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1
LUIZ FERNANDO BARREacuteRE MARTIN
CETICISMO E DIALEacuteTICA ESPECULATIVA
NA FILOSOFIA DE HEGEL
Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciecircncias Humanas da Universidade Estadual de Campinas sob orientaccedilatildeo do Prof Dr Marcos Lutz Muumlller
Campinas
DEZEMBRO2009
2
FICHA CATALOGRAacuteFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP Por Sandra Ferreira Moreira CRB nordm 085124
Tiacutetulo em inglecircs Skepticism and speculative dialectic in Hegelrsquos philosophy
Palavras chaves em inglecircs (keywords)
Aacuterea de Concentraccedilatildeo Filosofia Titulaccedilatildeo Doutorado Banca examinadora
Data da defesa 04122009 Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia
Hegel Georg Wilhelm Friedrich 1770-1831 Dialectic Skepticism Sextus Empiricus Idealism German Criticism Philosophy German Knowledge Theory of
Roberto Bolzani Filho Eduardo Brandatildeo Joseacute Eduardo Marques Baioni Hans Christian Klotz
Martin Luiz Fernando Barreacutere M364c Ceticismo e dialeacutetica especulativa na filosofia de Hegel Luiz
Fernando Barreacutere Martin - - Campinas SP [s n] 2009 Orientador Marcos Lutz Muumlller Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e Ciecircncias Humanas
1 Hegel Georg Wilhelm Friedrich 1770-1831 2 Dialeacutetica 3 Ceticismo 4 Sexto Empiacuterico 5 Idealismo alematildeo 6 Criacutetica 7 Filosofia alematilde 8 Teoria do conhecimento I Muumlller Marcos Lutz II Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e Ciecircncias Humanas IIITiacutetulo
5
RESUMO
Trata-se inicialmente de neste trabalho analisar a leitura hegeliana da filosofia ceacutetica
especificamente o ceticismo pirrocircnico Dessa maneira seraacute possiacutevel comeccedilar a avaliar em
que medida o ceticismo eacute importante para a filosofia de Hegel em geral e em particular para
a constituiccedilatildeo de seu meacutetodo dialeacutetico especulativo Percorreremos textos de vaacuterias fases da
filosofia de Hegel no qual o ceticismo ou eacute tema central ou aparece dentro de um contexto
que tambeacutem nos interessa a saber a discussatildeo acerca do meacutetodo No que respeita a este
uacuteltimo objeto da segunda parte da tese examinaremos na Ciecircncia da Loacutegica os momentos
onde podemos observar de modo privilegiado a constituiccedilatildeo do meacutetodo dialeacutetico hegeliano a
saber a seccedilatildeo dedicada na Doutrina da Essecircncia agraves determinaccedilotildees de reflexatildeo e a seccedilatildeo
intitulada Ideacuteia Absoluta uacuteltimo capiacutetulo do livro A partir desse estudo da Ciecircncia da
Loacutegica poderemos entatildeo julgar com maior exatidatildeo no que o meacutetodo filosoacutefico hegeliano eacute
devedor da filosofia ceacutetica isto eacute como esse meacutetodo eacute formulado de modo que o ceticismo
seja integrado a ele A ideacuteia central eacute mostrar que natildeo haacute da parte de Hegel uma simples
refutaccedilatildeo do ceticismo mas antes que o ceticismo eacute a filosofia incontornaacutevel da qual se
deve partir para que a filosofia natildeo caia viacutetima das aporias ceacuteticas Essa eacute a via que Hegel
encontra para natildeo se tornar ceacutetico pirrocircnico e ao mesmo tempo natildeo ser alvo da criacutetica ceacutetica
7
ABSTRACT
First it means to analyse Hegelrsquos reading of the skeptical philosophy specifically
pyrrhonian skepticism Thus it will be possible to assess to what extent the skepticism is
important to Hegelrsquos philosophy in general and in particular for the formation of his
speculative dialectical method We will cover texts from many phases of Hegelrsquos philosophy
in which skepticism is focus or appears within a context that also interests us namely the
discussion of the method Regarding this last one subject of the second part of the thesis we
examine in Science of Logic the moments where we can observe in a special way the
formation of hegelian dialectical method the section in Doctrine of Essence that is dedicated
to the determinations of reflection and the section entitled Absolute Idea the last chapter of
the book From this study of Science of Logic we can judge more accurately what the
Hegelian philosophical method is liable to the skeptical philosophy which means how this
method is formulated in a way that skepticism is a part of it The main idea is to show that
Hegel does not try a simple refutation of skepticism more than this he shows that skepticism
is the philosophy unavoiable which preserves the philosophy from fall victim of skepticals
aporias This is the way that Hegel finds to not become skeptical pyrrhonian and also the
subject of skeptical criticism
9
Para a Luciana
11
Eacute poreacutem muito mais difiacutecil conferir fluidez aos
pensamentos fixos do que ao ser-aiacute sensiacutevel
Hegel
A razatildeo captou sua proacutepria fundaccedilatildeo na ausecircncia
de fundamento das limitaccedilotildees e particularidades
Hegel
13
AGRADECIMENTOS
Ao Prof Marcos Lutz Muumlller pela oportunidade de poder jaacute haacute alguns anos conviver
intelectualmente por sua orientaccedilatildeo rigorosa pelas indicaccedilotildees valiosas pela liberdade de
pesquisa que sempre me proporcionou fundamental para a realizaccedilatildeo desta tese e por sua
amizade
Aos Profs Roberto Bolzani e Joseacute Eduardo M Baioni pelas anaacutelises criteriosas no
meu exame de qualificaccedilatildeo que muito contribuiacuteram para o andamento posterior deste
trabalho
Ao prof Oswaldo Porchat que talvez nem se decirc conta de quanto tambeacutem participou
da orientaccedilatildeo desta tese e pela sua amizade
Agrave Capes pela bolsa de doutorado a mim concedida fundamental para a realizaccedilatildeo
deste trabalho
Ao convecircnio Capes-DAAD pela bolsa de doutorado-sanduiacuteche que me permitiu
pesquisar na Freien Universitaumlt Berlin sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Andreas Arndt e
tambeacutem pela bolsa de estudos de alematildeo em Dresden
Ao DAAD pelo auxiacutelio que me permitiu uma nova temporada de pesquisa na Freien
Universitaumlt Berlin sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Andreas Arndt
Aos meus pais Nelson e Doralice e aos meus irmatildeos Carlos Frederico e Viviane
Agrave minha famiacutelia
Ao apoio e incentivo dos amigos do Brasil e da Alemanha
Especialmente agrave Luciana que talvez natildeo tenha a dimensatildeo de o quanto foi importante
em todos os aspectos sua presenccedila e incentivo
A todos do departamento de Filosofia e da Secretaria de Poacutes-Graduaccedilatildeo do IFCH-
UNICAMP que direta ou indiretamente tornaram viaacutevel esta pesquisa
15
SUMAacuteRIO
LISTA DE ABREVIATURAS p 17
INTRODUCcedilAtildeO p 19
I ndash Ceticismo pirrocircnico e ceticismo na perspectiva hegeliana
Capiacutetulo 1 ndash O ceticismo pirrocircnico p 25
Capiacutetulo 2 ndash O ceticismo na filosofia do jovem Hegel p 49
Capiacutetulo 3 ndash O ceticismo nas Liccedilotildees sobre a histoacuteria da filosofia de Hegel p 65
II ndash A dialeacutetica-especulativa de Hegel
Capiacutetulo 1 ndash As determinaccedilotildees de reflexatildeo da identidade agrave contradiccedilatildeo especulativa p 101
Capiacutetulo 2 ndash O meacutetodo dialeacutetico-especulativo p 131
CONCLUSAtildeO p 161
BIBLIOGRAFIA p 163
17
LISTA DE ABREVIATURAS
Georg Wilhelm Friedrich Hegel
GW Gesammelte Werke Ediccedilatildeo histoacuterico-criacutetica editada pela ldquoRheinisch-Westfaumllische
Akademie der Wissenschaftenrdquo e publicada pela editora Felix Meiner Hamburg de 1968 em
diante A indicaccedilatildeo seraacute seguida do nuacutemero do volume e da paacutegina
Vol 4 Jenaer Kritische Schriften (Eds) H Buchner e O Poumlggeler 1968
Vol 9 Phaumlnomenologie des Geistes (Eds) W Bonsiepen e R Heede 1980
Vol 11 Wissenschaft der Logik Erster Band Die objective Logik Zweites Buch Die Lehre
vom Wesen (1813) (Eds) F Hogemann e W Jaeschke 1978
Vol 12 Wissenschaft der Logik Zweiter Band Die subjective Logik oder die Lehre vom
Begriff (1816) (Eds) F Hogemann e W Jaeschke 1981
Vol 20 Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830) (Eds) W
Bosiepen e H -C Lucas 1992
Vol 21 Wissenschaft der Logik Erster Band Die objective Logik Erstes Buch Die Lehre
vom Sein (1832) (Eds) F Hogemann e W Jaeschke 1984
Werke Ediccedilatildeo de Eva Moldenhauer e Karl Markus Michel Frankfurt a M
Suhrkamp em 20 volumes A indicaccedilatildeo seraacute seguida do nuacutemero do volume e da paacutegina
Vol 8 Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenchaften I Frankfurt a M Suhrkamp 1993
Vol 18 Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie I Frankfurt a M Suhrkamp
1986
Vol 19 Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie II Frankfurt a M Suhrkamp
2003
19
Introduccedilatildeo
Talvez natildeo seja demasiado dizer que no iniacutecio do seacuteculo XIX Hegel tenha sido o
filoacutesofo que mais detidamente dedicou sua atenccedilatildeo ao estudo e anaacutelise do ceticismo antigo1
Uma de suas primeiras publicaccedilotildees o artigo ienense ldquoRelacionamento do ceticismo agrave
filosofiardquo2 como o proacuteprio tiacutetulo nos informa era todo voltado para o tema e vale mencionar
que parte importante do ensaio cuidava de uma anaacutelise minuciosa do ceticismo antigo3
O interesse de Hegel pelo ceticismo antigo vem mesmo antes de sua mudanccedila para
Iena em 18014 Aleacutem disso eacute preciso ser ressaltado a presenccedila do ceticismo na filosofia
hegeliana eacute o que nos parece natildeo se restringe apenas ao primeiro periacuteodo de sua carreira
1 Em alentado estudo recente Dietmar Heidemann chega mesmo a afirmar o seguinte ldquoNa histoacuteria da filosofia ningueacutem se ocupou mais aprofundadamente do ceticismo antigo pirrocircnico do que Hegel Na sua discussatildeo com a skepsis pirrocircnica Hegel no que respeita ao problema do ceticismo chegou a juiacutezos a que mesmo um veemente adversaacuterio de sua filosofia natildeo pode em princiacutepio negar um significado filosoacutefico sistemaacutetico Entre os neo-pirrocircnicos atuais estatildeo contudo completamente esquecidas as fundamentais anaacutelises de Hegel do conceito do ceticismo ou melhor dizendo satildeo elas completamente desconhecidas por eles Isso eacute mais do que lamentaacutevel pois em muitos aspectos neo-pirronistas como Fogelin Stroud ou Nagel poderiam obter em Hegel sugestotildees produtivas para suas proacuteprias avaliaccedilotildees de maneiras ceacuteticas de problematizarrdquo Cf Heidemann D H Der Begriff des Skeptizismus (Seine systematischen Formen die pyrrhonische Skepsis und Hegels Herausforderung) BerlinNew York Walter de Gruyter Band 78 2007 p 117 Concordo com Heidemann que Hegel possui uma leitura bastante atenta e profunda do ceticismo antigo mas sem endossar sua afirmaccedilatildeo referente a ser Hegel o filoacutesofo que mais se ocupou na histoacuteria da filosofia do ceticismo antigo De fato poderiacuteamos acrescentar o desconhecimento da leitura hegeliana do ceticismo antigo por parte dos estudiosos desta filosofia chama atenccedilatildeo Pensemos por exemplo no caso de Jonathan Barnes e de Julia Annas no livro conjunto The modes of scepticism neste livro ao citarem vaacuterios filoacutesofos importantes que se ocuparam do ceticismo ndash como Montaigne Descartes Hume e Kant ndash natildeo haacute nenhuma menccedilatildeo a Hegel (Cf The modes of scepticism Cambridge Cambridge UP 1985 pp 6-7)
2 Cf GW 4 pp 197-238
3 Apesar de nesse artigo tambeacutem ser feita referecircncia ao ceticismo acadecircmico o interesse principal de Hegel eacute pelo ceticismo pirrocircnico e mais precisamente o ceticismo pirrocircnico exposto por Sexto Empiacuterico nas suas Hipotiposes Pirronianas Dessa maneira sempre que daqui em diante se falar em ceticismo antigo estaremos nos referindo ao ceticismo pirrocircnico A respeito da referecircncia ao ceticismo acadecircmico no artigo especificamente na disputa entre pirrocircnicos e acadecircmicos acerca de qual deles poderia ser o legiacutetimo representante do ceticismo ver nosso artigo ldquoAlguns aspectos da compreensatildeo hegeliana do ceticismo antigo a partir da criacutetica ao ceticismo de Gottlob Ernst Schulzerdquo pp 237-240 In Revista Dois Pontos UFSCARUFPR vol 4 nuacutemero 2 2007
4 A propoacutesito do interesse de Hegel pelo ceticismo no periacuteodo anterior agrave sua ida para Iena ver de Klaus Vieweg Philosophie des Remis (Der junge Hegel und das lsquogespenst des Skeptizismusrsquo) Muumlnchen Wilhelm Fink 1999
20
filosoacutefica que vai justamente ateacute 1807 com a publicaccedilatildeo da Fenomenologia do Espiacuterito5 O
diaacutelogo hegeliano com o ceticismo pode ser observado natildeo apenas nesse periacuteodo inicial de
sua atividade intelectual filosoacutefica visto que ele se espraia por toda sua obra
No acircmbito de um estudo a respeito das relaccedilotildees da filosofia de Hegel com o ceticismo
nossas pretensotildees satildeo modestas Isto quer dizer que natildeo eacute nosso intento neste trabalho
explorar em todos os seus aspectos a minuciosa ocupaccedilatildeo de Hegel com o ceticismo Hans
Friedrich Fulda vem no que a isso se refere inclusive a declarar que ldquocomo poucos outros o
tema lsquoceticismo e pensamento especulativorsquo eacute adequado para se discutir o conjunto do
conceito filosoacutefico hegeliano e suas conexotildees exteriores que com isso natildeo se eacute meramente
escravo de curiosidade doxograacutefica mas antes que se pode notar o mais nobre interesse por
uma ocupaccedilatildeo filosoacutefica com a histoacuteria da filosofia descobrir o que era significativo numa
filosofia passada e eacute uma demanda natildeo-satisfeitardquo6
De um ponto de vista mais amplo nos importa com efeito mostrar que o ceticismo
antigo se faz um interlocutor fundamental de Hegel no que toca agrave possibilidade de
constituiccedilatildeo e sustentaccedilatildeo de sua filosofia especulativa Nesse contexto natildeo eacute porque a
filosofia hegeliana natildeo possa obviamente ser considerada ceacutetica que isto signifique como
algueacutem poderia pensar que o filoacutesofo tenha uma visatildeo essencialmente negativa do ceticismo
pirrocircnico Muito ao contraacuterio E se Hegel tece criacuteticas ao ceacutetico elas se devem por exemplo
natildeo ao seu modo de proceder no combate ao dogmatismo mas ao resultado a que ele chega
em virtude da incapacidade de se decidir agrave maneira dogmaacutetica a suspensatildeo do juiacutezo (epokheacute)
A criacutetica ceacutetica ao dogmatismo na sua prolificidade necessita ser tomada tatildeo a seacuterio que
Hegel acaba por propor a incorporaccedilatildeo do ceticismo agrave filosofia Uma estrateacutegia poderiacuteamos
dizer de imunizaccedilatildeo De fato a integraccedilatildeo do ceticismo agrave filosofia constitui-se numa maneira
de se defender da posiccedilatildeo ceacutetica levada agraves suas uacuteltimas consequumlecircncias Hegel natildeo pretende se
tornar ceacutetico pirrocircnico Ocorre que a filosofia que almeje continuar de peacute natildeo importa em que
novos termos natildeo pode fingir que o ceticismo natildeo existe Eacute preciso como veremos estar
atento ao que ele nos pede O que significaraacute afastar duas espeacutecies de atitudes que
5 Obra na qual o ceticismo aparece como o motor do exame a que a consciecircncia submete a si mesma e cujo progredir se daacute por meio de figuras que essa consciecircncia assume Eacute necessaacuterio frisar que natildeo faraacute parte de nossa pesquisa a abordagem do ceticismo na Fenomenologia do Espiacuterito salvo alguns raacutepidos comentaacuterios a respeito do tema em notas de rodapeacute Cremos que o estudo desse texto mereceria um trabalho apenas a ele dedicado
6 Cf Fulda H F e Horstmann R P (eds) Skeptizismus und spekulatives Denken in der Philosophie Hegels Stuttgart Klett-Cotta 1996 p 26 Vale notar que este livro eacute formado por um conjunto de artigos de diversos autores a respeito de distintos aspectos nos quais o tema ceticismo pode ser vinculado agrave filosofia hegeliana
21
