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CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO stricto sensu - MESTRADO EM DIREITO IZABEL CRISTINA DA SILVA DOS SANTOS DEGGERONE DECADÊNCIA E PRESCRIÇÃO DO DIREITO DO FISCO: PERSPECTIVA PRINCIPIOLÓGICA E SUSTENTABILIDADE EMPRESARIAL CURITIBA 2012

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CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO stricto sensu - MESTRADO EM DIREITO

IZABEL CRISTINA DA SILVA DOS SANTOS DEGGERONE

DECADÊNCIA E PRESCRIÇÃO DO DIREITO DO FISCO: PERSPE CTIVA

PRINCIPIOLÓGICA E SUSTENTABILIDADE EMPRESARIAL

CURITIBA 2012

IZABEL CRISTINA DA SILVA DOS SANTOS DEGGERONE

DECADÊNCIA E PRESCRIÇÃO DO DIREITO DO FISCO: PERSPE CTIVA

PRINCIPIOLÓGICA E SUSTENTABILIDADE EMPRESARIAL

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba, como requisito parcial para a obtenção do Título de Mestre em Direito.

Orientador: Professor Doutor José Roberto

Vieira

CURITIBA

2012

Presidente: _________________ __________________ Professor Doutor José Roberto Vieira

Orientador ___________________________________ Professor Do utor Daniel Ferreira ___________________________________ Professor Doutor Octavio Campos Fischer

Curitiba, de de 2 012.

A Deus, razão da minha força.

Aos meus pais, Edmilson e Maria de Fátima, expressões do sentimento que

não tem princípio nem fim, que sempre existiu e existirá.

A Jeverson Deggerone, pelo amor e grande exemplo de paciência e

compreensão.

AGRADECIMENTOS

Os meus sinceros agradecimentos ao Professor José Roberto Vieira,

que pacientemente dividiu o seu tempo e conhecimento, e cujos ensinamentos

superaram os muros da academia. Foi uma lição no silêncio, na pausa, na

calma e na atenção. Foi e será o orgulho do peito insuflado no momento de

declarar que parte da minha passagem acadêmica teve como diretriz as suas

lições.

Ao meu amado irmão, de quem eu extraio o exemplo de retidão

inabalável, que me faz desejar ser igual, que me fez enxergar, talvez até sem

saber, que perseverar é qualidade dos fortes.

A Juliano Eduardo Lirani, que mora no meu coração, cujas mãos e

palavras tantas vezes me levantaram, e tantas outras vezes apoiaram os meu

sonhos.

A minha amiga querida Camila Colognese, que numerosas vezes

desacelerou os meus passos, quando eles precisavam ser mais lentos.

A Wilson Carlos de Campos Filho, que apesar de jovem na idade, é um

idoso no conhecimento e maturidade na área do Direito, e com quem eu

consumi muitos argumentos para, arduamente, convencer e justificar os meus

posicionamentos.

Ao meu companheiro fiel da última década, Reader’s Black Simple, que

ocupou a cadeira ao lado, nos dias e nas noites de desenvolvimento do

presente trabalho. Símbolo da doação do sentimento divino.

Lançados num vasto mar aberto, sem cartas de navegação e com todas as

boias de sinalização submersas e mal visíveis, só nos restam duas opções: ou

nos alegramos com as empolgantes perspectivas de novas descobertas ou

podemos tremer de medo de morrer afogados.

(Zygmunt Bauman)

RESUMO

O objeto do presente estudo é o exame da decadência e da prescrição no âmbito tributário, relativamente à esfera jurídica do Fisco, ou seja, ao seu direito subjetivo de constituir o crédito tributário e de ajuizar a ação executiva fiscal quando não satisfeito o crédito a que tem direito, respectivamente. Essa análise, embora aprofunde-se nas regras que conformam esses institutos, com o enfrentamento de questões polêmicas a elas inerentes, a essa atividade não se limita. Muito mais do que descrever regras, existe a preocupação de apreciar, a partir de fundamentos extraídos da doutrina e da ordem jurídica nacional, se na relação entre o Estado e as organizações econômicas empresariais, existem argumentos que embasam a função social da empresa, e ainda, se, como integrante da estrutura infraconstitucional, essas regras de decadência e de prescrição podem ser consideradas como instrumentos jurídicos que alicerçam a ideia de proteção e manutenção econômica empresarial, porque a ela se atribui o caráter de cumpridora de função social, e, por isso, importante se faz a sua sustentabilidade econômica. Nesse desígnio, é realizado o cotejo entre o Princípio da Segurança Jurídica, na visão multidimensional, com as regras da decadência e da prescrição, de forma a averiguar se elas satisfazem, minimamente, os aspectos e dimensões daquele Princípio, de maneira a, efetivamente, refletir segurança jurídica, pois, se assim é, pode-se construir a ideia afirmativa de que aquelas regras servem, ao ordenamento jurídico infraconstitucional, como instrumentos de proteção e manutenção econômica empresarial. Em caso positivo, de uma conformação, segundo a qual existe uma estruturação jurídica que concede o suporte tutelador para as organizações empresariais, como reconhecimento do exercício da sua função social, a Administração Pública deve, em razão desse relevante aspecto, pautar o exercício das suas atividades, o que abrange a interpretação e a aplicação das leis.

Palavras-chave: Decadência Tributária, Prescrição tributária, Sustentabilidade Econômica Empresarial, Função Social da Empresa, Segurança Jurídica, Interpretação e Aplicação da Lei pela Administração Pública.

ABSTRACT

The aim of the present work is the examination of caducity and prescription on tax law field, related to the legal sphere of the exchequer, in other words, their subjective right to constitute the tax credit and to bring before the court a fiscal executive lawsuit, when not satisfied its credit, respectively. This analysis, although examining carefully the rules that compose these institutes, and facing controversial issues inherent to them, is not limited to this activity. Much more than describe rules, there is the concern to appreciate, with the foundations of the juridical doctrine and the national legal system, if, in the relationship between the State and economic business organizations, there are arguments that support the social function of the company, and also if, as part of the legal system, these rules of tax caducity and prescription can be considered as legal instruments that stands the idea of protecting and maintaining economic enterprises, since they show the character of executing their social function, and, therefore, is important their economic sustainability. In this purpose, a comparison is made between the Principle of Legal Security, in its multidimensional vision, with the rules of tax caducity and prescription, in order to investigate whether they meet, minimally, the aspects and dimensions of that principle, and in order to reflect, effectively, the legal security, because, if so, we can construct the idea and claim that those rules serve the legal system, as instruments of economic protection and maintenance to the enterprises. If so, there is a legal structure that provides support to the business organizations, as recognition of their social function, and the Administration, for the reason of this important aspect, has to rule the exercise of their own activities, which includes the interpretation and the application of laws.

Keywords: Tax Caducity. Tax Prescription. Economic Sustainability of the Enterprises. Social Function of the Company. Legal Security. Interpretation of Law. Application of Law.

RESUMO ...................................................................................................................... 7

ABSTRACT .................................................................................................................. 8

INTRODUÇÃO ................................................................... Erro! Indicador não definido.

CAPÍTULO 1 – SUSTENTABILIDADE ECONÔMICA EMPRESARIAL .. Erro! Indicador não definido.

1.1 SUSTENTABILIDADE NA RELAÇÃO ENTRE O ESTADO E A EMPRESA ...... Erro! Indicador não

definido.

1.2 O PAPEL DO ESTADO NA SUSTENTABILIDADE ECONÔMICA EMPRESARIAL . Erro! Indicador

não definido.

1.3 VISÃO ESTATAL DAS ORGANIZAÇÕES ECONÔMICAS ............. Erro! Indicador não definido.

1.3.1 Papel Estatal Concentrador ............................................. Erro! Indicador não definido.

1.3.2 Mudança da Postura Concentradora Estatal: A Empresa com o Papel de Cooperação

para o Desenvolvimento Econômico e Social .......................... Erro! Indicador não definido.

1.4 FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA ............................................... Erro! Indicador não definido.

1.5 FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA COMO REFLEXO DA DIRETRIZ CONSTITUCIONAL ........ Erro!

Indicador não definido.

1.6 PERSPECTIVA PRINCIPIOLÓGICA DA ORDEM ECONÔMICA CONSTITUCIONAL E A FUNÇÃO

SOCIAL DA EMPRESA .................................................................... Erro! Indicador não definido.

1.6.1 Noções Introdutórias ..................................................... Erro! Indicador não definido.

1.6.2 O Princípio da Livre Iniciativa .......................................... Erro! Indicador não definido.

1.6.3 O Princípio da Livre Concorrência ................................... Erro! Indicador não definido.

1.6.4 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana ..................... Erro! Indicador não definido.

1.6.5 Princípio da Preservação da Empresa ............................. Erro! Indicador não definido.

CAPÍTULO 2 – ASPECTOS INTRODUTÓRIOS E NUCLEARES À C OMPREENSÃO DA DECADÊNCIA E DA PRESCRIÇÃO EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA ... Erro! Indicador não definido.

2.1 – DELIMITAÇÃO DO OBJETO .................................................. Erro! Indicador não definido.

2.2 TEMPO: UM ASPECTO NUCLEAR DO DIREITO........................ Erro! Indicador não definido.

2.3 FUNDAMENTOS DA DECADÊNCIA E DA PRESCRIÇÃO NO ÂMBITO TRIBUTÁRIO .......... Erro!

Indicador não definido.

2.4 - PERSPECTIVAS PRINCIPIOLÓGICAS DA DECADÊNCIA E DA PRESCRIÇÃO NO ÂMBITO

TRIBUTÁRIO.................................................................................. Erro! Indicador não definido.

2.4.1 Noções Introdutórias ...................................................... Erro! Indicador não definido.

2.4.2 Princípio da Legalidade ................................................... Erro! Indicador não definido.

2.4.3 Princípio da Segurança Jurídica ....................................... Erro! Indicador não definido.

2.4.3.1 Segurança Jurídica numa Visão Multidimensional .. Erro! Indicador não definido.

2.5 - DIFERENÇAS PRELIMINARES ENTRE A DECADÊNCIA E A PRESCRIÇÃO Erro! Indicador não

definido.

2.6 DECADÊNCIA E PRESCRIÇÃO NUMA ANÁLISE COMO NORMA GERAL E ABSTRATA E

NORMA INDIVIDUAL E CONCRETA ............................................... Erro! Indicador não definido.

2.7 – COMPETÊNCIA PARA LEGISLAR EM MATÉRIA DE DECADÊNCIA E DE PRESCRIÇÃO ... Erro!

Indicador não definido.

2.7.1 Noções Introdutórias ...................................................... Erro! Indicador não definido.

2.7.2 Lei Complementar ........................................................... Erro! Indicador não definido.

2.7.3 Norma Geral Tributária e as Interpretações Doutrinárias ............. Erro! Indicador não

definido.

2.7.3.1 Perspectiva da Corrente Tricotômica ...................... Erro! Indicador não definido.

2.7.3.2 Perspectiva da Corrente Dicotômica ....................... Erro! Indicador não definido.

2.7.4 - A Possibilidade de Fixação dos Prazos Decadencial e Prescricional por Norma Geral

de Direito Tributário ................................................................ Erro! Indicador não definido.

2.7.4.1 - Fixação do Prazo Segundo a Corrente TricotômicaErro! Indicador não definido.

2.7.4.2 Fixação do Prazo Segundo a Corrente Dicotômica .. Erro! Indicador não definido.

2.7.5 - A Possibilidade de Lei Ordinária Local Tratar de Prazos Decadenciais e

Prescricionais ........................................................................... Erro! Indicador não definido.

2.8 CRÉDITO TRIBUTÁRIO ............................................................ Erro! Indicador não definido.

2.9 LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO ................................................... Erro! Indicador não definido.

2.9.1 Noções Introdutórias ...................................................... Erro! Indicador não definido.

2.9.2 Demarcação do Conceito de Lançamento Tributário: Como Norma Individual e

Concreta ................................................................................... Erro! Indicador não definido.

2.9.3 Modalidades de Lançamento .......................................... Erro! Indicador não definido.

2.9.4 A Natureza Jurídica do Lançamento ............................... Erro! Indicador não definido.

CAPÍTULO 3 – DECADÊNCIA E PRESCRIÇÃO DO DIREITO DO FISCO ........... Erro! Indicador não definido.

3.1 NOÇOES INTRODUTÓRIAS ...................................................... Erro! Indicador não definido.

3.2 DECADÊNCIA DO DIREITO DO FISCO ...................................... Erro! Indicador não definido.

3.2.1 As Normas Gerais e Abstratas da Decadência do Direito do Fisco. Erro! Indicador não

definido.

3.2.1.1 Noções Introdutórias ............................................... Erro! Indicador não definido.

3.2.1.2 – As Regras Conformadoras das Normas Gerais e Abstratas da Decadência do

Direito do Fisco .................................................................... Erro! Indicador não definido.

3.2.1.2.1 A Norma Geral e Abstrata da Regra de Decadência do Direito de Constituir a

Obrigação e o Crédito tributário sem o Pagamento Antecipado .... Erro! Indicador não

definido.

3.2.1.2.2 A Norma Geral e Abstrata da Regra de Decadência do Direito de Constituir a

Obrigação e o Crédito tributário sem Pagamento Antecipado e com a Notificação

Administrativa .................................................................. Erro! Indicador não definido.

3.2.1.2.3 A Norma Geral e Abstrata da Regra de Decadência do Direito de Constituir a

Obrigação e o Crédito tributário com o Pagamento Antecipado .... Erro! Indicador não

definido.

3.2.1.2.3.1 A Homologação Expressa do Fisco ............. Erro! Indicador não definido.

3.2.1.2.3.2 “Lançamento por Homologação” sem o Pagamento Antecipado .... Erro!

Indicador não definido.

3.2.1.2.4 A Norma Geral e Abstrata da Regra de Decadência do Direito de Constituir a

Obrigação e o Crédito tributário com Pagamento Antecipado com Dolo e com

Notificação. ...................................................................... Erro! Indicador não definido.

3.2.1.2.5 - A Norma Geral e Abstrata da Regra de Decadência do Direito de Constituir

a Obrigação e o Crédito tributário com Nulidade do Lançamento Anterior. ......... Erro!

Indicador não definido.

3.2.1.2.6 - A Norma Geral e Abstrata da Regra de Decadência do Crédito do Fisco.

......................................................................................... Erro! Indicador não definido.

3.2.2 O Aparente Equívoco Legislativo do Artigo 156, V, do CTN ............ Erro! Indicador não

definido.

3.2.3 A Polêmica “Interrupção” do Prazo Decadencial ............ Erro! Indicador não definido.

3.2.4 Suspensão da Exigibilidade do Crédito Tributário: a Falsa Compreensão de

Suspensão do Prazo Decadencial ............................................. Erro! Indicador não definido.

3.2.5 A Revisão do Lançamento e o Prazo Decadencial........... Erro! Indicador não definido.

3.2.6 A Tese dos Dez Anos de Decadência do Direito do Fisco em Caso de Tributos Sujeitos

à Antecipação de Pagamento .................................................. Erro! Indicador não definido.

3.3 PRESCRIÇÃO DO DIREITO DO FISCO ................................... Erro! Indicador não definido.

3.3.1 As Normas Gerais e Abstratas da Prescrição do Direito do Fisco ... Erro! Indicador não

definido.

3.3.1.1 A Definitividade do Crédito Tributário ..................... Erro! Indicador não definido.

3.3.1.2 A Exigibilidade do Crédito Tributário ....................... Erro! Indicador não definido.

3.3.1.2 As Regras Conformadoras das Normas Gerais e Abstratas da Prescrição do

Direito do Fisco .................................................................... Erro! Indicador não definido.

3.3.1.2.1 A Norma Geral e Abstrata da Regra de Prescrição do Direito de Cobrar

Judicialmente o Crédito Tributário: Constituição pelo Contribuinte, sem Pagamento

Antecipado ....................................................................... Erro! Indicador não definido.

3.3.1.2.2 A Norma Geral e Abstrata da Regra de Prescrição do Direito de Cobrar

Judicialmente o Crédito Tributário: Constituição pelo Contribuinte, e sem Pagamento

Antecipado, com Causa de Suspensão Antes do Prazo de Pagamento .. Erro! Indicador

não definido.

3.3.1.2.3 A Norma Geral e Abstrata da Regra de Prescrição do Direito de Cobrar

Judicialmente o Crédito Tributário: Constituição pelo Fisco ........... Erro! Indicador não

definido.

3.3.1.2.4 A Norma Geral e Abstrata da Regra de Prescrição do Direito de Cobrar

Judicialmente o Crédito Tributário: Constituição pelo Fisco, com causa de Suspensão

Antes do Prazo de Pagamento ......................................... Erro! Indicador não definido.

3.3.1.2.5 A Norma Geral e Abstrata da Regra de Prescrição do Direito de Cobrar

Judicialmente o Crédito Tributário: com Causa Interruptiva do Prazo .. Erro! Indicador

não definido.

3.3.1.2.6 A Norma Geral e Abstrata da Regra de Prescrição do Direito ao Crédito

Tributário ......................................................................... Erro! Indicador não definido.

3.3.2 A Lei de Execuções Fiscais – Lei Nº 6.830/80 e a Prescrição Tributária . Erro! Indicador

não definido.

3.3.2.1 A Exigibilidade do Crédito e a Hipótese de Suspensão do Prazo Prescricional –

Artigo 2º, §3º ....................................................................... Erro! Indicador não definido.

3.3.2.2 “Prescrição Intercorrente” – artigo 40, “caput” ...... Erro! Indicador não definido.

3.3.2.3 A Impossibilidade de Alegação de Prescrição Intercorrente em Processo

Administrativo e Judicial Tributário ..................................... Erro! Indicador não definido.

3.3.3 Possibilidade de Restituição do Valor pago Mediante a Ocorrência da Prescrição

................................................................................................. Erro! Indicador não definido.

3.4 COTEJO DA DECADÊNCIA E DA PRESCRIÇÃO COM A SEGURANÇA JURÍDICA ............... Erro!

Indicador não definido.

3.4.1 As Regras da Decadência e Prescrição como Instrumento de Proteção e Manutenção

da Atividade Empresarial ......................................................... Erro! Indicador não definido.

CAPÍTULO 4 – A DECADÊNCIA E A PRESCRIÇÃO TRIBUTÁRIA S COMO OBJETO DE INTERPRETAÇÃO ADMINISTRATIVA E A SUSTENTABILIDAD E EMPRESARIAL........................................ .......................... Erro! Indicador não definido.

4.1 INTERPRETAÇÃO ADMINISTRATIVA E SUSTENTABILIDADE EMPRESARIAL ... Erro! Indicador

não definido.

4.2 INTERPRETAÇÃO ADMINISTRATIVA NO ATO DE APLICAÇÃO DA LEI ..... Erro! Indicador não

definido.

CONCLUSÕES .................................................................. Erro! Indicador não definido.

REFERÊNCIAS .................................................................. Erro! Indicador não definido.

13

INTRODUÇÃO

É um desafio pensar o Direito enquanto ordem jurídica estruturada e, a

disposição da tutela de um ou outro bem ou sujeito, quando essa atividade

exige, não a identificação de prescrições normativas que corroborem a

pretendida tese, mas a desconstrução de teorias nascidas com a finalidade de

renegar as conjecturas desse jaez. É uma provocação científica, no sentido de

investigação, cujo caminho, necessariamente, passa pela desconstrução para

chegar à construção.

Essa será a proposta enfrentada no primeiro capítulo, a fim de

demonstrar que o Estado, na sua relação com as organizações econômicas

empresariais, exerce uma influência direta na sua manutenção econômica

estável, ou seja, na sua sustentabilidade. Esse influxo decorre da forma através

da qual o Estado enxerga as organizações empresariais.

Será empreendido esforço no sentido de analisar essa visão estatal no

seu fundamento: a importância de preservar economicamente as organizações

empresariais, porque nelas se divisa a figura cooperativa com o Estado, na

consecução das suas finalidades de desenvolvimento econômico e social. Em

sendo esse o ponto de vista, nasce a estruturação de um plano de tutela

jurídica, porque necessário se faz preservar quem exerce um papel relevante,

ao lado do Estado, numa aliança cuja finalidade é o desenvolvimento

econômico e social.

Se essa é a lente através da qual o Estado enxerga a empresa, como

figura que exerce função socialmente relevante, por essa razão mesma,

justifica-se a estruturação constitucional a partir da qual se extrai o exercício da

função social pelas organizações empresariais. Encara-se, consoante já

mencionado, como desafio, pois não resta explícita a fotografia dessa

estruturação constitucional de exercício de função social, por intermédio de

explícita menção a dispositivos normativos ou composição de fácil

identificação. Faz-se imprescindível valer-se da hermenêutica sistemática.

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Na contramão da doutrina que insiste na inexistência da função social

da empresa, e para cada um dos mais relevantes argumentos denegatórios,

será empreendido esforço no sentido de desconstrução argumentativa, cujos

resultados serão utilizados como reforço de fundamento na sua construção.

Nesse caminho, a atenção ficará por conta da identificação do miolo estrutural,

ou seja, do núcleo constitucional, a partir do qual podemos afirmar a existência

da função social da empresa, o que não se enfrenta, com profundidade, em

obras específicas dedicadas ao assunto.

Na mesma medida, se é identificado esse exercício da função social da

empresa, esquematizada na Carta Constitucional, como reconhecimento da

sua importância na atividade de cooperação com o Estado, no

desenvolvimento econômico e social, será analisado se, na mesma

Constituição Federal de 1988, por consequência, existe uma estruturação que

permite a preservação econômica empresarial, como reflexo do

reconhecimento da sua função social, e se serve como diretriz para tutela e

fomento dessas organizações econômicas.

Esse espírito, estruturado constitucionalmente, deve influenciar e

dirigir, também, o ordenamento jurídico infraconstitucional, que, na edição de

legislações específicas, precisa respeitar essa linha protetiva empresarial.

Nesse sentido constitucional, que dirige e influencia a edição de normativas

infraconstitucionais, para o incentivo, proteção e manutenção econômica

empresarial, em razão do objeto da presente pesquisa ter como foco a análise

das regras conformadoras das normas jurídicas da decadência e da prescrição

tributárias, investigaremos se as disposições que veiculam o seu regramento,

dispostas na Lei nº 5.172/66, Código Tributário Nacional, podem ser

consideradas, também, como instrumentos desse ordenamento

infraconstitucional para proteção, no ambiente jurídico, da manutenção

econômica empresarial, de maneira a afirmar a tutela à empresa, porque nela

se enxerga função social.

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Antes de satisfazer a esse intento, serão expostos, no capítulo

segundo, aspectos relevantes e introdutórios para a compreensão da

decadência e da prescrição tributárias, cuja pretensão será a de trilhar, de

maneira gradativa, o caminho da edificação dos conceitos doutrinários básicos,

fundamentos, diferenças, diretrizes principiológicas com as quais esses

institutos mantêm estreita interligação, de forma a, com solidez, alicerçar o

estudo proposto, subsequentemente, da decadência e da prescrição tributárias.

Mas não somente isso, valer-nos-emos do Princípio da Segurança

Jurídica, especificamente da teoria multidimensional teorizada por HUMBERTO

ÁVILA, na obra “Segurança Jurídica: entre permanência, mudança e realização

no Direito Tributário;” e nela, estudaremos as dimensões da segurança jurídica,

sob o aspecto analítico, com a pretensão de aplicá-las na análise das regras

conformadoras da decadência e da prescrição tributárias.

Esse cotejo será desenvolvido no capítulo terceiro, no qual, antes,

tendo como linha mestra o escólio de EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI,

serão dissecadas todas as seis regras conformadoras das normas gerais e

abstratas da decadência do direito do Fisco; assim como, da mesma maneira,

com as seis regras estruturantes das normas gerais e abstratas da prescrição

tributária. Focaremos as preocupações, também, no estudo das questões mais

polêmicas envolvidas com esses institutos, como a aplicação do prazo para os

ditos “lançamentos por homologação” sem a realização da antecipação do

pagamento, a causa de interrupção que é atribuída ao prazo decadencial, a

tese alargadora do lapso temporal para a formalização do crédito tributário, a

questão da definitividade e a questão relativa à discussão sobre aquilo que a

doutrina chama de prescrição intercorrente.

A proposta de confronto da segurança jurídica, na visão

multidimensional – do capítulo 2 –, aplicada às referidas regras de decadência

e de tributárias – capítulo 3 –, será objeto de atenção e realização ao final,

também, do capítulo 3, do qual se pretende extrair se as referidas regras

refletem o respeito à segurança jurídica, de forma que não se possa negar que

servem ao ordenamento jurídico, somadas a tantos outros dispositivos ou

legislações, como instrumento de tutela jurídica das organizações econômicas

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empresariais; e se corroboram, por isso, aquela construção pretendida no

primeiro capítulo, de que existe uma estruturação jurídica protetiva à empresa,

porque o Estado o enxerga como figura colaboradora, no desenvolvimento

econômico e social, e, portanto, realizadora de função socialmente relevante.

A indagação erguida no capítulo 1, a respeito do fato das normas da

decadência e da prescrição tributárias poderem ser consideradas como

instrumentos desse ordenamento infraconstitucional, para a proteção e

manutenção econômica empresarial, no ambiente jurídico, de forma a

corroborar a proteção à empresa, em razão do reconhecimento do seu

exercício de função social, vai requerer aspectos que serão estudados nos

capítulos 2 e 3.

Se positiva a conjectura segundo a qual os institutos da decadência e

prescrição tributárias, respondem às exigências das dimensões da segurança

jurídica, e se, também, correspondem à vontade constitucional e legal, como

argumento protetivo da empresa, uma dúvida que se ergue é se essa idéia

nuclear constitucional é posta em prática, no exercício das atividades estatais,

por aqueles que têm essas atribuições.

A aspiração do capítulo 4 é a de ponderar, juridicamente, a respeito da

implicância do exercício típico da atividade estatal, da interpretação legal e do

ato de aplicação da norma no caminho inverso do espírito de tutela das

organizações econômicas empresariais, a despeito dele ter sido arquitetado e

consagrado no ordenamento jurídico constitucional e infraconstitucional.

A avaliação dessa questão é relevante, na medida em que, de nada

adianta a previsão de normas jurídicas protetivas da empresa se, na realização

das atividades estatais que lhe dizem respeito, no que se refere à interpretação

dessas prescrições e na sua efetiva aplicação, sobre elas mesmas recaiam

exigências incompatíveis com o sentido estruturado na Carta Constitucional.

A ideia que estimulou o desenvolvimento do presente trabalho nasceu

exatamente em razão dos seguintes motivos: (i) pelo desafio da ausência de

literatura que tratasse e estruturasse a sustentabilidade econômica

empresarial; (ii) que analisasse a figura do Estado como interventor no

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processo de contribuição ou não dessa manutenção estável das organizações

econômicas empresariais; (iii) que comprovasse juridicamente o exercício da

função social da empresa, de forma a superar a superficialidade; (iv) que

analisasse os argumentos constitucionais e infraconstitucionais que podem

perfazer um núcleo estruturante dessa função, de maneira a reforçar os

argumentos que corroboram a sua existência; (v) que averiguasse o Direito

Tributário interveniente nesse contexto de sustentabilidade econômica

empresarial, por intermédio, especificamente, dos institutos da decadência e da

prescrição tributárias; (vi) que não somente os declarasse como mecanismos

jurídicos a serviço da segurança jurídica, mas, definitivamente, aprofundasse

essa questão, no intento de provar que supera o mero discurso e mantém uma

relação profunda com o Princípio da Segurança Jurídica; (vii) que a soma de

todas essas questões pode ser invocada de maneira favorável à manutenção

estável empresarial, e, por fim, (viii) que o Estado tem o poder de interferência

nessa questão, todavia, com a limitação do sentido estruturalmente arquitetado

na Carta Constitucional, no que se refere às organizações econômicas

empresariais.

Era preciso um trabalho científico que enfrentasse o problema. Se as

normas de decadência e de prescrição refletem segurança jurídica, e sua

observância, dado o seu caráter normativo, é obrigatória, qual a razão de

tantas obrigações tributárias surgirem para, posteriormente, serem extintas,

pelo reconhecimento da decadência ? Qual a razão de ações de execução

fiscal serem interpostas, mesmo já transcorrido o prazo prescricional, se existe

norma específica disciplinando tal caso ?

A postura adotada pela Administração Tributária, no afã arrecadatório,

a partir do instante em que desconsidera, em sua interpretação, regras básicas

de aplicação do direito decadencial e prescricional, não se mostra incompatível

com a segurança jurídica que deve permear a atuação do Estado e, da mesma

forma, não desestimula o desenvolvimento empresarial ? Esse cenário de

insegurança jurídica reflete-se, de alguma maneira, na sustentabilidade

empresarial ?

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A carência de obras que analisem as normas de decadência e de

prescrição à luz da função social da empresa e do estímulo à sustentabilidade

empresarial, não se pode tornar pano de fundo para uma postura fiscalista, que

tolhe os mais caros princípios tributários e os mais comezinhos princípios

jurídicos, que, primeiro, protegem, e, depois, estimulam o contribuinte, no

exercício da sua atividade econômica, que, em última análise, leva

desenvolvimento a um país como o Brasil, que está em pleno caminho

desenvolvimentista.

Os fundamentos que serão trabalhados, neste trabalho permitirão que

o estudioso do direito possa, como requer a ciência, ser provocado; e, a partir

dos fundamentos aqui dispostos, – que, acreditamos, sejam condizentes com a

postura que iremos adotar – possa refletir sobre a postura do Fisco, que não

pode desconsiderar que todo poder emana do povo e, simplesmente fechar os

olhos ao ordenamento jurídico constitucional que informa o Estado

Democrático de Direito brasileiro.

Esses foram os grandes estímulos e o sentido ao qual o presente

estudo se direcionou, e que, de maneira gradativa, ao longo dos quatro

capítulos, será construído.

19

CAPÍTULO 1 – SUSTENTABILIDADE ECONÔMICA EMPRESARIAL

1.1 – SUSTENTABILIDADE NA RELAÇÃO ENTRE O ESTADO E A EMPRESA

A proposta de estudo sobre sustentabilidade deve, necessariamente,

passar pela sua compreensão histórica e conceitual. Esse conceito de

desenvolvimento sustentável nasceu a partir do Relatório “Brundtland”,

elaborado em 1985, pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e

Desenvolvimento, formada no âmbito do Programa das Nações Unidas para o

Meio Ambiente; e, segundo o seu conteúdo, o desenvolvimento sustentável é

“[...] o desenvolvimento que atende às necessidades do presente, sem

comprometer a capacidade de as futuras gerações atenderem às próprias

necessidades.” 1

É um conceito que nasceu imbricado com a ideia de meio ambiente,

objetivando a sua proteção, nos moldes constitucionais – artigo 225.2 A

doutrina costuma classificar esse meio ambiente nos seguintes tipos: o meio

ambiente natural, o artificial, o cultural, o do trabalho e o do desporto.3

Inspirado nessa proteção dos diversos meios ambientes e na

preocupação com a capacidade de sua manutenção estável, surgiu a ideia de

proteção da permanência da empresa e das suas atividades produtivas, mais

especificamente, da sustentabilidade empresarial, o que integra parte do título

do presente capítulo.

Percebe-se que tratar sobre a matéria da sustentabilidade implica

preocupação em delimitar qual espécie de sustentabilidade estará no centro do 1 Relatório publicado no Brasil pela FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, Comissão Mundial

Pelo Meio Ambiente e Desenvolvimento. Nosso Futuro comum – apud FERNANDO MAGALHÃES MODÉ, Tributação Ambiental: A Função do Tributo na Proteção do Meio Ambiente, p. 55-56.

2 O dispositivo prescreve o seguinte: “Artigo 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”

3 RICARDO BERZOSA SALIBA, Fundamentos do Direito Tributário Ambiental , p. 53.

20

debate. A inquietação é fundada, na medida em que o tema pode ser analisado

em relação a conexões diversas.

Se considerarmos uma relação triangular entre o Estado, a empresa e

a sociedade, é possível, por exemplo, estudar a sustentabilidade (i) na relação

entre o Estado e a sociedade, no seu papel de figura importante para a

manutenção estável da condição de vida social. Também é cabível estudá-la

(ii) na relação entre a empresa e a sociedade, com destaque para a sua

importante função no estímulo ao desenvolvimento econômico-social. Do

mesmo modo, é justificável o seu estudo (iii) na relação entre o Estado e a

empresa, no papel de fomentador da manutenção econômica estável dela.

Assim, a “sustentabilidade” pode levar a expectativas diversas de

leitura. Por intermédio dessa generalidade, é possível analisá-la sob o enfoque

de uma série de fatores, a exemplo do meio ambiente, de aspectos

econômicos e até sociais. Sim, porque ainda que analisemos as três diferentes

formas de sustentabilidade apontadas acima, podemos ter a sua atenção

voltada para as questões econômicas, sociais e , ainda, ambientais.

Este é o momento acertado para aclarar o que se pretende, no

presente capítulo, que é voltar a atenção para a manutenção estável da

empresa, na relação que ela desenvolve com o Estado. Muito embora feito tal

recorte, a apreciação alcançará, necessariamente, a relação entre a empresa e

a sociedade, porque, em última análise, a relação mantida entre o Estado e a

empresa acarreta consequências no modo por meio do qual esta se relaciona

com a sociedade.

Delimitado, pois, o escopo sobre o qual recairá a atenção, nesse

momento inicial, qual seja, a relação mantida entre o Estado e a empresa, um

aspecto relevante abre-se à questão: em que âmbito o Estado pode atuar de

forma a influenciar a sustentabilidade empresarial ? Sabemos que a atuação

estatal se pode dar no ambiente político-legislativo, social, econômico e

jurídico, dentre outros.

Destaque-se, todavia, que a atuação estatal, no ambiente econômico e

social, quando mencionada, no presente trabalho, é, em última análise, um

21

exame também do aspecto jurídico, porque, consoante a determinação

constitucional, a atuação estatal pauta-se em diretrizes legais. Assim, a sua

influência econômica, no sentido estrito, também deve estar adstrita à

legalidade. O mesmo raciocínio aplica- se ao âmbito social. A atuação estatal,

por mais delimitada que seja a área, com frequência, faz com que decorram

consequências noutros campos.

Temos o cuidado de destacar que não trataremos da manutenção das

empresas senão nos aspectos político-legislativo, porque é uma forma de

atuação estatal que serve de estímulo positivo ou negativo às atividades da

empresa; e jurídico, pois esse será o fio condutor importante de grande parte

do que será analisado no desenvolvimento do presente estudo, ainda que

desse aspecto decorram efeitos econômicos e sociais, que são importantes

para as nossas reflexões.

Relevante esse destaque, porque o que se busca não são argumentos

econômicos e sociais, – que fazem parte de ciências diferentes, – mas

jurídicos, em sentido lato tanto envolvendo a produção legislativa quanto o

exercício interpretativo propriamente dito, que derramam os seus reflexos

nesses ambientes.

Nesse ambiente jurídico, – em sentido lato, – que não ignora o efeito

econômico-social, outra questão que se impõe é: como o Estado pode

fomentar a manutenção estável da atividade empresarial ? É o que será

analisado no próximo item.

1.2 – O PAPEL DO ESTADO NA SUSTENTABILIDADE ECONÔMICA

EMPRESARIAL

Com foco nesse ambiente político-legislativo e jurídico, que é

importante recorte para o presente estudo, os atos estatais que trazem reflexos

para a sustentabilidade econômica empresarial, podem ser unidos sob o manto

de duas grandes ações estatais: a produção legislativa e a interpretação que o

22

Estado realiza da legislação, no momento da execução das suas atividades

típicas, seja nas atividades ligadas ao meio ambiente, à segurança pública, à

tributação etc.

Chama a atenção este último aspecto, o da interpretação legislativa, na

medida em que este trabalho se debruçará sobre o exercício típico estatal, no

ato de aplicação da norma e a sua interpretação.

No que se refere à produção legislativa, o Estado pode apontar as suas

ações para diversas áreas, como para o estímulo econômico das atividades

empresariais, o desenvolvimento sócioambiental da empresa e a

responsabilidade social empresarial, dentre outros.

Assim, o Estado, ao legislar, – dentro do que nos importa no momento,

que é o estímulo econômico das atividades empresariais – influencia

economicamente a manutenção estável da empresa. É, pois, ciente dessa sua

influência que o Estado atua na manutenção das entidades econômicas. Dessa

forma, o seu comportamento influente – leia-se, também, fomentador ou

estimulador –decorre da forma pela qual ele enxerga a empresa. Então, como

saber qual é a visão que o Estado tem da empresa ? Ou talvez, como deveria

enxergar a empresa ?

Uma contribuição relevante do Estado para a estabilidade econômica

empresarial pode começar por enxergar o papel de agente do desenvolvimento

econômico e social, que desempenham as organizações econômicas. Se os

atos estatais voltados para as empresas partirem desse pressuposto, tendem a

ser considerados como uma contribuição para a estabilidade empresarial. Mas

é assim que o Estado enxerga a empresa ? E por quê ?

23

1.3 – VISÃO ESTATAL DAS ORGANIZAÇÕES ECONÔMICAS

1.3.1 – Papel Estatal Concentrador

A evolução histórica do Estado, normalmente, é contada sob o enfoque

dos resultados e preocupações que, ao longo do tempo, as modificações,

positivas ou negativas, acarretaram para a sociedade.

Sem a pretensão de analisar em profundidade esse aspecto histórico,

mas apenas como forma de contextualizar, nessa passagem, os momentos em

que o Estado desempenhou as suas atividades com a atenção voltada para o

desenvolvimento econômico e social, destacamos pontos que se adequam ao

momento de atuação intensa, nesse afã, bem como o seu recuo.

O modelo de Estado do final do século XIX e início do XX é marcado

por objetivos liberais, cuja concepção é claramente não intervencionista. O

Estado tinha uma postura negativa, no que se refere à interferência econômica,

cabendo-lhe unicamente funções mínimas. O desenvolvimento econômico era

ditado pelos interesses privados mais fortes, e, ao Estado não intervencionista,

cabia preservar bens jurídicos basilares para a sociedade, atividade que se

subsumia ao resguardo de serviços tidos como essenciais, da segurança e da

justiça. Era esse, pois, o modelo de Estado Liberal.4

Muito embora os sistemas tivessem massificado a produção,

maximizado os lucros das organizações econômicas e dado impulso para a

evolução da sociedade, a classe operária, que suportava todo o ônus negativo

dessa evolução, passou a pleitear a compatibilidade do trabalho despendido

com salário e com o tempo de labuta, o que exigiu um comportamento estatal

diferente do até então realizado.5

4 MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, Discricionariedade Administrativa na

Constituição de 1988, 2. ed., p. 21-22; CLÈMERSON MERLIN CLÈVE, Atividade Legislativa do Poder Executivo, p. 35.

5 MARIA CRISTINA DE BRITO LIMA, Direito Constitucional Econômico, p. 19.

24

O Estado passou a interferir, no intuito de preservação de direitos

fundamentais, de maneira a intervir, também, no ambiente econômico. Houve

uma modificação de postura estatal, antes negativa, minimalista, para um

Estado de postura intervencionista, nas relações de caráter privado, de forma a

assistir, socialmente, às classes que sofreram os excessos do sistema.6

Essa postura estatal verificou-se no início do século XX, e ficou

conhecida como Estado Social – “welfare state” –, período no qual o Estado

tomou para si o papel principal de agente do desenvolvimento econômico e

social, e cuja tendência positiva passou a ter caráter constitucional com os

referenciais da Constituição Mexicana de 1917 e da Constituição Alemã de

1919. Nasce, então, o Estado com a postura social7.

Está, exatamente, na previsão de equalização dos direitos sociais, na

regulamentação das relações da classe trabalhadora – com o resguardo de

direitos e garantias individuais antes não tutelados, como os direitos à

assistência social, à saúde, à propriedade, por exemplo – aquilo que estrema o

Estado Liberal do Social.8

É nessa fase de Estado Social que há a assunção “direta”, pelo Estado,

de atribuições ligadas ao desenvolvimento econômico-social, como figura

6 JOAQUIM B. BARBOSA GOMES ensina: “[...] de um Estado absenteísta e mero garantidor

da ordem e do cumprimento dos contratos, expressão máxima do direito de propriedade, o mundo assistiu à emergência de um Estado intervencionista, provedor de prestações tendentes a minimizar e a corrigir as imperfeições e iniquidades do sistema capitalista” – Agências Reguladoras: A metamorfose do Estado e da Democracia – uma reflexão de Direito Constitucional e Comparado, Revista de Direito Constitucional e Internacional , nº 50, p. 39.

7 FÁBIO KONDER COMPARATO leciona: “O que importa, na verdade, é o fato de que a Constituição mexicana em relação ao sistema capitalista foi a primeira a estabelecer a desmercantilização do trabalho, ou seja, a proibição de equipará-lo a uma mercadoria qualquer, sujeita à lei da oferta e da procura no mercado. Ela firmou o princípio da igualdade substancial de posição jurídica entre trabalhadores e empresários na relação contratual de trabalho, criou a responsabilidade dos empregadores por acidentes do trabalho e lançou, de modo geral, as bases para a construção do moderno Estado Social de Direito, e, portanto, da pessoa humana, cuja justificativa se procurava fazer, abusivamente, sob a invocação da liberdade de contratar” (sic) – A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos , p. 177.

8 PAULO BONAVIDES assevera: “À medida, porém, que o Estado tende a desprender-se do controle burguês de classe, e este se enfraquece, passa ele a ser, [...] o Estado de todas as classes, o Estado fator de conciliação, o Estado mitigador de conflitos sociais e pacificador necessário entre o trabalho e o capital. Nasce, aí, a noção contemporânea do Estado social” – Do Estado Liberal ao Estado Social, p. 185.

25

condutora dessa etapa. 9 Fica na responsabilidade estatal tal desenvolvimento

econômico e social, especialmente voltado para minimizar as distorções e os

efeitos do processo econômico liberal que o antecedeu, mormente no que se

refere aos direitos sociais – emprego, condições de trabalho e as sua

garantias.

O Estado passou a exercer um papel concentrador, de figura capaz de

realizar ações no sentido do desenvolvimento econômico e social. Foi, por ele,

incorporada tal atribuição. Essa forma de atuação estatal exacerbada

conservava para si o papel de provedor absoluto das necessidades de

desenvolvimento econômico e social do país, todavia, essa tarefa

desenvolvimentista concentrada, nesse modelo de Estado Social, não era

eficiente. 10

Como estava nas mãos da figura estatal o comando absoluto da

política de desenvolvimento, nessas áreas, essa postura não abria margem

para outras iniciativas de cooperação. E, nesse contexto, as empresas privadas

não tinham qualquer possibilidade de interferência nesse caminho

desenvolvimentista.11

9 Ensina CLÈMERSON MERLIN CLÈVE: “O Estado mínimo, com reduzidas competências,

vai assumindo mais e mais funções. O ‘Estado-árbitro’ cede espaço para o ‘Estado de prestações’ [...] A intervenção do Estado na economia ocorrerá de vários modos. O Estado regulará o mercado, diminuindo consideravelmente a extensão da autonomia da vontade nos negócios privados. Reprimirá certas práticas comerciais contrárias ao princípio da livre concorrência. Ademais, participará do processo econômico, quer seja através de empresas estatais, quer seja, ainda, oferecendo a infraestrutura necessária para a implantação e o desenvolvimento das indústrias e negócios e, finalmente, por intermédio da implementação de políticas de induzimento à manifestação de empreendimentos econômicos [...]” – Atividade..., op. cit., p. 37-38.

10 A ideia de modificação do papel desenvolvido pelo Estado é corroborada pela análise que LUÍS ROBERTO BARROSO fez sobre as agências reguladoras: “Após a Constituição de 1988 e, sobretudo, ao longo da década de 90, o tamanho e o papel do Estado passaram para o centro do debate institucional. E a verdade é que o intervencionismo estatal não resistiu à onda mundial de esvaziamento do modelo no qual o Poder Público e as entidades por ele controladas atuavam como protagonistas do processo econômico. Sem embargo de outras cogitações mais complexas e polêmicas, é fora de dúvida que a sociedade brasileira exibia insatisfação com o Estado no qual se inseria e não desejava vê-lo em um papel onipotente, arbitrário e ativo – desastradamente ativo – no campo econômico.” – Constituição, Ordem Econômica e Agências Reguladoras. in: DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO. Direito Regulatório (Coord.), p. 16-21.

11 Numa análise do perfil do Estado latino-americano moderno na década de 80, destacaram, MARCUS GUARAGNI e ANTONINHO CARON: “[...] forma exagerada de atuação do Estado, que acabava por sufocar a economia, debilitando as empresas privadas em sua tentativa de melhorar as condições da região. O Estado deveria deixar de ser um ente

26

O Estado era como um semeador e as suas ações eram como

sementes jogadas na terra. Mas se preocupava, também, com a etapa

posterior: a de regar a terra. Tinha para si tarefas que se acumulavam, e que

nem sempre lhe possibilitavam os melhores frutos e as melhores colheitas.

Evidente que muito mais inteligente era reduzir o seu papel de

protagonista e somar forças com a iniciativa privada, nessa tarefa

desenvolvimentista. O Estado, então, passou a, predominantemente, atuar com

caráter de fiscalizador, incentivador e planejador, em especial após a

Constituição Federal de 1988, a exemplo do disposto no artigo 174, conforme

será demonstrado na sequência.

1.3.2 – Mudança da Postura Concentradora Estatal: A Empresa com o Papel

de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico e Social

Não só pela reconhecida falência desse solitário desejo de

desenvolvimento econômico e social, mas como uma inteligente percepção

estatal de possibilidade de melhores resultados, o Estado iniciou um processo

de modificação ideológica: crescer econômica e socialmente exigia a soma de

forças. Não era inteligente lutar sozinho nessa batalha. Se o estado trouxesse

para o seu lado a empresa, para cooperar nessa tarefa, os resultados poderiam

ser melhores. A colheita poderia ser melhor. A empresa, exercendo esse papel

de cooperação, contribuiria para o alcance desse desenvolvimento.12

provedor todo-poderoso, permitindo que, gradativamente, a iniciativa privada pudesse assumir seu papel de ator do processo de desenvolvimento econômico dos países.” – Papel do Estado para o desenvolvimento sustentável em tempos de globalização. in ANTONINHO CARON e OSMAR PONCHIROLLI (Coord.), Globalização, organizações e estratégias empresariais , p. 58-59.

12 A doutrina reconhece a falência do Estado como concentrador desse desenvolvimento econômico e social, tal como ensina LUÍS ROBERTO BARROSO: “A constatação de que o Estado não tem recursos para os investimentos necessários e que, além disso, é geralmente um mau administrador conduziu ao processo de transferência para o setor privado da execução de serviços públicos [...]. Daí a privatização haver trazido drástica transformação no papel do Estado: em lugar de protagonista dos serviços, suas funções passam a ser as de planejamento, regulamentação e fiscalização das empresas concessionárias” (sic) – Apontamentos Sobre as Agências Reguladoras. in: MORAES,

27

O Estado passou a divisar, na empresa, esse potencial de cooperação

para o desejado desenvolvimento. Enxergar assim foi o que o levou a pensar

em políticas de preservação, proteção, estímulo e fomento de sustentabilidade

econômica desse que, agora, passaria a ser o seu grande parceiro na

empreitada desenvolvimentista.

Não é gratuito esse pensamento de manutenção estável da empresa.

De forma crua, o Estado ajuda quem pode com ele contribuir. Essa mudança

de postura para com a empresa, essa visão nova, nada mais é do que

reconhecer a ela uma função social, muito embora o ordenamento jurídico não

o tenha feito expressamente, conforme veremos adiante.

Muito embora enxerguemos esse papel de cooperação da empresa

para com o Estado como um relevante fundamento para que ele se preocupe

com a sustentabilidade empresarial, sem qualquer motivos altruístas, ingênuo é

pensar que a generalidade da atuação estatal – notadamente, por intermédio

da edição de normas ou da sua interpretação – não implique violações,

exatamente na manutenção estável das organizações econômicas.

1.4 – FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA

A nossa Carta Constitucional trata da função social, todavia, de

maneira expressa, apenas menciona aquela ligada à propriedade do solo.

Muito embora não mencione outras formas de função social da propriedade,

isso não implica entender que, juridicamente, não existem outras a serem

Alexandre de (coord). Agências..., op. cit., p. 127. No mesmo sentido, ARY CASAGRANDE FILHO: “Atribui-se, atualmente, ao Estado o papel estrategista e não mais de piloto em relação à economia. A atuação do Estado no contexto contemporâneo prescreve a intervenção na economia de forma direta e indireta. Na atuação direta, este pode atuar na gestão direta de determinada atividade econômica, como interventor pontual e agente planificador. Em relação à sua atuação indireta, este pode atuar como disciplinador, fixando regras; como agente de fiscalização, com propósito de fazer prevalecer as regras estabelecidas, como agente estimulador, e, por fim, agente de planejamento indicativo, ou seja, estabelecendo parâmetros úteis de orientação” – Estado Regulador e Controle Judicial, p. 46.

28

tuteladas. Entender assim seria o mesmo que ignorar a função social da

propriedade literária, artística, industrial ou da empresa, dentre outras. 13

EROS ROBERTO GRAU chama a atenção para esse ponto, segundo o

qual a função social é um aspecto verificado em diferentes formas de

propriedade. Não foi porque a Constituição destacou apenas o solo que não

exista função social noutras formas de propriedade, desde que elas sejam

utilizadas para além dos interesses do seu proprietário, ou seja, que a

propriedade seja utilizada em favor, também, de terceiros:

[...] o princípio da função social da propriedade impõe ao proprietário – ou a quem detém o poder de controle da empresa – o dever de exercê-lo em benefício de outrem e não, apenas, de não o exercer em prejuízo de outrem [eis o seu declarado reconhecimento da função social da empresa]. Isso significa que a função social da propriedade atua como fonte de imposição de comportamentos positivos – prestação de fazer, portanto, e não, meramente, de não fazer. 14 (esclarecimentos nos colchetes)

13 “Artigo 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se

aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXIII - a propriedade atenderá a sua função social; Artigo 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] III - função social da propriedade; Artigo 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes. § 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor; Artigo 185. São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária: [...] Parágrafo único. A lei garantirá tratamento especial à propriedade produtiva e fixará normas para o cumprimento dos requisitos relativos a sua função social; Artigo 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.”

14 A ordem econômica na Constituição de 1988 , p. 274-275.

29

LUIZ FERNANDO LOBÃO MORAIS ensina que “[...] a função social da

propriedade vem a ser o benefício, a contribuição que ela dá à sociedade e não

apenas ao particular que se serve dela.”15

IVO DANTAS entende que a função social da propriedade é “[...] um

ponto intermediário entre o uso ilimitado da propriedade (liberalismo

econômico) e o uso coletivo (socialismo econômico)”.16

Isso implica entender que os benefícios decorrentes da propriedade

extrapolam a ideia egoística, focada unicamente em proveito do titular do

direito de propriedade, de forma que as benesses dela decorrentes devem ser

canalizadas com proveitos sociais.

O que não pode gerar equívoco é que esse entendimento seja restrito

a certa categorização da propriedade – a do solo. O juízo segundo o qual a

propriedade não deve satisfazer apenas aos interesses individualistas do seu

proprietário é extensivo a outras formas de propriedade. Isso quer dizer que a

ideia de função social é aplicável também à propriedade empresarial.

No que se refere especificamente à função social da empresa, ensina

LUIZ ROBERTO BARROSO:

Tais ideias [relativas ao direito subjetivo à livre concorrência, livre iniciativa e busca pelo lucro], naturalmente, não são incompatíveis com o conceito moderno de função social da empresa. Embora não referido de modo expresso no texto constitucional, integra ele o sistema jurídico, como decorrência da idéia de Estado democrático de direito, inspirada por valores como justiça social e participação. A empresa há de ter compromisso social com os parceiros com os quais interage e com a sociedade como um todo. Tem, assim, deveres para com seus empregados e com a valorização social do trabalho, na forma da lei, bem como com a oferta de emprego e, em uma análise, com a existência digna para todos. De parte isto, tem obrigações para com seus fornecedores, que asseguram o ciclo produtivo, e com os consumidores, a quem se destina a atividade econômica e cujos direitos limitam seu exercício. Há também os vizinhos e a comunidade como um todo, titulares, em última análise, do direito ao meio ambiente saudável e beneficiários indiretos da

15 A Função Social do Lucro e a Sociedade Pós- Capital ista , p. 446. 16 Direito Constitucional Econômico – globalização e c onstitucionalismo , p. 72.

30

utilização produtiva da propriedade17 (sic) (esclarecemos nos colchetes).

No sustento da sua existência, DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA

NETO observa: “O princípio da liberdade de iniciativa tempera-se pelo da

iniciativa suplementar do Estado; o princípio da liberdade de empresa corrige-

se com o da definição da função social da empresa [...]”18

Vamos compartimentalizar o raciocínio, num sentido lógico, no qual nos

possamos apoiar para fundamentar um posicionamento em relação à função

social.

A questão primeira e mais simplória que se levanta é a seguinte: de

fato, como enxergar que há função social das organizações econômicas ? Qual

é o seu conteúdo ?

Bem, para responder a essas questões, iniciemos pela última. Parte da

doutrina preocupa- se com a definição do conteúdo da função social, segundo

a qual esta requer seja ele fornecido por lei, sob pena de ser considerado como

conceito vago, ou seja, relegado à categoria de norma programática. Não se

concebe, pois, a “vagueza” da legislação quando da atribuição da função

social. Há, portanto, a compreensão segundo a qual o caráter de função social

seria decorrente da regulamentação estatal.19

17 A Ordem Econômica Constitucional e os Limites à Atuação Estatal no Controle de Preços.

Revista Diálogo Jurídico , p. 15, disponível em: HTTP://www.direitopublico.com.br, acesso em 03/4/2012.

18 Ordem Econômica e Desenvolvimento na Constituição d e 1988, p. 28. 19 É o que se percebe na doutrina de FRANCISCO EDUARDO LOUREIRO, ao ensinar que

são duas as formas de operacionalizar, no direito objetivo, o conceito de função social da propriedade: como cláusula geral e como conceito cujo conteúdo é fornecido pela lei: “[...] merece cuidado a dissociação das ideias de direito subjetivo e função social, como valores antagônicos a serem hierarquizados. [...] tal raciocínio cria o risco de fazer prevalecer o direito subjetivo, com raízes mais profundas na tradição jurídica e expressa de modo mais claro em nosso direito positivo. Restaria à função social o papel de mera indicação programática, um resumo de outras disposições, sem valor autônomo normativo . [...] parece claro que se a propriedade é um direito – ou uma situação jurídica complexa – atribuído pela ordem jurídica a um titular, nada mais natural que essa mesma ordem jurídica estipule determinada conduta a ser seguida, ou fixe um objetivo social que, de um ponto de vista passivo, é atribuído ao proprietário, sob pena de deixar ele de ser merecedor da tutela da propriedade” (grifo nosso) – A propriedade como relação jurídica complexa , p. 116-119 e 121. Ensina, ainda, ANA FRAZÃO DE AZEVEDO LOPES que a função social é uma

31

Se assim o é, a função social – pelo ponto de vista do presente estudo,

o da empresa – e os princípios com ela relacionados, exigem a existência

prévia de normas que possibilitem, com clareza, a delimitação da expressão

“função social”, de maneira que se possa entender o que se pretende alcançar

com a sua consideração.

Não está de todo equivocada a compreensão segundo a qual a função

social deve ter origem em preceitos normativos. Conquanto não exija tão

esforçado trabalho hermenêutico sistemático, a existência prévia de legislação,

com a licença da tautologia, já acontece. A despeito de respeitarmos as

posições contrárias, já existe e apontaremos os fundamentos legais de tal

função social. 20

Ao Estado cumpre tutelar uma série de bens jurídicos que a

Constituição Federal de 1988 arrolou como importantes. Dentre tantos outros

bens jurídicos considerados como caros para o ordenamento constitucional,

coube ao Estado à proteção da dignidade da pessoa humana, disposta no

artigo 1º, III, e 170, “caput”; dos valores sociais do trabalho – artigo 1º, IV; da

livre iniciativa – também o artigo 1º, IV, e 170, “caput”; do objetivo de

construção de uma sociedade livre, justa e solidária – artigo 3º, I; da garantia

do desenvolvimento nacional – artigo 3º, II; da erradicação da pobreza,

imposição de limites ao exercício da propriedade, com a finalidade de coibir abusos. in Empresas e propriedade – Função social e abuso de p oder econômico , p. 123. Da mesma forma é o escólio de JOSÉ DINIZ DE MORAES ao ensinar que “[...] não é senão o concreto modo de funcionar a propriedade seja como exercício do direito de propriedade ou não, exigido pelo ordenamento jurídico, direta e indiretamente, por meio de imposição de obrigações, encargos, limitações, restrições, estímulos ou ameaças, para satisfação de uma necessidade social, temporal e especialmente considerada” – A função Social da propriedade e a Constituição Federal de 1988 , p. 11.

20 No entendimento efetivamente contrário a ideia de exercício da função social da empresa, FÁBIO TOKARS defende: “[...] se existir função social da empresa, com forma normativa, o direito deve fornecer instrumentos de proteção efetiva [...] Se esses instrumentos jurídicos existirem, haverá função soc ial da empresa . Contudo, sabemos, para a tristeza de todos os que desejam uma sociedade menos dependente dos frios postulados capitalistas, que não há instrumentos jurídicos que permitam aos interessados obstaculizar a estratégia do empresário que deseja produzir menos (e empregar menos) para ganhar mais. E exatamente por tal razão, perde materialidade aqu ilo que chamamos de função social da empresa ” (grifo nosso) – A visão do governo federal a respeito do princípio constitucional da busca do pleno emprego. O Estado do Paraná – Caderno de Justiça , p. 12. Na concepção convergente de JAIR GEVAERD, é equivocado o conceito propalado de função social da empresa, que não passa de uma grande vontade do legislador constitucional, pois não há regulamentação para tanto – Responsabilidade social, Inclusão e sustentabilidade: vértices empresariais dos direitos fundamentais, in CLAUDETE CARVALHO CANEZIN (Coord.), Arte Jurídica , p. 194.

32

marginalização e redução da desigualdade social e regional – artigo 3º, III; do

fundamento da ordem econômica na valorização do trabalho humano – artigo

170, “caput”; da justiça da ordem econômica e social – artigos 170, “caput” e

193; dos princípios da atividade econômica da livre concorrência – artigo 170,

IV; da proteção do consumidor – artigo 170, V; da defesa do meio ambiente –

artigo 170, VI; dentre tantas outras atribuições constitucionais.

Essa tarefa é imputada ao Estado, o que não afasta a responsabilidade

dos demais setores da sociedade – entre os quais o das atividades

empresariais. A empresa, nesse caminho de colaboração com o Estado, na

consecução do que a ele foi constitucionalmente atribuído, tem sublinhado o

seu marcante traço socialmente relevante.21

Sim, pois, numa leitura cuidadosa da dignidade da pessoa humana,

disposta no artigo 1º, III, e 170, “caput”, da Constituição Federal de 1988, e

numa aplicação prática à empresa, cabe o respeito aos interesses dos

trabalhadores, dos consumidores e da sociedade em geral. 22 Eis a função

social da empresa: o que se pretende atingir/resguardar é, também, a

dignidade da pessoa humana. O mesmo exercício pode ser repetido com o

artigo 3º, I, II e III, da Carta Constitucional, porque função social da empresa

encerra a ideia de apoio para a construção de uma sociedade livre, justa e

solidária, de meio de alcance do desenvolvimento nacional, e de contribuição

para a erradicação da pobreza, da marginalidade e da desigualdade social. 23

21 MARÇAL JUSTEN FILHO confirma: “Reconhece-se que a democracia exige a garantia da

autonomia individual e da sociedade civil, mas que a realização dos valores fundamentais a um Estado Social exige a participação de todos os segmentos sociais. Assume-se que, na grande parte dos casos, os organismos estatais não detêm capacitação e recursos suficientes para atendimento satisfatório a certas necessidades comuns, o que significa atribuir à iniciativa privada o encargo correspondente” – O direito Regulatório, Interesse Público: Revista Bimestral de Direito Público, p. 29.

22 “Artigo 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana;” “Artigo 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...];”

23 “Artigo 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional;

33

Do mesmo modo, o exercício das suas atividades, deve ser dirigida pelo

respeito ao trabalho humano, à livre iniciativa, à justiça social, à livre

concorrência, à defesa do consumidor e do meio ambiente, de forma a

contribuir para a redução das desigualdades sociais e regionais, ou seja, pelo

respeito aos princípios vetores da ordem econômica – artigo 170, da Carta

Constitucional de 1988.24 E também, cabe a não utilização abusiva da empresa

em decorrência do seu poder econômico – artigo 173, § 4º, da Constituição

Federal.25

E como reflexo dessa linha diretiva constitucional, as legislações

infraconstitucionais cuidam de fazer valer a ideia da relevante função social que

desempenham as empresas, de maneira explícita ou mesmo que isso seja

extraído por intermédio de uma interpretação sistemática. É o caso da Lei nº

11.101, de 05/5/2005, Lei de Recuperação Judicial e Extrajudicial, a qual prevê,

no seu artigo 47, que a recuperação judicial tem por fim último o

reconhecimento da função social da empresa.26 Da Lei nº 6404, de 15/12/1976,

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;”

24 “Artigo 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.”

25 “Artigo 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. [...] § 4º - A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.”

26 Lei nº 11.101/2005: “Artigo 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.” De forma explícita, MISABEL DE ABREU MACHADO DERZI, defende a existência da função social da empresa: “A comunidade jurídica [...] vem reconhecendo na nova Lei de

34

Lei das Sociedades Anônimas, no artigo 116, parágrafo único, que menciona

que o acionista controlador deve usar o seu poder com o fim de realizar a

função social.27 Na mesma lei, no artigo 154, que prevê para o administrador da

empresa, o exercício das suas atribuições a fim de satisfazer a função social.28

Da Lei nº 9279, de 14/5/1996, que regulamenta a propriedade industrial, e que,

quando direciona os inventos produzidos para beneficiar à sociedade, não faz

outra coisa senão reconhecer a função social empresarial. Da Lei

Complementar nº 118, de 09/2/2005 que introduziu alterações no Código

Tributário Nacional, no artigo 133 e parágrafos, de maneira a excluir a

responsabilidade tributária por sucessão, em processo de falência ou de

recuperação judicial.29 Da mesma Lei Complementar, que introduziu, também,

os §§ 3º e 4º no artigo 155-A, do Código Tributário Nacional, para disciplinar o

Falências um passo decisivo de estímulo ao exercício das funções empresariais, dentro da sua perspectiva de função social” (sic) – O Princípio da Preservação das Empresas e o Direito à Economia de Imposto. in VALDIR DE OLIVEIRA ROCHA (Coord.), Grandes Questões Atuais do Direito Tributário , v. 10, p. 336.

27 Lei nº 6404/1976: “Artigo 116. Entende-se por acionista controlador a pessoa, natural ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum, que: a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembleia-geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia. Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender.” FÁBIO KONDER COMPARATO, muito embora não se filie à idéia de função social da empresa, destaca, na Lei nº 6404/76, a previsão de responsabilidade dos acionistas não só para com a empresa, mas para com os trabalhadores e a comunidade em geral. Talvez sem perceber e sem querer, exista aí um traço relevante, no extrapolamento de efeitos da Lei nº 6404/76 para a sociedade, o reconhecimento do papel socialmente relevante da empresa, o que seria um paradoxo pela linha doutrinária que segue – O Poder de Controle na Sociedade Anônima, p. 214.

28 Lei 11.101/2005: “Artigo 154. O administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa.”

29 Código Tributário Nacional: “Artigo 133. A pessoa natural ou jurídica de direito privado que adquirir de outra, por qualquer título, fundo de comércio ou estabelecimento comercial, industrial ou profissional, e continuar a respectiva exploração, sob a mesma ou outra razão social ou sob firma ou nome individual, responde pelos tributos, relativos ao fundo ou estabelecimento adquirido, devidos até à data do ato: [...] § 1o O disposto no caput deste artigo não se aplica na hipótese de alienação judicial: I – em processo de falência; II – de filial ou unidade produtiva isolada, em processo de recuperação judicial.”

