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O Satyricon enquanto fonte histórica: debates e interpretações CÉSAR ROBERTO MELO SILVA * “[...] o bom historiador deve se parecer como o ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali está a sua caça.”(BLOCH, 2001: 54) A celebre frase do então fundador 1 da escola dos Annales propõe que toda obra humana pode, se devidamente examinada, conectar o presente ao passado, logo, ser considerada como uma fonte histórica. Entretanto, o que determina se uma fonte pode ser eficaz, ou não, consiste na pergunta que fazemos a ela. Esta pergunta é mediada pelo interesse que um contemporâneo tem com o seu passado. Por exemplo, um germânico, de meados do século XIX, procurava na História argumentos que sustentasse seus ideais políticos voltados para um nacionalismo, pautado em um conceito moderno de nação, na qual o estado e a politica se fazia mais presente 2 , o que resultaria em projetos imperialistas. Para tal, buscaram-se elementos oriundos do Sacro Império Romano que justificasse essa empreitada, por exemplo, a ideia de Reich. A historiografia do século XIX esta associada a este interesse politico, onde as particularidades dos indivíduos especialmente os estadistas eram exaltadas. Neste sentido, o historiador buscava fontes que representasse objetivamente tal contexto, era muito mais interessante saber quem era Caesar, do que, o que era um Caesar. O século XX, por sua vez, debuta com uma guerra de proporções jamais vista pela humanidade, e ainda em sua primeira metade convive com uma crise econômica que atinge profundamente os grandes centros econômicos do mundo. Esta conjectura propicia novos questionamentos, e modelos políticos * Universidade Federal de São Paulo Mestrando História bolsista CAPES 1 Ao lado do então historiador Lucien Febvre, March Bloch esteve na vanguarda de um revolucionário movimento historiográfico surgido entre o final da década de 20 e inicio de 30 do século XX, denominado escola dos Annales. Em seu primeiro momento a principal característica, deste movimento, estava voltada à crítica de uma historiográfica historicizante, como a escola Metódica e a Positivista, voltadas a questões politicas, e a particularidade de indivíduos, ou seja, uma História “événementiele”. Como alternativa os Annales proporiam um modelo historiográfico que considerasse a intersecção da História com outras áreas do conhecimento, em especial as ciências humanas, na busca de respostas que evidenciassem as causas não somente o efeito. Um estudo que contribui para a vulgarização deste tema, ver: FUNARI, P.P.A; SILVA, J.G. Teoria da História. São Paulo: Brasiliense, 2001. p.55-67. Porém, para uma analise mais sistemática, sugerimos: BURKE, P.A. Escola dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da Historiografia. São Paulo: Editora da Unesp, 1991. 2 Para uma analise mais detida sobre a historicidade entorno do conceito de nação, ver: HOBSBAWM. E.J. Nações e nacionalismo desde 1780. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

César Roberto Melo Silva

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O Satyricon enquanto fonte histórica: debates e interpretações

CÉSAR ROBERTO MELO SILVA*

“[...] o bom historiador deve se parecer como o ogro da lenda. Onde

fareja carne humana, sabe que ali está a sua caça.”(BLOCH, 2001: 54)

A celebre frase do então fundador1 da escola dos Annales propõe que toda obra humana

pode, se devidamente examinada, conectar o presente ao passado, logo, ser considerada como

uma fonte histórica. Entretanto, o que determina se uma fonte pode ser eficaz, ou não,

consiste na pergunta que fazemos a ela. Esta pergunta é mediada pelo interesse que um

contemporâneo tem com o seu passado. Por exemplo, um germânico, de meados do século

XIX, procurava na História argumentos que sustentasse seus ideais políticos voltados para um

nacionalismo, pautado em um conceito moderno de nação, na qual o estado e a politica se

fazia mais presente2, o que resultaria em projetos imperialistas. Para tal, buscaram-se

elementos oriundos do Sacro Império Romano que justificasse essa empreitada, por exemplo,

a ideia de Reich. A historiografia do século XIX esta associada a este interesse politico, onde

as particularidades dos indivíduos especialmente os estadistas eram exaltadas. Neste sentido,

o historiador buscava fontes que representasse objetivamente tal contexto, era muito mais

interessante saber quem era Caesar, do que, o que era um Caesar. O século XX, por sua vez,

debuta com uma guerra de proporções jamais vista pela humanidade, e ainda em sua primeira

metade convive com uma crise econômica que atinge profundamente os grandes centros

econômicos do mundo. Esta conjectura propicia novos questionamentos, e modelos políticos

* Universidade Federal de São Paulo – Mestrando História – bolsista CAPES

1 Ao lado do então historiador Lucien Febvre, March Bloch esteve na vanguarda de um revolucionário

movimento historiográfico surgido entre o final da década de 20 e inicio de 30 do século XX, denominado escola

dos Annales. Em seu primeiro momento a principal característica, deste movimento, estava voltada à crítica de

uma historiográfica historicizante, como a escola Metódica e a Positivista, voltadas a questões politicas, e a

particularidade de indivíduos, ou seja, uma História “événementiele”. Como alternativa os Annales proporiam

um modelo historiográfico que considerasse a intersecção da História com outras áreas do conhecimento, em

especial as ciências humanas, na busca de respostas que evidenciassem as causas não somente o efeito. Um

estudo que contribui para a vulgarização deste tema, ver: FUNARI, P.P.A; SILVA, J.G. Teoria da História. São

Paulo: Brasiliense, 2001. p.55-67. Porém, para uma analise mais sistemática, sugerimos: BURKE, P.A. Escola

dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da Historiografia. São Paulo: Editora da Unesp, 1991.

2 Para uma analise mais detida sobre a historicidade entorno do conceito de nação, ver: HOBSBAWM. E.J.

Nações e nacionalismo desde 1780. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

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e econômicos passam a serem criticados. A historiografia tradicional não responderia mais as

suas demandas. Surgem então novos paradigmas para a História, como a escola dos Annales,

e a de Frankfurt, por exemplo, que passa a desenvolver uma historiografia mais

problematizada, isto exigirá além de novos métodos, novas fontes.