comumente os filoacutesofos tomam perante a filosoacutefica ceacutetica ou adoccedilatildeo ou refutaccedilatildeo dessa
postura filosoacutefica Indo aleacutem dessas duas atitudes parece-nos que a questatildeo que Hegel iraacute se
fazer eacute a seguinte Haveria possibilidade de uma filosofia que incorporasse o ceticismo agrave
mesma de modo que ele operasse no seu interior mas sem que ao final se terminasse na
assunccedilatildeo de uma posiccedilatildeo ceacutetico pirrocircnica Seria isso uma mera refutaccedilatildeo do ceticismo
Em linhas gerais Hegel natildeo vecirc desacerto na postura ceacutetica com relaccedilatildeo ao
dogmatismo Pensemos no caso da fundaccedilatildeo de um sistema filosoacutefico seria aos olhos de
Hegel arriscado fazecirc-la deixando de lado a criacutetica que porventura o ceacutetico a ela dirija Uma
vez essa criacutetica desconsiderada as chances de fracasso satildeo iminentes Em outras palavras
seria inoacutecuo tentar se esquivar da posiccedilatildeo ceacutetica Tanto eacute assim que como veremos estaraacute no
cerne da discussatildeo hegeliana acerca da fundamentaccedilatildeo em filosofia a preocupaccedilatildeo em
responder a uma possiacutevel criacutetica ceacutetica por exemplo por meio dos tropos de Agripa
Com efeito a filosofia especulativa seria aquela que a partir do ceticismo terminaria
por encontrar um outro caminho que natildeo fossem aqueles trilhados distintamente por ceacuteticos e
dogmaacuteticos Pelo menos eacute essa cremos a intenccedilatildeo de Hegel Quanto a saber se o objetivo foi
atingido ou natildeo trata-se de uma questatildeo que natildeo assumimos o compromisso de respondecirc-la
A propoacutesito seria possiacutevel ao ceacutetico considerar que a filosofia especulativa natildeo fosse
dogmaacutetica Para tentar responder questotildees desse teor talvez fosse necessaacuterio levar em conta
outros elementos implicados nessa discussatildeo Nesse sentido poderiacuteamos aqui por um lado
nos fazermos de advogado do ceacutetico contra Hegel e sustentar em seu favor como um ceacutetico
poderia acreditar na sinceridade de Hegel quando este avalia positivamente sua filosofia De
fato a linguagem de Hegel seu vocabulaacuterio a complexidade de sua filosofia e a pretensatildeo em
ir aleacutem da diaphoniacutea filosoacutefica datildeo razatildeo para o ceacutetico se afastar dessa filosofia como se esta
representasse mais uma forma de dogmatismo Por outro lado em favor de Hegel e contra o
ceacutetico poder-se-ia entre outras coisas afirmar como ele poderia bom conhecedor que era da
filosofia ceacutetica pretender elaborar um sistema filosoacutefico assentado nas mesmas balizas que o
fizeram as filosofias anteriores Estaria ele na hora de elaborar sua filosofia simplesmente se
esquecendo como que acometido de uma amneacutesia momentacircnea daquilo que positivamente
avaliara no ceticismo 7
7 Parece-nos talvez que Geacuterard Lebrun procurou avanccedilar uma resposta no sentido de mostrar que Hegel continua de onde o ceacutetico paacutera Natildeo haveria assim conflito entre os ceacuteticos e Hegel apenas que ele teria levado mais adiante a investigaccedilatildeo que os ceacuteticos por precipitaccedilatildeo deixaram ainda por fazer Vaacuterias satildeo as passagens em que Lebrun nos daacute a impressatildeo de considerar a filosofia hegeliana como uma espeacutecie de terapecircutica filosoacutefica da
22
Para aleacutem da disputa entre Hegel e o ceticismo talvez a questatildeo a ser feita devesse ser
formulada nos seguintes termos o que distinguiria essa filosofia que ao mesmo tempo
acolhe e afasta de si o ceticismo das outras filosofias O que significa essa filosofia que
almeja nem ser dogmatismo nem ceticismo
Neste estudo nossa proposta eacute a de perscrutar tendo a questatildeo do meacutetodo filosoacutefico
como ponto de fuga a respeito da singularidade dessa filosofia que se quer localizar fora dos
limites dessa arena onde se confrontam dogmaacuteticos e ceacuteticos Assim articulamos este
trabalho em duas partes na primeira trataremos especificamente do ceticismo isto eacute tanto do
ceticismo antigo (cap 1) quanto do ceticismo de acordo com a leitura que dele Hegel faz
(caps 2 e 3) A retomada do ceticismo pirrocircnico serve principalmente para que
comparativamente tenhamos elementos suficientes para avaliar a leitura hegeliana do
pirronismo e tentar melhor compreender o que levou o filoacutesofo a integrar o ceticismo em seu
sistema A seguir com a abordagem de textos de Hegel ndash de vaacuterias fases de sua obra ndash nos
quais o ceticismo ou eacute o tema principal ou esteja fundamentalmente implicado na discussatildeo
desenvolvida poderemos assim tomar aprofundadamente contato com sua interpretaccedilatildeo e
anaacutelise do ceticismo Dessa maneira teremos condiccedilotildees de compreender em que aspectos o
ceticismo positivamente avaliado torna-se importante para a concepccedilatildeo filosoacutefica hegeliana
e faz entatildeo com que ele mereccedila ser integrado agrave filosofia especulativa Aleacutem disso poderemos
observar por que ele ao mesmo tempo eacute limitado Por que por exemplo a espeacutecie de
negaccedilatildeo envolvida na investigaccedilatildeo ceacutetica significa para Hegel a admissatildeo de pressupostos que
mereceriam ser examinados Fundamentalmente a filosofia ceacutetica para Hegel tambeacutem natildeo eacute
isenta de pressupostos que mereceriam ser examinados e satildeo esses pressupostos que
impedem a ela de estender sua criacutetica ao pensamento especulativo
Na segunda parte de nosso trabalho tratamos particularmente da reformulaccedilatildeo
hegeliana do conceito de contradiccedilatildeo (cap 4) a partir da anaacutelise das determinaccedilotildees de
reflexatildeo na Loacutegica da Essecircncia Aleacutem disso no capiacutetulo 5 veremos como os resultados
obtidos no capiacutetulo anterior se refletem na constituiccedilatildeo de seu meacutetodo dialeacutetico-especulativo
tal como desenvolvido no capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica a Ideacuteia Absoluta Seraacute somente
assim a partir dessa ocupaccedilatildeo com a temaacutetica do meacutetodo que poderemos observar como a
linguagem Hegel assim natildeo seria um dogmaacutetico mas em certa medida seria antes o continuador da tarefa investigativa ceacutetica Ver a propoacutesito A paciecircncia do conceito cap 5 ldquoA dialeacutetica nos limites da simples razatildeordquo
23
filosofia especulativa procura ao mesmo tempo vencer as limitaccedilotildees do ceticismo e integraacute-
lo reformulado a si proacutepria
Em todo nosso percurso portanto a preocupaccedilatildeo principal eacute conduzir a pesquisa de
acordo com a tentativa de se compreender na elaboraccedilatildeo da dialeacutetica hegeliana como o
ceticismo pode ser superado e ao mesmo tempo conservado na filosofia hegeliana como o
lado negativo de seu meacutetodo dialeacutetico-especulativo Que natildeo haacute como se esquivar do
ceticismo pelo contraacuterio deve-se dele partir para que a filosofia natildeo seja viacutetima das suas
aporias Essa eacute a via que Hegel encontra para natildeo se tornar um pirrocircnico e simultaneamente
natildeo poder ser alvo da criacutetica ceacutetica
25
I ndash Ceticismo pirrocircnico e ceticismo na perspectiva hegeliana
Capiacutetulo 1 ndash O ceticismo pirrocircnico
Na histoacuteria da filosofia ocupa o ceticismo uma posiccedilatildeo singular Isto se deve ao fato
dele pretender ser uma forma de filosofar que natildeo possui e nem sustenta doutrinas e dogmas
E por doutrina filosoacutefica entendamos o conjunto de teses que uma filosofia procura apresentar
por meio de argumentos concatenados que por fim pretendam nos fazer crer que atingimos
por exemplo algo de verdadeiro a respeito do que eacute investigado Natildeo importa que uma
filosofia seja construiacuteda ou natildeo na forma de um sistema de teses concatenadas e desdobradas
por argumentos ou numa forma natildeo-sistemaacutetica isto eacute por exemplo na forma de aforismos O
que importa eacute que se pretenda afirmar algo de absoluto e verdadeiro a respeito do tema
filosoacutefico exposto8
Como veremos mais adiante o ceacutetico natildeo procura apresentar teses que afirmem com
verdade absoluta e aqui tanto faz se positiva ou negativamente a respeito de um tema
qualquer Ele de fato natildeo sustenta teses pelo contraacuterio procura se manter afastado de
qualquer espeacutecie de enunciaccedilatildeo que remotamente lembre o discurso teacutetico Mas se sua
filosofia natildeo pode ser considerada doutrinal da maneira acima exposta se ela natildeo pretende
dizer o verdadeiro ou como algo seria em sua verdadeira realidade entatildeo o que poderia ser
essa filosofia que vai na contramatildeo do que comumente nos acostumamos a entender por
filosofia Se o ceticismo natildeo possui uma doutrina entatildeo o que sobraria dessa filosofia
Poderia parecer agrave primeira vista que francamente pouca coisa Se uma filosofia natildeo possui
doutrina entatildeo o que seria e teria a oferecer Qual deveria ser para finalmente entrarmos no
nosso assunto o interesse que Hegel teria tido nessa filosofia sui generis
Antes de prosseguir conveacutem notar que quando nos referimos a ceticismo estamos nos
referindo ao ceticismo antigo Mais especificamente ao ceticismo tal como apresentado por
8 Cf Sexto Empiacuterico Outlines of Pyrrhonism (Hipotiposes Pirronianas) vol 1 Ed Por RG Bury Cambridge Harvard University Press 2000 livro I paraacutegrafos 13-15 [doravante citado como HP seguido da indicaccedilatildeo do livro e do paraacutegrafo]
26
Sexto Empiacuterico nas suas Hipotiposes Pirronianas e que tambeacutem poderiacuteamos denominar de
ceticismo pirrocircnico em virtude da filiaccedilatildeo que Sexto estabelece entre esse ceticismo e Pirro9
Voltando a Hegel a forma de ceticismo que lhe interessa eacute a antiga Aleacutem disso o
ponto interessante dessa filosofia seria para ele justamente essa sua falta de conteuacutedo
doutrinal Seratildeo justamente algumas caracteriacutesticas definidoras do ceticismo pirrocircnico e que o
tornam diferente das demais filosofias que faratildeo Hegel se aproximar dessa filosofia Mas o
que poder-se-ia perguntar numa filosofia natildeo-doutrinal pode haver de atrativo
filosoficamente falando Ainda mais quando se sabe que na longa histoacuteria da filosofia o
ceticismo foi em larga medida mal visto foi considerado de modo predominante uma forma
menor de pensamento Eacute certo que houve muitas vozes discordantes e algumas de peso
Hegel eacute uma delas o que todavia natildeo impede que o juiacutezo negativo tenha sido preponderante
Mas graccedilas a que a quais motivos o ceticismo foi sempre atacado O que para a
filosofia que natildeo se quer ceacutetica haveria de tatildeo perigoso nele
Podemos desde jaacute adiantar que na apreciaccedilatildeo positiva do ceticismo antigo por parte de
Hegel haacute espaccedilo para criacuteticas a essa filosofia A posiccedilatildeo de Hegel em relaccedilatildeo ao ceticismo
natildeo consiste eacute o que nos parece nem em uma mera adesatildeo integral e nem em uma simples
tentativa de refutaccedilatildeo do mesmo Cremos que a questatildeo vaacute aleacutem disso Mas que espeacutecie de
relacionamento portanto se estabelece entre a filosofia de Hegel e o ceticismo Se natildeo haacute
nem adesatildeo e nem recusa a essa filosofia o que haveria entatildeo
Mas antes de tentar responder agraves questotildees haacute pouco esboccediladas comecemos por uma
breve exposiccedilatildeo do ceticismo pirrocircnico a partir das Hipotiposes Pirronianas de Sexto
Empiacuterico Uma exposiccedilatildeo que vai se ater ao delineamento dos traccedilos principais dessa
filosofia Talvez assim fique mais faacutecil e claro compreender natildeo soacute a leitura a nosso ver
9 Acerca da filiaccedilatildeo do ceticismo a Pirro eacute uacutetil citar a seguinte observaccedilatildeo de Oswaldo Porchat ldquoTambeacutem o termo lsquoceticismorsquo se usa no vocabulaacuterio filosoacutefico em diferentes sentidos Vou considerar o termo aqui somente com referecircncia ao pirronismo grego doutrina que se desenvolveu no seacuteculo I antes de Cristo e nos primeiros seacuteculos de nossa era Nossa principal fonte para o estudo do pirronismo eacute a obra de Sexto Empiacuterico que provavelmente viveu na uacuteltima metade do seacuteculo II Os pirrocircnicos se chamaram a si mesmos de lsquoceacuteticosrsquo (skeptikoiacute em grego) e esse termo aparentado ao verbo skeacuteptomai tatildeo-somente significava lsquoaqueles que observamrsquo isto eacute lsquoaqueles que examinam consideram com atenccedilatildeorsquo O nome lsquopirrocircnicosrsquo lhes foi dado porque invocavam o nome do lendaacuterio filoacutesofo Pirro contemporacircneo e companheiro das expediccedilotildees de Alexandre como inspirador de sua doutrinardquo (Cf Porchat O ldquoEmpirismo e ceticismordquo In Rumo ao ceticismo Satildeo Paulo Ed Unesp 2006 p 296) E para uma discussatildeo em torno da filiaccedilatildeo do ceticismo a Pirro ou de sua natildeo-filiaccedilatildeo como no caso do ceticismo chamado de acadecircmico cf Bolzani F R Acadecircmicos versus Pirrocircnicos Tese de Doutorado FFLCH-USP 2003 p2 e ss
27
rigorosa e atenta que Hegel faz do ceticismo como tambeacutem em que medida essa filosofia se
incorpora agrave filosofia hegeliana
Que a filosofia ceacutetica possui um caraacuteter singular que ela como veremos pela
descriccedilatildeo de Sexto Empiacuterico natildeo corresponde agrave maneira ldquotradicionalrdquo de filosofar eacute
declarado de modo bastante niacutetido desde as primeiras linhas das Hipotiposes Pirronianas
Sexto inicia o livro distinguindo as trecircs espeacutecies de filoacutesofos que pode haver de acordo
com o resultado que cada um alcanccedila na sua investigaccedilatildeo10 Assim existem aqueles que em
virtude do resultado de suas investigaccedilotildees declaram ter descoberto a verdade outros
declaram natildeo poder ser apreendida a verdade e por fim haacute aqueles que continuam a
investigar E por que continuam a investigar Porque provavelmente natildeo chegaram a nenhum
resultado conclusivo como no caso das duas outras espeacutecies de filosofia natildeo se consideram
capazes de emitir nenhuma declaraccedilatildeo positiva ou negativa a respeito da existecircncia de uma
suposta verdade filosoacutefica
Sexto denomina entatildeo aqueles filoacutesofos que declaram ter obtido a verdade como
resultado de suas investigaccedilotildees de ldquodogmaacuteticosrdquo aqueles que afirmam ser a verdade
inapreensiacutevel de acadecircmicos e aqueles que continuam a investigar de ceacuteticos As filosofias se
dividem portanto em dogmaacutetica acadecircmica e ceacutetica
Desse iniacutecio das Hipotiposes jaacute se pode depreender que o que vai distanciando o
ceticismo das outras duas espeacutecies de filosofia eacute o fato dele natildeo chegar a uma verdade que
ponha termo agrave investigaccedilatildeo Mas devido a que motivo ou motivos o ceacutetico continua a
investigar E se ele continua a investigar eacute porque talvez ainda pretende chegar a algum
resultado parecido com aqueles que as filosofias dogmaacutetica e acadecircmica chegaram Mas o
uacutenico resultado a que chegou apoacutes ter investigado foi diferente do que ocorreu aos outros
filoacutesofos natildeo chegar a nenhuma verdade Mas natildeo chegar a nenhum verdade numa
10 A esse respeito veja-se HP I 1-4
28
investigaccedilatildeo filosoacutefica natildeo eacute algo pelo menos agrave eacutepoca de Sexto que ocorresse com
frequumlecircncia Ainda mais caracterizar uma filosofia apenas como investigaccedilatildeo permanente
Tambeacutem soa estranho dizer que a descriccedilatildeo a ser feita da filosofia ceacutetica natildeo significa
que o que foi afirmado pretenda ser a expressatildeo de como as coisas satildeo mas antes como diz
Sexto Empiacuterico ldquocomo um cronista noacutes simplesmente relatamos cada fato como ele aparece
a noacutes no momentordquo11
Agrave primeira vista parece contraditoacuterio dizer que algo seraacute afirmado mas que o