35

parcelamento dos créditos tributários do devedor em situação de recuperação

judicial.30

Para toda essa legislação, estamos diante do derramamento do desejo

constitucional de reconhecimento da função social que podem as empresas

desempenhar, e cujas preocupações ultrapassam interesses adstritos à própria

empresa, e cujo efeito se verifica no seio social.31

Ensina ALEXANDRE HUSNI, sobre função social da empresa:

A função social da empresa deve ser exercida em prol do cidadão e observando-se os demais preceitos de ordem pública, tais como a proteção do consumidor, a valorização do trabalho e da dignidade humana, além da defesa do meio ambiente. Quando a empresa passa a extravasar o seu objeto social e a atuar também na busca da melhoria da qualidade de vida e do desenvolvimento sustentável, de forma organizada, dirigida e harmônica, a função social plena será a resultante. 32

Num exercício mental rápido, pode-se pensar em desenvolvimento

nacional, construção de uma sociedade justa, solidária, sem pobreza,

marginalização, desigualdade etc, sem que, para isso, haja o desenvolvimento

econômico ? É possível vislumbrar esse cenário sem a figura da empresa ? É

acertado reconhecer que o desenvolvimento econômico e social está

30 Código Tributário Nacional: “Artigo 155-A. O parcelamento será concedido na forma e

condição estabelecidas em lei específica. [...] § 3o Lei específica disporá sobre as condições de parcelamento dos créditos tributários do devedor em recuperação judicial. § 4o A inexistência da lei específica a que se refere o § 3o deste artigo importa na aplicação das leis gerais de parcelamento do ente da Federação ao devedor em recuperação judicial, não podendo, neste caso, ser o prazo de parcelamento inferior ao concedido pela lei federal específica.”

31 A Lei nº 6404/76 é anterior à Constituição Federal de 1988, o que mesmo assim não lhe retira o espírito de preservação das organizações econômicas empresariais.

32 A sua doutrina vai um pouco além, no reforço, segundo o qual a função social é gênero e é alcançada quando a empresa cumpre com todas as obrigações legais impostas pelo exercício da sua atividade empresarial, pelas leis e regulamentos, pagando os seus tributos, respeitando os consumidores, os fornecedores, as obrigações trabalhistas; e quando também supera esses ditames legais e contratuais e vislumbra ideais comunitários e sociais. in Empresa Socialmente Responsável: uma abordagem jurí dica e multidisciplinar, p. 73 e 175.

36

umbilicalmente relacionado com e mesmo dependente da atividade

empresarial.

Sim, porque nem todo o esforço do mundo seria capaz de impedir o

reconhecimento de uma especial função que pode a empresa desempenhar,

no caminho do desenvolvimento social e econômico aspirado pelo estado.

Tão importante a figura da empresa, na conformação econômica,

política e social, que é destaque na doutrina de ALFREDO LAMY FILHO:

(...) No campo econômico-financeiro a atividade traz repercussões aos fornecedores dos insumos, às empresas concorrentes ou complementares, aos consumidores que se habituaram aos seus produtos, aos investidores que associaram à empresa, e aos mercados em geral; no setor humano, a empresa, como se disse, é campo de promoção e realização individual, cuja ação (de propiciar emprego, demitir, promover, remover, estimular e punir) ultrapassa a pessoa diretamente atingida para projetar-se nos campos familiar e social (sic) 33

Esse papel de importante significação econômico-social que a empresa

empresta à nação, com a sua geração de empregos, riquezas, incremento

econômico, como importante base de sustentação econômica, traz consigo a

reflexão do quão importante, também, as deliberações empresariais para as

políticas governamentais. As consequências e resultados podem sobrepujar,

dependendo do que representam para um país, região ou localidade, as

decisões de natureza política.

Na doutrina de MIZABEL DE ABREU MACHADO DERZI, fica clara a

importância da figura da empresa, no exercício da função social, quando

leciona sobre o Princípio da Preservação da Empresa:

Se a empresa cumpre uma função social e é geradora de emprego e riqueza, então a sua preservação não interessa apenas a seus credores investidores, mas ainda ao Fisco, que se alimenta de sua

33 A Função Social da Empresa e o Imperativo de sua reumanização. Revista de Direito

Administrativo, p. 56-60.

37

capacidade econômica, e aos trabalhadores em geral. O Direito Tributário, Previdenciário e do Trabalho deverão ser alimentados por essa nova visão que privilegia a empresa, em detrimento do empresário.34

Na configuração da nossa Carta Constitucional atual, não existe

margem para o desenvolvimento da atividade econômica empresarial voltada

apenas para os interesses particulares almejados. As organizações

econômicas empresariais têm, hoje, o seu desenvolvimento margeado por um

modelo econômico e social enquadrado na Constituição Federal, e os seus

compromissos devem considerar aspectos que ultrapassem os particulares

interesses e tragam resultados positivos para todos quantos com ela

mantenham relação: os seus empregados, a sociedade, a região, o Estado, a

nação.

A empresa encontra um molde constitucional de respeito social que a

impõe, na medida das possibilidades, conformidade. Nesse sentido ensina

ROBERTA MAURO:

A destinação que deverá ser dada ao bem não é mais uma escolha absoluta livre, eis que a Constituição oferece um guia à conduta do titular. (...) a legislação em vigor apresenta hoje uma série de mecanismos capazes de coibir qualquer destinação que se mostre contrária à função social e ao desempenho econômico do bem, em benefício de toda a sociedade. 35

Sabedor dessa colaboração e parceria, e, ainda, divisando que essa

tarefa pode ser aquilatada, o Estado conformou a ordem jurídica no sentido de

que a sua estrutura acaba por impor o exercício da função social.

34 O Princípio da Preservação das Empresas e o Direito à Economia de Imposto. Grandes...,

p. 336. 35 A Propriedade na Constituição de 1988 e o problema do acesso aos bens. in GUSTAVO

TEPEDINO e LUIZ EDSON FACHIN. (Org.). Diálogos Sobre Direito Civil., p. 47.

38

Essa afirmativa de obrigatoriedade fundamenta-se em razão de que o

núcleo estruturante da função social, estabelecido na Constituição Federal de

1988 tem natureza de norma cogente e não de norma programática.

Destaque-se que a Carta Constitucional estruturou-se de forma a

demonstrar que a figura da empresa suscita interesse social. Isso quer dizer

que há um núcleo constitucional estruturado que nos possibilita enxergar a

realização da função social. Isso também implica que não se trata apenas de

uma recomendação constitucional, porque não estamos diante de norma

programática, mas de obrigação do exercício da função social.36

E a obrigatoriedade de se respeitar a função social da empresa não

decorre apenas do fato de se tratar de norma constitucional de aplicabilidade

imediata, elevada a “status” de princípio, mas principalmente, em razão da

aplicação do Princípio da Supremacia da Constituição. Destaca OCTÁVIO

CAMPOS FISCHER:

Por isso concordamos com Clémerson Merlin Cléve, quando leciona que “A supremacia constitucional é dependente, em princípio, da rigidez constitucional...reclama a defesa permanente da obra e dos valores adotados pelo Poder Constituinte”. É dizer, uma Constituição somente é norma e norma suprema de uma Comunidade se houver mecanismos que a proteja tanto dos atos (comissivos e omissivos) dos poderes públicos como, em certa medida, da própria sociedade civil.37

À empresa é possível (i) uma conduta positiva, de cooperação com os

preceitos constitucionais estruturantes da função social – exerce função social;

36 Independente da posição que defenda, relativamente à existência da função social da

propriedade, FÁBIO TOKARS reforça a importância da empresa como sujeito ativo social numa economia globalizada – Função Social da Empresa. in CARMEM LUCIA SIVEIRA RAMOS (Coord.), Direito Civil Constitucional: situações patrimoniai s, p. 77-96. Corrobora essa doutrina JOSÉ AFFONSO DALLEGRAVE NETO, quando reconhece a função social da empresa, e resguarda o seu caráter impositivo, muito embora o faça tendo como pano de fundo a esfera trabalhista: “[...] indubitavelmente, essa imposição de comportamento positivo ao titular da empresa, quando manifesta na esfera trabalhista, significa um atuar em favor dos empregados, o que, na prática, é representado pela valorização do trabalhador [...]” – Responsabilidade Civil no Direito do Trabalho, p. 392.

37 Os Efeitos da Declaração de Inconstitucionalidade n o Direito Tributário Brasileiro, p.13.

39

(ii) uma conduta contraproducente, no sentido negativo da realização dos

preceitos constitucionais estruturantes da função social – não realiza função

social e recai em inconstitucionalidade ou ilegalidade.38 E se estamos diante de

realização de ato que viola preceitos estabelecidos no ordenamento jurídico, é

porque não estamos diante de uma faculdade de exercício, trata-se de

imposição ou obrigatoriedade do seu cumprimento. (iii) Também é possível,

para a empresa, uma conduta neutra, na qual ela se abstém de realizar

qualquer contribuição colaborativa no sentido de realizar algum (uns)

preceito(s) constitucional(is) que perfaz(em) a ideia nuclear de função social da

empresa. Como isso é possível ? Num cenário restrito, economicamente

desfavorável, de empresa inapta, sem rendimentos, pode ela não contratar,

não produzir riqueza, não gerar postos de trabalho; enfim, situação em que a

empresa efetivamente se veja impossibilitada de realizar a função social. Não

é, nessa configuração, obrigada a levar a cabo a função social. Juridicamente,

não há como exigir o seu cumprimento.

A função social, conforme mencionada, é uma diretriz a ser seguida,

pois estabelecida na Carta Constitucional de 1988; e deve ser adotada pelas

organizações econômicas empresariais. Como regra geral, o atendimento à

função social tem cunho obrigatório, havendo, entretanto, uma importante

exceção a ser considerada, que é a impossibilidade jurídico-econômica da

empresa na consecução dessa função social, conforme item (iii) do parágrafo

anterior. É a típica configuração que só se alcança numa análise efetiva do

caso concreto. A não realização da função social constitui de uma situação tão

peculiar, de acordo com o que expusemos, que ingressa na qualidade de

exceção à regra geral da obrigatoriedade. Tal exceção não é juridicamente

capaz de extirpar a função social da empresa do mundo jurídico.

No caso de a pessoa jurídica não observar os preceitos constitucionais

que perfazem, estruturalmente, a função social, não exerce, pois, essa função

e incide em inconstitucionalidade. Se isso ocorrer por impossibilidade jurídico-

38 Referimo-nos à inconstitucionalidade por conta da violação, promovida pela organização

econômica, desse miolo central da função social, previsto na Carta Constitucional: dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho, livre iniciativa, livre concorrência, erradicação da pobreza, marginalidade, redução da desigualdade social e regional, justiça social, defesa do meio ambiente e do consumidor, por exemplo.

40

econômica efetiva, estamos diante de uma situação para a qual não há de se

falar em viabilidade jurídica do exercício da função social. Em ambos os casos,

tanto de não realização da função social pela impossibilidade jurídico-

econômica, quanto pelo voluntário desrespeito ao modelo constitucional da

função social, ainda assim não se cogita da aniquilação da função social.

Essa afirmação encontra fundamento no seguinte raciocínio: se a

empresa não respeitar a dignidade humana, os valores sociais do trabalho, a

livre concorrência, o consumidor, o meio ambiente, atuar de forma a contribuir

para a desigualdade social, marginalização, pobreza, e outros importantes

bens tutelados constitucionalmente, contidos nesse núcleo, estará incidindo em

violação constitucional. Não há saída. De alguma forma a ordem constitucional

exige da pessoa jurídica o exercício da função social. Não estamos diante de

uma readequação voluntária do pensamento econômico-social para os agentes

econômicos, mas uma imposição dessa ordem constitucional, ressalvada a

situação de impossibilidade jurídico-econômica, como exceção.

E não se diga, em razão dessa obrigatoriedade, que a empresa se vê

obrigada a substituir o Estado na sua tarefa estabelecida constitucionalmente.

Conforme resta claro, trata-se de uma atribuição do Estado. A iniciativa

privada, quando exerce essa função social de contribuição, ela o faz em termos

de cooperação, soma de forças, mesmo que de forma cogente. Não pode nem

pretende a substituição estatal. Ainda que a pessoa jurídica seja obrigada,

segundo pensamos, a cumprir a sua função social, exerce-a ao lado e não no

lugar do Estado.

Nesse aspecto de colaboração da iniciativa privada com o Estado,

LUIZ ROBERTO BARROSO doutrina que não há margem para argumentar a

transferência para os particulares – e, pelo nosso interesse, para empresa – da

responsabilidade constitucionalmente atribuída ao Estado:

[...] não se pode, sem prejuízo dos princípios fundamentais da ordem econômica, consagrados na Lei Maior, transferir aos particulares de forma cogente o ônus de concretizar princípios-fins de responsabilidade do Estado. A realização de seus próprios objetivos privados não é incompatível – deve-se enfatizar – com a função

41

social da empresa e certos deveres de solidariedade, mas não inclui o de substituir-se ao Poder Público.39

Sob esse prisma, não há como negar a função social da empresa, e

que esta tem fundamento constitucional. Nem mesmo o argumento da sua

vocação pelo lucro é capaz de aniquilar essa constatação. O lucro é muito mais

um instrumento que abre caminho para a função social, o que será, adiante,

objeto de análise.

FRANCISCO CARDOZO OLIVEIRA destaca a garantia dos direitos

fundamentais de cidadania, e de proteção do modelo de economia de mercado,

da mesma forma tutelados na Constituição de 1988, que, pela sua

funcionalidade, remata esse conteúdo da função social:

Mas é inegável que a atividade empresarial, que constitui o principal modo de exercício da propriedade privada, incorpora a funcionalização própria do direito de propriedade. Por meio da funcionalização do direito de propriedade se torna teoricamente viável pensar as possibilidades e os limites da atividade empresarial, no plano da concretização das regras e princípios do ordenamento jurídico. Considerada a funcionalização do direito de propriedade, a empresa está adstrita à observância de atividade econômica finalística. O conteúdo finalístico da atividade empresarial somente pode ser delimitado mediante a consideração de elementos concretos da situação de atividade empresarial e de exercício do direito de empresa. De qualquer modo, é possível afirmar que a atividade empresarial, no quadro de princípios reitores da Co nstituição de 1988, não pode deixar de pautar-se pelo respeito à dignidade da pessoa humana e pela busca da justiça social. O car áter finalístico da atividade empresarial, tomado na per spectiva do exercício dos poderes proprietários, ganha contorno s nítidos no quadro pautado pela concretização de justiça social e vida digna em sociedade. Os parâmetros de justiça social e de vida digna devem ser tomados a partir do arcabouço de princípi os e regras da Constituição de 1988 , que procura conciliar, em linha de complementaridade, a garantia dos direitos fundamentais de cidadania e a tutela do modelo de economia de mercado. No plano de conciliação de interesses e de complementaridade de direitos e deveres é possível conceber o princípio de respeito à vida digna como aquela situação teórico-prática em que, na atividade administrativa empresarial, resultam preservados os interesses dos

39 A Ordem Econômica Constitucional e os Limites à Atuação Estatal no Controle de Preços.

Revista... p. 15.

42

trabalhadores, consumidores e, de maneira mais ampla, os interesses difusos das pessoas em sociedade (sic) (grifo nosso). 40

Entendimento similar é o de MANOEL GONÇALVES FERREIRA

FILHO, segundo o qual essa compreensão de conteúdo/limite à propriedade,

no que se inclui a empresarial, é veiculada pela própria Constituição Federal.41

Se a regulamentação é requisito para o reconhecimento da função

social, de maneira a demonstrar o que se pretende alcançar, as disposições

constitucionais servem para evidenciar o conteúdo e o papel socialmente

funcionalizado das organizações econômicas.

A função social da empresa é um aspecto que impõe reconhecimento;

existe e tem o seu conteúdo vislumbrado na própria norma constitucional, e,

por isso mesmo, não se resume a uma mera previsão programática. Esse

conteúdo, muito embora prescindível, – porque bastaria, por si só, constar na

Carta Constitucional, – também encontra fundamento na norma

infraconstitucional, a exemplo da Lei nº 6404/1976, Lei das Sociedades

Anônimas, e Lei nº 12.529, de 30/11/2011 – que dispõe sobre a prevenção e a

repressão às infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames

constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da

propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder

econômico.42

40 Uma nova racionalidade Administrativa Empresarial. in Direito Empresarial e Cidadania:

questões contemporâneas. JAIR GEVAERD e MARTA MARILIA TONIN (Coord.), p. 123. 41 Direito Constitucional Econômico, p. 37. 42 A Lei que regulamenta as sociedades anônimas é uma limitação infraconstitucional, cujo

contexto possibilita o entendimento de respeito à função social, pois, por intermédio da vedação à prática, por parte dos dirigentes da empresa, de crimes contra a economia ou em desacordo com a sociedade constituída – artigos 116 e 117, em especial. Nesse sentido lecionam MODESTO CARVALHOSA e NILTON LATORRACA: “O que se extrai da regulamentação infraconstitucional é que o administrador deve perseguir, além dos fins sociais, a função social da empresa.” – Comentários a Lei de Sociedades Anônimas, p. 234.

43

Se a questão era a normatização que indicasse o conteúdo da função

social da empresa, identificamos esse recheio já na Carta Constitucional de

1988 e, claro, os seus reflexos em normas infraconstitucionais.43

Não é inteligente e não se faz necessária uma lei que veicule a

definição do que se entenda por função social da empresa. Até porque,

conforme mencionamos, tal concepção é extraída a partir dos preceitos

constitucionais aplicáveis à empresa, como o respeito à dignidade humana –

artigo 1º, III, e 170, “caput” –; do exercício da sua atividade de forma a respeitar

os valores sociais do trabalho – artigo 1º, IV; da livre iniciativa – também artigo

1º, IV, e 170, “caput”; da contribuição para a construção de uma sociedade

livre, justa e solidária – artigo 3º, I; da cooperação para o desenvolvimento

nacional – artigo 3º, II; da contribuição para a minimização da desigualdade

social, da pobreza e da marginalização – artigo 3º, III; do respeito pela justiça

social – artigo 170, “caput” e 193; também do respeito à livre concorrência –

artigo 170, IV; e ao consumidor – artigo 170, V; do desenvolvimento de seus

objetivos com o cuidado com o meio ambiente – artigo 170, VI, e 225; do não

exercício de sua atividade com abuso de poder econômico – artigo 173, § 4º;

dentre outros que lhe concedem esse caráter de relevante função social.

A função social da empresa resta estampada quando a organização

econômica respeita os preceitos constitucionais a ela imputados, assim como

quando se mostra sujeito na cooperação com o Estado, nas suas tarefas e

atribuições constitucionais.44

Essa visão foi estabelecida na Constituição Federal de 1988 e assim

está delineada. E se passou a diretriz constitucional, ele mesmo, o Estado, não

se pode dela esquivar. Em se tratando de organização econômica empresarial,

o Estado tem o dever constitucional de tutela.

A construção negativa da função social, que lhe imputa um caráter de

retórica legislativa, pela ausência de previsão de sanção pelo seu não

43 Avesso a essa questão, FÁBIO TOKARS: “[...] previsão normativa não se faz capaz de

garantir materialmente os interesses da sociedade.” – Função Social da Empresa. Direito Civil Constitucional, op. cit., p. 96.

44 Assim como o respeito aos preceitos legais que são reflexos da estrutura constitucional conformadora da função social.

44

cumprimento – ou seja, pela compreensão segundo a qual o descumprimento

da função social acarreta tão somente sanção de efeito moral; além do

argumento de que, se existe a previsão de sanção, ela é resultado não do

descumprimento da função social, sanção pelo seu não exercício, mas do

descumprimento de normas específicas que não foram observadas. Tratam-se

de argumentos insuficientes para convencer pela inexistência da função

social.45

Não convencem porque, se partirmos do pressuposto da necessidade

inafastável de previsão legal da referida sanção, a Constituição Federal, por

não veicular, geralmente, sanção pelo descumprimento dos seus princípios

basilares, seria, de todo, retórica. Existiria apenas “pro forma”. Ainda, o fato de

a função social ter cunho obrigatório, conforme afirmamos no presente estudo,

45 Destaque-se que muito embora reconheça a possibilidade de existência material da função

social da empresa, FÁBIO TOKARS ressalta que a ausência de sanção específica retira a eficácia da norma que a apregoa: “As normas existem. São claras quanto ao seu conteúdo e encontram ampla justificativa teórica. Exigem o cumprimento da função social da empresa. Mas, como deveria ser feito com todos os princípios constitucionais, faz-se necessário estabelecer a proporção do conteúdo meramente retórico da norma relativamente à sua eficácia material. [...] crer na função social da empresa significa fechar os olhos ao mundo, construir um paliativo retórico aos efeitos concretos de nossas políticas econômicas. [...] A eficácia material de uma norma juridicamente determinadora de balizas na conduta humana não decorre abstratamente de sua natureza de comando normativo, sendo consequência, sim, do racional temos quanto à imposição de uma sanção vinculada ao preceito normativo. Ganha relevo, assim, o potencial punitivo da norma, o qual assume importância ainda maior numa sociedade carente de valores morais” (sic) – Função Social da Empresa. Direito Civil..., p. 78, 80, 83 e 84. Entendimento esse que reforçou em artigos posteriores. No primeiro deles, A visão do governo federal a respeito do princípio constitucional da busca do pleno emprego. O Estado do Paraná – Caderno de Justiça , 23 de março de 2008, Curitiba. p. 12., no qual renega a sua função social, para além do que resta enunciado na lei, na justificativa de ausência de instrumento jurídico de sua proteção efetiva “[...] se existir função social da empresa, com forma norm ativa, o direito deve fornecer instrumentos de proteção efetiva [...] Se esses instrumentos jurídicos existirem, haverá função social da empresa . Contudo, sabemos, para a tristeza de todos os que desejam uma sociedade menos dependente dos frios postulados capitalistas, que não há instrumentos jurídicos que permitam aos interessados obstaculizar a estratégia do empresário que deseja produzir menos (e empregar menos) para ganhar mais. E exatamente por tal razão, perde materialidade aquil o que chamamos de função social da empresa .” No segundo, Função (ou interesse?) Social da empresa. O Estado do Paraná – Caderno Direito e Justiça , 17 de agosto de 2008, Curitiba. p. 12.: “[...] o descumprimento de tais normas não motiva a aplicaçã o de sanções com fundamento central no descumprimento do princípio da função so cial da empresa. As sanções derivam das normas específicas que foram desrespeit adas . Ou seja: mesmo que a conclusão venha no sentido da inexistência de uma função social da empresa, o empresário que desrespeitar uma norma trabalhista sofrerá exatamente as mesmas sanções que sofreria se todos concordassem que a atividade empresarial em nosso país é regida por aquele princípio”(grifos nossos).

45

não implica necessidade de existência de sanção para o seu cumprimento. A

ausência da sanção constitucional não quer dizer que a empresa não cumpra a

ordem constitucional. Se a mesma viola o núcleo constitucional da função

social, está incidindo em inconstitucionalidade. E, uma vez declarada a

inconstitucionalidade pelo judiciário, que é competente para tanto, o efeito é o

retorno ao “status quo ante”, é o desfazimento do ato. Não estamos tratando de

sanção, mas de efeito da declaração de inconstitucionalidade, que submete

obrigatoriamente a empresa.

Outro argumento que demonstra a desnecessidade ou, até mesmo, a

impropriedade de exigir a possibilidade de imposição de pena, para que a

função social da empresa possa ser alcançada reside no fato de o sistema

jurídico não se consubstanciar apenas por normas jurídicas dotadas de sanção,

pois não se pode negar a existência de normas desprovidas de penalidades e

que, no entanto, não perdem a natureza de norma jurídica. A realidade

empírica demonstra, inclusive, a existência de normas premiativas, que, além

de não possuírem a previsão de sanção negativa, ainda demandam uma

consequência positiva para o seu destinatário, isto é, o sujeito passivo, que

além de cumprir com o desígnio legal, ainda é agraciado por conta desse

comportamento.46

De outro lado, não se pode deixar de ressaltar que a análise da função

social da empresa, à luz da teoria da norma jurídica, está centrada no plano da

validade, ou seja, da sua incidência, e na característica de impor

comportamentos; enquanto que a presença da sanção diz respeito ao plano da

eficácia, isto é, previsão de consequência jurídica pela não observância, por

parte do destinatário, quanto ao conteúdo normativo. Sustentar a

inaplicabilidade da função social da empresa pela ausência de previsão

46 Essa é a lição de JOSÉ ROBERTO VIEIRA que segue a esteira da doutrina de NORBERTO

BOBBIO na compreensão de existência de uma função da norma jurídica com “[...] função promocional, de estimular as ações desejáveis, exprimindo uma concepção do Direito não só como forma de controle social, mas também, de direção social” in Denúncia Espontânea e Multa Moratória: Confissão e Crise na “Jurisdição” Administrativa. Jurisdição: crise, efetividade e plenitude institucional. p. 385-386. NORBERTO BOBBIO. Da Estrutura à Função: novos estudos de teoria do direito. p. 13, 15, 16, 20, 71 e 209.

46

sancionadora implica promover indevida confusão entre os planos da validade

e da eficácia da norma jurídica.47

NORBERTO BOBBIO, embora consinta com a necessidade da

previsão de sanção para compor a estrutura da norma jurídica, busca

fundamento para justificar a existência de norma jurídica constitucional sem

sanção, como é o caso da função social da empresa, esclarecendo que:

Este segundo caso, isto é, das normas superiores, na hierarquia normativa, como são as normas constitucionais, merece uma consideração particular, porque é um pouco “cavalo de batalha” dos não-sancionistas, para quem parece estranho, para não dizer absurdo, que carecem de sanção justamente as normas mais importantes do sistema. Na realidade, para nós, esta ausência de sanção no vértice do sistema não parece absurda, mas, ao contrário, de todo natural. A aplicação da sanção pressupõe um aparato coercitivo, e o aparato coercitivo pressupõe o poder, isto é, uma carga de força imperativa, ou preferir, de autoridade, entre aquele que estabelece a norma e aquele que deve obedecê-la. É, portanto, de todo natural que, conforme passamos das normas inferiores às superiores, nos aproximamos das fontes do poder, e por isso diminui a carga de autoridade entre quem estabelece a norma e quem deve segui-la, o aparato coercitivo perde vigor e eficiência, até que, chegando às fontes do próprio poder, isto é, ao poder supremo (como o que se denomina “constituinte”), uma força coercitiva não é mais absolutamente possível, pela contradição que não o consente, ou seja, porque se esta força existisse, aquele poder não seria mais supremo.48

A citação foi longa, mas necessária, isso porque BOBBIO comungava

de entendimento contrário, todavia, passou a considerar a função promocional

da norma jurídica, ou seja, a sanção positiva. A partir desse entendimento,

demonstrou a possibilidade da existência de normas jurídicas sem sanção

negativa e ainda esclareceu que não é a sanção que irá estabelecer se

determinada imposição de comportamento é ou não norma jurídica, mas sim o

47 Destaque-se que para um Kelseniano puro, a existência de sanção diz respeito à estrutura

da norma jurídica, que está no plano de existência da norma, e não na sua eficácia, conforme ensina MARCOS BERNARDES DE MELLO. Teoria do Fato Jurídico (plano da existência), p. 32-33.

48 Teoria da Norma Jurídica, p. 168.

47

critério de validade dela, da sua referibilidade em relação ao sistema normativo,

desde que a sanção se refira à eficácia e não à validade.49

Ademais, como a função social da empresa é norma jurídica de índole

eminentemente constitucional, não se tem dúvida de que a lição de BOBBIO

permite interpretar que se trata de norma emanada de autoridade de hierarquia

tão superior – no caso, norma constitucional – que se torna impossível ou

pouco eficiente a previsibilidade de aplicação de sanção. É exatamente por

esses motivos que, por exemplo, os direitos e garantias fundamentais do

cidadão, prescritos no artigo 5º do texto constitucional, apesar de serem

normas autoaplicáveis e de não trazerem incertezas quanto à sua imposição e

dever de observância, não têm, no entanto, previsão de sanção por

descumprimento.

Indo além, não se tem dúvida de que HANS KELSEN, com sua “Teoria

Pura do Direito” e, posteriormente, com a “Teoria Geral das Normas”, publicada

postumamente, prestou relevantes contribuições para a evolução do fenômeno

jurídico, especialmente nos estudos da teoria da norma jurídica. Entretanto,

também parece fora de dúvida que a sua classificação de norma jurídica de

sentido completo como sendo composta por norma primária sancionadora e

norma secundaria dispositiva, ou, ainda, norma primária dispositiva e

secundária sancionadora, como parece revelar sua última obra, não consegue

responder por todo o fenômeno jurídico, justamente por existirem, e disso

ninguém duvida – normas jurídicas desprovidas de sanção.

Nesse sentido, na linha defendida pela corrente não-sancionista, a

exemplo de PONTES DE MIRANDA e de KARL LARENZ, a norma jurídica será

uma proposição de sentido completo pelo simples fato de prever, na sua

hipótese, um fato de possível ocorrência no mundo fenomênico, e, na

consequência, o surgimento de uma relação jurídica correspondente. A

existência de um suporte fático e de um preceito, para usar as expressões de

MARCOS BERNARDES DE MELLO, é suficiente para que se tenha uma

norma jurídica de sentido completo, no que se distingue da corrente

49 Ideia nascida na obra NORBERTO BOBBIO. Da Estrutura... . p. 13, 15, 16, 20, 71 e 209.

48

kelseniana, que reputa a sanção como elemento essencial da norma de sentido

completo.50

Nesse particular, concordamos com MARCOS BERNARDES DE

MELLO quando estabelece críticas precisas à proposta kelseniana,

destacando:

I – ao recusar às normas que não contém sanção específica o caráter de normas jurídicas típicas, se não chega a excluir do universo do Direito – porque as considera auxiliares – normas de altíssima relevância, como é o caso, e. g., das normas que definem os direitos fundamentos do homem, ao menos não lhes reconhece a importância e sua verdadeira posição no plano jurídico. Não há como negar, parece-nos, que é muito mais significativa para o direito e para a convivência social a norma segundo a qual “todos são iguais perante a lei”, do que aquela outra que estabelece a pena de prisão para o ladrão que furta, muitas vezes, para dar de comer a seus filhos; 51

Por tais fundamentos, fica evidente que o argumento da

inaplicabilidade da função social da empresa por ausência de previsão legal de

sanção não se sustenta, diante de uma análise um pouco mais apurada do

fenômeno jurídico, especialmente à luz da teoria da norma jurídica.

Por outro viés, se estamos diante de previsão de sanção veiculada pela

norma infraconstitucional, cujo fundamento é a função social extraída da Carta

Constitucional, quando se aplica sanção prevista nessa legislação específica

pelo descumprimento do(s) seu (s) preceito(s), em última análise, é, também,

pelo descumprimento da função social, pois esse é o fundamento da norma. A

conduta empresarial violadora da função social – e não estamos mencionando

a hipótese da impossibilidade jurídico-econômica – com a reprimenda legal em

forma de sanção, mesmo que de forma não diretamente especificada para a

violação precisa da função social, ocorrerá por intermédio da prescrição

infraconstitucional, que encontra o seu fundamento na função social. Seja qual

for o entendimento, a conduta da empresa não é pautada em fundamento

50 Teoria do Fato... , p. 32. 51 Ibidem, p. 33-34.

49

apenas ético, sem qualquer repreensão jurídica. Tampouco a função social é

enunciado retórico.

E mesmo que algum benefício, decorrente dessa vontade

constitucional, seja obtido sem a motivação do dono do capital, estamos diante

da realização da função social, porque dela resulta benefício social. A

existência da função social não está atrelada à subjetividade do dono/gestor da

organização econômica, de seu desejo íntimo de realizar a função social, mas

na efetiva realização do benefício social. Até porque a função social é realizada

pela empresa e não pela vontade de quem a gere.

A motivação, nesse contexto, não é requisito para definição da função

social. O dono/gestor pode até não desejar esse resultado, mas se, do

exercício empresarial, resultar o benefício a terceiros, na linha diretiva

constitucional, certamente estará alcançada a função social.52

Quando se diz que essa é uma visão formalizada na Carta

Constitucional – porque nela estão contidas ferramentas de proteção à

empresa, assim como prescrições que buscam o atendimento da função social,

por parte da empresa – pode-se levantar a seguinte questão: esse conjunto de

prescrições constitucionais, por si só, já atribui à empresa a função social ?

Todas as empresas realizam a função social ?

A Constituição Federal demonstra, por intermédio das suas

prescrições, que esse grupo/categoria, recebe, ou deve receber, – uma tutela

especial, porque nele reconhece importância social – na contribuição com o

Estado para o cumprimento dessa função constitucional. As empresas, quando

assim procedem, como colaboradoras da proteção à dignidade humana; da

52 FÁBIO TOKARS, apesar de compreender que a empresa gera interesse social, e que a

mesma não se vê obrigada a realizar a função social, atrela a realização dessa função à vontade/motivação do empresário: “[...] a empresa gera interesse social, ainda que não esteja obrigada ao cumprimento da alegada função social. O fato de existir a empresa gera benefícios à sociedade: empregos são criados, tributos são recolhidos, incentiva-se a inovação, incrementa-se a concorrência (e a consequente busca pela eficiência). Benefícios que são obtidos independente da motivação do empresário” – Função Social dos Contratos Empresariais. O Estado do Paraná – Caderno Direito e Justiça, p. 12. Esse argumento, segundo o qual a vontade é fator importante para a configuração da função social, não nos parece relevante, e dele discordamos.

50

redução das desigualdades, da pobreza, da marginalização; do respeito à

justiça social etc, exercem função social.

Podem existir, como de fato existem, ensaios legislativos, mas não se

faz necessária a edição de lei específica que estabeleça que “a empresa tem

função social” ou “terá função social se cumprir com um particular requisito.”

Isso apenas reforça a função social, porque, substancialmente, ela é extraída

do próprio texto constitucional.53

Numa interpretação sistemática, podem ser identificados os aspectos

fundantes do que seja a função social da empresa. Do contrário, exigir-se-ia

uma legislação específica, em razão das peculiaridades típicas de cada

atividade empresarial, indicando em quais os casos e em qual ramo

empresarial a função social é atingida. Ressalte-se, isso reforça o fato de que o

seu conteúdo nuclear está na Constituição Federal de 1988.

A materialidade da função social pode exigir a atividade

regulamentadora, mas, sem ela, não se há de afirmar que não existe função

social. Mais uma vez, ela resta estampada na Carta Constitucional, nos termos

da vontade do legislador constitucional.

Ainda no mesmo caminho de reforço dessa questão – se há função

social das organizações econômicas – colocamos, agora, o foco, apenas na

figura da empresa, a partir da análise da lógica de um bem econômico muito

preciso: o lucro.

Talvez a mais disseminada informação que circula pelos corredores

das academias seja a de que o objetivo primeiro do capitalismo, diga-se, das

organizações econômicas nele operantes, é o alcance do lucro. Tal

compreensão é embasada no pensamento de doutrina de destaque, segundo a

qual a “ratio” fundamental do capitalismo é o lucro.54

53 O que a doutrina de FÁBIO TOKARS insiste em renegar. In Função Social da Empresa.

Direito Civil..., op. cit., p. 96. 54 EROS ROBERTO GRAU. O direito posto, o direito pressuposto e a doutrina efetiva do

direito. in ALAÔR CAFFÉ ALVES e outros. O que é a Filosofia do Direito , p. 46. JOSEPH E. STIGLITZ. Globalização: como dar certo, p. 302-305.

51

Esse é o pensamento difundido, que coloca as organizações

econômicas, ainda, como catalisadoras do processo econômico. Todavia,

apesar de ser importante bem econômico do capitalismo, o lucro não é o único

e nem, tampouco, o mais importante. O capitalismo tem outras preocupações

fundamentais, como a expansão da produção e a proteção do capital social,

por exemplo.55

A empresa, em razão de ter como uma das suas pretensões, também,

a busca pelo lucro – que não é a mais importante, – não implica causa

necessária de espoliação dos meios de produção e da classe trabalhadora56.

Não há incompatibilidade entre essa busca pelo lucro e o exercício da

função social da empresa. É exatamente por intermédio do lucro que nasce um

excelente instrumento para a empresa exercer a sua função social.57

Em termos práticos, se for divido o lucro em três partes, uma delas

certamente servirá para a distribuição aos donos do capital, aos donos da

empresa. A segunda parte será destinada ao investimento em capital

constante. A terceira parte será investida em capital variável. Isso quer dizer

que parte do lucro será direcionada para as mãos do proletariado – capital

variável.58

Assim, se parte do lucro investido se converte em capital variável,

chegando às mãos dos trabalhadores, isso beneficia toda a sociedade. O

55 LUÍS FERNANDO LOBÃO MORAIS destaca: “Essa diferença entre o valor de venda e de

produção das mercadorias é parte da lógica do capitalismo. O lucro é um dos mais importantes desses interesses, porém não o único, nem o principal. [...] a proteção social do capital social das empresas chega a ser prioritária em relação ao lucro. O mesmo pode ser dito do imperativo de expansão da produção. Tudo isso parece indicar que o lucro não é o interesse maior, nem a razão hegemônica de o capitalismo adotar as características que o distinguem.” – A Função Social..., p. 475. Por sua vez, ESTEVÁN MÉSZAROS, assevera: “[...] lucro representa um papel importante, a determinação primária não é o lucro [...] mas o imperativo expansionista do sistema que não pode se reproduzir com sucesso a menos que possa fazê-lo em escala constantemente ampliada” – Para além do capital – rumo a uma teoria da transição, p. 905.

56 LUÍS FERNANDO LOBÃO MORAIS menciona que a teoria marxista, segundo a qual, “[...] o lucro é instrumento de exploração da classe trabalhadora pelos proprietários dos meios de produção”, cai por terra – A Função Social..., op. cit., p. 447.

57 Em compreensão diversa, FÁBIO TOKARS ensina: “[...] as normas previsoras da função social da empresa constituem-se em determinação abstrata, contraditória com a realidade do intento lucrativo e carecedora de sanção específica” – Direito..., op. cit., p. 95.

58 LUÍS FERNANDO LOBÃO MORAIS. A Função Social..., op. cit., p. 345.

52

investimento do lucro pelas empresas gera empregos, mas a função social

precípua é o crescimento econômico. Isso revela o caráter social que a

empresa ostenta, em função do lucro.59

Mesmo em se tratando de organizações econômicas no regime

capitalista, não existe contradição com o exercício de uma função social. Tal

exercício não implica renúncia ao lucro. E a busca por esse lucro não inviabiliza

a função social. Não é porque estamos num regime capitalista que isso implica

o raciocínio e o comportamento egoístas das organizações econômicas, na

busca do lucro; até porque o arcabouço constitucional dá, a essas

organizações, um mapa do comportamento a ser seguido60.

A função social exercitada pela empresa não a inviabiliza como

organização econômica, que tem, como uma importante necessidade, o

alcance do lucro; tampouco substitui o Estado na sua função de realizar as

tarefas constitucionais que não lhe são atribuídas; muito embora desempenhe

primordial papel no desenvolvimento econômico e social, exerce-o em caráter

de colaboração.

A complexidade da empresa capitalista impõe que grande parte dos

resultados da sua atividade, inclusive o lucro, não sejam canalizados para um

único grupo de pessoas. É, portanto, distribuído com nítidos benefícios sociais,

sem prejuízo para a atividade econômica. Reforça essa compreensão LUIZ

FERNANDO LOBÃO MORAIS, quando fala sobre as sociedades anônimas de

capital aberto:

Sobre o lucro líquido das empresas, no Brasil, incide uma importante contribuição social. Para essa contribuição, uma parte do saldo é distribuída aos acionistas e titulares de partes beneficiárias, em

59 Ressalta: “[...] o lucro faz aumentar, constantemente e exponencialmente, a riqueza social.

[...] “Ao ser investido, o lucro se faz capital, aumentando o volume deste na economia. Quanto mais capital, mais produção. Como a produção capitalista tende a aumentar o capital variável mais do que os outros tipos de capital, não se pode senão concluir que o lucro é o principal responsável pela ascensão econômica do proletariado...” – Ibidem, p. 447.

60 Sustenta, de maneira diametralmente diversa, FÁBIO KONDER COMPARATO, que é incongruente falar em função social, considerando o regime capitalista. Estado, empresa e função Social. Revista dos Tribunais, p. 45

53

conformidade com os respectivos quinhões. Essa parte da mais-valia produtiva distribuída aos acionistas e outros beneficiários são os dividendos. Outra parte do lucro é destinada à constituição das reservas da sociedade, algumas vezes por força de lei, outras em decorrência do estatuto ou deliberação da assembleia. Uma terceira parte do lucro costuma ser reinvestida na produção. A parte do lucro reinvestida da empresa transforma-se em capital social. [...] No direito brasileiro, existe uma “proteção preferenci al ao capital, relativamente aos lucros ”, e isso “empresta à empresa capitalista um caráter nitidamente social ”. [...] “Não apenas a maior parte do lucro é transformada em capital social. Uma vez convertida em capital, essa parcela do lucro fica presa na empresa. Ela não pode ser resgatada ou amortizada, a não ser em casos muito bem determinados. Tudo isso mostra que o destino do lucro não é o bolso dos ‘capitalistas’ e sim, via de regra, o inv estimento produtivo, o investimento em benefício de todas as pessoas que recebem valores das empresas. Tanto os administradores como os empregados, os prestadores de serviços, os fornecedores de insumos, os consumidores, enfim todos aqueles que recebem alguma coisa das empresas beneficiam-se do reinvestimento produtivo [pela competição de mercado] do lucro e da sua retenção para composição de reservas” 61 (esclarecimentos nos colchetes).

Se o bem econômico resultante da atividade empresarial, o lucro, é

reinvestido na produção, o benefício será socializado, na medida em que serão

beneficiados tantos quanto estiverem situados na cadeia produtiva.

Aquela função de não servir apenas aos interesses do seu proprietário,

mas transcender para terceiras pessoas – função social – resta estampada

nesse raciocínio do reinvestimento do lucro das empresas.

Estamos falando de organizações econômicas e cientes disso, parte do

produto de suas atividades é revertido em proveito pessoal do capitalista.

Apesar disso, esse lucro é, em muito maior medida, reinvestido na produção da

empresa. Entende assim LUÍS FERNANDO LOBÃO MORAIS: “Lucro é uma

contribuição, cobrada pelo dono do capital e paga pelos consumidores para a

manutenção e o desenvolvimento futuro das forças produtivas”. Ainda, afirma

que a parte retirada pelos sócios da empresa integra o patrimônio do dono da

empresa e isso se assemelha mais a rendimento do capital investido do que

uma contribuição de caráter social. Mas o volume maior da parcela do lucro

permanece na empresa comparativamente com o que é retirado. Isso faz com

que a natureza do lucro seja de contribuição e não de rendimento de capital. O

61 A Função Social..., op. cit., p. 435-436.

54

autor dá uma roupagem social ao lucro, contrapondo-se a compreensão de

Karl Marx, segundo o qual lucro é uma apropriação indevida do trabalho

humano.62

Sem querer ser ingênuo, esse reinvestimento não ocorre em razão do

altruísmo do dono do capital, mas por força a exigência e da competição do

mercado. A função social da empresa não segue o raciocínio simplório do

assistencialismo, da doação de produtos, da distribuição pura e simples de

lucros aos empregados, de forma a restringir os seus objetivo,s em prol de

terceiros. Conforme ensina MARCOS PAULO DE ALMEIDA SALLES, “[...] a

empresa não pode ser corolário de filantropia e nem selvageria, mas apenas

deve ser a contribuição privatista para o desenvolvimento social, mediante a

reunião de fatores produtivos.”63

É a mesma a compreensão de LUIZ ROBERTO BARROSO:

Como se pode singelamente constatar, o regular exercício de suas atividades pelas empresas privadas – como tal entendido o que observa os princípios de funcionamento da ordem econômica – já viabiliza uma parte importante do bem-estar social. O que o Estado não pode pretender, sob pena de subverter os papéis, é que a empresa privada, em lugar de buscar o lucro, oriente sua atividade para a consecução dos princípios-fins da ordem econômica como um todo, com sacrifício da livre-iniciativa. Isto seria dirigismo, uma opção por um modelo historicamente superado (sic).64

A ideia de função social muda substancialmente a forma clássica de

enxergar as organizações empresariais, como máquinas a serviço do

capitalismo, cujo propósito é meramente econômico e financeiro. Essa

62 Ibidem, p. 338-339 e 342. A idéia de lucro como uma apropriação indevida do trabalho

humano resta consignada por KARL MARX, Salário, preço e lucro, p. 57. 63 A Visão Jurídica da Empresa na Realidade Brasileira Atual. Revista de Direito Mercantil,

p. 107. 64 Revista... p. 16, Disponível na internet: HTTP://www.direitopublico.com.br. Acesso em 03 de

abril de 2012.

55

compreensão não mais se sustenta, tendo em vista o conteúdo disposto na

nossa Lei Maior.65

Se for considerado o direcionamento dessas parcelas do lucro, por

parte da empresa, para fins do impacto econômico, o montante que é revertido

em favor do dono do capital não tem tanto relevo econômico quanto aquele

revertido em prol da produção, que em, última análise, é a reversão para a

sociedade.66

A empresa tem, no lucro, um instrumento que viabiliza e afirma a sua

função socialmente relevante. É esse a sua maior arma para o investimento

produtivo. Contemporaneamente, é a fonte financiadora das forças produtivas.

E ao falar de força produtiva, estamos, necessariamente, falando de pessoas,

empresas prestadoras de serviços, empregados, enfim, da sociedade, que é

alcançada pelos benefícios financiados pelo lucro empresarial.

Simultaneamente tem a função de suportar o desenvolvimento produtivo e de

ser usufruído por parte daqueles que a ele tem acesso privilegiado. 67

65 Conforme entendem EDUARDO AUGUSTO DREWECK MOTA e OSMAR PONCHIROLLI,

in ANTONINHO CARON e OSMAR PONCHIROLLI (Coord.). Globalização, organizações e estratégias empresariais , p. 194

66 LUÍS FERNANDO LOBÃO MORAIS chama a atenção que “[...] o papel do lucro para os particulares, sobretudo para os proprietários das empresas, é muito menos relevante do ponto de vista macroeconômico do que o papel dessa mesma contribuição para a sociedade em geral”(sic) – A Função Social..., op. cit., p. 339.

67 JOSEPH E STIGLITZ, referindo-se às empresas multinacionais, destaca que grande parte delas é mais rica do que muitos países em desenvolvimento. São ricas e politicamente poderosas e influenciadoras. Tais empresas buscam o lucro, e isso quer dizer que a sua prioridade máxima é o alcance do lucro. “As empresas buscam o lucro e isso significa que ganhar dinheiro é a prioridade máxima delas. As companhias sobrevivem diminuindo, dentro da legalidade, seus custos ao máximo. Elas evitam pagar impostos sempre que possível; algumas economizam no seguro-saúde de seus empregados, muitas limitam os gastos com o saneamento da poluição que provocam. Com frequência a conta é assumida pelos governos dos países em que atuam.” Muito embora entenda que a busca primeira desse grupo de empresas é o lucro – entendimento com o qual demonstramos não concordar, no presente ensaio – e referir apenas as grandes empresas – justificável, porque o contexto da obra tem, como pano de fundo, o ambiente globalizado, – o autor, ainda assim, mesmo não sendo essa a sua pretensão – porque do seu ponto de vista as grandes corporações realizam, com frequência, comportamentos desvantajosos para a sociedade, – demonstra que essa busca pelo lucro não inviabiliza a sua função social: “As grandes empresas levaram empregos e crescimento econômico às nações em desenvolvimento [...] baixando o custo de vida e contribuindo assim para uma era de inflação pequena e taxas de juros baixas” (grifos nossos). Globalização..., op. cit., p. 302-305. Lembrou-se que um fator que possibilita o caráter social da empresa é o reinvestimento do seu lucro na produção. Se for levantado o argumento de incompatibilidade da empresa capitalista, perseguidora do lucro, com o desempenho de função social, em razão do acesso privilegiado àquele bem econômico, ou pelo controle dele pelos proprietários, o que perfaz

56

O lucro desempenha função relevante para a atividade empresarial.

Um ambiente jurídico-econômico não propício ao desenvolvimento ou à

manutenção estável da empresa, não resta dúvida de que acarreta abalo no

lucro. E como ela é uma relevante fonte de incremento da economia capitalista,

numa sociedade sem lucro, o seu crescimento – desenvolvimento social,

incremento econômico – seria pífio.

A busca pelo lucro não é incompatível, pois, com a realização da

função social. Por todo o exposto, o lucro é um mecanismo eficiente das

organizações econômicas, nesse caminho da concretização dessa função – a

social. Também não há de se cogitar de que a sua efetivação se deva dar pelo

caminho da socialização do ganho – socialismo compulsório. A função social

está intrinsecamente ligada à realização do núcleo estruturante disposto na

Constituição Federal de 1988, derramando resultados na forma de benefícios

sociais.

A ideia relativa à função social não obsta o lucro, tampouco impõe a

socialização dos ganhos; e a doutrina, no afã de negar a função social, não

pode erguer esse argumento, que é nitidamente frágil, no sentido de

incompatibilidade do lucro com a função social da empresa. Do contrário, seria

uma espécie de distorção na finalidade de sustentação da produção pelo lucro, estamos diante de uma questão relevante que não deve ficar sem resposta. Muito embora se reconheça que há uma distorção, isso não implica que todo o mecanismo em torno da produção ou apropriação do lucro, no regime capitalista, é torto ou injusto. A generalização pode levar ao equívoco. LUÍS FERNANDO LOBÃO MORAIS, ensina que “[...] não importa se pelas mãos de capitalistas, dos titulares das ações em geral, dos administradores das empresas, do Estado ou de outras pessoas, o fato é que o lucro é reinvestido na empresa, gerando incontáveis benefícios econômicos e sociais.[...] as injustiças do capitalismo não podem ser atribuídas ao lucro, porque é possível se corrigir, em grande medida, essas injustiças, sem alterar os mecanismos sociais de produção e apropriação do lucro” – A Função Social..., op. cit., p. 339-340. E quanto à possibilidade de argumento na direção da empresa capitalista, perseguidora que é do lucro, nesse caminho, utiliza-se de meios de exploração da força de trabalho, sejamos conscientes: é incontestável que ocorre exploração de trabalhadores pelos proprietários do capital. Mas estamos diante de regra ? Podemos dizer que essa é uma situação de caráter generalizado ? Em razão disso, podemos atribuir a miséria do mundo à exploração da mão de obra trabalhadora pelos procedimentos utilizados pelas empresas ? Parece que não estamos diante de respostas positivas para as questões levantadas. Entende assim também o autor, na mesma obra: “[...] o capitalismo avançado não é propriamente um método de exploração. [...] a situação econômica e social deles [dos trabalhadores] melhora continuamente. [...] Há exploração ocorrendo no capitalismo atual, mas isso não é regra. [...] A miséria mundial parece decorrer em muito maior medida da exclusão de populações do capitalismo do que da exploração levada a efeito pelos proprietários do capital” (esclarecemos, nos colchetes) – Ibidem, p. 375.

57

entender a função social como razão de potencial prejuízo aos interesses da

empresa, que, sabidamente, não o é, porque a função social não inviabiliza o

desenvolvimento ou onera a empresa em prol do seu pretenso exercício. Tal

como delineada na Constituição Federal, ela não desconstrói a ideia de

crescimento e desenvolvimento econômico empresarial. Não se diga que a

estrutura constitucional seguiu roteiro contrário ao desenvolvimento econômico

das atividades empresariais. Não é, também, retórica legislativa, do contrário,

toda a Carta Constitucional correria o risco de assumir esse caráter.68

É importante analisar o papel que as organizações econômicas

desempenham, para o desenvolvimento econômico do país. Dizemos isso

porque os gastos públicos alcançam uma parcela da população

quantitativamente reduzida, quando comparada àquela que recebe os

benefícios advindos dos investimentos das empresas. Isso não denota função

social ?69

Ensina LUÍS FERNANDO LOBÃO MORAIS:

(...) embora uma parte dos 36% da renda nacional administrados pelo Estado Brasileiro acabem chegando às mãos de trabalhadores, a eficácia distributiva desse tipo de circulação de bens é inferior à da distribuição operada por meio do investimento do capital na produção. (...) Não se diga que os gastos sociais do Estado melhoram a distribuição de renda. No Brasil, por exemplo, os gastos públicos na área social deixam muitíssimo a desejar. Excluindo-se a Previdência Social, um proporção muito pequena deles produz inclusão econômica. Os gastos sociais do governo brasileiro são marcadamente assistenciais. Inclusão econômica não é assistencialismo e sim trabalho. 70

Aquele papel de cooperação da empresa – que, nesse contexto, é

viabilizado pelo lucro – para com o Estado, para a finalidade do

desenvolvimento econômico e social ganhou proporção tamanha que hoje

evidencia a dificuldade, e, dir-se-ia, a incapacidade, de o Estado, sozinho,

68 A função social da Constituição Federal não é retórica político-ideológica, menos ainda foi

estruturada para pôr em risco a manutenção estável da empresa. 69 PETER DRUCKER. Sociedade pós-capitalista, p. 95-96. 70 A Função Social..., op. cit., p. 381.

58

alcançar desenvolvimento considerado satisfatório. Estamos diante de uma

organização econômica cuja colaboração é socialmente necessária.

Navegamos num ambiente jurídico, mas com a atenção voltada para os

seus resultados econômicos e sociais. São esses resultados que podem ou

não corroborar a teoria da função social da empresa. Esse papel parece muito

claro: a empresa desempenha sim uma importante função social.

Em reforço de argumento, é fato que um aspecto relevante para a

empresa é o alcance do lucro. O argumento a partir do qual não se concebe a

função social da empresa, questiona a incompatibilidade entre essa busca pelo

lucro e o papel social. Parece claro que a empresa e a sua busca pelo lucro

não se contrapõem à função social. O lucro, por si só, tem função social, o que,

por consequência, coloca a empresa com esse papel também social. A busca

do lucro não torna a empresa antissocial. O ordenamento jurídico não reprime

o lucro, mas apenas o seu excesso, juridicamente considerado.71

Não devemos conceber, também, a ideia segundo a qual somente às

grandes empresas, pela sua destacada capacidade de auferir maior lucro, é

possível a satisfação da função social. Se esse raciocínio fosse acertado, a

microempresa ou as empresas de pequeno e médio porte, pela sua menor

estrutura econômica, seriam incapazes de realizar a sua atividade exercendo

71 Há quem não conceba a função social da empresa por entender que isso representa a

escusa do estado no seu dever de cumprir com as políticas sociais e financeiras. FÁBIO KONDER COMPARATO ensina: “É imperioso reconhecer, por conseguinte, a incongruência em se falar numa função social das em presas. No regime capitalista, o que se espera e exige delas é, apenas a eficiência lucrativa, admitindo-se que, em busca do lucro, o sistema empresarial como um todo exerça a tarefa necessária de produzir ou distribuir bens e de prestar serviços n o espaço de um mercado concorrencial. Mas é uma perigosa ilusão imaginar-s e que, no desempenho dessa atividade econômica, o sistema empresarial, livre d e todo controle dos poderes públicos, suprirá naturalmente as carências sociais e evitará os abusos: em suma, promoverá a justiça social ” (grifo nosso) – Estado..., op. cit., p. 45. Já LUÍS FERNANDO LOBÃO MORAIS explica: “O lucro empresarial, em particular, é tratado no parágrafo 4º do artigo 173 da Constituição Brasileira, que estabelece que os seus limites serão estabelecidos em lei ordinária, no caso a Lei 8884/94. Esses diplomas legais limitam-se a proibir o lucro decorrente de abuso de posição econômica dominante e do aumento injustificado de preços controlados pelo Poder Público. Em outras palavras, o lucro pode ser tão elevado quanto possível, desde que decorra de estratégias de dominação de mercado (monopólio, cartel, truste etc.) ou do aumento de preços controlados pelo Estado. Em síntese, o bem jurídico protegido pelo limite legal ao aumento do lucro empresarial é a economia de mercado (principalmente a livre iniciativa e a livre concorrência). Preservado esse bem jurídico, o lucro pode assumir quaisquer valores.” – A Função Social..., op. cit., p. 427.

59

função social. A própria Constituição Federal de 1988 estabelece um

tratamento distinto para as mesmas, inclusive tributário, exatamente pela sua

condição, por excelência, de realizar a função social pretendida pelo

constitucional. Estariam elas, pois, desincumbidas de observar a estrutura

constitucional da função social aplicável à empresa ? Resta claro que não.

Ademais, não é a infraestrutura econômica da empresa que lhe concede o

caráter de realizadora de função social, mas o respeito efetivo do modelo

traçado na Constituição Federal de 1988.72

Percebemos, pois, numerosos argumentos equivocados que giram em

torno da função social da empresa. Deparamo-nos com compreensões que

embora, afirmem o exercício da função social pelas organizações econômicas

empresariais, fazem-no, muitas vezes, sob argumentos frágeis. De outro lado,

encontramos posicionamentos avessos a tal ideia, e, para o sustento da sua

oposição, descarregam uma gama numerosa de elementos negativos da

função social.

Propomos agora uma síntese do raciocínio, com o resgate dos pontos

mais sensíveis da função social destacadas neste item, num sentido lógico, no

qual nos possamos apoiar para confrontar os posicionamentos relativos à

função social.

No argumento segundo o qual, para existir a função social, faz-se

necessária a definição em lei e a regulamentação, para a determinação do seu

conteúdo e alcance, destacamos, pois, que tal é prescindível, pois resta

estruturada na própria Constituição Federal e dela se extrai a função social da

empresa. A empresa realiza a função social quando satisfaz esse núcleo

constitucional estruturante. O seu conteúdo e alcance está fundado na Carta

72 FÁBIO KONDER COMPARATO. Estado..., op. cit., p. 44. Vide artigo 146 da Carta

Constitucional: “Artigo 146. Cabe à lei complementar: [...] III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: [...] d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no artigo 155, II, das contribuições previstas no artigo 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o artigo 239.”

60

Constitucional. É possível visualizar a função social da empresa sem

necessidade de legislação infraconstitucional. Embora desnecessária a

legislação infraconstitucional, enunciando a função social da empresa, ela

existe muito mais para reforçar o que se encontra substancialmente apregoado

na Constituição. Se há norma infraconstitucional que prevê obrigações para a

empresa, a sua obediência pura e simples não implica a função social, isto é, a

prescrição legal de obrigações impositivas não se confunde com o atendimento

da função social. Haverá o atendimento desta função quando a ideia

constitucional nuclear da função social estiver sendo veiculada pela norma e

obedecida pela empresa.

No raciocínio pelo qual a função social existe e é, por isso mesmo, de

compulsória realização para a empresa, destacamos que ela poderá (i) ter uma

conduta positiva, de cooperação com os preceitos constitucionais estruturantes

da função social, mesmo que seja minimamente – exercendo, então, função

social; – (ii) uma conduta contraproducente, no sentido negativo para a

realização dos preceitos constitucionais estruturantes da função social – não

realiza função social e incide em inconstitucionalidade ou ilegalidade; e (iii) uma

conduta neutra, na qual se abstém de realizar qualquer contribuição

colaborativa, no sentido de realizar algum (uns) preceito(s) constitucional(is)

que perfaz(em) a ideia nuclear de função social da empresa – empresa inapta,

– sem rendimentos, em razão de que não pode contratar, produzir riqueza, não

gerar postos de trabalho, enfim, situação em que a empresa, efetivamente,

veja-se impossibilitada de realizar função social. E por esse motivo mesmo não

resta obrigada, juridicamente, ao exercício da função social, por se tratar,

exatamente, de uma exceção à regra geral da obrigatoriedade do seu

exercício. Por ser uma diretriz a ser seguida, desde que estabelecida na Carta

Constitucional de 1988, a função social deve ser cumprida pelas organizações

econômicas empresariais. Não tem o cunho obrigatório apenas em caso

excepcional, como na situação jurídica e economicamente inviável de seu

exercício. Contudo, isso não é juridicamente capaz de extirpar a função social

da empresa do mundo jurídico.

A existência da função social decorrente, unicamente, do exercício da

grande empresa, torna-se fundamento pobre e frágil. Sob esse raciocínio, a

61

microempresa e a empresa de pequeno porte não seriam aptas para o

exercício da função social. Se não são aptas, a função social só é aplicável às

grandes empresas, o que não se concebe. Ressalte-se que não é a

infraestrutura econômica da empresa que lhe dá o caráter de realizadora da

função social, mas o respeito pelo modelo traçado na Carta Constitucional.

A não aceitação da função social, sob o argumento da sua

incompatibilidade com a busca precípua, da empresa pelo lucro, não subsiste,

pois, apesar de ser um importante objetivo, não é o primeiro. A sua busca e

alcance não desnatura a função social que desempenha a empresa. Não existe

incompatibilidade entre ambos. Ademais, o lucro é muito mais um instrumento

que possibilita à empresa realizar a função social.

Não se mantém o discurso segundo o qual não se concebe a função

social porque ela pressupõe relegar a busca pelo lucro e impõe a socialização

dos ganhos. Para o exercício da função social, não se faz necessário relegar o

lucro, porque, além de tudo, o lucro, conforme muitas vezes mencionado, é um

instrumento importante para a realização da função social. Também não

implica socializar lucro, pois o exercício da função social está intrinsecamente

ligado à realização do núcleo estruturante disposto na Constituição Federal.

Da mesma forma, para recusar a existência da função social da

empresa utiliza-se o fundamento de que o cumprimento da legislação, mesmo

que traga benefício social, quando não decorra da vontade do empresário, não

é realização de função social. Destacamos, todavia, que não é a vontade do

dono da empresa que define a função social, mas a efetiva concretização de

benefício para além dos interesses da empresa. A função social é realização

da empresa e não de quem a gere.

Assim como prescinde de legislação infraconstitucional e de vontade

do gestor da empresa, o exercício da função social não exige sanção

constitucional estabelecida. A ideia segundo a qual a função social é retórica

legal porque não há sanção constitucional pelo seu descumprimento, cai por

terra, primeiro, porque, se partirmos desse pressuposto, toda a Constituição

Federal, por não veicular sanção ao seu descumprimento, seria retórica, e

62

existiria apenas “pro forma”; segundo, o fato de a função social ter cunho

obrigatório não implica necessidade da existência de sanção para o seu

cumprimento. Isso não quer dizer que a empresa não cumpra com a ordem

constitucional. Se a empresa viola o núcleo constitucional da função social,

está incidindo em inconstitucionalidade, e, uma vez declarada pelo judiciário, o

efeito é o obrigatório desfazimento do ato da empresa, com o devido retorno ao

“status quo ante”. Não estamos tratando de sanção, mas de efeito da

declaração de inconstitucionalidade. Todavia, se há previsão de sanção

veiculada pela norma infraconstitucional, cujo fundamento é a função social

extraída da Carta Constitucional, quando se aplica sanção prevista nessa

legislação específica pelo descumprimento do(s) seu (s) preceito(s), a sanção,

em última análise, é, também, pelo descumprimento da função social, pois

esse é o fundamento da norma. A conduta empresarial violadora da função

social – e não estamos mencionando a impossibilidade jurídico-econômica –

com a reprimenda legal, em forma de sanção, mesmo que de forma não

diretamente especificada para a violação precisa da função social, ocorrerá por

intermédio da sanção da prescrição infraconstitucional que encontra o seu

fundamento na função social. De qualquer modo, a conduta da empresa não é

pautada em fundamento ético, nem, tampouco, a função social é enunciado

retórico.