Neste tocante as obras literárias de diversos gêneros, contos, romances, crônicas,

fábulas, entre outros, apresentam-se como um promissor campo de análise para a História,

enquanto, “[...] uma configuração poética do real, que também agrega o imaginado,

impondo-se como uma categoria de fonte especial para a história cultural de uma sociedade”

(BORGES, 2010: 108). Baseados nestes argumentos, entendemos que o Satyricon, um

romance do inicio do Principado Romano, pode conter dados relativos à dinâmica

socioeconômica daquela época. Todavia, estabelecer este documento como fonte

historiográfica requer uma abordagem metodológica especifica, pois um,

“[...] texto literário ou documental, não pode nunca anular-se como texto, ou seja,

como um sistema construído consoante categorias, esquema de percepções e

apreciações, regras de funcionamento, que para as suas próprias condições de

produções. A relação do texto com real (que pode talvez definir-se como aquilo que

o próprio texto apresenta como real, construindo-o como referente situado no seu

exterior) constrói-se segundo modelos discursivos e delimitações intelectuais

próprios de cada situação de escrita. (CHARTIER, 2002: 63).

O texto a seguir tem como escopo apresentar os elementos históricos que propiciaram

pensar a obra de Petrônio, como uma fonte pertinente para o entendimento de uma economia

antiga, conceito este, edificado e debatido ao longo do século XIX até meado do XX. Em

seguida analisaremos as controvérsias entorno da datação e autoria do Satyricon. Por fim, uma

conclusão abordando os principais pontos no que diz respeito às questões socioeconômicas

que a obra possa evidenciar.

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A economia antiga e sua dinâmica no tempo

O termo economia como conhecemos atualmente é resultado do questionamento ao

sistema mercantilista que imperou na idade moderna3. Ele teve sua origem no século XVIII

com intelectuais como, Francis Hutchenson (1694 – 1746), David Hume (1711-1776), e os

fisiocratas como, François Quesnay (1694 – 1774), Anne Robert Jacques Turgot (1727 –

1781). Porém, foi Adam Smith (1723 – 1790) que protagonizou a sistematização da economia

enquanto ciência sujeita a suas próprias leis (SMITH, 2010: 9-18). No século XIX, momento

em que o liberalismo estava em voga no mundo ocidental, historiadores e economistas

passaram a discutir a origem dos preceitos capitalistas e consequentemente da economia.

Os germânicos passaram a ser a vanguarda desta problemática, que se propõem em

responder: Como era a economia na Antiguidade? E um dos primeiros estudos sobre este

tema que ganhou destaque no cenário acadêmico, foi baseado em uma análise evolutiva da

economia, outorgada posteriormente de primitivista. Esta concepção de pensamento teve

como interlocutor Karl Bücher (1847-1930), um economista que sintetizou suas observações

na obra, Die Entstenhung der Volkswirtschaft (A gênese da economia nacional). Não demorou

muito e este modelo passou a ser fortemente questionado, culminado em uma proposta de

estudo que tivesse como parâmetro à realidade econômica contemporânea do século XIX. E

como arauto deste pensamento, que no futuro seria intitulado de modernista, encontrava-se o

historiador Eduard Meyer (1855-1930). Passa então, a vigorar dois modos de análises da

economia antiga, análogos por apresentarem ideias tidas como anacrônicas, e, antagônicas,

quanto aos seus métodos e resultados, são estas, a primitivista e a modernista.

A controvérsia primitivista-modernista foi objeto de debate sobre a economia antiga por

mais de meio século, quando uma terceira via de estudo da economia do passado remoto

passa então, a ocupar destaque na discussão, esta por sua vez, denominada primitivista-

substantivista. Nela o estudo das praticas econômicas dos antigos gregos e romanos tinham

3 Termo é usado para fins didático para apresentar um recorte histórico que compreende o fim do império

romano em 1453 à 1789 com a revolução francesa.

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que serem observadas de forma que estas estivessem imbricadas com a política, e a cultura

destes povos. O precursor deste movimento foi Max Weber (1864-1920), seguido por

Johannes Hasebroek (1812-1896) e Karl Polanyi (1886 –1964). Entre as décadas de 50 e 60

do século XX, Moses Finley passa a protagonizar um papel fundamental na edificação deste

novo paradigma. Ele vai reconfigurar toda uma ideia de pensar a economia da antiguidade,

ocupando uma posição referencial perante seus pares4. Dentre as contribuições que este

historiador propiciou para o avanço dos estudos econômicos da Antiguidade, nos interessa

para este estudo destacar a revisão metodológica, associada à interdisciplinaridade que, por

sua vez, propõem uma ampliação e uma qualificação no que tange diretamente as fontes5.

Suas críticas aos preceitos do historicismo estão direcionadas a negligencia nos tratos com as

fontes6. Ele propõe que os documentos têm que ser exaustivamente cotejadas com outras

fontes secundarias, algo que ele observa ser pouco realizado em relação aos estudos da

História antiga (CARVALHO, 2007: 190-191).

Ao historicizar o conceito de economia antiga pudemos observar a problemática entorno

da documentação originaria da Antiguidade. Dada à carência de fontes primarias, vemos a

4 AUSTIN, M. e VIDAL-NAQUET, P. Economia e Sociedade na Grécia Antiga. Lisboa, Edição 70. p. 11.

5 Outra importante característica que podemos extrair dos escritos de, A Economia Antiga, é a influência de

Weber, Hasebroeck e Polanyi em defesa de uma nova visão sobre o primitivismo de Bücher (FINLEY, 1973: 5-

11). No que tange a Weber, ele adota a ideia de status em detrimento do conceito de classes para segmentar as

sociedades antigas. No entanto, podemos ver criticas em relação à existência de um capitalismo para o mundo

antigo, mesmo que diferenciado ao do mundo moderno (FINLEY, 1973: 5-11). Já Polanyi terá uma importante

contribuição nesta obra, pois os conceitos de disembedded e embedded serão amplamente explorados ao longo

de seus estudos.