afirmado natildeo seja exatamente ldquocomo noacutes o declaramosrdquo Parece assim que se afirma algo
mas que o peso dessa afirmaccedilatildeo ndash e aqui precisamente a respeito da proacutepria descriccedilatildeo da
filosofia ceacutetica ndash natildeo eacute relevante Ora a tomar as coisas dessa maneira ficamos com a
impressatildeo de que natildeo deveriacuteamos entatildeo considerar digno de creacutedito o que se declara da
filosofia ceacutetica A continuaccedilatildeo da frase causa ainda mais estranheza ao se dizer que o relato
concernente agrave filosofia ceacutetica se faz de acordo com o que aparece ao ceacutetico no momento da
descriccedilatildeo ou seja podemos talvez concluir que aquilo que eacute dito do ceticismo poderia variar
de acordo com o momento Hoje seria de um modo e amanhatilde seria de outro
Como veremos no curso desta exposiccedilatildeo a respeito do ceticismo pirrocircnico se
inicialmente a partir do que o proacuteprio Sexto afirma podemos ser levados a enxergar com
receio e a vislumbrar contradiccedilotildees nessa filosofia veremos entatildeo depois que haacute coerecircncia e
sentido nas formulaccedilotildees de Sexto por mais diferentes e estranhas que num primeiro
momento pareccedilam Afinal uma filosofia que se caracteriza pela persistecircncia na investigaccedilatildeo
e que parte da ideacuteia de que o dito a seu respeito natildeo deve ser considerado como as coisas satildeo
mas antes de acordo com o que nos aparece no momento natildeo representa a forma canocircnica de
se fazer filosofia no decorrer de sua histoacuteria
Assim como no caso das outras formas de filosofar a origem do ceticismo foi a
esperanccedila de obter tranquumlilidade (ataraxiacutea)12 Como o ceacutetico atinge a ataraxia isto eacute uma
questatildeo que vai depender para ser respondida de como ele se posiciona perante a
possibilidade de encontrar verdade ou falsidade naquilo que investiga pois inicialmente se
trata tambeacutem para ele de tentar encontrar algo de certo definitivo verdadeiro ndash positiva ou
negativamente ndash naquilo que investiga
11 Cf HP I 4
12 Cf HP I 12
29
Segundo o relato de Sexto tambeacutem o ceacutetico perturbado com as anomalias que
encontrava nas coisas desejava chegar a algo de certo por meio da investigaccedilatildeo a respeito do
que poderia ser verdadeiro ou falso no objeto da pesquisa13 Nesse aspecto o ceacutetico natildeo se
distingue dos chamados dogmaacuteticos e acadecircmicos Tambeacutem ele almejou obter a tranquumlilidade
a partir de uma investigaccedilatildeo filosoacutefica que tivesse seu teacutermino com a descoberta da verdade
ou falsidade nas coisas Em princiacutepio portanto estatildeo os filoacutesofos unidos pela busca do
mesmo fim a saber a ataraxiacutea
Mas se contudo os outros filoacutesofos ou descobriram a verdade ou descobriram que ela eacute
inapreensiacutevel dando por conseguinte um teacutermino agraves suas investigaccedilotildees o ceacutetico natildeo teve ndash se
eacute que podemos dizer isso a seu respeito ndash a mesma sorte
Da sua pesquisa natildeo chegou ao encontro da verdade ou falsidade nas coisas de modo
que ao final se tornasse livre de perturbaccedilotildees Ao contraacuterio o que conseguiu mesmo foi se
tornar mais perturbado Nas coisas investigadas encontrou apenas discordacircncia (diaphoniacutea)
anomalias contradiccedilotildees Natildeo se sentia capaz de assentir que isto era verdadeiro em
detrimento de outra ou outra hipoacutetese que seriam falsas Nenhuma alternativa mostrava-se
mais digna de creacutedito que a outra Dessa maneira a almejada tranquumlilidade fazia-se um
objetivo difiacutecil de ser realizado Pela via da busca do verdadeiro ou do falso do que as coisas
satildeo ou natildeo satildeo real e absolutamente um objetivo cada vez mais distante
E por que com relaccedilatildeo a essa busca as coisas se passariam desse modo A resposta se
encontra no acontecimento de um fato que acabaraacute por se tornar a caracteriacutestica definidora do
que eacute o ceticismo Mais precisamente no curso de sua investigaccedilatildeo filosoacutefica o ceacutetico
terminava sempre encontrando para cada possiacutevel argumento em favor da verdade ou
falsidade de qualquer tema um argumento contraacuterio de igual forccedila (isostheacuteneia) tornando-se
portanto difiacutecil decidir-se por um ou por outro lado14
A repeticcedilatildeo dessa experiecircncia leva o ceacutetico a descrer da possibilidade de que enfim
chegue aos mesmos resultados que as outras filosofias Ele natildeo se sente capaz de decidir entre
as alternativas opostas e igualmente persuasivas A saiacuteda desse impasse natildeo consistiraacute na
opccedilatildeo por um lado ou por outro mas antes natildeo haveraacute decisatildeo nenhuma nesse sentido o que
13 Cf HP I 12
14 Cf HP I 10 tambeacutem 202-5
30
acontece sim eacute ele ser levado agrave suspensatildeo de juiacutezo (epokheacute)15 isto eacute a um estado do intelecto
(staacutesis dianoiacuteas) devido ao qual natildeo se sente capaz de nem afirmar nem negar algo16
Na suspensatildeo do juiacutezo se cristaliza essa incapacidade do ceacutetico se decidir agrave maneira
dogmaacutetica Eacute importante frisar que para a efetivaccedilatildeo da suspensatildeo de juiacutezo natildeo haacute uma atitude
deliberada e positiva do ceacutetico para que tenha o juiacutezo suspenso Ele natildeo decide que iraacute
suspender seu juiacutezo Como Sexto assinala ldquonoacutes somos levados em primeiro lugar a um estado
de intelecto suspensivordquo17
Como vemos a epokheacute eacute um estado do intelecto a que o ceacutetico eacute levado por fruto do
conflito indecidiacutevel que encontra nas coisas que investiga Reiteradamente encontra-se
diante de alternativas opostas uma tatildeo persuasiva quanto a outra Como decidir A partir de
qual criteacuterio tomar essa decisatildeo A precipitaccedilatildeo a imoderaccedilatildeo e porque natildeo dizer o capricho
e vaidade do ldquodogmaacuteticordquo contribuem para sua decisatildeo excludente de uma das alternativas
Caso fosse mais ponderado menos afoito talvez natildeo decidisse tatildeo raacutepido Do ponto de vista
do ceacutetico o problema do dogmatismo reside nisso sua precipitaccedilatildeo (propeacuteteia)
Mas voltando agrave questatildeo da incapacidade de decisatildeo devido agrave equumlipolecircncia
(isostheacuteneia) dos opostos isto eacute por forccedila da igualdade quanto agrave credibilidade e natildeo-
credibilidade dos contrapostos natildeo haacute meio de se fazer uma opccedilatildeo Soacute resta enfim suspender
o juiacutezo E como consequumlecircncia da suspensatildeo adveacutem casualmente a tranquumlilidade (ataraxiacutea)
Natildeo pretendemos adentrar neste momento no tema referente ao significado da
tranquumlilidade no ceticismo pirrocircnico conveacutem antes explicitar porque a oposiccedilatildeo de
argumentos se torna a caracteriacutestica definidora da atitude (agogeacute) filosoacutefica ceacutetica
A agogeacute ceacutetica
A certa altura do iniacutecio das Hipotiposes Sexto apresenta uma definiccedilatildeo do que eacute o
ceticismo ldquoeacute uma habilidade ou atitude intelectual que opotildee fenocircmenos a nuacutemenos de todas
15 Cf HP I 7 10 26 165
16 Cf HP I 10
17 Cf HP I 8
31
as maneiras tendo como resultado que devido agrave equipotecircncia dos objetos e discursos (loacutegois)
assim opostos somos noacutes levados primeiro a um estado suspensivo do intelecto e em seguida
a um estado de tranquumlilidade (ataraxiacutea)rdquo18
Da descriccedilatildeo acima podemos perceber que eacute fundamental para a caracterizaccedilatildeo da
filosofia ceacutetica a oposiccedilatildeo de um discurso a outro Natildeo eacute por outro motivo que Sexto
apresenta como princiacutepio baacutesico do ceticismo a oposiccedilatildeo de todo discurso a um discurso de
igual forccedila (pantiacute loacutegoi loacutegon ison antikeiacutesthai)19
Devido a que poderiacuteamos agora perguntar o ceticismo se caracteriza como uma tal
atitude (agogeacute) um tal modo de proceder
Eacute a renovada experiecircncia do conflito (diaphoniacutea) das posiccedilotildees contraacuterias que o leva a
adotar essa postura como caracterizadora da filosofia ceacutetica Diferente dos ldquodogmaacuteticosrdquo o
ceacutetico natildeo vecirc como adotar outra postura Natildeo eacute nem uma nem satildeo duas vezes que ele se vecirc
diante de discursos opostos de igual persuasividade A cada nova investigaccedilatildeo depara-se ele
com a isostheacuteneia e por consequumlecircncia eacute levado agrave suspensatildeo de juiacutezo Dessa maneira
podemos supor diante dessa frequumlente experiecircncia resolve mudar de atitude a ponto de
caracterizar sua postura filosoacutefica desse modo ineacutedito
A preocupaccedilatildeo central agora eacute tentar opor a cada discurso aquele outro que se lhe
contrapotildee tornando-se assim difiacutecil dar assentimento a um dos lados opostos em virtude da
igualdade de ambos os lados quanto agrave credibilidade ou natildeo-credibilidade do que por ele eacute
declarado Se o ldquodogmaacuteticordquo tem como meta primeira tentar apreender aquilo que eacute real
verdadeiro e nessa busca podendo chegar agrave conclusatildeo de que a apreensatildeo do real do
verdadeiro comporta duas hipoacuteteses a saber ser possiacutevel ou natildeo ser possiacutevel a apreensatildeo jaacute
o ceacutetico teraacute essa meta apenas em um horizonte distante isto eacute caberaacute primeiro exercitar a
atitude opositiva Essa espeacutecie de decepccedilatildeo a que eacute acometido toda vez que encontra conflito
nas posiccedilotildees dogmaacuteticas leva-o a adotar essa atitude com relaccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo filosoacutefica
Eacute preciso sublinhar que a atitude opositiva ceacutetica natildeo se realiza apenas com relaccedilatildeo a
temas filosoacuteficos Como estaacute descrito naquela definiccedilatildeo haacute pouco citada20 a oposiccedilatildeo se faz
18 Cf HP I 8
19 Cf HP I 12 tambeacutem HP I 8
20 Cf HP I 8
32
entre fenocircmenos e nuacutemenos de todas as maneiras Isto quer dizer que a oposiccedilatildeo natildeo segue
um certo protocolo que regule sua realizaccedilatildeo Ela se faz de variadas maneiras21 fenocircmenos a
fenocircmenos nuacutemenos a nuacutemenos fenocircmenos a nuacutemenos e por aiacute adiante Com efeito o que
Sexto pretende mostrar eacute que o conflito se pode estabelecer de muitos modos possiacuteveis Um
argumento pode se opor a uma suposta evidecircncia fenomenal Exemplo disso temos na
contestaccedilatildeo feita por Anaxaacutegoras contra o fato da neve ser branca com base no argumento de
que se a neve eacute aacutegua congelada e a aacutegua eacute preta por conseguinte a neve tambeacutem eacute preta22 O
que importa aqui portanto eacute mostrar que a oposiccedilatildeo natildeo estaacute sujeita a regras estritas ao
contraacuterio ela se efetua das mais variadas maneiras e com vistas a produzir discursos
conflitantes equumlipotentes ou seja discursos que natildeo podem ter precedecircncia um em relaccedilatildeo ao
outro quanto a ser mais digno de creacutedito23
Se o ceacutetico natildeo consegue tomar uma decisatildeo entre duas alternativas equumlipotentes
entatildeo ele eacute levado a suspender seu juiacutezo Isto significa que ele se vecirc incapacitado de decidir agrave
maneira dogmaacutetica ou seja ele natildeo correraacute o risco de dogmatizar Eacute nesse espiacuterito que eacute dito
nas Hipotiposes que em virtude da oposiccedilatildeo de argumentos ter-se-aacute como consequumlecircncia o
ceacutetico cessar de dogmatizar24 E o que quereria dizer de um modo um pouco mais preciso
cessar de dogmatizar Sexto de antematildeo esclarece que dogma natildeo deve ser aqui entendido
como o simples fato de aceitar algo determinado isto eacute o ceacutetico daria seu assentimento agraves
afecccedilotildees que a ele se impotildeem atraveacutes de uma impressatildeo Ele assim natildeo diria que natildeo lhe
parece que tenha calor ou frio ao ter a sensaccedilatildeo de calor ou frio25 Noutras palavras se ele
sente frio ele natildeo diraacute que natildeo sente frio Se dogma for entatildeo pensado no sentido do exemplo
exposto agora natildeo teria o ceacutetico nada que a ele se opor visto natildeo estar assim dogmatizando
21 Cf HP I 9
22 Cf HP I 33
23 Cf HP I 10
24 Cf HP I 12
25 Cf HP I 13
33
De fato dogma no sentido acima estaacute muito mais proacuteximo daquilo que o ceacutetico entende por
fenocircmeno Posto isso voltemos agrave questatildeo referente ao significado do ceacutetico ldquocessar de
dogmatizarrdquo
Se nos ativermos apenas agrave passagem do texto na qual Sexto expotildee a questatildeo de modo
expliacutecito poderiacuteamos ficar com a impressatildeo de que o ceacutetico esboccedila uma restriccedilatildeo ao alcance
de sua investigaccedilatildeo Tal impressatildeo poder-se-ia assim confirmar porque laacute se declara que o
ceacutetico natildeo dogmatiza caso tomemos o termo doacutegma como ldquoassentimento a qualquer das
coisas natildeo-evidentes investigadas nas ciecircnciasrdquo26 Desse modo parece que a investigaccedilatildeo
restringe-se apenas aos produtos de elaboraccedilotildees conceituais mais sofisticadas o que seria o
caso correspondente agraves ciecircncias Todavia natildeo eacute essa a intenccedilatildeo uacutenica do ceacutetico Seu escopo eacute
mais geral pois ele natildeo pretende dogmatizar natildeo apenas em relaccedilatildeo agraves ciecircncias mas tambeacutem
em relaccedilatildeo a qualquer coisa que seja natildeo-evidente
ldquoCom efeito o pirrocircnico natildeo daacute seu assentimento a nenhum dos natildeo-evidentesrdquo27
Em outra passagem das Hipotiposes veremos que a intenccedilatildeo do ceacutetico ao natildeo
dogmatizar eacute de caraacuteter mais geral pois a natildeo-evidecircncia abrange qualquer coisa objeto de
controveacutersia ldquoAliaacutes as coisas controvertidas na medida mesma em que satildeo controvertidas
exibem sua natildeo-evidecircnciardquo28 Aqui natildeo haacute mais referecircncia a objetos de uma determinada
espeacutecie visto que satildeo consideradas natildeo-evidentes simplesmente as coisas controvertidas
Devemos lembrar tambeacutem a discussatildeo haacute pouco feita a respeito da definiccedilatildeo do
ceticismo29 especificamente no que se refere agrave oposiccedilatildeo ceacutetica se realizar das mais variadas
maneiras possiacuteveis ou seja que natildeo haacute restriccedilatildeo quanto ao que vai se contrapor nuacutemenos a
fenocircmenos fenocircmenos a fenocircmenos nuacutemenos a nuacutemenos e assim por diante
26 Cf HP I 13
27 Cf HP I 13
28 Cf HP I 182
29 Ver a respeito pp 30-32 deste estudo
34
Se eacute assim entatildeo que as coisas procedem eacute porque a controveacutersia se estabelece
indiscriminadamente onde houver conflito e discrepacircncia de opiniotildees natildeo importa quanto a
quecirc existiraacute controveacutersia a respeito do que eacute natildeo-evidente30 Por aiacute jaacute podemos ter uma
amostra da radicalidade da criacutetica ceacutetica Natildeo haacute nada que fique a salvo de suas investidas31
Tal radicalidade do ceticismo trouxe por outro lado problemas ao ceacutetico pois a sua criacutetica
foi alvo de muita incompreensatildeo
A partir de agora e ainda no acircmbito dessa discussatildeo acerca do ceacutetico evitar
dogmatizar conveacutem analisar a questatildeo concernente ao estatuto natildeo-dogmaacutetico da linguagem
ceacutetica
Quando no iniacutecio das Hipotiposes Sexto nos alerta para o fato de que suas afirmaccedilotildees
natildeo podem ser tomadas exatamente tal como proferidas e que o alegado a respeito do
ceticismo tem de ser encarado como o relato de um cronista32 Sexto estaacute apenas se
expressando eacute o que nos parece de acordo com uma concepccedilatildeo natildeo-dogmaacutetica da linguagem
ou tambeacutem poderiacuteamos dizer uma concepccedilatildeo ldquomais frouxardquo da mesma
A ideacuteia central para que possamos compreender o caraacuteter das foacutermulas ceacuteticas eacute a de