Reconhecemos a função social da empresa, tal como restou provado

neste item, e esse reconhecimento resulta na necessidade de o Estado tutelar

a empresa e a sua manutenção econômica estável. Esse espírito e os

instrumentos jurídicos constitucionais que velam pela sustentabilidade

econômica empresarial serão objeto do próximo item.

1.5 FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA COMO REFLEXO DA DIRETRIZ

CONSTITUCIONAL

Parece-nos claro não ser outra a visão que o Estado tem da empresa,

a de importante figura para o desenvolvimento econômico e social. Tanto que

63

os reflexos dessa visão podem ser verificados nas linhas diretivas

constitucionais.

Muito embora não expressa, consoante mencionado, a função social

da empresa resta substancialmente extraída dos dispositivos constitucionais

que tanto dão conteúdo quanto declaram a sua existência.

O conjunto de elementos que formam o sistema de referência teórico

da função social é composto primordialmente por prescrições constitucionais.

Esse referencial é extraído, especialmente, da proteção da dignidade da

pessoa humana, disposta nos artigos 1º, III, e 170, “caput”; dos valores sociais

do trabalho, do artigo 1º, IV; da livre iniciativa, também do artigo 1º, IV e 170,

“caput”; do objetivo de construção de uma sociedade livre, justa e solidária, do

artigo 3º, I; do objetivo de garantia do desenvolvimento nacional, do artigo 3º, II;

da erradicação da pobreza, da marginalização e da redução da desigualdade

social e regional, do artigo 3º, III; do fundamento de valorização do trabalho

humano, do artigo 170, “caput”; dos ditames da justiça social, dos artigos 170,

“caput” e 193; e dos princípios da livre concorrência, do artigo 170, IV; da

proteção do consumidor, do artigo 170, V; e da defesa do meio ambiente, dos

artigos 170, VI e 225.

A Constituição Federal de 1988 tem, pois, uma estrutura de bases

sólidas, da qual se extrai a realização da função social por parte da empresa,

conforme repisado. Embora contenha o núcleo dessa ideia, não está,

entretanto, sozinha, nessa tarefa.

Dizemos isso porque a legislação infraconstitucional, como reflexo

constitucional, também veicula preceitos que, realizados, outorgam à empresa

o caráter de concretizadora da função social. É o caso da Lei nº 11.101/2005,

Lei de Recuperação Judicial e Extrajudicial, a qual a prevê, no seu artigo 47; da

Lei nº 6404/1976, Lei das Sociedades Anônimas, nos seus artigos 116,

parágrafo único, e 154; e da Lei nº 9279/1996; da Lei Complementar nº

118/2005, que introduziu alterações no Código Tributário Nacional, nos artigos

133, e parágrafos, de maneira a isentar a responsabilidade tributária por

sucessão, em processo de falência ou recuperação judicial, assim como,

64

também introduziu os §§ 3º e 4º ao artigo 155-A, do Código Tributário Nacional,

para disciplinar o parcelamento dos créditos tributários do devedor em situação

de recuperação judicial.73

Nesse ambiente infraconstitucional, fazemos um destaque para a

seguinte questão: as normas que veiculam o regramento sobre a decadência e

a prescrição tributárias, dispostas na Lei nº 5.172, de 25/10/1966, Código

Tributário Nacional, podem ser consideradas como instrumentos desse

ordenamento infraconstitucional para proteção e manutenção econômica

empresarial, de maneira a afirmar a tutela à empresa, porque nela se enxerga

função social ? Embora pertinente essa questão, quando estamos diante da

indicação de instrumentos legislativos que conformam essa ideia, em razão

desses institutos ganharem um espaço especial para o seu estudo, no capítulo

3, é nele que tentaremos responder à questão ora apresentada.

Existem, também, argumentos que nos permitem identificar uma

organização constitucional alinhada com a vontade estatal de preservar e

fomentar as organizações econômicas. Encontram-se traçados princípios que

são verdadeiros instrumentos de incentivo, resguardo e manutenção

econômica para as empresas, quando utilizados de acordo com a vontade

fixada no sistema constitucional, como o da livre iniciativa, fundamento da

República, artigo 1º, IV; e fundamento da ordem econômica –, 170, “caput”; o

da livre concorrência – artigo 170, IV; o exercício estatal de agente normativo,

regulador, fiscalizador e incentivador da atividade econômica – artigo 174; o

tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte – artigo 170, IX; o

tratamento jurídico distinto para as microempresas e para as empresas de

pequeno porte – artigo 179. Ademais, temos os princípios indicadores das

limitações da competência tributária que, nesse contexto, aplicáveis às

empresas, reforçam seu caráter de instrumentos protetivos, como os da

Legalidade, Isonomia, Irretroatividade, Anterioridade, Não-confisco – artigos

150, I; III, a, b e c; e IV. Esse conjunto de prescrições constitucionais

73 A normatização da função social, inclusive da empresa, tem como fundamento primeiro a

Constituição Federal de 1988, e, por esta razão, derrama também os seus reflexos na legislação infraconstitucional. Assim ensina CLAYTON REIS in A responsabilidade civil do empresário em face dos novos comandos legislativos contidos no Código Civil de 2002. Direito Empresarial e Cidadania: questões contempor âneas, p. 54.

65

descrevem a vontade do legislador constitucional de fortalecimento e proteção

às empresas.74

Da mesma maneira, existem, também, disposições legislativas

infraconstitucionais que traçam perfeitamente a vontade de preservação e

incentivo às empresas, como a Lei nº 6404/1976, artigos 116 e 117, que

impõem limitação da responsabilidade dos que desejam realizar

empreendimentos, servindo como estímulo à atividade empresarial; 75 como a

74 Assim como a sua regulamentação infraconstitucional por intermédio da Lei Complementa

123/2006. 75 “Artigo 116. Entende-se por acionista controlador a pessoa, natural ou jurídica, ou o grupo

de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum, que: a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembléia-geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia. Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender; Artigo 117. O acionista controlador responde pelos danos causados por atos praticados com abuso de poder. § 1º São modalidades de exercício abusivo de poder: a) orientar a companhia para fim estranho ao objeto social ou lesivo ao interesse nacional, ou levá-la a favorecer outra sociedade, brasileira ou estrangeira, em prejuízo da participação dos acionistas minoritários nos lucros ou no acervo da companhia, ou da economia nacional; b) promover a liquidação de companhia próspera, ou a transformação, incorporação, fusão ou cisão da companhia, com o fim de obter, para si ou para outrem, vantagem indevida, em prejuízo dos demais acionistas, dos que trabalham na empresa ou dos investidores em valores mobiliários emitidos pela companhia;

c) promover alteração estatutária, emissão de valores mobiliários ou adoção de políticas ou decisões que não tenham por fim o interesse da companhia e visem a causar prejuízo a acionistas minoritários, aos que trabalham na empresa ou aos investidores em valores mobiliários emitidos pela companhia; d) eleger administrador ou fiscal que sabe inapto, moral ou tecnicamente; e) induzir, ou tentar induzir, administrador ou fiscal a praticar ato ilegal, ou, descumprindo seus deveres definidos nesta Lei e no estatuto, promover, contra o interesse da companhia, sua ratificação pela assembleia-geral; f) contratar com a companhia, diretamente ou através de outrem, ou de sociedade na qual tenha interesse, em condições de favorecimento ou não equitativas; g) aprovar ou fazer aprovar contas irregulares de administradores, por favorecimento pessoal, ou deixar de apurar denúncia que saiba ou devesse saber procedente, ou que justifique fundada suspeita de irregularidade. h) subscrever ações, para os fins do disposto no artigo 170, com a realização em bens estranhos ao objeto social da companhia. § 2º No caso da alínea e do § 1º, o administrador ou fiscal que praticar o ato ilegal responde solidariamente com o acionista controlador. § 3º O acionista controlador que exerce cargo de administrador ou fiscal tem também os deveres e responsabilidades próprios do cargo.”

66

Lei nº 12.529/2011, que dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações

contra a ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de

liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa

dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico; como a Lei nº

9.279/1996, que, na mesma forma, protege e fomenta o empreendedorismo, na

medida em que incentiva a proteção dos direitos empresariais de propriedade

industrial; como, também, o Enunciado nº 53, da Jornada de Direito Civil, que

traduz o entendimento do Conselho da Justiça Federal, no sentido de enunciar

a função social das empresas, mesmo diante da omissão do artigo 966, do

Código Civil Brasileiro; como a Lei Complementar nº 118/2005, que introduziu

alterações no Código Tributário Nacional, no artigo 133 e parágrafos, de

maneira a isentar a responsabilidade tributária por sucessão, em processos de

falência ou de recuperação judicial; como a mesma Lei Complementar, que

introduziu também os parágrafos 3º e 4º, no artigo 155-A, do Código Tributário

Nacional, para disciplinar o parcelamento dos créditos tributários do devedor

em situação de recuperação judicial; e tantas quantas forem as disposições

infraconstitucionais que veiculem prescrições que propugnem pelo resguardo e

fomentos das empresas.76

Tanto essa vontade se difunde pela legislação que é possível, ainda,

verificar que, além do exposto desenho constitucional e infraconstitucional de

atendimento à função social da empresa, e dos mecanismos legislativos que se

conformam como instrumentos para o incentivo e proteção da empresa, temos

argumentos – que às vezes coincidem com o atendimento à função social e

com os instrumentos de incentivo e proteção empresarial – que demonstram a

intenção estatal de preservação da figura da empresa, dentre eles os dispostos

na Lei nº 11.101/2005, quando prevê as hipóteses em que as empresas sejam

recuperáveis, tanto judicial como extrajudicialmente; na Lei nº 6.404/1976, de

onde se extrai a possibilidade de dissolução parcial das sociedades – artigo

137 –; e no artigo 1145, do Código Civil brasileiro, por possibilitar o trespasse

de forma mais facilitada.

76 Código Civil: “Artigo 1.145. Se ao alienante não restarem bens suficientes para solver o seu

passivo, a eficácia da alienação do estabelecimento depende do pagamento de todos os credores, ou do consentimento destes, de modo expresso ou tácito, em trinta dias a partir de sua notificação.”

67

A visão estatal de reconhecimento da importância da empresa, para o

desenvolvimento econômico e social do país, diretriz estabelecida na Carta

Constitucional, deve corresponder às lentes através das quais o Estado

enxerga a empresa.

Por isso mesmo, não deixamos de reconhecer que, no aspecto

pragmático, numerosos problemas podem ser apontados, a fim de contradizer

essa linha diretiva de proteção da empresa, pelo ordenamento jurídico

constitucional e infraconstitucional. Muito embora o Estado, por intermédio da

ordenação jurídica, demonstre a sua opção de proteção à empresa, ele mesmo

é sujeito capaz de atuações que seguem o sentido contrário de tal resguardo.

Estamos diante do aspecto ideal de atuação do Estado, o que não nos impede

de ter os olhos atentos para a prática e de enxergar os desvirtuamentos.

Dado o objeto deste trabalho, não nos cabe, e nem pretendemos,

identificar e rebater todos os casos de ações estatais que desvirtuam esse

espírito constitucional protetivo, pois, do contrário, o trabalho prestar-se-ia a

muito mais do que humildemente pretendemos.77

77 Muito embora não exista a intenção de enveredar por e rebater esses argumentos, talvez a

primeira crítica e a mais feroz, seja a relação entre a carga tributária e a ideia segundo a qual ela onera, e muito, o contribuinte empresário, o que contradiz o entendimento de preservação e de manutenção estável da empresa. Poderia ser questionada a razão de o Estado, ao mesmo tempo, onerar de forma considerável a produção, por meio de exigências tributárias, e ter como diretriz constitucional a proteção da sustentabilidade econômica empresarial. Uma afirmação contrapõe-se a outra ? Estamos diante de um contrassenso ? Se considerarmos que o Estado brasileiro exige carga tributária pesada, de forma a comprometer a manutenção econômica das empresas, fica claro que sim, que as afirmações são contraditórias. Mas podemos partir da ideia segundo a qual a carga tributária não desnatura a proteção da sustentabilidade empresarial, e a resposta ao questionamento realizado seria negativa. Pode o Estado acumular o papel daquele que impõe obrigações tributárias às organizações econômicas e, ao mesmo tempo, do que tem como dever constitucional a sua preservação, sem que isso implique contradição, nos seguintes argumentos: uma função não desnatura a outra, porque a carga tributária, quando respeitadas as linhas constitucionais de tutela das organizações econômicas empresariais, não inviabiliza as atividades econômicas. Não desnatura e com essa ideia corrobora a lição de GERALDO ATALIBA, porque a função precípua dos tributos não se limita somente a carrear valores monetários para os cofres públicos, mas para satisfazer extrafiscalmente a diretriz constitucional. in Hipótese de Incidência Tributária, p. 32-34. De outra forma, serve como meio para alcançar os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. Dentre esses objetivos, destacamos, a título exemplificativo, no inciso II, o objetivo de garantir o desenvolvimento nacional. Pois bem, garantir o desenvolvimento nacional é ter, como parte integrante dos planos estatais, a empresa, sob dois aspectos: como sujeito que se vale das políticas desse desenvolvimento nacional, como destinatário dessas políticas; e como aquela figura que coopera com o Estado, no alcance desse importante objetivo, como aquela que somará forças com o Estado.

68

Todavia, para não ficar num discurso ideal, e, quiçá, quase poético,

ressaltamos que, de fato, existe a ordem normatizada na Constituição Federal

de 1988 de proteção à empresa, mas que existem, também, atuações estatais

que parecem seguir outra lógica. Porém, proporcionalmente, a atuação estatal,

segue muito mais as ordens constitucionais de resguardo do que se desvia

delas. Os desvirtuamentos existem, e não são poucos, mas também não são

suficientemente fortes a ponto de desnaturar o espírito protetivo constitucional.

Embora violem a diretriz, não desvirtuam a ideologia constitucional.

Proporcionalmente, o Estado tende mais a resguardar; do contrário, as

organizações econômicas não se manteriam no mercado.78

O Estado não dá proteção com uma mão e tira com a outra. Se a

intenção constitucional é resguardar, manter, proteger as organizações

econômicas, qualquer ato, inclusive os seus próprios, que contradigam essa

intenção, são fortemente violadores da Carta Constitucional, que foi o berço no

qual esse desejo foi formalizado.

A Constituição Federal de 1988 reflete a intenção do Estado na

intenção de tutelar as organizações econômicas, a intenção de manutenção

econômica empresarial. Não é preciso muito esforço para saber o lugar que as

empresas ocupam, o seu grau de importância, para o Estado brasileiro, na

medida em que essa Carta Constitucional prevê instrumentos para o seu

impulso e proteção.

Esses argumentos demonstram a visão que o Estado tem da

importância das organizações econômicas para o processo de

desenvolvimento econômico e social. E tal concepção resta traçada tanto na

Constituição Federal, quanto na legislação infraconstitucional, como um reflexo

da sua função social.

O desenho desse arcabouço normativo, seja pela previsão de

dispositivos que, uma vez realizados, outorgam à empresa o caráter de

socialmente relevante; seja pelos instrumentos que estão dispostos para a

78 No capítulo quatro, debateremos a posição estatal em sentido contrário, quando da

interpretação legislativa e das suas implicações para a sustentabilidade econômica empresarial.

69

tutela e o incentivo à empresa; ou seja, ainda, pelos mecanismos cuja razão de

sua existência, destacadamente, é a preservação da empresa; por intermédio

dessas três categorias, esse desenho normativo declara como se deve dar o

tratamento dispensado às empresas. Não pode ser outro, pois, o

comportamento, seja privado ou público, senão o de respeito pleno a quem

exerce função reconhecidamente social: a empresa.

1.6 PERSPECTIVA PRINCIPIOLÓGICA DA ORDEM ECONÔMICA

CONSTITUCIONAL E A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA

1.6.1 Noções Introdutórias

É a partir da análise da Constituição Federal de 1988 que alcançamos

as diretrizes, programas e finalidades a serem realizadas pelo Estado e pela

Sociedade, como um “plano global normativo”.79

É a partir da Carta Constitucional que podemos analisar as ordens, de

cunho econômico-constitucional, aplicáveis, substancialmente, às empresas. O

ordenamento jurídico constitucional tende não só a limitar a atividade

econômica, no sentido de veicular regras nucleares, mas a municiá-la com

instrumentos protetivos.

A ordem econômica constitucional não se restringe ao disposto

somente no título VII da Constituição Federal de 1988. A ordem econômica

abarca preceitos inscritos em setores outros da Carta Constitucional.

Considerando esse aspecto, todos os preceitos devem ser analisados, como

parte integrante de um conjunto, de maneira que se permita compreender a

ordem econômica como sistema.80

79 EROS ROBERTO GRAU. A ordem..., op. cit., p. 173. 80 “O bojo da ordem econômica, tal como a considero neste ensaio, além dos que já no seu

Título VII se encontram, são transportados [...] fundamentalmente os preceitos inscritos nos

70

Ainda que a atenção deva recair nesse conjunto, fazemos um

destaque, no intuito de alcançar onde a ordem econômica constitucional

reforça a sua vontade de incentivar e proteger o desenvolvimento da atividade

econômica empresarial, salientando os princípios da livre iniciativa – artigo 1º,

IV, e 170 “caput”; da livre concorrência – artigo 170, IV; além de outros

instrumentos incentivadores, na forma dos artigos e 170, IX; 179, “caput” e 174,

“caput”, do Texto Maior.81

Fazemos, todavia, um recorte de estudo, de forma a jogar os holofotes

sobre aspectos mais caros à empresa, e que, em regra, são os mais

frequentemente utilizados como fundamento na defesa da sua preservação,

como os Princípios da Livre Iniciativa, da Livre Concorrência, da Dignidade da

Pessoa Humana e da Preservação da Empresa. São princípios que bem se

harmonizam com o que EROS ROBERTO GRAU chamou de opção

constitucional de um sistema capitalista.82

seus arts. 1º, 3º, 7º a 11, 201, 202 e 218 e 219 – bem assim, entre outros, os do artigo 5º, LXXI, do artigo 24, I, do artigo 37, XIX e XX, do § 2º do artigo 103, do artigo 149, do artigo 225” – EROS ROBERTO GRAU. A ordem..., op. cit., p. 194-195.

81 “Artigo 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; Artigo 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: IV - livre concorrência; [...] IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País; Artigo 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei Artigo 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”

82 A ordem..., op. cit., p. 307.

71

1.6.2 O Princípio da Livre Iniciativa

A livre iniciativa encontra-se prevista no artigo 1º, IV, da Constituição

Federal de 1988, como fundamento da República Federativa do Brasil; e no

seu artigo 170, “caput”, como fundamento da ordem econômica.

Estamos diante de uma diretriz estabelecida por vontade do legislador

constitucional, como um dos traços fundantes da República Federativa do

Brasil e vetor necessário da ordem econômica e financeira.83

Uma das feições da livre iniciativa, a da liberdade de iniciativa

econômica, cuja aplicação é fortemente voltada para as organizações

econômicas – o que é relevante para fins do presente ensaio –, muito embora

inserida numa Carta Constitucional de acepção capitalista, e prevista com o

propósito de estimular o empreendedorismo e o desenvolvimento das

atividades econômicas empresariais, não transita livremente pela Constituição

de 1988, na medida em que a sua leitura não se deve descurar de aspectos

muito caros para a Carta Constitucional, como a justiça social e o bem estar

coletivo.84

Na análise da livre iniciativa econômica, devem, os olhos, atentar para

o que justifica a sua previsão como vetor constitucional. Estamos diante de

uma escolha, formalizada na Carta Constitucional, para possibilitar o

crescimento e o desenvolvimento do setor empresarial. Não foi em vão o seu

83 A livre iniciativa, tamanha a sua relevância para a ordem jurídica, restou tutelada desde a

Constituição imperial, artigo 179, XXIV – ANDRÉ RAMOS TAVARES. Direito Constitucional Econômico, p. 245.

84 Comungamos do entendimento de EROS ROBERTO GRAU, segundo o qual “[...] não se pode reduzir a livre iniciativa, consagrada no artigo 1º, V, CF, meramente à feição que assume como liberdade econômica ou liberdade de iniciativa econômica.” Mesmo enquanto fundamento da ordem econômica, a ela não se reduz: “[...] não se resume, aí, a ‘princípio básico da liberdade econômica’ ou a ‘liberdade de desenvolvimento da empresa’ apenas – à liberdade única do comércio, pois; [...] não se pode universalizar no princípio tão-somente uma afirmação do capitalismo. [...] A livre iniciativa é expressão de liberdade titulada não apenas à empresa, mas também pelo trabalho” in A ordem..., op. cit., p. 202-203 e 206. Ibidem, p. 307. Ressalta JOSÉ AFONSO SILVA que a Constituição é preocupada com a justiça social e com o bem estar coletivo. Curso de Direito Constitucional Positivo, 10. ed., p. 726.

72

estabelecimento como fundamento da República, tampouco como diretriz do

ordenamento basilar da atividade econômica.

À mesma medida que tutela as atividades econômicas, possibilita-lhes

o fomento, é um modelo que deve ser observado pelo próprio Estado, na sua

função de ordenador das atividades econômicas, como limite à ação estatal, de

forma a salvaguardar a iniciativa das organizações empresariais; e pelo

desenvolvedor da atividade econômica, como liberdade econômica, pautada

nas limitações constitucionais relacionadas com a livre iniciativa, com os

ditames da justiça social, sob pena de desvirtuamento da razão que o

fundamenta.

É uma diretriz constitucional a ser respeitada por tantos quantos

estejam envolvidos com a atividade econômica, cujas ações potencialmente

impliquem a violação à livre iniciativa econômica.

No que concerne à empresa, ensina AMÉRICO LUÍS MARTINS DA

SILVA:

A liberdade de iniciativa econômica privada, num contexto de uma constituição preocupada com a realização de justiça social (o fim condiciona os meios), não pode significar mais do que liberdade de desenvolvimento da empresa no quadro estabelecido pelo poder público e, portanto, possibilidade de gozar das facilidades e necessidade de submeter-se às limitações postas pelo mesmo. 85

Em se tratando do Estado, estamos diante de um modelo orientador de

resguardo e proteção à atividade econômica empresarial. Nesse sentido, o

conteúdo do Princípio da Livre iniciativa traz uma importante orientação,

conforme ensina LUÍS FERNANDO LOBÃO MORAIS:

[...] proteção do empreendimento particular contra interferência

estatal. Ela significa uma restrição à intervenção do Estado na ordem

85 A ordem constitucional econômica, p. 39.

73

econômica, tanto do ponto de vista dos motivos que a justificam como

do ponto de vista dos meios (menos gravosos para o

empreendimento particular) a serem empregados na sua aplicação.86

EROS ROBERTO GRAU, valendo-se das ponderações de TÉRCIO

SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR, em parecer publicado no jornal “Folha de São

Paulo”, menciona que a livre iniciativa, como fundamento da ordem econômica,

reconhece nela a base e a condição sem a qual essa ordem econômica deixa

de sê-la. E como tal, como base que é, reconhece a autonomia empreendedora

do homem, na conformação da atividade econômica. Isso não implica, porém,

autonomia absoluta e ilimitada, pois não exclui a atividade normativa e

regulamentadora estatal. O que há de ilimitado está no principiar da atividade

econômica, na produção do novo, do que não existia anteriormente. Essa

espontaneidade é fundamental, na produção de riqueza, e estrutura que não

pode ser obstada pelo Estado. Do contrário, o estado não estará atuando como

regulador e normatizador, mas substituindo a empresa no papel fundamental

que exerce no mercado.87

A livre iniciativa é a “[...] liberdade econômica, na sua acepção mais

plena. É a liberdade de escolher e desenvolver a atividade econômica.” É um

instrumento constitucional de proteção ao desenvolvimento da atividade

econômica e, ao mesmo tempo, um limitador de conduta do próprio

desenvolvedor da atividade econômica e do Estado, este na sua possibilidade

de interferência. 88

86 A função Social... , op. cit., p. 429-430. 87 TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR. A Economia e o Controle do Estado. in O Estado de

São Paulo apud EROS ROBERTO GRAU, A ordem..., op. cit., p. 207. 88 LUÍS FERNANDO LOBÃO MORAIS. A Função Social..., op. cit., p. 428. EROS ROBERTO

GRAU observa: “[...] o texto do artigo 170 não afirma que a ordem econômica está fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, e tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, senão que ela deve estar – vale dizer, tem de necessariamente estar – fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa [...]. A perfeita compreensão dessa obviedade é essencial, na medida em que informará a plena compreensão de que qualquer prática econômica (mundo do ser) incompatível com a valorização do trabalho humano e com a livre iniciativa [...] será adversa à ordem constitucional” – A ordem..., op. cit., p. 195-196.

74

Trata-se de um instrumento constitucional relevante, visto que

concede, à classe empreendedora, o ambiente de liberdade – ressalte-se,

liberdade, mas com respeito ao sistema constitucional – para o

desenvolvimento da atividade econômica.

1.6.3 O Princípio da Livre Concorrência

Está prevista, na Constituição Federal, artigo 170, IV, a Livre

Concorrência como Princípio integrante do grupo daqueles que são

conformadores da ordem econômica.89

À livre concorrência é oferecido o sentido constitucional de “[...] livre

jogo das forças de mercado, na disputa de clientela”. A despeito de ensejar a

feição de uma competição aberta, é óbvio que não se trata de uma permissão

ao capitalismo selvagem.90

Não se concebe essa compreensão de capitalismo exacerbado, na

medida em que a livre concorrência está para um comportamento aberto à

competição, e é essa competitividade que configura a livre concorrência

tutelada constitucionalmente.

A ideia nuclear da livre concorrência gira em torno de um meio no qual

os agentes econômicos buscam, em regime concorrencial, os clientes. Isso

tudo sob o enfoque do ordenamento jurídico, de maneira a não dar margem à

competição irrestrita. Essa atenção constitucional pode ser verificada na

89 “Artigo 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre

iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] IV - livre concorrência;”

90 TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR, sobre o ponto, ressalta: “Um processo comportamental competitivo que admite gradações tanto de pluralidade quanto de fluidez. É este elemento comportamental – a competitividade – que define a livre concorrência” – A Economia e o Controle do Estado. in O Estado de São Paulo apud EROS ROBERTO GRAU. A ordem..., op. cit., p. 210.

75

prescrição do artigo 173, § 4º, que veicula o Princípio da Repressão aos

Abusos do Poder Econômico.91

Existe, pois, o incentivo do Estado à liberdade de concorrência,

contudo, sem a violação da própria ordem econômica. Resta prescrito como

afronta à ordem econômica o abuso de poder econômico, que leve à

dominação dos mercados e à eliminação da concorrência, e o aumento pérfido,

leia-se arbitrário ou desleal, do lucro.

Com olhos cautos no tema, percebemos que o Princípio da Livre

Iniciativa leva a atenção para dois aspectos de análise importantes e

diferentes: o estímulo ao ingresso no mercado concorrencial e a repreensão ao

comportamento que obsta essa permissão constitucional de livre concorrência.

A Lei nº 12.529/2011 que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da

Concorrência e dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a

ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de

iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos

consumidores e repressão ao abuso do poder econômico. Esse diploma

infraconstitucional dá concreção ao Princípio da Livre Concorrência e aos

demais princípios conformadores da ordem econômica.

1.6.4 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

Previsto como fundamento da República, no artigo 1º, III, e como

diretriz da ordem econômica, no artigo 170, “caput”, a dignidade da pessoa

humana assume tamanha importância que a sua concreção constitucional

avoca valores aplicáveis a todos os direitos fundamentais do homem, na esfera

91 “Artigo 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de

atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. [...]§ 4º - A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.” Na verdade, conforme EROS ROBERTO GRAU, tal princípio é fragmento do Princípio da Livre Concorrência e nele se compõe. in A ordem..., op. cit., p. 210.

76

individual. Não somente isso, essa importância, para a qual chamamos a

atenção, é porque ela, a dignidade da pessoa humana, constitucionalmente

prevista, não se limita, a um princípio que se dirige à órbita de direitos

individuais do homem, mas assume importância também no âmbito da

organização econômica.

EROS ROBERTO GRAU destaca que a dignidade da pessoa humana

“[...] comparece, assim, na Constituição de 1988, duplamente: no art. 1º como

´princípio político constitucionalmente conformador’ [...], no art. 170, caput,

como [...] norma objeto.”92

Destaca, JOSÉ AFONSO DA SILVA, que a dignidade da pessoa

humana “ [...] é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos

fundamentais do homem, desde o direito à vida.”93 Como reforço, JOSÉ

JOAQUIM GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA entendem tratar-se de um

princípio que baseia não apenas os direitos fundamentais do homem –

individuais, sociais e econômicos, – mas serve como fio condutor da

organização econômica. Ensinam ainda:

O conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invocá-la para construir uma ‘teoria do núcleo da personalidade’ individual, ignorando-a quando se trate de direitos econômicos, sociais e culturais.94

Trata-se de um princípio de eminência constitucional, e quando

estabelecido constitucionalmente como vetor da ordem econômica, propõe-se

a servir como leme – aquilo que dá a direção – ao exercício das atividades

econômicas, de forma a governar a finalidade de existência digna do homem.

92 Ibidem, p. 197. 93 Curso..., op. cit., p. 105. 94 Constituição da República Portuguesa Anotada, p. 70.

77

Tanto o exercício da atividade econômica, realizada pelas

organizações econômicas empresarias, quanto a função estatal de resguardar

o seu respeito, quando se direcionam em sentido inverso dessa diretriz, violam

o princípio duplamente contemplado na Carta Constitucional. É uma proteção

de viés duplo.

A proposta constitucional, quando estabeleceu a dignidade da pessoa

humana como fim da ordem econômica, foi colocá-la como bem jurídico

superior a ser respeitado quando estiverem em jogo o conjunto de outros

valores constitucionais também importantes, como a valorização do trabalho

humano, a livre iniciativa etc. É essa a doutrina de EROS ROBERTO GRAU:

Isso significa, por um lado, que o Brasil – República Federativa do Brasil – define-se como entidade política constitucionalmente organizada, tal como a constitui o texto de 1988, enquanto a dignidade da pessoa humana seja assegurada ao lado da soberania, da cidadania, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e do pluralismo político. Por outro , significa que a ordem econômica mencionada pelo art. 170, caput do texto constitucional – isto é, mundo do ser, relações econômicas ou atividades econômica (em sentido amplo) – deve ser dinamizada tendo em vista a promoção da existência digna de que todos devem gozar.95

O incentivo à atividade econômica empresarial é um mecanismo que

viabiliza a realização da dignidade da pessoa humana, pela premissa segundo

a qual essa atividade, integrante que é da tutela à ordem econômica, deve ser

pautada por esse princípio. O Estado, por meio da promoção das suas

políticas, voltadas para o setor empresarial – reforçamos, pela função

importante dessa no desenvolvimento econômico-social – exerce um papel de

otimizador da dignidade da pessoa humana.96

95 A Ordem..., op. cit., p. 197. 96 Entendeu assim GISELA MARIA BESTER e RENATA CRISTINA OBICI: “[...] o vetor da

dignidade da pessoa humana deve voltar-se para a realização de uma variada gama de direitos, não apenas individuais, mas também daqueles que beneficiam a sociedade como um todo, ao promover fomento da economia, a movimentação de mercados e proporcionar, com isso, o desenvolvimento pessoal do indivíduo, da própria coletividade que a ele se liga, direta ou indiretamente, e, ainda, do próprio Estado.” – Aplicação do Princípio da dignidade da pessoa humana à figura do empreendedor. Anais do XVI Encontro Preparatório para o CONPEDI, p. 07-08.

78

Essa política estatal, nesse contexto de proteção à dignidade da

pessoa humana, não se restringe à proteção à educação, à saúde, à

segurança, ao trabalho, mas abrange o estímulo ao setor econômico, como

meio de realização dessa finalidade constitucional, em face do papel social que

a atividade econômica pode desempenhar.

A dignidade da pessoa humana, diferentemente do que possa parecer

numa análise superficial, tem estreita relação com a atividade empresarial.

Esse princípio é vislumbrado, concretamente, quando do respeito ao conjunto

de outros princípios conformadores da ordem econômica, à medida que a livre

iniciativa, a livre concorrência, a valorização do trabalho humano etc,

possibilitam o fomento e o crescimento econômico, no âmbito que não se pode

restringir apenas ao local.

É no fomento, pelo Estado, das atividades empresariais, que

vislumbramos uma forma eficaz de contribuir para a dignidade humana. O

Estado fomenta o desenvolvimento da atividade empreendedora. Essa

atividade por sua vez, nesse importante papel de respeito à dignidade da

pessoa humana, colabora, inclusive, na mais simplória oportunidade de

possibilitar ao indivíduo o acesso ao mercado econômico, seja pelo próprio

ingresso no mercado de trabalho, pela geração de empregos e riquezas ou

pela contraprestação assalariada do seu serviço. É a dignidade da pessoa

humana sendo atingida pelo incentivo às atividades econômicas empresariais.

Nessa relação entre o que dispõe a Carta Constitucional – mundo do

dever ser – e a realidade social – mundo do ser, – pode-se questionar se a

previsão, por si só, torna a aplicação constitucional materialmente possível.

Certamente, faz-se mister, para além da previsão de tutela constitucional,

ações que efetivamente viabilizem a dignidade da pessoa humana, seja por

parte do Estado, da sociedade ou das organizações econômicas. É buscar o

seu atingimento no mundo do ser.97

97 EROS ROBERTO GRAU disserta: “[...] a dignidade da pessoa humana apenas restará

plenamente assegurada se e enquanto viabilizado o acesso de todos não apenas às chamadas liberdades formais, mas, sobretudo, liberdades reais.” – A ordem..., op. cit., p. 198.

79

1.6.5 Princípio da Preservação da Empresa

Pelo tratamento que a Constituição Federal de 1988 dispensa à

empresa, demonstrando a preocupação em preservá-la, mantê-la

economicamente estável, criando um ambiente jurídico de fomento ao seu

desenvolvimento e oferecendo instrumentos jurídicos, nesse sentido, não pode

ser outro o espírito que paira na Constituição da República, senão o do

Princípio da Preservação da Empresa.

Muito embora seja essa a vontade constitucional, o Princípio da

Preservação deve ter implicação na atividade estatal, em todos os aspectos;

seja na elaboração de normas ou na consecução das atividades típicas

estatais. Essa ideia tem que descer da Constituição para a consciência de

quem faz o Estado. Todos aqueles que têm poder nas mãos para agir em

nome do Estado, devem deixar- se embriagar pela vontade constitucional de

resguardo e preservação da empresa.

Essa ideia de preservação da empresa necessariamente espraia-se

sobre todas as pessoas que integram e exercem a atividade empresarial, à

medida que o desleixo para com essa preservação acarreta prejuízo de

proporções sociais, com efeitos para além da empresa, pois se refletem no

âmbito dos empregados, com o fim da oferta de postos de trabalhos; no âmbito

dos que na empresa investem, com a limitação do capital investidor, no dos

que da empresa consomem; na economia em geral,com o fim da produção e

circulação de riqueza, e afetação de toda a cadeia produtiva etc. Não preservar

a empresa é não preservar outros tantos interesses adjacentes a ela.98

Essa compreensão leva- nos à certeza de que a sua existência se deve

alastrar por todo o ordenamento jurídico, de maneira a refletir, juntamente com

98 Idéia desenvolvida por FÁBIO ULHOA COELHO. Curso de Direito Comercial., p. 64; e A

sociedade limitada no novo código civil, p. 04.

80

a Constituição Federal de 1988, a vontade estatal de preservar essa categoria

com tamanha importância econômica e social: a empresa.

Ensina FÁBIO ULHOA COELHO:

Enquanto a empresa é ativa, os trabalhadores mantém seus empregos, o Fisco arrecada e os consumidores têm acesso aos bens de serviços de que necessitam. Além deles, podem depender da manutenção da atividade empresarial uma série de pequenas outras empresas geradoras não só de renda, para pequenos e médios empreendedores, mas também de empregos indiretos. Existem, inclusive, exemplos de cidades que se formam e crescem graças ao estabelecimento de uma grande indústria. O princípio da preservação da empresa aponta para a existência desse amplo e difuso conjunto de pessoas, que não são empreendedores nem investidores, mas desejam também, o desenvolvimento de certa atividade empresarial” (sic).99

Embora tenha um entendimento que renega a função social da

empresa, FÁBIO KONDER COMPARATO, paradoxalmente não deixa de

reconhecer o papel que ela realiza, no âmbito econômico e social:

Se se quiser indicar uma instituição social que, pela sua influência, dinamismo e poder de transformação, sirva de elemento explicativo e definidor da civilização contemporânea, a escolha é indubitável: essa instituição é a empresa. É dela que depende, diretamente, a subsistência da maior parte da população ativa deste país, pela organização do trabalho assalariado. [...] É das empresas que provém a grande maioria dos bens e serviços consumidos pelo povo, e é delas que o Estado retira a parcela maior de suas receitas fiscais. É em torno da empresa, ademais, que gravitam agentes econômicos não assalariados, como os investidores de capital, os fornecedores, os prestadores de serviços”100

Tanto é importante a preservação dessa instituição social que, no

ordenamento jurídico, encontramos exemplos de mecanismos legislativos que

são verdadeiros instrumentos de manutenção, e que materializam o Princípio

da Preservação da Empresa, como a Lei nº 11.101/2005, Lei da Recuperação

99 A sociedade..., op. cit., p. 152. 100 Direito Empresarial: estudos e pareceres, p. 3.

81

Judicial, só pela possibilidade de que as empresas sejam recuperáveis pela via

judicial ou extrajudicial; como a Lei nº 6.404/1976 – Lei das Sociedade

Anônimas, quando prevê a dissolução parcial da empresa, no seu artigo 137.

Ressalte-se que, além de materializadores do Princípio da Preservação da

Empresa, são, também, instrumentos de incentivo, proteção e manutenção

econômica, pois a preservação da empresa é corolário do Princípio da Função

Social da Empresa.101

101 Nesse sentido, MISABEL DE ABREU MACHADO DERZI ressalta: “A nova Lei de Falências

e Recuperação da Empresa (Lei nº 11.101/2005) acentua o caráter institucionalista da empresa, faz prevalecer o princípio inerente à sua preservação, dissocia claramente o interesse do sócio, do interesse social [...]” – O Princípio da Preservação das Empresas e o Direito à Economia de Imposto. in VALDIR DE OLIVEIRA ROCHA (Coord.), Grandes..., p. 336. No mesmo sentido, CALIXTO SALOMÃO FILHO, FRANCISCO S. SOUZA JÚNIOR e ANTÔNIO SÉRGIO PITOMBO. Comentário à Lei de Recuperação das Empresas e Falência – Lei 11.101/05 , p. 52; FÁBIO TOKARS entende que não é caso de dissolução, mas redução do número de sócios da empresa. Trata-se de uma espécie de impropriedade doutrinária. Sociedades limitadas , p. 347; FÁBIO ULHOA COELHO reconhece que o princípio da preservação da empresa orientou a consolidação da dissolução parcial, tamanha é a importância da empresa, no seu compromisso com a sociedade. A sociedade..., op. cit., p. 152.

82

CAPÍTULO 2 – ASPECTOS INTRODUTÓRIOS E NUCLEARES À

COMPREENSÃO DA DECADÊNCIA E DA PRESCRIÇÃO EM MATÉRI A

TRIBUTÁRIA

2.1 – DELIMITAÇÃO DO OBJETO

As relações travadas pelo homem em sociedade são como berçários

para o nascimento de relações jurídicas, das quais defluem direitos e

obrigações. As relações jurídicas abarcadas pelo direito, tornam-se

susceptíveis à sua tutela, de maneira que aos sujeitos titulares de direitos e

obrigações seja possibilitada a sua satisfação e o cumprimento.

Não somente o direito se presta a satisfazer o objeto dessas relações

jurídicas, no cumprimento do que juridicamente se espera dos sujeitos nela

envolvidos, mas dele se esperam mecanismos que possibilitam a estabilização

dessas relações.

É exatamente sobre dois desses mecanismos que recai o foco da

nossa atenção, no presente estudo, que são a decadência e a prescrição.

Como estamos no ambiente de discussão tributária, é nesse âmbito que

trataremos desses institutos.102

Em razão de ser um tema vasto, – de cuja exploração, tamanho o

desafio doutrinário, fascina, – e como forma de não cometer o equívoco da

generalização, delimitamos as análises da decadência e da prescrição

relativamente à esfera jurídica do Fisco, quanto aos aspectos relacionados à

constituição do crédito tributário e à satisfação, por meio judicial, do crédito a

ele tem direito nesse ambiente tributário.103

102 A palavra “instituto” sofre crítica de EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI por entender trata-

se de palavra vazia e sem conteúdo, que nada diz a respeito do referem. Decadência e Prescrição no Direito Tributário, 2. ed.,, p. 151.

103 No âmbito do Direito Tributário, vislumbra-se o efeito da decadência e da prescrição em duas realidades distintas. A decadência pode verificar-se em relação ao direito subjetivo do Fisco, cujas formas de operacionalização serão tratadas no item apropriado;

83

Essa opção se justifica-se na medida em que, sob a influência do

ambiente empresarial, cujo sujeito primeiro de atenção é a empresa, cabe-nos

recortar esse tema à parte que a ela, a empresa, diz respeito. Sabemos que a

empresa pode ocupar o lugar de sujeito ativo, na relação desenvolvida com o

Fisco, na ocasião da repetição do indébito tributário.104 Optamos, porém, por

outro recorte do presente trabalho – do Estado como reclamante do seu crédito

e da empresa como sujeita a tal exigência –, dá-se pela força e influência que o

Fisco exerce quando ocupa essa cadeira de titular do direito subjetivo de

constituir e exigir o crédito tributário, e que, obrigatoriamente, é suportado por

aqueles que desenvolvem as atividades empresariais.105

Destaque-se que, nessas situações em que o Fisco ocupa o polo ativo

da relação jurídica com o contribuinte, estamos diante de uma relação

obrigacional tributária, cujo objeto é o tributo. É possível, todavia, existirem as

relações jurídicas administrativas na qual o objeto se perfaz numa obrigação de

fazer ou não fazer, as quais não são passíveis de apreciação patrimonial, de

sorte que a doutrina as denomina de deveres formais, administrativos ou

instrumentais.106 Numa ou noutra relação jurídica, seja a propriamente

assim como em relação ao direito subjetivo do contribuinte, de requerer a restituição de um tributo que fora pago de forma indevida. Temos então a (i) decadência do direito subjetivo do Fisco e a (ii) decadência do direito do contribuinte à repetição de indébito tributário. Importa-nos, no entanto, como objeto do presente trabalho, apenas a decadência que alude à esfera jurídica da Fazenda Pública. Quanto à prescrição, esta pode verificar-se na ocasião na qual a (i) Administração Pública é detentora do direito de exigir a satisfação do seu crédito, judicialmente, do sujeito passivo – contribuinte ou responsável; assim como quando ao (ii) contribuinte cabe o direito de pleitear judicialmente, em face da Fazenda Pública, a devolução do valor pago indevidamente. Ora, temos, também, a prescrição que se pode realizar em desfavor da Fazenda Pública, ocasião na qual ela perde o direito de efetuar a devida cobrança judicial do crédito tributário lançado e não pago, quando, por sua inércia, deixa fluir o tempo legalmente estabelecido; assim como pode se concretizar em desfavor do contribuinte, quando ele, tendo realizado um pagamento indevido, deixa passar o tempo estabelecido em lei para ajuizar a ação de repetição de indébito. Entretanto, para o presente estudo, cabe-nos apenas analisar a prescrição no âmbito do direito do Fisco.

104 Lembra CHRISTINE MENDONÇA: “A relação em que o Fisco ocupa o pólo passivo e o contribuinte o pólo ativo decorre, via de regra, do pagamento de um tributo indevido em que o Fisco fica obrigado a restituir ao contribuinte” – Decadência e Prescrição em Matéria Tributária, Decadência e Prescrição em Matéria Tributária, in EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI (Coord.). Curso de Especialização em Direito Tributário: estu dos analíticos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho , p. 658.

105 E, nessas condições, chamaremos a essa relação de crédito tributário, conforme EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Decadência e Prescrição no Direito Tributário , p. 96.

106 No que se concerne à referência as prestações não passíveis de avaliação patrimonial, o Código Tributário Nacional denomina essa relações jurídicas de “obrigações acessórias” – vide art. 113, § 2º. No entanto, tal denominação é criticada pela doutrina, pois não há o

84

tributária, seja a de cunho administrativo, o Fisco é titular da posição de sujeito

ativo, detentor do direito subjetivo de exigir o objeto a que tem direito.

2.2 – TEMPO: UM ASPECTO NUCLEAR DO DIREITO

Para o homem, o tempo é um aspecto de substancial importância, sem

o qual não há referência ou parâmetro de aprendizado que sirva de suporte

para os passos de progresso e de futuro. É do tempo passado que se extrai a

experiência para o implemento do avanço vindouro. E é no tempo presente,

com base nesse tempo passado, que se planifica o tempo futuro. Os projetos

do homem, em regra, têm como elemento integrante o tempo: quando iniciou,

quanto tempo já durou e até quando poderá durar.

Esse mesmo homem e as suas interações sociais, são as razões pela

qual a ordem jurídica existe. Assim como ao homem e a sua história, o tempo

permeia o direito. É fator tão importante que é por ele – o tempo – que a

dinâmica jurídica se desenvolve. Conforme ensina EURICO MARCOS DINIZ

DE SANTI, “[...] sem passado e sem futuro [portanto, sem o tempo], o direito

não teria sentido”107. (esclarecemos, nos colchetes)

A lógica pela qual se aplica o direito necessariamente, leva-nos à

consideração do fator tempo. É ele um fato jurídico. Sim, porque a ocorrência

caráter pecuniário, não podendo, por isso, ser chamada de obrigação, como também nem sempre é acessória, pois que, muitas vezes, não há a obrigação de pagar o tributo, embora remanesça o dever instrumental a ser cumprido pelo sujeito passivo, como, por exemplo, na situação da entrega de declaração de imposto sobre a renda para quem é isento. Essa é a doutrina de PAULO DE BARROS CARVALHO, Curso de Direito Tributário, p. 308-309, SACHA CALMOM NAVARRO COÊLHO, Curso de Direito Tributário Brasileiro, 6. ed., p. 581-582 e MARCELO FONTES CERQUEIRA, Repetição do Indébito Tributário, p. 171.

107 EURICO MARCO DINIZ DE SANTI, Introdução. Norma, Evento, Fato, Relação Jurídica, Fontes e Validade do Direito, in EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI (Coord.), Curso de Especialização em Direito Tributário: estudos analí ticos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho , p. 14.

85

do seu transcurso, fatal, está presente e tem implicância no e para o direito, e,

por consequência, para os sujeitos nele envolvidos.108

O sistema através do qual o direito encontra coerência, resgata e

projeta o tempo: “O direito regula o futuro, que ainda não é; com o ato de

aplicação, fixa o presente, que não permanece, e, mediante sua linguagem,

retém o passado, que não é mais.”109 Tanto dá sentido ao direito, como fato

jurídico, que o tempo pode municiá-lo com o momento de ocorrência, assim

como com o período de transcurso. Um ou outro será objeto de apreensão pelo

direito e será parte importante e integrante da lógica de sua aplicação.

Tamanho é o seu relevo para o direito e para as relações que ele

regula, que, por isso, dizemos que é um aspecto a ele, ao direito, intrínseco,

que possibilita à ordem jurídica compor a sua estrutura de maneira tal a

identificar o nascimento, o momento de exercício e o da extinção de um direito.

Integrante dessa ordem jurídica, a decadência e a prescrição, por intermédio

da previsão de lapsos temporais, de prazos, precisam o tempo no qual é

possível a constituição do fato jurídico, com o condão de produzir efeito

jurídico. São verdadeiros símbolos dessa preocupação assente do direito com

o tempo.110

108 EURICO MARCO DINIZ DE SANTI, Introdução. Norma, Evento, Fato, Relação Jurídica,

Fontes e Validade do Direito, in EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI (Coord.), Curso de Especialização..., op. cit., p. 14-15. EURICO MARCO DINIZ DE SANTI ressalta: “O direito sempre se preocupou com o tempo: pensá-lo significa ocupar-se da fugacidade das condutas, da efemeridade dos fatos e da inexorabilidade da linguagem que os cristaliza, por meio de provas jurídicas que propiciam o conhecimento e a manipulação dos acontecimentos relevantes para o direito. Há tempo nos suportes físicos do direito. Há tempo na Constituição. E há tempo no exercício das competências previstas na Constituição, fonte material das leis. Também nas hipóteses das normas veiculadas pelas leis, encontramos tempo. E podemos pensar também em tempo no consequente normativo. Tempo há, também, nos eventos jurídicos descritos por essas hipóteses normativas: início, duração e termo [...]” – Decadência..., op. cit., p. 40.

109 Ibidem, p. 41. 110 Ibidem, p. 47.

86

2.3 - FUNDAMENTOS DA DECADÊNCIA E DA PRESCRIÇÃO NO ÂMBITO

TRIBUTÁRIO

A previsão legal de fatos sociais que, se e quando ocorridos, no mundo

fenomênico, possibilitam o nascimento de uma relação jurídica obrigacional

tributária, capaz de desencadear um elo entre o sujeito pretensor e o devedor,

tem um lapso temporal dentro do qual se verificam os seus efeitos –

decadência – e são exercitáveis todos os direitos que lhe são inerentes –

prescrição.

De outro modo, isso quer dizer que uma vez verificada a ocorrência do

fato previsto na norma, marco inicial para fluência do prazo decadencial; e

realizado o lançamento, inicio do prazo de prescrição, todos os direitos e seus

respectivos deveres têm um tempo, estabelecido em lei, para seu exercício.

Não exercitados, fluem os prazos decadência e prescricional, inexoravelmente.

Exaurido esse tempo de que falamos, previsto de maneira austera na

lei, qualquer pretensão de fazer valer o direito de realizar o lançamento

tributário ou o direito ao próprio crédito, e ainda, a pretensão judicial executiva,

deixam de existir. Muito embora em desfavor do sujeito detentor do direito

subjetivo – de promover o lançamento ou a ação judicial – é o momento em

que, sendo alcançando, “[...] prestigiam-se a certeza e a segurança.”111

Muito mais do que perante uma questão de lógica, estamos diante de

uma questão de estabilização da relação jurídica. Ela tem um ciclo, nasce no

ato de aplicação da norma, individual e concreta, tem um espaço de tempo no

qual se desenvolve, onde os direitos e deveres dela decorrentes podem ser

exercitados; e um termo final, seja porque foram satisfeitos os direitos a ela

inerentes ou porque não o foram por quem de direito, dentro do prazo previsto

legalmente.

A estabilização de que tratamos é o meio jurídico de tornar inalterável

uma situação, cuja relação jurídica originária já não se pode desenvolver,

111 LUCIANO AMARO, Direito Tributário Brasileiro, 11. ed. p. 396.

87

porque, o seu prazo, legalmente estabelecido, fluiu sem que o direito dela

surgido tivesse sido exercitado tempestivamente.112

A existência da relação jurídica, com toda a sua carga de direitos e

deveres, e as amarras legais para não se perpetuar no tempo, é uma dinâmica

jurídica que possibilita, a todos os que estão envolvidos nessa relação, a

certeza acerca de quando esses direitos e deveres podem ser

exigidos/exercitados e de quando tal tarefa se torna juridicamente obstada. Não

se imagina um ordenamento jurídico que se pretenda seguro e que autorize o

desenvolver de relações jurídicas sem prazo estipulado para o seu findar.113

Não se concebe e nem haveria justificativa jurídica para a possibilidade

de exercício de um direito subjetivo que não fosse limitado pelo tempo, do qual,

o sujeito titular do direito se pudesse valer quando bem lhe conviesse,

deixando o sujeito passivo dessa obrigação na condição de devedor eterno.

Estabelecer prazos é o meio que o ordenamento jurídico encontra para

evitar a perpetuação de direitos, quando os seus titulares permanecem inertes,

ou seja, não se manifestam tempestivamente para exercitá-los, de maneira a

preservar e satisfazer o direito subjetivo nascido na relação jurídica.114

112 Sobre essa questão LUCIANO AMARO: “Decorrido certo prazo, portanto, as relações

jurídicas devem estabilizar-se, superados eventuais vícios que pudessem ter sido invocados, mas que não o foram, no tempo legalmente assinalado, e desprezado o eventual desrespeito de direitos, que terá gerado uma pretensão fenecida por falta de exercício tempestivo” – Direito ..., 11. ed. op. cit., p. 396. PAULO DE BARROS CARVALHO comungando do mesmo entendimento, destaca: ”Para que as relações jurídicas não permaneçam indefinidamente, o sistema positivo estipula certo período a fim de que os titulares de direitos subjetivos realizem os atos necessários à sua preservação, e perante a inércia manifestada pelo interessado, deixando fluir o tempo, fulmina a existência do direito, decretando-lhe a extinção” – Curso..., op. cit., p. 482.

É a mesma posição defendida por FÁBIO FANUCCHI: “[...] decorrido o tempo que a lei marque para o sujeito ativo atuar da forma que a preservação do direito exige, sem que ele proceda exteriorizando o desejo do direito de mantê-lo, acabará por fazer desaparecer o direito, voltando o panorama jurídico ao mesmo estado em que se encontrava antes da existência dele” (sic) – Curso de Direito Tributário Brasileiro, p. 344.

113 Para CHRISTINE MENDONÇA, “Os enunciados jurídicos sobre decadência e prescrição surgem da necessidade do direito lidar com a questão do tempo, ou mais precisamente, para que as relações jurídicas não permaneçam indefinidamente” – Decadência e Prescrição em Matéria Tributária, in EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI (Coord.), Curso de Especialização..., op. cit., p. 657.

114 FÁBIO FANUCCHI, menciona que o estabelecimento de prazos visa “[...] evitar a perpetuidade dos direitos quando seus titulares por eles se desinteressam, manifestando essa tendência pela inação no sentido de garanti-los ou de preservá-los operantes [...]” – Curso..., op. cit., p. 344.

88

É mais do que justificável a previsão de limitação temporal, na medida

em que as relações jurídicas não se podem manter por período indeterminado,

quando os interessados não reclamam os seus direitos ou o fazem

extemporaneamente, por respeito à segurança jurídica dos que participam da

relação – Princípio da segurança das relações jurídicas –.115

É por intermédio da fixação dos prazos decadencial e prescricional que

a ordem jurídica impõe respeito às relações jurídicas, na medida em que se

tem a garantia legal de eliminação de incertezas e o respeito ao Princípio da

Segurança Jurídica.116

Nesse contexto de relação jurídica da qual se extraem direitos e

obrigações, são incompatíveis as concepções de certeza e segurança com a

perpetuidade da possibilidade de exercício de direitos e pretensões dela

decorrentes. A previsão de lapsos temporais, de prazos decadencial e

prescricional, essencialmente, proclama essa incompatibilidade. Com o perdão

da metáfora, fale agora – ou seja, exerce, no prazo legal o seu direito subjetivo

de lançar ou executar judicialmente – ou cale-se para sempre – porque, se

esgotado o tempo, juridicamente, não haverá mais como exercitá-lo.117

Conforme a análise multidimensional da segurança jurídica, proposta

por HUMBERTO ÁVILA, os prazos decadencial e prescricional são

mecanismos legais que tornam viável a segurança jurídica.118

115 Segundo EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI “[...] define-se pela determinação do direito,

pela necessidade da demarcação do que é e do que não é direito” – Decadência..., op. cit., p.77.

116 Conforme propugna HUMBERTO ÁVILA: “[...] a própria fixação de prazos opera em favor das situações jurídicas e da eliminação das incertezas. O que se prestigia, em outras palavras, é o princípio da segurança jurídica” – Segurança Jurídica, p. 347. No mesmo sentido se posiciona-se MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, em artigo denominado os princípios da proteção à confiança, da segurança jurídica e da boa-fé na anulação do ato administrativo, in FABRÍCIO MOTTA. (Org.). Direito Público Atual: estudos em homenagem ao professor Nelson Figueiredo, p. 311.

117 Nesse sentido é a lição de LUCIANO AMARO: “Dormientibus non succurrit jus. O direito positivo não socorre a quem permanece inerte, durante largo espaço de tempo, sem exercitar seus direitos. Por isso, esgotado certo prazo, assinalado em lei, prestigiam-se a certeza e a segurança, e sacrifica-se o eventual direito daquele que se manteve inativo no que respeita à atuação ou defesa do seu direito” – Direito... , 11. ed., p. 396.

118 Assevera o autor: “Muito embora o afirme sob o fundamento de previsão desses prazos por intermédio de Lei Complementar, artigo 146, o que implica o reconhecimento do

89

Com enfoque no âmbito tributário, e dentro do recorte realizado neste

trabalho, no qual concentraremos a atenção na esfera jurídica do Fisco, tanto a

decadência quanto a prescrição, têm como fim demarcar o prazo dentro do

qual o sujeito ativo da relação jurídica obrigacional tributária, o Fisco, pode

fazer valer o direito subjetivo; quando se referir à realização do lançamento,

estaremos diante do prazo decadencial; quando, por outro lado, referir-se à

realização da sua pretensão de executar judicialmente o devedor, estaremos

diante do prazo prescricional. Tal prescrição normativa é uma oferenda do

direito que possibilita aos sujeitos da obrigação tributária a certeza e segurança

de que decorrido o prazo legalmente estabelecido, sem ter sido exercido o

direito subjetivo, não haverá mais meio jurídico de exercê-lo.

Percebe-se que o desenvolvimento do presente raciocínio, por respeito

à certeza e à segurança jurídicas, perfaz o fundamento e aplica-se aos

institutos da decadência e da prescrição, muito embora sejam elas diferentes.

A decadência e a prescrição são mecanismos garantidores de

estabilidade das relações jurídicas e do sistema jurídico e “[...] filtram do direito

a instabilidade decorrente da inefabilidade do direito subjetivo”119

2.4 - PERSPECTIVAS PRINCIPIOLÓGICAS DA DECADÊNCIA E DA

PRESCRIÇÃO NO ÂMBITO TRIBUTÁRIO

2.4.1 Noções Introdutórias

A Constituição Federal, do alto da sua importância de fundamento

primeiro para a nossa ordem jurídica, tratou de estabelecer estruturas tais que

ordenamento jurídico, pelo respeito e viabilização da segurança jurídica” – Segurança..., op. cit., p. 346.

Aqui resta expresso o seu entendimento pelo respeito à segurança jurídica, mas o faz com o argumento de veiculação desses institutos por intermédio de Lei Complementar, argumento com o qual não concordamos.

119 EURICO MARCO DINIZ DE SANTI, Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 143.

90

possibilitam a essa ordem uma inter-relação harmônica. Elegeu matérias de

relevo, tais como a organização e estrutura estatais e a previsão dos direitos e

garantias fundamentais, deixando à legislação infraconstitucional matérias não

menos importantes, mas possíveis de serem veiculadas por instrumentos sem

o “status” constitucional, e sem que isso implique a violação à harmonia do

ordenamento jurídico, porque, numa última leitura, é dela, da Constituição

Federal, das suas regras e princípios, que esse ordenamento vai sempre

extrair o seu fundamento primeiro.

Respeitado esse cenário, a Constituição Federal, embora preveja a

decadência e a prescrição, não as regulamentou e deferiu essa atribuição à Lei

Complementar. Não regulamenta, mas oferta, à norma infraconstitucional,

suporte para a sua veiculação, de maneira tal que não dá margem à fuga

dessa conformação harmoniosa. Esse sustentáculo constitucional, que não se

aplica tão somente à decadência e à prescrição, é retirado dos seus princípios

conformadores.

Essa tarefa, de enxergar de quais desses princípios é possível extrair o

fundamento justificador, não é das mais fáceis; primeiro, porque nem sempre

estão expressos no texto constitucional, o que exige um trabalho analítico

sistemático do Texto Maior, e segundo, pelo embate travado na doutrina acerca

do que se entende por princípio.120

Sem querer ingressar nessa discussão doutrinária, que não é a

pretensão do presente estudo, da Constituição Federal é possível retirar

algumas linhas principiológicas, informadoras da decadência e da prescrição,

120 RONALD DWORKIN, entende que os princípios apenas veiculam fundamentos, e estes, por

sua vez, devem ser conjugados com fundamentos de outros princípios. Em caso de colisão entre os seus iguais – princípios x princípios –, aquele de maior peso relativo prevalece, sem, para tanto, retirar a validade do outro. In Taking Rights Seriously , p. 26. Por sua vez, HUMBERTO ÁVILA, ensina que “[...] os princípios não apenas explicitam valores, mas, indiretamente, estabelecem espécies precisas de comportamentos”. Raciocínio o qual se supera “[...] a mera exaltação de valores sem a instituição de comportamentos [...]” – Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 25. Já, PAULO DE BARROS CARVALHO destaca: “Entrevemos na consideração do signo ‘princípio’, distinguindo-o como ‘valor’ ou como ‘limite objetivo’ [...]” – Curso..., op. cit., p. 151.

91

ou seja, que servem para fundamentar a existência, a razão de ser, no

ordenamento jurídico, desses dois institutos.

Destaque-se que o ambiente do embate proposto é tão somente

aquele reservado aos princípios que informam a decadência e a prescrição, ou

seja, estamos no plano das fundamentações da sua existência. Não é o

momento, pois, de adentrar no exame dos princípios decorrentes da sua

aplicação, isto é, daqueles cuja observância ou não, no momento da sua

aplicação, trarão implicações diretas ou indiretas aos referidos institutos.

2.4.2 - Princípio da Legalidade

Uma questão que se impõe, de logo e preliminarmente, na inauguração

deste particular tópico, é: a partir de qual raciocínio enxergamos que é possível

conceber o Princípio da Legalidade como fundamento da decadência e

prescrição ?

Tratar sobre decadência, que, em linhas gerais, traduz a perda do

direito subjetivo de constituir o crédito tributário, e prescrição, como perda do

direito material – extinção da obrigação e crédito tributário – em razão do artigo

156, V, do Código Tributário Nacional e da pretensão de proceder com o meio

judicial de exigência do crédito, torna-se necessário que exista disposição

legislativa indicativa de lapsos temporais, do “dies a quo” e do “dies ad quem”

de suas contagens, de forma tal a apontar que o decurso do tempo nele

previsto, conjugado com o fator inércia, é motivo jurídico justificador da perda

desses direitos subjetivos. Não há como trabalhar com direitos subjetivos e os

seus respectivos deveres sem previsões legislativas, seja em qual área do

direito for.121

A máxima segundo a qual ninguém poderá fazer ou deixar de fazer

algo sem que tal ordem venha enunciada em lei, artigo 5º, II, da Constituição

121 PAULO DE BARROS CARVALHO, Curso..., op. cit., p. 150-160.

92

Federal, que também se projeta especificamente, no âmbito tributário, no

artigo 150, I, também da Carta Constitucional, correspondente a uma

normatização contundente para o Fisco, impondo limites caracterizados pela

instransponibilidade para a atuação estatal, de sorte que a sua ação não seja

operacionalizada senão mediante lei.

Trata-se do princípio constitucional que consagra a submissão da

Administração Pública ao que dispõe a lei – artigo 37 da Constituição Federal

de 1988. De outra forma, ela deve obedecer, cumprir e pôr em prática as

prescrições veiculadas em lei, nada podendo fazer senão o que se encontra

permitido pela lei.122

Tal é a sua importância, dentro do ambiente da inter-relação Estado e

particular, que não existe viabilidade jurídica da cobrança de tributo, seja em

qualquer âmbito de governo, sem a permissão operada por intermédio de lei.123

Tamanha é a relevância da lição imposta pela legalidade, que ela

chama à análise, como decorrência necessária, outro princípio, que é o da

segurança jurídica, estudada no próximo item. A exigência constitucional de lei

perfaz-se, em razão disso, como um mecanismo utilizado a favor da segurança

jurídica.124

122 CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, Curso de Direito Administrativo, 28. ed., p.

100-101 e 105. 123 Ressalvada a exceção constitucionalmente prevista da medida provisória – artigo 62, § 2º.