6 Moses Finley em sua obra de maior destaque, A economia Antiga, páginas 26 e 27 destaca a dificuldade de

trabalhar com fontes primárias referentes à Antiguidade, visto a sua escassez. O historiador também aborda o

assunto em seu livro, História Antiga: testemunhos e modelos. Nesta obra no capítulo III – Os Documentos -

podemos encontrar críticas que Finley faz a respeito do uso estatístico para o mundo antigo. Para o autor, os

números são geralmente utilizados para dar um caráter de cientificidade ao método, porém inútil ao mundo

antigo devido à carência de fontes primárias. p. 37-62. Suas críticas às fontes da Antiguidade refletiram

diretamente na arqueologia, que, apesar de ele não a negligenciar por completo, atribui-lhe um valor menor a

esta em comparação as fontes escritas, considerações a esse respeito podem ser vistas em seu livro, Usos e

Abusos da História. Cabe observar que houve manifestações contrarias a tais pensamentos, destacando a

importância arqueologia nos estudos de história Antiga, a esse respeito ver: CANFORA. L. “Antiquisants et

marxisme”. Dialogues d´histoire ancienne, Vol. 7, 1981. pp. 429-436. Outros estudos interessantes sobre o

assunto são: GUARINELLO, N. L.. A Economia Antiga e A Arqueologia Rural. Clássica, São Paulo, v. 7/8, p.

271-283, 1995; e: FUNARI, P. P. A. Lingüística e Arqueologia. DELTA. Documentação de Estudos em

Linguística Teórica e Aplicada (PUCSP. Impresso), São Paulo, v. 15, n.1, p. 161-176, 1999.

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importância de estabelecer o Satyricon como um objeto pertinente para estudos desta ordem.

Sigamos nosso trabalho com o seu estabelecimento datal e autoral.

Estabelecimento do Satyricon

O Satyricon enquanto obra literária foi objeto de diversas críticas ao longo do tempo,

ora “[...] não passa do capricho de um jovem obscuro que não tem freio nem nos costumes

nem no estilo.”7, conforme observou o pensador iluminista Voltaire8; ora “[...] de todos os

escritores da Antigüidade, não há nenhum mais ‘moderno’ que Petrônio. Ele poderia entrar,

e com o pé direito, na literatura contemporânea, e seria tomado como um de nós.”, como

destacou Raymond Queneau9. As controvérsias entorno do autor e sua obra são notórias em

diversos setores acadêmicos, como por exemplo, na Literatura, como já visto, ou mesmo na

História. No que concerne a História que compreende o itinerário deste estudo, tanto

idealizador, quanto produto, fornecem subsídios significativos para uma análise do contexto

em que a obra fora composta. Posto isto, evidenciar dados pertencentes a sua, datação,

autoria, entre outros predicados, nos permitirá dirimir duvidas frequentes relacionadas a estes

tópicos, potencializando esta obra como um documento significativo, indicador, ou mesmo,

revelador, do cotidiano, dos costumes, da cultura, ou seja, das múltiplas relações de uma

sociedade complexa como a do alvorecer do Império Romano.

As controvérsias e os entendimentos temporais do Satyricon

7 Tradução obtida em (cf. AZEVEDO, 1962. p. 67). No original, “[...] n’est que le caprice d’un jeune homme

obscur, qui n’eut de frein ni dans ses mœurs, ni dans son style.”. Disponível no sítio eletrônico:

http://www.academie-francaise.fr/discours-de-reception-de-m-voltaire. Data da consulta 11/02/2015.

8 Em 9 de maio de 1746 François Marie Arouet , comumente conhecido como Voltaire, assumiu como membro

da Academia Francesa. Na ocasião proferiu um discurso, que em sua tônica, buscava uma valorização da língua

francesa, exaltando a poética em detrimento da sátira, “[...] dans la morale et dans l’art poétique ; il donna les

préceptes et les exemples ; il vit qu’à la longue l’art d’instruire, quand il est parfait, réussit mieux que l’art de

médire, parce que la satire meurt avec ceux qui en sont les victimes, et que la raison et la vertu sont éternelles.”.

O texto na íntegra esta disponível no sítio eletrônico: http://www.academie-francaise.fr/discours-de-reception-

de-m-voltaire. Data da consulta 11/02/2015.

9 Citação oriunda da apresentação elaborada por Raymond Queneau em, PETRÔNIO. Satíricon. São Paulo:

Cosac Naify, 2008. [traduzido por Cláudio Aquati]. p. 7. Tal interpretação também é tomada pelo crítico literário

e ensaísta, Fernando Azevedo, “[...] pensamentos de um lúcido vigor e conceito imprevistos pela sua delicadeza

requintada, que fazem de Petrônio “um contemporâneo do futuro”.”. AZEVEDO, F. No tempo de Petrônio:

ensaios sobre a antiguidade latina. Obras completas, vol II. 3.ed. São Paulo: Melhoramentos, 1962. p. 34.

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Estabelecer uma data, ou até mesmo um período, para a constituição do Satyricon, é

uma tarefa que requer certa cautela. Atualmente é quase consenso para a maioria dos

estudiosos desta obra, que a sua procedência remete a era neroniana, porém é pertinente

destacar, que esta determinação passou por uma severa crítica nos meios acadêmicos que se

intitulou de, a Questão Petroniana. Houve especialistas que indicaram outros momentos

históricos em que a obra pudesse ser alocada, dentre estas posições a mais comumente aceita

como alternativo ao século I d.C. se estabelece ao longo, ou até mesmo após, o Império

Antonino10.