instrumentalidade O ceacutetico natildeo busca como o dogmaacutetico dizer o real o verdadeiro como as
30 No mesmo sentido Roberto Bolzani sustenta que a contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos natildeo se restringe a determinada classe de objetos isto eacute natildeo se restringe apenas a discursos filosoacuteficos ou cientiacuteficos mas que abrange tambeacutem opiniotildees de caraacuteter mais ruacutestico como por exemplo a suposta lsquoevidecircncia sensiacutevelrsquo de que lsquoagora eacute diarsquo ldquo[] a contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos diz respeito a lsquofenocircmenosrsquo e lsquonuacutemenosrsquo o que significa que a mais simples ndash e na verdade problemaacutetica ndash lsquoevidecircncia sensiacutevelrsquo natildeo escapa de seu caminho A isostheacuteneia natildeo ocorre apenas entre discursos filosoacuteficos que respectivamente afirmem ou neguem por exemplo a existecircncia de uma providecircncia no mundo encontra-se tambeacutem entre duas diferentes visotildees de uma torre ndash uma proacutexima mostrando-a redonda outra distante revelando-a quadrada (cf HP I 32) E natildeo haacute diferenccedila de intensidade persuasiva entre pretensas evidecircncias oriundas de diferentes fontes argumentos e dados sensoriais imediatos todos se misturam em isostheacuteneia como se vecirc por exemplo na anaacutelise do tempo lsquoa julgar pelos fenocircmenos o tempo parece ser algo mas a julgar pelos fenocircmenos o movimento eacute algo mas a julgar pelo discurso filosoacutefico natildeo existersquo(AM X 49)rdquo Cf Bolzani R O ceticismo pirrocircnico na obra de Sexto Empiacuterico Dissertaccedilatildeo de Mestrado FFLCH-USP 1992 pp 36-37
31 Essa criacutetica radical que chamaraacute a atenccedilatildeo de Hegel para a filosofia ceacutetica
32 Cf HP I 4
35
coisas (praacutegmata)33 satildeo em si mesmas Natildeo tenciona que suas asserccedilotildees suas foacutermulas sejam
a expressatildeo de qualquer sentido absoluto O ldquodogmaacuteticordquo sim ele tenciona fornecer um
caraacuteter absoluto verdadeiro ao que afirma Tambeacutem o homem comum muitas vezes intenta se
expressar a respeito de qualquer aspecto de sua vida num sentido amplo de uma maneira
dogmaacutetica isto eacute que possa dizer algo absoluta e verdadeiramente Apenas conveacutem notar
que ele o faz sem a sofisticaccedilatildeo e a elaboraccedilatildeo do discurso filosoacutefico
Diferente dos filoacutesofos e do homem comum ldquoo ceacutetico natildeo potildee suas foacutermulas em
nenhum sentido absolutordquo34 Fundamentalmente o que ele diz natildeo possui a intenccedilatildeo de
expressar o real o verdadeiro o absoluto Em outras palavras natildeo pretende por meio de seu
discurso dogmatizar Tanto na sua vida quanto no combate ao dogmatismo procura ele
sempre evitar dogmatizar
Tomemos entatildeo como objeto de anaacutelise o combate ao dogmatismo e tentemos ver
nesse caso em que sentido ele se expressa mas sem dogmatizar
Quando o ceacutetico natildeo se sente capaz de declarar algo dogmaticamente a respeito das
coisas natildeo-evidentes que investiga simplesmente enuncia ele uma certa afecccedilatildeo Isto quer
dizer que ele apenas estaacute enunciando algo que a ele se impotildee e natildeo pode evitar a saber que
natildeo se vecirc em condiccedilotildees de dizer que isto eacute mais verdadeiro do que aquilo que esta tese
filosoacutefica seja mais plausiacutevel do que aquela outra em suma natildeo eacute capaz de asserir algo
dogmaticamente Neste sentido parece-nos que tecircm de ser compreendidas as ldquofoacutermulasrdquo dos
ceacuteticos anuacutencio de suas humanas afecccedilotildees35 daquilo que lhe aparece
Por natildeo conseguirem nem afirmar nem negar nada a respeito de qualquer tema natildeo-
evidente investigado acabam eles referindo-se a essa situaccedilatildeo pela qual passam por meio de
foacutermulas que expressam essa incapacidade
33 Coisas aqui devendo ser entendidas num sentido amplo ou seja com referecircncia tanto ao que chamamos de fenocircmeno quanto ao que chamamos de nuacutemenos A distinccedilatildeo entre fenocircmenos ou coisas sensiacuteveis e entre nuacutemenos ou coisas inteligiacuteveis eacute elaborada pelo assim chamado pensamento dogmaacutetico Vale antecipar que se o ceacutetico fala por exemplo em fenocircmenos natildeo estaacute ele se expressando dentro do quadro dessa distinccedilatildeo Na continuaccedilatildeo do nosso tratamento do tema da linguagem no ceticismo tentaremos esclarecer o motivo pelo qual o ceacutetico pode ainda se utilizar de termos carregados de significado dogmaacutetico sem no entanto incorrer em dogmatismo
34 Cf HP I 14
35 Cf HP I 203
36
Se essas foacutermulas podem transmitir a impressatildeo de que expressam como as coisas satildeo
absolutamente que o ceacutetico esteja afirmando ou negando algo eacute preciso atentar para o fato de
que essas foacutermulas satildeo expressotildees de algo que ao ceacutetico se impotildee que lhe aparece Tratam-se
de meras afecccedilotildees Ao dedicar algumas seccedilotildees das Hipotiposes36 ao comentaacuterio das foacutermulas
ceacuteticas natildeo eacute outra sua intenccedilatildeo que natildeo a de esclarecer de que maneira natildeo-dogmaacutetica elas
satildeo enunciadas e o que se pretende expressar por meio delas
Quando o ceacutetico diz por exemplo ldquoque todas as coisas satildeo indeterminadasrdquo natildeo
existe a tentativa de afirmar definitivamente que das coisas nada em nenhuma hipoacutetese possa
ser determinado Mas antes que a indeterminaccedilatildeo significa um estado de intelecto (paacutethos
dianoiacuteas) no qual o ceacutetico natildeo se sente capaz de negar ou afirmar algo e mais precisamente a
respeito de temas propostos pela investigaccedilatildeo dogmaacutetica isto eacute daquilo que eacute natildeo-evidente37
Assim38 quando diz que ldquotodas as coisas satildeo indeterminadasrdquo a palavra lsquosatildeorsquo apenas
quer significar lsquoaparece a elersquo e por lsquotodas as coisasrsquo ele somente se refere agraves coisas natildeo-
evidentes investigadas pelos dogmaacuteticos e que foram apenas essas objetos do seu exame
finalmente por lsquoindeterminadasrsquo quer ele dizer que agraves coisas opostas ou em relaccedilatildeo agraves quais
conflitam natildeo sejam [essas coisas natildeo-evidentes] superiores no que respeita agrave credibilidade
ou incredibilidade Sexto repete o mesmo procedimento de anaacutelise em relaccedilatildeo agraves outras
foacutermulas ceacuteticas apresentadas nas Hipotiposes e sempre com o intuito de apontar o caraacuteter
natildeo-dogmaacutetico das mesmas
Nesse contexto se pode compreender segundo o relato de Sexto porque essas
foacutermulas se cancelam juntamente com aquilo a que se aplica a duacutevida ceacutetica39 Cancelam-se
no sentido de que natildeo podem ser tomadas como testemunho de um dogma Nem poderia ser
de outra maneira pois se o ceacutetico natildeo pretende dogmatizar nem suas proacuteprias declaraccedilotildees a
respeito do seu estado de incapacidade em tomar uma decisatildeo podem contrariar a sua atitude
filosoacutefica
A propoacutesito de suas foacutermulas eacute bem conveniente a imagem que ele se utiliza para
esclarecer em que sentido suas foacutermulas satildeo anuladas por elas mesmas
36 Ver a respeito HP I 187-209
37 Cf HP I 198
38 Sobre o que se diraacute a seguir veja-se HP I 198
37
ldquoAliaacutes no que respeita agraves expressotildees ceacuteticas eacute preciso primeiro compreender que noacutes
natildeo fazemos nenhuma asserccedilatildeo positiva no que se refere a elas serem absolutamente
verdadeiras visto que noacutes dizemos que elas podem ser anuladas por si proacuteprias suprimindo-se
ao mesmo tempo que as coisas a propoacutesito das quais elas satildeo ditas assim como aquelas drogas
purificadoras que natildeo somente eliminam os humores do corpo mas tambeacutem a si mesmas com
os humores se expelemrdquo40
Uma vez cumprida sua funccedilatildeo essas foacutermulas podem ser descartadas O ceacutetico apenas
expressou por meio delas aquilo que lhe apareceu a saber que ele se encontra num estado no
qual natildeo se sente capaz de afirmar nem de negar algo e por isso eacute levado a suspender seu
juiacutezo
Sua relaccedilatildeo com a linguagem eacute de outra ordem que aquela que o dogmaacutetico
estabeleceu Este tem a preocupaccedilatildeo com a verdade das coisas com o possiacutevel caraacuteter
absoluto do que assere O ceacutetico natildeo sua preocupaccedilatildeo eacute por meio da linguagem exercer uma
atitude filosoacutefica singular que ao fim ao cabo e por um caminho diferente do trilhado pelo
dogmaacutetico trar-lhe-aacute a ataraxiacutea
O mesmo caraacuteter instrumental que apresentam as foacutermulas ceacuteticas tambeacutem
apresentam os argumentos de que utiliza tanto os criados por ele proacuteprio quanto os que toma
de empreacutestimo para produzir antinomias e assim combater o dogmatismo
A finalidade desses argumentos consiste em como acabou de ser assinalado produzir
antinomias isto eacute contrapor a um argumento posto pelos dogmaacuteticos um outro argumento
que devido agrave equipotecircncia (isostheacuteneia) impeccedila ao ceacutetico de se decidir por um ou por outro
visto que ambos os argumentos parecem ser igualmente persuasivos E uma vez dada a
isostheacuteneia essa posiccedilatildeo de equiliacutebrio das forccedilas em disputa o ceacutetico eacute conduzido agrave
suspensatildeo do juiacutezo
Os ldquoargumentos ceacuteticosrdquo natildeo tecircm portanto outra funccedilatildeo que haacute de levar o ceacutetico a
concretizar seu propoacutesito filosoacutefico natildeo-dogmaacutetico Eles servem como instrumentos que o
39 Cf HP I 14-15 206
40 Cf HP I 206
38
conduzem a isso Quando argumenta contra o dogmaacutetico natildeo procura ldquopocircrrdquo outras tantas
teses no lugar das que foram avanccediladas pelo dogmaacutetico41 A metaacutefora da escada presente no
uacuteltimo capiacutetulo do segundo livro de Contra os Loacutegicos refere-se explicitamente a essa
instrumentalidade dos argumentos utilizados
ldquoAssim como um homem pode apoacutes ter subido a um lugar alto por meio de uma
escada desfazer-se dela assim tambeacutem o ceacutetico ao atingir por via da argumentaccedilatildeo sua
lsquotesersquo que contradiz e portanto suprime uma formulaccedilatildeo lsquodogmaacuteticarsquo tambeacutem suprime no
mesmo movimento sua proacutepria argumentaccedilatildeordquo42
Uma vez chegado ao seu objetivo qual seja estabelecer uma posiccedilatildeo de equiliacutebrio
entre os argumentos opostos (isostheacuteneia) fazendo assim com que se torne um ato precipitado
decidir-se por um dos lados o ceacutetico pode abandonar seu argumento Como instrumento a
serviccedilo de sua atitude anti-dogmaacutetica cumpriu ele sua funccedilatildeo Esses argumentos natildeo
poderiam permanecer como se fossem a demonstraccedilatildeo de teses ceacuteticas opostas agraves teses
adversas levantadas pelos dogmaacuteticos Se pela sua forccedila eles podem fornecer a impressatildeo de
que expressam teses dogmaacuteticas afinal por meio deles o ceacutetico chega agrave epokheacute a
persuasividade desses argumentos eacute aparente43
41 Com respeito ao caraacuteter instrumental dos argumentos de que se utiliza o ceacutetico para construir antinomias cabe recorrer ao comentaacuterio de Oswaldo Porchat ldquoOs argumentos lsquodestrutivosrsquo satildeo construiacutedos no melhor estilo dogmaacutetico seguem os padrotildees da loacutegica e da demonstraccedilatildeo dogmaacutetica satildeo argumentos dogmaacuteticos sob esse prisma em nada se distinguem em natureza dos argumentos dogmaacuteticos lsquoconstrutivosrsquo com os quais se fazem conflitar Porque o que importa aos pirrocircnicos mostrar eacute precisamente esta ambivalecircncia fundamental e constitutiva da argumentaccedilatildeo dogmaacutetica que implica sua autodestruiccedilatildeo graccedilas agrave manifestaccedilatildeo da isostheacuteneia e agrave subsequumlente inevitabilidade da epokheacute O pirronismo faz o dogmatismo assim servir agrave denuacutencia do dogmatismo ele usa o dogmatismo instrumentalmenterdquo Cf Porchat O Rumo ao ceticismo pp 158-159
42 Cf AM VIII 481 In Contra os loacutegicos segundo livro ediccedilatildeo da Loeb Classical Library Willian Heinemann Londres trad de R G Bury 1983 vol 2
43 A propoacutesito da instrumentalidade dos argumentos proferidos pelos ceacuteticos veja-se tambeacutem a seguinte passagem das Hipotiposes ldquoMas eacute preciso saber que natildeo eacute nosso desiacutegnio asserir que eacute irreal o criteacuterio da verdade (isso seria dogmaacutetico) poreacutem jaacute que os dogmaacuteticos parecem ter estabelecido de modo persuasivo que haacute um criteacuterio da verdade noacutes lhe opusemos argumentos que parecem ser persuasivos nem sustentando que satildeo verdadeiros nem que satildeo mais persuasivos que seus contraacuterios mas inferindo a suspensatildeo de juiacutezo em virtude da aparente igual persuasividade desses argumentos e dos que foram expostos pelos dogmaacuteticosrdquo (Cf HP II 79 tambeacutem AM VII 443-4)
39
Tambeacutem aqui em relaccedilatildeo aos argumentos que os ceacuteticos apresentam contra os
argumentos dogmaacuteticos vale ser feita a comparaccedilatildeo dos mesmos com os remeacutedios purgativos
ndash e o ceacutetico a faz ndash pois esses argumentos de algum modo se suprimem a si proacuteprios
juntamente com aqueles outros que se pretendem probativos44
Em suma a linguagem para o ceacutetico eacute considerada de um ponto de vista bem diferente
do que ela o eacute para o dogmaacutetico Para este a linguagem deve ser veiacuteculo de transmissatildeo do
verdadeiro do que eacute absoluto daquilo que eacute natildeo-evidente Dessa perspectiva cada palavra
tem um peso precisa ser empregada de uma maneira muito especiacutefica a fim de que
determinada tese dogmaacutetica seja posta
Outra eacute todavia a perspectiva do ceacutetico as palavras expressotildees argumentos natildeo
possuem para ele essa capacidade de dizer o conhecimento a verdade o absoluto Elas apenas
satildeo o meio pelo qual declara aquilo que lhe aparece em determinado momento Como ele
mesmo diz seu uso da linguagem eacute frouxo natildeo pretende se expressar de modo preciso Assim
como agora se valeu deste termo pode substituiacute-lo por um outro com vistas a evitar que o
compreendam dogmaticamente45 Eacute-lhe indiferente que termos utilize na sua vida cotidiana
ou no seu ataque ao dogmatismo ldquonatildeo conveacutem ao ceacutetico disputar a respeito de palavras
(expressotildees)rdquo46
E aqui entra em cena um outro aspecto do ceticismo e que se vincula a essa forma natildeo-
dogmaacutetica de encarar a linguagem o ldquofenomenismordquo ceacutetico
A linguagem eacute apenas o meio pelo qual o ceacutetico expressa como foi dito em algumas
ocasiotildees neste estudo aquilo que lhe aparece E o que lhe aparece eacute tatildeo sujeito a variaccedilotildees
quanto a linguagem de que ele se utiliza Como veremos a noccedilatildeo de fenocircmeno vai
desempenhar um papel central na economia da filosofia ceacutetica Eacute por meio dela que o ceacutetico
passa a se orientar na sua vida comum e tambeacutem no exerciacutecio de sua atitude filosoacutefica natildeo-
44 Cf HP I 188 Ou ainda ldquoPois haacute muitas coisas que produzem em si proacuteprias o mesmo efeito que produzem em outras coisas Por exemplo assim como o fogo apoacutes consumir a madeira se destroacutei tambeacutem a si proacuteprio e da mesma maneira como os purgativos apoacutes expulsarem dos corpos os fluidos tambeacutem a si mesmos se expelem assim tambeacutem pode o argumento contra a prova ao ter destruiacutedo toda prova tambeacutem a si mesmo suprimir-serdquo (Cf AM VIII 480)
45 Cf HP I 207
46 Ibidem I 207
40
dogmaacutetica Mas o que propriamente significa o fenocircmeno para ele Por que ele seraacute o criteacuterio
segundo o qual ele se conduz
Uma vez que seja estabelecida a equumlipolecircncia isto eacute essa posiccedilatildeo de equiliacutebrio das