Destaca-se o entendimento de JOSÉ ROBERTO VIEIRA pela flagrante inconstitucionalidade da Emenda Constitucional n. 32/2001, na medida em que, tratando-se de exceção, consolida os efeitos de medida provisória – que institui ou majora impostos – não convertida em lei e vulnera, ainda, o princípio da anterioridade. Sustenta o autor: “E os óbices tributários somam-se outros de enorme pujança, que consistem nos princípios constitucionais gerais, igualmente feridos e magoados por esse instrumento legislativo de exceção, que se mostra, em toda a sua crueza, como anti-republicano e antIdemocrático, pelo privilégio que concede à vontade presidencial em detrimento da popular; anti-Tripartição de Funções , pelo predomínio escancarado com que graciosamente presenteia o executivo; e altamente imoral , pelo seu excesso numérico, mais do que descomedido, escandaloso!” – Bocage e o Terrorismo Constitucional das Medidas Provisórias Tributárias: a Emenda Pior do que o Soneto, in ROBERTO FERRAZ (Coord.). Princípios e Limitações da Tributação, p. 710.

124 A título de ilustração da doutrina, HUMBERTO ÁVILA destaca o Princípio da Legalidade, como reforço ao Princípio da Segurança Jurídica: “[...] a obrigatoriedade de edição prévia de lei para a instituição e para o aumento de tributos é instrumento de promoção dos ideais de confiabilidade e de previsibilidade do (e pelo) ordenamento jurídico, porquanto a exigência de lei favorece: a inteligibilidade do ordenamento jurídico, já que o contribuinte possui maiores condições de acesso às normas a que deverá obedecer e de compreensão do seu

93

O conteúdo do Princípio da Legalidade está na veiculação por meio

hábil – lei – de comando potestativo, ou seja, é-lhe intrínseca a emanação de

ordem à qual ao destinatário caberá responder com a submissão. Sem esse

meio, juridicamente hábil, a lei, não está esse destinatário obrigado ao seu

comando. Mas o Princípio da Legalidade não encontra limites apenas no

aspecto formal, assim também na perspectiva substancial, por isso encontram

espaço, na discussão do Princípio da Legalidade, a adequação do conteúdo da

lei ao prescrito pela Carta Constitucional.

Para a realização do Princípio da Legalidade, a validade do conteúdo

veiculado pela legislação não é objeto, de início, obstaculizador, na medida em

que esse conteúdo goza de presunção de validade, até que seja extirpado do

ordenamento jurídico, seja pelos fenômenos da derrogação ou abrogação, ou

ainda, por determinação judicial. Essa é uma preocupação que não interfere, a

princípio, na concretização do Princípio da Legalidade. Tanto não faz sentido

discutir a constitucionalidade/validade de um conteúdo jurídico potestativo, num

primeiro momento, dentro da realização do Princípio da Legalidade que, em

regra, no ambiente judicial, grande parte dessas discussões ocorrem num

momento posterior.

O objeto de foco principal para a análise desse princípio é o meio pelo

qual a ordem é emanada, que necessariamente deve ser por lei. Não se inclui,

de início, na análise da implementação do Princípio da Legalidade, a validade

da norma. O entendimento de EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI: é no

sentido de não incluir o conceito de validade no conceito de legalidade: “Incluir

o conceito de validade no conceito de legalidade implica tratar a legalidade

conteúdo; a confiabilidade do ordenamento jurídico, porque as normas legais só poderão ser modificadas por meio de outras normas legais – o que contribui para a sua estabilidade; a calculabilidade do ordenamento, visto que o contribuinte apresenta melhores condições de prever as obrigações tributárias futuras” – Segurança..., op. cit., p. 234-235. No mesmo sentido, ROQUE ANTONIO CARRAZZA: “[...] a cobrança de qualquer tributo pela Fazenda Pública (nacional, estadual e municipal ou distrital) só poderá ser validamente operada se houver uma lei que a autorize. [...] O Princípio da Legalidade garante, decisivamente, a segurança das pessoas diante da tributação” – Curso de Direito Constitucional Tributário, 12. ed., p. 172.

94

como sendo valor e não como limite objetivo facilmente aferível pela

certificação da espécie de veículo introdutor”125.

Para a afirmação inicial de realização do Princípio da Legalidade, basta

a averiguação de que a prescrição potestativa foi introduzida no ordenamento

jurídico por lei. Não importa verificar, nesse primeiro instante, a consonância

formal, de acordo com o que estabelecem as regras do processo legislativo,

conforme as exigências enunciadas na Carta Constitucional, artigo 59 ao 69;

tampouco a material, com respeito ao conjunto normativo que lhe dá validade,

porque, reforce-se, esse conteúdo presume-se válido até a declaração

contrária e sua extirpação do ordenamento jurídico.

O conteúdo do Princípio da Legalidade está na veiculação do meio

hábil, lei; de comando potestativo. Sem o qual não está o destinatário obrigado

ao seu comando.

Eis aí o raciocínio que nos possibilita compreender o Princípio da

Legalidade como fundamento da decadência e da prescrição. Em suma, se

estamos tratando da lei como um meio jurídico hábil para veicular comandos a

serem respeitados dentro da ordem jurídica, a delimitação temporal, seja do

prazo decadencial ou do prescricional, dentro dos quais devem ser exercitados

os direitos subjetivos nascidos nas respectivas relações jurídicas, deve dar-se

por intermédio desse referido veículo, a lei.

É importante destacar que a legalidade é uma forma privilegiada de

concretização dos Princípios da República e da Democracia, porque está

visceralmente a ele ligado, em razão do núcleo comum da representatividade

popular.126

125 Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 76. 126 Esse é o ensinamento de JOSÉ ROBERTO VIEIRA: “Visceralmente ligado aos Princípios da

República e da Democracia, pela ponte da representatividade popular, também a Legalidade, inclusive a tributária, como irrecusável direito-garantia fundamental do cidadão-contribuinte que constitui, nos termos expresso do artigo 150, ‘caput’, encontra-se seguramente protegida entre as cláusulas de pedra da Lei Maior (artigo 60, § 4º, IV)” – Fundamentos Republicano-democráticos da Legalidade Tributária: óbvios ululantes e não ululantes, in MELISSA FOLMANN (Coord.). Tributação e Direitos Fundamentais: propostas de efetividade, p. 199.

95

2.4.3 - Princípio da Segurança Jurídica

Não existe uma única palavra ou expressão que seja possível eleger e

que nela esteja impressa, sem maiores rodeios, uma ideia exata de segurança

jurídica. Talvez pudéssemos nos inclinar para eleger como mais adequado o

verbo ‘determinar’, porquanto determinar implica indicar com certo grau de

exatidão algo de que se trata, precisar, estabelecer, fixar. Dentro desse verbo

resta consignada uma carga do necessário assentamento do que “é” ou “não é”

o objeto que se pretende determinar. Determinar significa levantar muros em

volta do objeto a ser determinado, explicitar o que é parte integrante do objeto

e, reflexamente, o que não o é. Poderíamos tentar, também, a palavra

‘certeza’, que é a convicção do que é certo.

Muito embora tentador o convite para essa eleição, a concepção do

Princípio da Segurança Jurídica não reside numa investigação simplória, na

eleição de uma palavra ou expressão que lhe dê espírito, ou na análise de um

aspecto ou dimensão a ele inerente. Apesar de parte da doutrina ter

empreendido esforços no sentido de explicar o que se entende por segurança

jurídica, ainda assim, a sua compreensão não bastou para explicar a

complexidade intrínseca a esse princípio, exatamente por não explorar

suficientemente as diversas perspectivas que estão ligadas à sua estrutura.

Compactuamos com a compreensão segundo a qual a “[...] segurança

jurídica é um valor fundamental que o ordenamento jurídico persegue.”127 Do

mesmo modo, concebemos a ideia de que tem como objetivo propagar o

sentimento social de previsibilidade no que se refere aos efeitos jurídicos da

regulamentação de conduta, de tal maneira que se abra espaço à sociedade

para planejamento das suas ações futuras, pois, ciente está do tratamento

normativo aplicável; e porque, também, crava-se a certeza do tratamento

conferido aos fatos consumados. Todavia, essa compreensão é apenas parte

do todo que conforma a ideia de segurança jurídica. É importante, integra o

127 Ibidem, p. 79.

96

conceito, mas não se mostra suficiente para a análise mais profunda da

matéria.128

BETINA TREIGER GRUPENMACHER, tratando da Segurança

Jurídica, aduz que a “a segurança jurídica realiza-se quando é observado, na

sua plenitude, o Estatuto do Contribuinte e, em consequência, o princípio da

igualdade, norteador da segurança jurídica, posto que intrínseco à natureza

humana.”129

Esclareça-se que, no que se refere à certeza do direito, como

instrumento de análise da segurança jurídica, consubstancia-se quando estão

bem delimitadas as esferas jurídicas dos particulares entre si e perante o

Estado. Por outras palavras, o direito deve ofertar ao Estado e aos particulares

a certeza “[...] das suas situações jurídicas... de tal modo que estes possam ter

uma expectativa precisa dos direitos e deveres, dos benefícios que lhe são

concedidos ou dos encargos que hajam de suportar”.130

Nessa análise de certeza do direito, considerando o ambiente do

subsistema constitucional tributário, a segurança jurídica é informada pelos

Princípios da Legalidade, Irretroatividade, Anterioridade e Universalidade da

Jurisdição.131

Sob outro viés, o da previsibilidade, a segurança jurídica é observada

quando se mostra possível prever a atuação estatal de maneira a afastar as

surpresas repudiadas pelo sistema jurídico.132

Na lição de TERCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR, “[...] o tema da

segurança jurídica é, ao mesmo tempo, um dos mais simples e intrincados do

128 PAULO DE BARROS CARVALHO, Curso..., op. cit., p. 158. 129 Tributação e Direitos Fundamentais, in Octávio Campos Fischer (Coord.). Tributos e

Direitos Fundamentais, p. 14. 130 ALBERTO XAVIER apud JOSÉ ROBERTO VIEIRA, Medidas Provisórias Tributárias e

Segurança Jurídica: a insólita opção estatal pelo “viver perigosamente”, EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI (Coord.). Segurança Jurídica na Tributação e Estado de Direit o. São Paulo: Noeses, 2005, p. 323. Nessa esteira de certeza do direito, ensina GERALDO ATALIBA: “Seguras estão as pessoas que têm certeza de que o direito é objetivamente um e que os comportamentos do Estado ou dos demais cidadãos dele não discreparão” – República e Constituição, p. 184.

131 Ibidem, p. 324-325. 132 Ibidem, p. 322.

97

direito”133; o que bem justifica a contundente crítica de RICARDO LOBO

TORRES, para o qual não passa de ingenuidade acreditar que é possível

alcançar a segurança jurídica por intermédio apenas da determinação de

hipóteses legais de incidência.134

É na esteira dessa crítica quanto ao alicerçar a segurança jurídica

unicamente na determinação conceitual, que nasce uma primorosa tese sobre

segurança jurídica, na qual resta consignado um raciocínio analítico e singular

a esse respeito, cujo resultado decorreu do desdobramento de profundas

reflexões, por intermédio das quais HUMBERTO ÁVILA se preocupou em

aprofundar o exame de todas as perspectivas e dimensões da segurança

jurídica, que, no seu conjunto, compõem os aspectos finalísticos, de forma a

alcançar a sua conceituação. Trata-se de uma proposta de segurança jurídica a

partir de uma visão global, que supera, sem deixar de utilizar, o fundamento de

segurança jurídica centrada do binômio “determinação/previsibilidade”, que é,

apenas, uma análise unidimensional.

Optamos por utilizar essa concepção multidimensional de segurança

jurídica porque se trata do resultado da decomposição de vários aspectos que

a integram, de forma a possibilitar os seus vários sentidos e dimensões. Como

bem define o próprio doutrinador, a segurança jurídica apresenta-se “[...] como

norma que se compõe de uma multiplicidade de ideais, de dimensões e de

aspectos a serem conjunta e equilibradamente considerados.”135

Estender-nos-emos nessa visão, pois ela permeará, como fio condutor,

as análises a serem empreendidas, em especial no próximo capítulo, cuja

atenção recai sobre as regras que conformam as normas da decadência e de

prescrição tributárias. Justifica-se essa opção, porque a compreensão das

lições sobre segurança jurídica será utilizada no cotejo com as regras daqueles

133 Segurança Jurídica e normas gerais tributárias, Revista de Direito Tributário, p. 51. 134 Legalidade Tributária e Riscos Sociais, Revista Dialética de Direito Tributário , n. 59, p.

101 e 103. É possível ainda enxergar, na doutrina de CÉSAR GARCÍA NOVOA o cuidado para não analisar a segurança jurídica sob um aspecto apenas, na manifestação da preocupação de investigar a ‘segurança jurídica através do direito’ e ‘segurança jurídica no direito’, o que já mostra uma preocupação mais abrangente da segurança jurídica. Seguridad Jurídica y Derecho Tributário, Estudos em Homenagem a Geraldo Ataliba: direito tributário, p. 59.

135 HUMBERTO ÁVILA, Segurança..., op. cit., p. 271.

98

institutos, com a finalidade de responder a questão levantada no primeiro

capítulo: se esses institutos servem como instrumentos do ordenamento

infraconstitucional de forma a subsidiar a ideia de proteção jurídica, e

manutenção estável das organizações econômicas empresariais.

2.4.3.1 - Segurança Jurídica numa Visão Multidimensional

Partindo da premissa segundo a qual a análise da segurança jurídica

exige, de forma inafastável, o exame de todos os aspectos, dimensões e

perspectivas integrantes desse princípio, não amarrada, pois, ao conceito que

se vincula à certeza decorrente do conhecimento prévio do estabelecido

abstrata e hipoteticamente na norma, HUMBERTO ÁVILA apresenta um

conceito fundado no “[...] paradigma da controlabilidade semântico-

argumentativa e cuja realização depende de elementos, de dimensões e de

aspectos a serem conjunta, sintética e equilibradamente avaliados.”136

A análise da segurança jurídica é deslocada, pelo autor, da discussão

vinculada à certeza, por intermédio da determinação prévia da norma, que é

aferível pela “descrição’’ da linguagem – questão semântica; – e passa a ser

focada na argumentação, através do “uso” da linguagem, do conhecimento de

critérios e estruturas hermenêuticas que se conformam para construí-la –

questão argumentativa.

Para tanto, nesse intento de uma ampla e satisfatória concepção de

segurança jurídica e, destaque-se, num exame da dimensão estática, ÁVILA

elaborou uma série de raciocínios e de questionamentos, cujos resultados e

respostas conjugados conformam o conceito desse princípio. Vejamos todas.

(i) A segurança, conforme a Constituição Federal de 1988, tem sentido

de segurança jurídica e não física. Isso porque o “caput do artigo 1º, ao instituir

o Estado Democrático de Direito, e o “caput” do artigo 5º, ao prever o direito à

136 Ibidem, p. 271-272.

99

segurança, ao lado de outros direitos que são qualificados como valores

sociais, acabam por referir-se à segurança como valor. Ademais, o rol de

direitos fundamentais previstos no próprio artigo 5º, são além de relativos à

segurança física e individual – proteção à residência e “Habeas Corpus”;

relativos também à exteriorização de liberdades – de pensamento, consciência,

crença, expressão intelectual, artística, científica etc – o que faz pressupor que

a segurança estabelecida no “caput” tem maior amplitude, portanto, revela-se

como jurídica.137

(ii) A dimensão da segurança jurídica apresenta, de acordo com a

Carta Constitucional de 1988, como “[...] norma jurídica da espécie norma-

princípio [...]”, pois pela sua análise – exame da sua estrutura e suas partes –,

verifica-se que ela, a segurança jurídica, determina o resguardo de um “[...]

ideal de coisas cuja realização depende de comportamentos, muitos dos quais

já previstos expressamente. A ressalva fica por conta de que a qualidade de

norma jurídica pontificada não afasta a feição axiológica do princípio, pois este

‘incorpora e positiva um valor em um nível maior de concreção’ ”.138

(iii) No que se refere ao aspecto material da segurança jurídica, na

conformidade da Constituição Republicana de 1988, ela indica um estado de

cognoscibilidade ou de determinação ? De confiabilidade ou de imutabilidade ?

De calculabilidade ou de previsibilidade ? O aspecto material da segurança

jurídica é de cognoscibilidade, confiabilidade e de calculabilidade. E cada uam

dessas afirmações significa-se na forma que segue.

É cognoscibilidade, e não determinação, como a capacidade de

conhecimento, material e intelectual, do conceito normativo. Esses conceitos

normativo pode apresentar, em grau maior ou menor, alguma margem de

indeterminação, em virtude da indeterminação da linguagem. Muito embora

com tal indeterminação, esse conceito normativo contém um “[...]núcleo

significativo [...]” vagarosamente firmado pela doutrina e/ou jurisprudência

(razão teórica). Não se trata da busca pela determinação do único sentido

prévio da norma, mas de determinabilidade do conceito da norma, ou seja, da

137 Ibidem, p. 249. 138 Ibidem, p. 249-250.

100

capacidade, também material e intelectual, de compreender as alternativas de

interpretação possíveis aplicáveis a esse conceito (razão normativa).139

É confiabilidade, e não imutabilidade, apesar da previsão constitucional

das cláusulas pétreas; ou seja, podem ocorrer mudanças, todavia que ofertem

a “[...] estabilidade e continuidade normativa”.140

É calculabildade, e não previsibilidade absoluta de antecipar o

conteúdo da norma jurídica e a atuação estatal final, como a capacidade

elevada de prever o feixe de consequências jurídicas que são atribuídas pela

norma – embora a Constituição Federal de 1988 consigne um caráter de

antecipação com as regras de legalidade e de anterioridade – assim como o

lapso de tempo dentro do qual se verificará a consequência jurídica, por

intermédio de um “[...] processo de reconstrução argumentativa dos

significados mínimos dos dispositivos.”141 Não é, portanto, a concepção de

antecipação total do conteúdo da norma jurídica e de atuação estatal (quanto

ao conteúdo normativo).

Essa calculabilidade também deve possibilitar a previsão do feixe de

consequências jurídicas que as normas futuras potencialmente atribuirão aos

fatos já regulados por normas anteriores. Ressalte-se que, não obstante o

ordenamento jurídico poder ser inovado, e que o é com frequência, tais

inovações encontram, nos direitos fundamentais, a bandeira de limitação, para

que as mudanças não sejam bruscas, drásticas e desleais. Não se trata da

capacidade de prever a mudança da norma, mas de possuir, minimamente,

aptidão para conhecer em que medida se dará essa mudança (quanto à

modificabilidade).

Em resumo, calculabilidade envolve a capacidade elevada de prever o

feixe de consequências normativas a que está submetido o sujeito, em tempo

presente, e que diz respeito ao conteúdo da norma, assim como a capacidade

de prever o espectro de consequências a que estará submetido, no tempo

futuro, e que diz respeito à modificabilidade da norma.

139 Ibidem, p. 250-251. 140 Idem. 141 Ibidem, p. 252.

101

Trata-se, portanto, da capacidade por meio da qual ao sujeito é

possível prever, com “[...] grande aproximação [...]”, as “[...] reduzidas

consequências alternativamente aplicáveis e que podem ser efetivamente

atribuídas aos seus atos”, assim como prever o “[...] espectro temporal dentro

do qual a consequência será definida.”142

Destaque-se que o grau de indeterminação, pela gama, mesmo

reduzida, de feixes de consequências possíveis de atribuição ao sujeito, não

implica o “vale tudo” interpretativo. Necessariamente, tal atividade está

circunscrita à proporcionalidade e à razoabilidade, assim como essa

interpretação, apesar de constitutiva, não é discricionária, porque a norma de

decisão está adstrita aos sentidos do texto.143

A concepção de segurança jurídica tem fundamento numa

compreensão do Direito não como objetivista – direito como objeto previamente

dado, cujo conteúdo é resultado do conhecimento anteriormente estabelecido,

– e não como argumentativista – direito como atividade que se realiza por

intermédio de argumentação no processo decisório, – mas como alternativa

intermediária a esses entendimentos: direito como atividade “[...] semântica e

argumentativa [...]”, ou seja, a sua realização depende de “reconstruções de

significados normativos” e de “[...] estruturas argumentativas de legitimação e

de fundamentação [...]”144 Isso equivale a uma espécie de “objeto-atividade”.

Em decorrência dessa compreensão do Direito, a segurança jurídica

supera a concepção de mera “exigência de predeterminação”, como respeito

ao que se encontra exigido previamente na norma, e passa a ser entendida

como um “dever de controle racional e argumentativo”:

Essa mudança de perspectiva demonstra que a segurança jurídica envolve elementos que devem permear o processo de aplicação do direito e não simplesmente estarem aqueles [elementos] presentes no seu resultado (grifo nosso).145

142 Ibidem, p. 253. 143 Ibidem, p. 252-253. 144 Ibidem, p. 254. 145 Ibidem, p. 255.

102

(iv) Ainda no desbravar de respostas, a palavra jurídica designa

segurança do , pelo , em face do ou sob o direito, de direitos, como um

direito ou no direito ?

A palavra jurídica designa segurança do , pelo e em face do direito . É

segurança do direito, porque a Constituição Federal de 1988 se estrutura de

maneira a tornar o direito seguro, mediante a lucidez dos seus enunciados e

antecipação das normas – legalidade, anterioridade e irretroatividade. Esse

propósito de segurança verifica-se, por exemplo, na previsão dos Princípio da

Moralidade e Publicidade, para os quais são exigidos, como requisito de

observância e, consequentemente, validade, a fundamentação e publicação.146

É a própria estrutura básica do nosso direito – constituição – que

oferece a ele – ao direito – segurança.

É segurança pelo direito, pois a Carta Constitucional de 1988, ao

instituir o Estado Democrático de Direito, no seu artigo 1º, assegura a

segurança como valor e estabelece o direito como um “instrumento

assecuratório da segurança”. O direito serve, pois, como um instrumento de

proteção e resguardo dos cidadãos, a exemplo das previsões do artigo 5º, que

conformam os direitos e garantias fundamentais – devido processo legal, ampla

defesa e contraditório, mandado de segurança e “Habeas Corpus”. É o direito

como instrumento de segurança e proteção dos direitos do cidadão.

É segurança em face do direito , pois ao Estado só cabe atuação

conforme o que está prescrito pelo direito, por intermédio do “[...] exercício de

poderes previstos em regras de competência [...]” e por “procedimentos

previstos no direito”. Não pode, assim, alcançar aquilo que já tenha sido objeto

de conquista conforme o direito. É a segurança do cidadão diante do direito.

É segurança “de” direitos, refletido pelo prescritivo do artigo 5º, XXXVI,

da Carta Constitucional de 1988, que visa assegurar o direito adquirido, o ato

jurídico perfeito e a coisa julgada, direitos que conformam a “eficácia reflexiva

146 Ibidem, p. 256-257.

103

do princípio da segurança jurídica.” É a possibilitação de segurança a outros

direitos.

É a segurança como um direito , porque, pela eficácia reflexiva do

princípio da segurança jurídica, nasce, para o sujeito, o direito a um

comportamento estatal determinado, de forma que se possibilitem o

conhecimento – cognoscibilidade, – a confiança – confiabilidade – e o cálculo

de efeitos – calculabilidade. É a segurança como direito para o sujeito ao

comportamento estatal de acordo com o preceptivo da segurança. É o direito

ao direito à segurança.

É a segurança no direito , pois, conforme propugnado, a segurança

jurídica não se subsume à exigência de conhecimento do seu conteúdo,

estabelecido previamente na norma, mas também inclui o controle a estrutura

de argumentos de sua legitimação e fundamentação, o que demonstra a

amplitude da significação do Princípio da Segurança Jurídica. É a segurança

alcançada no curso de realização do direito.

(v) O aspecto objetivo da segurança jurídica, conforme a Constituição

Federal de 1988, diz respeito à segurança do ordenamento jurídico, de uma

norma ou de um comportamento ? Se considerado como e uma norma, ela é

geral ou individual ? Se de um comportamento, ele é próprio ou alheio ? 147

É segurança do ordenamento, de uma norma e de um

comportamento , porque nenhum desses sentidos implica exclusão dos

demais, visto que a cada qual se justifica pelo contexto de aplicação da

segurança jurídica.

É segurança do ordenamento jurídico , porque ele veicula diversos

princípios que se reportam ao ordenamento como conjunto e não como

manifestação específica, como o do Estado Social de Direito.

É segurança de uma norma , porque importa ao direito a tutela das

suas normas gerais, realizadas por intermédio de outras normas, como o que

se extrai da previsão de condições de validade e criação das normas gerais;

147 Ibidem, p. 257-258.

104

assim como proteção de normas individuais, porque várias são as previsões

normativas de proteção a situações individuais resguardadas por sentença ou

ato administrativo, como as que tutelam o ato jurídico perfeito, a coisa julgada e

o direito adquirido.

É segurança de um comportamento , comportamento esse estatal,

por toda a estruturação constitucional de princípios, como os da Publicidade e

Moralidade, e regras, que possibilitam ao sujeito administrado antecipar as

consequências a ele atribuídas pelo ordenamento jurídico.

(vi) Quanto aos sujeitos que têm o dever de garantir a segurança

jurídica, são eles os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Os três

poderes devem garantir a segurança jurídica. O Legislativo, porque a

Constituição Federal de 1988 impõe regras de produção normativa –

legalidade, anterioridade, irretroatividade – que servem de clara indicação de

sua obrigatória vinculação com essa tarefa assecuratória da segurança. O

Executivo, porque a própria Carta Magna prevê normas que dizem respeito à

aplicação uniforme da legislação – Princípio da Igualdade – e respeito às

regras estabelecidas pelo Poder Legislativo – Princípio da Legalidade. O

Judiciário, porque, além das regras de exigência constitucional de aplicação

uniforme das regras, existem outras que determinam a obrigatoriedade do

judiciário nesse dever de garantir a segurança jurídica, estampada, por

exemplo, na obrigatoriedade de fundamentação e na publicidade da atividade

estatal.148

(vii) No que se refere à proteção, a segurança jurídica destina-se a

proteger o contribuinte – e não o Estado –, tal como se extrai da estrutura

constitucional, quando estabelece normas de antecipação da atuação estatal –

moralidade e publicidade, – e de possibilitar ao sujeito destinatário da norma o

conhecimento das consequências aplicáveis aos seus atos – regras de

competência, da anterioridade e da irretroatividade. Tais preceitos não são

justificadores da proteção estatal, mas da proteção do contribuinte.149

148 Ibidem, p. 258. 149 Ibidem, p. 258-259.

105

(viii) Para aferir a segurança, quanto ao critério subjetivo, deve haver a

segurança jurídica na perspectiva do cidadão comum, porque o ordenamento

jurídico é nesse sentido conformado. O direito pressupõe o conhecimento,

pelos cidadãos, das normas jurídicas – Princípio do Estado de Direito. Se as

normas jurídicas se conformam de maneira a tornar as condutas permitidas,

obrigatórias ou proibidas, justifica-se, logicamente, na prática, que esses

comandos devam servir de orientação para os seus destinatários: os cidadãos.

(ix) No ambiente tributário estabelecido pela Constituição de 1988 – o

Sistema Tributário Nacional – restam prescritas regras específicas relativas ao

conhecimento, à confiança e à capacidade de calcular os seus efeitos,

adotadas da perspectiva do sujeito contribuinte. As regras prescritas, como as

inclusas nas chamadas Limitações ao poder de tributar , para além de

escudo protetivo do contribuinte contra desvios do Estado, servem como

garantias dos direitos individuais, em face também do Estado. Essa

estruturação revela que a atenção constitucional se voltou para o contribuinte.

Ressalte-se, todavia, que a regra jurídica pode considerar não somente a

perspectiva do contribuinte, mas também a do Poder Executivo, ocasião na

qual disser respeito à capacidade de compreensão – inteligibilidade. Quando

disser respeito à confiabilidade, é a perspectiva apenas do contribuinte que

refere “[...] a segurança jurídica tributária deve ser aferida com base na visão

do destinatário se não houver razão para considerar de uma perspectiva

diversa.”150

Quanto à extensão subjetiva, deve haver a segurança jurídica para o

indivíduo – de um direito particular – ou para a coletividade – do ordenamento

jurídico no geral. Isso depende da norma jurídica aplicável. Se considerar que a

segurança jurídica é um “[...] princípio objetivo [...]” do ordenamento jurídico,

assume, pois, um caráter objetivo e impessoal, de interesse coletivo de

manutenção da ordem jurídica – Princípio da Segurança Jurídica. Se

considerar que a segurança jurídica resulta da aplicação reflexiva em relação a

um sujeito específico, assume uma dimensão “[...] estritamente pessoal,

vinculada a interesses individuais [...]” – Princípio da Proteção da Confiança.

150 Ibidem, p. 261-262.

106

Destaque-se que embora relacionados, são diferentes: O Princípio da

Segurança Jurídica tem relação com o ordenamento jurídico geral e abstrato,

não vinculado a interesses específicos, servindo de instrumento de “[...]

proteção das confianças [...]” dos cidadãos e do ordenamento jurídico como um

todo; e o Princípio da Proteção da Confiança refere-se a uma situação

particular, subjetiva e concreta, para manter a situação jurídica favorável a um

sujeito determinado, constituindo-se como uma garantia da confiança do sujeito

relativamente à manutenção particularizada do ordenamento jurídico.151

Todavia, para saber se a segurança jurídica se presta a resguardar

interesses individuais ou quando o faz para preservar interesses coletivos,

necessário se faz analisar o contexto normativo e fático no qual ela é utilizada.

No caso de proteção, por exemplo, ao direito adquirido, à coisa julgada e ao

ato jurídico perfeito, o Princípio da Segurança Jurídica é aplicado de maneira

reflexiva, em relação a interesses particulares. Na modulação dos efeitos da

declaração de inconstitucionalidade, a segurança jurídica de que se trata visa

proteção da confiança do ordenamento jurídico como um todo.

(x) Em relação ao aspecto temporal, a segurança jurídica, conforme a

Carta Constitucional de 1988, busca a garantia do passado, do presente e do

futuro. Do presente, porque a Constituição é conformada de maneira a

possibilitar ao cidadão o conhecimento das normas a que deve obediência.

Essa conformação clarifica-se na instituição de regras de existência –

publicação da norma, citação da parte, – de vigência – anterioridade,

irretroatividade – e de conteúdo – clareza e determinabilidade, – o que oferece

segurança. Do passado, porque a Constituição também tutela situações

alcançadas no passado e abarcadas pelo direito – como o direito adquirido, o

ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Do futuro, porque estabelece regramento

151 Quando HUMBERTO ÁVILA sustentou “[...] o denominado princípio da proteção da

confiança, mais do que protege a ‘estabilidade do direito para todos’, como faz o princípio da segurança jurídica, protege a ‘confiança de alguém na estabilidade de uma manifestação do Direito” (grifo nosso), aparentemente, em razão da expressão mais do que , somou, acrescentou a finalidade do princípio da segurança jurídica à finalidade do Princípio da Proteção da Confiança. Todavia, pelo desenvolvimento do seu discurso, muito mais parece uma inadequação da expressão mais do que , que poderia ser substituída, sem prejuízo de significação, por em vez de proteger – Ibidem, p. 262.

107

com caráter vinculativo do direito, de maneira a declarar o grau de vinculação

da norma no futuro – anterioridade.

(xi) No aspecto quantitativo, a segurança jurídica deve garantir a

segurança total. Ressalte-se, primeiramente, que não se trata da análise de

uma segurança jurídica absoluta ou relativa, mas de uma segurança jurídica

como finalidade de “[...] mais promovida [...]” do que “[...] restringida [...]” É que

a segurança jurídica envolve não um, mas um complexo de ideais a serem

satisfeitos, e, por isso, pode decorrer algum conflito entre eles. É o “[...] conflito

da segurança jurídica ‘consigo mesma’ ”.152

Isso quer dizer que o princípio da segurança jurídica deve ser razão

para fundamentar uma decisão quando, “[...] racional e argumentativamente

[...]”, puder comprovar que tal decisão muito mais promove os seus aspectos –

confiabilidade, calculabilidade, segurança do direito, segurança pelo direito,

entre segurança do passado e do futuro – do que os restringe.153

A segurança jurídica pode não ser argumento de proteção quando tal

implicar restrição de muitos de seus aspectos: “[...] protege-se (pouco) a

segurança jurídica, restringindo-a (muito). Protege-se um membro,

esquecendo-se do corpo. Por isso, só se promove o princípio da segurança

jurídica quando a síntese dos seus aspectos revele a sua maior promoção

conjunta.”154

De outra forma, isso quer dizer que não se concebe, em nome de uma

pretensa segurança jurídica, protegê-la pouco – nos seus aspectos, – o que

implica, na verdade, a restrição de muitos dos outros aspectos. Exige-se, para

a sua realização, a promoção a maior parte dos seus aspectos.

(xii) Tratando-se do aspecto justificativo da segurança jurídica, ela

perfaz-se como um instrumento de realização de outros fins – e não é um fim

em si. Tal afirmação se justifica porque a segurança se presta a realizar direitos

152 Ibidem, p. 265. 153 Idem. 154 Idem.

108

fundamentais, assim como realizar finalidades estatais, conforme o artigo 70 da

Constituição Federal de 1988.155

Esse cunho instrumental fica óbvio no âmbito tributário, porquanto, na

Constituição de 1988, no Sistema Constitucional Tributário, prevê regras

relacionadas com a segurança jurídica, como garantias e como limitações ao

poder de tributar.

Em razão desse caráter instrumental, o seu aspecto de

cognoscibilidade – que fora conceituado como a “[...] capacidade de

compreensão das alternativas de sentido reduzidas a um texto normativo” – e a

calculabilidade – conceituada como a “[...] capacidade de antecipar o espectro

de consequências alternativamente aplicáveis a atos ou a fatos e o espectro

tempo dentro do qual a consequência será efetivamente aplicada”, – deverão

abarcar a ideia de alternativas de sentido em número não elevado e do

espectro de consequência e tempo não amplo, que exceda o razoável, pois, do

contrário, a segurança jurídica não servirá de instrumento.156

Não há cognoscibilidade quando as “[...] alternativas normativas de

sentido [...]” são em número elevado.157 Não há, também, calculabilidade

quando os espectros de consequências e de tempo forem amplos demais. O

resultado é que não haverá segurança jurídica. Destaca ainda:

Prever um número reduzido de consequências incertas, ou um número amplo de consequências certas, isso não é calcular. Assim, calculabilidade ilimitada ou ampla demais quanto ao número e à variedade de consequências, limitada ou ampla demais quanto ao período para a sua definição não é calculabilidade. É por isso que a calculabilidade também depende da duração razoável do processo.158

Assim, além da capacidade de poder conhecer as alternativas de

sentido da norma – cognoscibilidade – deve, também, haver a capacidade de 155 Não é um benefício estatal, mas para o cidadão que pode controlar a atividade estatal e

planejar as suas atividades – Ibidem, p. 265. 156 Ibidem, p. 266. 157 Idem. 158 Ibidem, p. 267.

109

antecipar o “[...] espectro reduzido e pouco variável [...]”, isso não quer dizer

imodificável, de consequências atribuídas abstratamente, assim como o “[...]

espectro reduzido de tempo dentro do qual a consequência definitiva será

efetivamente aplicada”159.

Com base nas premissas firmadas, HUMBERTO ÁVILA propugna um

conceito jurídico e não classificatório de segurança jurídica:

(...) norma-princípio que exige, dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, a adoção de comportamentos que contribuam mais para a existência, em benefício dos cidadãos e na sua perspectiva, de um estado de confiabilidade e de calculabilidade jurídico-racional das estruturas argumentativas reconstrutivas de normas gerais e individuais, como instrumento garantidor do respeito à sua capacidade de – sem engano, frustração, surpresa e arbitrariedade – plasmar digna e respeitavelmente o seu presente e fazer um planejamento estratégico juridicamente informado do seu futuro.160

Muito embora já mencionado, reforçamos que a cognoscibilidade deve

ser entendida como uma capacidade elevada de compreensão das estruturas

“[...] argumentativas reconstrutivas das normas [...]”;161 a confiabilidade, como a

confiança pelo respeito aos direitos fundamentais e pelo próprio direito, em

razão da estabilidade, durabilidade e irretroatividade do ordenamento jurídico; e

a calculabilidade, como a capacidade de, em grande medida, antecipar e medir

o reduzido e pouco variável número de consequências jurídicas aplicáveis

dentro de um lapso razoável de tempo, no qual a consequência definitiva será

aplicada.

Ainda nesse espírito de destaque, todas as dimensões da segurança

jurídica são igualmente importantes para o seu sustento, na forma defendida

por HUMBERTO ÁVILA:

159 Ibidem, p. 266-267. 160 Ibidem, p. 268. 161 Ibidem, p. 268-269.

110

Segurança jurídica é do e pelo direito, e segurança dos direitos frente ao direito. Sem a conjugação dessas várias dimensões da segurança jurídica, não se atinge um mínimo de confiabilidade e calculabilidade do ordenamento jurídico, com base na sua cognoscibilidade, porque o estado de segurança conquistado por uma dimensão será solapado pela ausência de qualquer uma das outras dimensões. Em outras palavras, sustenta-se que há um nexo de pressuposição ou vínculo de reciprocidade entre as várias dimensões da segurança jurídica, no sentido de que uma não funciona sem a outra. Afinal, pode o Direito garantir segurança sem ser seguro, isto é, pode o Direito assegurar expectativas sem ser minimamente cognoscível, confiável e calculável ? Pode ele ser seguro sem ser para assegurar outros valores, isto é, pode o Direito cognoscível, confiável e calculável sem que esses elementos estejam a serviço de outros valores ? Pode o Direito garantir segurança sem permitir segurança frente a si mesmo, isto é, pode o Direito assegurar calculabilidade e confiabilidade sem preencher determinados requisitos para que o indivíduo possa dele se precaver ? (sic)162

Essa ideia, aplicável à análise da segurança jurídica, da forma através

da qual ela se conforma, é transportada para o âmbito tributário, porque, afinal,

estamos diante de um único princípio, todavia, aplicável a uma área de

conhecimento do direito. Muito embora estejamos diante do mesmo princípio, a

segurança jurídica ganha nuanças dentro do Direito Tributário e, nessa área,

ganha um caráter mais protetivo do contribuinte. Por exemplo, os aspectos da

cognoscibilidade concretiza essa proteção por intermédio da legalidade e das

regras de competência. A confiabilidade, pela estabilidade no tempo:

decadência e prescrição; pela vigência: irretroatividade; pelo procedimento:

direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada.163

Partindo dessa análise protetiva, HUMBERTO ÁVILA apregoa que

segurança jurídico-tributária é:

[...] uma norma-princípio que exige dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário a adoção de comportamentos que contribuam mais para a existência, em benefício dos contribuintes e na sua perspectiva, de um elevado estado de confiabilidade e de calculabilidade jurídica, com base na sua elevada cognoscibilidade, por meio da controlabilidade jurídico-racional das estruturas argumentativas reconstrutivas de normas gerais e individuais, como instrumento garantidor do respeito à sua capacidade de, sem engano, frustração, surpresa ou arbitrariedade, plasmar digna e

162 Ibidem, p. 270. 163 Ibidem, p. 280.

111

responsavelmente o seu presente e fazer um planejamento estratégico juridicamente informado do seu futuro.164

Esse caráter protetivo da segurança jurídica justifica-se porque a

instituição de tributos afeta alguns direitos fundamentais, como os relacionados

à liberdade, à propriedade e à igualdade, e quanto maior a restrição a esses,

tanto maior deve ser a sua proteção.165

2.5 - DIFERENÇAS PRELIMINARES ENTRE A DECADÊNCIA E A

PRESCRIÇÃO

Partamos da premissa segundo a qual estamos diante de institutos

jurídicos que têm no tempo um fator nuclear, detalhe esse que, muito embora

os aproximem, não os assemelha. Também, muito embora veiculadores de

situações relacionadas ao implemento de direitos subjetivos, ainda assim, esse

aspecto não é capaz de os assemelhar.

A decadência e a prescrição são institutos prescritos por normas

infraconstitucionais, mais especificamente, no âmbito tributário, tratados pelo

Código Tributário Nacional. De maneira geral, ambos são mecanismos nos

quais, uma vez implementadas as situações previstas na norma, fica obstada a

satisfação de direitos subjetivos, pois perfazem formas extintivas dos

mesmos.166

Dito de outra forma, tanto a decadência quanto a prescrição são

institutos do direito que servem como instrumentos jurídicos que limitam a

satisfação de um direito subjetivo, por intermédio da extinção da possibilidade 164 Ibidem, p. 282-283. 165 Ibidem, p. 281. 166 Mencionamos direito subjetivo porque nenhum desses institutos é capaz de extinguir direito

objetivo – norma jurídica, – mas tão somente o subjetivo. Da mesma maneira como produzem efeito em relação ao direito subjetivo apenas, só são capazes de limitar a produção de normas individuais e concretas, não as gerais e abstratas. Sustenta dessa forma, CHRISTINE MENDONÇA, Decadência e Prescrição em Matéria Tributária, in EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI (Coord.), Curso..., op. cit., p. 656.

112

jurídica de seu implemento.167 O que, materialmente, os diferencia é o caráter

desse direito subjetivo envolvido. Se a limitação está relacionada com o

exercício do próprio direito, estamos diante da decadência, se a imposição de

limite tem relação com o próprio direito material e com exercício da ação, o

assunto diz respeito à prescrição.

Em razão de ambos os institutos trabalharem com o esgotamento de

prazo para a satisfação de um direito subjetivo, pode ser, esse aspecto de

proximidade, um dado complicador para o entendimento da matéria. Todavia,

no âmbito tributário, essa questão tem, no lançamento, a referência divisória

entre esses institutos. Em linhas gerais, o lapso de tempo que antecede a

constituição do crédito tributário é o prazo decadencial, antecede-a exatamente

por uma questão lógica: é o prazo para a realização da sua constituição pelo

lançamento tributário. Uma vez constituído esse crédito, estaremos diante do

início de outro lapso temporal, que é o prazo prescricional, tempo no qual deve

ser exigida, judicialmente, a satisfação do crédito cuja exigibilidade já se

aperfeiçoou, mediante ação executiva.168

Dizem respeito a dois períodos de tempo que podem ser didaticamente

vistos como consecutivos, porque só se há de falar em prazo prescricional se,

no decadencial, tiver sido realizada a constituição do crédito tributário.

Destaque-se, que o prazo decadencial independe do prescricional, e inaugura

a contagem de prazo para a satisfação do direito subjetivo do Fisco de

constituição do crédito tributário.169 O prescricional, por sua vez, depende do

167 Ensina, nesse sentido, EURICO MARCO DINIZ DE SANTI: “No fundo, decadência e

prescrição são formas extintivas de direitos subjetivos, que se diferenciam pelo caráter desses direitos. [...] são mecanismos do sistema jurídico para absorção de incertezas, limites impostos pelo próprio ordenamento à sua positivação, seja mediante o exercício do próprio direito, decadência, ou o exercício da ação, prescrição” – Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 41. No mesmo sentido, CHRISTINE MENDONÇA, Decadência e Prescrição em Matéria Tributária, in EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI (Coord.), Curso..., op. cit., p. 656.

168 Sobre essa lógica envolvida no lançamento tributário, destaca LUCIANO AMARO: “[...] não se faz presente na dinâmica do exercício de direitos em outros ramos do direito. Embora outros institutos possam figurar como etapas de atuação do direito do credor (por exemplo, o protesto cambial, a notificação para constituição em mora)” – Direito... , 11. ed., op. cit., p. 402.

169 Em razão do recorte metodológico realizado no presente trabalho, em toda referência ao direito subjetivo do crédito tributário, estar-se-á a falar do direito do Fisco. Essa observação faz-se importante, pois, não se ignora a possibilidade de constituição do crédito pelo contribuinte, embora sujeita à homologação, conforme artigo do Código Tributário Nacional).

113

implemento desse direito subjetivo de constituir o crédito tributário, conjugado

com o não cumprimento do dever de pagar, porque sua exigibilidade se faz

necessária para dar início à contagem de tempo que se presta à satisfação,

também, de um direito subjetivo, este, todavia, focado na exigência judicial do

crédito. De maneira precisa, “[...] decadência opera na fase de constituição

administrativa do crédito; e a prescrição, no momento do exercício do direito de

ação”170

Falamos de decursos de prazos. Se o prazo para a constituição

administrativa do crédito tributário fluiu sem que o sujeito credor se mobilize

para realizar essa tarefa, dizemos que o seu direito subjetivo de constituição do

crédito foi alcançado pela decadência. Se o sujeito credor, ativo, realizou a

constituição do crédito tributário, e diante do não pagamento desse crédito,

pelo sujeito devedor, passivo, no prazo legalmente previsto, e se não for

exigido judicialmente, dizemos que o seu direito subjetivo de ajuizamento da

cobrança judicial foi alcançado pela prescrição, ou seja, a sua pretensão

judicial prescreveu.171

É possível afirmar, em suma, que a decadência e a prescrição são

institutos diversos, porém, com alguns aspectos coincidentes. Coincidem, pois

ambos têm como ideia nuclear o tempo, desenvolvem-se pelo decurso de

prazo, cuja conjugação com a inércia do titular do direito subjetivo se faz

necessário, para obstar a satisfação do direito subjetivo; e têm origem na

mesma relação jurídica tributária, tanto o direito de realizar o lançamento

quanto o de cobrar judicialmente o crédito.172 Diferenciam-se, pois, o prazo

170 EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 217. 171 LUCIANO AMARO ressalta: “[...] o Código Tributário Nacional optou por cindir a

problemática dos prazos extintivos do direito do credor da obrigação tributária, fixando dois prazos, sendo o primeiro o lapso de tempo dentro do qual deve ser constituído o crédito tributário, mediante a consecução do lançamento, e o segundo, o período no qual o sujeito ativo, se não satisfeita a obrigação tributária, deve ajuizar a ação de cobrança [...] se se esgota o prazo dentro do qual o sujeito ativo deve lançar, diz-se que decaiu de seu direito; este se extingue pela decadência (ou caducidade). Se, em tempo oportuno, o lançamento é feito, mas o sujeito ativo, à vista do inadimplemento do devedor, deixa transcorrer o lapso de tempo que tem para ajuizar a ação de cobrança, sem promovê-la, dá-se a prescrição da ação” – Direito... , 11. ed., op. cit., p. 402.

172 CHRISTINE MENDONÇA ressalta: “[...] ambas nascem em razão da realização do fato jurídico de omissão no exercício de um direito. O direito subjetivo se extingue caso ele não seja exercido durante um certo lapso temporal” – Decadência e Prescrição em Matéria Tributária, in EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI (Coord.), Curso..., op. cit., p. 656.

114

decadencial inicia antes do lançamento, porque é o prazo que se presta à

constituição administrativa do crédito, e tem o condão de extinguir o direito de

constituir do crédito tributário. O prazo prescricional inicia após a constituição

do crédito, porque é a partir desse marco, com o decurso do tempo para o

pagamento do mesmo, que se tem a referência temporal para o prazo máximo

de ajuizamento da ação de cobrança, e tem a força de extinguir a pretensão de

cobrar judicialmente o crédito.173 Esse é o “[...] mecanismo do sistema jurídico

para absorção de incertezas: é o limite imposto pelo próprio ordenamento à

positivação do direito na esfera judicial, mediante a extinção do direito de

ação.”174

2.6 DECADÊNCIA E PRESCRIÇÃO NUMA ANÁLISE COMO NORMA GERAL

E ABSTRATA E NORMA INDIVIDUAL E CONCRETA

Diferente do que se pode pensar, numa reflexão ligeira e desatenta, a

decadência e a prescrição, no ambiente tributário, atuam não sobre as normas

gerais e abstratas, mas sobre as normas individuais e concretas. Isso quer

LUCIANO AMARO, faz um comentário mais preciso a esse respeito, no qual destaca: “[...] a decadência e a prescrição têm em comum a circunstância de ambas operarem à vista da conjugação de dois fatores: o decurso do tempo e a inércia do titular do direito” – Direito... , 11. ed., op. cit., p. 396.

173 Na lição de LUCIANO AMARO há o destaque segundo o qual, o Direito Tributário, muito embora tenha trazido do direito privado esses dois institutos, utiliza-os, todavia, de acordo com a sua dinâmica, extraída de “[...] uma mesma relação material (a relação jurídica tributária, que enlaça o devedor e o credor do tributo), um só objeto (a prestação do tributo), uma só origem (a lei, dada a natureza ex lege da obrigação tributária). [...] o direito (ou direito-dever) que o sujeito ativo tem de efetuar o lançamento do tributo e o direito que possui de cobrar judicialmente esse tributo repousam (‘ambos’) na mesma relação jurídica material, nascida com o fato gerador da obrigação tributária, da qual ‘decorre’ o lançamento, que efetiva o exercício da pretensão do credor ao tributo (ou seja, confere exigibilidade à obrigação tributária), pretensão essa de cuja violação (não-pagamento do tributo, no prazo assinalado) deflui o direito de o Fisco proceder à inscrição da dívida, que, por sua vez, viabiliza o ajuizamento da ação” – Direito..., 11. ed., op. cit., p. 402-403.

174 EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Prescrição do Direito do Fisco, Suspensão da Exigibilidade e Segurança Jurídica, Revista Dialética de Direito Tributário, n. 127, p. 110.

115

dizer que tanto a decadência quanto a prescrição servem de limites para a

produção dessas normas individuais e concretas.175

Uma vez que sejam aplicadas essas regras de decadência e

prescrição, elas implicam a extinção da possibilidade jurídica de constituição do

crédito tributário e o direito ao crédito – decadência –, assim como a extinção

do direito subjetivo à ação executiva fiscal – prescrição.176

Destaque-se que não é a norma geral e abstrata da decadência ou da

prescrição que atua tal como apontado, servindo de limitação à produção de

norma individual e concreta. Esse efeito de interromper o processo de

positivação do direito não é automático, requer que a norma geral e abstrata da

decadência ou da prescrição seja aplicada, ou seja, que seja produzida a

norma individual e concreta da decadência e prescrição.177

Quando falamos, portanto, de decadência e prescrição, podemos

referir-nos à norma geral e abstrata ou à norma individual e concreta. Como

norma geral e abstrata, temos que possuem, na medida em que são prescritas

em normas, como todas elas, a estrutura hipotético-condicional, ou seja,

possuem a hipótese e a consequência.178 Na hipótese, resta prescrita uma

175 EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI assevera: “[...]. Decadência e prescrição operam sobre

as fontes de produção de NIC, interrompendo o processo de positivação do direito tributário. Mas esses efeitos não se operam automaticamente: exigem reconhecimento do sistema jurídico. Por isso, tanto quanto as outras normas gerais e abstratas, a decadência e a prescrição devem ser aplicadas, produzindo suas respectivas NIC [norma individual e concreta]. [...] os prazos de decadência e prescrição impõem limites somente à produção de regras individuais e concretas, mas não de NGA [norma geral e abstrata]” (esclarecemos, nos colchetes) – Decadência..., op. cit., p. 143-144.

176 Não nos referimos ao direito ao crédito e o direito de pleitear administrativamente o débito do fisco, porque esse direito diz respeito à esfera jurídica do contribuinte, que não é objeto de estudo no presente trabalho. Todavia, a decadência tem a eficácia de extinguir esses três direitos, conforme ensina EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, in Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 143-144. Isso porque estamos nos reportando à esfera jurídica do Fisco, pois se o foco fosse a esfera jurídica do contribuinte, a prescrição opera a perda do direito à ação de repetição do indébito. Ibidem, p. 144.

177 Por esta razão EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI ensina, especificamente sobre a decadência: “A decadência, antes de extinguir, cria direito, quer dizer, para que ocorra a decadência mister se faz que a norma de decadência seja aplicada. É a norma individual e concreta da decadência que extinguirá o direito” – Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 149. É isso que PAULO DE BARROS CARVALHO chama de processo de positivação, partir da norma geral e abstrata para edição da norma individual e concreta, in Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p. 217.

178 Embora existam outros aspectos em que a decadência e a prescrição podem ser analisadas, como “evento do decurso do lapso temporal, qualificados pela inércia do titular do direito”, como “fatos, versões desses eventos descritas em linguagem jurídica” ou, ainda,

116

situação que é passível de ocorrência, que, claro, tem relação com o decurso

de tempo sem o exercício de um direito; e no consequente, a prescrição da

extinção de um direito subjetivo.

Conforme assinalamos linhas acima, nessa condição de norma geral e

abstrata, assim como as demais normas do ordenamento jurídico, nem a

decadência nem a prescrição têm condição jurídica de se realizar efetivamente,

de sorte a realizar qualquer modificação no mundo dos fatos. Faz-se

imprescindível para esse trânsito, da realidade normativa, do mundo do dever

ser , para a realidade social, mundo do ser, que os comandos gerais e

abstratos se convertam ou ganhem concreção de normas individuais e

concretas.179

Dessa forma, a decadência e a prescrição como normas individuais e

concreta, ou seja , quando objetivado o fato que deu ensejo à decadência ou à

prescrição e determinado o objeto da relação jurídica extintiva do direito

subjetivo, é que possibilitará os efeitos extintivos para os quais foram previstas

nas normas gerais e abstratas.180

como “relações extintivas do direito”, a opção pela análise apenas no que se refere à norma, seja geral e abstrata ou individual e concreta, tem relação com o que ensina LOURIVAL VILANOVA, pois é na forma de estrutura normativa, “[...] forma lógica da proposição implicacional normativa [...]”, que se alcança a sua forma sintática mais adequada, in Causalidade e relação no direito, p. 47. É nessa fonte que se inspirou EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 155-156. Esta é, também, a lição de PAULO DE BARROS CARVALHO, Direito Tributário – fundamentos..., op. cit., p. 202.

179 Essa é o ensinamento de PAULO DE BARROS CARVALHO, Direito Tributário – fundamentos..., op. cit., p. 218. Com respeito a essa lição faz EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI a observação de que mesmo que se faça necessária a edição da norma individual e concreta, ela “[...] não atinge, ainda, o mundo do ‘ser’. Nem pode. A regra jurídica em seu grau máximo de concreção tão-somente se aproxima, tende, mas não chega a tocar propriamente o ‘ser da conduta, que, como sabemos, é da ordem do inefável. [...] a função derradeira do processo de positivação não é ‘realizar’ a conduta, e sim incrementar a eficácia dos comandos gerais e abstratos” – Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 157.

180 EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI ressalta: “Juridicamente, a decadência ou a prescrição só se operam efetivamente ante a produção das respectivas normas individuais e concretas” – Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 159.

117

2.7 – COMPETÊNCIA PARA LEGISLAR EM MATÉRIA DE DECADÊNCIA E

DE PRESCRIÇÃO

2.7.1 Noções Introdutórias

Muito embora o sistema tributário brasileiro tenha a sua estrutura

fundada na Constituição Federal, de maneira tal a preservar valores e

princípios que são caros para o Estado, necessário se faz averiguar a

disposição constitucional – artigo 146 – que concede à União a faculdade de

editar normas gerais de direito tributário, o que pode ser um potencial

instrumento para a restrição à competência dos demais entes políticos.

Nesse contexto reside o enfrentamento da doutrina, no sentido de

entender a disposição constitucional de maneira a não violar os Princípios

Federativo e da Autonomia dos Municípios e o decorrente Princípio da

Isonomia entre os Entes políticos.

Essencialmente, existem duas correntes doutrinárias que se desafiam

na tarefa de melhor explicar a faculdade de edição das normas gerais em

matéria tributária e o seu conteúdo: a unifuncional e a tricotômica.

Assim, neste momento, a atenção recai sobre a análise da lei

complementar sobre normas gerais de direito tributário, muito embora seja

assunto espinhoso, objeto da previsão constitucional do artigo 146, a partir do

qual temos a sistematização do Código Tributário Nacional, com a intenção de

dar subsídio ao estudo da possibilidade de veiculação de prazos decadenciais

e prescricionais por meio do referido diploma editado pela União.181

Nesse intuito, a análise será no sentido de responder aos seguintes

questionamentos: os prazos decadenciais e prescricionais seriam veiculados

apenas por Lei Complementar Nacional, elaborada pelo Congresso Nacional,

181 SACHA CALMON NAVARRO COÊLHO refere-se a essa matéria como assunto

delicadíssimo , in Comentários à Constituição de 1988: sistema tributário, p. 80.

118

ou, por outro lado, poderiam eles ser veiculados, também, pelas unidades

federativas, tendo em vista a distribuição constitucional de competências

tributárias ? A possibilidade de apenas a União tratar, por Lei Complementar,

da fixação de prazos decadenciais e prescricionais, não promove indevida

invasão de competência em tema que seria da esfera dos Poderes Legislativos

locais ?

Para tanto, faz-se importante trilhar os caminhos percorridos pela

doutrina, a fim de compreender as interpretações diversas que foram

alcançadas a respeito do assunto, não antes de apreciar o que ensina a

doutrina a respeito do tema.

2.7.2 Lei Complementar

A disposição constitucional sobre lei complementar está prevista no

seu artigo 69, e veicula os requisitos necessários de aprovação, por maioria

absoluta das duas casas do Congresso Nacional, disciplinando as matérias que

estão expressas ou implicitamente informadas na própria Constituição Federal.

182

Existem, portanto, dois aspectos que a distinguem de outros diplomas

legais: um, de caráter formal, o seu “quorum" qualificado de aprovação; e outro,

material, no que diz respeito às matérias por ela veiculadas. É por essa razão

que PAULO DE BARROS CARVALHO afirma que a lei complementar se

reveste de natureza ontológico-formal.183

Em virtude de exigir procedimento legislativo mais rígido e de, também,

restar enumerado no artigo 59, II, da Constituição Federal, em posição de topo,

182 Código Tributário Nacional: “Artigo 69. As leis complementares serão aprovadas por maioria

absoluta”. Nesse sentido ensina REGINA HELENA COSTA, Imunidades Tributárias: teoria e análise da jurisprudência do STF, p. 97.

183 O autor observa: “Desse conceito jurídico-positivo sobressaem dois traços identificadores: a) matéria expressa ou implicitamente indicada na Constituição; e b) o quorum especial do artigo 69 (CF). Ao primeiro, denominamos pressuposto material ou ontológico. Ao segundo, requisito formal” – Curso..., op. cit., p. 219.

119

podemos deparar-nos com o magistério, segundo o qual há hierarquia entre a

lei complementar e a lei ordinária.184 Tal compreensão é dissipada no

fundamento de que ambos buscam o seu fundamento de validade na própria

Constituição Federal, assim, portanto, não se justifica a hierarquia.

Assevera JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, com o fundamento na

Teoria Geral do Direito, que existem duas espécies de Lei Complementar: (i) as

que dão fundamento de validade a outros atos normativos, e (ii) as que não

fundamentam outros atos normativos e apenas cumprem o papel estabelecido

na Constituição Federal.185

Para PAULO DE BARROS CARVALHO, há de se falar em hierarquia

formal, quando a norma superior impõe o processo legislativo a ser observado,

como consagrado no artigo 59, parágrafo único, da Constituição Federal186; e

material, quando a norma superior preceituar conteúdo significativo da norma

inferior . Ressalte-se, portanto, que, nessa visão, pode haver hierarquia

material somente se a Lei Complementar impuser conteúdo em relação à Lei

Ordinária.187 É a referida “[...] hierarquia eventual [...]”, segundo HUMBERTO

ÁVILA.188

Nesse sentido mesmo, ensina REGINA HELENA COSTA, segundo a

qual “[...] certo é, portanto, existirem leis complementares que outorgam

184 “Artigo 59. O processo legislativo compreende a elaboração de:

I - emendas à Constituição; II - leis complementares; III - leis ordinárias; IV - leis delegadas; V - medidas provisória VI - decretos legislativos; VII - resoluções. Parágrafo único. Lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis”. Consultar, no tema: MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, Curso de Direito Constitucional, p. 24 e MICHEL TEMER, Elementos do Direito Constitucional, p. 146-148.

185 JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, Lei complementar tributária, p. 54-55. 186 A exemplo da Lei Complementar nº 95/98, que trata do procedimento de elaboração e

aprovação das leis perante as casas Legislativas. Tal procedimento é de observância obrigatória por todas as Unidades Federativas.

187 PAULO DE BARROS CARVALHO, Curso..., op. cit., p. 221. 188 Sistema Constitucional Tributário, p. 135.

120

fundamento de validade à lei ordinária e outras que, diversamente, não

cumprem essa função.”189

Existe, também, um aspecto importante a ser ressaltado, para fins de

compreensão deste ponto, que é a distinção entre Lei Complementar Nacional

e a Lei Complementar Federal. Muito embora o artigo 69 mencione a exigência

do texto constitucional de “quorum" mais rígido, tal exigência se aplica tanto

para a Lei Complementar Nacional quanto para a Lei Complementar Federal. O

que as diferencia é que a Lei Complementar Nacional deve veicular matéria de

interesse nacional, aplicável a todas as pessoas políticas, que são “as três

ordens jurídicas parciais da União, dos Estados e dos Municípios”, o que

afasta, por necessário, a disciplina de questões de competência específica de

cada Ente Político. De outro modo, a União, legislando sobre assuntos de

interesse nacional, e valendo-se da Lei Complementar nacional, o faz na

qualidade de representante do Estado brasileiro como um todo.190

Por outro lado, a União Federal, agora enquanto unidade federativa,

por intermédio da Lei Complementar Federal, poderá editar normas sobre

questões específicas de seu interesse, ou seja, circunscritas à sua esfera de

poder enquanto Ente Político, respeitadas as exigências do artigo 69 da

Constituição Federal.191

Já ingressando no estudo daquele veiculo normativo sob a óptica do

Direito Tributário, a Lei Complementar, considerando a delimitação do tema ora

em foco, tem o seu papel prescrito nos artigos 146 e 24, I, e parágrafos, ambos

da Constituição Federal.

É exatamente em função de tal prescrição, do papel desempenhado

pela Lei Complementar em matéria tributária, – sobre a possibilidade de ser o

veículo normativo único a tratar da fixação de prazos decadenciais e

prescricionais, ou, de outra forma, se as leis ordinárias locais, de acordo com a

outorga de competência tributária distribuída pela Constituição Federal de 1988

189 Imunidades..., op. cit., p. 98. 190 HUMBERTO ÁVILA, Sistema..., op. cit., p. 135. 191 PAULO DE BARROS CARVALHO, Direito Tributário – linguagem e método, p. 390.

121

às unidades federativas poderiam, também, tratar sobre o assunto de acordo

com seus interesses – é que há dissensão doutrinária.192

2.7.3 Norma Geral Tributária e as Interpretações Doutrinárias

Conforme mencionado, o assunto é tema espinhoso, objeto de

contestações na doutrina e razão de discussões na jurisprudência. O debate

que, hoje, ainda é fomentado e divide a doutrina, nasceu ainda na égide da

Constituição de 1967/1969, em razão do artigo 18, § 1°. 193

A doutrina mais tradicional enveredou pelo caminho hermenêutico mais

apegado à letra da lei, ou seja, valeu-se de uma interpretação literal do

dispositivo para concluir que seriam três as funções da Lei Complementar,

quando tratar de assuntos afetos ao Direito Tributário.

Tal escolha levou à compreensão segundo a qual a tríplice função da

Lei Complementar eram as seguintes: (i) estabelecer normas gerais de Direito

Tributário; (ii) dispor sobre conflito de competência entre os entes tributantes;

(iii) regular as limitações constitucionais ao “poder” de tributar, consolidando,

pois, o que se convencionou chamar de corrente tricotômica.