As discussões mais sistemáticas, em contra ponto, a datação do Satyricon advinda do

Alto Império Romano, iniciam-se no final do século XVIII. Jean Nicolas Marie de Guerle

(1766-1824), escreveu o texto, Recherches sceptiques, sur le Satyricon et son auteur11, em

que apresenta a hipótese de que “Le silence absolu des auteurs des deux premiers siècles

semble prouver qu'il leur est postérieur”12. Já o historiador alemão Barthold Georg Niebhur

(1776-1831), dispõem em sua obra, Kleine historische und philologische schriften, que o

Romance pertence à era Antonina. Suas observações baseiam-se em inscrições deste período,

que revelariam a existência de um Encolpus,13 esposo de uma mulher chamada de Fortunata

(NIEBHUR, 1923: 339-343). Todavia, estas posições primárias a respeito da datação do

10 Conforme Jean-Marie Engel e Jean-Rémy Palanque, em, O Império Romano (1978), este período compreende

desde o governo de Trajano (98 à 117 d.C.) à Cômodo (180 à 192 d.C.). Porém, há historiadores como Michael I.

Rostovtzeff, que apresenta como primeiro imperador desta dinastia Nerva (96 à 98 d.C), ver: ROSTOVTZEFF,

M. História de Roma. Rio de Janeiro, Zahar, 1964. p. 207-208. Todavia, o que nos interessa, está no fato de que,

pesquisadores renomados do Satyricon, tais como, Niebhur, Marmorale, J. N. M. De Guerle, apresentarem

trabalhos que deslocam, a obra em questão, da dinastia Claudio-Juliana. As afirmações destes estudiosos

baseadas principalmente em estudos filológicos acabam por classificar que determinadas considerações dos que

defendem que o Satyricon é oriundo do século I d.C. são anacrônicas.

11 Acreditamos que o conteúdo deste texto seja análogo a outro escrito deste pensador intitulado, La Guerre

civile. Traduction libre, suivie de Recherches sceptiques, tant sur la satyre de Pétrone que sur son auteur,

datando de 1798, que esta inserido em uma edição do Satyricon.

12 DE GUERLE, J.N.M. “Recherches sceptiques, sur le Satyricon et son auteur”.In: PÉTRONE. Oeuvres

Complètes de Pétrone. Paris: Ganier Fères, 1861.(Traduit par M. Héguin de Guerle). p. XVII.

13 Niebuhr cita o nome Encolpus conforme aparece na inscrição, todavia ele não negligencia o fato do Encolpius

do Satyricon apresentar outra grafia, (NIEBUHR, 1928: 342),“[...] Ursachen unter den Freygelassenen gar nicht

feltnen Namen Encolpus oder Encolpius auf den Taugenichts [...]”(sic).

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Satyricon não sugeriam que havia uma controvérsia posta à época. A discussão ganharia

status de debate somente na primeira metade do século XX.

Aqueles adeptos da origem do Satyricon ser a posteriori fundamentam seus

argumentos, em sua maioria, em questões filológicas e linguísticas que remetem ao

vocabulário utilizado pelo autor, e o gênero, que segundo esses pesquisadores não poderiam

ser anteriores a 180 d.C. (FARVESANI, 1998: 22). Na vanguarda destas ideias encontramos

Enzo Vincenzo Marmorale (1891-1966) crítico e filólogo, que em sua obra, La Questione

Petroniana (1948), infere que o “[...] Latin of the Satyricon is uniform and contains too

“late” usages anomalies to be contemporary with Seneca Younger; it cannot have been

written until Antonine times.” (ROSE, 1971: 10). O estudioso em Literatura Clássica Kenneth

Frank Campbell Rose (1938-1967), conclui que estes argumentos encontram força quando

confrontados com análises que apresentam dados duvidosos sobre a relação do Satyricon com

a época de Nero:

“For example, the famous “satire on Nero” theory: Tacitus records that Petronius on

his deathbed sent to Nero a catalogue of the emperor’s sexual practices, instead of

the usual flattering codicilli in a will. In 1629 Gonzales de Salas argued that the

Satyricon was this catalogue. This wild theory is still being argued at the present

time.”.(ROSE, 1966: 280)

Em geral as associações do Satyricon com eventos, ou pessoas, pertencentes ao primeiro

século d.C. fomentam discursos antagônicos. A esse respeito De Guerle acrescenta, “J'ai

refute, dans la première partie, ceux qui regardent l’ouvrage de Pétrone comme la satire de

Néron; n'en parlons plus.”14. Em seguida ele elenca algumas personagens da obra, tais como,

Trimalchio, Fortvnata, Evmolpos, Agamemnon, e os relacionam receptivamente com,

Cláudio, Agripina, Lucano, e Seneca, essa associação, da qual, ele não compartilha, ele atribui

a outros pesquisadores como, Tiraboski, Burmann, e Dottiville.

Todavia, os elementos que contribuem para a manutenção da neroniana datação do

Satyricon, são bastante convincentes. Com os avanços ocorridos a partir do XIX em diversos

14 DE GUERLE, J.N.M. “Recherches sceptiques, sur le Satyricon et son auteur”.In: PÉTRONE. Oeuvres

Complètes de Pétrone. Paris: Ganier Fères, 1861.(Traduit par M. Héguin de Guerle). p. XVIII.

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campos de estudos, do ponto de vista metodológico, e até mesmo conceitual, em áreas como a

Linguística, a Filologia, a História, a Arqueologia, entre outras ciências que em alguma

medida se relacionam com o passado, as proposições dos primeiros pesquisadores que

indicavam que o texto em questão tivera sua origem ao longo do governo de Nero, adquiriram

maior credibilidade atualmente. Entre estes subsídios contemporâneos se inseri os trabalhos

de Rose15. Vejamos a seguir alguns pontos favoráveis a datação pertencente ao século I d.C..