forccedilas em disputa o ceacutetico natildeo tendo como decidir por uma ou por outra alternativa dado
que ambas satildeo aparentemente uma tatildeo persuasiva quanto a outra eacute levado agrave epokheacute A
respeito de todas as formas de dogmatismo que investiga tanto os filosoacuteficos quanto os natildeo-
filosoacuteficos acaba sendo ele levado casualmente agrave suspensatildeo de seu juiacutezo
Se for incapaz de decidir fica a impressatildeo de que uma vez adotado o seu ponto de
vista estariacuteamos condenados agrave paralisia Fazer opccedilotildees tomar decisotildees tanto no plano praacutetico
quanto no plano discursivo de alguma forma envolve que se considere que isto eacute preferiacutevel a
aquilo outro que um seja melhor que o outro em determinada situaccedilatildeo Se um ceacutetico se vecirc na
incapacidade de preferir isto a aquilo outro se natildeo consegue decidir visto que encontra
reiteradamente um conflito indecidiacutevel nas coisas que na sua investigaccedilatildeo dos natildeo-evidentes
um equiliacutebrio das posiccedilotildees opostas se estabelece como algueacutem poderia continuar a viver caso
pautasse sua vida pelo ceticismo O resultado da empresa ceacutetica soacute poderia ser mesmo a
paralisia a impossibilidade do agir no seu sentido mais geral
Um dogmaacutetico entatildeo poderia dizer que o ceacutetico assim como ele para agir precisa
decidir E se decidiu teve de considerar que esta decisatildeo eacute melhor que a outra segundo algum
criteacuterio que ele todavia outrora criticou como dogmaacutetico E natildeo haveria como acontecer de
outra forma afinal como poderiacuteamos prosseguir com nossa vida sem que tomaacutessemos
qualquer forma de decisatildeo
De fato o ceacutetico natildeo permaneceraacute inativo em virtude da sua incapacidade de decidir e
que o leva agrave suspensatildeo de juiacutezo Ele como qualquer outro homem continuaraacute tomando
decisotildees e levando adiante sua vida Mas como eacute possiacutevel que apoacutes a epokheacute deixe de ser
inativo sem que ao mesmo tempo acabe por contradizer a sua proacutepria postura filosoacutefica
A resposta estaacute no criteacuterio que vai guiar sua conduta o fenocircmeno Como sabemos o
ceacutetico natildeo tem instrumentos suficientes que lhe permitam decidir a respeito da verdade ou da
41
falsidade de uma teoria que porventura pretenda apresentar a verdade Ele natildeo tem mesmo
como decidir se no acircmbito da experiecircncia sensiacutevel mais comezinha se o mel eacute realmente
doce ou natildeo Enfim tanto no acircmbito dos discursos mais sofisticados da filosofia ou da ciecircncia
quanto no acircmbito de tudo que diga respeito agrave sua vida de homem comum natildeo tem como
proferir um juiacutezo de caraacuteter dogmaacutetico Com o apoio de qual criteacuterio poderaacute decidir que isto eacute
verdadeiro e aquilo falso Naquilo que investiga em relaccedilatildeo ao que se diz dogmaticamente
natildeo consegue encontrar um criteacuterio que lhe permita ter ecircxito na busca pela verdade realidade
das coisas assim como o faz o dogmaacutetico Por toda a parte encontra conflito e desacordo
Para alguns o criteacuterio da verdade possui tais e tais caracteriacutesticas para outros ele possui
caracteriacutesticas diferentes Para outros ainda nem haveria um criteacuterio de verdade47 A noccedilatildeo de
criteacuterio proposta pelos dogmaacuteticos qualquer que ela seja ndash filosoacutefica ou natildeo mais ou menos
elaborada ndash acaba sempre natildeo passando ilesa pelo exame ceacutetico Nos termos pretendidos
pelos dogmaacuteticos natildeo haacute como o ceacutetico natildeo ser levado a suspender seu juiacutezo em relaccedilatildeo a
essa noccedilatildeo Guiar-se por um criteacuterio de maneira anaacuteloga a que os dogmaacuteticos o fazem
significa para o ceacutetico ir portanto contra a orientaccedilatildeo central de sua atitude filosoacutefica Como
obter um criteacuterio que permita concluir pela verdade de que as coisas sejam realmente desta ou
daquela maneira Toda vez que investigou se este ou aquele criteacuterio eacute o verdadeiro o ceacutetico
em acordo com sua atitude investigativa apenas foi trazido agravequele estado de incapacidade de
se decidir agrave maneira dogmaacutetica que assim fez com que suspendesse seu juiacutezo
Eacute em virtude do que acima dissemos que criteacuterio para ele natildeo pode ser entendido
como ldquoaquele a que recorremos para nos convencer da realidade ou da natildeo-realidade de
qualquer coisardquo48
Em que sentido poderiacuteamos entatildeo falar ainda em criteacuterio Para o ceacutetico o criteacuterio seraacute
como jaacute foi mencionado o ldquofenocircmenordquo o que aparece (tograve phainoacutemenon) aquilo que lhe
permite natildeo permanecer inativo em virtude da epokheacute e ldquoconforme ao qual na conduta da
vida praticamos certas accedilotildees e nos abstemos de outrasrdquo49
Se o ceacutetico assim como qualquer outro natildeo estaacute impossibilitado de agir visto que age
de acordo com o que lhe aparece isto que lhe aparece e o faz agir natildeo envolve alguma espeacutecie
47 Para uma discussatildeo geral da problemaacutetica do criteacuterio cf HP II 14-79
48 Cf HP I 21
49 Cf HP I 21
42
de decisatildeo baseada em algum criteacuterio dogmaacutetico a respeito do que quer que seja O que lhe
aparece eacute fruto de um assentimento e de uma afecccedilatildeo involuntaacuteria (Cf HP I 22) Ele eacute
constrangido por uma afecccedilatildeo que a ele se impotildee a agir dessa ou daquela maneira Assim se
ele sente calor ou frio ele natildeo iraacute dizer que acredita natildeo sentir nem calor nem frio (Cf HP I
13) Ele daraacute seu assentimento a esse fenocircmeno que a ele se impotildee ou o calor ou o frio As
decisotildees a serem tomadas seratildeo todas feitas a partir do que aparece Natildeo estaacute no poder dele
por conseguinte decidir-se a respeito do que lhe aparece mas sim decidir-se a partir do que
lhe apareceu Nem poderia ser de outro modo afinal como poderia questionar o proacuteprio
aparecer Quais criteacuterios poderiam guiaacute-lo A mera tentativa que se encaminhasse nessa
direccedilatildeo envolveria um retorno agrave perspectiva dos dogmaacuteticos O fenocircmeno eacute inquestionaacutevel
(azeacutetetoacutes)50 Natildeo haacute o que teorizar a respeito dele Se o ceacutetico tem algo a questionar do
fenocircmeno ele o faz com relaccedilatildeo agraves discussotildees que os dogmaacuteticos dele fazem Qualquer
asserccedilatildeo proferida com a intenccedilatildeo de demonstrar como o fenocircmeno seja realmente e por meio
da qual pretenda-se afirmar uma verdade a seu respeito eacute posta sob investigaccedilatildeo
A partir do que acaba de ser dito talvez fique mais faacutecil entender porque Sexto se
refira no capiacutetulo 10 das Hipotiposes agravequeles que dizem que os ceacuteticos suprimem as
aparecircncias51 Com efeito se for levado em conta os discursos que dogmaticamente pretendem
estabelecer algo em relaccedilatildeo agraves aparecircncias poderiacuteamos entatildeo dizer que os ceacuteticos ldquosuprimemrdquo
as aparecircncias Natildeo eacute o que de fato acontece Os ceacuteticos ndash diante da existecircncia de diversos
discursos conflitantes que tentam cada um de maneira diferente com um grau maior ou
menor de sofisticaccedilatildeo dogmatizar a respeito do que aparece discursos que podem ter contra
eles outros discursos opostos e aparentemente tatildeo dignos de aceitaccedilatildeo ndash satildeo levados agrave
suspensatildeo de juiacutezo Do que se diz a respeito dos fenocircmenos nada pode ele afirmar ou negar
Qualquer juiacutezo que emitisse acerca dos fenocircmenos envolveria a assunccedilatildeo de dogmas E se haacute
supressatildeo das aparecircncias essa supressatildeo se faz a respeito das aparecircncias vistas sob a oacutetica do
discurso dogmaacutetico Natildeo haacute supressatildeo portanto daquilo que lhe aparece e natildeo pode evitar
ldquoPois como noacutes dissemos acima noacutes natildeo derrubamos a representaccedilatildeo passiva (φαντασίαν
παθητικήν) que induz nosso assentimento involuntariamente e essas impressotildees satildeo os
fenocircmenosrdquo52
50 Cf HP I 22
51 Cf HP I 19
52 Cf HP I 19-20
43
Mas tatildeo longe da perspectiva ceacutetica seria tambeacutem todavia afirmar que o dogmatismo
se pode encontrar no coraccedilatildeo do ceticismo em virtude de se considerar o fenocircmeno
inquestionaacutevel
Quando se afirma que o fenocircmeno eacute inquestionaacutevel natildeo se procura dessa maneira
afirmar que ele seja representaccedilatildeo fiel da realidade A aceitaccedilatildeo do fenocircmeno por parte do
ceacutetico se faz isenta de opiniatildeo (adoxaacutestos) Constato diria ele que algo me aparece e guia
minha accedilatildeo natildeo sou capaz contudo de afirmar nada dogmaticamente a respeito desse
aparecer O que natildeo posso eacute questionar que ele a mim se impotildee Dizer o que ele eacute realmente
natildeo eacute algo que esteja em meu poder afirmar Para aleacutem dessa constataccedilatildeo isenta de opiniatildeo
isto eacute natildeo acompanhada de nenhum discurso que procure por exemplo fundamentar esse
caraacuteter inquestionaacutevel daquilo que me aparece natildeo tenho nada a dizer meu juiacutezo estaacute quanto
a este ponto suspenso O que a mim me aparece aparece de modo irrecusaacutevel independente
de minha vontade
Natildeo eacute agrave toa que comumente qualifica de involuntaacuteria a afecccedilatildeo que determinaraacute o seu
agir O fenocircmeno eacute uma afecccedilatildeo isto eacute um paacutethos algo que afeta o ceacutetico e natildeo depende
dele Ele sofre a accedilatildeo de algo que o leva ao assentimento53
O proacuteprio assentimento ao fenocircmeno eacute fruto de um reconhecimento O assentimento
que ele daacute agravequilo que lhe aparece seria apenas a concessatildeo agravequilo que ele natildeo pode evitar e
determina seu agir54
Nessa nossa tentativa de explicitar o ldquofenomenismordquo ceacutetico talvez seja vaacutelido ainda
acrescentar que quando se trata de fenocircmeno no ceticismo eacute necessaacuterio que deixemos de
pensar em termos de uma distinccedilatildeo que poderia existir entre ser e aparecer Natildeo estamos mais
aqui nos movendo no quadro da distinccedilatildeo que muitos filoacutesofos ldquodogmaacuteticosrdquo fizeram entre o
domiacutenio do sensiacutevel das coisas que nos aparecem e o domiacutenio do inteligiacutevel no qual
poderiacuteamos ter acesso ao que as coisas sejam realmente para aleacutem das variaccedilotildees que podem
ser observadas no domiacutenio sensiacutevel
53 ldquo() mas nos dizemos que o ceacutetico eacute perturbado pelas coisas que natildeo consegue evitar Assim noacutes concedemos que ele agraves vezes sente frio e tem sede e sofre vaacuterias afecccedilotildees semelhantesrdquo (Cf HP I 29)
54 A mesma passividade jaacute se observava com relaccedilatildeo agrave suspensatildeo de juiacutezo O que temos agora no que concerne agrave atitude ceacutetica para com o ldquofenocircmenordquo eacute apenas um desdobramento de como um ceacutetico pode exercer sua conduta filosoacutefica uma vez afastado do dogmatismo
44
O fenocircmeno ou aquilo que aparece natildeo abrange para o ceacutetico um domiacutenio separado e
que remeta a um outro domiacutenio que lhe daria seu fundamento No ceticismo fenocircmeno tem
de ser compreendido no sentido mais amplo possiacutevel Nenhum estatuto ontoloacutegico ou
epistemoloacutegico deve lhe ser acrescentado Tudo que aparece ao ceacutetico e lhe determina o agir
apoacutes a epokheacute eacute fenocircmeno Aderindo entatildeo aos ldquofenocircmenosrdquo na observacircncia da vida vive ele
sem opinar (adoxaacutestos)55
Aparece entatildeo a ele que ele tem de se guiar por suas faculdades naturais pelas
afecccedilotildees compulsoacuterias pela tradiccedilatildeo das leis e costumes e pelos ensinamentos das artes56
Com essa divisatildeo do que pode aparecer ao ceacutetico e o permite se conduzir em sua vida mostra-
se assim que do mesmo modo que com os outros homens filoacutesofos ou natildeo seu agir em
princiacutepio natildeo diferiraacute em nada do deles Apoacutes a epokheacute continuaraacute a realizar as mesmas
accedilotildees a viver a mesma vida que todos os outros vivem mas apenas com uma diferenccedila ele
viveraacute mas sem opinar O ceacutetico estaacute consciente de que ele sente fome sede que pensa que
ouve que haacute uma mesa agrave sua frente que algueacutem passa andando agrave sua frente que esta pessoa
se movimenta Ele natildeo nega esses fatos Apenas que natildeo profere nenhuma asserccedilatildeo natildeo
elabora nenhuma teoria que pretendesse dizer o que significariam em si mesmos em sua
realidade esses fenocircmenos Isso quer dizer que ele na sua vida age mas sem pretender fazer
algo fundado nalguma teoria segundo algum criteacuterio que o indique ser melhor isto do que
aquilo este preferiacutevel agravequele dado que soubesse estar agindo de acordo com a verdade
O ceacutetico assente ao que lhe aparece entretanto isto que lhe aparece pode hoje aparecer
de um modo e amanhatilde pode aparecer de outro Aquilo que lhe aparece natildeo eacute aceito porque
estaria de acordo com alguma verdade seria a expressatildeo da realidade mesma em suma essa
afecccedilatildeo (paacutethos) que se lhe impotildee natildeo deve sua aceitaccedilatildeo a um possiacutevel teor dogmaacutetico da
mesma As aparecircncias estatildeo sujeitas a mudanccedilas tanto quanto aquele para quem elas
aparecem Fundado em que posso dizer que aquilo que a mim me aparece tambeacutem iraacute
aparecer da mesma maneira para todos os outros homens Uma vez afastada a perspectiva
dogmaacutetica soacute resta ao ceacutetico comunicar individualmente como fruto de uma experiecircncia
pessoal aquilo que lhe aparece Se a perspectiva dogmaacutetica estaacute afastada eacute perfeitamente
coerente com o ceticismo que o que conduz o ceacutetico na sua vida possa variar Natildeo haacute nada
que o prenda a determinada linha de conduta Se ele age sempre da mesma maneira tal
55 Cf HP I 23
56 Cf HP I 23
45
comportamento natildeo eacute obstaacuteculo a uma mudanccedila de conduta Como jaacute foi salientado o que
hoje lhe aparece de um modo amanhatilde pode aparecer diferente
Na conduccedilatildeo natildeo-dogmaacutetica de sua vida de acordo com o fenocircmeno o ceacutetico procura
agir em conformidade com a finalidade do ceticismo a saber tranquumlilidade (ataraxiacutea) com
respeito a mateacuteria de opiniatildeo e moderaccedilatildeo nos sentimentos (metriopateacuteia) com respeito a
coisas inevitaacuteveis57
Com efeito a busca dogmaacutetica pela tranquumlilidade soacute trouxe dissabores ao ceacutetico Por
essa via natildeo foi capaz de distinguir o verdadeiro do falso nas coisas que investigou natildeo
conseguiu chegar a nenhuma verdade absoluta A uacutenica coisa a que chegou foi encontrar
contradiccedilotildees naquilo que investigava Dessa maneira diante do conflito de igual forccedila entre
argumentos discursos opostos sem poder se decidir por um dos lados em disputa a
tranquumlilidade lhe adveio casualmente com a suspensatildeo do juiacutezo58
Aleacutem disso a moderaccedilatildeo nos sentimentos adveacutem de sua postura natildeo-dogmaacutetica e que
o leva a conduzir-se na vida de acordo com os fenocircmenos Se natildeo haacute dogmas a serem aceitos
entatildeo os ceacuteticos natildeo sofreratildeo como no caso dos dogmaacuteticos por considerarem que possa
haver coisas boas ou maacutes por natureza59 Se o ceacutetico sofre e como assinala Sexto ele de fato
natildeo estaacute assim como natildeo estatildeo os outros homens isento de perturbaccedilotildees em sua vida60 o
sofrimento causado por qualquer forma de perturbaccedilatildeo poderaacute ser minimizado em virtude
dessa atitude consistente no viver conforme o fenocircmeno Natildeo que ele efetivamente natildeo possa
em nenhuma hipoacutetese vir a ter uma qualquer perturbaccedilatildeo Nada mais distante do ceticismo