Em oposição ao processo hermenêutico literal, com a construção

teórica de uma interpretação que se considera mais coerente e harmonioso

com o sistema constitucional, ou seja, com a proposta de interpretação

sistemática, parte da doutrina concebe a Lei Complementar tributária com uma

única função, bem delimitada, qual seja, estabelecer normas gerais de direito

tributário, que, por sua vez, teria seu conteúdo delimitado – o que não acontece

na corrente tricotômica – subdividindo-se em duas finalidades, (i) dispor sobre

conflitos de competência entre os entes políticos e (ii) regular os limites

192 Assim como foi em relação à disposição do artigo 18, § 1°, da Constituição Federal, de

1967, com a Emenda Constitucional nº 01/69, dissensão que remanesce. 193 “Lei Complementar estabelecerá normas gerais de direito tributário, disporá sobre conflitos

de competência nessa matéria entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios e regulará as limitações constitucionais ao poder de tributar”

122

constitucionais ao “poder” de tributar. Essa linha de pensamento é a seguida

pela corrente unifuncional. Em síntese, nessa corrente, teria a Lei

Complementar uma única função, qual seja, estabelecer normas gerais de

direito tributário, que buscaria, por sua vez, duas finalidades, dispor sobre

conflito de competência e regular as limitações constitucionais ao “poder” de

tributar.

Assim, consolidaram-se em frontal oposição, as correntes doutrinárias

tricotômica e unifuncional, situação que remanesce até os dias atuais, mesmo

depois da previsão do artigo 146, da Constituição Federal de 1988.

Os argumentos e críticas dessas opostas doutrinas serão analisadas

nos próximos subitens. Não obstante isso, essa divergência interpretativa do

dispositivo constitucional enseja, também, duas possibilidades de análise do

exercício legiferante, em especial, em razão do objeto do presente trabalho,

sobre decadência e prescrição.194

2.7.3.1 Perspectiva da Corrente Tricotômica

Segundo o entendimento da corrente doutrinária tricotômica, a Lei

Complementar em matéria tributária tem três funções: (i) dispor sobre conflitos

de competência entre os entes tributantes, (ii) regular as limitações

constitucionais ao “poder” de tributar e (iii) estabelecer normas gerais de

legislação tributária. Por isso a denominação de corrente tricotômica.

Tratando sobre o tema, HAMILTON DIAS DE SOUZA, pondera para

garantir a unidade e racionalidade do sistema tributário, em Estado Federal

como o Brasil, é importante permitir que a lei nacional estabeleça normas

194 Embora grande parte da doutrina que entende a Lei Complementar com única função, qual

seja, estabelecer normas gerais de direito tributário, e esta, por sua vez, com duas finalidades, a de dispor sobre conflito de competência e de regular as limitações constitucionais ao “poder” de tributar, denomine-se como corrente dicotômica, passaremos a referenciá-la como corrente unifuncional, conforme os argumentos explanados do item 2.7.3.2.

123

gerais de maneira a assegurar a eficácia dos preceitos constitucionais

expressos ou implícitos.195

Tal corrente encontra reforço, por exemplo, na doutrina de ALCIDES

JORGE COSTA, que demonstra a sua inclinação por tal entendimento, quando

ressalta a tríplice função da Lei Complementar, na literalidade e clareza do

dispositivo constitucional.196 A compreensão segundo a qual a interpretação

literal tricotômica viola o Princípio da Autonomia dos entes políticos é refutada,

sob o argumento de que a autonomia, muito embora declarada no próprio texto

constitucional, artigo 18, é, também, por ele mesmo, já limitada. A exemplo do

artigo 146, III, ‘d’ e parágrafo único; 155, § 1°, IV; 155, § 2°, IV, V e XII; 156, III.

Não há, no entender de ALCIDES JORGE COSTA, a “[...] possibilidade

de as normas gerais constantes do CTN penetrarem na competência de

Estados e Municípios”, e, por isso ferir, a sua autonomia, afirmando que “[...]

não basta dizer que é autônomo. É preciso verificar, na própria constituição,

qual a extensão desta autonomia. [...] como no campo tributário, a autonomia é

limitada”.197

Na doutrina de HUMBERTO ÁVILA, cujos fundamentos permitem

visualizar sua inclinação pela corrente tricotômica, embora o autor não o

declare expressamente, os argumentos que fundamentam tal compreensão

são basicamente três: (i) no respeito devido ao dispositivo constitucional que

prevê três funções da Lei Complementar, ou seja, na literalidade do texto

constitucional, que não implicaria desrespeito ao Princípio Federativo, pois as

normas prescritas no artigo 146, da Constituição Federal, “[...] estão dispostas

na mesma Constituição Federal que institui o Princípio Federativo”, e que o seu

195 Direito Tributário 2, p. 33. Pondera o autor, ainda: “Quando a Constituição outorgou ao

legislador complementar competência para legislar sôbre normas gerais de Direito Tributário, teve por objetivo o desenvolvimento, por esta, de preceitos assecuratórios da unidade do sistema que não constavam de seu texto por uma questão de técnica legislativa, porquanto não devem as Constituições descer a detalhes ou mesmo a conceitos gerais que possam ser passíveis de alterações eventuais por intermédio de certas contingências. Ora, quando a norma quer o fim, dá a ela os meios, que, no caso, são as normas gerais” (sic) – Idem.

196 ALCIDES JORGE COSTA, Norma Geral de Direito Tributário. Visão Dicotômica ou Tricotômica, in AIRES FERNANDINO BARRETO (Coord.), Direito Tributário Contemporâneo. Estudos em homenagem a Geraldo Atali ba p. 20-23.

197 Ibidem, p. 23-24.

124

significado decorre, exatamente, da interligação de outras normas, no que se

inclui o próprio artigo 146 da Constituição Republicana; (ii) também, porque a

“[...] interpretação deve ser compatível com os argumentos linguísticos,

especialmente porque o texto normativo consiste no limite externo da

significação” e “[...] uma decisão a favor da interpretação gramatical e contra

uma sistemática é devida quando o ordenamento não se posiciona”;198 (iii) o

terceiro e “[...] decisivo [...]” argumento, em sua opinião, é o fato de as três

funções terem sido aceitas pelo Poder Judiciário, e, portanto, razão suficiente

para a compreensão das normas gerais com função tríplice.

Em argumentos que refutam esse entendimento, JOSÉ ROBERTO

VIEIRA destaca que, nesses sentidos, a concepção da norma geral tributária

importaria uma generalidade absoluta, o quem “impedia transgredir e

condescender com as normas gerais absolutas e absolutistas”, o que viola os

princípios da Federação, Autonomia Municipal e da Isonomia das Pessoas

Constitucionais. Devem ser respeitados “os limites impostos pela literalidade

textual à atividade hermenêutica”. Ademais, o fato de o poder judiciário acatar a

função tríplice não constitui “bastante decisivo para acatar a teoria tricotômica,

encarando-a como argumento decisivo de opção científica [...]”, porque “[...]

aos juristas em geral, [...] cumpre, mais do que o direito, o dever dessa mesma

independência científica”199

Há reforços argumentativos que se somam à hermenêutica literal

enfatizando o papel padronizador e uniformizador que a norma geral em

matéria tributária deve desempenhar.200 Em sentido parcialmente similar,

EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI ensina que as normas gerais, “[...] com a

198 Sistema..., op. cit., p. 139- 141. 199 Denúncia espontânea e multa moratória: confissão e crise na “jurisdição” administrativa.

Jurisdição... , p. 408-411. 200 Nesse sentido, HELENO TAVEIRA TORRES. Código Tributário Nacional: Teoria da

Codificação, funções das leis complementares e posição hierárquica no sistema. Revista Dialética de Direito Tributário. p. 95-97. Também em: Funções das leis complementares no sistema tributário nacional – hierarquia de normas – papel do Código Tributário Nacional no ordenamento. Revista de Direito Tributário. São Paulo, Malheiros, n. 84, p. 50-69, [2002 ?]. Ainda: Prefácio. Leis complementares em matéria tributária: aspectos práticos atuais, p. XXV-XXVI. SACHA CALMON NAVARRO COÊLHO destaca: “As normas gerais de direito tributário veiculadas pelas leis complementares são eficazes em todo o território nacional, acompanhando o âmbito de validade espacial destes, e se endereça, aos legisladores das três ordens de governo da Federação, em verdade, seus destinatários” (sic). Curso..., op. cit., p. 109, 114- 115.

125

sua generalidade, além de uniformizar a legislação, evitando eventuais conflitos

interpretativos entre as pessoas políticas, garante o postulado da isonomia

entre a União, Estados Distrito Federal e Municípios.”201

É perceptível a linha adotada pela corrente tríplice, no sentido da

hermenêutica apegada à letra da lei, num discurso que vislumbra a norma geral

como uniformizadora da legislação, e, por isso, apaziguadora. Tal interpretação

não sucumbe, conforme os seus defensores, ao argumento de violação aos

Princípios Federativo ou da Autonomia dos Entes políticos.

2.7.3.2 Perspectiva da Corrente Unifuncional

A constituição Federal de 1988, artigo 146, trouxe, essencialmente, a

mesma orientação do artigo 18, § 1°, da Constituiçã o anterior, no que se refere

às normas gerais em matéria de Direito Tributário, todavia, com nível maior de

detalhamento. Em outras palavras, as funções da Lei Complementar, que no

texto da Constituição Federal de 1967/1969, estavam dispostas apenas no § 1º

do artigo 18, passaram a ser divididos, com a publicação da Constituição

Federal de 1988 em incisos e alíneas, fomentando a discussão de que a atual

Carta Constitucional prestigiou a corrente oposta à unifuncional.

Assim, em razão da redação do artigo 146 da Constituição Federal de

1988, o tratamento dispensado às normas gerais de direito tributário foi

estabelecido de maneira tal a presumir que permanece a legitimação da União

para legislar, via Lei Complementar, dispondo por normas gerais, sobre os

interesses jurídico-tributários dos demais entes tributantes, o que possibilitaria

a invasão de competência, por parte da União, em matéria que originalmente

não está circunscrita ao seu âmbito de atuação legislativa202.

201 Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 86. 202 PAULO DE BARROS CARVALHO assevera que se tratou de um trabalho político, realizado

com a finalidade de impor a prevalência desse entendimento, in Curso..., op. cit., p. 223.

126

Em razão da importância da redação constitucional para o

entendimento dos fundamentos que sustentam tanto a corrente unifuncional

quanto a tricotômica, pede-se vênia para transcrever o dispositivo

constitucional:

Art. 146. Cabe à lei complementar:

I - dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;

II - regular as limitações constitucionais ao poder de tributar;

III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:

a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;

b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;

c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas.

d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239.

Mesmo considerando o artifício de destrinchar, em incisos e alíneas, as

pretensas funções da Lei Complementar, a modificação estrutural foi incapaz

de abalar os argumentos da corrente unifuncional, que encontram, na

interpretação sistemática da Constituição Federal, o seu fundamento primeiro.

A estruturação do artigo 146, na Constituição Federal, conforme

CLÉLIO CHIESA, “[...] deve-se a uma impropriedade técnica cometida pelo

constituinte.”203 Ocorre que, devido à atecnia cometida pelo legislador

constitucional, possibilitou-se a interpretação torta, no sentido de que seriam

203 A competência tributária do Estado Brasileiro: deso nerações nacionais e imunidades

condicionadas, p. 152.

127

três as funções da Lei Complementar, tão somente em razão da disposição

estrutural dos incisos do destacado artigo 146.

Como forma de compatibilizar a interpretação com o sistema

constitucional – hermenêutica sistemática –, a corrente unifuncional entende a

Lei Complementar com uma função singular: estabelecer normas gerais sobre

matéria tributária, para cumprir duas finalidades: (i) dispor sobre conflitos de

competência entre os entes tributantes e (ii) regular as limitações

constitucionais ao “poder” de tributar.

Essa preocupação tem o foco voltado a não violação de princípios

importantes do sistema constitucional, como os princípios Federativo, da

Autonomia Municipal e da Isonomia entre os entes políticos dotados de

competência tributária.

Se for levada em consideração a literalidade do dispositivo supra, ou

seja, considerar como certa a crua disposição legislativa, sem o cuidado de

uma investigação mais aprofundada do texto como parte de um sistema, trata-

se de um menosprezo por “máximas constitucionais”204.

Não há, portanto, como tentar conhecer regras jurídicas isoladamente,

como se não necessitassem da integralidade do conjunto, ou seja, sem partir

de uma interpretação sistemática do artigo 146, da Constituição Federal de

1988, que vise harmonizá-lo com os princípios do Pacto Federativo, da

Autonomia Municipal e da Isonomia entre as Pessoas Políticas de Direito

Constitucional, daí a precisão da lição doutrinária no sentido de que “[...] não

podemos nos deixar envolver pela literalidade do texto, devendo buscar,

incessantemente, as estruturas profundas” (sic)205

A Constituição Federal não pode ser interpretada literalmente. Os

fundamentos da corrente tricotômica, que parte da literalidade do artigo 146 da

204 PAULO DE BARROS CARVALHO disserta: “Nossa discordância com relação a ela, porém,

foi sempre incondicionalmente frontal. Pecava pela base, e o fio de seu raciocínio era tênue e quebradiço, rompendo-se ao leve toque de uma reflexão mais séria e profunda sobre as articulações que o direito encerra, enquanto sistema de normas jurídicas” – Curso..., op. cit., p. 213.

205 PAULO DE BARROS CARVALHO, Direito Tributário – Linguagem e Método , p. 381 e 387.

128

Constituição, considerando a necessidade de unidade do sistema, permite

compreender que estão por sustentar a existência de normas constitucionais

que são incompatíveis entre si, o que não se mostra possível em se tratando

de disposições emanadas do Texto Maior.206

O sistema constitucional tributário brasileiro tem, na rigidez, a sua linha

característica destacada: na sua preocupação em precisar a parcela de “poder”

concedida a cada um dos entes políticos, do qual decorre a preservação da

autonomia financeira dos mesmos; a concessão de garantias aos contribuintes;

o apontamento da hipótese de incidência, base de cálculo possível e sujeito

passivo possível da exigência tributária. Diante disso, não se concebe uma

interpretação literal que faculte à União editar Lei Complementar de normas

gerais para redefinir o que já foi cuidadosamente estruturado pela Constituição

Federal. Seria um retrabalho. Desnecessário, pois. Não só por isso, desde que

a própria Constituição estabeleceu expressa ou implicitamente a estrutura do

sistema tributário brasileiro, a definição de modo diverso, por parte da Lei

Complementar Nacional, do modelo preceituado na Constituição Federal,

incorre em inconstitucionalidade.207

Com olhos no Princípio da Autonomia Financeira dos entes políticos,

sem a qual não se concebe falar em autonomia administrativa e até mesmo

política; e privilegiando o Princípio Federativo e a impossibilidade, segundo o

texto constitucional, de estabelecer-se tratamento distinto entre as unidades da

federação, é que não se concebe a hermenêutica literal defendida pela

corrente tricotômica.

206 CLÉLIO CHIESA entende que não há como compatibilizar a faculdade concedida no artigo

146 da Constituição Federal, para o Congresso Nacional definir os fatos geradores dos impostos com normas contidas no próprio texto constitucional, que já definem esses fatos geradores dos impostos, vedando, por isso, ao legislador ordinário, redefini-los, in A competência..., op. cit., p. 152-153.

207 CLÉLIO CHIESA sustenta: “Por certo, o constituinte não criaria preceptivos antagônicos que se anulariam. É inconcebível que o constituinte se tenha preocupado tanto em estruturar, de forma detalhada, as balizas fundamentais do sistema tributário, para, um ato insano, colocar tudo por terra, outorgando ao legislador ordinário a possibilidade de refazer tudo o que disciplinou minuciosamente no próprio texto constitucional [...]” – Ibidem, p. 153.

129

ROQUE ANTONIO CARRAZZA posiciona-se no sentido de que “[...]

nenhuma interpretação poderá ser havida por boa (e, portanto, por jurídica) se,

direta ou indiretamente, vier a afrontar um princípio constitucional.”208

Reforça tal argumento JOSÉ ROBERTO VIEIRA, segundo o qual, o

exame textual e contextual da norma se faz necessário, o que implica entender

pela não detenção de forças científicas, num exame literal, mas sim

sistemático.209

Além da exegese literal do artigo 146 da Constituição Federal,

apontada como fator preocupante, outro aspecto considerado pela linha

unifuncional é quanto ao conteúdo da norma geral de direito tributário. Isso

porque, partindo da interpretação literal, a União vê-se investida para editar

legislação complementar que veicula matérias diversas, que ingressam nas

competências dos entes tributantes, ainda que sob a rubrica de normas gerais.

Isso implica entender que, mesmo sob o pretexto de expedir normas

gerais, em razão da sua imprecisão, pelo não conhecimento efetivo do

conteúdo, pois, segundo essa corrente, a teoria tricotômica não enfrenta qual é

o conteúdo e, por consequência, o limite de atuação da Lei Complementar

editada com roupagem de norma geral; donde se assumira o risco de violar o

Princípio Federativo e a Autonomia Municipal, e, portanto, o Princípio da

Isonomia das Pessoas Políticas.

É enfático PAULO DE BARROS CARVALHO quanto a essa questão,

quando questiona “[...] e qual era o conteúdo das normas gerais de direito

tributário para a interpretação singularmente literal ? Ninguém chegou a

anunciá-lo! [...] Tal doutrina, até hoje, não foi elaborada.”210

208 ROQUE ANTÔNIO CARRAZA, Curso de Direito Constitucional Tributário, 17. ed., p. 35. 209 JOSÉ ROBERTO VIEIRA, A Regra Matriz de Incidência do IPI: texto e contex to, p. 46-

50. O mesmo autor ensina: “salta à vista que o apego à literalidade no Direito, só encontra razão de ser como estágio inicial de um exercício hermenêutico muito mais amplo e ambicioso. Isso porque a chamada ‘interpretação literal’ [...] impede a ida ao contexto” – Crédito de IPI relativos a Operações Anteriores Beneficiadas: Maiô Completo ou Completa Nudez ?, in EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI (Coord.). Curso de Especialização em Direito Tributário..., p. 219-220.

210 Curso..., op. cit., p. 214.

130

Como enfatizam as preocupações da corrente unifuncional em

destaque, a disposição literal do artigo 146 da Constituição Federal, coloca sob

a responsabilidade da legislação complementar toda a matéria da legislação

tributária, quando estabelece, somente a título exemplificativo, o inciso III,

providencia que deixa nas mãos da União, por intermédio da Lei Complementar

Nacional, a possibilidade de legislar sobre numerosos assuntos tributários,

estejam ou não compreendidos no seu âmbito de competência.

De outro modo, seria como ler: cabe à lei complementar dispor sobre

normas gerais especialmente sobre tudo. É entender como a permissão para a

União, por intermédio de Lei Complementar Nacional, para violar o Princípios

Federativo e da Autonomia Municipal, na medida em que pode editar

indiscriminadamente normas jurídicas de competência dos demais entes

políticos.211

A preocupação da corrente unifuncional é precisar o conteúdo das

normas gerais de direito tributário, com respeito aos princípios supra

mencionados, e, a partir daí, estabelecer uma limitação ao âmbito de atuação

do legislador nacional ao editar Lei Complementar que trate de matéria

tributária.

A saída hermenêutica foi realizar uma leitura sistemática, de forma que

a Lei Complementar de normas gerais tributárias teria, na verdade, um único

objetivo, que seria veicular normas gerais de direito tributário, que, por sua vez,

teria conteúdo bem definido, pois teria duas finalidades: (i) dispor sobre conflito

de competência entre os entes tributantes e (ii) regular as limitações

constitucionais ao “poder” de tributar. Nesse mesmo sentido, também, ROQUE

ANTONIO CARRAZZA e JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELLO212.

Com essa linha interpretativa, a expressão norma geral em matéria

tributária ganha conteúdo, respeitados os valores que são caros para o

sistema constitucional, como os Princípios da Federação e da Autonomia dos

211 Ibidem, p. 217. 212 ROQUE ANTONIO CARRAZZA, Curso de Direito Constitucional Tributário , 17. ed., op.

cit., p. 554. JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELLO, Curso de Direito Tributário, p. 105.

131

Municípios, e por consequência, o Princípio da Isonomia dos Entes políticos.213

“Tão somente nesse sentido é que há de ser entendido o artigo 146, III, da

Carta Constitucional.”

Cabe destacar, de forma ligeira, que essa função da Lei

Complementar, a de estabelecer normas gerais de direito tributário, e, por sua

vez, suas duas finalidades, foi objeto de crítica de MARIA DO ROSÁRIO

ESTEVES, no que se refere à impropriedade terminológica da denominação

dicotômica .214 Tem, na verdade, função única de estabelecer normas gerais

em matéria tributária, por isso inadequada as denominações dicotômica ou

dúplice . Esta é, também, a lição de JOSÉ ROBERTO VIEIRA, que considera

mais adequado batizá-la de unifuncional por entender que a Lei Complementar

tem uma única função, a de estabelecer normas gerais.215 Ressalte-se esse

entendimento unifuncional, porém com tripla função: (i) dispor sobre conflitos

de competência; (ii) regular limitações constitucionais ao “poder” de tributar e

(iii) para abranger os objetivos específicos do artigo 146, III, alínea c e d, e

parágrafo único.216

Importante ressaltar, outrossim, algumas dificuldades teóricas na

aplicação da corrente unifuncional, tal como aponta JOSÉ SOUTO MAIOR

BORGES, cuja proposta é de unificação das posições unifuncional e

tricotômica, e defende que a União pode “editar normas de caráter nacional

necessárias à harmonização do sistema tributário como um todo” e que o

Código Tributário Nacional “é o repositório das protonormas de Direito

Tributário positivo no sistema de Direito Brasileiro”.217

HELENO TAVEIRA TORRES, em proposta de entendimento

intermediária entre as correntes unifuncional e tricotômica, leciona como

213 Ibidem, p. 224. Também PAULO DE BARROS CARVALHO, Direito Tributário –

linguagem..., op. cit., p. 391. 214 MARIA DO ROSÁRIO ESTEVES, Normas Gerais de Direito Tributário, p. 97. 215 Denúncia Espontânea e Multa Moratória: Confissão e Crise na “Jurisdição” Administrativa,

Jurisdição..., p. 402. 216 Ibidem, p. 406-407. 217 Normas gerais de Direito Tributário, Inovações do seu regime na Constituição de 1988.

Revista de Direito Tributário. p. 68 e 70.

132

dificuldade teórica daquela o fato de ser “redutora demais em suas propostas”,

o que lhe faz buscar explicações à luz da “teoria das codificações”.218

2.7.4 - A Possibilidade de Fixação dos Prazos Decadencial e Prescricional por

Norma Geral de Direito Tributário

2.7.4.1 - Fixação do Prazo Segundo a Corrente Tricotômica

É na acepção tricotômica da doutrina de EURICO MARCOS DINIZ DE

SANTI que se encontra a veemência na defesa da fixação de prazos

decadenciais e prescricionais por intermédio de lei complementar de norma

geral tributária, por força do que prescreve o dispositivo constitucional do artigo

146, III, b.

Em razão da sua inclinação pela corrente tríplice da Lei Complementar,

esse autor dá, à norma geral, o caráter uniformizador do sistema tributário

nacional, concedendo, portanto, ao legislador complementar da União, a

competência para tratar de decadência e prescrição tributárias.219

218 Código Tributário Nacional: Teoria da Codificação, funções das leis complementares e

posição hierárquica no sistema. Revista Dialética de Direito Tributário. p. 95-97. O mesmo autor defende tais ideias em: Funções das leis complementares no sistema tributário nacional – hierarquia de normas – papel do Código Tributário Nacional no ordenamento. Revista de Direito Tributário. São Paulo, Malheiros, n. 84, p. 50-69, [2002 ?]. Ainda: Prefácio. Leis complementares em matéria tributária: aspectos práticos atuais, p. XXV-XXVI.

219 EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI destaca: “Portanto, o legislador complementar que tratar de decadência e prescrição tributárias deve dirigir essas regras igualmente à União, aos Estados, aos Municípios e ao Distrito Federal, pois a garantia do princípio federativo e da autonomia dos Municípios está jungida à generalidade dos destinatários, realizando também o primado da isonomia das pessoas políticas” – Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 87-88.

133

Por esse motivo, posiciona-se contrariamente à previsão de prazo

prescricional na Lei n. 6830/1980, artigo 40; e na Lei n. 8212/1991, artigos 45 e

46, sob o argumento de inconstitucionalidade.220

Também por essa razão, refuta, terminantemente, a interpretação

segundo a qual as normas gerais em matéria tributária designam, unicamente,

diretrizes de cunho genérico, que não preveem, os prazos decadencial e

prescricional, deixando tal tarefa para a competência ordinária de cada ente

político.

Doutrinador que também enfrentou essa questão, e cuja opinião

jurídica é relevante, HUMBERTO ÁVILA posiciona-se de maneira que a lei

complementar de norma geral pode prever o prazo prescricional e decadencial,

o que se evidencia pela sua conhecida metáfora: “normas sobre prescrição e

decadência sem prazo – com o perdão da metáfora – é como avião sem asa ou

futebol sem bola.”221

Os seus argumentos (i) partem de pressupostos tricotômicos, na

relevância da hermenêutica literal: “[...] a Constituição é manifesta: as normas

gerais devem versar ‘especialmente’ sobre prescrição e decadência (art. 146,

III, ‘b’)” 222; (ii) outro argumento está na preservação da segurança jurídica, pois

a norma prevista em lei complementar é instrumento assecuratório de (iii)

uniformidade e harmonia.

Menciona que “[...] para efeito garantidor da segurança jurídica,

disposições claras sobre o prazo [...] são essenciais.”223 E não ofende, advoga,

a autonomia federativa e a isonomia dos entes federados. Não concebe, pois, a

fixação de prazos decadencial e prescricional por lei ordinária, entendendo ser

matéria afeta à Lei Complementar.

220 Ibidem, p. 92-93. 221 Lei Complementar sobre Normas Gerais. Matéria de Norma Geral. Prescrição e

Decadência. Prazo. Fixação por Lei Ordinária Contrária à Lei Complementar. Exame de Constitucionalidade, Revista Dialética de Direito Tributário, n. 157 , p.108.

222 Ibidem, p. 108-113. 223 Ibidem, p. 110 e 113.

134

2.7.4.2 Fixação do Prazo Segundo a Corrente Unifuncional

De acordo com a perspectiva unifuncional no que diz respeito à fixação

dos prazos decadencial e prescricional, a União, por intermédio de edição de

Lei Complementar Nacional, pode tratar da matéria estabelecida nas alíneas ‘a’

e ‘b’, do artigo 146, III, da Constituição Federal. Porém, que o faça na condição

de dispor sobre conflitos de competência.

Essa maneira de interpretar, inclinada à hermenêutica sistemática,

ensina PAULO DE BARROS CARVALHO, é a forma acertada de,

constitucionalmente, analisar a matéria:

Com tal interpretação, daremos sentido à expressão normas gerais de direito tributário, prestigiaremos a Federação, a autonomia dos Municípios, o princípio da Isonomia das pessoas políticas de direito constitucional interno, além de não desprezar, pela coima de contraditórias, as palavras extravagantes do citado art. 146, III, a e b, que passam a engrossar o contingente das redundâncias tão comuns do desempenho da atividade legislativa. 224

Muito embora PAULO DE BARROS CARVALHO não o diga

expressamente, mas, pelas suas premissas, numa interpretação em sentido

contrário, pode-se, então, concluir que, quando não se tratar de conflitos de

competência, as matérias contidas no artigo 146, III, ‘a’ e ‘b’, da Constituição

Federal, podem ser tratadas por lei ordinária.

Isso que dizer que a fixação dos prazos decadencial e prescricional

pode ocorrer por intermédio de lei ordinária de cada unidade federativa, no

âmbito de suas respectivas competências tributárias, ficando reservada à Lei

Complementar, tratar sobre tal matéria, desde que seja para dispor sobre

conflitos de competência.

A partir de um raciocínio um tanto diferente, mas cuja conclusão

encontra identidade, ROQUE ANTONIO CARRAZZA entende que as normas 224 Curso..., op. cit., p. 225.

135

gerais em matéria de legislação tributária estão habilitadas, sim, a disciplinar a

prescrição e a decadência, todavia, limitando-se a apontar diretrizes e regras

gerais.225

Desse raciocínio, percebe-se que a Lei Complementar, de acordo com

CARRAZZA, poderá disciplinar matéria de normas gerais em legislação

tributária – decadência e prescrição como causa extintiva da obrigação

tributária – artigo 156, V, do Código Tributário Nacional; o seu “dies a quo” –

artigos – 173 e 174, dessa mesma legislação; as causas impeditivas,

suspensivas e interruptivas da prescrição – artigo 151 e 174, também do

“codex” Tributário. Não está habilitada, a Lei Complementar, porém, a entrar

em matéria de interesse particular do ente tributante. É a chamada “[...]

economia interna”.226 De forma explícita, quer dizer, o autor, que a fixação dos

prazos decadenciais e prescricionais deve ser levada a cabo por meio de Lei

Ordinária de cada ente político.227

Justifica-se esse entendimento, no escólio de JOSÉ ROBERTO

VIEIRA, na medida em que o Código Tributário Nacional inteiro foi recebido

como Lei Ordinária, em termos de eficácia de natureza , mas quando tratou de

temas em que só pode ser modificado por Lei Complementar, tem eficácia de

Lei Complementar.228

Em declaração de voto no antigo Conselho de Contribuintes da União,

sobre matéria de decadência, nas Contribuições para a Seguridade Social, e

possível conflito com o Código Tributário Nacional, JOSÉ ROBERTO VIEIRA

analisa a regra constitucional constante no artigo 146, III, ‘b’, e questiona se as

regras do Código Tributário Nacional que preveem prescrição e decadência

são matérias de Lei Complementar. Com base na exegese sistemática, a qual

busca a harmonia do sistema e o respeito aos princípios constitucionais – em

225 Destaca o autor: “Não poderá, por um lado, abolir os institutos em tela (que foram

expressamente mencionados na Carta Suprema) nem, por outro, descer a detalhes, atropelando a autonomia das pessoas políticas tributantes. O legislador complementar não recebeu um ‘cheque em branco’ para disciplinar a decadência e a prescrição tributárias” – Curso..., 24. ed., op. cit., p. 920.

226 Ibidem, p. 892-893. 227 Idem. 228 Denúncia espontânea e multa moratória: confissão e crise na “jurisdição” administrativa.

Jurisdição... , p. 397-398.

136

destaque os mencionados Princípios Federativo, da Autonomia Municipal e das

Isonomia Pessoas Constitucionais – para firmar o seu argumento, entende a

norma geral de Direito Tributário, a época, com função dúplice, e o Código

Tributário Nacional, com eficácia particular, de norma geral, podendo versar

sobre prazos decadencial e prescricional, somente para dispor sobre conflitos

de competência; do contrário, cabe a fixação de tais prazos por lei ordinária do

entre tributante interessado.229

Assim, na sua compreensão, todas as normas que fixam prazos

decadencial e prescricional, no Código Tributário Nacional, têm “status” de lei

ordinária.

Nesse contexto, justifica o seu entendimento, segundo o qual a Lei n.

8212, de 24/7/1991, ordinária que é, assim como, nesse aspecto, também o é o

Código Tributário Nacional, pode fixar prazo decadencial diverso, como o fez

no artigo 45. E como se trata de Lei posterior, derroga no que incompatível, a

lei anterior.

Destacamos, aqui, de outro lado, o entendimento da nossa Corte

Constitucional, já sumulado – Súmula Vinculante n.º 8 – r, cujos fundamentos,

embora não os afirme, categoricamente, o Supremo Tribunal Federal, parecem

abraçar os argumentos tricotômicos, que, em suma, dizem que os prazos de

decadência e prescrição só podem ser fixados por Lei Complementar Nacional.

230

Exatamente em razão de a Lei n. 8212/1991 ser ordinária e veicular

prazo decadencial, no artigo 45, e prescricional, no artigo 46, foi considerada

inconstitucional. Bem, se a premissa é de que à lei ordinária não cabe veicular

prazos decadencial e prescricional, como é possível que a Lei de Execuções

Fiscais, nº 6830, de 22/9/1980, também ordinária que é, veicule prazo

229 Declaração de Voto: Decadência nas Contribuições pa ra a Seguridade Social, . in:

BRASIL. Segundo Conselho de Contribuintes - Primeira Câmara. Acórdão n. 201-75981. Relator: Gilberto Cassuli. Brasília, 19 mar. 2002. Disponível em: <http://www.conselhos.fazenda.gov.br>. Acesso em: 23/11/2008.

230 STF: Súmula Vinculante n.º 8: “São inconstitucionais o parágrafo único do artigo 5º do decreto-lei nº 1.569/1977 e os artigos 45 e 46 da lei nº 8.212/1991, que tratam de prescrição e decadência de crédito tributário”

137

prescricional, no seu artigo 40, e o judiciário aceite esse dispositivo como válido

?

O argumento de resposta pode ser justificado por ter sido aquela, a Lei

n. 8212/1991, editada antes da Constituição Federal de 1988, e, por isso, teria

sido recepcionada, neste ponto, artigo 40, como se complementar fosse. Mas

se assim o foi, porque o judiciário não recepcionou também o artigo 8º, § 2º ?

Consta-nos que o judiciário, inclusive, renegou terminantemente a aplicação do

mesmo, restando válido somente o disposto no Código Tributário Nacional.

Como se justifica a recepção do artigo 40 e não a do 8º, § 2º ?231

O Judiciário, nesse caso, utilizou premissas incoerentes. Para tornar o

seu discurso consentâneo com as premissas firmadas anteriormente, teria que

ter considerado recepcionado o artigo 8º, § 2º

Essa situação não passou despercebida para JOSÉ ROBERTO

VIEIRA, que critica o teor da Súmula Vinculante referida, no sentido de que não

é em razão da aprovação da súmula “[...] que nos daremos nós como

cientificamente vinculado, abdicando, assim, de nossa, autonomia intelectual

[...]. Tal atitude corresponderia a um autêntico pedido de demissão da Ciência

do Direito.”232

2.7.5 - A Possibilidade de Lei Ordinária Local Tratar de Prazos Decadenciais e

Prescricionais

231 Por muitos anos, tentou-se, com fundamento no artigo 8º, § 2º, da LEF, sustentar que a

interrupção da prescrição se operaria com o despacho do juiz que ordenasse a citação do executado, entendimento contrário ao que determinava o Código Tributário Nacional, no artigo 174, I, que prescrevia a interrupção da prescrição, apenas, com a citação pessoal do devedor. Apesar da tentativa de fixação desse entendimento, tal tese jamais encontrou ressonância nas decisões do Poder Judiciário. Apenas passou a ser relevante, para efeito de interrupção do prazo prescricional, o despacho do juiz que ordenar a citação, quando se promoveu alteração no Código Tributário Nacional, por intermédio da Lei Complementar nº 118/2003, fazendo com que a redação da legislação complementar, por mais contraditório que isso possa parecer, estivesse de acordo com a redação da Lei Ordinária, da Lei n. 6.830/80. Foi preciso alterar a Lei Complementar para que se aceitasse a interrupção da prescrição com o despacho do juiz que ordena a citação, pois tal disposição, enquanto em sede de lei ordinária, jamais convenceu o Poder Judiciário.

232 Denúncia espontânea e multa moratória: confissão e crise na “jurisdição” administrativa. Jurisdição... , p. 410-411.

138

Após percorrer os argumentos nucleares, justificadores de cada uma

das correntes doutrinárias analisadas, a unifuncional e a tricotômica, nos itens

precedentes, faz-se importante examinar qual delas traz, nos seus

fundamentos, os pressupostos mais coerentes para explicar a possibilidade ou

não de fixação dos prazo decadencial e prescricional por Lei Complementar de

normas gerais tributárias.

Resta claro que a preocupação que circunda ambas as correntes

doutrinárias é a de justificar os seus fundamentos hermenêuticos, literais ou

sistemáticos, sem violação ao sistema constitucional brasileiro. Nesse caminho

justificador, os argumentos centrais serão objeto de análise, para fins de

explicar o posicionamento adotado no presente estudo.

O primeiro aspecto que levanta farpas reside na literalidade da

interpretação do artigo 146, III, ‘a’ e ‘b’, da Constituição Federal de 1988, na

função tríplice da Lei Complementar (i) não violar princípios constitucionais

como o Federativo ou da Autonomia Municipal, por estarem dispostos na

mesma constituição.233

Entendemos, que não é o fato de o artigo 146 estar disposto na mesma

Constituição Federal que o coloca em pé de igualdade com os Princípios

Federativo e da Autonomia Municipal. Estamos falando de normas

constitucionais com valores diferentes. O artigo 146 pode ser alterado por

Emenda Constitucional, como, de fato, já o foi, enquanto que o Princípio

Federativo é Cláusula Pétrea – artigo 60, § 4° – e norma fundante do

ordenamento jurídico brasileiro. O Princípio da Autonomia Municipal, por sua

vez, é Princípio Constitucional Sensível – artigo 34, VII. Essa carga axiológica

constante dos princípios da Federação e da Autonomia Municipal não permite

233 No argumento de HUMBERTO ÁVILA, quando ensina que as normas prescritas no artigo

146, “[...] estão dispostas na mesma Constituição Federal que institui o Princípio Federativo” – Sistema..., op. cit., p. 139-141. Do mesmo modo, ALCIDES JORGE COSTA quando diz que o “[...] Princípio da Autonomia está na mesma Constituição que prevê, também, outras limitações, a exemplo do artigo 146, III, ‘d’ e parágrafo único; 155, § 1°, IV; 155 , § 2°, IV, V e XII; 156, III ” – Norma Geral de Direito Tributário. Visão Dicotômica ou Tricotômica, in AIRES FERNANDINO BARRETO (Coord.), Direito Tributário..., op. cit., p. 20-23.

139

que seja dada a mesma interpretação a normas constitucionais que possuem

valores diferentes, daí ser insustentável, nesse ponto, os fundamentos da

corrente tricotômica.

Outro argumento de literalidade, na função tríplice da Lei

Complementar, (ii) está fundado na aceitação dessa concepção pelo Poder

Judiciário.234

Convenhamos, entender assim não engessa o raciocínio de quem

pretende pensar o direito ? Entender assim não poderia levar a uma

interpretação do artigo 103-A, da Constituição Federal, no sentido de que a

Súmula Vinculante, além de vincular o Poder Judiciário e a Administração

Pública, ainda passaria a engessar a consciência crítica dos cientistas do

direito ? As decisões do judiciário têm o poder de sobrepujar a ciência ?

Definitivamente, o argumento de aceitação desse entendimento em razão do

atual posicionamento do Poder Judiciário não convence.

Ainda no argumento da literalidade, da função tríplice da Lei

Complementar, (iii) a norma geral teria função uniformizadora da legislação, o

que evitaria conflitos interpretativos entre os entes políticos, e o que prestigiaria

o postulado da Isonomia dos Entes Políticos.235

O papel uniformizador, pregado nesse argumento, fraqueja, pois

eventual conflito interpretativo entre os entes políticos é decorrência da própria

competência dada pela Constituição Federal e, uma vez que existam, de fato,

esses conflitos, será chamada a Lei Complementar no seu papel de dispor

sobre conflitos de competência, e apenas nessa situação seria legítima a

uniformização da legislação, e não a mera uniformização por generalidade, que

implica violação de competências das unidades federativas.

Na medida em que se permite à União, ainda que sob o pretexto de

legislar por Lei Complementar Nacional, veiculando norma geral, ingresse na

competência alheia, em verdade, há violação da Isonomia das Pessoas

Constitucionais e não preservação desse Princípio. Por essa razão, somente

234 HUMBERTO ÁVILA, Sistema..., op. cit., p. 139-141. 235 EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 86.

140

se concebe a preservação dos princípios constitucionais envolvidos, quando a

Lei Complementar, exercendo o seu papel de dispor sobre conflito de

competência, promover a unidade normativa.

Ademais, pergunta-se: é possível sobrepujar o Princípio Federativo, da

Isonomia dos Entes Políticos e da Autonomia dos Municípios em nome de

homogeneidade/uniformização e centralização do sistema tributário ? Uma

resposta positiva a esta questão não nos parece inteligente.

Também na defesa da função tríplice da Lei Complementar, (iv) é

levantada a bandeira da segurança jurídica, da harmonia e uniformidade.

Dessa forma, sem perceber, tal argumento, utiliza, simultaneamente,

fundamentos das duas correntes, a unifuncional e a tricotômica236:

(iv.i) Prestigia a corrente unifuncional, na medida em que foge da

hermenêutica literal, e da interpretação crua da letra do dispositivo

constitucional, e ingressa numa análise sistemática para justificar a segurança

jurídica. Sim, porque buscar o argumento da segurança jurídica é uma

atividade de desapego à letra da lei, é um exercício interpretativo sistemático.

Ao tratarmos da segurança jurídica, verificar-se-á que, ingressar na discussão

da segurança jurídica é muito mais do que pensar apenas no modelo

interpretativo e de aplicação de dispositivo constitucional. A segurança jurídica,

como demonstrado, é valor que vai muito além de discussões sobre a melhor

interpretação segundo os parâmetros constitucionais.

(iv.ii) Prestigia a linha tricotômica quando ensina que a norma prevista

em Lei Complementar é instrumento assecuratório de uniformidade e

harmonia. Tal aspecto foi acima criticado, pois a uniformização da legislação

não se dá por generalização, mas pelo papel da Lei Complementar de dispor

sobre conflitos de competência.

Ademais, (v) Interpretar literalmente o contido no artigo 146, III, da

Constituição Federal, em particular a palavra ‘especialmente’, é dar uma

236 HUMBERTO ÁVILA, Lei Complementar sobre Normas Gerais. Matéria de Norma Geral.

Prescrição e Decadência. Prazo. Fixação por Lei Ordinária Contrária à Lei Complementar. Exame de Constitucionalidade, Revista Dialética..., op. cit., p. 108-113.

141

abrangência tal que possibilita a compreensão de que o legislador

complementar pode legislar não apenas sobre matérias lá apontadas, mas

também sobre numerosas outras, que podem ser de interesse particular e local

dos entes tributantes, o que implica potencial invasão de competências, e que,

por consequência, viola os Princípios Federativo, da Autonomia Municipal e,

portanto, o da Isonomia das Pessoas Políticas. A interpretação literal não

possibilita a precisão e delimitação dessa norma geral de matéria tributária.

Não se concebe uma interpretação segundo a qual o legislador complementar

está investido na competência de legislar sobre todas as matérias. Isso não

coaduna com a separação cuidadosa das competências, realizada pelo

legislador constitucional originário.

Por todas as razões apontadas, conquanto seja necessário a doutrina

acordar para a realidade de que essa divisão em correntes unifuncional e

tricotômica não resolve os problemas interpretativos nem a identificação da(s)

verdadeira(s) função(ões) da lei complementar em matéria tributária, isso

porque, em verdade, numerosos problemas podem ser resolvidos à luz das

duas teorias; mas a mais adequada solução hermenêutica a que no momento,

nos podemos apegar, dado o objeto de investigação do presente estudo, é

realizar uma leitura sistemática, de maneira a entender a Lei Complementar de

normas gerais tributárias com uma única função, que é a de veicular normas

gerais de direito tributário, e ela, por sua vez, com conteúdo bem delimitado,

buscar duas finalidades: (i) dispor sobre conflitos de competência entre os

entes tributantes e (ii) regular as limitações constitucionais ao “poder” de

tributar.237 Não podemos ignorar a acertada lição, e com a qual coadunamos,

de JOSÉ ROBERTO VIEIRA quando ensina uma terceira finalidade para as

normas gerais, para abranger os objetivos específicos dispostos no artigo 146,

III, c e d e parágrafo único da Constituição Federal de 1988.238

237 JOSÉ ROBERTO VIEIRA chama a atenção as palavras de que caem como luvas neste

momento: “Mas, se desde a manhã da filosofia humana, com HERÁCLITO de Efésio, ‘tudo flui [...] nada persiste, nem permanece o mesmo’, e se o homem é, essencialmente, um ser em processo, não será diferente com o homem-cientista. Na ciência, inclusive na do Direito, de definitivo só existe a certeza de que tudo é provisório” – A Noção de Sistema no Direito, in Revista da Faculdade de Direito da UFPR, p. 59.

238 Denúncia espontânea e multa moratória: confissão e crise na “jurisdição” administrativa. Jurisdição... , p. 406-407.

142

Dessarte, as normas gerais em matéria de legislação tributária estão

habilitadas sim a disciplinar a prescrição e a decadência – artigo 146, III, ‘b’, da

Constituição Federal, – todavia, devem limitar-se a apontar diretrizes e regras

gerais.

De outro modo, isso que dizer que a fixação de prazos decadencial e

prescricional pode ocorrer por intermédio de lei ordinária de cada unidade

federativa, no âmbito de suas respectivas competências tributárias, ficando

reservado à Lei Complementar, tratar sobre tal matéria, desde que seja para

dispor sobre conflitos de competência.

Portanto, a norma geral de direito tributário – cuja eficácia está

corporificada, hoje pelo Código Tributário Nacional, – tem função de versar

sobre decadência e prescrição quando somente apontar diretrizes e regras

gerais ou para dispuser sobre conflitos de competência ou regulamentar as

limitações constitucionais ao “poder” de tributar; do contrário, cabe a fixação de

tais prazos por lei ordinária do entre tributante dotado de competência. As

normas que efetivamente fixam prazos decadencial e prescricional, no Código

Tributário Nacional, têm “status” de lei ordinária, assim como o tem a lei editada

pelo legislador de cada ente político quando fixar tais prazos.

Concluímos, pois: (i) A matéria de decadência e prescrição pode ser

veiculada por Lei Complementar Nacional, elaborada pela União, por

intermédio de norma geral, para dispor sobre conflito de competência; (ii) a

fixação de tais prazos, por sua vez, em respeito aos Princípios Federativo, da

Autonomia Municipal e de Isonomia dos entes políticos, é de competência

legislativa de cada Ente Político, por intermédio de lei ordinária. Do contrário,

estar-se-á diante de invasão da competência distribuída pela Constituição

Federal às Pessoas Políticas, e (iii) a parte do Código Tributário Nacional que

dispõe sobre fixação de prazos decadencial e prescricional deve ser entendida

como recepcionada com eficácia de lei ordinária. Assim, a Lei elaborada pelo

ente político tributante que fixe prazo decadencial e prescricional tem o mesmo

“status” ordinário que o Código Tributário Nacional. Nesse aspecto, são normas

de igual hierarquia, e porque são ordinárias, aplica-se, todavia, o disposto no

Código Tributário Nacional aos demais entes tributantes, quando e se eles não

143

regulamentarem a questão por suas próprias leis ordinárias, e de forma

subsidiária. Do contrário, se existir lei ordinária específica de cada ente

tributante, é a que será aplicada, por respeito aos Princípios Federativo, da

Autonomia Municipal e da Isonomia dos Entes políticos.239

2.8 CRÉDITO TRIBUTÁRIO

Explicar crédito tributário não é uma tarefa em que se limite a ofertar

conceitos e, a partir deles, escolher o mais conveniente. A sua concepção

exige, antes de qualquer coisa, compreender o caminho pelo qual,

efetivamente, ele, o crédito tributário, nasce, além de entender a razão da(s)

sua(s) premissa(s).

Partamos do raciocínio segundo o qual o crédito tributário é o direito

subjetivo do sujeito credor da obrigação tributária, o Fisco. Tratar, pois, de

crédito tributário não é, também, apenas indicar quem é um dos sujeitos da

relação obrigacional tributária, aquele detentor do crédito; e, por inferência,

alcançar o sujeito passivo, mas exige, isso sim, aprofundar as premissas

fixadas pela doutrina.240

Para a teoria clássica, a norma jurídica mantém, na sua hipótese, a

descrição de condutas, e, no consequente, o estabelecimento de uma relação

239 Embora o Supremo Tribunal Federal se tenha posicionado, a partir do julgamento dos

Recursos Especiais nºs 556.664, 559.882, 559.943 e 560.626, através dos quais declarou a inconstitucionalidade dos artigos 45 e 46 da Lei nº 8.212/91, por entender de a fixação de prazos de decadência ou prescrição é assunto reservado à lei complementar. Não resta consignada, explicitamente, a adesão dessa corte à corrente tricotômica, todavia, parte dos argumentos por ela defendidos para fixar o seu entendimento. Esse entendimento originou a Súmula Vinculante nº 8: “São inconstitucionais o parágrafo único do artigo 5º do Decreto-Lei nº 1.569/1977 e os artigos 45 e 46 da Lei nº 8.212/1991, que tratam de prescrição e de decadência do crédito tributário” Apesar de que essa seja a escolha da Máxima Corte brasileira, respeitamos, mas não sucumbimos os argumentos que a fundam, por todos os motivos explanados neste item.

240 Neste ponto, acompanhamos o entendimento que define crédito e débito em função do Fisco, e convenciona ser sujeito ativo, portanto, o Fisco como credor – EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 98.

144

jurídica obrigacional.241 Uma vez verificado, no mundo dos fatos, como suporte

fático, aquela situação descrita hipoteticamente, na norma, o conceito do fato

subsume-se ao conceito da norma, convertendo o fato em fato jurídico, ou seja,

juridicizando, e instaurando, no consequente da norma, uma relação jurídica

obrigacional.

De acordo com essa teoria, muito embora nascida a obrigação – e, em

razão deste trabalho, vamos nos referir à obrigação tributária – o crédito

tributário a ela correspondente, seria constituído somente pela norma individual

e concreta de formalização do crédito tributário.

Outro, porém, seria o raciocínio constitutivista, de acordo com o qual o

lançamento é que, ao constituir o crédito tributário, daria margem ao seu

nascimento. Haveria, pois, uma espécie de cronologia: primeiro o nascimento

da obrigação tributária, e o crédito tributário, por sua vez, nasceria num

momento distinto e posterior.

Tal concepção recebeu críticas inauguradas e encabeçadas por

PAULO DE BARROS CARVALHO, que entende essas relações jurídicas como

não capazes de subsistir sem qualquer dos integrantes da sua estrutura. São

necessários todos os integrantes, pois “[...] outorgam ao liame o porte e a

241 A teoria clássica diz respeito ao escólio de ALFREDO AUGUSTO BECKER: “Ora, com o

acontecer dos fatos, vão se realizando (existindo no presente e no pretérito), um a um, os elementos previstos na composição da hipótese de incidência, quando todos os elementos se realizaram (existem no presente e no pretérito), a hipótese de incidência realizou-se e, então, automaticamente (imediata, instantânea e infalivelmente) aquele instrumento entra em dinâmica e projeta uma descarga (incidência) de energia eletromagnética (juridicidade) sobre a hipótese de incidência realizada. Recebendo esta carga de energia (de juridicidade), a hipótese de incidência fica carregada de energia eletromagnética (juridiciza-se) em estado dinâmico, cujo efeito é a irradiação (pela hipótese de incidência já juridicizada) da eficácia jurídica: a relação jurídica e seu conteúdo jurídico de direito e correlativo dever, de pretensão e correlativa obrigação, de coação e correlativa sujeição. A irradiação da eficácia jurídica é a irradiação de um arco-íris eletromagnético (a relação jurídica) que vincula o sujeito passivo (situado no polo negativo do arco-íris) ao sujeito ativo (situado no polo positivo)” – Teoria Geral do Direito Tributário , p. 308-309. Da mesma maneira, PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado, p. 58-65. Quanto à subsunção do conceito de fato ao conceito da norma, PAULO DE BARROS CARVALHO entende, hoje, de maneira diversa: “Discorremos, em edições anteriores, acerca da subsunção do conceito do fato ao conceito da norma, baseados no entendimento de que a subsunção só se operaria entre iguais. A subsunção, porém, como operação lógica que é, não se verifica simplesmente entre iguais, mas entre linguagens de níveis diferentes. Em homenagem à precisão que devemos incessantemente perseguir, o certo é falarmos em subsunção do fato à norma, pois ambos configuram linguagens” – Curso..., op. cit., p. 259.

145

dignidade categorial de obrigação”.242 Não concebe, portanto, separar o crédito

da obrigação, pois, do contrário, tem-se uma impropriedade. Não há obrigação

à qual não corresponda o seu crédito. Tratam-se de figuras indissociáveis,

razão pela qual não existe uma sem a outra.

Ao crédito tributário, direito subjetivo do Fisco de exigir o cumprimento

da obrigação tributária, corresponde um débito, dever jurídico de cumprimento,

isto é, uma obrigação. Por isso mesmo seria “[...] inominável absurdo imaginar-

se obrigações sem o crédito” correspondente. Por essa compreensão, “[...]

nasce o crédito no exato instante em que irrompe o laço obrigacional. [...] O

crédito é elemento integrante da estrutura lógica da obrigação, de tal sorte que

ostenta a relação de parte para com o todo. A natureza jurídica de ambas as

entidades é, portanto, rigorosamente a mesma”243

Não se concebe, pois, o tratamento em separado da obrigação e do

crédito. Não há nascimento da obrigação e, cronologicamente, posterior

nascimento do crédito, constituído pelo lançamento. Entender o contrário

implica aceitar uma relação na qual há o sujeito passivo, com a obrigação de

cumprir um dever, entretanto, o sujeito ativo não detém a titularidade de exigir o

crédito a que tem direito.244

Posteriormente, modificando sua concepção de incidência jurídica,

PAULO DE BARROS CARVALHO apresentou uma nova proposta teórica,

fundada em novas premissas, constituídas com base nos ensinamentos de

JURGEN HABERMAS e de TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR, e a partir

das quais distingue evento, fato e fato jurídico.245 Evento é uma ocorrência do

mundo dos fatos, correspondente à realidade social; por exemplo, nasceu uma

criança. Fato é aquilo que é enunciado do evento. Ocorre por intermédio da

linguagem, que, ao evento ocorrido, concede realidade. Por exemplo, os pais

comunicaram o nascimento aos parentes e vizinhos. Isso quer dizer que, os

eventos sozinhos, não são suficientes para ingressar no mundo jurídico, o que

faz necessário que o ingresso se dá pelo fenômeno da incidência. Quando o 242 Curso..., op. cit., p. 376-377. 243 Idem. 244 Ibidem, p. 379. 245 TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR, Introdução ao Estudo do Direito, p. 235.

146

evento , na sua relação factual, ingressa no mundo do direito, “[...] assumindo

simbologia própria do jurídico”, passa a ser fato jurídico. Por exemplo, quando

houve o registro da criança no cartório.246

Essa distinção ocorre, exatamente, para justificar e calçar a sua

proposição teórica de que não é com a ocorrência do evento descrito na

hipótese da norma geral e abstrata que nasce a obrigação tributária prescrita

no seu consequente, mas sim com a edição da norma individual e concreta do

lançamento, que, transformando o evento em fato jurídico tributário, fará vir à

luz a respectiva obrigação. “Não se transita livremente do mundo do ‘dever-ser

ao mundo do ‘ser’”. A aproximação desses mundos é alcançada por intermédio

da “positivação das normas jurídicas”, numa dinâmica em que o direito parte de

concepções mais genéricas, as normas gerais e abstratas, para chegar a níveis

individuais, as normas individuais e concretas. Para a norma geral e abstrata

“[...] alcançar o seu inteiro teor de juridicidade, reivindica, incisivamente, a

edição de norma individual e concreta”. A ordem jurídica só se realiza

efetivamente se as normas gerais e abstratas ganharem concreção em normas

individuais.247

Dito de outra forma, com o nascimento do fato jurídico tributário e

ocorrendo a aplicação do direito pela pessoa competente – representante do

fisco ou contribuinte –, instantaneamente nasce a obrigação e o crédito

tributário.

Essa proposição teórica desconstrói à concepção clássica, segundo a

qual nasce, com a incidência, a obrigação tributária, e, cronologicamente

depois, o crédito tributário, constituído pelo lançamento. Nessa teoria, com a

edição da norma individual e concreta do lançamento, há o nascimento da

relação jurídica obrigacional e do crédito tributário, simultaneamente, sem

246 PAULO DE BARROS CARVALHO, Curso..., op. cit., p. 369-369 e 372. 247 Ibidem, p. 381-382. EURICO MARCOS DINIS DE SANTI destaca, exatamente por isso,

relativamente às normas gerais e abstratas da decadência e da prescrição, que “[...] a previsão do texto legal não é suficiente para produzir os efeitos para os quais foram vocacionadas. Nem a ocorrência do fato jurídico previsto por essas regras perfaz condição per quantum da realização de seus efeitos. Requer, como as demais unidades dessa jaez, a edição de normas individuais e concretas que objetivem os fatos decadencial ou prescricional, precisando seus termos e determinando o objeto da relação extintiva. E isso se faz com a indigitada trajetória de positivação” – Decadência..., op. cit., p. 158.

147

dinâmica cronológica entre eles, entendimento este que adotamos para efeito

do desenvolvimento deste trabalho.

Destaquemos, por fim, a doutrina de EURICO MARCOS DINIZ DE

SANTI, que separa em duas espécies o crédito tributário: o “lançado”,

resultante do ato administrativo de lançamento, realizado pela autoridade

administrativa, na conformidade do artigo 142, do Código Tributário Nacional; e

o “instrumental”, formalizado pelo próprio sujeito passivo, em razão do

permissivo disposto no artigo 150 do referido diploma legal. Ambos conformam

relações jurídicas individuais e concretas, todavia, por expresso no artigo 142

dessa Lei, o lançamento tributário “instrumental”, conhecido na doutrina como

lançamento por homologação, “[...] não é lançamento tributário no sentido

normativamente padronizado”.248

2.9 – LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO

2.9.1 Noções Introdutórias

Talvez a primeira informação relevante a respeito do lançamento é que

estamos diante de uma expressão que padece do problema semântico da

ambiguidade, ou seja, possui significações diversas a ela aplicáveis.249 É

exatamente em razão dessa plurivocidade que a doutrina se preocupa em

precisá-la no exato contexto no qual se apresenta.250

Muito embora imbuído dessa carga numerosa de significados, dentro

do âmbito tributário, e conquanto mencionado numerosas vezes no Código 248 Ibidem, p. 98-99. 249 LÚCIA VALLE FIGUEIREDO, Curso de Direito Administrativo, p. 137; PAULO DE

BARROS CARVALHO, Curso..., op. cit., p. 385; EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Decadência..., 2. ed., op. cit., p.110 e EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Lançamento Tributário , p. 145-147.

250 EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI ressalta: “O contexto tem importância crucial na determinação do significado e da significação das palavras” – Lançamento..., op. cit., p. 143 e 146.

148

Tributário Nacional, e uma única vez na Carta Constitucional, tem esse

alargado leque semântico reduzido e, em resumo, limita-se a duas

significações básicas: como procedimento de aplicação do direito, ou seja, de

formalização do crédito tributário ato-fato administrativo; e como produto desse

ato, ou seja, norma individual e concreta – ato-norma administrativo.251

2.9.2 Demarcação do Conceito de Lançamento Tributário: Como Norma

Individual e Concreta

A despeito de reconhecidas essas duas acepções extraídas do Código

Tributário Nacional, do lançamento como procedimento administrativo –

processo – e como ato administrativo – produto, a prescrição do artigo 142,

“caput” e do seu parágrafo único, explicitamente, demonstra a sua inclinação

ao lançamento como procedimento administrativo.252 Assim, cabe ao Fisco à

251 EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Decadência..., op. cit., p. 106, 110-111. Para PAULO

DE BARROS CARVALHO: “‘lançamento’ é palavra que padece do problema semântico da ambiguidade, do tipo ‘processo/produto’, como tantas outras nos discursos prescritivo e descritivo do direito. É lançamento o processo de determinação do sujeito passivo e apuração da dívida tributária, como é lançamento, também, a norma individual e concreta, posta no sistema com a expedição do ‘ato de lançamento’”. Esta é a razão pela qual se exige esforço doutrinário para aclarar em qual sentido se emprega esse vocábulo, na medida em que se tratam de entidades diferentes e de consequências diversas. Muito embora ele se entenda, como procedimento, como atividade e processo de preparação, e ato, como produto final, acresce, porém, que o lançamento pode ser, também, norma, como estabelecimento legal do procedimento que deverá ser observado na realização do lançamento. “São momentos significativos de uma e somente uma realidade [a do lançamento]” (esclarecemos, nos colchetes). Apregoa, ainda: “Tanto será ‘lançamento’ a norma do artigo 142 do CTN, como a atividade dos agentes administrativos, desenvolvida na conformidade daquele preceito, como o documento que a atesta, por ele assinado, com a ciência do destinatário” – Curso..., op. cit., p. 390-391, 396, 399-400. Por isso, também, defende, não há lançamento sem procedimento implementado, e este não há sem previsão em regra do direito positivo. Destaque-se que, no desenvolvimento do debate doutrinário, a compreensão do lançamento, ora se inclinou como procedimento ora como ato administrativo, a exemplo de ALFREDO AUGUSTO BECKER, que o entendia como procedimento. Teoria..., op. cit., p. 308-309. No mesmo sentido, pode-se destacar o escólio de JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, compreende-o como ato administrativo. Lançamento tributário. Tratado de Direito Tributário, p. 277.

252 Código Tributário Nacional: “Artigo 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.

149

atividade de realização do lançamento – procedimento – e, como resultado

lógico, a edição da norma individual e concreta – o produto.253 Muito mais do

que expressar a compreensão procedimental do lançamento, esse dispositivo

restringiu-o à competência privativa da autoridade competente. Na mesma

medida em que restringiu o lançamento à realização por parte do Fisco, por

isso privativamente, criou, no dispositivo do artigo 150, § 4º, o permissivo legal

para o contribuinte, sujeito passivo do tributo editar norma individual e concreta,

o conhecido “lançamento por homologação”.254

Ainda que essa tenha sido a opção do Código Tributário Nacional, por

um entendimento de lançamento como procedimento, desenvolveremos o

presente trabalho com a diretiva de lançamento como ato-norma administrativo,

ou seja, como norma individual e concreta, cuja função é a de formalizar o

crédito tributário, resultante do procedimento administrativo da autoridade

administrativa, representante do Fisco.255

Parágrafo único. A atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional” (grifos nossos).

253 LÚCIA VALLE FIGUEIREDO, Curso..., op. cit., p. 137 e PAULO DE BARROS CARVALHO, Curso..., op. cit., p. 386-387 e 391.

254 EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, por outras palavras, ressalta que a autoridade administrativa que representa o Fisco nessa atividade, tem, nessa relação com o Fisco, funcionário e Fisco, o dever-poder de realizar o lançamento; e na relação com o contribuinte, Fisco e contribuinte, tem o poder-dever de realizar o lançamento, por força da sua competência, in Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 115. PAULO DE BARROS CARVALHO critica essas expressões, no argumento de não se coadunarem com a construção da linguagem científica, in Curso..., op. cit., p. 387.

255 Perceba-se, primeiro, que nos estamos reportando ao produto – norma individual e concreta – e não ao processo, procedimento de formalização do crédito tributário. Segundo que não nos reportaremos a lançamento como norma individual e concreta formalizada pelo sujeito passivo da relação obrigacional tributária. A doutrina reporta-se a ela como lançamento por homologação , antecipação do pagamento , autolançamento – expressão esta usada por JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, in Lançamento tributário. Tratado..., op. cit., p. 430-433; ou como “dever instrumental” – mencionado por EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 116 – ou, ainda, “ato-norma de formalização instrumental”, usada por ROQUE ANTONIO CARRAZZA, ICMS, p. 132 e EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Lançamento..., op. cit., p. 216-224. É nesta última acepção que aludiremos quando da edição da norma individual e concreta pelo sujeito passivo, por respeito à separação categórica disposta no Código Tributário Nacional, quanto à competência privativa concedida à autoridade administrativa representante do Fisco, para proceder à atividade de lançamento e edição da norma individual e concreta – artigo 142 – e outorga ao sujeito passivo – contribuinte – a possibilidade de antecipar o pagamento – 150, § 4º. Este é o entendimento conforme EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, segundo o qual, o artigo 142 do Diploma referido, “[...] exclui do sentido lançamento a norma individual e concreta formalizada pelo sujeito passivo da obrigação tributária” – Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 112-113. Terceiro, por decorrência lógica das premissas aqui firmadas, estamos, portanto, compreendendo o lançamento como ato administrativo. Entendimento também expresso em

150

2.9.3 Modalidades de Lançamento

Em grande escala, a doutrina costuma remete-nos, quando do estudo

de dispositivos legais, de institutos e aspectos do direito, à classificação.

