bem armados e mobilizados para a defesa do seu territrio.

    Esta ao desmobilizadora, que apresenta a pequenez do exrcito portugus face ao muulmano, cheio de recursos, exorta a situao do passado que, aos olhos do segundo censor, interpretado como uma metfora do presente: a guerra colonial que Portugal vivia, a forte influncia muulmana em frica, o desnimo face ao isolamento de Portugal, j que todos os fruns internacionais se tinham manifestado contra a guerra e pela independncia das colnias portuguesas. Salazar, como Afonso Henriques, estava sozinho, mas o desfecho da situao colonial no seria como o da vitoriosa batalha de Ourique. No ano de 1968, altura em que esta pea proibida, estava j bem delimitada a fora, o poder e a organizao blica do PAIGC, o que significa que a guerra na Guin estava perdida.

    Assim, ao endurecimento da guerra colonial em 1968, correspondia um rigor acrescido em relao a tudo o que a ela dissesse respeito

    NOTAS

    28 | Las Quinas de Portugal, Ato III 1580-1620.

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    nas artes cnicas e cinfilas. Assim se explica que a palavra guerra fosse proibida, como eram proibidas peas de teatro ou filmes pacifistas.

    H, no entanto, um outro aspeto que est presente na deciso dos censores: as relaes entre Portugal e Espanha. Aparentemente eram as melhores, j que havia proximidade ideolgica. Porm verificava-se um enorme afastamento quanto questo colonial. A entrada da Espanha na ONU, em 1963, fez com que esta deixasse de precisar de Portugal. Paralelamente, entre 1955 e 1957, Espanha entra numa espiral de crescimento econmico, afirma-se como potncia ibrica, e promove e dinamiza relaes internacionais. Pelo contrrio, Portugal sente-se cada vez mais isolado, sobretudo aps o incio da guerra colonial (Sardica, 2013: 209-210).

    No era por isso bem-vinda a apresentao em televiso de uma obra de um clssico espanhol que, de forma cmica e provocatria, se referia, de uma s vez, independncia de Portugal, questo colonial e aos heris da histria nacional do Estado Novo.

    6. Concluso

    A censura ao teatro em Portugal atravessou todo o Estado Novo. Ao longo das dcadas verificou-se um aperfeioamento da organizao, dos mtodos e do trabalho dos censores. A partir de 1947 inicia-se um perodo de reorganizao que dar os seus frutos ao longo da dcada de 50.

    So ento produzidas novas leis, novos regulamentos e novas orientaes mais restritivas e exigentes e, em simultneo, o recrutamento de novos censores obedeceu a critrios mais estritos em matria de preparao acadmica. As Actas da Comisso de Censura corroboram estas preocupaes.

    As trs obras de autores espanhis foram abordadas de forma diferente pela censura. La Casa de Bernarda Alba aprovada em 1947, com autorizao para ser representada no Teatro Nacional pela mais prestigiada companhia de teatro portuguesa (Amlia Rey Colao-Robles Monteiro). O facto de o autor, Federico Garca Lorca, ser visto pelo Estado Novo como um republicano prximo da ideologia comunista, morto s mos dos franquistas, no bastou para proibir a pea. Muito provavelmente, os censores fizeram uma leitura da obra centrada na figura de Bernarda, na sua dureza, na sua ao desptica com as filhas, na obsesso no cumprimento da religio, dos rituais de luto e de uma moral que defende acima de tudo a obedincia tradio e ao cristianismo. Estes eram valores

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    comuns ao Estado Novo e os censores conheciam-nos melhor que ningum, j que eles eram os fiis guardies desses princpios.

    O mesmo no se passa com as outras duas peas analisadas neste trabalho. Quer El Triciclo de Arrabal, quer Las Quinas de Portugal de Tirso de Molina so proibidas. No caso de El Triciclo o autor era mal visto pelos censores e a pea valorizava uma srie de comportamentos anrquicos, aparentemente sem sentido, mas que constituam uma crtica ao sistema capitalista e explorao do homem pelo homem.

    Em Las Quinas de Portugal abordam-se questes consideradas sensveis na altura: a guerra colonial e a ligao desta com as lutas entre mouros e cristos. O facto de se tratar de uma comdia era tambm uma objeo a qualquer representao, sobretudo por ridicularizar os heris nacionais, e o Milagre de Ourique, mito fundador que acentuava as preferncias das autoridades celestiais pelos portugueses.

    As ditaduras so sempre regimes muito fechados, com uma ausncia de sentido de humor, e que procuram, por todos os meios, defenderem-se da crtica, da desaprovao e da condenao. Certos das suas verdades, impedem, por todos os meios, a audio de outras vozes. Promovem unanimidades foradas e forjadas pelas organizaes repressivas que criavam para cada situao que lhes podia, hipoteticamente, fugir ao controlo.

    A censura, aqui estudada em relao ao teatro, foi um dos pilares da ditadura de Salazar e Caetano. Os autores portugueses foram as principais vtimas deste processo. O Estado Novo temia a proximidade, a empatia e a cumplicidade que o teatro em portugus gerasse junto do pblico propiciando a sua consciencializao. No entanto havia outros autores estrangeiros suprimidos, como era o caso de Bertold Brecht, e outros ainda que viam os seus textos mutilados, ao ponto de os encenadores desistirem da encenao, porque de to cortados, deixavam de fazer sentido.

    Trazer memria estes procedimentos um dos objetivos enunciados neste trabalho. Pretendemos no deixar que estes propsitos do passado caiam num presente esquecimento contnuo, bem como evitar complacncias com aqueles que, em grande parte do sculo XX, puderam definir o que deviam os portuguese ver, ouvir e ler.

    A censura teve efeitos profundos no tecido cultural, na formao, no pensamento no agir dos portugueses, mas sobretudo a censura mutilou a criatividade e destruiu a diversidade. A aceitao e valorizao da diversidade normalmente associada liberdade

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    de expresso e de pensamento e da sua manifestao pelas artes. Durante a poca de Salazar e Caetano so impostos modelos, prottipos e esteretipos como valores nicos que esto presentes na vida pblica e privada, nas empresas e no Estado. So tambm criadas estruturas estatais que zelam para que no hajam desvios nem contaminao de ideias perniciosas para o regime. Portanto, esta ditadura destruiu intencionalmente a diversidade que nunca poder ser reposta pela memria. Trata-se de uma perda definitiva. Aqueles a quem foi sonegada a liberdade de expresso e a criatividade poca no tero segunda oportunidade. H uma participao criativa que s ali, naquele momento, e em nenhum outro podia fazer sentido.

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