Apenas que a sua postura filosoacutefica talvez seja mais capaz de realizar a finalidade que ele se
propotildee alcanccedilar De acordo com o que me aparece poderia ele dizer vejo que agindo como
ajo estou menos propenso a ficar perturbado e intranquumlilo do que aqueles que procuram viver
de acordo com dogmas
57 Cf HP I 25
58 Cf Ibidem I 26
59 Cf Ibidem I 27
60 Cf Ibidem I 29
46
Os tropos ceacuteticos
Com o intuito de chegar agrave suspensatildeo de juiacutezo o procedimento de que se serve o ceacutetico
consiste como jaacute mencionado61 em produzir oposiccedilotildees entre as coisas Essas oposiccedilotildees natildeo
seguem regras especiacuteficas Das mais variadas maneiras portanto satildeo elas produzidas Desse
modo opotildeem-se aparecircncias a aparecircncias juiacutezos a juiacutezos aparecircncias a juiacutezos e assim por
diante62
Os tropos satildeo diversos modos pelos quais os ceacuteticos produzem essas antinomias e
assim ele pode ser levado agrave suspensatildeo do juiacutezo Entre os modos mais antigos contam dez63
Satildeo eles o primeiro baseado na variedade dos animais o segundo nas diferenccedilas entre os
homens o terceiro nas diferentes estruturas dos oacutergatildeos dos sentidos o quarto nas
circunstacircncias o quinto nas posiccedilotildees distacircncias e lugares o sexto nas misturas o seacutetimo
nas quantidades e constituiccedilatildeo dos objetos o oitavo na relaccedilatildeo o nono na frequumlecircncia ou
raridade de ocorrecircncia o deacutecimo nos costumes e leis nas crenccedilas miacuteticas e convicccedilotildees
dogmaacuteticas
Podemos dizer de modo sucinto que esses tropos nos mostram o caraacuteter relativo de
todas as coisas A partir de cada um deles considerando-se um aspecto especiacutefico podemos
apontar a relatividade das coisas Tanto eacute assim que o tropo da relaccedilatildeo eacute visto como aquele ao
qual todos os outros nove podem se referir64
Aleacutem desse tropos existem outros cinco posteriores que igualmente satildeo meios de que
se vale o ceacutetico para ser trazido agrave epokheacute o primeiro baseado na diaphoniacutea (discrepacircncia
controveacutersia) o segundo na regressatildeo ao infinito o terceiro na relatividade o quarto na
61 Ver a respeito pp 30-32
62 Cf HP I 31
63 Na sua exposiccedilatildeo do ceticismo de Enesidemo Brochard nos lembra que se os dez tropos foram argumentos que os ceacuteticos mais antigos nos legaram foi justamente Enesidemo que os ordenou e numerou na forma que noacutes os conhecemos O proacuteprio Sexto continua ele assim como Aristocleacutes e Dioacutegenes atribuem os dez tropos a Enesidemo Assim para os estudiosos do ceticismo esses tropos satildeo conhecidos como os tropos de Enesidemo A respeito do que agora foi dito e para uma apresentaccedilatildeo sumaacuteria desses tropos cf Brochard V Les sceptiques grecs Paris Vrin 1969 pp 253-259
64 Cf HP I 39
47
hipoacutetese o quinto no raciociacutenio circular Esses cinco tropos ficaram conhecidos como os
tropos de Agripa65
Com efeito pelo tropo da diaphoniacutea somos postos de frente ao conflito interminaacutevel
de opiniotildees a respeito de todos os assuntos conflito que pode ter surgido tanto entre pessoas
comuns e entre filoacutesofos A dificuldade em decidir do ceacutetico dada essa imensa variedade de
opiniotildees a sua incapacidade em acolher ou rejeitar esta ou aquela opiniatildeo acaba por levaacute-lo agrave
suspensatildeo do juiacutezo66
Pelo tropo da regressatildeo ao infinito o ceacutetico pede ao dogmaacutetico que forneccedila uma nova
prova para o tema pesquisado pois a prova que fora aduzida natildeo lhe pareceu suficiente E
essa nova prova tambeacutem natildeo eacute suficiente e assim pede uma nova prova o que leva a uma
regressatildeo que natildeo tem fim67
O tropo da relatividade nos mostra que o assunto investigado aparece recorrentemente
numa determinada relaccedilatildeo isto eacute estaacute sujeito a uma determinada condiccedilatildeo o que impede que
o que se diga dele seja posto de modo absoluto Assim o assunto estaacute por exemplo
relacionado ao sujeito que julga esse sujeito constitui-se num determinado ponto de vista
natildeo-universalizaacutevel Desse modo diante da relatividade das coisas o ceacutetico eacute induzido agrave
suspensatildeo do juiacutezo68
O tropo da hipoacutetese nos impede de aceitar algo como ponto de partida sem nenhuma
demonstraccedilatildeo Isto acontece porque podemos da mesma maneira que aquele que avanccedilou
essa hipoacutetese tambeacutem levantar uma outra hipoacutetese contraacuteria e sem para tanto aduzir nenhuma
demonstraccedilatildeo para a mesma Tanto uma quanto a outra seratildeo dignas do mesmo creacutedito Natildeo
haacute assim motivo para que uma seja mais aceitaacutevel que sua contraacuteria69
65 De acordo com Brochard a referecircncia desses tropos a Agripa se faz com base na menccedilatildeo de Dioacutegenes a esse filoacutesofo no momento em que cita esses cinco tropos na mesma ordem e termos que o faz Sexto Empiacuterico que no entanto natildeo faz menccedilatildeo a Agripa Acerca da exposiccedilatildeo desses tropos por Brochard cf Les sceptiques grecs pp 300-303
66 Cf HP I 165
67 Cf HP I 166
68 Cf Ibidem I 167
69 Cf Ibidem I 168
48
Por fim pelo tropo do raciociacutenio circular eacute absurdo imaginar que aquilo que seraacute
objeto de prova seja provado a partir daquilo mesmo que aguarda prova e desse modo
acabamos sendo levados novamente agrave epokheacute70
Como poderemos acompanhar neste estudo Hegel estaraacute sempre convencido que a
filosofia precisa tomar a seacuterio essa radicalidade da criacutetica ceacutetica pois de outra maneira a
filosofia corre o risco de perecer diante dessa mesma criacutetica Hegel estaacute atento a esse aspecto
diriacuteamos negativo do ceticismo Tanto eacute assim que ele por exemplo na discussatildeo que
empreende na Ciecircncia da Loacutegica71 acerca do comeccedilo da filosofia tem em vista sempre uma
possiacutevel criacutetica ceacutetica e mais precisamente por meio dos tropos Aleacutem disso esta exposiccedilatildeo
da filosofia ceacutetica permite que se possa eacute o que nos parece avaliar a compreensatildeo hegeliana
do ceticismo e o aproveitamento do mesmo em sua filosofia
70 Cf Ibidem I 169
71 Com relaccedilatildeo ao mesmo tema tambeacutem haacute essa preocupaccedilatildeo na Enciclopeacutedia quando trata da Loacutegica
49
Capiacutetulo 2 ndash O ceticismo na filosofia do jovem Hegel
No seu artigo ldquoRelacionamento do ceticismo agrave filosofiardquo72 Hegel dentre outros
objetivos apresenta sua concepccedilatildeo do papel do ceticismo na filosofia A esse respeito natildeo
nos parece insensato dizer que para o filoacutesofo a possibilidade da filosofia estaacute em larga
medida atrelada agrave consideraccedilatildeo do desafio imposto pela criacutetica ceacutetica do caraacuteter dogmaacutetico
das filosofias73 Natildeo que para que haja filosofia o ceticismo precise ser afastado por meio de
uma refutaccedilatildeo que aponte a falta de propoacutesito de sua atitude filosoacutefica Eacute legiacutetima para Hegel
a criacutetica ceacutetica das filosofias O que natildeo implica para ele que devamos nos tornar ceacuteticos Natildeo
teremos aqui portanto nem adesatildeo ao ceticismo e nem uma mera refutaccedilatildeo do mesmo
Teremos o quecirc entatildeo
No mesmo artigo sobre o Ceticismo veremos que a soluccedilatildeo apresentada por Hegel
para esse impasse envolve a incorporaccedilatildeo do ceticismo agrave sua filosofia Nesta o ceticismo seraacute
um momento fundamental O que ele chama de seu lado negativo e que prepara o surgimento
de seu momento positivo ou o lado positivo da filosofia Por traacutes dessa incorporaccedilatildeo do
ceticismo agrave filosofia opera uma distinccedilatildeo feita por Hegel entre o que seja o entendimento e o
que seja a razatildeo Neste escrito que trata da filosofia ceacutetica natildeo temos todavia uma exposiccedilatildeo
mais minuciosa do significado desses termos
Interessa-nos aqui retomar um outro texto de Hegel a saber Diferenccedila entre o sistema
filosoacutefico de Fichte e de Schelling74o assim chamado Escrito sobre a Diferenccedila pois eacute nele
72 GW 4 pp 197-238
73 No tocante ainda agrave importacircncia decisiva da filosofia ceacutetica para Hegel e levando-se em conta nossa interpretaccedilatildeo que busca entre outras coisas apontar para a relaccedilatildeo natildeo-defensiva do autor para com o ceticismo cremos natildeo estar sozinhos e por isso talvez natildeo seja exagerado mencionar a seguinte declaraccedilatildeo de Michael Forster ldquoEm primeiro lugar a interpretaccedilatildeo hegeliana da tradiccedilatildeo ceacutetica na filosofia e sua reaccedilatildeo a essa tradiccedilatildeo satildeo absolutamente fundamentais para a sua perspectiva filosoacutefica de modo que regiotildees extensas de seu pensamento permanecem obscuras ateacute que essa interpretaccedilatildeo e reaccedilatildeo sejam apropriadamente compreendidas Em segundo lugar as reflexotildees hegelianas a respeito da natureza da tradiccedilatildeo ceacutetica possuem meacuterito intriacutenseco consideraacutevel contendo lsquoinsightsrsquo originais e que podem ser aproveitados por historiadores contemporacircneos da filosofia e filoacutesofos interessados pelo ceticismordquo In Forster M Hegel and Skepticism CambridgeMassachusetts Harvard University Press 1989 p 1 E com respeito precisamente agrave interpretaccedilatildeo hegeliana do ceticismo antigo no livro de Forster ver os capiacutetulos 1 e 2
74 GW 4 pp 5-92
50
que encontraremos uma exposiccedilatildeo detalhada do significado de entendimento e razatildeo e que
nos permitiraacute melhor compreender na visatildeo do jovem Hegel o papel do ceticismo na
filosofia75
Eacute no capiacutetulo inicial do Escrito sobre a Diferenccedila que tem como tiacutetulo ldquo[Das] vaacuterias
formas que se encontram no filosofar atualrdquo que encontramos um tratamento mais detalhado
do significado de entendimento e razatildeo
Tendo como pano de fundo um diagnoacutestico e uma criacutetica da cultura (Bildung) de sua
eacutepoca todavia com o foco aiacute voltado para a filosofia que satildeo efetuadas as consideraccedilotildees
hegelianas a respeito de entendimento e razatildeo Esta criacutetica estaacute alicerccedilada na reflexatildeo criacutetica
da razatildeo sobre si mesma empreendida por Kant mas que Hegel por considerar a mesma
insuficiente procura prolongar e tornaacute-la mais radical76 Nesse sentido a radicalidade da
criacutetica ceacutetica a toda forma de pensamento finito eacute um elemento importante a contribuir nessa
tarefa criacutetica hegeliana
Com efeito Hegel afirma que a razatildeo como manifestaccedilatildeo do absoluto que eacute busca na
sua auto-produccedilatildeo modelar o absoluto numa totalidade objetiva77 O ecircxito da atividade
especulativa da razatildeo depende de se alcanccedilar a identidade a mais completa a identidade
absoluta quando a filosofia do sistema coincide com o proacuteprio sistema Todavia nem sempre
essa identidade eacute alcanccedilada Ainda mais numa eacutepoca em que ldquoa potecircncia de unificaccedilatildeo
desaparece da vida dos homens e as oposiccedilotildees tendo perdido seu relacionamento vivo e sua
75 Vale mencionar ainda apenas a tiacutetulo ilustrativo que o Escrito sobre a Diferenccedila fora publicado em 1801 e o artigo sobre o Ceticismo em 1802 e apenas com poucos meses de diferenccedila
76 ldquoO princiacutepio da independecircncia da razatildeo de sua absoluta autonomia em si mesma deve ser considerado de agora em diante como princiacutepio universal da filosofia e tambeacutem como um dos preconceitos da eacutepocardquo In GW 20 p 99 trad brasileira por Paulo Meneses Enciclopeacutedia das Ciecircncias Filosoacuteficas Satildeo Paulo Loyola 1992 p 136
77 Cf GW 4 p 10 e p 30 trad p 84 e p 104
51
accedilatildeo reciacuteproca ganham subsistecircncia por sirdquo78 Vive-se portanto numa eacutepoca em que a
fragmentaccedilatildeo e o isolamento passaram a ser dominantes em todos os aspectos da vida Uma
cultura fundada no entendimento prosperou e passou a ser dominante79 Mas por mais que seja
um dado da vida esse seu cultivar-se a partir da eterna produccedilatildeo de oposiccedilotildees esta atividade
natildeo pode levar agrave perda de qualquer possibilidade de unificaccedilatildeo Por isso eacute preciso a partir do
combate a essa Bildung limitadora tentar restaurar a harmonia perdida
No aspecto filosoacutefico esse desaparecimento da unificaccedilatildeo que pode ser observado
pelo predomiacutenio dessa cultura regida pela potecircncia da cisatildeo (Entzweiung)80 na qual as
oposiccedilotildees como jaacute foi dito tornaram-se autocircnomas configura-se em uma cultura filosoacutefica
fundada tambeacutem no entendimento uma cultura filosoacutefica na qual a razatildeo renuncia a si mesma
em prol do entendimento (Cf GW 4 p 15)
E o que pode significar para a filosofia estar sob a eacutegide do entendimento Significa
como veremos estar vulneraacutevel aos ataques do ceticismo Cremos que Hegel jaacute neste
momento mesmo sem haver referecircncia direta estaacute preocupado com a defesa da filosofia
perante a criacutetica ceacutetica Em vista da situaccedilatildeo da filosofia naquele momento o diagnoacutestico
hegeliano aponta para o fracasso de qualquer tentativa filosoacutefica de se sustentar perante uma
possiacutevel criacutetica de teor ceacutetico
Com efeito Hegel constatou ser a sua eacutepoca aquela em que a cultura fruto da cisatildeo do
absoluto isolou-se do mesmo e tornou-se autocircnoma81 Mas o fenocircmeno justamente por advir
do absoluto quer se constituir numa totalidade Se o fenocircmeno se constituir num todo a partir
dessa forccedila que limita ndash o entendimento e apoiado em todas as potecircncias da natureza e dos
talentos82 ao final desse processo teraacute apenas uma totalidade composta de limitaccedilotildees um
conjunto de partes justapostas mas natildeo o absoluto E quanto maior o esforccedilo em direccedilatildeo ao
absoluto mais e mais o entendimento produz a si mesmo numa totalidade composta de
finitos que natildeo teraacute fim O entendimento aiacute soacute faz zombar de si mesmo (seiner selbst
78 Ibidem p 14 trad p 88
79 Cf Ibidem pp 12-16 trad pp 86-90
80 Cf Ibidem p 14 trad p 88
81 Ibid p 12 trad p 86
82 Ibid pp 12-13 trad pp 86-87
52
spottet)83 Por outro lado o entendimento ao inveacutes de justapor os limitados por ele mesmo
postos num todo pode suprimindo todo finito fixar ldquoem um produto o negar racionalrdquo (ibid
p 13 trad p 87) Se a reflexatildeo pretendia elevar-se agrave razatildeo com a oposiccedilatildeo do infinito a todo
finito que nega fracassa nesse intento pois ldquoela se rebaixa novamente a entendimento ao
fixar o fazer da razatildeo na oposiccedilatildeordquo84 O infinito enquanto ato racional de negar opotildee-se a
todo finito por ele negado ldquoo entendimento ao fixar o negar do finito opotildee o mesmo
absolutamente ao finitordquo85 Nos dois casos acima descritos por mais que se tente natildeo se
consegue deixar a esfera das oposiccedilotildees Ou porque os opostos permanecem justapostos numa
totalidade finita que sempre pode se ampliar sem nunca tornar-se absoluta ou porque o negar
que se pretende racional natildeo atinge sua meta por manter-se em oposiccedilatildeo a todo finito
A cultura (Bildung) de diferentes eacutepocas observa Hegel mediante o trabalho do
entendimento produziu variadas formas de oposiccedilatildeo e pretendeu que elas valessem como
expressotildees do racional e do absoluto (Cf ibid p 13 trad p 87) Todavia o entendimento
arvorava-se em vatildeo realizar uma tarefa para a qual natildeo fora destinado A razatildeo tem como
uacutenico interesse suspender86 (aufheben) as oposiccedilotildees fixadas pelo entendimento pois essa eacute a
maneira de se tentar restabelecer a harmonia perdida com a dilaceraccedilatildeo do absoluto A tarefa
da razatildeo eacute ainda mais urgente numa eacutepoca que conforme o cenaacuterio descrito por Hegel a