Deparamo-nos, com frequência, com o estabelecimento de critérios ou

métodos de classificação diferentes para um mesmo dado do direito.

O lançamento tributário não fugiu dessa prática: podemos destacar,

pelo menos, duas importantes classificações, sendo que a primeira delas leva

em consideração a atuação do particular na consecução do lançamento.

Assim, são três as modalidades de lançamento: (i) de ofício ou direto, na qual o

particular não realiza qualquer contribuição para a realização do lançamento,

restando à Administração Pública essa tarefa na sua integralidade; (ii) por

declaração, na qual há a participação da Administração Pública e do particular

nessa tarefa de realização do lançamento, cabendo ao particular o

fornecimento de informações necessárias e de interesse para a realização do

lançamento; (iii) por homologação, na qual cabe ao particular a tarefa de

EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Lançamento..., op. cit., p. 152-156. Essa posição encontra fundamento, também, no argumento teórico empreendido por PAULO DE BARROS CARVALHO, que executou esforço científico, comprovando a adequação do lançamento como ato jurídico administrativo, na medida em que preenche os elementos que estruturam o ato jurídico administrativo: “a) O motivo ou pressuposto é a realização do evento, do qual tem notícia o agente da Administração [...] b) O agente competente é o funcionário que a lei indicar para o exercício de tal função, dependendo de cada espécie legislada. c) A forma é a organização de linguagem que a lei entendeu adequada para o tributo, variando, também, caso a caso. d) conteúdo ou objeto é a norma individual e concreta inserida no sistema pelo ato de lançamento. e) E finalidade é o objeto colimado pelo expediente, qual seja o de, introduzindo a norma no ordenamento positivo, tonar juridicamente possível o exercício do direito subjetivo à prestação tributária” – Curso..., op. cit., p. 404-418. Não bastasse, também preenche os pressupostos de (a) existência: (a.i) conteúdo, que é a norma individual e concreta; (a.ii) forma, que é a escrita; e de (b) validade: (b.i) objetivo, que é o motivo que dá causa a celebração do ato, dito de outra forma, a ocorrência da situação prevista hipoteticamente no suposto da regra-matriz, (b.ii) subjetivo, que é a autoridade com competência para lançar, (b.iii) teleológico, que é a finalidade de possibilitar a exigibilidade jurídica da prestação, (b.iv) procedimental, embora nem sempre verificável, mas respeitado quando exigido pela lei, trata-se dos atos necessários à lavratura do lançamento, (b.v) causal, como o “nexo lógico” entre o motivo, a atribuição do evento, que deu causa ao motivo, a um dado sujeito, a “[...] mensuração do acontecimento típico (conteúdo)”, para o alcance da sua finalidade, ou seja, possibilitar ao Fisco a exigibilidade do que lhe é devido, (b.vi) formalístico, como as formalidades previstas e exigidas na legislação de cada espécie de tributo.

151

realizar todas as providências de apuração e pagamento do débito tributário, e

ao Fisco cabe a atribuição de homologar essa antecipação de pagamento,

quando na conformidade do que estabelece a legislação. É essa a dita

classificação tripartite do lançamento.256

A classificação estabelecida pelo Código Tributário Nacional, por

considerar o lançamento como procedimento administrativo e não como ato

administrativo, refere-se, especificamente a espécies de procedimento e não

de lançamento, o que não parece ser uma classificação adequada. Todavia,

em razão de estar positivada em Lei, não pode ser abandonada.257

Em razão de não considerar a classificação tríplice empreendida pelo

Código Tributário Nacional, EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI propõe uma

classificação que leva em consideração a participação do contribuinte como

formalizador do crédito tributário, mesmo que sujeita à homologação do Fisco,

e pela autoridade fiscal.258

256 Essa foi a opção acolhida pelo Código Tributário Nacional, assim como foi a opção da

doutrina de ESTEVÃO HORVAT, in Lançamento Tributário e “autolançamento”, p. 47. JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, Lançamento..., 2. ed., p. 311-312.

257 Por essas razões, a classificação tríplice recebe a crítica de EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 118-119. O mesmo autor assevera, ainda, que a classificação proposta no Código Tributário Nacional diz respeito não ao ato-norma – lançamento tributário –, mas ao ato-fato administrativo – procedimento, na obra Lançamento..., op. cit., p. 215. Observação mesma de PAULO DE BARROS CARVALHO, o qual critica essa classificação tripartida do lançamento porque o estabelecido no Código Tributário Nacional faz referência ao procedimento e não ao lançamento como norma individual e concreta: “as três espécies de que trata o Código são, na verdade, espécies de procedimento e não de lançamento” – Curso..., op. cit., p. 441-443.

258 EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI sustenta que a classificação jurídica deve ter como referência nuclear não outro dado, mas a norma jurídica, in Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 119-120. Na mesma esteira entende ROQUE ANTONIO CARRAZZA, in Curso..., 12. ed., op. cit., p. 306 e GERALDO ATALIBA, in Hipótese..., op. cit., p. 126. Destaque-se, que essa classificação dúplice do lançamento deve considerar as situações prescritas no Código Tributário Nacional, cuja ocorrência interfere na modalidade de lançamento, para a realização de uma ou de outra forma. Conforme EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI “..., é preciso levar em conta não apenas a legislação instituidora do tributo, mas os seguintes enunciados prescritivos: (i) a determinação legal da “modalidade de lançamento” pela legislação específica (Artigo 147 caput, Artigo 149 inciso I e Artigo 150 caput do CTN); (ii) a omissão de declaração por quem de direito ( Artigo 149, II); (iii) o não atendimento, recusa ou insuficiência dos esclarecimentos prestados pelo declarante (Artigo 149, III); (iv) a falsidade, erro ou omissão comprovados (Artigo 149, IV); (v) a omissão oi inexatidão comprovadas no exercício da atividade prevista no Artigo 150 caput e §§ do CTN (Artigo 149, V), e (vi) o dolo, fraude ou simulação realizada por sujeito passivo ou por terceiro em benefício deste (Artigo 149, VII)” – Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 121.

152

Em razão desse entendimento pela classificação dúplice, que as

previsões legais da legislação tributária, perfazem situações particulares que

interferem na regra de realização do lançamento pelo Fisco ou pelo

contribuinte. Por exemplo, as regras gerais do artigo 142, 147 e 149, I, de

realização de lançamento na modalidade de oficio, ou seja, constituído o

crédito pelo Fisco. Mas não é somente nessas situações que se permite a ele

realizar o lançamento de ofício; e por isso mesmo que mencionamos, acima,

tratar-se de situações particulares que interferem na regra de realização do

lançamento pelo Fisco ou pelo contribuinte; temos, também, as regras do artigo

149, II, III e IV, que preveem a realização do lançamento de ofício pelo Fisco,

quando a declaração do contribuinte, do artigo 147, contiver alguma omissão; e

as regras do artigo 149, V, VI e VII, que estabelecem a formalização do crédito

de ofício pelo Fisco, quando o lançamento por homologação, do artigo 150,

ocorrer com vício.

Entende por isso, o lançamento por declaração, citado como

modalidade pela classificação tríplice, é, na verdade, o lançamento de ofício,

realizado pelo Fisco, subsidiado pelas informações do contribuinte, e

dependente do seu ato-norma administrativo.259

Em virtude dessa premissa de classificação dúplice, não se concebe

apontar a modalidade de lançamento vinculada à natureza do tributo. Por

exemplo, não há de se amarrar ao ISS o lançamento na modalidade por

homologação, embora a legislação tributária ordinária assim o preveja, porque,

uma vez ocorrida a situação do artigo 149, V, o lançamento por homologação

que veicule inexatidão ou demonstre omissão, a atividade de lançamento será

realizada de ofício pelo Fisco. Não se está, com isso, retirando a relevância de

a legislação prever a modalidade de lançamento, o que será importante num

primeiro momento de análise. O que não se pode é precisar essa como forma

pura e única de realização do lançamento, porque existem numerosos fatores

259 Compreendem que se trata de uma declaração do contribuinte para subsidiar o Fisco de

informações relevantes à realização do lançamento de ofício. Tal declaração não tem o condão de fazer nascer uma relação jurídica entre o contribuinte e o Fisco. Por isso mesmo nos parece inadequada a classificação que considera a declaração como modalidade de lançamento. Essa foi a lição de EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 123.

153

previstos no Código Tributário Nacional que, ocorrendo, permitem a realização

por outra modalidade de lançamento.260

2.9.4 A Natureza Jurídica do Lançamento

Iniciamos este item chamando a atenção para a seguinte questão: o

argumento justificador da natureza jurídica do lançamento tem relação de

dependência direta com as proposições teóricas adotadas.

Tem fundamento tal preocupação, pois, se partimos da concepção de

modelo clássico de entendimento do nascimento da obrigação tributária,

segundo a qual, ocorrido, no mundo fenomênico, a situação hipoteticamente

estabelecida na hipótese ou antecedente da norma, ocorre o fenômeno da

incidência, que juridiciza o fato e desencadeia, nos termos do consequente da

norma, a relação jurídica obrigacional tributária; nessa medida, em suma,

nasce a obrigação tributária, entretanto, o crédito só nasceria no momento

posterior, quando lavrado o lançamento, norma individual e concreta. Se essa

for a premissa, a natureza jurídica do lançamento seria declaratória – sim,

porque com a sua edição, estar-se-ia apenas declarando a existência de uma

relação jurídica obrigacional tributária já nascida.

No entanto, se a premissa firmada diz respeito ao nascimento da

obrigação tributária concomitantemente como o crédito tributário, no momento

da aplicação na norma, da edição da norma individual e concreta, conforme o

entendimento firmado neste trabalho, segundo a qual, é na edição da norma

individual e concreta, ou seja, na aplicação da norma pelo lançamento, em cuja

hipótese ou antecedente está o fato jurídico tributário, é que nasce a relação

jurídica obrigacional tributária. De outra forma, é com o lançamento tributário

que nasce a obrigação tributária e o seu crédito correspondente. Se essa é a

260 EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI ressalta: “[...] a modalidade de formalização aplicável a

cada caso concreto define-se em função da combinação de vários critérios definidos pelo próprio direito de não, simplesmente, em razão do que é estipulado pela legislação instituidora do tributo” – Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 123.

154

premissa, a posição do presente estudo, conforme já explanamos, dessa lógica

decorre que o lançamento tributário tem natureza constitutiva, de sorte a

constituir a relação jurídica obrigacional tributária.261

Necessária se faz essa explanação sobre o lançamento tributário, em

razão de a compreensão desse assunto ser nuclear ao bom entendimento dos

temas que serão tratados à frente, decadência e prescrição tributárias. Não é

lógico o estudo desses institutos sem, antes, compreender a sistemática do

crédito tributário, as suas modalidades e a sua natureza. Passados, pois, em

revista, esses aspectos do lançamento tributário; e, portanto, com maior

suporte de informações sobre um tema vinculado tanto à decadência quanto à

prescrição tributária, há melhores condições de ingressar, efetivamente, nas

matérias do próximo capítulo.

261 Neste sentido é a doutrina de EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Decadência..., 2. ed.,

op. cit., p. 135 e PAULO DE BARROS CARVALHO, Curso..., op. cit., p. 422.

155

CAPÍTULO 3 – DECADÊNCIA E PRESCRIÇÃO DO DIREITO DO FISCO

3.1 NOÇOES INTRODUTÓRIAS

Restou exposto, no capítulo 1, que, na relação entre o Estado e a

empresa, aquele tem força para influenciar na sustentabilidade econômica

desta. E essa influência tem como um dos recortes o aspecto político-

legislativo. Nesse aspecto, um dos atos estatais que trazem reflexos para a

sustentabilidade empresarial é a produção legislativa, como produto e não

como atividade pré-jurídica. É nesse ponto que centramos o presente capítulo,

de forma a identificar como essa atividade legiferante, já corporificada nas

regras da decadência e prescrição tributárias, reflete ou não a segurança

jurídica, na perspectiva multidimensional, estudada no capítulo 2, o que exige

uma análise de cada regra conformadora dessas normas de decadência e

prescrição, assim como o seu cotejo com a referida segurança jurídica.

Respeitados os pressupostos estabelecidos no capítulo inicial do

presente trabalho, de conformidade com os quais, o Estado, influenciado pela

importância das empresas no seu papel colaborador para o atingimento das

atribuições constitucionais imputadas ao Estado – desenvolvimento econômico

e social – construiu um modelo constitucional estruturado para o exercício

empresarial dessa função social, e que, ao mesmo tempo, veicula instrumentos

para o incentivo, a proteção e a manutenção econômica estável das

organizações empresariais. Cabe-nos analisar os institutos da decadência e da

prescrição, de forma a investigar, nessa produção legislativa, se o espírito

constitucional protetivo se fez presente ou se as prescrições não podem ser

consideradas como reforço à sustentabilidade econômica das empresas.

156

3.2 DECADÊNCIA DO DIREITO DO FISCO

3.2.1 As Normas Gerais e Abstratas da Decadência do Direito do Fisco.

3.2.1.1 Noções Introdutórias

No capítulo anterior, dos aspectos introdutórios e nucleares à

compreensão da decadência e da prescrição, foi consignado que ambos são

institutos prescritos em normas, razão pela qual elas obedecem à estrutura

hipotético-condicional de toda e qualquer outra norma jurídica.262

No que se refere, especificamente, à decadência, porque esse é o

objeto de foco do presente item, temos uma situação para a qual chamamos a

atenção: trata-se de uma norma jurídica, porque inserta nesta categoria,

todavia, não se perfaz por uma única e específica norma geral e abstrata, mas

existem várias normas gerais e abstratas de decadência tributária. 263

Isso quer dizer que, para cada norma geral e abstrata da decadência,

teremos, por respeito à estrutura hipotético-condicional, uma hipótese e um

consequente. Cada uma das hipóteses descreverá o decurso temporal de cinco

anos, cujo termo inicial, o “dies a quo”, dependerá do estabelecido na norma.

No correspondente consequente normativo, estará consignado a extinção do

direito, que pode ser relativa ao (i) crédito tributário, estabelecida num único

dispositivo, o do artigo 156, V, do Código Tributário Nacional, ou ao (ii) direito

de realizar o lançamento, este não fixado num único dispositivo, mas em cinco

262 Lição extraída da doutrina de HANS KELSEN, in Teoria Geral do Direito e do Estado, p.

64. Também, conforme o escólio de PONTES DE MIRANDA. Tratado..., p. 18-19.; PAULO DE BARROS CARVALHO, Curso..., p. 250 e LOURIVAL VILANOVA. Causalidade..., p. 55 e seguintes: A estrutura da norma jurídica é conformada por uma hipótese e um consequente, e obedece a juízo hipotético: se Hipótese, então Consequência.

263 Embora entendamos adequado, razão pela qual é esta palavra que utilizaremos no presente estudo, trazemos ao conhecimento a crítica de PONTES DE MIRANDA, que propõe “preclusão” em lugar de “decadência”, pois aquela se encontra no plano da existência e a decdência no plano de eficácia, in Tratado..., op. cit., p. 135.

157

diferentes normas. A conformação das regras dispostas nos itens (i) e (ii)

formam, portanto, seis normas decadenciais diferentes, com hipóteses e

consequentes específicos.

Essas seis regras são formadas pela combinação de alguns critérios,

quais sejam, (i) a ocorrência ou não do pagamento antecipado; (ii) a existência

ou não de dolo; (iii) a ocorrência ou não da notificação preparatória; e (iv) a

efetivação ou não da anulação do lançamento realizado anteriormente.264

A partir da análise e sistematização dos textos prescritos e positivados

no “codex” Tributário, seguindo o escólio de EURICO MARCOS DINIZ DE

SANTI, são identificadas, consoante mencionado, seis normas gerais e

abstratas de decadência tributária, que, em suma, são as seguintes265; (i)

decadência do direito subjetivo de constituir a obrigação e o crédito tributário

sem o pagamento antecipado; (ii) decadência do direito subjetivo de constituir a

obrigação e o crédito tributário, sem o pagamento antecipado e com a

notificação; (iii) decadência do direito subjetivo de constituir a obrigação e o

crédito tributário, com o pagamento antecipado; (iv) decadência do direito

subjetivo de constituir a obrigação e o crédito tributário, com pagamento

antecipado, quando comprovado dolo, e com notificação; (v) decadência do

direito subjetivo de constituir a obrigação e o crédito tributário, quando anulado

o lançamento anterior; (vi) decadência do direito de crédito do Fisco.266

264 Essa é a lição de EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI “[...] são normas decadenciais

diversas, com hipóteses distintas e efeitos díspares [...]” – Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 163-164. Destacamos não haver mencionado a extinção do direito de pleitear administrativamente o débito do Fisco porque diz respeito ao direito do contribuinte, e o presente trabalho circunscreve a análise à esfera jurídica do Fisco.

265 Porque essa é a tarefa legítima da ciência do direito: colher o seu objeto de análise, que é o texto normativo, e realizar ciência. Esse é o escólio de PAULO DE BARROS CARVALHO: “[...] afinal de contas, o ponto de partida do trabalho cognoscitivo, para a ciência do direito em sentido estrito, é o texto jurídico-normativo válido [...]. As formulações teoréticas são portadoras de maior ou de menor potencialidade de explicação dos fenômenos que descrevem, forjando o convencimento no espírito de quem as conhece. E a ciência jurídica, narrando o sistema empírico do direito positivo, que aparece, inexoravelmente, como um corpo de linguagem, sempre foi espaço fecundo para o surgimento de múltiplas teorias, quantas vezes agrupadas em torno de um único tema, despertando a dúvida na mente do estudioso, que se vê impelido a escolher uma, afastando as demais. A eleição é fruto da ideologia, pois o direito, antes de tudo, é um objeto cultural, região ôntica em que os entes são sempre valiosos, positiva ou negativamente” – Curso..., op. cit., p. 216 e 226.

266 Essa é a doutrina magistral de EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 163-167. Ressalte-se, nessas regras não está inserto o regramento para o

158

Diante dessas regras gerais e abstratas que regulam a decadência

tributária, diferentes que são, impõe a sua análise estrutural, de sorte a

identificar as prescrições que integram as suas hipóteses normativas e os seus

respectivos consequentes. Ressalte-se que se trata de uma análise que segue

a esteira das lições de EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, na forma

trabalhada na obra “Decadência e Prescrição no Direito Tributário”.267

Para fins didáticos tentaremos seguir um mesmo padrão na sequência

do oferecimento das informações relativas a cada regra analisada.

Informaremos o dispositivo legal a ela aplicável, o que compõe a hipótese e o

que compõe o consequente. Nessa atividade, esclareceremos pontos

relevantes para o bom entendimento de cada aspecto apontado. Também,

abriremos, caso necessário, dentro do item específico de cada regra de

decadência, subitens para tratar de temas polêmicos relacionados às referidas

regras.

3.2.1.2 – As Regras Conformadoras das Normas Gerais e Abstratas da

Decadência do Direito do Fisco

3.2.1.2.1 - A Norma Geral e Abstrata da Regra de Decadência do Direito de

Constituir a Obrigação e o Crédito tributário sem o Pagamento Antecipado

A disposição legal a partir da qual se constrói essa regra resta prescrita

no artigo 173, I, do Código Tributário Nacional. 268

particular formalizar o crédito, diz somente respeito ao direito subjetivo do Fisco de constituir o crédito tributário e o seu direito de crédito.

267 Valemo-nos do modelo teórico de referência, proposto nas suas lições – Decadência..., 2. ed. p. 163-210.

268 “Artigo 173. O direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após 5 (cinco) anos, contados: I - do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado;”

159

Esta norma jurídica tem como hipótese normativa a omissão do fisco

em exercitar seu direito subjetivo de constituir o crédito tributário, pelo

lançamento, no lapso temporal de cinco anos, cujo “dies a quo” é o primeiro dia

do exercício seguinte àquele no qual ocorreu o evento passível de tributação.

Ressalte-se que, nesta hipótese, não se cogita da ocorrência de pagamento

antecipado, portanto, sem qualquer ilícito possível de ser, ao sujeito passivo,

imputado, e tampouco existe menção à notificação. 269

Quando a disposição legal menciona “(...) àquele em que o lançamento

poderia ter sido efetuado”, quer dizer que o lançamento poderia ter sido

efetuado no exercício no qual ocorreu o evento tributário, mas por benesse

legislativa, é possível ao Fisco lançar a partir do exercício seguinte.270

Aplicando-se, pois, a teoria da norma jurídica, tem-se que a norma de

decadência, no caso em estudo, seria composta da seguinte estrutura lógica:

no antecedente normativo, constaria a realização do evento, sem pagamento

antecipado por parte do devedor, decorrendo, entretanto, o lapso temporal em

que o Fisco poderia constituir a obrigação e crédito tributários. O consequente

da norma veicula, portanto, a extinção do direito subjetivo do Fisco realizar o

lançamento tributário, ato-norma administrativo de lançamento, conforme o

“caput” do artigo 173.

269 Referimo-nos ao dolo previsto no Código Tributário Nacional, nos artigos 149, VII e 150, §

4º. 270 Essa permissão expressamente prevista pelo inciso I, do artigo 173, do Código Tributário

Nacional, no sentido de que o início da contagem do prazo decadencial apenas se da no primeiro dia do exercício seguinte ao da ocorrência do evento, a nosso sentir, promove um “indevido” alargamento do prazo decadencial em discussão, pois a concepção que fica é que o sujeito ativo não dispõe do prazo de cinco anos para exercer seu direito subjetivo de constituir a obrigação e o crédito tributário, mas sim de cinco anos, somados de mais algum tempo, que pode variar de um (01) a trezentos e sessenta e quatro (364) dias, conforme a data de ocorrência do evento, o que, na pior hipótese, alarga esse prazo decadencial para quase seis anos – em verdade, cinco anos e trezentos e sessenta e quatro dias. A crítica ora estabelecida à contagem do prazo decadencial não implica negar a importância desse instituto na realização da segurança jurídica, que será estudada analiticamente nas linhas que seguem; ao se falar de segurança jurídica, estar-se-á a tratar dos institutos da decadência e da prescrição enquanto estabilizadores de relação jurídica, e não do momento em que cada um deles produzirá os efeitos jurídicos para o qual foram concebidos.

160

3.2.1.2.2 - A Norma Geral e Abstrata da Regra de Decadência do Direito de

Constituir a Obrigação e o Crédito tributário sem Pagamento Antecipado e com

a Notificação Administrativa

A disposição legal a partir da qual se constrói essa regra encontra-se

prescrita no artigo 173, parágrafo único do Código Tributário Nacional. 271

A hipótese dessa norma jurídica é a omissão do fisco no exercício do

seu direito subjetivo de realizar a constituição do crédito tributário pelo

lançamento, e o decurso do prazo de cinco anos, cujo “dies a quo" é a data em

que é ultimada a notificação administrativa realizada pelo fisco, ao sujeito

passivo, informando da medida preparatória indispensável ao lançamento.

Nesta regra, não se cogita da ocorrência de pagamento antecipado, portanto,

sem qualquer ilícito possível de ser, ao sujeito passivo imputado, todavia,

existe menção à notificação.

Em caso de tal notificação ocorrer no intervalo do tempo abrangido

pelo evento tributário e o primeiro dia do exercício seguinte, o que pode

parecer uma confusão jurídica, pois aparenta conflito com a regra do artigo

173, I, do Código Tributário Nacional; na verdade, não se aplica o dispositivo

mencionado, mas o artigo 173, parágrafo único, cujo “dies a quo” é a data nele

fixada. Em outras palavras, não se trata de antecipação de prazo decadencial,

pois, havendo a notificação do sujeito passivo anteriormente ao primeiro dia do

exercício seguinte à ocorrência do evento, impõe-se, necessariamente, a

aplicação do artigo 173, parágrafo único, daquele diploma normativo.

Diante desse quadro surge a seguinte situação: se, notificado o sujeito

passivo, no intervalo de tempo entre o evento tributário e o primeiro dia do

exercício seguinte, qual o prazo que se aplica ? Dizemos que se utiliza a regra

271 “Artigo 173. O direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após 5

(cinco) anos, contados: (...) Parágrafo único. O direito a que se refere este artigo extingue-se definitivamente com o decurso do prazo nele previsto, contado da data em que tenha sido iniciada a constituição do crédito tributário pela notificação, ao sujeito passivo, de qualquer medida preparatória indispensável ao lançamento”

161

do artigo 173, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, pois se trata de

uma regra decadencial específica, cujo “dies a quo” é explícito, e conta-se da

data da notificação.272 Muito embora existam diversas regras de decadência

tributária, neste caso há uma nítida interrupção de prazo decadencial.

Poderá, também, ocorrer outra situação: se a notificação acontecer

após o “dies a quo” do artigo 173, I ? Para ser coerente com a premissa fixada,

existem regras específicas de decadência, aplicável cada qual, na situação

legalmente prevista, em sendo assim, uma vez que a notificação ao

contribuinte ocorreu após o primeiro dia do exercício seguinte, a regra a ser

aplicada, para efeito do inicio da contagem do prazo decadencial, só poderá

ser aquela prevista no artigo 173, I, do Código Tributário Nacional, tratando-se,

pois, de regra específica, já aplicada ao tempo da notificação ao contribuinte,

ou seja, que já incidiu quando da notificação.

Na hipótese da construção do raciocínio segundo o qual, se a

notificação ao contribuinte ocorreu após o início do prazo do artigo 173, I, do

Código Tributário Nacional, em razão de a regra do artigo 173, parágrafo único,

do mesmo diploma, não especificar o momento exato da ocorrência da

notificação, o prazo decadencial, ainda assim, terá como “dies a quo” a data da

notificação, independente do tempo de sua ocorrência.

Dessa compreensão surge o seguinte problema: como o fato jurídico

tributário ocorreu após o inicio da contagem de prazo na forma do referido

artigo 173, I, essa regra já se tornou aplicável, não havendo, pois, como se

aplicar a regra do parágrafo único do mesmo artigo.

272 LUCIANO AMARO, quanto à questão de se ter a notificação como marco inicial da

contagem de prazo, entende-a como uma antecipação do “dies a quo” da regra do artigo 173, I, do Código Tributário Nacional. Destaque-se que, embora chegue ao mesmo entendimento, de a notificação ser o marco inicial da contagem de prazo, esse autor parte de outra premissa, segundo a qual a disposição do artigo mencionado é a regra geral, razão pela qual se justificaria, a partir desse referencial, a antecipação do prazo, in Direito... , 11. ed. op. cit., p. 408. Entende EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, que, não há qualquer espécie de antecipação de “dies a quo” do prazo do artigo 173, I, do Código Tributário Nacional, porque não concebe essa regra como geral e as demais passíveis de interferência no seu termo inicial. De outra forma, significa dizer que os prazos das regras de decadência não intervém nos prazos das demais. Decadência..., op. cit., p.169 e 177.

162

A escolha da regra aplicável, no caso da notificação ocorrer após o

início da contagem do prazo decadencial, não é adequada, pois não

concebemos a possibilidade de aplicar o parágrafo único, uma vez que se

deveria aplicar a norma do inciso I. Analisando a situação segundo a teoria da

norma jurídica, tem-se a seguinte situação: com a chegada do primeiro dia do

exercício seguinte, já tendo ocorrido o evento, uma norma jurídica formou-se,

qual seja aquela do artigo 173, I, já mencionado. Sustentar a aplicabilidade,

neste caso, da regra do parágrafo único do artigo 173, do “codex” tributário,

estar-se-á admitindo a formação de nova norma jurídica, não explicando,

contudo, o que ocorreu com a norma jurídica anteriormente formada, do artigo

173, I, do Código Tributário Nacional. No caso, ter-se-iam duas normas

jurídicas, independentes, a tratar da mesma situação fática. Uma vez

determinada a regra jurídica aplicável, o que acontecerá com aquela que,

apesar de formada, não foi aplicada ?

O consequente da norma veicula a extinção do direito subjetivo do

Fisco proceder ao lançamento tributário, ato-norma administrativo de

lançamento tributário, conforme “caput” do artigo 173, do Código Tributário

Nacional.

3.2.1.2.3 - A Norma Geral e Abstrata da Regra de Decadência do Direito de

Constituir a Obrigação e o Crédito tributário com o Pagamento Antecipado

A disposição legal a partir da qual se constrói essa regra resta prescrita

no artigo 150, § 4º, primeira parte, do Código Tributário Nacional.273

273 Código Tributário Nacional: “Artigo 150. O lançamento por homologação, que ocorre quanto

aos tributos cuja legislação atribua ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa, opera-se pelo ato em que a referida autoridade, tomando conhecimento da atividade assim exercida pelo obrigado, expressamente a homologa. [...] § 4º Se a lei não fixar prazo a homologação, será ele de cinco anos, a contar da ocorrência do fato gerador; expirado esse prazo sem que a Fazenda Pública se tenha pronunciado,

163

Esta norma jurídica tem como hipótese normativa a omissão do fisco

em exercer seu direito subjetivo de homologar expressamente o pagamento

antecipado ou constituir a obrigação e o crédito tributário pelo lançamento, no

caso de discordância com a antecipação do pagamento, e o decurso do prazo

de cinco anos, cujo “dies a quo” dá-se com a ocorrência do evento. Ressalte-se

que, nesta hipótese, existe a ocorrência de pagamento antecipado, sem,

todavia, qualquer ilícito imputado ao sujeito passivo, e sem menção de

notificação.274

O consequente da norma veicula uma particular curiosidade: a extinção

do direito subjetivo do Fisco de homologar expressamente o pagamento

antecipado realizado pelo sujeito passivo ou a extinção do direito de realizar o

lançamento de ofício – possibilidade jurídica que se abre, para o fisco, quando

não concorda com a antecipação do pagamento, pelos motivos previstos no

artigo 149, do Código Tributário Nacional.275 Não que seja uma causa extintiva

considera-se homologado o lançamento e definitivamente extinto o crédito, salvo se comprovada a ocorrência de dolo, fraude ou simulação”

274 EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 169-170. Ressalte-se que esse pagamento antecipado a que nos referimos não é a entrega de dinheiro ao Fisco apenas, mas o pagamento parcial realizado, tendo como pressuposto a constituição do crédito tributário pelo contribuinte.

275 Código Tributário Nacional: “Artigo 149. O lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade administrativa nos seguintes casos: I - quando a lei assim o determine; II - quando a declaração não seja prestada, por quem de direito, no prazo e na forma da legislação tributária; III - quando a pessoa legalmente obrigada, embora tenha prestado declaração nos termos do inciso anterior, deixe de atender, no prazo e na forma da legislação tributária, a pedido de esclarecimento formulado pela autoridade administrativa, recuse-se a prestá-lo ou não o preste satisfatoriamente, a juízo daquela autoridade; IV - quando se comprove falsidade, erro ou omissão quanto a qualquer elemento definido na legislação tributária como sendo de declaração obrigatória; V - quando se comprove omissão ou inexatidão, por parte da pessoa legalmente obrigada, no exercício da atividade a que se refere o artigo seguinte; VI - quando se comprove ação ou omissão do sujeito passivo, ou de terceiro legalmente obrigado, que dê lugar à aplicação de penalidade pecuniária; VII - quando se comprove que o sujeito passivo, ou terceiro em benefício daquele, agiu com dolo, fraude ou simulação; VIII - quando deva ser apreciado fato não conhecido ou não provado por ocasião do lançamento anterior; IX - quando se comprove que, no lançamento anterior, ocorreu fraude ou falta funcional da autoridade que o efetuou, ou omissão, pela mesma autoridade, de ato ou formalidade especial. Parágrafo único. A revisão do lançamento só pode ser iniciada enquanto não extinto o direito da Fazenda Pública”.

164

de direito subjetivo – muito mais uma decorrência, – mas o esgotamento do

prazo também consolida a homologação tácita.276

3.2.1.2.3.1 – A Homologação Expressa do Fisco

Pensar sobre a homologação expressa do Fisco ao pagamento

antecipado realizado pelo sujeito passivo – homologação expressa do ato-

norma instrumental de lançamento – implica o raciocínio extraído dos artigos

144, 149 e 156, parágrafo único, todos do Código Tributário Nacional.

Se o pagamento antecipado é regular, não há margem para discussão,

e o Fisco pode homologar expressamente o pagamento, dentro do prazo de

cinco anos a contar do evento. Em caso de pagamento antecipado irregular,

aplicam-se os artigos destacados no parágrafo anterior, a partir dos quais se

pode concluir que ao Fisco é permitido a realização da revisão e do lançamento

de ofício, ainda que, por equívoco, tenha realizado a homologação expressa de

um pagamento antecipado realizado de forma irregular, desde que o faça no

lapso temporal de cinco anos. Do seu esgotamento, decorre a perda do direito

subjetivo de constituir a obrigação e o crédito tributário de ofício.277

LUCIANO AMARO entende que o “lançamento por homologação” não é atingível pela decadência, no argumento segundo o qual, realizado o pagamento antecipado, abre-se para a autoridade administrativa a opção de (i) anuir o pagamento – homologação expressa, artigo 150, § 4º, do Código Tributário Nacional; (ii) não anuir e deixar transcorrer o prazo para homologar – homologação tácita, artigo 150, § 4º, do Código Tributário Nacional; ou (iii) verificada alguma omissão ou inexatidão do sujeito passivo no cumprimento do lançamento por homologação – falta no dever de antecipar o pagamento. Nas opções (i) e (ii) não há de se falar em decadência, pois houve antecipação do pagamento. Na opção (iii), o prazo que inicia a fluir é para o Fisco realizar o lançamento de ofício, por força do artigo 149, V, do Código. Assim, o que é atingível pela decadência não é o “lançamento por homologação”, mas o lançamento de ofício, in Direito... , 11. ed. op. cit., p. 406-407.

276 Para EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, “[...] pode-se afirmar que a homologação tácita do pagamento antecipado é o verso, cujo anverso é a decadência do direito de o Fisco lançar de ofício” – Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 170. Por respeito aos imperativos da segurança jurídica, ao Fisco não cabe o exame da apuração realizada pelo contribuinte, para atestar a sua existência e regularidade em prazo indefinido, razão pela qual se impõe o prazo decadencial – HUGO DE BRITO MACHADO, HUGO DE BRITO MACHADO SEGUNDO, Tributário. Arts. 150, § 4º e 174 do CTN. Decadência e Prescrição. Prazos, Revista Dialética de Direito Tributário , n. 91, p. 135.

277 Decadência..., 2. ed., op. cit., p.179-181.

165

Tratar de homologação expressa do Fisco ao pagamento realizado

pelo sujeito passivo implica a observação de dois prazos decadenciais: (i) para

expressamente homologar e (ii) para realizar a constituição do crédito tributário

pelo lançamento de ofício, em caso de não concordar com o pagamento

realizado, desde que não extinto o direito subjetivo da Fazenda Pública.

3.2.1.2.3.2 “Lançamento por Homologação” sem o Pagamento Antecipado

Destacamos este subitem para fazer menção a um aspecto

controverso do pagamento antecipado, no “lançamento por homologação”.

Pode parecer equivocado introduzir o assunto do pagamento antecipado dentro

da regra que regula a decadência do direito de o Fisco lançar de ofício, mas

não o é. Entendamos as razões.

Existem duas regras de decadência específicas aplicáveis ao dito

“lançamento por homologação”: (i.i) aquela disposta no artigo 150, § 4º,

primeira parte, do Código Tributário Nacional – perda do direito subjetivo de

constituir a obrigação e o crédito tributário com pagamento antecipado; (i.ii) e a

disposta no 150, § 4º, segunda parte, do Código Tributário Nacional – perda do

direito subjetivo de constituir a obrigação e o crédito tributário com pagamento

antecipado, mas com dolo.278

Entretanto, a previsão das disposições do Código Tributário Nacional,

não sugere, nesse caso, que todos os lançamentos realizados nessa

modalidade se submeterão a essas regras, por uma razão clara: as regras do

“codex” contemplam a situação na qual há o pagamento antecipado – seja com

ou sem ilícito – mas não regula a circunstância na qual, muito embora obrigado

pela lei ao dever de antecipar o pagamento, o sujeito passivo não o realiza. É

silente a legislação de que ora falamos. Não há regra prescrita.

278 Lembremos, essas regras serão estudadas com detalhes nos próximos subitens.

166

Dessa forma, é um equívoco engessar a aplicação da regra do artigo

150, §, 4º, primeira e segunda parte, sempre, para os “lançamentos por

homologação”.

Se não há disposição legislativa específica, qual a saída jurídica para a

conjuntura apresentada ? No caso, houve a edição da norma individual e

concreta por parte do contribuinte, constituindo o crédito tributário, e não houve

o seu pagamento, e se o Fisco concorda com essa norma, promoverá a

inscrição em dívida ativa, para a qual decorre prazo, agora, não mais para

constituir o crédito, porque este o fora pelo contribuinte, mas para o Fisco

proceder com à cobrança judicial, no prazo prescricional.

A situação na qual não há a constituição do crédito tributário pelo

contribuinte e, por consequência, não existe, também, o seu pagamento, o

raciocínio aplicável é o seguinte: não há o que ser homologado, e, portanto,

cabe ao Fisco, conforme o mandamento do artigo 149, II, do Código Tributário

Nacional, quando ainda não extinto o seu direito – 149, parágrafo único, da

mesma Lei – promover o lançamento de ofício. E se o lançamento é de ofício,

aplica-se a regra do artigo 173, I, da mencionada legislação, cujo prazo é de

cinco anos e o “dies a quo” é o primeiro dia do exercício seguinte àquele que

ocorreu o evento.

Embora, como já mencionamos, não perfaça uma regra específica de

decadência do direito do Fisco, em razão de a aplicação conjunta do artigo 142

e 149, II, do Código Tributário Nacional, levar à imposição da regra de

decadência prescrita no artigo 173, I, do mesmo Código, esse é o motivo

justificador de introduzirmos aqui essa questão.279

Repisamos: em razão mesmo de não haver regramento no Código

Tributário Nacional, é que não se conta tal circunstância como uma regra

específica e particular, como as demais estudadas neste capítulo. Até porque,

279 Não é essa a compreensão de HUGO DE BRITO MACHADO e de HUGO DE BRITO

MACHADO SEGUNDO, para os quais se impõe a aplicação do artigo 150, § 4º, do Código Tributário Nacional, in Tributário. Arts. 150, § 4º e 174 do CTN. Decadência e Prescrição. Prazos, Revista Dialética..., op. cit., p. 133.

167

a proposta metodológica que seguimos, tem a premissa bem fixada de partir da

análise das prescrições legais constantes da legislação tributária.

Ressaltamos, ainda, que esse ponto será, com maior detalhe, tratado

no subitem onde versaremos acerca da antiga “tese dos dez anos”, do Superior

Tribunal de Justiça.

3.2.1.2.4 A Norma Geral e Abstrata da Regra de Decadência do Direito de

Constituir a Obrigação e o Crédito tributário com Pagamento Antecipado com

Dolo e com Notificação.

A disposição legal a partir da qual se constrói esta regra queda

prescrita no artigo 150, § 4º, segunda parte, do Código Tributário Nacional. 280

Esta norma jurídica tem como hipótese normativa a omissão do fisco

no exercício do seu direito subjetivo de constituir a obrigação e o crédito,

tributário pela realização do lançamento, e o decurso do prazo de cinco anos,

quando o contribuinte realiza a antecipação do pagamento com algum ilícito,

cujo “dies a quo” dá-se com a notificação do ilícito ao sujeito passivo.

Destaque-se, nesta hipótese existe a ocorrência de pagamento antecipado,

com dolo e notificação ao sujeito passivo.

Esclareçamos algumas questões importantes. A primeira delas diz

respeito à notificação realizada pelo Fisco ao sujeito passivo – artigo 173,

parágrafo único, do Código Tributário Nacional: ela tem o condão de, ao

mesmo tempo, (i.i) constituir juridicamente o fato do dolo e (i.ii) servir de

pressuposto necessário ao lançamento de ofício posterior; sim, porque, para o 280 “Artigo 150. O lançamento por homologação, que ocorre quanto aos tributos cuja legislação

atribua ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa, opera-se pelo ato em que a referida autoridade, tomando conhecimento da atividade assim exercida pelo obrigado, expressamente a homologa. [...] § 4º Se a lei não fixar prazo a homologação, será ele de cinco anos, a contar da ocorrência do fato gerador; expirado esse prazo sem que a Fazenda Pública se tenha pronunciado, considera-se homologado o lançamento e definitivamente extinto o crédito, salvo se comprovada a ocorrência de dolo, fraude ou simulação”

168

Fisco proceder a esse lançamento de ofício, a antecipação de pagamento

realizada pelo sujeito passivo, por ser considerada ilícita, pelo dolo, não é, para

fins de extinção da obrigação, considerada.281

O segundo aspecto a ser ressaltado é o prazo no qual deve ocorrer a

referida notificação ao sujeito passivo: deve ser realizada no prazo de cinco

anos, conforme artigo 173, I, do Código Tributário Nacional. Esse é o prazo no

qual o Fisco deve informar ao sujeito passivo que não concorda com o

pagamento antecipado, porque verificou um ilícito, ou seja, é o prazo para o

Fisco constituir administrativamente o ilícito.282

Também sobre a notificação, o terceiro ponto a ser ressaltado refere-se

à sua não ocorrência – não formalização do ilícito – nesse prazo, do artigo 173,

I, do Código Tributário Nacional, que acarreta: (i) a decadência do direito

subjetivo do Fisco de constituir o crédito de ofício, porque a notificação é

pressuposto para o lançamento de ofício; (ii) a decadência de constituir

juridicamente o ilícito, o dolo porque o meio para tanto é a notificação; (iii) a

extinção do crédito tributário, no caso de transcurso do tempo, sem a

notificação, acarretar a homologação tácita do pagamento antecipado.283

Ainda no assunto notificação, o quarto ponto importante a ser

mencionado é que, se ela for juridicamente inconsistente, seja no aspecto

material ou formal, (i) comprometerá o lançamento de ofício posterior por tê-la

como pressuposto justificador; (ii) tornará inaplicável o prazo decadencial de

cinco anos, porque ela não existiu ou porque inconsistente, o que faz restar

válido o prazo de cinco anos a contar do primeiro dia do exercício seguinte.

Essa conformação de aplicação de prazo, faz parecer uma espécie de punição

ao Fisco pela notificação inconsistente, o que obriga a aplicação do prazo do

artigo 173, I, do Código Tributário Nacional.284

O quinto e último aspecto da notificação tem a atribuição de apontar

duas importantes consequências da notificação que veicula o dolo: (i) a 281 Não é este o raciocínio de EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, que entende ser aplicável o

artigo 150, § 4º, do Código Tributário Nacional – Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 171. 282 Ibidem, p. 170. 283 Ibidem, p. 171. 284 Idem.

169

primeira é a de não considerar o pagamento antecipado pelo sujeito passivo

como hábil para extinguir a obrigação; (ii) a segunda, a ampliação do prazo de

decadência, cujo “dies a quo” é o da constituição jurídica do ilícito – da própria

notificação.285

Findo os esclarecimentos, passemos ao consequente normativo. Neste

resta prescrita a extinção do direito subjetivo do Fisco proceder ao lançamento

tributário, ato-norma administrativo de lançamento tributário.

3.2.1.2.5 - A Norma Geral e Abstrata da Regra de Decadência do Direito de

Constituir a Obrigação e o Crédito tributário com Nulidade do Lançamento

Anterior.

A disposição legal a partir da qual se constrói essa regra está prescrita

no artigo 173, II, do Código Tributário Nacional.286

Esta norma jurídica tem como hipótese normativa a omissão do fisco

de exercer seu direito subjetivo de constituir a obrigação e crédito tributário,

pela realização do lançamento e pelo decurso do prazo de cinco anos, quando

o lançamento anteriormente realizado pelo fisco continha vício formal e foi

objeto de nulidade.287 O “dies a quo” situa-se na data em que proferida decisão

285 Nas lições de LUCIANO AMARO, Lançamento por homologação e decadência, Resenha

Tributária , p. 343-344; PAULO DE BARROS CARVALHO, Curso..., op. cit., p. 447 e FÁBIO FANUCHI, A decadência e a Prescrição em Direito Tributário, p. 108 e 156, o prazo aplicável é o do artigo 173, I, do Código Tributário Nacional. Em compreensão outra, JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES tem entendimento segundo o qual a solução para essa lacuna deixada pelo Código Tributário Nacional não se extrai subsidiariamente de dispositivos do próprio código. Entende, pois, que esse papel de suprir a lacuna cabe à lei ordinária material, para dispor a respeito desse prazo. Não cabe à doutrina tentar preencher a lacuna, indicando um prazo que é de atribuição dos órgãos legiferantes. Se não há, cabe ao judiciário a solução de tal problema, in Lançamento tributário, Tratado..., op. cit., p. 477-480.

286 “Artigo 173. O direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após 5 (cinco) anos, contados: [...] II - da data em que se tornar definitiva a decisão que houver anulado, por vício formal, o lançamento anteriormente efetuado”

287 Tal decisão é pressuposto para o novo lançamento do Fisco, cuja regra de decadência aplicável consta do artigo 173, II, do Código Tributário Nacional. Entretanto, na doutrina de

170

administrativa ou judicial que declara a nulidade do lançamento realizado

anteriormente, em virtude de vício formal, ou seja, da constituição jurídica do

vício formal. Ressalte-se que, nessa hipótese, existe a ocorrência de nulidade

do lançamento anterior por vício formal, sem pagamento antecipado ou

ilícito.288

Chamamos a atenção para o seguinte aspecto: em se tratando da

esfera administrativa, a competência para declarar nulidade implica a

competência para lançar, ou seja, o prazo para a essa declaração é o mesmo

para o lançamento, respeitado o prazo específico da espécie e, ainda, os

limites estabelecidos no próprio Código Tributário Nacional para a modificação

do lançamento tributário – artigos 142, 145 e 149, “caput”. 289

No consequente da norma encontra-se a prescrição da extinção do

direito subjetivo do Fisco de realizar o lançamento tributário, ato-norma

administrativo de lançamento tributário.

LUCIANO AMARO, embora aceite a aplicação de tal regra decadencial, entende que, através dela, introduz-se, ao mesmo tempo, uma causa de interrupção e de suspensão do prazo decadencial. Suspensão pois, no curso do processo em que se discute a validade do lançamento, não transcorre prazo. Interrupção porque, findo o processo e alcançada a decisão definitiva, o prazo é devolvido na integralidade, sem considerar o período que já transcorreu até o lançamento objeto da discussão pelo vício formal. Na sua lição, “[...] o dispositivo comete um dislate [...] é de uma irracionalidade gritante” – Direito..., 11. ed., op. cit., p. 407. A crítica do autor é no sentido de que esse dispositivo contempla com benevolência o equívoco cometido pelo Fisco de realizar o lançamento com vício formal, o que parece um escudo de proteção injustificado. Seria como “[...] um ‘prêmio’ por ter praticado um ato nulo”. Relembremos que o autor tem como referência a existência de uma regra geral de decadência – artigo 173, I, Código Tributário Nacional – e as demais lhe servem como marco de interrupção de suspensão. Dentro da sua premissa, até se justificaria o seu protesto, entretanto, não em relação à alegada causa suspensiva de curso do prazo decadencial, por entendermos que, se já existe o processo administrativo discutindo o vício do lançamento, é porque esse lançamento foi formalizado, ou seja, não há que se falar em prazo decadencial, tampouco suspensão desse prazo; bem como, em outro argumento, o estabelecimento de causa suspensiva decadencial demanda lei específica, o que não acontece. Reforçamos, a premissa do autor não é a adotada no presente estudo, razão pela qual com ela não concordamos.

288 EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 172-173. 289 Ibidem, p. 173.

171

3.2.1.2.6 - A Norma Geral e Abstrata da Regra de Decadência do Crédito do

Fisco.

A disposição legal que regula esta regra resta prescrita no artigo 156, V

do Código Tributário Nacional. 290

A presente regra exige, para a sua melhor compreensão, a inversão da

ordem sequencial do conteúdo. Antes de mencionar a substância da sua

hipótese, precisamos pontuar algumas importantes informações: esse preceito

diz respeito, não ao ataque ao direito subjetivo do Fisco de constituir a

obrigação e o crédito tributários, de tal sorte a impedir a incidência normativa,

como as demais regras expostas anteriormente, mas atinge o próprio crédito

tributário, este realizado pelo Fisco, com o ato-norma administrativo de

lançamento, ou pelo particular, com o ato-norma instrumental de lançamento.

Existe, pois, um crédito tributário, realizado pelo Fisco ou pelo

particular, porque, para falar-se em extinção, necessariamente, o objeto da

extinção deve existir. A extinção pressupõe o anterior nascimento. Tal como

existe, é presumidamente válido.291

Mas a questão que se impõe é: qual é o crédito tributário sujeito à

extinção ? A resposta é o crédito formalizado, por quem de direito, Fisco ou

Particular, todavia intempestivo. De outro modo, é o crédito decorrente do ato-

norma administrativo de lançamento ou do ato-norma instrumental de

lançamento, realizado fora do prazo decadencial, prazo esse que se aplica

conforme cada caso, de acordo com as regras decadenciais aplicáveis à

particularidade.

Dissemos que é o crédito intempestivo passível de extinção, mas

porque somente ele ? Porque, ao tempo da constituição desse crédito

tributário, já havia decorrido o prazo legal para o exercício do direito subjetivo

290 “Artigo 156. Extinguem o crédito tributário:

[...] V - a prescrição e a decadência;”

291 É o que se extrai a partir do artigo 156, V, do Código Tributário Nacional.

172

do fisco ou do dever jurídico do contribuinte. Assim, havendo crédito tributário

constituído intempestivamente, a regra de decadência fulmina-o, gerando,

portanto, a extinção do crédito formalizada fora do prazo.

Por essa razão, a hipótese normativa da presente regra veicula a

anterior formalização do crédito tributário, pelo Fisco ou contribuinte, realizado

fora do prazo legal, intempestivo.

No consequente da norma encontra-se a determinação da extinção do

crédito tributário, e, por decorrência, a invalidação do lançamento

anteriormente formalizado.292

3.2.2 O Aparente Equívoco Legislativo do Artigo 156, V, do CTN

Existe uma polêmica doutrinária que gira em torno da regra disposta no

artigo 156, V, em virtude da previsão do artigo 173, I, ambos do Código

Tributário Nacional. Em palavras resumidas, o artigo 173, I, do Código

Tributário Nacional, dispõe sobre a perda do direito do Fisco constituir o crédito

pelo decurso do prazo – decadência. O artigo 156, V, do mesmo diploma,

dispõe que a decadência extingue o crédito tributário.

Se a decadência é a perda do direito subjetivo do Fisco de constituir o

crédito, conforme artigo 173, I, já mencionado, então ela pressupõe a não

constituição do crédito tributário. Por esse raciocínio, a referida decadência não

pode extinguir o crédito – artigo 156, V – porque com a sua própria ocorrência,

da decadência, esse crédito nem chegou a nascer, a ser constituído.293

Esta é a controvérsia. Mas, esclareçamos, essa compreensão parte da

premissa segundo a qual existe apenas uma regra tributária de decadência,

292 Estas lições, a respeito dessa regra, estão de conformidade com os ensinamentos de

EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 173-175. 293 Essa é a crítica de AMÉRICO MASSET LABOMBE, Obrigação Tributária, p. 92.

173

uma norma geral e abstrata. E se tal é a proposição, justifica-se a

preocupação.

Todavia, é outra a premissa a partir da qual iniciamos este item:

existem seis diferentes normas gerais e abstratas da decadência tributária, das

quais, as disposições dos artigos 156, V e 173, I, supracitados, integram duas

delas, e se prestam a atacar crédito tributário e o direito subjetivo de formalizá-

lo, respectivamente, o que são coisas diversas. A regra do artigo 156, V, pois,

dispõe, e assim está lógica e juridicamente autorizada, sobre extinção do

crédito, que pressupõe, exatamente porque se trata de extinção, um crédito

constituído, este, todavia, realizado extemporaneamente.294

Sob esse prisma, o artigo 156, V, está autorizado, sem incongruência

jurídica, a estabelecer que a decadência é causa de extinção do crédito

tributário – este nascido, todavia, fora do prazo o que autoriza a aplicação da

regra da decadência para retirá-lo do mundo jurídico.295

3.2.3 A Polêmica “Interrupção” do Prazo Decadencial

O teor da disposição contida do artigo 173, II, do Código Tributário

Nacional, é razão de críticas e controvérsias que tomam conta da doutrina,

quando se fala da questão da interrupção do prazo decadencial. Isso decorre

do conteúdo disposto no artigo, que estabelece o “dies a quo” na “data em que

se tornar definitiva a decisão que houver anulado, por vício formal, o

lançamento anteriormente efetuado”.

Elucidemos o ponto central dessa crítica: ela parte do entendimento

segundo o qual a decadência tributária perfaz-se por uma única e singular

294 EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Decadência..., op. cit., p.175. 295 O que, realmente poder-se-ia tecer de crítica ao artigo 156, do Código Tributário Nacional, é

que a extinção não é apenas do crédito tributário, como se fosse possível extinguir o crédito e a obrigação tributária remanescer produzindo os efeitos jurídicos para o qual foi pré-ordenada. A extinção do crédito tributário gera a extinção da obrigação tributária. Entretanto, como não se pode falar na existência de obrigação sem crédito, a técnica legislativa deveria prever, como título, “extinção da obrigação tributária”.

174

regra jurídica, a do artigo 173, I, do Código Tributário Nacional. E se é esta a

referência, todo e qualquer outro marco legal de “dies a quo” terá o condão de

interferir no “dies a quo” específico da “regra oficial” da decadência. E nessa

esteira, existe a interrupção do prazo decadencial.

Mesmo que partamos da referência segundo a qual não existe apenas

uma regra de decadência tributária, mas, conforme explanado ao longo dos

itens anteriores, existem seis normas gerais e abstratas de decadência

tributária, reguladas pelo artigo 173, incisos I e II, bem como pelo seu parágrafo

único; pelo artigo 150, § 4º, primeira e segunda partes; e pelo artigo 156, V,

todos do Código Tributário Nacional, não se pode refutar a interrupção do

prazo do 173, I, pela regra do artigo 173, II, embora aquela não seja uma regra

geral296

Mesmo diante da existência de seis diferentes regras decadenciais, o

fato é que, tendo havido um lançamento anterior, depois declarado nulo, essa

disposição cria uma interrupção “[...] clara e insofismável”, conforme ensina

PAULO DE BARROS CARVALHO.297

Portanto, não há perturbação jurídica na disposição do artigo 173, II, do

Código Tributário Nacional.298

296 Em sentido diverso, defendendo a não interrupção dos prazos decadenciais, EURICO

MARCOS DINIZ DE SANTI: “[...] os juristas também podem basear-se em sistemas de referência distintos para identificar as normas decadenciais” (sic) – . Decadência..., 2. ed., op. cit., p.177-178.

297 Curso..., 19 ed., p. 503. EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI assevera que não cabe a interrupção do prazo decadencial: “[...] não se interrompe prazo de outra regra nem tem seu prazo interrompido, ela simplesmente incide [a regra] quando realizado o evento decadencial previsto em sua hipótese (decorrer cinco anos do fato da anulação do lançamento anterior por vício formal). Deveras, os prazos de formação relativos às diversas regras decadenciais são intercorrentes, conformando normativamente fatos jurídicos decadenciais distintos, cada qual com o seu termo inicial” (esclarecemos, nos colchetes) – Decadência..., 2. ed., op. cit., p.177.

298 Da mesma forma ALCIDES JORGE COSTA, Da Extinção das Obrigações Tributária, p. 251 e PONTES DE MIRANDA, Tratado..., op. cit., p. 136.

175

3.2.4 Suspensão da Exigibilidade do Crédito Tributário: a Falsa Compreensão

de Suspensão do Prazo Decadencial

A redação do artigo 151 e incisos, do Código Tributário Nacional, é

muito clara no objetivo pretendido pelo dispositivo legal. Arrolou, o legislador,

as formas juridicamente hábeis para suspender a exigibilidade do crédito

tributário. E é claro nesse sentido.

Tratar de suspensão da exigibilidade do crédito tributário implica

entender o que configura essa exigibilidade, de sorte a compreender os

caminhos plausíveis, que podem ser utilizados nessa tarefa de suspensão.

Para ser possível afirmar que o crédito tributário é exigível, faz-se

imprescindível a conjugação de alguns fatores, sem os quais lhe faltará

substância jurídica. É nesse caminho que não pode estar ausente a

formalização do crédito tributário e o esgotamento do prazo legalmente

estipulado para o seu pagamento.

A suspensão da exigibilidade do crédito tributário tem a finalidade de

impedir o direito de exigir o crédito, e não implica a impossibilidade de

formalizá-lo, de realizar o lançamento. É plenamente possível constituir esse

crédito, o que não é autorizado, pela disposição do artigo 151 do Código

Tributário Nacional, é a sua exigência. Suspender a exigibilidade não obsta a

realização do lançamento tributário.299

Justifica-se tal raciocínio por uma questão lógica: suspender a

exigibilidade pressupõe que o objeto que se deseja tornar inexigível exista. De

outra forma, para suspender a exigibilidade do crédito tributário, é necessário

que juridicamente ele exista. E a sua existência jurídica se verifica quando da

299 ALIOMAR BALEEIRO inaugurou o entendimento de que a suspensão do crédito não

influencia nos prazos decadencial e prescricional. Suspensão da Exigibilidade do Crédito Tributário e Prescrição, Revista de Direito Tributário n. 9-10 , p. 15. EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI: “[...] não se cogita de que a suspensão da exigibilidade do crédito possa impedir a prática do lançamento” – Decadência..., 2. ed., op. cit., p.182.

176

sua formalização. Portanto, a suspensão da exigibilidade do crédito pressupõe

a sua existência jurídica, ou seja, que, previamente, tenha sido formalizado. É

preciso que ele seja constituído, juridicamente existente, para que seja

suspenso.

Em contínuo e lógico raciocínio, se não há obstáculo à realização do

lançamento, aquela lição de suspensão do prazo decadencial não prospera.

Não vinga tal ideia porque, se a decadência é a perda do direito subjetivo

dessa tarefa de formalização do crédito, pelo lançamento tributário, e se se

pode realizar esse lançamento, o prazo decadencial não é atingido pela

suspensão.300

3.2.5 – A Revisão do Lançamento e o Prazo Decadencial

Extrai-se das disposições do Código Tributário Nacional – artigos 149 e

150, “caput” §§ 1º e 2º – o permissivo ao Fisco para a realização da revisão.

Esse exercício do controle de legalidade é consumado em casos bem

específicos, como no (i) ato-norma administrativo de lançamento realizado de

ofício, no (ii) ato-norma de homologação expressa e no (iii) ato-norma

instrumental de lançamento – antecipação do pagamento. 301

O exercício dessa tarefa revisional há de ser realizada dentro do prazo

em que o Fisco ainda pode realizar o lançamento tributário, respeitado o prazo

300 Na lição de SACHA CALMON NAVARRO COELHO, Curso de Direito Tributário

Brasileiro, 9. ed., p. 407 e EDUARDO JARDIM, Manual de Direito Financeiro e Tributário, p. 290. EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI ensina: “[...] não há que se falar em suspensão do prazo decadencial do direito de o Fisco lançar, a menos que tenha havido medida liminar proibindo expressamente a efetivação do lançamento, mas, nesse caso, o que ocorre é a suspensão da possibilidade de lançar. [...] a suspensão da exigibilidade do crédito tributário não afeta o prazo de decadência do direito do Fisco efetuar o lançamento tributário, salvo quando houver liminar impeditiva do exercício desse dever” – Decadência..., 2. ed., op. cit., p.182. Entendemos nessa conformidade. Para a possibilidade da ressalva de ser atingido o prazo decadencial em caso de concessão de liminar proibitiva da edição do lançamento, estaremos diante, como dito, de uma ressalva/exceção à regra de não interferência no curso do prazo decadencial.

301 Ibidem, p.181.

177

particular das regras decadenciais de cada específico lançamento, ou seja,

quando não extinto o direito subjetivo do Fisco de constituir o crédito.

Atenção para o seguinte aspecto: a revisão implica a observância de

dois prazos decadenciais, relativos à (i) realização da revisão e à (ii) realização

do lançamento de ofício que é dessa revisão decorrente.302

3.2.6 - A Tese dos Dez Anos de Decadência do Direito do Fisco em Caso de

Tributos Sujeitos à Antecipação de Pagamento

Analisamos a aplicação da regra de decadência do direito do Fisco de

constituir o crédito tributário, pelo lançamento, quando ocorre o pagamento

antecipado, por parte do sujeito passivo e para a qual se aplica o disposto no

artigo 150, § 4º, primeira parte, do Código Tributário Nacional. Em resumidas

palavras, ficou claro o decurso do prazo de cinco anos, cujo “dies a quo” dá-se

quando da ocorrência do evento, e a inércia do Fisco em promover a

conferência do pagamento antecipado para posterior homologação, – hipótese,

– cujo resultado jurídico é a extinção do direito subjetivo do Fisco realizar a

homologação, simultaneamente, com a extinção do direito subjetivo do Fisco

proceder ao lançamento de ofício – consequente.

Não foi, todavia, nessa fonte que o Superior Tribunal de Justiça bebeu,

para se inspirar e constituir o seu entendimento a respeito da aplicação da

regra de decadência para o Fisco realizar os lançamentos relativos aos tributos

sujeitos ao pagamento antecipado.

Por algum tempo as decisões judiciais seguiram uma compreensão

que gozou de prestígio no Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual, para o

“lançamento por homologação” não realizado ou realizado com dolo, sustentou-

se a aplicação do artigo 173, I, do “codex”, porém, com um termo inicial de

contagem de lógica muito particular.

302 Idem.

178

Esse entendimento, firmado por essa Corte Superior, ficou conhecido

como a tese dos dez anos, tamanho o seu arrojo, à época, novel compreensão

que ampliou o prazo no qual o Fisco estava juridicamente habilitado a

formalizar o crédito – editar o ato-norma administrativo de lançamento – de

cinco para dez anos.

Foi uma decisão de relatoria do Ministro HUMBERTO GOMES DE

BARROS que nasceu a tese inaugural, a qual, paradoxalmente, à medida que

utiliza o mesmo fundamento normativo do que defende a doutrina dominante,

dessemelha-se dela. Veja-se a ementa:

TRIBUTÁRIO - CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA - CONSTITUIÇÃO DO CREDITO TRIBUTÁRIO - DECADÊNCIA - PRAZO (CTN ART. 173). I - o art. 173, I do CTN deve ser interpretado em conjunto com seu art. 150, par. 4. II - o termo inicial da decadência prevista no art. 173, I do CTN não e a data em que ocorreu o fato gerador. III - a decadência relativa ao direito de constituir credito tributário somente ocorre depois de cinco anos, contados do exercício seguinte aquele em que se extinguiu o direito potestativo de o estado rever e homologar o lançamento (CTN, art. 150, par. 4.). IV - se o fato gerador ocorreu em outubro de 1974, a decadência opera-se em 1. de janeiro de 1985 (sic).303

Destaque-se que a tese, que resumidamente está consignada nessa

ementa, faz menção a dois dispositivos que regulam duas regras distintas da

decadência do direito subjetivo do Fisco efetuar o lançamento: artigos 173, I e

154, § 4º, ambos do Código Tributário Nacional.

Em nome de uma melhor apreensão do conteúdo a ser exposto,

pedimos vênia para a transcrição dos supramencionados dispositivos legais:

Art. 173. O direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após cinco anos, contados:

303 Brasil . Superior Tribunal de Justiça , Recurso Especial nº. 58918/RJ, Relator Ministro

Humberto Gomes de Barros, DJ 19.06.1995, p. 18646.

179

I – do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado;

Art. 150. O lançamento por homologação, que ocorre quanto aos tributos cuja legislação atribua ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa, opera-se pelo ato em que a referida autoridade, tomando conhecimento da atividade assim exercida pelo obrigado, expressamente a homologa.

(...)