O texto atualmente conhecido do Satyricon é composto por uma pequena parcela do que

deveria ser a sua totalidade, todavia o que nos interessa de imediato é saber que, dos poucos

fragmentos sistematizados que compõem o “inicio” do livro, trata de um assunto que nos

auxilia em determinar o seu período de elaboração, este, que por sua vez, seria a questão da

eloquência. Em dado momento do romance nosso protagonista Encolpius, exalta o

desprestigio que a eloquência apresenta em seu contexto social, momento este peculiar com

fim da república, e da guerra civil.

Em, Evidência da história: o que os historiadores veem, François Hartog aborda o

assunto, ele destaca que a virtude da eloquência na Antiguidade estaria diretamente liga a dois

fatores, o logoi (discurso), e a erga (ação). Entretanto, o Alto Império Romano tem enquanto

característica a pax romana, nesta conjuntura não haveria espaço para os grandes feitos, como

os de outrora, o que acabaria por limitar a ação, erga, do discurso, logoi, este descompasso

entre estes dois conceitos impactaram no declínio da eloquência (HARTOG, 2011: 41-44).

Fato este, que observamos constantemente no Satyricon. Evmolpos, o poeta decadente, que

quando declama seus poemas é apedrejado (PÉTRONE: LXXXIX–XC) representa esta

peculiar situação inerente ao primeiro século d.C., “Sola pruinosis horret facundia pannis,

atque inopi lingua desertas inuocat artes.” (PÉTRONE: LXXXIII). Além deste tema que nos

ajuda a periodizar a obra, outros se fazem necessário para o nosso estabelecimento.

15 J.P. Sullivan sobre, The Date and Author of the Satyricon, discorre que, “[…] present work by late Professor

Rose is therefore both opportune and necessary for a number of reasons. He has examined, with relentless

patience and thoroughness, both the traditional and more recent arguments for and against the Neronian dating,

and, in so doing, he has applied to the problem recent historical and archaeological research unavailable to

Iannelli. In particular, the literary evidence Rose brings to bear not only helps to prove the traditional dating with

far greater precision than hitherto, but serves also to place the Satyricon in its social and literary context; this

adds a great deal to our understanding and appreciation of aims and methods of work. (IN: ROSE, 1971: IX-X)

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Farvesani nos subsidia com duas observações que contribui para cremos que a origem

do Satyricon pertence ao período neroniano. A primeira se refere à aquisição de um hortis

Pompeianis por Trimalchio (PÉTRONE: LIII), a qual ele acrescenta, “[...] não faria qualquer

sentido adquirir um hortus pompeianus após 24 de agosto de 79 d.C., data do soterramento

da cidade pela erupção do Vesúvio.” (FARVESANI, 1998: 22). A segunda, esta nas citações

de nomes de pessoas que viveram no período do Alto Império Romano, como são casos de

Menecatres, músico contemporâneo de Nero, e Apelles ator trágico da era de Calígula16.

Corroborando ainda com esta posição Luisa Campuzano, observa:

[...] el descubrimiento de unos vasos de vidrio pertenecientes a la primeira mitad del

reinado neroniano, en los que aparecen com sus nombres los gladiadores Petraites y

Hemeros, muy admirados por Trimalción tanto como para tener em gran estima

unos vasos de plata maciza en los que se representaban sus combates (52.3), y

pretender que la efigie del primero fuera esculpida en su proprio monumento

funerario (71.6). A estos indicios históricos y arqueológicos se añaden, con

sustancial, y podríamos decir, casi con definitivo peso, abundantes argumentos

socioeconómicos.” (CAMPUZANO, 1984: 29).

Posto isto, os argumentos apresentados, tanto a favor, como contrario em relação à

datação do Satyricon ser estabelecida no período neroniano, nos conduz a mantermos nosso

alinhamento aos pesquisadores que instituem como pertencente ao inicio do Principado

Romano. Nesse sentido estamos em pleno acordo com o que nos informa Ernout, “[...] le

Satiricon est un << romans des temps néroniens >>, écrit par un contemporain.”(ERNOUT,

IN: PETRONE, 2009: X-XI). Vejamos a seguir quem era este contemporâneo.

Petrônio e sua época

16 Neste caso podemos inferir que o autor do Satyricon poderia ser qualquer pessoa que vivera após a dinastia

Júlio-Cladiana. Posto isso, Faversani observa que não faria sentido alguns citar estes personagem caso o autor

fosse de origem posterior ao século I d.C., nesse caso o possível leitor da obra teria que perder um certo tempo

com pesquisa, para saber quem era este ou aquele fulano. A leitura do Satyricon infere que tais personagem

seriam imediatamente captados pelo leitor( FARVESANI, 1998: 22-23).

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A dinastia Júlio-Claudiana (27 a.C. – 68 d.C.) governou Roma nos primórdios do seu

Império, sua ascensão ao poder também esta diretamente relacionada como o inicio do

Principado Romano que durou até o século III. Este governo começou com Augusto (27 a.C.

– 14 d.C.) , seguido por Tibério (14 d.C. – 37 d.C.), Calígula (37 d.C. – 41 d.C.), Cláudio (41

d.C. – 54 d.C.), e por fim, Nero (54 d.C. – 68 d.C.). Tal período é marcado por distintas

formas de exercício de poder, operacionalizada por seus respectivos imperadores, tendo como

trajetória, desde uma relação de poder mais sóbria, como foi o caso de Augusto, o qual

procurou equilibrar as diferentes estâncias de poderes (senadores, exercito, etc.), a fim de,

proporcionar uma estabilidade social e política, a uma caótica correlação de forças instaurada

pela forma de governar de Nero, que culminou na queda do poder da então casa Júlio-

Cláudiana17. A respeito desta ultima, ela apresenta peculiaridades que contribuem para

determinamos nosso recorte temporal. O período neroniano posto sua dramaticidade,

potencializada, ora por parte do temperamento instável do seu protagonista, Nero no caso; ora

pelas ações insurgentes do seu séquito, apresenta especificidades que auxiliam em analises

que buscam confrontar a figura do imperador e seu Império. Estas particularidades traduzem

um antagonismo polarizado em duas representações de poder, o senado, e o imperador, as

consequências desta dicotomia fizeram emergir documentos que não somente “oficiais”, mas

que expõem as inconformidades do Principado.