formaccedilatildeo cultural cada vez mais se estende na forma de uma exteriorizaccedilatildeo da vida mediante
a potecircncia da cisatildeo num processo vertiginoso em que tornam-se os esforccedilos da vida mais e
mais alheios ao todo da formaccedilatildeo cultural e insignificantes na sua tentativa de parir
novamente a harmonia (Cf ibid p 14 trad p 88)
Este cenaacuterio eacute a descriccedilatildeo que Hegel faz de uma eacutepoca a sua na qual a filosofia que
natildeo seja mera expressatildeo do pensar limitado de entendimento faz falta Somente com a
realizaccedilatildeo da filosofia pode a cisatildeo absoluta posta pelo entendimento ser posta na sua
condiccedilatildeo verdadeira subalterna de cisatildeo relativa (Cf ibid p 14 trad p 88) Vive-se
83 Cf Ibid p 13 trad p 87
84 Ibid p 13 trad p 87 (ldquohat sich wieder zum Verstand erniedrigt indem sie das Thun der Vernunft in Entgegensetzung fixirterdquo)
85 Ibid p 13 trad p 87 (ldquoindem der Verstand es fixirt setzt er es dem Endlichen absolut entgegen rdquo)
86 Com efeito ao dizer que a razatildeo tem como uacutenico interesse suspender as oposiccedilotildees fixadas pelo entendimento isto se deve ao fato de que a razatildeo natildeo eacute contraacuteria agrave oposiccedilatildeo e agrave limitaccedilatildeo elas precisam existir mas que as oposiccedilotildees absolutamente fixadas impedem a restauraccedilatildeo da totalidade da harmonia absoluta (Cf GW 4 pp 13-14 trad pp 87-88)
53
segundo ele num periacuteodo carente de uma filosofia que cumpra sua tarefa isto eacute que ponha o
ser no natildeo-ser ndash como vir-a-ser a cisatildeo no absoluto ndash como seu fenocircmeno o finito no infinito
ndash como vida (GW 4 16) Sua concepccedilatildeo de razatildeo e de entendimento aleacutem do relacionamento
que entre ambos se estabelece indicam a direccedilatildeo pela qual poderaacute ocorrer o suprimento dessa
carecircncia e ao mesmo tempo tornar a filosofia imune ao ceticismo
Mas de volta agraves paacuteginas iniciais do Escrito sobre a Diferenccedila Hegel laacute notava que o
entendimento constitui-se num domiacutenio onde predomina o limitado Ele eacute ldquoa forccedila da
limitaccedilatildeordquo (GW 4 p 12) Toda determinaccedilatildeo que produz adveacutem de uma atividade reflexiva
apartada da razatildeo Hegel a chama de reflexatildeo isolada (GW 4 p 16) A reflexatildeo soacute pode dar
origem ao o limitado Isto significa que todo ser que ela produz estaraacute sempre numa relaccedilatildeo
com um outro ldquotodo ser porque ele eacute posto eacute um contraposto condicionado e
condicionanterdquo (GW 4 p 17) Sempre haveraacute um outro perante um posto A construccedilatildeo de
uma totalidade no plano do entendimento a formaccedilatildeo de um sistema filosoacutefico segundo suas
regras eacute uma tarefa que nunca se completaraacute uma tarefa fadada ao fracasso o entendimento
completa suas limitaccedilotildees que lhe satildeo proacuteprias mediante o pocircr das limitaccedilotildees contrapostas na
qualidade de condiccedilotildees essas carecem do mesmo completamento (Vervollstaumlndigung) e o
trabalho do entendimento se estende ao infinitordquo (GW 4 p 17) Todo ser posto pela atividade
reflexiva do entendimento natildeo subsiste por si soacute A sua limitaccedilatildeo torna-o dependente de um
outro que a ele se relaciona O entendimento contudo natildeo quer enxergar essa relaccedilatildeo de
dependecircncia existente entre os contrapostos Hegel chama isso de teimosia (Eigensinn) do
entendimento que ldquodeixa subsistir um ao lado do outro numa contraposiccedilatildeo natildeo unificada o
determinado e o indeterminado a finitude e a infinitude dadardquo (GW 4 p 17)
Na criacutetica de Hegel agrave limitaccedilatildeo do entendimento Klaus Vieweg vecirc e julgamos que de
modo acertado a aplicaccedilatildeo do 2ordm e 3ordm tropos de Agripa a essa faculdade do conhecer finito o
entendimento87
87 Vieweg K Philosophie des Remis Der junge Hegel und das ldquoGespenst des Skepticismusrdquo Muumlnchen Wilhelm Fink 1999 p 129 Cabe notar que este livro de Vieweg constitui uma minuciosa investigaccedilatildeo acerca da presenccedila do ceticismo na filosofia do jovem Hegel e em larga medida da discussatildeo em torno do ceticismo no mesmo periacuteodo na Alemanha Ver tambeacutem a respeito ndash e sob um ponto de vista mais amplo ndash da compreensatildeo hegeliana do ceticismo Vieweg K e Bowman B (orgs) Die freie Seite der Philosophie (Skeptizismus in hegelscher Perspektive) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 10 2006 O volume conteacutem uma seacuterie de artigos de diversos autores acerca do tema Tambeacutem no volume que organizou em torno do Jornal criacutetico da filosofia de Schelling e Hegel onde foi publicado o artigo ienense de Hegel sobre o ceticismo haacute alguns artigos tratando do tema ceticismo na filosofia do jovem Hegel Para tanto cf Vieweg K (org) Gegen das lsquounphilosophische Unwesenrsquo (Das Kritische Journal der Philosophie von
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Se tudo que eacute posto pelo entendimento eacute limitado e finito ou seja em virtude dessas
caracteriacutesticas estaacute sempre na dependecircncia dado seu caraacuteter condicionado de um outro que o
complete na medida que a ele se relacione entatildeo natildeo seria descabido pensar aqui na criacutetica
por meio do 3ordm modo de Agripa ao caraacuteter relativo de todas as coisas (Cf HP I 167 tambeacutem
I 175-7)
Essa relatividade adveacutem para Hegel do fato de que o entendimento eacute regido pelo
princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo algo natildeo pode ser A e natildeo-A ao mesmo tempo Ao se aceitar o
princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo aceita-se concomitantemente o princiacutepio de identidade que A eacute
igual a A Segundo Hegel eacute por estar comandado por esses princiacutepios que o entendimento
estaraacute sempre sujeito a que as determinaccedilotildees por ele postas sejam sempre condicionadas e
possam a elas outras serem contrapostas Ele chama a identidade que rege o entendimento de
relativa e abstrata uma identidade limitada pois as determinaccedilotildees produzidas de acordo com
ela tem como caracteriacutestica proacutepria estarem abstraiacutedas de suas opostas (GW 4 p 25)
As proposiccedilotildees de entendimento satildeo constituiacutedas a partir de uma igualdade que exclui
de si a desigualdade Isto ocorre porque tais proposiccedilotildees satildeo regidas por uma identidade
formal Para o entendimento prossegue Hegel em A=A como princiacutepio de identidade estaacute
contida apenas uma igualdade e na qual se faz abstraccedilatildeo de toda desigualdade (GW 4 pp 24-
25)
Podemos adiantar entretanto que do ponto de vista da razatildeo postula-se tambeacutem ldquoa
posiccedilatildeo daquilo que foi abstraiacutedo na igualdade pura o pocircr do contraposto o pocircr da
desigualdaderdquo (GW 4 p 25) Assim A=A natildeo consiste numa igualdade pura Tal igualdade
se sustenta na medida em que o entendimento abstrai da posiccedilatildeo do contraposto da
desigualdade
Schelling und Hegel) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 7 2002 Cabe ainda mencionar a respeito do tema ceticismo e dos debates no qual ele aparece na filosofia alematilde em 1800 o volume organizado por Vieweg e Bowman Wissen und Begruumlndung (Die Skeptizismus-Debatte um 1800 im Kontext neuzeitlicher Wissenskonzeptionen Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 8 2003 Para uma anaacutelise do ceticismo na filosofia do jovem Hegel ver tambeacutem Hofweber G Skeptizismus als bdquodie erste Stuffe zur Philosophieldquo beim Jenaer Hegel Heidelberg Winter 2006 Dentro ainda do mesmo tema o artigo de Paulo Eduardo Arantes Nihilismusstreit in Ressentimento da Dialeacutetica Satildeo Paulo Paz e Terra 1996
55
Segundo Hegel em A=A o primeiro A eacute um sujeito e o outro A eacute um objeto O A que
estaacute posto do lado do sujeito natildeo eacute o mesmo A que estaacute posto do lado do objeto Eles satildeo
diferentes E a expressatildeo dessa diferenccedila eacute A natildeo eacute = A ou A eacute = B
Uma proposiccedilatildeo formal natildeo pode ser contraditoacuteria em si mesma No domiacutenio do
entendimento se expressa a igualdade numa proposiccedilatildeo e a cisatildeo ou desigualdade em outra
Mas quando entra em cena a razatildeo a identidade formal eacute deixada de lado Em A=A o A
posto do lado do sujeito soacute afirma sua identidade ao se relacionar com seu oposto o A posto
do lado do objeto negando-o Como jaacute foi dito haacute uma diferenccedila entre o A (sujeito) e o A
(objeto)
ldquoA=A conteacutem a diferenccedila de A como sujeito e de A como objeto ao mesmo tempo
que sua identidaderdquo(GW 4 p 26)
O mesmo se passa em A=B --- e por isso eacute indiferente pocircr A=A ou A=B o A sujeito eacute
diferente do B objeto ao mesmo tempo que haacute uma identidade aiacute contida Como conclusatildeo
podemos dizer que a identidade no acircmbito da razatildeo somente eacute possiacutevel com a diferenccedila
Se o entendimento no entanto manteacutem-se de acordo com o princiacutepio de natildeo-
contradiccedilatildeo estaacute condenado a perecer devido a estar sob a legislaccedilatildeo desse mesmo princiacutepio
Conforme Hegel a lei da contradiccedilatildeo eacute o que possibilita ao entendimento constituir-se como
absoluto e dessa maneira fazer com que seu ser-posto (Gesetzsein) seja e permaneccedila (GW 4
p 18) Mas em virtude de se reger por essa lei os produtos do entendimento natildeo podem se
manter jaacute que a limitaccedilatildeo dos mesmos eacute mostrada pelo seu contraposto
O que isso significa Significa que de acordo com o que foi dito haacute pouco a
contradiccedilatildeo precisa ser afastada As proposiccedilotildees produzidas no acircmbito do entendimento natildeo
admitem a contradiccedilatildeo Natildeo podem admitir que se diga que algo seja e natildeo seja ao mesmo
tempo No que nos interessa mais de perto a filosofia Hegel procura a todo momento neste
no iniacutecio do Escrito sobre a Diferenccedila mostrar que os sistemas filosoacuteficos de sua eacutepoca se
articulam na forma de proposiccedilotildees de acordo com a lei do entendimento (Cf GW 4 p 24) O
que traz por consequumlecircncia a impossibilidade de manutenccedilatildeo desses sistemas ldquopois algo
posto por meio da reflexatildeo uma proposiccedilatildeo eacute por si um limitado e condicionado e carece de
um outro para sua fundamentaccedilatildeo e assim ao infinitordquo (GW 4 p 23) Natildeo haacute como natildeo
pensar aqui assim como jaacute fora notado por Vieweg no 2ordm tropo de Agripa o da regressatildeo ao
infinito Por meio desse tropo o ceacutetico pretende mostrar a inexistecircncia de demonstraccedilotildees pois
56
se pode questionar as premissas de uma argumentaccedilatildeo proposta dogmaticamente e tambeacutem as
premissas dessas premissas de modo que esse processo de justificaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo
possa sempre se renovar numa regressatildeo ao infinito (Cf HP I 166)
Qualquer proposiccedilatildeo posta como fundamento absoluto de um sistema baseado no
entendimento natildeo teraacute como se sustentar ldquopois de um algo pensado que a proposiccedilatildeo
exprime se pode facilmente demonstrar que ele eacute condicionado por um contraposto e
portanto natildeo eacute absoluto e se pode demonstrar por esse contraposto agrave proposiccedilatildeo que ela
precisa ser posta e que portanto aquele algo pensado que a proposiccedilatildeo exprime eacute nadardquo
(GW 4 p 24) Uma tal proposiccedilatildeo natildeo tem condiccedilotildees de cumprir seu propoacutesito de fundaccedilatildeo
do sistema A ela uma outra pode ser posta em sentido contraacuterio de maneira que sua pretensatildeo
ao absoluto fique prejudicada Parece-nos que natildeo seja por outro motivo que Hegel afirme que
uma proposiccedilatildeo dessa natureza seja no fundo uma antinomia e por isso fadada a ser
suprimida (Cf GW 4 p 24)88 Do ponto de vista do que ele chama de mera reflexatildeo (die
blosse Reflexion) natildeo eacute entatildeo possiacutevel que um sistema construiacutedo a partir da ldquoloacutegicardquo do
entendimento possa pretender tornar-se incondicionado Essa conclusatildeo a nosso ver estaacute
dentro do espiacuterito da filosofia ceacutetica Diante do conflito entre proposiccedilotildees ou argumentos
contraditoacuterios o ceacutetico natildeo tendo como se decidir por um dos lados afinal ambos parecem
igualmente persuasivos eacute levado a suspender seu juiacutezo (Cf HP I 8) No caso de Hegel a
antinomia estabelecida tambeacutem impede que se aceite que um sistema qualquer tenha sido bem
sucedido na sua pretensatildeo ao absoluto Do ponto de vista do entendimento a contradiccedilatildeo eacute
um mal a ser evitado Mas como mostrou o ceacutetico ela natildeo pode ser evitada e Hegel leitor
atento de Sexto Empiacuterico concorda com ele
A filosofia numa eacutepoca dominada pela potecircncia da cisatildeo torna-se um alvo faacutecil do
ceticismo Natildeo haacute como evitar que o ceacutetico possa sempre mostrar o oposto daquilo que foi
posto A constataccedilatildeo desse difiacutecil e improvaacutevel ecircxito das filosofias perante o ceticismo faz
com que sua eacutepoca esteja como jaacute foi dito anteriormente carente de uma filosofia que
cumpra sua tarefa Como entatildeo suprir essa carecircncia Como a filosofia pode configurar-se
88 O aspecto negativo que assume a antinomia no domiacutenio do entendimento se deve a que como jaacute dissemos a contradiccedilatildeo aiacute precisa ser evitada Diferente seraacute a situaccedilatildeo como veremos na sequumlecircncia do texto quando entrar em cena o racional A antinomia adquire entatildeo outro aspecto precisamente um aspecto positivo Tanto seraacute assim que Hegel elogia Espinosa por comeccedilar a filosofia com a proacutepria filosofia isto eacute inicia o sistema com uma antinomia (Cf GW4 p 24)
57
sistematicamente ainda mais se se considerar pertinente a atitude investigativa ceacutetica Como
escapar da antinomia estabelecida entre proposiccedilotildees ou argumentos que se contrapotildeem
Aqui entra em cena a razatildeo o momento positivo do saber Como veremos eacute nesse
domiacutenio que seraacute possiacutevel conforme Hegel agrave filosofia se constituir de modo que as aporias
surgidas no domiacutenio do entendimento entregue a si mesmo sejam resolvidas
Seraacute por meio da razatildeo que na sua atividade especulativa a filosofia poderaacute se
realizar Mas como especificamente esse objetivo poderaacute ser alcanccedilado Segundo Hegel natildeo
seraacute possiacutevel atingir a filosofia sem que tenham sido resolvidas as cisotildees produzidas pelo
entendimento Desde este momento jaacute estaacute ele convencido que a filosofia e o que ele
compreende por saber absoluto soacute poderatildeo advir como o resultado de um processo
Esse processo ocorreraacute em momento anterior e exterior ao surgimento da filosofia (vor
und ausser der Philosophie) [GW 4 p 16] Seraacute comandado pela razatildeo e esse momento
anterior consiste na esfera do entendimento aquela que se constitui por meio de uma
atividade reflexiva que potildee seus produtos como independentes absolutamente quer dizer
como se estivessem livres da possibilidade de que a eles pudesse algo ser contraposto o que
resultaria numa antinomia
A filosofia aos olhos de Hegel pressupotildee esse momento em que as determinaccedilotildees
postas pela atividade reflexiva do entendimento se desenvolvem Mas o que significa essa
pressuposiccedilatildeo Significa que natildeo haacute como desconsiderar essa esfera das cisotildees postas pelo
entendimento ldquoeacute um fator da vida que se cultiva mediante um eterno contrapor-serdquo (GW 4
p 13) Deixar entretanto entregue a si mesma essa dimensatildeo onde predomina a finitude eacute
deixar prosseguir a esmo seu processo de determinaccedilatildeo que jamais chegaraacute a um termo E
assim em virtude do caraacuteter limitado das proposiccedilotildees resultantes da atividade do