§ 4º Se a lei não fixar prazo a homologação, será ele de cinco anos, a contar da ocorrência do fato gerador; expirado esse prazo sem que a Fazenda Pública se tenha pronunciado, considera-se homologado o lançamento e definitivamente extinto o crédito, salvo se comprovada a ocorrência de dolo, fraude ou simulação.

A tese dos dez anos deu nova interpretação à disposição normativa

contida no art. 173, I, segundo a qual, mesmo depois de transcorrido o prazo

de cinco anos a que alude o dispositivo em destaque, seria lícito ao fisco, em

razão da palavra “poderia”, constituir a obrigação e crédito tributário, pelo

lançamento. Em outras palavras, permitiu-se ao Fisco, com tal interpretação,

promover o lançamento tributário quando, segundo o sistema, não mais se tem

prazo para a formalização desse ato administrativo.

Todavia, não parou aí o entendimento, que passou a conjugar as

regras do artigo 173, I, com a do artigo 150, § 4º: o início da contagem do

prazo não é o primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento

poderia ter sido efetuado, mas no exercício seguinte ao término dos cinco anos

contados a partir do evento. Entendimento esse que faz o prazo de

decadência, para o Fisco, chegar a 10 anos.

Assim, segundo a tese dos dez anos, o lançamento deve ser realizado

em cinco anos a contar do evento. Se não o for, esgotado esse lapso temporal

– quando não mais puder ser efetuado –, inicia-se outro prazo, de cinco anos,

este contado a partir do exercício seguinte ao do esgotamento do prazo.

Em termos práticos, nesse caso de tributo sujeito à antecipação do

pagamento, se o evento – “fato gerador” nos termos da lei – ocorrer em

12/01/2000, sem a realização do pagamento pelo sujeito passivo, inicia-se,

pois, o prazo de cinco anos para o Fisco efetuar o lançamento. O seu

180

esgotamento ocorre em 12/01/2005. A partir desse marco, abre-se outro prazo:

o primeiro dia do exercício seguinte a esse esgotamento, que é 01/01/2006, do

qual se contam mais cinco anos para o Fisco, enfim, realizar o lançamento.

Esse tempo perfaz 10 anos a favor do Fisco nessa tarefa de constituição do

crédito.

Essa tese é refutável, em razão de diversas justificativas jurídicas

plausíveis. Nessa esteira, chamamos o escólio de EURICO MARCOS DINIZ

DE SANTI, segundo o qual, como primeira crítica, a interpretação é construída

conjugando os artigo 173, I, e 150, § 4º, do Código Tributário Nacional, na

medida em que concebe o prazo decadencial a partir do primeiro dia do

exercício subsequente àquele em que expirou a possibilidade de lançar

contada, por sua vez, da data do evento. A impossibilidade de conjugação dos

artigos supramencionados encontra fundamento e complementação nas duas

críticas seguintes e, ainda, no fato de que tratam, esses dispositivos, de

realidades distintas e, portanto, aplicáveis a casos, também, diferentes.304

Segundo, porque a interpretação dada ao vocábulo “poderia”,

constante do artigo 173, gera o que DE SANTI chama de “[...] recursividade

[...]”, ou seja, tem a propriedade de que pode ser repetido. Isso quer dizer que

a demarcação de início do prazo de um lançamento ‘i’ é o esgotamento do

prazo do lançamento ‘ii’, e isso não gera óbice para que o esgotamento do

prazo do lançamento ‘i’, seja o início do prazo para qualquer outro lançamento.

A escolha do “dies a quo” na data da perda da possibilidade de lançar faz

tender ao infinito a ocorrência da decadência do direito do Fisco promover o

lançamento, o que gera a recursividade. A consequência prática é desvirtuar a

finalidade do dispositivo de extinguir o direito de lançar e de forma a não o

eternizar.305

Terceiro, em razão de a análise recair na decadência do direito de o

Fisco lançar, em caso de tributo sujeito a antecipação de pagamento, e sem a

realização deste, não se justifica a aplicação do artigo 150, § 4º, do Código

304 EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Decadência..., 2. ed., op. cit., p.187-197. 305 É o que HUGO DE BRITO MACHADO e HUGO DE BRITO MACHADO SEGUNDO chama

de “[...] verdadeiro looping [...]” – Arts. 150, § 4º e 174 do CTN. Decadência e Prescrição. Prazos. Revista Dialética..., op. cit., p. 138.

181

Tributário Nacional. Não cabe porque o ato-norma de homologação pressupõe

o ato-norma instrumental de lançamento com o pagamento antecipado. Em

virtude de não haver esse pagamento, a homologação perde o seu objeto.

Portanto, diante da ausência do pagamento antecipado, a regra utilizada deve

ser a da decadência do direito subjetivo de realizar o lançamento sem o

pagamento antecipado, veiculada no artigo 173, I, do Código Tributário

Nacional, ou seja, o primeiro dia do exercício seguinte àquele que poderia ter

havido o lançamento. 306

Não encontra resguardo teórico-jurídico essa construção, restando

inaceitável a aplicação cumulativa dos prazos apregoados nos artigos 173, I, e

150, § 4º, do “codex”, ofertando ao Fisco a benesse do prazo decenal.307

Para alívio da boa ciência, esse prazo alargado concedido ao Fisco

perdeu força e já não mais prospera no Superior Tribunal de Justiça.308

Uma vez tratado dos casos de decadência que se reputam importantes

para efeito deste trabalho, já se pode avançar para o estudo dos casos de

prescrição que reputamos importantes ao estudo.

3.3 PRESCRIÇÃO DO DIREITO DO FISCO

3.3.1 As Normas Gerais e Abstratas da Prescrição do Direito do Fisco

306 Essa é a lição de LÚCIA VALLE FIGUEIREDO, Curso..., op. cit., p. 137 e de RICARDO

LOBO TORRES, Curso de Direito Financeiro e Tributário, p. 242. Nesse mesmo sentido, SACHA CALMON NAVARRO COELHO, A decadência e a Prescrição em matéria Tributária, Revista Ibero-Americana de Direito Público , p. 224 e LUCIANO AMARO, Direito..., 11. ed., op. cit., p. 408-409.

307 Essa é a doutrina de ALBERTO XAVIER, Do Lançamento no Direito Tributário Brasileiro, p. 91-104. O mesmo autor expressa repulsa a essa tese, in A Contagem dos prazos no lançamento por homologação. Revista Dialética de Direito Tributário n. 27 , p. 7.; HUGO DE BRITO MACHADO, HUGO DE BRITO MACHADO SEGUNDO, Tributário. Arts. 150, § 4º e 174 do CTN. Decadência e Prescrição. Prazos, Revista Dialética..., op. cit., p. 137-138.

308 Como se verifica dos atuais precedentes da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça: AgRg no Ag 1315679/SP, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES , DJe 09/06/2011 e Segunda Turma: EDcl no REsp 1162055/SP, Rel. Ministro CASTRO MEIRA , DJe 14/02/2011.

182

Consignamos, precedentemente acerca da decadência do direito do

Fisco, que ambos os institutos têm estrutura de norma jurídica, razão pela qual

se contemplam, na sua composição, uma hipótese e um consequente,

conectados por um juízo hipotético-condicional.

Todavia, a prescrição tributária contém não apenas uma hipótese

fática, mas várias, e cada uma delas tem a sua correspondente norma geral e

abstrata.

É na perspectiva dessas normas gerais e abstratas da prescrição

tributária, positivadas em seis dispositivos do Código Tributário Nacional, que

depositaremos a atenção. Nesse plano de normas gerais e abstratas, nas

diversas hipóteses da regra de prescrição do direito subjetivo do Fisco,

localizamos um conteúdo que perfaz a sua ideia nuclear: o decurso do tempo

“[...] qualificado pela omissão do Fisco no exercício do direito de ação”. Da

mesma maneira, como ideia central veiculada no consequente, estão: (i)

extinção do direito ao crédito – disposto numa só regra, artigo 156, V, do

Código Tributário Nacional – e a (ii) previsão da extinção do direito subjetivo do

Fisco à ação executiva fiscal.

Esta segunda ideia disposta no consequente não é composta numa

única regra, mas em quatro diferentes normas, as quais são formadas pelo

combinado de alguns critérios, quais sejam: (i) a ocorrência ou não da

constituição do crédito pelo contribuinte sem o pagamento antecipado; (ii) a

ocorrência ou não da constituição do crédito pelo lançamento; (iii) a ocorrência

ou não das hipóteses de suspensão da exigibilidade antes do vencimento do

prazo para pagamento do crédito tributário, e (iv) ocorrência ou não das

hipóteses de reinício do prazo de prescrição. Trata-se de um trabalho

interpretativo, de análise e construção, que tem como base as disposições do

Código Tributário Nacional. 309

Assim como fizemos no estudo da decadência, para fins didáticos, as

informações e análises relativas a cada uma das regras serão apresentadas

com o mesmo padrão de sequência. Será informado o dispositivo legal a ela

309 EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 217 e 221.

183

aplicável, e o conteúdo da hipótese e o conteúdo do consequente. Caso seja

necessário, abriremos, dentro do item específico de cada regra de prescrição,

subitens, para tratar de temas polêmicos relacionados às referidas regras.

Antes, todavia, de ingressar nas regras conformadoras das normas

gerais e abstratas da prescrição do direito do fisco, fazemos dois destaques

importantes para a compreensão da prescrição; sendo que primeiro deles diz

respeito à questão da definitividade, e o segundo atine à exigibilidade, ambos

relacionados com uma realidade única, a do lançamento tributário.

3.3.1.1 A Definitividade do Crédito Tributário

Dentro da temática da prescrição tributária, o objeto primeiro de foco,

necessariamente, é o crédito tributário. E, é o crédito em virtude de o mesmo

ser pressuposto inafastável para a pretensão executiva do sujeito ativo da

relação jurídica obrigacional. Contudo, esse crédito deve estar revestido da

condição jurídica necessária para esse fim; e tal condição jurídica é a edição da

norma individual e concreta, ou seja, é a constituição do crédito tributário, de

que tratamos no capítulo anterior.

Direcionamos nossa preocupação de análise, neste momento, não

para a fase que compreende do evento até o lançamento tributário – período

no qual se analisam as circunstâncias jurídicas que justificam a decadência, e

que já foi objeto de estudo na primeira parte do presente capítulo, mas para a

fase que abrange desde o lançamento tributário até a satisfação da pretensão

executiva do sujeito detentor da titularidade do crédito, trecho o qual se

averiguam as conjunturas capazes de atuar a favor da prescrição.310

310 A dinâmica através da qual o crédito tributário nasce, vive e morre, compreende do exercício

da competência impositiva do Estado, até a sua execução do crédito – EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, nos passos de PAULO DE BARROS CARVALHO chama de “[...] processo de positivação [...]” – Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 213; RICARDO LOBO TORRES, chama de “[...] processo de concreção do crédito tributário [...]” – Curso..., op. cit., p. 233.

184

Dentre tantas circunstâncias relacionadas ao intermédio jurídico

constituidor e veiculador do crédito, o lançamento tributário, que serão

averiguados no decorrer do presente trabalho, o destaque inicial fica por conta

do assunto da “definitividade”.

A razão de incluir a definitividade no espectro da prescrição, justifica-se

em virtude de que a regra jurídica veiculada no artigo 174, “caput”, do Código

Tributário Nacional, prescreve, imperativamente, a condição definitiva do

crédito tributário. Não só por isso, mas, ainda, porque impõe, como “dies a quo”

do prazo prescricional, essa condição de definitividade do crédito.

Numa primeira leitura do enunciado legal sem muita reflexão sobre

essa questão, a definitividade lá prevista pode apresentar a conotação relativa

à impossibilidade de modificação. Não é, todavia, a leitura acertada que se

deve levar a efeito. E a razão é clara, a fórmula definitividade do lançamento

tributário não significa imutabilidade, mas tão somente a finalização/conclusão

e notificação do lançamento por parte do sujeito que detém essa titularidade.311

A constituição do crédito tributário, ou seja, a realização do lançamento

tributário e a sua devida notificação para pagamento é, sozinha, razão

suficiente de definitividade. Essa providência prescinde de qualquer outro ato.

A formalização é, pois, uma espécie de autoconcessão de definitividade. Uma

vez constituído o crédito, e notificado, definitivo é. Essa definitividade não

afasta a sua sujeição à modificação ou desconstituição, seja por intermédio de

decisão administrativa ou judicial.312

311 Contrário é o argumento de HUGO DE BRITO MACHADO, para o qual a relação que dá ao

crédito a definitividade é a impossibilidade jurídica de discussão, ou seja, quando não mais couber a interposição de qualquer meio de defesa, que ainda torne o crédito possível de modificação – Curso de Direito Tributário, 6. ed., p. 148.

312 É a lição que se extrai de EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI: “Não cabe, portanto, interpretar constituição definitiva em oposição a constituição provisória. Sistematicamente, parece-nos que a preocupação do legislador do Código Tributário Nacional foi contrapor a noção dinâmica de procedimento, prevista no Artigo 142, ao produto final desse processo: o crédito tributário formalizado pelo lançamento regularmente notificado ao sujeito passivo. Definitividade, assim, deve ser interpretado como a qualidade do que foi produzido, tal qual ficou” – Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 215. O argumento doutrinário do qual se valeu teve como fonte o escólio de ALBERTO XAVIER, in Do Lançamento: Teoria Geral do Ato, do Procedimento e do Processo Tributário, p. 93.

185

Se a imposição legal disposta no artigo 174, “caput”, do Código

Tributário Nacional, refere-se à definitividade como marco inicial para o decurso

do prazo prescricional, e se essa definitividade perfaz-se com a constituição do

crédito tributário, incluída, reforçamos, a notificação do sujeito passivo, o “dies

a quo” prescricional é a data de constituição desse crédito tributário, ou seja,

quando formalizado o lançamento tributário.313

3.3.1.2 A Exigibilidade do Crédito Tributário

Dissemos, linhas atrás, que a hipótese contida na regra da prescrição

tributária veicula uma ideia nuclear, que é conformada pela soma de dois

fatores, quais sejam, o decurso do tempo e a omissão do Fisco no exercício da

pretensão executiva.

Contudo, o exercício dessa pretensão a que tem direito o Fisco, a ação

de execução, pressupõe que o objeto sobre o qual recai o pleito, o crédito

tributário constituído, agregue uma condicional importante: a possibilidade

jurídica de ser cobrado. De outra maneira, o crédito tributário que fora, porque

nos reportamos a momento anterior, constituído, ou seja, já estabelecido no

mundo jurídico, deve ser exigível. “Não basta somente que o crédito esteja

instalado no sistema com notificação regular, líquido e certo, requer-se também

que seja exigível”.314

Nesse contexto da regra prescricional, a exigibilidade do crédito implica

o esgotamento do prazo para a realização do seu pagamento, lapso temporal

fixado em lei ou, do contrário, esse prazo transcorre conforme o artigo 160 do

Código Tributário Nacional, que estabelece 30 dias após a notificação do

lançamento ao sujeito passivo da sua obrigação.

De maneira concisa e coerente, a hipótese da Prescrição Tributária do

Fisco exige a transcorrência do tempo e a omissão do fisco de exercer o direito 313 EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 217. 314 Ibidem, p. 218.

186

subjetivo da ação executiva. Por sua vez, a omissão só se configura diante da

exigibilidade do crédito tributário. A exigibilidade, a seu turno, requer decurso

do prazo para pagamento do crédito constituído. “Sem a exigibilidade, não há

omissão, tão-somente fluxo de tempo” e portanto, não se configura a hipótese

da prescrição do direito do Fisco. 315

Portanto, quando o Código Tributário Nacional, no artigo 174, “caput”,

menciona o prazo de cinco anos e o seu “dies a quo” contado da constituição

definitiva, ele o faz considerando que o crédito tributário foi realizado,

regularmente notificado o sujeito passivo e dele decorreu o prazo para o seu

pagamento, porque necessário à exigibilidade.316

A prescrição tributária, por conseguinte, exige a compreensão de que o

crédito tem que ser exigível – pelo transcurso do prazo para o seu pagamento,

estabelecido em lei específica ou em 30 dias da notificação, conforme artigo

160 do “codex” – dentro desse prazo de cinco anos do artigo 174, do Código

Tributário Nacional, sem que o Fisco tenha exercido a sua pretensão executiva,

caracterizando a omissão.

Esse esquema lógico de transcurso do prazo prescricional, cujo

referencial primeiro é a constituição definitiva do crédito, é alterado em razão

de um único fator, que é a ocorrência de causa suspensiva da sua exigibilidade

– artigo 151 e incisos do Código Tributário Nacional –, mas com uma especial

particularidade: quando ocorrer essa causa antes do decurso do prazo para o

pagamento do crédito, ou seja, antes da sua exigibilidade, ocasião na qual o

“dies a quo” do prazo prescricional é deslocado da constituição definitiva do

crédito para a data em que finda a causa suspensiva. Essa é a singular

situação de suspensão da exigibilidade do crédito capaz de modificar o “dies a

quo” do prazo prescricional, pois, se ocorrer uma causa suspensiva após a sua 315 Destaca EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI: “Em verdade, o fato da regra de prescrição

só pode ser considerado como fato jurídico no termo final do prazo juridicamente qualificado, antes disso não há fato jurídico, mas tão-apenas fluxo de tempo e conduta” – Ibidem p. 218-219. Ideia, também, exposta no artigo intitulado Prescrição do Direito do Fisco, Suspensão da Exigibilidade e Segurança Jurídica in Revista Dialética..., op. cit., p.111.

316 EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI ressalta: “Assim, o Código Tributário Nacional concilia o princípio da ‘actio nata’ com o primado da segurança jurídica, estipulando ‘dies a quo’ facilmente determinável e independente da legislação ordinária, sem qualquer prejuízo para o Fisco ou para o contribuinte” – Ibidem, p. 218.

187

constituição definitiva, a suspensão da exigibilidade em nada influencia o termo

inicial do prazo prescricional, pois este já teve inicio.317

Por preciosismo, reforçamos: em se tratando de suspensão de prazo,

uma vez finda a situação legal que justifica a suspensão, o lapso de tempo

paralisado, em razão da suspensão, é descontado.318

3.3.1.3 As Regras Conformadoras das Normas Gerais e Abstratas da

Prescrição do Direito do Fisco

3.2.1.3.1 A Norma Geral e Abstrata da Regra de Prescrição do Direito de

Cobrar Judicialmente o Crédito Tributário: Constituição pelo Contribuinte, sem

Pagamento Antecipado

A disposição legal a partir da qual se constrói essa regra resta prescrita

nos artigos 174; e 150, §§ 1º e 4º, do Código Tributário Nacional.

Essa norma jurídica tem como hipótese normativa o não exercício, por

parte do Fisco, do seu direito subjetivo de ação, no prazo de cinco anos,

quando o contribuinte formaliza o crédito tributário e não o paga, e o “dies a

quo” encontra-se da data na qual o contribuinte entrega ao Fisco o documento

de formalização do crédito por ele realizada; por exemplo, a Declaração de

Débitos e Créditos Tributários Federais-DCTF ou a Guia de Informação e

Apuração-GIA, documento no qual fez constar o valor devido a título de

317 Esse é o ensinamento de EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Decadência. 2. ed., op. cit.,

p. 229 e de IVES GANDRA DA SILVA MARTINS, in Prescrição e Decadência, Revista Dialética de Direito Tributário, n. 111, p. 37. Não é essa, porém, a lição de LUCIANO AMARO, segundo o qual, as causas suspensivas da exigibilidade do crédito tributário – artigo 151, do Código Tributário Nacional – não são capazes de suspender o prazo prescricional: “Não se alegue que, no curso do prazo para a reclamação ou recurso, o sujeito ativo ainda não pode acionar o sujeito passivo, e por isso, logicamente, não poderia estar em curso o prazo prescricional” – Direito..., 13. ed., op. cit., p. 415.

318 EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 220.

188

imposto, e esse momento no qual se considera definitivamente formalizado o

crédito319-320.

Esclarecemos que, iniciado o prazo prescricional, caso haja alguma

causa de suspensão da exigibilidade do crédito, nos termos do artigo 151, do

Código Tributário Nacional, esse tempo em suspenso será dele abatido.

O consequente da norma veicula a extinção do direito subjetivo do

Fisco de cobrar judicialmente o crédito a que tem direito, de conformidade com

o artigo 174, do Código Tributário Nacional.

319 Ibidem, p. 221. 320 PAULO DE BARROS CARVALHO, ensina que são sujeitos credenciados a emitir a norma

individual e concreta relativa à percussão tributária tanto a Administração Pública quanto o contribuinte: “Quando se fala em expedição de norma jurídica individual e concreta vem, desde logo, à nossa mente, o desempenho de um órgão da Administração ou do Poder Judiciário. E, se passarmos apressadamente, sem refletir, essa ideia equivocada irá provocar um bloqueio, fixando o preconceito de que o administrado, na esfera de suas múltiplas possibilidades de participação social, reguladas pelo direito, esteja impedido de produzir certas normas individuais e concretas. Mas, não é assim no direito brasileiro. Basta soabrirmos os textos do ordenamento positivo, no que concerne aos tributos, para verificarmos esta realidade empírica indiscutível: o subsistema prescritivo das regras tributárias prevê a aplicação por intermédio do Poder Público, em algumas hipóteses, e, em outras, outorga esse exercício ao sujeito passivo, de que se espera, também, o cumprimento da prestação pecuniária” – Curso..., op. cit., p. 283. Em raciocínio diverso, ALBERTO XAVIER, ensina que a constituição do crédito tributário decorre somente do lançamento, atividade que é vinculada e obrigatória , conforme o artigo 142 do Código Tributário Nacional, Do Lançamento: teoria..., op. cit., p. 428. Na doutrina de LUCIANO AMARO, não há lugar para se cogitar de regra de prescrição cujo prazo se inicia com a constituição do crédito realizada pelo contribuinte. Isso porque não concebe a ideia de o contribuinte ser sujeito com habilitação legal para a constituição do crédito tributário por intermédio de norma individual e concreta, mas apenas o Fisco pode fazê-lo. Tal posicionamento vira as costas para a vontade do legislador, quando dispôs no artigo 150 do Código Tributário Nacional, e, muito mais, ignora a prática mais comum do ambiente tributário: a antecipação do pagamento pelo contribuinte, que pressupõe a formalização do crédito tributário por ele realizada. Direito..., 13. ed., op. cit., p. 404. HUGO DE BRITO MACHADO e HUGO DE BRITO MACHADO SEGUNDO até entendem pela possibilidade de constituição de crédito tributário pelo contribuinte, entretanto, não é atribuição exclusiva dele – quando se refere a lançamento por homologação –, deve haver, necessariamente, a participação da autoridade competente, com a respectiva homologação: “Assim, a atividade de apuração ou liquidação, desenvolvida pelo sujeito passivo, sendo privativa da autoridade administrativa (CTN, artigo 142), só produz os efeitos que lhe são próprios quando por esta homologada. Se não há homologação, não há lançamento. Não se constitui crédito tributário” – Tributário. Arts. 150, § 4º e 174 do CTN. Decadência e Prescrição. Prazos, Revista Dialética..., op. cit., p. 135.

189

3.3.1.2.2 A Norma Geral e Abstrata da Regra de Prescrição do Direito de

Cobrar Judicialmente o Crédito Tributário: Constituição pelo Contribuinte, e

sem Pagamento Antecipado, com Causa de Suspensão Antes do Prazo de

Pagamento

A disposição legal a partir da qual se constrói essa regra está prescrita

nos artigos 174, 159 e 151, do Código Tributário Nacional.

Esta norma jurídica tem como hipótese normativa a omissão do Fisco

no exercício do seu direito subjetivo de promover a ação executiva, no decurso

de prazo de cinco anos, quando o contribuinte constitui o crédito tributário, não

realiza o pagamento antecipado e ocorre uma causa de suspensão da

exigibilidade do crédito antes do mesmo torna-se exigível. O “dies a quo” conta

da data na qual finda a causa suspensiva da exigibilidade do crédito

tributário.321

O consequente da norma veicula a extinção do direito subjetivo do

Fisco de cobrar judicialmente o crédito a que tem direito, de acordo com o

artigo 174, do Código Tributário Nacional.

3.3.1.2.3 A Norma Geral e Abstrata da Regra de Prescrição do Direito de

Cobrar Judicialmente o Crédito Tributário: Constituição pelo Fisco

A disposição legal a partir da qual de constrói essa regra repousa

prescrita nos artigos 174, 142 e 145, do Código Tributário Nacional.

Esta norma jurídica tem como hipótese normativa a omissão do Fisco

no exercício do seu direito subjetivo de promover a ação executiva, no decurso

321 Isso porque, se a causa suspensiva do crédito tributário se deu antes da sua exigibilidade, o

“dies a quo” do prazo prescricional conta da data em que termina a causa suspensiva, quanto a exigibilidade do crédito tributário, na conformidade com a lição de EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 229.

190

do prazo de cinco anos, quando o próprio Fisco constitui o crédito tributário,

realiza o lançamento.322 O “dies a quo” conta da data da regular notificação do

lançamento.323

O consequente da norma veicula a extinção do direito subjetivo do

Fisco de cobrar judicialmente o crédito a que tem direito, segundo o artigo 174,

do Código Tributário Nacional.

3.3.1.2.4 A Norma Geral e Abstrata da Regra de Prescrição do Direito de

Cobrar Judicialmente o Crédito Tributário: Constituição pelo Fisco, com causa

de Suspensão Antes do Prazo de Pagamento

A disposição legal a partir da qual se constrói essa regra reside

prescrita nos artigos 174 e 151, do Código Tributário Nacional.

Esta norma jurídica tem como hipótese normativa a omissão do Fisco

no exercício do seu direito subjetivo de promover ação executiva no decurso de

prazo de cinco anos, quando o próprio Fisco constitui o crédito tributário –

realiza o lançamento – e ocorre uma causa suspensiva na sua exigibilidade

antes do prazo para o seu pagamento, ou seja, antes da sua exigibilidade. O

“dies a quo” conta da data na qual findou a causa suspensiva do crédito.

322 EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Decadência..., op. cit., p. 222 e 226. 323 Se pressupormos que, na regular notificação está embutida a ideia de exigibilidade, ou seja,

que exista a notificação ao sujeito para a realização do pagamento com o transcurso do prazo para esse pagamento, não há razão para discordar do “dies a quo” ser apontado como a data da regular notificação. Talvez fosse mais prudente, no entanto, mencionar o “dies a quo” como a data da constituição definitiva, porque fica claro que ela pressupõe a exigibilidade. Apontar a notificação parece ignorar que dela se faz necessário decorrer o prazo legal para o pagamento, necessário para a exigibilidade do crédito. Nesse sentido, apregoa PAULO DE BARROS CARVALHO: “A contagem do prazo tem como ponto de partida a data da constituição definitiva do crédito, expressão que o legislador utiliza para referir-se ao ato de lançamento regularmente comunicado (pela notificação) ao devedor” – Curso..., op. cit., p. 485. Destaque-se que essa definitividade de que tratamos não diz respeito à imutabilidade, muito embora seja essa a doutrina de SACHA CALMON NAVARRO COÊLHO, Curso..., 6. ed., op. cit., p. 723 e HUGO DE BRITO MACHADO, Curso..., 14. ed., op. cit., p. 464.

191

O consequente da norma veicula a extinção do direito subjetivo do

Fisco de cobrar judicialmente o crédito a que tem direito, na linha do artigo 174,

do Código Tributário Nacional.

3.3.1.2.5 A Norma Geral e Abstrata da Regra de Prescrição do Direito de

Cobrar Judicialmente o Crédito Tributário: com Causa Interruptiva do Prazo

A disposição legal a partir da qual se constrói essa regra resta

estabelecida no artigo 174, parágrafo único, do Código Tributário Nacional.

Esta norma jurídica tem como hipótese o curso do prazo prescricional

relativo a um crédito formalizado tanto pelo Fisco quanto pelo contribuinte –, a

incidência de uma causa interruptiva – artigo 174, parágrafo único, do “codex”:

despacho do juiz que ordenar a citação, protesto judicial, ato que constitua o

devedor em mora e o reconhecimento do débito pelo devedor – e a omissão do

Fisco, no exercício da ação executiva, no decurso de prazo de cinco anos,

contados da data da ocorrência de qualquer uma das causas interruptivas, a

partir das quais se inicia o novo prazo de cinco anos. 324

O consequente da norma veicula a extinção do direito subjetivo do

Fisco de cobrar judicialmente o crédito a que tem direito, nos termos do artigo

174, do Código Tributário Nacional.

324 Destaque-se que na posição teórica de EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, a construção

desta regra faz menção a reinício, como prefere o autor, in Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 227. Especificamente sobre essa temática, ensina EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI: “[...] o despacho do juiz ordenando a citação tem a finalidade de reconhecer juridicamente que, com a propositura da ação, se operou o termo consumativo da prescrição, interrompendo-se o seu curso. Ao mesmo tempo, [...] estipulando o final do processo como novo prazo para eventual exercício do direito de ação, e.g., no caso de suceder a coisa julgada formal” (sic) – Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 233.

192

3.3.1.2.6 A Norma Geral e Abstrata da Regra de Prescrição do Direito ao

Crédito Tributário

A disposição legal a partir da qual se constrói essa regra encontra-se

fixada no artigo 156, V, do Código Tributário Nacional.

Nas regras anteriores o foco era a perda da possibilidade jurídica de o

Fisco realizar a sua pretensão executiva fiscal. Diferentemente, esta regra diz

respeito à perda do direito ao crédito tributário. Todavia, essa perda do direito

ao crédito tributário decorre do transcurso do prazo prescricional de todas as

outras regras prescricionais.

Assim, a hipótese normativa da presente regra é o decurso do prazo

prescricional previsto nas demais regras de prescrição, o que, invariavelmente,

obstará ao Fisco exercer a sua pretensão executiva.

O consequente da norma veicula a extinção do crédito tributário, de

acordo com o artigo 156, V, do Código Tributário Nacional.

3.3.2 A Lei de Execuções Fiscais – Lei Nº 6.830/80 e a Prescrição Tributária

3.3.2.1 A Exigibilidade do Crédito e a Hipótese de Suspensão do Prazo

Prescricional – Artigo 2º, §3º

O Código Tributário Nacional, artigo 151 e incisos, prevê as hipóteses

de suspensão da exigibilidade do crédito tributário. Tais hipóteses são capazes

de suspender o curso do prazo prescricional, algumas antes e outras depois da

exigibilidade do crédito. Somada à situações legais hipotéticas do “codex”, com

força de suspender o transcurso do prazo prescricional, existe uma hipótese

193

positivada no artigo 2º, § 3º da Lei n. 6.830/1980 – Lei de Execuções Fiscais,

que também tem esse condão.

A possibilidade jurídica de o Fisco exercitar a sua pretensão executiva

fiscal, exige que seja realizado o controle de legalidade, para apurar a certeza

e a liquidez do crédito tributário, por intermédio da sua inscrição em dívida ativa

– a inscrição do crédito tributário nos livros de dívida ativa. Assim, uma vez que

o crédito se torna exigível e realizada a aludida inscrição, em benefício do

Fisco, é concedido um período de suspensão da prescrição de cento e oitenta

dias (180) dias ou até que a ação executiva fiscal seja distribuída, caso ocorra

no interstício desse prazo. Findo o qual, sem providência alguma do Fisco, o

prazo prescricional volta a correr.

Note-se que a previsão do artigo 2º § 3º, da Lei nº 6.830/1980, tem

uma especial nuance: enquanto as circunstâncias suspensivas previstas no

artigo 151 e incisos do Código Tributário Nacional, quando ocorridas após a

exigibilidade do crédito, impossibilitam juridicamente a atividade do Fisco de

exercer a sua pretensão executiva, aquela previsão da Lei de Execuções

Fiscais não inviabiliza o ajuizamento da ação executiva, uma vez que abre,

explicitamente, margem a esse exercício dentro do intervalo dos cento e oitenta

dias 180 (cento e oitenta) dias concedidos de suspensão da prescrição. Se é

assim, outra conclusão não se pode tirar: embora veicule uma causa

suspensiva – que, em regra, superada, faz voltar a contagem do prazo,

descontado o tempo em que restou suspenso o prazo –, caso nela ocorra o

oferecimento da ação de execução fiscal, juridicamente não há de se falar em

retorno – continuidade – da contagem do prazo, porque não se justifica falar

em prazo prescricional para oferecimento de ação quando esta já foi

proposta.325

325 EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 234.

194

3.3.2.2 “Prescrição Intercorrente” – artigo 40, “caput”

É possível conceber que a suspensão da exigibilidade do crédito

tributário, recuperando as informações analisadas anteriormente, implique a

suspensão do prazo prescricional. Entender, porém, que a suspensão da

execução fiscal acarrete suspensão do prazo prescricional, conforme

positivado no artigo 40, “caput”, da Lei nº 6.830/1980, exige um raciocínio

juridicamente descomprometido com a concepção do instituto da prescrição.

Expliquemos as razões.326

Concebe-se a prescrição tributária como a perda do direito subjetivo do

Fisco de exercitar sua pretensão executiva ou a perda do direito material –

direito ao crédito –, em virtude da conjugação da sua omissão nessa atividade

e o decurso do prazo estabelecido na norma. Conceito que pode ser extraído

das análises realizadas no decorrer da presente investigação.

Se a prescrição se perfaz pela perda do direito de ação, por uma

questão lógico-jurídica, como admitir a suspensão do prazo prescricional no

decorrer do processo ? Se há processo é porque a ação já foi exercida.

Por essa razão mesma, o que o artigo 40, § 4º da Lei de Execuções

Fiscais, veicula, não é matéria de prescrição, mas matéria relativa a suspensão

da execução, no campo do processo civil, por isso mesmo nem cabe a

discussão de a prescrição ser matéria de interesse de norma geral de direito

tributário e, por isso mesmo, veiculada por Lei Complementar ou Lei

Ordinária.327

326 “Artigo 40 - O Juiz suspenderá o curso da execução, enquanto não for localizado o devedor

ou encontrados bens sobre os quais possa recair a penhora, e, nesses casos, não correrá o prazo de prescrição”

327 EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI ressalta: “O Artigo 40 da LEF, simplesmente, reproduz no campo das execuções fiscais a matéria da suspensão da execução, tratada genericamente pelo Artigo 791 do CPC. Como extingue o direito de ação, a prescrição não tem o condão de extinguir o processo de execução e, prova disso, é que não consta entre as hipóteses de extinção previstas no Artigo 794 do CPC” – Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 237.

195

3.3.2.3 A Impossibilidade de Alegação de Prescrição Intercorrente em

Processo Administrativo e Judicial Tributário

A ideia que gira em torno do assunto da prescrição intercorrente, por

força dos posicionamentos doutrinários, invadiu o âmbito do Processo

Administrativo e do Processo Judicial Tributário.

Parte da doutrina entende que resta configurada a prescrição

intercorrente em Processo Administrativo Tributário quando ocorre o transcurso

de tempo sem o devido julgamento da impugnação ou do recurso

administrativo interposto. A prescrição intercorrente no processo judicial, por

sua vez, essa mesma doutrina entende cabível quando ocorre o decurso de

tempo sem promoção/movimentação, pela parte interessada, dos atos

processuais que lhe cabem ou, ainda, quando não encontrados bens passíveis

de garantir o pagamento do crédito tributário executado, pressupondo-se, pois,

que já se tenha iniciado o processo, mesmo porque, sem ele, não se tem como

exigir a realização de atos processuais, por exemplo.328

O primeiro destaque vai para a impossibilidade de configuração da

prescrição intercorrente em Processo Administrativo Tributário, em razão do

oferecimento da impugnação ou do recurso administrativo, no prazo de

pagamento do tributo, ter força suspensiva da exigibilidade do crédito tributário,

consoante artigo 151, III, do Código Tributário Nacional, aspecto esse que

impede a cogitação do curso do prazo prescricional.329

No particular, e não se ignora, por exemplo, a existência da prescrição

administrativa, prevista na Lei nº 9.784, de 29/1/1999, e que encontra respaldo

tanto doutrinário quanto jurisprudencial. Não obstante isso, como é possível

conceber o reconhecimento da “prescrição intercorrente” administrativa

tributária, que sabidamente busca punir a inércia do Fisco em decidir os

processos administrativos tributários, se o próprio sistema prevê mecanismo de

328 HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, Lei de Execução Fiscal, p. 121 e IVES GANDRA DA

SILVA MARTINS, Prescrição e Decadência. Revista Dialética..., op. cit., p. 37. 329 EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 239.

196

suspensão do prazo prescricional ? Como extinguir um direito da Administração

Pública se ela, para todos os efeitos, está impedida, por exemplo, de tomar

medidas expropriatórias, como ocorre com a execução fiscal ?

A resposta é simples e é assim sintetizada: não concebemos essa

possibilidade de alegação de prescrição intercorrente no âmbito administrativo,

pois, se o Fisco não pode exercer seu direito de buscar a expropriação do

devedor, também não pode ser sancionado por ter que se submeter a regra

imposta pelo próprio sistema, de suspensão. A inércia em decidir o processo

administrativo, em qualquer das suas instâncias, deve ser resolvida em termos,

por exemplo, da punição funcional dos responsáveis pelo julgamento, não

extinguindo o legítimo direito fazendário cujo exercício está obstado.330

Quanto à prescrição intercorrente no Processo Judicial, precisamos

passar pela compreensão a partir da qual nasceu o assunto. Trata-se da

matéria, cuja ideia foi extraída do artigo 174, parágrafo único, do Código

Tributário Nacional, o qual prevê as causas de interrupção do prazo

prescricional. Em particular, no seu inciso I, consta, como uma das causas, o

despacho do juiz que ordenar a citação do devedor, razão essa que abre

margem à compreensão desse marco como sendo o início de novo prazo

prescricional, no decorrer do processo, ou seja, configuraria uma prescrição

intercorrente.

Ressalte-se, porém, que o dispositivo legal – artigo 174, parágrafo

único, inciso I, Código Tributário Nacional – não pretende reiniciar um prazo

prescricional novo dentro do processo já em curso, mas, por respeito à

estrutura teórica da prescrição, visa apenas estancar/interromper o curso do

330 Lei 9784/99: “Artigo 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que

decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé. § 1º No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento. § 2º Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato” Embora o parágrafo primeiro se refira à decadência, não há dúvida de que a jurisprudência recebe esse dispositivo legal como fundamento para o reconhecimento da prescrição administrativa.

197

prazo prescricional pela simples razão de “[...] reconhecer como pressuposto

da citação o efetivo exercício do direito de ação.”331

Aclaramos: se há interrupção do transcurso, na forma do artigo 174,

parágrafo único, I, do Código Tributário Nacional, é porque foi exercitado o

direito de ação, ou seja, há processo. Se há processo, não houve inércia do

Fisco e não se pode falar em prescrição. Esse é o raciocínio condizente com a

prescrição: não há razão para reiniciar ou continuar um prazo prescricional –

que extingue o direito de ação – se este direito foi exercitado.332

Em resumo, para a desconstrução da compreensão de existência de

prescrição intercorrente, trazemos os seguintes argumentos: (i) não se admite

mencionar que o Fisco tenha sido negligente ou omisso no seu direito subjetivo

à ação executiva, tanto que a ajuizou. O ajuizamento leva o juiz do processo a

proferir um despacho ordenando a citação, que tem o condão de promover a

interrupção do decurso do prazo prescricional; (ii) a citação não é o “dies a quo”

do prazo prescricional, e a sua ocorrência já não mais justifica a aplicação da

matéria da prescrição.

Portanto, partindo desses raciocínios, não existe possibilidade de se

manter a ideia de prescrição intercorrente, nem em Processo Administrativo

nem em Processo Judicial. Mesmo com a disposição do § 4º, artigo 40, da Lei

nº 6.830/1980 – Lei de Execuções Fiscais – acrescida pela Lei nº 11.051, de

29/12/2004, positivando essa incoerência jurídica da prescrição intercorrente

em processo judicial, seguimos a linha doutrinária que apregoa o seu

descabimento.333

Por último, e é oportuno o momento, a Súmula nº 409, do Superior

Tribunal de Justiça, quando trata da prescrição, faz menção à “[...] prescrição

ocorrida antes da propositura da ação”. Sendo coerente com as referências

331 EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 240. 332 ANTÔNIO LUÍZ DA CÂMARA LEAL disserta: “Uma vez, pois, que a interrupção da

prescrição se dá pela citação para a demanda judicial [...], a prescrição se torna impossível, durante o processo, porque não mais se poderá atribuir ao titular a inércia e a negligência, suas causas eficientes, e, por isso, enquanto dura a demanda, não se inicia um novo prazo prescricional” – Da Prescrição e da decadência, p. 210.

333 EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Decadência..., op. cit., p. 239.

198

fixadas, não há como conceber prescrição que não ocorra antes da propositura

da ação. Imprópria à alusão veiculada na Súmula.

Talvez a preocupação fique por conta da possibilidade da perpetuação

da lide no curso de um processo, para evitar o prolongamento “ad eternum” do

processo.334 E nesse contexto, a perpetuação da lide e a segurança jurídica

não coadunam. De fato, fundar a possibilidade de findar o processo por

intermédio da prescrição intercorrente é incoerente – porque ela se consuma

“[...] no exercício do direito de ação”. Por respeito à doutrina sobre a qual está

baseada a prescrição, se é o processo que se deseja findar, que se fale, em

vez de em prescrição intercorrente, em causa extintiva do Processo

Administrativo ou do Processo de Execução Fiscal, ou ainda, qualquer

expressão a que se possa dar esse sentido de extinção, mas não atribuir ao

motivo justificador da extinção o nome de prescrição. 335

3.3.3 Possibilidade de Restituição do Valor pago Mediante a Ocorrência da

Prescrição

Embora estejamos na análise do instituto da prescrição, os seus

resultados são, também, aplicáveis à decadência.

Existe a possibilidade de o contribuinte realizar o pagamento, ao Fisco

de valor correspondente a crédito tributário alcançado pela decadência ou pela

prescrição. Ao pagamento efetuado após o prazo decadencial, cabe o direito à

repetição do indébito tributário. Esse ponto é pacífico na doutrina, com a

justificativa segundo a qual a decadência extingue o direito subjetivo do Fisco

334 Conforme ANTÔNIO LUÍZ DA CÂMARA LEAL: “A perpetuação da lide, no sentido de não

correr a prescrição da ação enquanto essa se processa, é uma consequência necessária do conceito e fundamento jurídicos da prescrição, e, portanto, independentemente de preceito expresso, ela existe, como parte integrante da teoria prescricional. Os que discutem e lhe negam existência em nosso direito positivo olvidam os princípios basilares do instituto da prescrição [...]” – Da Prescrição..., 2. ed., op. cit., p. 210.

335 É o que pode se extrair das lições de FERNANDO MARQUES, Prescrição Intercorrente e Execução Fiscal, Revista Ibero-Americana de Direito Público , n. 04, p. 18; e EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Decadência..., 2. ed., op. cit., p. 246.

199

de constituir o crédito tributário, por isso mesmo não pode o mesmo reter o

valor a ele destinado quando não é mais o titular do direito ao crédito. O que

abre margem à discussão é o direito à restituição do valor pago após o prazo

prescricional, porque nascem duas justificativas: (i) não cabe restituição porque

a prescrição implica a perda do direito de ação, e não a perda ao direito ao

crédito, que permanece; (ii) cabe restituição, porque há clara extinção do

crédito tributário mencionado no “codex”, artigo 156, V, razão essa que não

permite ao Fisco, da mesma maneira, a titularidade de retenção de um valor

que a ele não é mais devido.336

O artigo 156, V, do Código Tributário Nacional não deixa margem a

essa controvérsia doutrinária quando diz que tanto a decadência quanto a

prescrição tem força de extinguir o crédito tributário. E se é assim, não pode o

Fisco negar a repetição do valor pago quando no prazo alcançado pela

decadência e prescrição, sob pena de se configurar enriquecimento legalmente

injustificado por parte do Fisco.

3.4 COTEJO DA DECADÊNCIA E DA PRESCRIÇÃO COM A SEGURANÇA

JURÍDICA

Realizado o estudo das regras que conformam as normas jurídicas da

Decadência do direito do fisco e da Prescrição do direito do Fisco, faremos o

seu cotejo com a doutrina multidimensional da segurança jurídica, de maneira a

analisar se as mesmas refletem a segurança jurídica minimamente esperada.

Na visão multidimensional, a segurança jurídica requer uma análise

que leve em consideração diversos aspectos e perspectivas a ela inerentes,

afastando-se da simplificação de uma segurança decorrente do conhecimento

prévio, estabelecido abstratamente na norma, Segurança Jurídica numa visão

multidimensional.

A partir desse estudo dos diversos aspectos da segurança jurídica,

extraindo-lhe o conteúdo de apreciação adequado à proposta, é possível

336 Ibidem, p. 242.

200

retomar as regras que estruturam e perfazem os institutos da decadência e da

prescrição, para fazer um cotejo, de modo a averiguar se elas refletem

segurança jurídica consoante essa novel doutrina multidimensional. Conforme

ensina o mencionado autor, a segurança jurídica é resultado do exame dos

vários fatores, tarefa essa atribuída ao intérprete, o qual incube “[...] dissecar

esses elementos e, segundo, dimensioná-los para, por fim, verificar a

promoção ou não do seu conjunto, em maior medida.” 337 Passemos, portanto,

a esta tarefa.

A segurança jurídica indica um estado de cognoscibilidade, de

confiabilidade e calculabilidade. É possível enxergar essas perspectivas nas

normas conformadoras da decadência e da prescrição ?

A cognoscibilidade é a capacidade de conhecimento do conceito

normativo. Apesar de ser possível esse conceito veicular alguma

indeterminação, possui um núcleo duro de significação, firmado pela doutrina e

pela jurisprudência. Essa cognoscibilidade não tem relação com um único

sentido normativo prévio, mas a compreensão de alternativas possíveis de

aplicação ao conceito da norma.

Considerando que não há uma única norma jurídica de decadência e

de prescrição, mas numerosas regras que conformam este e aquele instituto,

aplicável cada qual à especificidade resultante da situação em concreto; todas

elas têm um sentido normativo; as referentes ao instituto da Decadência visam

impedir que se estenda “ad eternum” o direito de o Fisco realizar o lançamento

tributário; da mesma forma, as referentes ao instituto da Prescrição visam

obstar essa dilação de tempo indeterminável para o Fisco exercer o seu direito

de ação executiva. Mas, cada regra é Inteligível ao contribuinte como

alternativa possível de aplicação dos conceitos das normas de decadência e de

prescrição, ou seja, nelas se reconhece a cognoscibilidade.

A confiabilidade diz respeito à possibilidade de ocorrência de

mudanças, entretanto, com estabilidade e continuidade normativa. Tanto a

decadência quanto a prescrição são institutos de estrutura teórica consolidada.

337 HUMBERTO ÁVILA, Segurança..., op. cit., p. 667.

201

Portanto, o que é passível de modificação nas suas regras, não diz respeito à

sua teoria fundante, mas ao “dies a quo”, aplicável a situações específicas.

Presente está, assim, a dimensão confiabilidade nas referidas regras de

decadência e prescrição.

A calculabilidade é a capacidade de prever o feixe de consequências

jurídicas que são, alternativamente, atribuídas, nas normas e o lapso de tempo

dentro do qual se verifica a consequência jurídica; não a capacidade absoluta

de antecipar o conteúdo da norma jurídica e atuação estatal final.

Considerando que cada regra – dentre as seis que perfazem a decadência e as

outras seis que, também, perfazem a prescrição – existe explicitado esse feixe

de consequências jurídicas: para as regras de decadência, as consequências

jurídicas são (i) a extinção do direito subjetivo de o Fisco realizar o lançamento

tributário e (ii) a extinção do direito ao crédito tributário; para as regras da

prescrição, as consequências jurídicas são (i) a extinção do direito subjetivo de

o Fisco ajuizar a ação executiva e (ii) a extinção do direito ao crédito tributário.

Todas elas com a previsão temporal especificada para a concretização da

consequência jurídica. Satisfaz, portanto, o aspecto calculabilidade inerente à

segurança jurídica.

Em resumo, é a capacidade por meio da qual ao sujeito é possível

prever, com “grande aproximação”, as reduzidas consequências

alternativamente aplicáveis e que podem ser efetivamente atribuídas aos seus

atos, assim como prever o espectro temporal dentro do qual a consequência

será definida.338

A partir das normas jurídicas da decadência e da prescrição, numa

visão de norma geral e abstrata, e analisada sob esse foco, é possível delas

extrair esses aspectos da cognoscibilidade, confiabilidade e calculabilidade,

que, analisados em conjunto, são conformadores da segurança jurídica.339

Quando, todavia, analisadas como normas gerais e abstratas integrantes de

338 Na inteireza da lição de HUMBERTO ÁVILA, Segurança..., op. cit., p. 253. Esse é o

raciocínio que deve ser aplicado tanto à Administração Pública quando ao contribuinte, no exercício de formalização do crédito tributário.

339 Esta é uma conjectura nascida em razão das lições de HUMBERTO ÁVILA, Segurança..., op. cit., p. 250-251 e 280.

202

um sistema ou subsistema normativo, como o do Direito Tributário, concretizam

a segurança jurídica desse subsistema por intermédio da confiabilidade, pela

estabilidade no tempo.

No sentido de a segurança jurídica refletir a segurança pelo direito, na

significação de o direito servir como um instrumento de proteção e resguardo

dos cidadãos – segundo nosso interesse, o contribuinte empresa –, como o

exercido por numerosos direitos fundamentais dispostos na Carta

Constitucional; a previsão das regras de decadência e prescrição, e sua

observância, servem como instrumento de segurança pelo direito. A partir delas

pode-se extrair essa dimensão de segurança jurídica pelo direito. As regras

que disciplinam os institutos da decadência e da prescrição ofertam ao direito

essa dimensão da segurança jurídica, porque servem como instrumentos à

serviço da segurança.

Na dimensão de segurança jurídica em face do direito , por respeito à

legalidade, ao Estado só cabe atuar conforme o que está prescrito em lei; não

se pode fazer valer, e prevalecer juridicamente, direitos que foram alcançados

pelos prazos de decadência e de prescrição. A atuação estatal não pode

alcançar o que já foi objeto de conquista, conforme o direito; no caso, perda do

direito, quando já se concretizaram a decadência e a prescrição, obstando o

exercício do direito subjetivo do Fisco. É a segurança jurídica do contribuinte

em face do direito .

Das regras que conformam a decadência e a prescrição extrai-se outra

dimensão: a da segurança jurídica, de direito , porque possibilitam segurança

do direito do contribuinte no sentido de não lhe ser exigido o crédito tributário

alcançado pela decadência ou pela prescrição.

Em mais uma perspectiva, a de segurança como um direito , resultado

da eficácia reflexiva do Princípio da Segurança Jurídica, nasce para o sujeito o

direito a um comportamento estatal específico, de maneira a lhe permitir a

cognoscibilidade, confiabilidade e calculabilidade. É o direito do sujeito

contribuinte a um comportamento estatal de acordo com a segurança. As

203

regras de decadência e de prescrição, todas elas, quando respeitadas,

necessariamente, acarretam o efeito reflexivo da segurança jurídica.

Sob o aspecto objetivo da segurança, temos que esta pode apresentar

a dimensão de segurança de um comportamento . As regras de decadência e

de prescrição permitem que o administrado possa antecipar as consequências

jurídicas a ele atribuídas pelo ordenamento jurídico, ou seja, possibilitam a

segurança jurídica quanto ao comportamento estatal. Por exemplo, no decurso

do prazo de cinco (5) anos, o Fisco tem o direito subjetivo de realizar o

lançamento, quando a ele cabe essa tarefa, e se o fizer, de conformidade com

a lei, cabe ao contribuinte pagar a dívida. Se não realizar o lançamento no

prazo estabelecido em lei, sabem-se as consequências jurídicas: (i) extinção do

direito subjetivo de o Fisco lançar e/ou (ii) extinção do crédito tributário.

Numa perspectiva subjetiva, conseguimos aferir segurança jurídica

destinada à proteção do contribuinte , não do Estado. “A segurança jurídica

tributária deve ser aferida com base na visão do destinatário se não houver

razão para considerar de uma perspectiva diversa”.340 Justifica-se esse caráter

protetivo da segurança jurídica, no ambiente tributário, porque a instituição de

tributos afeta alguns direitos fundamentais, como os relacionados à liberdade, à

igualdade, e à propriedade, e quanto maior a restrição a esses direitos, tanto

maior dever ser a sua proteção. Nesse sentido, as regras da decadência e da

prescrição servem ao contribuinte como orientação e proteção.

Relativamente ao aspecto quantitativo, a segurança jurídica, como

envolve um “complexo de ideias a serem satisfeitas”, não deve ser

compreendida como segurança jurídica absoluta, mas com a finalidade de

“mais promovida” do que “restringida” Não temos dúvida de que as regras da

decadência e da prescrição perfazem esse modelo de implementação que, na

prática, muito mais promove os seus aspectos do que os restringe, embora os

institutos referidos digam respeito à perda de direito subjetivo, em prejuízo do

titular desse direito, o que, para a nossa análise, não tem relevância. De outro

modo, as regras de decadência e de prescrição muito mais promovem a

340 HUMBERTO ÁVILA, Segurança..., op. cit., p. 259 e 281.

204

cognoscibilidade, confiabilidade, calculabilidade, segurança pelo direito ,

segurança de direito etc, do que as restringe. Na lição de HUMBERTO ÁVILA:

(...) segurança jurídica não é uma qualidade intrínseca do Direito ou de suas normas, vinculadas à sua prévia determinação, porém um produto cuja existência, maior ou menor, depende da conjugação de uma série de critérios e de estruturas argumentativas a serem verificadas no próprio processo de aplicação do Direito.341

A restrição de muitos desses aspectos implicaria a não satisfação da

segurança jurídica.342 Só se promove a segurança jurídica quando a síntese

dos seus aspectos revele a sua maior promoção conjunta.343

A aplicação do modelo teórico proposto por HUMBERTO ÁVILA, a

respeito da segurança jurídica, nas regras que compõem as normas da

decadência e da prescrição tributárias, permite-nos enxergar que, numa

perspectiva analítica, elas cumprem, a contento, com o ideal de segurança

jurídica.344

341 Ibidem, p. 90-91. 342 Ibidem, p. 265. 343 Repisamos a lição: “Segurança jurídica é do e pelo direito, e segurança dos direitos frente

ao direito. Sem a conjugação dessas várias dimensões da segurança jurídica, não se atinge um mínimo de confiabilidade e calculabilidade do ordenamento jurídico, com base na sua cognoscibilidade, porque o estado de segurança conquistado por uma dimensão será solapado pela ausência de qualquer uma das outras dimensões. Em outras palavras, sustenta-se que há um nexo de pressuposição ou vínculo de reciprocidade entre as várias dimensões da segurança jurídica, no sentido de que uma não funciona sem a outra. Afinal, pode o Direito garantir segurança sem ser seguro, isto é, pode o Direito assegurar expectativas sem ser minimamente cognoscível, confiável e calculável ? Pode ele ser seguro sem ser para assegurar outros valores, isto é, pode o Direito cognoscível, confiável e calculável sem que esses elementos estejam a serviço de outros valores ? Pode o Direito garantir segurança sem permitir segurança frente a si mesmo, isto é, pode o Direito assegurar calculabilidade e confiabilidade sem preencher determinados requisitos para que o indivíduo possa dele se precaver ?” (sic) – Ibidem, p. 270.

344 Ibidem, p. 90-91.

205

3.4.1 As Regras da Decadência e Prescrição como Instrumento de Proteção e

Manutenção da Atividade Empresarial

Restou claro, no tópico anterior, que as regras que estruturam a

decadência e a prescrição tributárias, promovem muitos aspectos/dimensões

inerentes à segurança jurídica, na visão multidimensional. Não é excessiva a

afirmação segundo a qual não se trata de discurso doutrinário, mas que,

efetivamente, tanto a decadência quanto a prescrição tributárias refletem

segurança jurídica.

Consoante o provado no item anterior, do confronto da teoria da

segurança jurídica com as regras que conformam as normas jurídicas da

decadência e da prescrição tributárias, decorre a satisfação das dimensões

reconhecidas como necessárias à satisfação do que se entende por satisfação

ao Princípio da Segurança Jurídica.

Se esse é o resultado, estamos habilitados a voltar à questão erguida

no primeiro capítulo, item XX – Função Social da Empresa como Reflexo da

Diretriz Constitucional – com o fito de oferecer uma resposta. Relembremos:

no ambiente infraconstitucional, as normas que veiculam o regramento sobre a

decadência e a prescrição tributárias, dispostas na Lei nº 5.172/1966, podem

ser consideradas como instrumentos desse ordenamento infraconstitucional

para proteção e manutenção econômica empresarial, de maneira a afirmar a

tutela à empresa, porque nela se enxerga função social ?

Conforme a afirmação inicial do presente item, em razão do cotejo das

regras que conformam as normas jurídicas de decadência e prescrição

tributárias com a segurança jurídica, na perspectiva multidimensional, as

referidas normas refletem segurança jurídica. E se é da natureza dessas

normas o compromisso de observância do Princípio da Segurança Jurídica, é

porque servem, plenamente, ao ordenamento infraconstitucional, como

instrumentos que cooperam, juridicamente, para a proteção e resguardo da

manutenção econômica estável da empresa. Muito mais, servem como

instrumento apoiador da ideia de que o Estado – também por intermédio desse

206

ordenamento infraconstitucional – compromete-se com a necessária tutela

jurídica da figura da empresa em razão dela desempenhar relevante função

social, como já estudamos, no capítulo primeiro.345

Portanto, as regras de decadência e prescrição tributárias são

instrumentos jurídicos infraconstitucionais de proteção ao contribuinte, inclusive

ao contribuinte-empresa, porque o seu resguardo é do interesse do Estado,

que tem nele um parceiro na busca do desenvolvimento econômico e social, e,

portanto, desenvolvedor de função social. Juridicamente, pensamos, foi o que

restou provado.

345 Embora expresse referência ao instituto da decadência apenas, a lição de HUMBERTO

ÁVILA é no sentido de que ele – e entendemos que é aplicável também a prescrição – é reflexo da segurança jurídica: “[...] a decadência depende do transcurso de um prazo, sendo aplicada mesmo em benefício de quem ou contra quem não manifestou confiança. Precisamente por isso é que se pode afirmar ser a decadência uma decorrência objetiva do princípio objetivo da segurança jurídica” – Segurança..., op. cit., p. 347.

207

CAPÍTULO 4 – A DECADÊNCIA E A PRESCRIÇÃO TRIBUTÁRIA S COMO

OBJETO DE INTERPRETAÇÃO ADMINISTRATIVA E A

SUSTENTABILIDADE EMPRESARIAL

4.1 INTERPRETAÇÃO ADMINISTRATIVA E SUSTENTABILIDADE

EMPRESARIAL

No capítulo inaugural do presente trabalho, a temática sobre a qual

recaiu a nossa atenção diz respeito à sustentabilidade econômica empresarial,

na relação travada entre o Estado e as organizações empresariais, e, dentro

dessa relação, qual a influência que o Poder Público exerce na manutenção

econômica das empresas.

Diante das análises envolvidas nessa questão, verificou-se que, no

ambiente político-legislativo, há uma postura estatal positiva, diante das

organizações econômicas, no sentido de nelas vislumbrar uma fonte efetiva de

cooperação, na tarefa do desenvolvimento econômico e social da nação. Em

razão dessa óptica estatal, observamos que o ordenamento jurídico,

especialmente o constitucional, está estruturado de maneira que, inerente ao

desenvolvimento da atividade empresarial, em regra, existe o exercício de

atividades socialmente relevantes, que integram a sua função social.

Essa estruturação do ordenamento constitucional, além de ter força

para representar o reconhecimento, por parte do Estado, da importância da

figura da empresa, nesse plano, e ao seu lado, na consecução

desenvolvimentista do ambiente econômico-social, isto é, admitindo, como

juridicamente legítimo, o exercício da função social; e colocando esse

instrumental constitucional à serviço do incentivo, da proteção e da

manutenção dessas organizações econômicas.

208

Vimos, também, que o encadeamento jurídico, nesse sentido, traduz

um espírito constitucional de tutela à empresa, que contamina a estruturação

do ordenamento jurídico infraconstitucional. É possível afirmar que essa

vontade constitucional, do alto da sua hierarquia, “desceu” e influenciou o

ordenamento jurídico infraconstitucional, no qual é possível identificar uma

composição espelhada na Carta Suprema, com o instrumental, também, à

serviço da tutela da atividade econômica empresarial.

Dentre tantos argumentos infraconstitucionais apontados, como

componentes dessa idéia protetiva e incentivadora das empresas, restou

levantada a questão, segundo a qual, somadas a esses instrumentais, as

disposições que veiculam o regramento sobre a decadência e sobre a

prescrição tributárias, dispostas na Lei nº 5.172/1966 – Código Tributário

Nacional, podem ser consideradas, também, como instrumentos desse

ordenamento infraconstitucional de proteção à manutenção econômica

empresarial, de maneira a afirmar a tutela à empresa, porque nela se enxerga

função social ?

No caminho para a pretendida resposta, foram analisadas, no segundo

capítulo, as diretrizes principiológicas da decadência e da prescrição tributárias,

dentre as quais, como razão de “ser” desses institutos, ficou consignado o

Princípio da Segurança Jurídica, com especial enfoque na sua análise

multidimensional. Em resgate das lições extraídas sobre esse princípio, no

capítulo terceiro, no qual o esforço ficou por conta do estudo das regras

conformadoras das normas da decadência e da prescrição tributárias, foi

realizado um cotejo entre as dimensões conformadoras da segurança jurídica

multidimensional e as referidas normas de decadência e de prescrição, como

fito de enfrentar a questão erguida no primeiro capítulo.

Tal pergunta, formulada, demandou análises do segundo capítulo,

confrontadas com os estudos do terceiro, e apresentou, afinal, uma resposta

positiva: as normas jurídicas, gerais e abstratas, de decadência e de prescrição

tributárias refletem segurança jurídica. E, como provado juridicamente,

pensamos, essa natureza do compromisso de respeito ao Princípio da

Segurança Jurídica, é porque, efetivamente, convém ao ordenamento

209

infraconstitucional, como elementos jurídicos de proteção e resguardo da

manutenção econômica empresarial. E, por isso mesmo, servem como

instrumentos de apoio da idéia de que o Estado – também por intermédio

desse ordenamento infraconstitucional – enxerga, para figura da empresa,

necessária tutela jurídica, em razão de a mesma desempenhar a relevante

função social.

Por conseguinte, as regras de decadência e de prescrição tributárias

são instrumentos jurídicos infraconstitucionais que integram o conjunto

normativo de proteção à empresa, desde que o seu resguardo – do

contribuinte-empresa – é de interesse do Estado, que tem nele um parceiro no

caminho do desenvolvimento econômico e social, concepção que conduz por

via de consequência, ao acolhimento do exercício da sua função social.

Demoramo-nos nessa revisão de conceitos e de premissas, fixados

anteriormente, porque esse resgate justifica uma outra preocupação: muito

embora cheguemos a uma resposta positiva, segundo a qual as regras de

decadência e prescrição tributárias servem como ferramentas jurídicas

infraconstitucionais de proteção ao contribuinte-empresa, e que o seu

resguardo é de interesse do Estado, aqueles que exercem as atividades

estatais, nas suas funções típicas, quando da aplicação dessas regras colocam

essa vontade, estruturada na Carta Constitucional e nas normas

infraconstitucionais, em prática ?

A pretensão não é a de dizer se a administração pública, por

intermédio dos que atuam no exercício das suas atividades, isto é, que

movimentam, exercitam, executam as funções típicas estatais,

proporcionalmente, traduzem na prática, essa vontade estampada no

ordenamento jurídico constitucional e infraconstitucional, porque essa questão

demanda análise decisória quantitativa, providencia que não satisfaz o anseio

do presente capítulo.