Este descompasso presente no campo social e político também fora sentido no cultural.

Anteriormente expusemos a problemática em torno da eloquência, na qual o Satyricon pode

17 Segundo Fernando Azevedo (1962: 25-26), “[...] numa sociedade ociosa, cuja única preocupação era viver e

gozar, o valor dos cidadãos não se podia aquilatar senão pelo pêso da fortuna. Assem habeas, assem valeas.

Valia cada um quanto tinha. A Roma dos Césares, desde Tibério, já se havia dividido nessas duas classes dos

ricos sibaritas e dos que traziam os olhos postos nas suas fortunas. Os próprios imperadores afiavam as unhas na

rapinagem infrene dos bens dos particulares, para cujo confisco bastava o arremêdo aparatoso de uma

conspiração.”. O pesquisador em seu texto descreve um império corrompido, que se baseava nos valores

materiais em detrimento dos valores morais outrora presente no período republicano. Entretanto, para um estudo

mais aprofundado a partir de uma metodologia histórica ver as seguintes indicações: A respeito da constituição

do Império romano a partir de uma análise macro e com intuito de vulgarização deste conhecimento ver:

GUARINELLO, N. História Antiga. São Paulo. Contexto, 2013. p. 127-160. Outra obra referencial é o clássico

de: ROSTOVTZEFF, M. História de Roma. Rio de Janeiro. Zahar. 1967. Capítulos 14 e 16. Uma obra que

proporciona uma visão marxista pautada no social e no econômico, mas que para além da militância política,

apresenta informações bem exploradas sobre o contexto analisado ver: ANDERSON, P. Passagens da

antigüidade ao feudalismo. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 390-394. Todavia, para um estudo minucioso focado

na figura do ultimo imperador da dinastia Júlio-Claudiana ver: GRIFFIN, M.T. Nero:The end of a dynasty,

London. 1984.

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11

servir de fonte profícua para estudiosos do assunto. Contudo, outras manifestações no tocante

aos valores culturais são notórias. Tomemos novamente como fonte o Satyricon, podemos

observar entre os capítulos, LXXXIII e LXXXIX, o inconformismo das personagens,

Encolpius e Evmolpos, a respeito depreciação das artes ingenuae (artes liberais), em especial

as artes plásticas, “Noli ergo mirari, si pictura defecit, cum ominibus dis hominibusque

formosior uideatur massa auri, quam quicquid Apelles Phidiasque, Graeculi delirantes,

fecurunt.” (PÉTRONE, LXXXVIII). Mas, foi a partir do campo literário que a convergência

cultura, politica, e sociedade, adquiriram contornos dramáticos.

Uma das características mais marcante do então imperador Nero residia em sua paixão,

um tanto quanto avassaladora, pela as artes. Seu período é marcado por incentivos neste

campo com a construção de espaços culturais, e patrocínio de eventos, como a, quinquenales

Neronia18, destinada a exaltação da cultura helenística. Todavia, não era na sua condição de

mecenas que o imperador queria figurar, mas enquanto artista. Fora, musico, ator, e escritor,

sem grande notoriedade nestes campos, porém, seja por respeito, ou medo, suas apresentações

eram ovacionadas, como descreve Azevedo, “[...] Cláudio Nero, cuja voz, embora fraca e

velada, o povo, ao ouvi-lo cantar em seus jardins, aclamava por divina, e cujos poemas a

assistência, paga para leituras públicas, aplaudia embasbacada.”(AZEVEDO, 1962: 26),

corroborando com esta ilustração, Tácito, descreve uma situação característica deste contexto,

na qual Nero seria agraciado injustamente em uma competição teatral, “[...] ac ne modica

quidem studia plebis exarsere, quia redditi quamquam scaenae pantomimi certaminibus

sacris prohibebantur. eloquentiae primas nemo tulit, sed victorem esse Caesarem

pronuntiatum.” (Ann., XIV, XXI). Entendemos que o príncipe via na expressão artística um

status de superioridade, algo que o destacasse perante seus antecessores, e que fosse espelho

para os sucessores. Cabe ressaltar, que esta era uma visão própria do imperador, que não

encontrava eco perante seus súditos, que preferiam vê-lo enquanto gestor público, posto que

ao qual fora bastante criticado19. Tal situação aguçou algumas insurreições, em geral dentro

18 SUETONIO. A vida dos dozes Césares. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo, Martin Claret, 2005. (Nero XII)

19 A respeito desta conotação de péssimo gestor público, muito se deve ao que podemos denominar de segunda

parte do governo de Nero, em que as tramas dedicadas à tomada do poder ficaram mais evidente, e

consequentemente as ações de retaliação por parte do governante ficaram mais cruéis, como a articulação da

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do próprio do estado, como fora a conspiração de Pisão (65 d.C.). Manteremos nosso

itinerário, por hora, em analises dos meandros que tornaram o referido período em um fértil

ambiente para novas concepções do ponto de vista artístico.

Podemos admitir que direta ou indiretamente o imperador ajudou a promover uma

reforma no modelo de construção das narrativas, surgindo assim uma forma original de

expressão artística. O classicista Martin T. Dinter, em seu texto, Introducion: The Neronian

(Literary) “Renaissance”, propõem a hipótese de que a formação intelectual do príncipe

corroborou para a edificação de um renascimento literário, em que protagonizaram a tríade,

Lúcio Aneu Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.), Marco Aneu Lucano (39 d.C – 65 d.C.), e Titus

Petrônio (DINTER, 2013).