O foco da aspiração é ponderar, juridicamente, a respeito da realidade

do exercício típico estatal, da interpretação legal e dos atos de aplicação das

normas ao avesso desse espírito de tutela das organizações econômicas

210

empresariais, espírito arquitetado e estabelecido no ordenamento jurídico

constitucional e infraconstitucional brasileiro.

É certo que de nada adianta o esforço constitucional e legislativo na

construção de prescrições normativas tendentes ao reguardo e incentivo da

empresa se, na interpretação dessas prescrições, na sua efetiva aplicação, na

consecução de atividades estatais voltadas para as empresas, e,

especialmente, nas definições da política tributária nacional, recaiam sobre elas

imposições incompatíveis com o sentido das normas.

Consoante ao estudo empreendido no primeiro capítulo, da mesma

maneira como essa vontade de preservação “desceu” da Carta Constitucional e

invadiu o ordem infraconstitucional, deve ela permear, com sentido obrigatório,

o exercício das atividades típicas do Estado. É importante que os atores

dessas atividades compreendam que o ordenamento jurídico é, sim, favorável

à empresa e que os seus atos têm que servir a esse fim protetivo.

Com isso, de maneira alguma, estão sendo sobrepujadas as

legislações que, na prática, impõem condições excessivamente onerosas às

organizações econômicas. Essas legislações existem e, não poucas vezes,

exigem da empresa um esforço incompatível com a proteção advinda

especialmente da Constituição Federal de 1988. Tais legislações, exatamente

por conterem esse viés desguarnecedor da empresa, podem e devem ser

objeto de questionamento, em face da Carta Constitucional. Se a Lei Maior tem

arquitetada uma estrutura protetiva, qualquer legislação infraconstitucional que

vá de encontro a essa pretensão positivada, incorre em nítida violação

constitucional.

Não existe justificativa jurídica para a atuação estatal, seja no exercício

material inerente a alguma atividade ou nos atos de interpretação legislativa,

intrínseca aos atos da sua aplicação, ultrapassar e suplantar a vontade

constitucional e legal, e impor uma compreensão particular da administração

pública. Aliás, essa compreensão, em descompasso com a vontade

constitucional e legal, implica, em última análise, a atuação inconstitucional e

211

ilegal por parte da administração pública, e inclusive fazendária, postura que

viola o Princípio da Legalidade e que deve, pois, ser coibida incessantemente.

Embora, doutrinariamente, justifique-se um espaço inevitável

dissensões – a mais comum ocorrência no âmbito científico – não pode, a

Administração Pública, valer-se disso como estratagema para uma

interpretação que lhe é mais vantajosa, e que, especialmente no âmbito

tributário, na maioria das vezes, resulta em exações ao contribuinte – para fins

do trabalho, o contribuinte empresário – e que são, muitas vezes, indevidas.

Não se faz necessário muito sacrifício intelectual para perceber, com

efeito, que a interpretação, nesses moldes, põe em risco a manutenção estável

da atividade empresarial, isto é, a sua sustentabilidade.

Na verdade, essas interpretações particulares da Administração

Pública estão sujeitas a limitações, exatamente em razão de comportarem um

entendimento violador da vontade constitucional e legal. Em muitos casos, não

resta dúvida de que não está, a Administração Pública, habilitada à escolha da

interpretação que, juridicamente, melhor convém. Está, precisamente, nesse

ponto, a limitação que mencionamos: a interpretação deve ser a que mais se

coaduna com a vontade constitucional, ou seja, com a vontade que se traduza

em maior proporção à proteção da empresa.

Não são poucas as decisões administrativas, inclusive tributária,

decorrentes de uma interpretação influenciada por um raciocínio francamente

fiscalista, no sentido de decisões tomadas para resguardar receitas ou mesmo

incrementá-las. Sem hesitação, essa fatura é paga pela empresa e o resultado

é desvantajoso tanto para o contribuinte empresarial quanto para a sociedade

como um todo.

São incoerente e ilógicas muitas das decisões da Administração

Fazendária, pautadas em compreensão que contraria a manutenção estável de

um dos símbolos do desejo protetivo constitucional: a empresa. Mais: são

pouco inteligentes também, porque as organizações econômicas estão cada

vez mais cientes do papel socialmente relevante que desenvolvem e da tutela

da qual se podem valer, de maneira a impugnar essas decisões. E ainda: o

212

judiciário está a alinhar a sua jurisprudência nesse sentido, de reconhecimento

da função relevante da empresa, e, por isso mesmo, do resguardo que a ela

deve ser oferecido.346

Não é um ambiente estável e, por isso, propício ao desenvolvimento do

setor empresarial, aquele no qual a ordem normativa se dirige no sentido

favorável e de apoio ao seu desenvolvimento economicamente sustentável,

mas no exercício das atividades do estado, resida diretriz outra, que extrai os

seus atos decisórios de um entendimento protetivo dos interesses do fisco,

descurando da análise ampla e sistemática do ordenamento jurídico. É um

quadro que chega a ser, por vezes, vexatório: a ordem suprema é violada

porque a Administração Pública não alcança a inteligência nela veiculada.

Seja qual for a norma aplicável, as diretrizes constitucionais, devem ser

respeitadas. Tendo em vista que as interpretações tendenciosas, acerca da

decadência e da prescrição, podem ocorrer nas três esferas de governo, e que

as atividades empresariais geralmente sofrem incidência de tributos dessas

três esferas; ocorrendo isso, então, e com frequência, a estabilidade

empresarial é posta na berlinda e posta em perigo.

Nesse contexto de interpretação malfazeja, existe uma série de

princípios que são violados, tais como os da Livre Iniciativa, Livre

Concorrência, da Dignidade da Pessoa Humana, da Preservação da Empresa,

da Segurança Jurídica, todos estudados nos capítulos 1 e 2 do presente

trabalho. Assim como os Princípios da Moralidade e da Boa-Fé.347

346 “Por essas razões, entendo que os arts. 60, parágrafo único, e 141, II, do texto legal em

comento mostram-se constitucionalmente hígidos no aspecto em que estabelecem a inocorrência de sucessão dos créditos trabalhistas, particularmente porque o legislador ordinário, ao concebê-los, optou por dar concreção a determinados valores constitucionais, a saber, a livre iniciativa e a função social da propriedade – de cujas manifestações a empresa é uma das mais conspícuas – em detrimento de outros, com igual densidade axiológica, eis que os reputou mais adequados ao tratamento da matéria” – Supremo Tribunal Federal: ADI 3934, Relator(a): Min. Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 27/05/2009, DJe-208 PUBLIC 06-11-2009 RTJ VOL-00216- PP-00227.

347 Em relação ao Princípio da Moralidade, destaca-se o escólio de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO: “De acordo com ele, a Administração e seus agentes têm de atuar na conformidade de princípios éticos. Violá-los implicará violação ao próprio Direito, configurando ‘ilicitude’ que assujeita a conduta viciada a invalidação, porquanto tal princípio assumiu foros de ‘pauta jurídica’, na conformidade do artigo 37 da Constituição. Compreende-se em seu âmbito, como evidente, os chamados princípios da ‘lealdade’ e

213

A administração Pública deve internalizar a idéia de que as

consequências de um raciocínio fiscalista, isto é, de uma interpretação

unilateral que vá de encontro aos princípios jurídicos ordenadores do sistema,

e que forçam a aplicação da lei segundo apenas os seus interesses e à revelia

da situação fática que já não permite a proteção de tais interesses, por

exemplo, são desastrosas para a atividade empresarial, desestimulantes do

seu desenvolvimento, e vergonhosamente desestabilizantes do ordenamento

jurídico.

Pela figura que é, pelo que, social e economicamente, representa, a

empresa exige um tratamento jurídico protetor, incentivador, estimulador, ideia

essa que foi, como diversas vezes repisamos, neste trabalho, contemplada no

nosso ordenamento jurídico constitucional e infraconstitucional, e que deve ser

implementada no âmbito de realização das práticas estatais.

No ambiente jurídico, não há razão maior para o desestímulo ao

crescimento e ao desenvolvimento do setor empresarial do que a instabilidade

decorrente de entendimentos interpretativos incompatíveis com a vontade

‘boa-fé’, tão oportunamente encarecidos pelo mestre espanhol Jesús Gonzáles Perez em monografia preciosa. Segundo os Cânones da lealdade e da boa-fé, a Administração haverá de proceder em relação aos administrados com sinceridade e lhaneza, sendo-lhe interdito qualquer comportamento astucioso, eivado de malícia, produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar o exercício de direitos por parte dos cidadãos. [...] Márcio Cammarosano, em monografia de indiscutível valor, sustenta que o princípio da moralidade não é uma remissão à moral comum, mas está reportado aos valores morais albergados nas normas jurídicas. Quanto a nós, também entendendo que não é qualquer ofensa à moral social que se considerará idônea para dizer-se ofensiva ao princípio jurídico da moralidade administrativa, entendemos que este será havido como transgredido quando houver violação a uma norma de moral social que traga consigo menosprezo a um bem juridicamente valorado. Significa, portanto, um reforço ao Princípio da Legalidade, dando-lhe um âmbito mais compreensivo do que normalmente teria” (sic) – Curso de Direito Administrativo, p. 119-120. Na mesma linha, ensina CELSO RIBEIRO BASTOS: “Existe, por fim, outra categoria de ato administrativo contrário à moral administrativa. Nesta, o ato não contraria a lei e também não é consequência do desvio de poder. Ofende à moralidade na medida em que, apesar de a atuação ser prevista em lei, prejudica os particulares. A atuação da Administração, aqui, não está acobertando atos violadores da ideologia legal; ocorre simplesmente o uso de norma administrativa em prejuízo do particular. O benefício trazido a todos é menor do que o ônus suportado pelo receptor do ato” – As Tendências do Direito Público no Limiar de um Novo Milênio, p. 310. E do mesmo modo, por fim, MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO: “Não é preciso penetrar na intenção do agente, porque do próprio objeto resulta a imoralidade. Isto ocorre quando o conteúdo de determinado ato contrariar o senso comum de honestidade, retidão, equilíbrio, justiça, respeito à dignidade do ser humano, à boa fé, ao trabalho, à ética das instituições. A moralidade exige proporcionalidade entre os meios e os fins a atingir; entre os sacrifícios impostos à coletividade e os benefícios por ela auferidos; entre as vantagens usufruídas pelas autoridades públicas e os encargos impostos à maioria dos cidadãos” – Discricionariedade Administrativa na Constituição d e 1988, p. 111.

214

normativa e do exercício da atividade estatal viciada nesse sentido. Não há

desenvolvimento social e econômico que resista à insegurança jurídica, à

ausência de postura reta e consentânea com a lei, por parte daquele que a

aplica.

Tanto no que se refere às regras veiculadas nas normas da decadência

quanto às introduzidas nas normas da prescrição tributária, o relevante é que,

no ato da sua aplicação, e inerente interpretação, tenha-se em vista um fator

primordial: a vontade constitucional de resguardo à empresa. Se a decisão for

no sentido antagônico à tutela das organizações econômicas empresariais,

indubitavelmente, o resultado será violador da vontade constitucional.

Não se pode deixar de ressaltar que ficou demonstrado, no primeiro

capítulo, que a função social da empresa, além de ser dotada de “status”

constitucional, e de ser elevada à condição de princípio, isto é, norma

estruturante e fundante do ordenamento jurídico, ainda restou claro que se

trata de norma constitucional de aplicabilidade imediata, portanto, de

observância obrigatória, inclusive pelo Estado. Não se trata de norma

programática, mas sim de norma cogente e cuja observância deve fazer parte

do quotidiano especialmente da Administração Tributária.

Convenhamos que existem numerosas situações vinculadas com às

regras da decadência e da prescrição tributárias, que serviriam como fáceis

exemplos de pontos polêmicos, relativamente às suas aplicações, como as

questões da definitividade do lançamento tributário, de exigibilidade, de

antecipação ou não de pagamento etc.

Pode-se trazer as seguintes situações em que o Fisco promove uma

interpretação ou aplicação indevida de normas que tratam de decadência e

prescrição:

i) Nos planos de recuperação de débitos tributários, comumente

chamados de REFIS, a legislação impõe ao contribuinte, entre eles as

empresas, como condição à adesão ao parcelamento ou ao pagamento com

desconto, a aceitação de todos os débitos tributários registrados em nome do

devedor, independentemente de estarem fulminados pela decadência ou

215

prescrição. O contribuinte apenas consegue a adesão ao REFIS se confessar

integralmente o débito.

Essa situação viola os direitos e garantias do contribuinte, como por

exemplo os princípios da legalidade e da segurança jurídica, bem como as

regras de decadência e prescrição, que segundo as premissas fixadas neste

trabalho, têm o condão de extinguir a obrigação tributária, tornando-se causa

impeditiva do direito do fisco, em razão deste não poder receber por dívida não

mais existente.

ii) Outro exemplo que se pode invocar é a situação de os Municípios,

titulares da competência para instituir o Imposto Predial e Territorial Urbano –

IPTU – que ajuízam execuções fiscais exigindo o pagamento de débitos

daquele imposto e já se encontram vencidos há dez (10) anos, por exemplo,

significando dizer que parte dessa dívida já está fulminada pela prescrição.

Essa situação, assim como a anterior, viola os Princípios da Legalidade

e da Segurança Jurídica, desconsiderando-se, pois, o efeito do tempo na

estabilização das relações jurídicas, isto porque o imposto prescrito não

deveria ser objeto de inscrição em dívida ativa e execução fiscal.

iii) As administrações tributárias costumam manipular a interpretação

das regras de decadência e prescrição, de forma a buscar, mediante exegese

mais vantajosa, um alargamento indevido dos prazos decadenciais e

prescricionais, podendo-se citar, como exemplo, a situação da constituição

definitiva do crédito tributário, defendendo a ideia de que ela apenas se dá com

a decisão final administrativa, assim entendendo aquela que não seja mais

suscetível de recurso na esfera do processo administrativo tributário.

Essa postura violadora dos Princípios da Legalidade e da Segurança

Jurídica alarga indevidamente o prazo prescricional, isto porque desloca o

termo de início desse prazo, que ao invés de ser contado a partir do momento

em que o crédito tributário se torna exigível em razão da inadimplência do

contribuinte, computa-se a partir do encerramento do processo administrativo

tributário.

216

E em razão dessas e de algumas outras situações, não são poucas as

ocasiões nas quais nos deparamos com atos, advindos da Administração

Fazendária, que representam manifesta afronta aos direitos dos administrados-

contribuintes, inclusive os empresariais.

Nesse ambiente tributário, como a tarefa arrecadatória constitui uma

atividade de suma importância para os entes políticos, todos os esforços são

empreendidos de forma a não deixa-la perder força ou provocar desequilíbrios.

Isso implica, não poucas vezes, raciocínios e atitudes estatais exacerbados.

Nesse contexto, reside um fator embaraçoso: a frequente dificuldade

de reconhecimento do esgotamento dos prazos decadenciais, assim como a

predisposição administrativa de exceder às regras prescricionais tributárias,

dados que se apresentam como fator relevante e impactante na atividade do

contribuinte, especialmente dos empresariais.

Diante do recorte feito pelo presente capítulo, no que tange ao impacto

e às consequências de uma interpretação tendente à violação da vontade

constitucional, o entendimento fiscalista a respeito da decadência e da

prescrição tributárias, impõe carga negativa à capacidade da manutenção

estável da atividade empresarial, isto é, à sua sustentabilidade.

No ambiente de sustentabilidade empresarial esse é um relevante

exame, na medida em que não se trata da análise da percussão de um único

tributo na vida financeira de uma pessoa jurídica, mas do impacto amplo da

incidência de tributos da competência dos Municípios, dos Estados e da União,

mesmo que, às vezes, sem fundamento jurídico, e as implicações dessa

ocorrência na manutenção da sua atividade econômica.

É notória a relação de dependência da sustentabilidade econômica da

atividade empresarial com o fenômeno tributário, que consiste no alcance do

contribuinte pela incidência tributária. Isso implica o entendimento segundo o

qual o comportamento do Fisco pode onerar demasiadamente diversos setores

empresariais, quando os obriga a cumprir, além das obrigações legalmente

217

constituídas, com obrigações que não mais deveriam existir, valendo-se

arbitrariamente da sua condição privilegiada de figura estatal.

Não se pode ignorar que a empresa, ao ser surpreendida por uma

obrigação tributária que não mais poderia existir, em razão, por exemplo, dos

efeitos do fato jurídico da decadência, incorre em custos extras que não estão,

no mais das vezes, provisionados, incorrendo, pois, em despesas com defesas

administrativa e judicial, ambas aliadas ao fator tempo que, sabe-se, é

preponderante no aumento desse impacto econômico de ter que exercer o

direito constitucional do contraditório e da ampla defesa.

Mas não é apenas isso que se deve sublinhar, pois, ainda que se trate,

por exemplo, de obrigação tributária constituída após o escoamento do prazo

decadencial, não se pode deixar de considerar que tal obrigação, enquanto não

retirada do sistema, estará produzindo os seus efeitos e vinculando o

contribuinte-empresa. Isso implica dizer que, mesmo nessas situações, o risco

processual envolve fator de peso significativo na determinação do custo

empresarial.

Outro aspecto que envolve, diretamente, o desenvolvimento da

atividade empresarial, está no fato de que, obrigação tributária nascida, mesmo

que indevida, vai gerar certidão de débitos positiva, que causa verdadeiro

transtorno às organizações empresariais, especialmente àquelas cuja atividade

de circunscreve à contratação com o Poder Público, destacando, a título de

exemplo, a impossibilidade de participação em certames licitatórios.

Isso demonstra que o comportamento da Administração Tributária, ao

desconsiderar o fenômeno decadencial ou ao não o fazer devidamente faz

surgir obrigações tributárias e deveres administrativos indevidos, e o impacto

no custo empresarial não se circunscreve, apenas, ao crédito tributário, mas a

despesas que vão muito além dele e, em certos casos, deixam a empresa em

tal grau de dificuldade, que ela acaba se vendo diante da contingência

inevitável de ter que repassar custos aos seus clientes, ou seja, aos

consumidores finais, à sociedade.

218

Sob o pretexto, muitas vezes camuflado, de manter ou ampliar a

arrecadação, essa prática tributária dos entes políticos, acaba exacerbando os

limites da legalidade e afetando a viabilidade das organizações econômicas,

sejam elas de pequeno, médio ou de grande porte.

Os atos de aplicação da norma sob a influência de um raciocínio

fiscalista é certo que resultarão no comprometimento da sustentabilidade

empresarial, desde que podem ser verificados nas três esferas de governo, ou

seja, repercutem em todos os tributos que as empresas se veem obrigadas a

recolher.348

Todavia, na análise de cada temática que dá margem a interpretações

diversas, sejam elas quais ou quantas forem, se existe uma linha mestra cuja

observância é de caráter cogente, porque essa é a imposição hierárquica da

Carta Constitucional, os atos de aplicação das normas e as interpretações que

são deles pressupostos ou decorrências não têm outra saída jurídica senão a

de realização do sentido imperativo daquela vontade constitucional.

Por essa razão optamos por não trazer especificidades polemizadas na

interpretação de tais regras, uma vez que partimos dessa compreensão,

segundo a qual, as novas ou velhas discussões a esse respeito não têm ponto

de partida e nem de chegada outro senão o sentido constitucionalmente

estabelecido de proteção à empresa.

Deparando-se com questões que, embora não silenciadas pela ordem

jurídica, dão ensejo a múltiplos entendimentos e, por isso, a diversas

interpretações, uma única porta abre-se à resposta acertada: o entendimento

tem que ser compatível com aquela estrutura montada na Carta Suprema, e

em sendo ela no sentido de salvaguarda das organizações econômicas

empresariais – repisamos tantas vezes quantas se fizer necessário – deve,

então, a decisão, socorrer-se desse maná constitucional.

348 As questões relativas ao Direito Tributário são de relevância indiscutível para as atividades

empresariais. As resoluções a respeito das suas temáticas sempre acarretam efeitos para a vida econômica e financeira das organizações econômicas, influenciando, direta e indiretamente, na regular permanência das suas atividades.

219

4.2 INTERPRETAÇÃO ADMINISTRATIVA NO ATO DE APLICAÇÃO DA LEI

O artigo 1º que inaugura a nossa Carta Constitucional de 1988, tratou

de assentar, como traço de identidade da República Federativa do Brasil, o

Estado Democrático de Direito.

Inserto nessa idéia nuclear, e sem fugir do objetivo do presente

capítulo, estamos diante de uma disposição que impõe um modelo de Estado

de Direito, isto é, um Estado constituído por e vinculado à lei, com atribuição de

obrigatória e necessária observância da lei.

Todavia, essa decretação de respeito à lei exige, como pressuposto,

um processo, que passa, de maneira inafastável, pela aplicação da lei. Sim,

porque a significação da lei depende do ato peculiar da sua aplicação: “[...] as

leis só ganham sentido em específico ato de aplicação. É o ato de aplicação

que dá sentido individual e concreto à lei geral e abstrata.”349

Precisamente no ato de aplicação da lei reside o “poder” de interpretá-

la. Isso implica o entendimento segundo o qual, embora a lei não possibilite

margem de discricionariedade, mesmo assim, sempre existirá, no momento da

sua aplicação, “[...] indisfarçável exercício de poder: o inerente e discricionário

poder da interpretação.”350

Na linha desse raciocínio, se o Estado Democrático pressupõe a

observância da lei; esta, por sua vez, precisa ser aplicada; o que também,

demanda a necessária interpretação legal; isso quer dizer que, inerente à lei,

restará a atividade discricionária da sua interpretação; e, por isso não é

equivocada a afirmação segundo a qual a realização do Estado de Direito

decorre de atos de aplicação da lei.351

349 EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Prescrição do Direito do Fisco, Suspensão da

Exigibilidade e Segurança Jurídica, Revista Dialética..., op. cit., p. 108. 350 Ibidem, p. 108. 351 EURICO MARCO DINIZ DE SANTI ressalta: “Sem a aplicação, a lei é de papel, só

simbólica. É a aplicação que dá vida à lei, outorgando-lhe relevância e sentido”. – Ibidem, p. 109. Em sentido contrário à necessidade de aplicação da lei para a ocorrência da incidência

220

Não obstante, é nessa atividade discricionária, inerente ao ato de

aplicação da lei, que se vislumbra o risco de a Administração Pública

sobrepujar o sentido, plantado constitucionalmente, de preservação das

organizações econômicas empresariais, o que deixa entrever um aspecto mais

do que inconveniente, mesmo ameaçador ao Estado de Direito.

Na lição de EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, essa

discricionariedade no ato de aplicação da lei, consubstanciada na

interpretação, pode ocorrer relativamente à (i) margem de interpretação das

leis – o poder de atribuição de sentido – e dos fatos inerentes a esses atos;

assim como à (ii) margem de liberdade para a escolha do momento do ato de

aplicação da lei. Para a situação relativa à interpretação das leis, esta é

direcionada pelo exercício do Direito de Petição e pelo Princípio da

Universalidade da Jurisdição – artigo 5º, incisos XXXIV e XXXV, da

Constituição Federal de 1988, respectivamente. Para a situação da margem de

liberdade na escolha do momento de aplicação da lei, o controle fica por conta

dos prazos de decadência e de prescrição.352

Esse raciocínio é acertado, mas não é, entretanto, completo. Ressalte-

se, que esses prazos de decadência e prescrição são veiculados em normas

gerais e abstratas. Elas, por sua vez, devem passar pelo crivo da aplicação,

porque lei, consoante as lições de DE SANTI, sem aplicação, é simbólica, é só

um papel. Isso quer dizer que, apesar de ser uma forma de controle da

discricionariedade inerente ao ato de aplicação da lei, na sua interpretação, é,

antes, norma que deve ser aplicada, ou seja, é passível, também, de

discricionariedade na sua aplicação.

É forma de controle da discricionariedade, mas, antes, é norma, e, por

essa razão, no ato da sua aplicação, sofre a influência dessa

discricionariedade. Assim, não como instrumento de controle, mas como

norma, o ato da aplicação das normas de decadência e de prescrição, deve

respeito e submissão ao já mencionado limite da vontade constitucional.

normativa, destaca-se a lição de JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, Curso de Direito Comunitário , p. 35-39 e 42-49.

352 EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Prescrição do Direito do Fisco, Suspensão da Exigibilidade e Segurança Jurídica, Revista Dialética..., op. cit., p. 109.

221

Nas condições de discricionariedade sem observância do limite

estabelecido constitucionalmente, ela converte-se em risco para o Estado de

Direito, à medida que o foco da interpretação pode, muito bem, transitar da

“vontade da lei” para a “vontade do aplicador”.353

Se assim é, já não mais existirá o referencial na vontade, espírito,

sentido plantado na lei, o que faz perder o marco da legalidade. Se a vontade

que prevalece já não é mais aquela nascida das entranhas da lei, a primazia

fica por conta dos interesses do aplicador da lei – com foco, no presente

estudo, na Administração Pública e Tributária – que, nem sempre estará livre

de ideias tendenciosas, e que, com frequência, estará à disposição das

conveniências estatais, compatíveis como os seus particulares interesses.

Sobre esse sentido da lei ao qual nos reportamos, há uma afirmação

de DE SANTI, que, cientificamente não condiz com a exegese advinda da

hermenêutica sistemática:

Não se pode desvelar o verdadeiro sentido da lei , porque ainda que seja lei, a lei antes é palavra, que para fazer sentido tem de passar pelo presente do tempo, fixando seu sentido perante dado fato concreto, em específico ato de aplicação de autoridade [...] (grifo nosso).354

A afirmação de que “Não se pode desvelar o verdadeiro sentido da lei”,

apresenta-se como uma absolutização e uma certa resignação. O absoluto não

é um discurso compatível com a Ciência do Direito, tampouco a resignação aos

cientistas. Desvelar o verdadeiro sentido pode decorrer das tentativas dos

estudiosos do direito, no passo da sofrida descoberta de cada erro. Nesse

sentido, tentar e errar são as fórmulas que possibilitam ao outro o acerto.

É bem verdade que o legislador, pela ausência da técnica jurídica, no

exercício legiferante, muitas vezes, não consegue fazer constar da lei o seu

real objetivo. Entretanto, os diversos modelos interpretativos, especialmente a 353 ALF ROSS, Sobre El Derecho y La Justicia , p. 130. 354 Prescrição do Direito do Fisco, Suspensão da Exigibilidade e Segurança Jurídica, Revista

Dialética..., op. cit., p. 109.

222

interpretação sistemática e a semiótica são recursos que possibilitam buscar

esse conteúdo e, nesse contexto, pode-se destacar os planos sintático,

semântico e pragmático da linguagem, que guarda relação de significado entre

as normas jurídicas e as condutas intersubjetivas tipificadas, sendo, pois, nele

que se busca o significado dos signos empregados no produto legislado e, a

partir daí, já se tem o direcionamento sobre qual é o sentido da lei.355

Importantes são as palavras de OCTÁVIO CAMPOS FISCHER, ao

destacar:

Daí porque têm sido frutíferas as tentativas realizadas pelos cultores da Ciência do Direito Tributário, de direcionar a análise do seu objeto rumo a uma espécie de “semiótica jurídica”, em que as normas de determinado ordenamento são encaradas como “signos”. E o estudo da norma enquanto tal será tanto mais enriquecido se considerada a possiblidade de fazê-lo não só em nível sintático, mas, também, no semântico e no pragmático, que formariam, como expressa José Roberto Vieira, os “três planos das investigações semióticas.

(...).

É importante ressaltar, no entanto, que, com o conhecimento destes três níveis semióticos, a análise da norma sob o prisma da linguagem não produz, necessariamente, uma desvinculação entre Direito e realidade, uma vez que a linguagem é a “fiel depositária” de toda história, evolução, valores, crenças e objetivos de uma determinada comunidade. Analisa-la é, portanto, ter acesso a um sem número de importantes afirmações para a compreensão do fenômeno jurídico.356

Por essa razão, insistimos que o ato da aplicação da lei, com a sua

inerente abertura à interpretação legislativa, “tem na hermenêutica sistemática

do ordenamento jurídico a sua baliza”. No que se refere à aplicação da lei pela

Administração Pública, mesmo diante da discricionariedade inerente à

355 JOSÉ ROBERTO VIEIRA, tratando da interpretação sistemática, destaca: “Já a

‘interpretação sistemática’, ancha e larga, compreende os métodos literal e lógico, no plano sintático da linguagem, bem como os métodos histórico e teleológico, nos planos semântico e pragmático da linguagem; ou seja, a visão sistemática não só percorre todos os níveis da linguagem do direito posto, como também demanda e pressupõe todos os demais métodos interpretativos (Paulo de Barros Carvalho). Nessa técnica, não só ingressamos por inteiro no país hermenêutico, mas examinamos todos os seus cantos, analisamos todos os seus recantos, perscrutamos todas as suas sombras; passamos pelo texto sim, mas, muito além, mergulhamos fundo e demoradamente no seu contexto [...]” – Método de Interpretação Jurídica, in A Semestralidade do PIS: Favos de Abelha ou Favos de Vespa ?. Revista Dialética de Direito Tributário , p. 91-93.

356 A contribuição ao PIS , p. 22-23

223

interpretação da norma, deve-se ter em conta o sentido, vontade, espírito

estruturado na Carta Constitucional, extraído por intermédio dessa

interpretação sistemática, que servirá como diretriz, e o que, para o presente

estudo, implica a tutela das organizações econômicas empresariais.

As regras da decadência e prescrição estão estabelecidas no Código

Tributário Nacional, Lei nº 5.172/1966, de maneira inteligível ao aplicador, e,

mesmo assim, abrindo a possibilidade interpretativa, no ato da sua aplicação.

Da mesma maneira, as situações para as quais se exige um esforço

hermenêutico, porque silente a legislação em algum aspecto, em cena sempre

haverá de estar o norte extraído da Carta Suprema, no sentido de advertência:

a vontade que prevalece é a nela estabelecida e não importa alcançar os

interesses estranhos, no que se inclui o Estatal, requisito que com a

Constituição Federal for incompatível.

No capítulo segundo, foi estudada a segurança jurídica, na visão

multidimensional, segundo a doutrina de HUMBERTO ÁVILA. Nele registramos

que, sob o aspecto material da segurança jurídica, ela indica um estado de

cognoscibilidade, confiabilidade e calculabilidade. Rememorando, a

cognoscibilidade deve ser entendida como uma capacidade elevada de

compreensão das estruturas “[...] argumentativas reconstrutivas de normas”;357

confiabilidade como a confiança pelo respeito aos direitos fundamentais e pelo

próprio direito, em razão da estabilidade, durabilidade e irretroatividade do

ordenamento jurídico; e calculabilidade, como a capacidade de, em grande

medida, antecipar e medir o reduzido e pouco variável número de

consequências jurídicas aplicáveis dentro de um lapso razoável de tempo, no

qual a consequência definitiva será aplicada.

Laborando com a premissa fixada, não há cognoscibilidade quando as

“[...] alternativas normativas de sentido [...]” são em número elevado.358 Não há,

também, calculabilidade quando os espectros de consequências e de tempo

forem amplos demais. O resultado é que não haverá segurança jurídica.

357 Segurança..., op. cit., p. 268. 358 Ibidem, p. 266.

224

Portanto, as regras relativas à decadência e à prescrição tributárias

devem ser interpretadas e aplicadas de forma condizente com a vontade

constitucional de preservação da empresa, por respeito à segurança jurídica e

ratificando-os como instrumentos jurídicos à serviço da sua proteção.

Dentro da sutileza e simplicidade das palavras, sem, todavia perder a

substancial inteligência, destacamos a lição de GERALDO ATALIBA, para o

qual são seguros os cidadãos aos quais é oferecida a certeza de que o Direito

apresentado condiz com os comportamentos estatais ou com as condutas dos

seus iguais.359

O Estado Democrático de Direito tem a segurança jurídica como uma

de suas balizas, de forma que, se for permitido ao Fisco rasgar a Constituição

Federal, em nome de seus interesses particulares, sem considerar aqueles que

formam o Estado – o povo, – voltar-se-á à era do absolutismo, onde valia a lei

do mais forte, ignorando-se o direito que deve pautar as relações jurídicas,

inclusive as verticais entre o Estado e o cidadão.

CONCLUSÕES

O presente estudo, desenvolvido em quatro capítulos, chegou a

diversas conclusões, as quais restam, abaixo, reduzidas a epítome.

359 República e Constituição, p. 184.

225

CAPÍTULO 1

1. O estado exerce um papel de influência na sustentabilidade

econômica das organizações empresariais. Esse papel influenciador decorre

da forma através da qual ele, o Estado, enxerga as empresas; que, em suas

atividades econômicas, surgem, ao lado do Estado, como figuras

colaboradoras, no desenvolvimento econômico e social.

2. A parceria, nessa empreitada desenvolvimentista, justifica o

implemento de políticas de preservação, proteção, estímulo e fomento à

sustentabilidade econômica das empresas, na medida em que, em razão dessa

cooperação, elas adquirem o “status” de cumpridoras de relevante função

social.

3. Embora a função social da empresa seja um aspecto que não se

encontra expresso no ordenamento jurídico, existe uma estruturação

constitucional, alcançável por intermédio de uma análise hermenêutica

sistemática. Tal como se pode retirar, por exemplo, da proteção da dignidade

da pessoa humana, disposta no artigo 1º, III e 170 – “caput”; dos valores

sociais do trabalho – artigo 1º, IV; da livre iniciativa – artigo 1º, IV e 170,

“caput”; dos objetivos à construção de uma sociedade livre, justa e solidária –

artigo 3º, I; de garantir o desenvolvimento nacional – artigo 3º, II; da

erradicação da pobreza, da marginalização e da redução da desigualdade

social e regional – artigo 3º, III; das finalidades de assegurar a valorização do

trabalho humano – artigo 170, “caput”; a justiça social – artigo 170, “caput” e

193; e dos princípios da livre concorrência – artigo 170, IV; da proteção do

consumidor – artigo 170, V; e da defesa do meio ambiente, artigo 170, VI e

225.

4. A Constituição Federal determina que a empresa deve receber

uma atenção tutelas especiais, porque nela reconhece importância social ao

dividir com o Estado, as atribuições dele. As organizações econômicas quando

assim procedem, – como colaboradoras na proteção à dignidade humana;

redução das desigualdades, da pobreza, da marginalização; respeito à justiça

226

social etc – exercem função social, devendo-se ressaltar que não se trata

apenas de uma recomendação constitucional, porque não estamos diante de

norma programática, mas de obrigação do exercício dessa função social

5. Esse cunho obrigatório só cede, em caráter excepcional, em caso

de impossibilidade econômico-jurídica, ou seja, em caso de situação jurídica e

economicamente inviável de seu exercício. Contudo, essa exceção não

constitui argumento juridicamente capaz de extirpar a função social da empresa

do mundo jurídico.

6. Essa idéia nuclear plantada na Constituição Federal, de exercício

da função social pelas empresas, do alto da sua hierarquia, impõe ao

ordenamento jurídico infraconstitucional, a diretriz, de tutela, preservação e

estímulo à sua manutenção econômica. Aspecto esse que pode ser

vislumbrado, por exemplo na Lei nº 11.101/2005 – Lei de Recuperação Judicial

e Extrajudicial, assim como na Lei nº 6404/76 – Lei das Sociedades Anônimas,

e na Lei nº 9279/96, que regulamenta a propriedade industrial.

7. Muitos são os argumentos utilizados para recusar a idéia de

função social das empresas. Todavia, diante da sua fragilidade, servem de

subsídio fortalecedor na construção positiva da função social. O raciocínio de

onde se tira a conclusão de que a vocação da empresa pelo lucro é capaz de

aniquilar o efetivo exercício da sua função social é um excelente exemplo de

argumento que não se sustenta. O lucro é muito mais um instrumento que abre

caminho para a função social, do que um impeditivo do seu alcance. A busca

pelo lucro não é incompatível com a realização da função social.

8. No que se refere à negação em razão da ausência de

normatização que indique o conteúdo da função social da empresa, da mesma

maneira, é argumento insustentável, porque identificamos esse recheio na

Carta Constitucional de 1988 e, claro, os seus reflexos em normas

infraconstitucionais. É possível visualizar a função social da empresa sem

necessidade de legislação infraconstitucional. Mas, embora desnecessária que

haja legislação infraconstitucional enunciando a função social da empresa, ela

227

existe, muito mais para reforçar o que já se encontra substancialmente

apregoado na Constituição.

9. Da mesma forma, o discurso segundo o qual a função social da

empresa é retórica, não convence, pois o fato de a função social ter cunho

obrigatório, de acordo com a construção defendida no presente estudo, não

implica necessidade de existência de sanção para o seu cumprimento. A

ausência da sanção constitucional não quer dizer que a empresa não cumpra

com a ordem constitucional. Se a mesma viola o núcleo constitucional da

função social, está incidindo em inconstitucionalidade. E uma vez declarada tal

inconstitucionalidade – pelo judiciário que é competente para tanto –, o efeito é

o retorno ao “status quo ante”, é o desfazimento do ato. Não estamos diante de

sanção, mas de efeito da declaração de inconstitucionalidade, que submete

obrigatoriamente a empresa. Outro fator que se soma a essa desconstrução

crítica é o fato de ser desnecessário ou, até mesmo, impróprio, exigir a

imposição de pena para que a função social da empresa possa ser alcançada,

pois o sistema jurídico não se consubstancia, apenas, em normas jurídicas

dotadas de sanção, uma vez que não se pode negar a existência de normas

desprovidas de penalidades e que, no entanto, não perdem a natureza de

norma jurídica. Fica evidente que o argumento da inaplicabilidade da função

social da empresa por ausência de previsão legal de sanção não resiste a uma

análise um pouco mais apurada do fenômeno jurídico, especialmente à luz da

teoria da norma jurídica.

10. Em caso de previsão de sanção veiculada pela norma

infraconstitucional, cujo fundamento é a função social extraída da Carta

Constitucional, quando se aplica sanção prevista nessa legislação específica,

pelo descumprimento do(s) seu (s) preceito(s), em última análise, é, também,

pelo descumprimento da função social constitucional, pois esse é o fundamento

da norma. Isso quer dizer que a conduta empresarial violadora da função

social, – e não estamos mencionando a hipótese da impossibilidade jurídico-

econômica – com a reprimenda legal em forma de sanção, mesmo que de

modo não diretamente especificado para a violação precisa da função social,

ocorrerá por intermédio da sanção da prescrição infraconstitucional que

encontra o seu fundamento na função social constitucional.

228

11. Não se justifica, também, atrelar o exercício da função social à

subjetividade do dono/gestor da organização econômica e o seu desejo íntimo

de realizar a função social, pois o que está em jogo é a efetiva realização do

benefício social. Até porque a função social é realizada pela empresa e não

pela vontade de quem a gere.

12. Não é a infraestrutura econômica da empresa que lhe dá o caráter

de realizadora da função social, mas o respeito pelo modelo traçado na Lei

Maior, razão pela qual, independentemente do seu porte, às empresas cabe o

exercício dessa função.

13. Assim como há uma estruturação constitucional que permite dela

extrair a função social da empresa, é identificável, ainda, nessa ordem,

prescrições, coincidentes ou não, que, também, permitem enxergar que existe

uma organização constitucional alinhada com a vontade estatal de preservar e

fomentar as organizações econômicas, com princípios que são verdadeiros

instrumentos de incentivo, resguardo e manutenção econômica para as

organizações empresariais, quando utilizados de acordo com a vontade

traçada no sistema constitucional, tais como a livre iniciativa – artigos 1º, IV, e

170, “caput”; a livre concorrência – artigo 170, IV; o tratamento favorecido para

as empresas de pequeno porte – artigo 170, IX; o tratamento jurídico distinto

para as microempresas e para as empresas de pequeno porte – artigo 179; os

princípios indicadores das limitações da competência tributária, como os da

Legalidade, da Isonomia, da Irretroatividade, da Anterioridade e do Não-

Confisco – artigo 150, I; III, a, b e c; e IV. Esse Conjunto de prescrições

constitucionais descreve a vontade do constituinte de fortalecimento e proteção

das empresas.

14. Nesse mesmo espírito, existem disposições legislativas

infraconstitucionais que traçam, perfeitamente, a vontade de preservação e

incentivo às empresas, como a Lei nº 6404/1976, artigos 116 e 117; a Lei nº

12.529/2011; a Lei nº 9.279/96; e tantas quantas forem as disposições

infraconstitucionais que veiculem prescrições que propugnem pelo resguardo e

fomentos das empresas

229

15. Nesse contexto, existe um conjunto principiológico que reforça a

vontade estatal de incentivar e proteger o desenvolvimento da atividade

econômica empresarial, a exemplo dos Princípios da Livre Iniciativa, da Livre

Concorrência, da Dignidade da Pessoa Humana, e da Preservação da

Empresa.

CAPÍTULO 2

1. O tempo é um fator de relevo para o direito e as relações que ele

regula, possibilitando identificar o nascimento, o momento de exercício e a

extinção de direitos. Integrantes da ordem jurídica, a decadência e a

prescrição, por intermédio da previsão de lapsos temporais, precisam o tempo

no qual é possível a constituição dos fatos jurídicos de relevância tributária.

São verdadeiros símbolos da preocupação assente do direito com o tempo

2. Tão relevante, aqui, o tempo que, uma vez verificado a ocorrência

do fato previsto na norma marco inicial para fluir o prazo decadencial, e

realizado o lançamento, inicio do período prescricional, em que o transcurso

em branco do prazo de pagamento traduz-se na exigibilidade da relação

jurídica obrigacional tributária, todos os direitos e seus respectivos deveres têm

um tempo, estabelecido em lei, para serem exercitados. Fluindo os prazos até

o termo final qualquer pretensão de fazer valer o direito de constituir o direito

ao próprio crédito, e ainda, a pretensão judicial executiva, deixam de existir, e

prestigia-se, portanto, a segurança e a estabilização das relações jurídicas.

3. Demarcar prazo é o meio pelo qual a ordem jurídica obsta a

perpetuação de direitos, quando os seus titulares permanecem inertes quanto

ao seu exercício. Essa delimitação se justifica-se, na medida em que as

relações jurídicas não se podem manter por período indeterminado, quando os

interessados não reclamam por seus direitos ou o fazem fora do prazo. É por

intervenção dos institutos da decadência e da prescrição tributárias que a

ordem impõe respeito às relações jurídicas, uma vez que possibilita a garantia

230

legal de eliminação de incertezas. Trata-se do respeito ao Princípio da

Segurança Jurídica.

4. Da Carta Constitucional se extraem-se diretrizes informadoras da

decadência e da prescrição tributárias, materializadas nos Princípios da

Legalidade e da Segurança Jurídica. E quanto a este último, na sua vertente

multidimensional, exige-se o exame de todos os aspectos, dimensões e

perspectivas integrantes desse Princípio. A sua efetiva satisfação não se

subsume à certeza decorrente do conhecimento prévio, estabelecido abstrata e

hipoteticamente, na norma, e passa a ser focada na argumentação, através do

uso da linguagem e do conhecimento de critérios e estruturas hermenêuticas

que se conformam para construí-la.

5. Embora os institutos da decadência e da prescrição tributárias

sirvam como instrumentos jurídicos que limitam a satisfação de um direito

subjetivo, por intermédio da extinção da possibilidade jurídica de seu

implemento, o que materialmente os diferencia é o caráter desse direito

subjetivo envolvido. Se a limitação está relacionada com o exercício do próprio

direito, estamos diante da decadência; se a imposição de limite, por outro

turno, tem relação com o próprio direito material e com exercício do direito de

ação, a questão diz respeito à prescrição. Tratam-se de dois períodos de

transcurso de prazos diferentes: antes da constituição da obrigação e do

credito tributários – decadência – e após essa constituição – prescrição.

6. A decadência e a prescrição tributárias, podem ser analisadas

como normas gerais e abstratas ou individuais e concretas, ambas

estruturadas logicamente em hipóteses e consequências. Enquanto norma

geral e abstrata, na hipótese, descreve uma situação que é passível de

ocorrência, e que, claro, tem relação com o decurso de tempo sem o exercício

de um direito; e no consequente, a prescrição da extinção de um direito

subjetivo. Contudo, nessa condição de norma geral e abstrata, assim como as

demais normas do ordenamento jurídico, nem a decadência nem a prescrição

tem condição jurídica de realizar-se efetivamente, de sorte a promover

qualquer modificação no mundo dos fatos. Faz-se necessário, para esse

trânsito, da realidade normativa – mundo do ‘dever ser’ – para a realidade

231

social – mundo do ‘ser’ – que os comandos gerais e abstratos se convertam, ou

ganhem concreção, em normas individuais e concretas. É nessa condição, de

norma individual e concreta, que possibilitará os efeitos extintivos para os quais

foram previstas na norma geral e abstrata.

7. A Lei Complementar de normas gerais tributárias tem uma única

função, que é a de veicular normas gerais de Direito Tributário, e essas

normas, por sua vez, com conteúdo bem delimitado, buscam duas finalidades:

(i) dispõe sobre conflitos de competência entre os Entes Tributantes; (ii) regular

as limitações constitucionais da competência tributária e (iii) abranger os

objetivos específicos do artigo 146, III, c e d e parágrafo único. Apesar de as

normas gerais em matéria de legislação tributária estarem habilitadas a

disciplinar a prescrição e a decadência – artigo 146, III, ‘b’, da Constituição

Federal –, no entanto, devem limitar-se a apontar diretrizes e regras gerais.

Assim, a fixação de prazo decadencial e prescricional pode ocorrer por

intermédio de Lei Ordinária de cada Unidade Federativa, no âmbito de suas

respectivas competências tributárias, ficando reservada à Lei Complementar,

tratar sobre tal matéria, desde que seja para dispor sobre conflitos de

competência. As normas que efetivamente fixam prazos decadencial e

prescricional, no Código Tributário Nacional, foram recepcionados pela

Constituição Federal de 1988 com “status” de Lei Ordinária, assim como o tem

a lei editada pelo legislador de cada Ente Político, quando fixar tais prazos.

8. Comungamos da compreensão segundo a qual não pode haver

separação do crédito e da obrigação tributários. São figuras indissociáveis e

uma não existe sem a outra. Não há nascimento da obrigação e,

cronologicamente, posterior nascimento do crédito, constituído pelo

lançamento. Com a edição da norma individual e concreta, há o nascimento da

relação jurídica obrigacional e do crédito tributário, simultaneamente, sem

dinâmica cronológica entre eles.

9. Embora a opção do Código Tributário Nacional, em relação ao

lançamento, seja por concebê-lo como procedimento, é possível analisar o

lançamento como ato-norma administrativo, ou seja, como norma individual e

232

concreta, cuja função é a de constituir o crédito tributário, resultante do

procedimento administrativo da autoridade administrativa.

10. O lançamento tributário, conforme prescreve o Código Tributário

Nacional, tem classificação tríplice, a qual consigna as seguintes modalidades:

i) lançamento de ofício; ii) lançamento por declaração e, iii) lançamento “por

homologação”. Trata-se de uma classificação que leva em consideração o

lançamento como procedimento e não como ato administrativo, o que fomentou

a doutrina a cunhar uma classificação dúplice, ou seja, leva em consideração,

efetivamente, o sujeito – conforme a norma jurídica – que formaliza o crédito

tributário: (i) “pelo contribuinte” – mesmo que sujeita à homologação do Fisco –

e (ii) “pela autoridade fiscal”. Por essa razão, não se concebe apontar a

modalidade de lançamento vinculada à natureza do tributo.

11. Quanto a natureza jurídica do lançamento tributário, é, pois,

constitutiva, de sorte a constituir a relação jurídica obrigacional tributária,

impondo o nascimento da obrigação concomitantemente com o crédito

tributário.

CAPÍTULO 3

1. A decadência tributária é, na verdade, conformada por seis

normas gerais e abstratas diferentes, cada qual com hipóteses e consequentes

específicos. Em suma, são as seguintes regras: (i) decadência do direito

subjetivo de constituir a obrigação e o crédito tributários sem o pagamento

antecipado; (ii) decadência do direito subjetivo de constituir a obrigação e o

crédito tributários, sem o pagamento antecipado e com a notificação; (iii)

decadência do direito subjetivo de constituir a obrigação e o crédito tributários,

com o pagamento antecipado; (iv) decadência do direito subjetivo de constituir

a obrigação e o crédito tributários, com pagamento antecipado, quando

comprovado dolo e com notificação; (v) decadência do direito subjetivo de

233

constituir a obrigação e o crédito tributários, quando anulado o lançamento

anterior; (vi) decadência do direito de crédito do Fisco.

2. Em particular, sobre a norma geral e abstrata que impõe a regra

de decadência do direito subjetivo do fisco de realizar o lançamento sem

anterior pagamento antecipado pelo contribuinte e com a notificação

administrativa, se esta notificação ocorrer no intervalo de tempo abrangido pelo

evento tributário e o primeiro dia do exercício seguinte, aplica-se o artigo 173,

parágrafo único, cujo “dies a quo” é o prazo nele fixado, ou seja, a partir da

notificação. Se a notificação ocorrer após o “dies a quo” do artigo 173, I, do

“codex”, a regra a ser aplicada para efeito do inicio da contagem do prazo

decadencial só pode ser a prevista no art. 173, I, pois se trata de regra

específica, já aplicada ao tempo da notificação ao contribuinte, ou seja, que já

incidiu quando da notificação. A regra de decadência do “codex” veiculada pelo

artigo 173, parágrafo único não interfere na regra do artigo 173, I, e vice-versa.

3. Relativamente à homologação expressa, se o pagamento

antecipado é regular, o Fisco pode homologar expressamente o pagamento,

dentro do prazo de cinco anos a contar do fato jurídico tributário; se o

pagamento é irregular, o Fisco não homologa e realiza a constituição do crédito

tributário de ofício, por força do artigo 149 do Código Tributário Nacional.

4. Quando não há o dito “lançamento por homologação”, que é, na

verdade, o ato-norma instrumental de lançamento – constituição do crédito

tributário pelo contribuinte –, e, por consequência, não há, também, o seu

pagamento, não há o que ser homologado, e, portanto, cabe ao Fisco,

conforme o artigo 149, II, do Código Tributário Nacional, quando ainda não

extinto o seu direito – 149, parágrafo único, da mesma Lei – promover o

lançamento de ofício. E se o lançamento é de ofício, aplica-se a regra do artigo

173, I, da mencionada legislação, cujo prazo é de cinco anos e o “dies a quo”

encontra-se no primeiro dia do exercício seguinte àquele que ocorreu o fato

jurídico tributário.

5. Não há equívoco legislativo na previsão do artigo 156, V, do

Código Tributário Nacional, quando prevê que a decadência é uma forma de

234

extinção da obrigação tributária. Não há porque existem seis diferentes normas

gerais e abstratas da decadência tributária, das quais as disposições dos

artigos 156, V e 173, I, do Código Tributário Nacional, integram duas delas, e

se prestam a atacar o direito ao crédito tributário e o direito subjetivo de

formalizá-lo, respectivamente, o que são coisas diversas. A regra do artigo 156,

V, dispõe sobre extinção do crédito, que pressupõe, exatamente porque se

trata de extinção, um crédito constituído, todavia, realizado

extemporaneamente. Não há incongruência jurídica.

6. A disposição do artigo 173, II, do Código Tributário Nacional,

embora trate-se de uma regra específica de decadência, tem força de interferir

no prazo decadencial iniciado pela regra do artigo 173, I, do mesmo Diploma,

causando a interrupção do decurso do seu prazo, impondo o seu reinício, a

partir da notificação que dá ciência ao contribuinte da anulação do lançamento

anterior.

7. O prazo decadencial não se suspende. As disposições do artigo

151 e incisos, do Código Tributário Nacional, dizem respeito à suspensão da

exigibilidade do crédito tributário. A suspensão da exigência do crédito tributário

tem a finalidade de obstar o direito de exigi-lo, e não implica a impossibilidade

de sua formalização. É plenamente possível constituir esse crédito, o que não é

autorizado, pela disposição do referido artigo é a sua exigência. Suspender a

exigibilidade não obsta a realização do lançamento tributário.

8. É a partir dos artigos 149 e 150, “caput”, §§ 1º e 2º, do Código

Tributário Nacional, que se extrai o permissivo ao Fisco para a realização da

revisão do crédito constituído. O exercício dessa tarefa revisional há de ser

realizada dentro do prazo no qual o Fisco ainda pode realizar o lançamento

tributário, respeitado o prazo particular das regras decadenciais de cada

específico lançamento, ou seja, quando não extinto o direito subjetivo do Fisco

de constituir o crédito.

9. O entendimento do Superior Tribunal de Justiça, a partir do qual

se aplicou conjuntamente os artigos 173, I e 150, § 4º, do Código Tributário

Nacional, foi o que fez nascer a tese dos dez anos do direito do fisco efetuar o

235

lançamento em caso de tributos sujeitos a antecipação de pagamento. Todavia,

atualmente, tal entendimento resta superado. Não prosperou essa tese porque,

com tal interpretação, possibilitava a realização do lançamento tributário

quando, segundo o sistema, não existia prazo para a formalização desse ato

administrativo; porque, também, essa compreensão gerava recursividade, o

que desvirtuava a finalidade do dispositivo de extinguir o direito de lançar;

ainda, porque alargava o prazo de maneira a conceder ao Fisco o prazo de 10

anos para constituição do crédito tributário, o que não encontrava fundamento

legal; da mesma forma, se a situação aplicável envolvia o caso de tributo

sujeito à antecipação de pagamento, e sem a sua realização, não se justifica a

aplicação do art. 150, § 4º, do Código Tributário Nacional.

10. A prescrição tributária é formada por seis normas gerais e

abstratas diferentes, cada qual com hipóteses e consequentes específicos. Em

resumo, são as seguintes regras: (i) prescrição do direito subjetivo do fisco de

cobrar judicialmente o crédito tributário com a constituição desse crédito

realizada pelo contribuinte e sem pagamento antecipado; (ii) prescrição do

direito subjetivo do fisco de cobrar judicialmente o crédito tributário com a

constituição desse crédito realizada pelo contribuinte, sem pagamento

antecipado, e com causa de suspensão de exigibilidade do crédito ocorrida

antes de vencido o prazo de pagamento do crédito; (iii) prescrição do direito

subjetivo do fisco de cobrar judicialmente o crédito tributário, com a constituição

desse crédito realizada pelo fisco; (iv) prescrição do direito subjetivo do fisco de

cobrar judicialmente o crédito tributário com a constituição desse crédito

realizada pelo fisco e ocorrência de suspensão da exigibilidade do crédito antes

do prazo do seu pagamento; (v) prescrição do direito subjetivo do fisco de

cobrar judicialmente o crédito tributário, quando ocorra causa interruptiva do

prazo; e (vi) prescrição do direito subjetivo do fisco ao crédito tributário.

11. Para que seja possível o transcurso do prazo prescricional,

necessário se faz que o crédito tributário constituído, para se valer da

linguagem normativa, esteja revestido da definitividade, prevista no artigo 174,

“caput”, do Código Tributário Nacional, que se perfaz com a realização do

lançamento tributário e a sua devida notificação para pagamento. Uma vez

constituído o crédito – e notificado –, definitivo é. Essa razão definitiva não

236

afasta a sujeição à modificação ou desconstituição, seja por intermédio de

decisão administrativa ou judicial.

12. O exercício da pretensão a que tem direito o Fisco – ação de

execução –, pressupõe que o objeto sobre o qual recai o pleito – o crédito

tributário constituído – agregue uma condicional importante: a possibilidade

jurídica de ser cobrado. O crédito tributário deve ter sido constituído e

necessariamente ser exigível, o que implica o esgotamento do prazo para a

realização do seu pagamento, pois apenas se poderá falar em exigibilidade e,

portanto, submissão ao fato jurídico da prescrição, após a inadimplência do

devedor.

13. Se ocorrer uma causa suspensiva do crédito tributário – artigo 151

e incisos, do “codex” – antes do decurso do prazo para o pagamento do

crédito, ou seja, antes da sua exigibilidade, o termo inicial do prazo

prescricional é deslocado da data da notificação do crédito ao sujeito passivo,

para a data em que finda a causa suspensiva da exigibilidade. Essa é a

singular situação de suspensão do crédito capaz de modificar o “dies a quo” do

prazo prescricional, pois se ocorrer uma causa suspensiva do crédito tributário

após a sua constituição definitiva, com exigibilidade, isso em nada influencia o

termo inicial do prazo prescricional, pois este já se iniciou.

14. Assim como as situações legais hipotéticas do “codex”, artigo 151

e incisos, existe uma hipótese positivada no artigo 2º, § 3º, Lei nº 6.830/90 –

Lei de Execuções Fiscais, que também tem o condão de suspender o

transcurso de prazo prescricional. Uma vez que o crédito se torna exigível e é

realizada a inscrição em dívida ativa, em benefício do Fisco é concedido um

período de suspensão da prescrição de cento e oitenta dias (180) dias ou até

que a ação executiva fiscal seja distribuída, caso ocorra no interstício desse

prazo. Findo tal prazo, sem providência alguma do Fisco, o prazo prescricional

volta a correr.

15. A suspensão da execução fiscal não acarreta a suspensão do

prazo prescricional, conforme positivado no artigo 40, “caput”, da Lei nº

6.830/80, – Lei de Execuções Fiscais. Se a prescrição perfaz-se pela perda do

237

direito de ação, por uma questão lógico-jurídica, não se justifica a prescrição

dentro do processo se a ação, em razão da prescrição, não foi oferecida. Como

já existe processo, não cabe mais falar em prescrição, pois o direito de ação já

foi exercido. Portanto, o que o artigo 40, § 4º da mencionada Lei, veicula não é

matéria de prescrição, mas matéria relativa a suspensão da execução. Não há

possibilidade jurídica para a intitulada “prescrição intercorrente”.

15.1. Não se justifica prescrição intercorrente em Processo

Administrativo Tributário, pois a interposição de impugnação ou de recurso

administrativo, no prazo de pagamento do tributo, terem força suspensiva da

exigibilidade do crédito tributário, consoante artigo 151, III, do Código Tributário

Nacional, aspecto este que impede a cogitação do curso do prazo

prescricional.

15.2. Da mesma maneira, não encontra abrigo a alegação de

prescrição intercorrente em Processo Judicial, porque, se há processo, não

houve inércia do Fisco e não se pode falar em prescrição. Esse é o raciocínio

condizente com a prescrição: não há razão para reiniciar ou continuar um prazo

prescricional, que extingue o direito de ação, se esse direito foi exercitado.

16. O artigo 156, V, do Código Tributário Nacional, não deixa margem

a essa controvérsia doutrinária, quando diz que tanto a decadência quanto a

prescrição têm força de extinguir a obrigação tributária. E se é assim, não pode

o Fisco negar a repetição do valor pago, no prazo alcançado pela decadência e

prescrição, sob pena de se configurar enriquecimento legalmente injustificado

por parte do Fisco.

17. Das normas jurídicas da decadência e da prescrição, numa visão

de norma geral e abstrata, e analisada sob esse foco, é possível extrair os

aspectos que conformam as dimensões do Princípio da Segurança Jurídica na

perspectiva multidimensional, tais como a cognoscibilidade, a confiabilidade e a

calculabilidade. Nesse contexto analítico, satisfazem a dimensão de segurança

e cumprem com o ideal de segurança jurídica “pelo direito”, “em face do”, “de

direito”, “como um direito”, “de um comportamento”. As regras da decadência e

238

prescrição perfazem esse modelo de implementação que, na prática, cumprem

com o ideal de segurança jurídica.

18. É da natureza dessas normas o compromisso de observância do

Princípio da Segurança Jurídica, porque servem, plenamente, ao ordenamento

infraconstitucional, como instrumentos que cooperam, juridicamente, para a

proteção e resguardo da manutenção econômica estável da empresa. Ainda,

servem como instrumento apoiador da ideia de que o Estado, também por

intermédio desse ordenamento infraconstitucional, enxerga, para a figura da

empresa, a necessária tutela jurídica, em razão de a mesma desempenhar

uma função social.

CAPÍTULO 4

1. A interpretação legal e o ato de aplicação da norma ao avesso do

espírito de tutela das organizações econômicas empresariais, arquitetado no

ordenamento jurídico constitucional e infraconstitucional, acarreta implicações

negativas para a sustentabilidade econômica das empresas.

2. De nada adianta o esforço legislativo na previsão de prescrições

normativas, constitucionais e infraconstitucionais, tendentes ao reguardo ao

incentivo da empresa se, na realização das atividades estatais que dizem

respeito à empresa, seja na interpretação dessas prescrições ou na sua efetiva

aplicação, sobre as mesmas recaiam imposições incompatíveis com o sentido

da norma.

3. Os que exercem as atividades estatais devem compreender que o

ordenamento jurídico é, sim, favorável à empresa e os seus atos tem que servir

a essa finalidade protetiva. Em qualquer caso, a Administração Pública não

está habilitada à escolha da interpretação que melhor lhe convém, pois deve

ela estar adstrita à que mais se coaduna com a vontade constitucional, ou seja,

com a vontade que traduza, em maior proporção, a proteção à empresa. As

239

referências fixadas pela Administração Pública e que justificam o seu

posicionamento em uma ou outra direção, encontram essa baliza jurídica.

4. Quando a normatividade se dirige no sentido favorável ao setor

empresarial, de apoio ao seu desenvolvimento economicamente sustentável, e

o exercício das atividades do Estado se dirijam noutro sentido, o qual vislumbra

comportamentos e decisões de entendimento protetivo dos interesses do Fisco,

sem a devida observância da vontade disposta no ordenamento jurídico, é

óbvio que não há um ambiente estável e por isso propício ao desenvolvimento

do setor empresarial.

5. No ato da aplicação e a inerente interpretação das normas da

decadência e de prescrição tributárias, o relevante é que se tenha em vista a

vontade constitucional de resguardo à empresa. Se a decisão for no sentido

antagônico à tutela das organizações econômicas empresariais,

indubitavelmente, o resultado será violador da vontade constitucional e de uma

série de princípios, tais como o da Livre Iniciativa, da Livre Concorrência, da

Dignidade da Pessoa Humana, da Preservação da Empresa, da Segurança

Jurídica, da Moralidade e a Boa-Fé.

6. No ato de aplicação da lei, reside o “poder” de interpretá-la. Isso

implica o entendimento segundo o qual, embora a lei não possibilite margem de

discricionariedade, isto é, tenha traço de norma vinculada, mesmo assim,

sempre existirá, no momento da sua aplicação, uma discricionariedade

consubstanciada na liberdade de interpretação.

7. Em razão disso, tanto o ato da aplicação da lei quanto a sua

inerente abertura à interpretação legislativa, têm na hermenêutica sistemática

do ordenamento jurídico, a sua baliza, o que, para a Administração Pública,

serve como uma diretriz, na busca pela vontade e pelo espírito estruturado na

Carta Constitucional, de tutela das organizações econômicas empresariais.

8. Em cena, sempre haverá de estar o norte extraído da Carta

Suprema, no sentido de advertência: a vontade que prevalece é a nela

estabelecida e não restam alcançáveis os interesses estranhos, no que se

inclui o Estatal, que com a Constituição Federal for incompatível

240

9. A segurança jurídica deve transbordar a esfera normativa e

ingressar no campo da sua interpretação e aplicação.

10. As regras relativas à decadência e à prescrição tributárias devem

ser interpretadas e aplicadas de forma condizente com a vontade constitucional

de preservação da empresa, por respeito à segurança jurídica, ratificando-os

como instrumentos jurídicos a serviço da proteção empresarial.

11. O Estado Democrático de Direito tem um de seus fundamentos na

segurança jurídica, não se podendo permitir ao Fisco ignorar Constituição

Federal, pois ele precisa velar pelos interesses daqueles que formam o Estado

– o povo, – pois caso contrário, voltar-se-á à era do absolutismo, onde valia a

lei do mais forte, ignorando-se o direito que deve pautar as relações jurídicas,

inclusive as verticais entre o Estado e o cidadão.

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Deposite-se na Secretaria do Mestrado.

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Professor (a) Orientador (a) Curitiba, ____/_____/________

Recebido em: _______/________/________

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Secretaria