Ambos atingiram postos importantes no governo de Nero como senadores, e até Cônsul,

como foi o caso do último, porém os mesmos tiveram destinos trágicos. Acusados de

conspiração contra o imperador20, foram obrigados a cometerem suicídio. Todavia, os escritos

destes homens nos legaram informações preciosas, se analisadas com acuidade, sobre a o

cotidiano romano. A obra Thyestes, de Sêneca21, apesar de representar uma antiga tragédia

grega, faz referências críticas ao seu presente romano. Enquanto Lucano, em a Belli Civilis,

morte de seu irmão Britânico e a da própria mãe Agripina. Relatos como estes associados a catástrofes como o

incêndio da cidade de Roma, serviram de argumentos para a sua depreciação, enquanto pessoa e gestor, por seus

imediatos biógrafos e historiadores, como foram nos casos de Suetônio e Tácito. Pedro P. Funari e Fábio Joly

assinam o artigo, Ética e ambiguidade no Principado de Nero. IN: FUNARI, P. P. A. (Org.); HECTOR, B.

(Org.). Ética e Política no Mundo Antigo. Campinas: IFCH-UNICAMP/FAPESP, 2002., no qual descreve os

valores morais do referido governo. Todavia, cabe observar que em um primeiro momento de sua administração,

houve apoio em especial do senado, que a principio passaram a gozar novamente de maiores poderes e

autonomia, como relata o próprio Tácito (Ann., XIII, 4).

20 Em 65 d. C. um grupo de políticos liderados pelo senador Caio Calpúrnio Pisão articularam um plano para por

fim a vida do imperador Nero, posto que, para estes, tal governo não mais representava os interesses romanos.

Contudo, o plano não logrou êxito e seus articuladores foram sentenciados a morte. A esse respeito ver:

TACITO, C. Annales. Texte établi et traduit par Pierre Wuilleumier. Paris: Les Belles Lettres, 2010. (XV, 48-66)

21 Cabe observar que Sêneca teve grande influência na formação intelectual de Nero, posto sua função de tutor

na juventude do então Príncipe. DINTER, M. T, Introducion: The Neronian (Literary) “Renaissance”. IN:

BUCKLEY, E; DINTER, M. T, (eds). A Companion to the Neronian Age. Blackwell Publishing, 2013.

Disponível no sítio eletrônico:

http://www.blackwellreference.com/public/book.html?id=g9781444332728_9781444332728. Data da consulta

20 de maio de 2015.

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13

expressa um tom de censura à constituição do Principado que derivou de uma guerra fratricida

entre os romanos22.

Por fim, inserido nesta seara de intelectuais engajados em uma crítica política e social

estava Petrônio e sua obra Satyricon, ambos revestidos de mistérios a respeito de suas origens.

Não há qualquer documento que comprove de forma definitiva que o autor de Satyricon seja o

então Petrônio Arbiter elegantiae (o arbitro da elegância), homem voltado para os prazeres da

vida, porém dotado de requinte e sutileza, além dos dotes para os negócios, o que levou a ser

admirado na corte. Tácito, em seus Annales (Ann, XVI, XVIII), descreveu o perfil de Titus

Gaius Petronius – arbiter elegantiae –, o qual comumente se atribui a autoria de o Satyricon.

Esta descrição do Arbiter Elegantae permitiu para a grande maioria dos estudiosos do

Satyricon, estabelecer a conexão entre o Petrônio comensal de Nero, e o autor presente nos

códices mais antigos do romance23. Esta vinculação também possibilita determinar a datação

da obra, entre 62 d.C. e 66 d.C.24. Posto isso, outras duas informações presente na obra de

Tácito nos desperta interessante.

A primeira concerne no fato de Petrônio aparecer como promissor administrador, o que

22 A esse respeito podemos verificar um contraponto ao épico de Virgílio, a Eneida, que buscava exaltar os feitos

romanos. Para uma análise mais detida sobre a produção literária de Sêneca e Lucano, ver: BUCKLEY, E.

DINTER, M.T. A Companion to the Nerionian Age. Blackwell, 2013. Parte III, respectivamente capítulos 12 e

13. Disponível no sítio eletrônico:

http://www.blackwellreference.com/public/book.html?id=g9781444332728_9781444332728. Data da consulta

20 de maio de 2015. Sobre Lucano e A Farsália, ver a introdução de Bourgery presente em, LUCAIN, La guerre

civile: La Pharsale. Texte établi et traduit par A. Bourgery. Paris: Les Belles Lettres, 2003. p. vi-xxv.

23 Destes códices oriundos do século XVI e XVII uns dos mais notórios são respectivamente, os

SCALIGERANVS, manuscritos editados por Joseph Scaliger, e o TRAGVRIENSIS, descoberto por Marino

Statileo, este códice é responsável por conter a Cena Trimalchionis, o capítulo mais extenso e completo do

Satyricon, e certamente o mais estudado. Para uma analise mais completa deste e outros códices, ver: ERNOUT.

A. Le texte de Petrone. IN: PÉTRONE. Le Satiricon. Texte établi et traduit par Alfred Ernout. 14. ed. Paris: Les

Belles Lettres, 2009.p. XVII-XXXVIII.

24 Claúdio Aquati baseia este dado nos escritos dos Annales de Tácito, em 62 d.C. Petrônio é intitulado consul

suffectus em Roma, momento este provavelmente mais apropriado para iniciar seu romance, uma vez que

outrora, entre, 60 d.C. e 61 d.C., ele estava fora da capital do império, atuando como governador da Bitínia. Já a

data de 66 d.C. coincide com sua morte, o que abre a especulação de ele possa não ter terminado sua novela.

AQUATI, C. Posfácio por Claúdio Aquati. IN: PETRÔNIO. Satíricon. São Paulo: Cosac Naify, 2008.

[traduzido por Cláudio Aquati]. p. 243.

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a primeiro momento parece ser paradoxal, posto sua inclinação aos uitiorum (vícios)25.

Entretanto, esta contradição nos autoriza a inferir que, as suas atitudes tidas como voluptuosas

de um lado, e sua condição de exímio governante do outro se convergem no Satyricon em

uma crítica ao estado, ou seja, ao Principado. O refinamento nos detalhamento das narrativas

perniciosas, um tanto quanto vulgar, mesmo que hiperbolizadas, somente poderia advir de

quem tem detém este conhecimento na práxis (em seu sentido original). Já a qualidade de

gestor público, o permitiu visualizar, segundo sua compreensão de mundo e/ou sua posição na

escala de poder, as mazelas operacionalizadas pelo imperador. Esta analise nos serve de

introdução para avaliarmos o segundo ponto de interesse, que tange diretamente as causas e as

consequências da inveja de Tigelino. (Ann, XVI, XIX)

É fato que não foi o Satyricon que levou a Petrônio a incisas venas (abrir as veias), mas

explica. É muito provável que a mesma sutileza que Petrônio tivera com a pena, também

transcorria em suas ações cotidiana, o que, por sua vez, manifestou a inuidia (inveja) alheia.

Tigelino aproveitando desta postura insurgente de Petrônio, não teve dificuldades para

relaciona-lo, a então, conspiração de Pisão. O resultado deste ato, como descrito por Tácito,

incide na decisão de por um fim a sua vida, e evitar, assim, a condenação a qual seria imposta

pelo imperador. As ultimas ações de Petrônio, concentram em atos prazerosos, relacionados à

companhia de amigos e leituras agradáveis, o que evidencia seu epicurismo e seu estoicismo

(AZEVEDO, 1962: 31-37), mas não sem manifestar sua inconformidade com os valores

morais presente nos altos escalões da sociedade romana, para tanto produziu um codicilo

desonrando o próprio Príncipe.

Incide aqui, a partir desta analise, desvincular qualquer relação deste ultimo documento

outorgado a Petrônio, com o Satyricon, mesmo que tal informação já tenha sido posta por

diversos pesquisadores26. O que dela podemos extrair, é que Petrônio estava em total

25 Azevedo assim descreve este estado dicotômico, “A sua vida alternou-se entre os prazeres e os encargos, as

virtudes e os vícios, a indolência e o trabalho.”. AZEVEDO, F. No tempo de Petrônio: ensaios sobre a

antiguidade latina. Obras completas, vol II. 3.ed. São Paulo: Melhoramentos, 1962. p. 35.

26 A esse respeito Ernout, observa, “A vrai dire, le récit lui-même de Tacite n’est pas sans invraisemblance, et

l’on s’imagine mal un homme épuisé par la perte de sang, les veines ouvertes, au seuil de la mort, trouvant,

parmi tant d’autres occupations, le temps encore d’ecrire tout au long le récit diffamatoire des débauches du

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desacordo com o rumo que o Império tomara, e que a sua militância estava acima do seu

sentimento de raiva, não fazia parte de seu perfil esse estado beligerante, “[...] Incultis

asperisque regionibus diutius niues haerent, ast ubi aratro domefacta tellus nitet, dum

loqueris, leuis pruína dilabitur. Similiter in pectoribus ira considit: feras quidem mentes

obsdet, eruditas praelabitur.” (PÉTRONE, XCIX), tamanha sobriedade se expressa no

cuidado que teve em romper o seu selo, posto no codicilo, para evitar que outros sofressem a

irá da Nero.

Conclusão

Até o presente momento pudemos avaliar, a mudança epistemológica que a História

passou, ao longo dos séculos XIX e XX, culminando em novos, métodos e ampliando o

universo documental para uso do historiador; a historicidade do conceito de economia antiga;

informações referentes à datação do Satyricon, que o coloca no período neroniano;

observamos a conjectura cultural no governo de Nero, e por fim, apresentamos Petrônio como

provável autor do Satyricon, e sua relação turbulenta com a política do Principado Romano.

Ao entendermos que o Satyricon é uma obra que esta para além do simples divertimento

que em suas linhas subtendesse críticas, a corrupção dos valores morais, a cultura, a política,

enfim, a vários predicados que compõem uma sociedade, entendemos também que a partir do

conceito de economia antiga, pautado no paradigma primitivista-substantivista, em que a

relações sociais estão diretamente imbricada com as questões financeiras, podemos mediante

a esse escrutínio, avaliar as peculiaridades inerentes à economia antiga. Atualmente o

Satyricon destacasse como uma produção de rara sofisticação nos legadas da Antiguidade

Clássica. Em particular para o campo historiográfico a obra amplia o horizonte temático em

relação aquela sociedade, outrora tão estudada sob a luz dos grupos sócias mais privilegiados,

detentores do poder daquela época27. Porém, a História dos menos favorecidos, uma parcela

prince et de son entourage”. ERNOUT. A. L’homme et L’oeuvre. IN: PÉTRONE. Le Satiricon. Texte établi et

traduit par Alfred Ernout. 14. ed. Paris: Les Belles Lettres, 2009.p. x.

27 Um texto interessante que aborda de forma de simples, porém muita informativa, sobre o uso da Antiguidade

pelos Modernos, ver: GUARINELLO, N. L. História Antiga. São Paulo: Editora Contexto, 2013. p. 17-28. Para

um estudo mais sistematizado ver: SILVA, G. J. História antiga e usos do passado: um estudo de apropriações

da antiguidade sob o regime de Vichy (1940-1944). São Paulo: Annablume, 2007.

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16

social tão importante quanto qualquer outra daquele período, mas que por questões obvias

pouco legaram, enquanto informações, para as gerações posteriores, possuímos parcas

documentações. Neste sentido, o Satyricon diminui este imenso vazio informacional sobre os

grupos subalternos, em especial os provenientes do alvorecer do Império Romano.

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