entendimento natildeo se pode impedir que novas antinomias se constituam Eacute preciso que se decirc
conta dessas oposiccedilotildees que continuamente surgem Sem isso torna-se a filosofia apenas uma
promessa natildeo passiacutevel de se cumprir
58
Hegel de maneira bastante sucinta refere-se agrave necessidade de justificaccedilatildeo dessas
determinaccedilotildees limitadas produzidas pelo entendimento Soacute ao teacutermino desse procedimento de
justificaccedilatildeo que a filosofia poderaacute aparecer89 Esse procedimento seraacute efetuado pelo que ele
chama de ldquoinstrumento do filosofarrdquo ou a reflexatildeo como razatildeo90
Para se ultrapassar esse domiacutenio da finitude a razatildeo precisa aniquilar as oposiccedilotildees
(Gegensaumltze) fixas do entendimento Para que entatildeo alcancemos o plano filosoacutefico eacute preciso
ir aleacutem dessa esfera onde predomina o limitado A razatildeo somente produz o absoluto ao
libertar a consciecircncia das limitaccedilotildees (GW 4 p 15)
A filosofia expressa de acordo com as regras do entendimento soacute pode se dar numa
forma reflexiva Esta por sua vez pode ou natildeo pode apoderar-se (zu fassen) do absoluto A
rigor a reflexatildeo e seus produtos satildeo apenas limitaccedilotildees (Beschraumlnkungen) Assim o absoluto
refletido por ser posto pela reflexatildeo seraacute um limitado Como entatildeo seraacute possiacutevel que a
reflexatildeo seja capaz de apoderar-se do absoluto A este respeito e a partir de uma distinccedilatildeo
entre a reflexatildeo apartada do absoluto e a reflexatildeo vinculada ao absoluto Hegel diraacute A
reflexatildeo isolada como pocircr dos contrapostos seria um suprimir (Aufheben) do absoluto ela eacute a
faculdade do ser e da limitaccedilatildeo mas a reflexatildeo como razatildeo tem relaccedilatildeo com o absoluto e ela
somente eacute razatildeo mediante essa relaccedilatildeo a reflexatildeo nesta medida aniquila a si mesma e a todo
ser e limitado enquanto se refere ao absoluto mas ao mesmo tempo por sua referecircncia ao
absoluto tem o limitado uma consistecircncia (ein Bestehen) (GW 4 pp 16-17)91
89 ldquoQuando poreacutem a razatildeo se reconhece como absoluta entatildeo com isso comeccedila a filosofia ao cessar esse modo de proceder proacuteprio da reflexatildeordquo (GW 4 p 29) Na Fenomenologia do Espiacuterito tambeacutem o saber absoluto soacute poderaacute aparecer ao teacutermino de um processo de exame da consciecircncia no qual esta se liberta de sua forma natildeo-verdadeira ldquoImpelindo-se a si mesma em direccedilatildeo agrave sua verdadeira existecircncia a consciecircncia alcanccedilaraacute aquele ponto no qual depotildee a sua aparecircncia qual seja a de estar presa a algo estranho que eacute somente para ela e como um outro ou no qual o fenocircmeno se torna igual agrave essecircncia A apresentaccedilatildeo da consciecircncia coincide aqui justamente com esse ponto da ciecircncia do espiacuterito propriamente dita e finalmente apreendendo ela mesma a sua essecircncia a consciecircncia designaraacute a natureza do proacuteprio saber absolutordquo (Hegel Fenomenologia do Espiacuterito Col Os Pensadores trad Henrique Vaz Satildeo Paulo Ed Abril 1974 p 56)
90 Parece-nos que o procedimento de justificaccedilatildeo dos produtos do entendimento a ser efetuado por esse instrumento da atividade filosoacutefica que eacute a reflexatildeo como razatildeo seja uma antecipaccedilatildeo do processo de exame pelo qual a consciecircncia na Fenomenologia do Espiacuterito eacute submetida ateacute que por fim possa chegar ao saber absoluto Talvez seja por isso que Klaus Vieweg considere no que concordamos com ele haver nesse capiacutetulo inicial do Escrito da Diferenccedila um procedimento ceacutetico de exame de diversos tipos de pensamento finito Os rudimentos do que seraacute na Fenomenologia o ldquoceticismo que se consumardquo (der sich vollbringende Skeptizismus) (Cf Vieweg Philosophie des p 129)
91 Com respeito agrave distinccedilatildeo hegeliana entre reflexatildeo isolada e reflexatildeo relacionada ao absoluto eacute com proveito que podemos nos remeter ao que diz Rainer Schaumlfer A reflexatildeo finita persiste nas suas determinaccedilotildees
59
A reflexatildeo isolada se constitui de acordo com o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Eacute
segundo este princiacutepio que ela potildee seus produtos e lhes daacute subsistecircncia A reflexatildeo ao mesmo
tempo que suprime o absoluto potildee-se como um absoluto ela fixa seus produtos como
absolutamente opostos ao absoluto daacute para si como lei eterna permanecer entendimento e
natildeo se tornar razatildeo e mantendo-se na sua obra em oposiccedilatildeo ao absoluto nada eacute ndashndash e como
limitada eacute ao absoluto oposta (GW 4 p 18)92 Todavia o subsistir daquilo que por ela eacute
posto eacute um condicionado e estaacute fadado a ser contraditado por seu oposto
Jaacute no caso da reflexatildeo como instrumento do filosofar sua vinculaccedilatildeo agrave razatildeo natildeo
permitiraacute que o limitado permaneccedila e seja esse absoluto capenga tal como acontecia na
reflexatildeo isolada A reflexatildeo aqui tambeacutem chamada por Hegel de reflexatildeo filosoacutefica aniquila
todo ser posto pelo entendimento A emergecircncia do absoluto depende dessa aniquilaccedilatildeo de
todo condicionado Na medida em que a reflexatildeo se potildee sob a lei da razatildeo ela daacute iniacutecio a esse
processo de auto-aniquilaccedilatildeo que permitiraacute que ela se torne razatildeo93 Na medida em que a
reflexatildeo se faz objeto de si mesma sua aniquilaccedilatildeo (Vernichtung) eacute sua lei suprema que a
razatildeo lhe daacute e pela qual ela se torna razatildeo (GW 4 p 18) A reflexatildeo relacionada ao absoluto
eacute a razatildeo como negaccedilatildeo absoluta que aniquila o ser limitado e condicionado posto pelo
entendimento Eacute dessa maneira que seraacute possiacutevel ir aleacutem da esfera limitada do entendimento
unilaterais natildeo chega de nenhum modo ao conhecimento de sua nulidade suas siacutenteses satildeo mesmo as de niacutevel mais complexo sempre unilaterais e abstratas pois aqui tambeacutem ainda vigoram os pontos de vista distintos Nas siacutenteses finitas vale por conseguinte ainda o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Nas siacutenteses reflexivas finitas natildeo estatildeo efetivadas (vollzogen) as destruiccedilotildees dialeacuteticas dos pontos de vista distintos A reflexatildeo em contrapartida que reconhece a nulidade dos pontos de vista distintos vai aleacutem da reflexatildeo finita e torna-se deste modo ldquoinstrumento do filosofarldquo (Schaumlfer R Die Dialektik und ihre besonderen Formen in Hegels Logik Hegel-Studien Beiheft 45 Hamburg Meiner 2001 p 41) Ver tambeacutem a esse respeito o comentaacuterio de Gilbert Geacuterard ldquoDe maneira geral a reflexatildeo designa nos Escritos Criacuteticos a atividade proacutepria do entendimento ou a subjetividade pensante na medida em que separada isto eacute cortada da objetividade real do ser ela soacute tem que ver com suas proacuteprias representaccedilotildees e portanto apenas com ela mesma Se Hegel fala aqui de reflexatildeo isolada isto se deve por um lado para sublinhar de um modo talvez redundante seu caraacuteter abstrato mas eacute contudo tambeacutem para distingui-la daquilo que ele chama de ldquoa reflexatildeo como razatildeordquo ou ldquoreflexatildeo filosoacuteficardquo Natildeo se deve deixar induzir em erro por essas uacuteltimas expressotildees elas natildeo significam de nenhum modo que a reflexatildeo como tal seja racional ou filosoacutefica Pelo contraacuterio noacutes veremos que a reflexatildeo soacute chega agrave filosofia ao se suprimir como reflexatildeo Ela se torna entatildeo na terminologia hegeliana especulaccedilatildeo (Geacuterard G Critique et dialectique Bruxelas Saint-Louis 1982 nota 54 p 37)
92 Eacute por esse processo de absolutizaccedilatildeo do limitado que se forma o entendimento Nesse sentido ver Geacuterard 1982 nota 4 p 66
93 Ver tambeacutem a esse respeito Zimmerli W C Die Frage nach der Philosophie Interpretation zu Hegels Differenzschrift Hegel-Studien Beiheft 12 Bonn Bouvier Verlag Herbert Grundmann 1974 p 99
60
Ao mesmo tempo que todo limitado mostra sua nulidade94 visto que eacute um oposto a um outro
que o nega esse limitado adquiriraacute uma consistecircncia ao ser integrado ao absoluto Mas o
absoluto porque eacute produzido para a consciecircncia mediante o filosofar da reflexatildeo torna-se
deste modo uma totalidade objetiva um todo de saber (Wissen) uma organizaccedilatildeo de
conhecimentos nessa organizaccedilatildeo cada parte eacute o todo pois ela consiste numa relaccedilatildeo com o
absoluto como parte que tem outra fora de si ela eacute um limitado e somente eacute mediante as
outros isolada como limitaccedilatildeo ela eacute deficiente somente tem sentido e significaccedilatildeo mediante
sua conexatildeo com o todo (GW 4 p 19)
Vemos assim que a reflexatildeo filosoacutefica eacute o meio pelo qual eacute possiacutevel o retorno ao
absoluto Relacionada ao absoluto a reflexatildeo eacute esse negar absoluto que suspende ( aufhebt )95
as oposiccedilotildees produzidas pelo entendimento Assim essa reflexatildeo que por ser relacionada ao
absoluto eacute razatildeo tem como tarefa suprimir a oposiccedilatildeo absoluta ela denuncia o caraacuteter
abstrato do entendimento ao mostrar que cada uma de suas posiccedilotildees eacute em verdade uma
antinomia quer dizer desvelando o viacutenculo que une cada uma delas agrave tese imediatamente
adversa (Geacuterard p 83) A pretensatildeo ao absoluto do entendimento natildeo passa de um malogro
afinal todo o posto pelo entendimento com sua suposta absolutez natildeo resiste ao encontro
com seu oposto quando este se apresenta e o contradiz formando uma antinomia A reflexatildeo
eacute o lado negativo do saber ou seja aquele que regido pela razatildeo faraacute com que todo limitado
destrua a si mesmo Mas para que surja a filosofia natildeo podemos permanecer nessa esfera
dominada pela negatividade produtora de antinomias A permanecermos aqui natildeo vamos
aleacutem do aspecto formal da especulaccedilatildeo Se se reflete apenas sobre o aspecto formal da
especulaccedilatildeo e se manteacutem firmemente a siacutentese do saber em forma analiacutetica assim eacute a
antinomia a contradiccedilatildeo que a si mesma se suspende (der sich selbst aufhebende
Widerspruch) a suprema expressatildeo formal do saber e da verdade (GW 4 p 26) O
reconhecimento da antinomia como expressatildeo formal da verdade significa para Hegel dar-se
conta por meio da razatildeo da essecircncia formal da reflexatildeo (GW 4 p 26) Eacute preciso entatildeo ir
aleacutem desse lado negativo
94 Natildeo haacute por isso nenhuma verdade da reflexatildeo isolada do pensar puro a natildeo ser aquela de sua aniquilaccedilatildeo (GW 4 p 19)
95 O termo alematildeo aufheben pode significar suprimir elevar e conservar Para o propoacutesito especulativo de Hegel a polissemia do termo vem bem a calhar pois as determinaccedilotildees de entendimento satildeo suprimidas pela reflexatildeo como razatildeo e ao mesmo tempo conservadas na sua elevaccedilatildeo ao plano especulativo da razatildeo Isto posto traduzimos aufheben por suspender em virtude do termo em portuguecircs tambeacutem poder significar suprimir elevar e conservar Apenas quando o uso do termo eacute exclusivamente negativo traduzimos entatildeo por suprimir
61
O completamento (Vervollstaumlndigung) da unilateralidade da obra da reflexatildeo dar-se-
aacute na intuiccedilatildeo (Anschauung) A intuiccedilatildeo diz Hegel eacute o que postula a razatildeo para que a obra da
reflexatildeo seja completada (GW 4 p 29) Daacute-se com essa siacutentese dos opostos que se
contradizem a possibilidade que possa surgir o lado positivo do saber qual seja a intuiccedilatildeo o
racional precisa ser deduzido de acordo com seu conteuacutedo determinado isto eacute a partir da
contradiccedilatildeo dos opostos determinados cuja siacutentese eacute o racional o postulaacutevel eacute a intuiccedilatildeo que
preenche e manteacutem esse lado antinocircmico (GW 4 p 29)96 Eacute na intuiccedilatildeo que a siacutentese dos
opostos teraacute sua subsistecircncia (ihr Bestehen) Nessa identidade de reflexatildeo e intuiccedilatildeo teremos
portanto o saber especulativo (Cf GW 4 p 29) Em resumo podemos dizer que uma vez
realizada a tarefa (negativa) da reflexatildeo filosoacutefica torna-se possiacutevel a siacutentese da mesma com a
intuiccedilatildeo absoluta de modo que possa ocorrer o desdobramento do lado positivo do saber
Neste momento a filosofia deixaraacute de ser algo a ser buscado deixaraacute de ser uma carecircncia
pois a filosofia comeccedila onde termina essa maneira que procede da reflexatildeo com a
identidade da ideacuteia e do ser (GW 4 p 29-30)97
No artigo sobre o Ceticismo essa atividade de aniquilaccedilatildeo daquilo que eacute posto pelo
entendimento conforme ao princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo eacute exercida pelo ceticismo ou como a
ele se refere Hegel o lado negativo do conhecimento do absoluto (Cf GW 4 p 207)98 Eacute por
meio dele que com a produccedilatildeo de antinomias mostra-se o caraacuteter limitado e condicionado
das determinaccedilotildees produzidas pelo entendimento e se permite a passagem para a razatildeo que eacute
96 Tambeacutem a este respeito mas a razatildeo unifica os contraditoacuterios potildee a ambos ao mesmo tempo e os suspende (GW 4 p 23)
97 Com relaccedilatildeo ao escrito sobre a Diferenccedila jaacute apresentar-se como um primeiro esboccedilo de certos desenvolvimentos posteriores da filosofia de Hegel eacute oportuno lembrar o comentaacuterio de Marcos Lutz Muumlller a respeito dessa articulaccedilatildeo do relacionamento entre entendimento e razatildeo nesse mesmo escrito sobre a Diferenccedila como sendo o motivo inspirador da constituiccedilatildeo da relaccedilatildeo dos trecircs ldquomomentosrdquo da estrutura loacutegico-especulativa do pensamento e da realidade efetiva conforme exposta condensadamente nos sectsect 79-82 da Enciclopeacutedia e no seu desdobramento quaternaacuterio no capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica A ideacuteia absoluta (Cf Muumlller M L ldquoO idealismo especulativo de Hegel e a modernidade filosoacutefica criacutetica ou radicalizaccedilatildeo dessa modernidaderdquo Revista Eletrocircnica Estudos Hegelianos ano 2ordm Nordm 3 2005 p 3)
98 Para Hegel o ceticismo se encontra implicitamente em todo autecircntico sistema filosoacutefico e como seu lado negativo (Cf GW 4 p 208) De modo expliacutecito apenas no Parmecircnides de Platatildeo sendo que deve ser notado haja no mesmo somente o lado negativo da filosofia (Cf GW 4 pp 207-208) Quanto ao ceticismo pirrocircnico Hegel o chama de ceticismo separado da filosofia Um ceticismo que assim como aquele presente no diaacutelogo platocircnico Parmecircnides tambeacutem natildeo possui um lado positivo e com relaccedilatildeo ao saber declara apenas uma pura negatividade O ceacutetico sentido-se incapaz de decidir por entre argumentos ou proposiccedilotildees aparentemente igualmente persuasivos suspende seu juiacutezo e assim nem afirma nem nega a respeito de algo dito com pretensatildeo agrave verdade Para Hegel eacute o que nos parece agir assim eacute afirmar uma pura negatividade (A respeito do ceticismo pirrocircnico ver de modo geral GW 4 pp 213-222)
62
o lado positivo do conhecimento do absoluto99 O grande valor do ceticismo para Hegel reside
nessa sua perseverante luta contra o dogmatismo realizada por meio do que poderiacuteamos
chamar de seu princiacutepio programaacutetico opor a todo argumento ou proposiccedilatildeo uma proposiccedilatildeo
ou o argumento de igual forccedila (Cf HP I 12 tb I 8)
Como o domiacutenio do entendimento eacute aquele no qual apenas lidamos com proposiccedilotildees
passiacuteveis de serem contraditadas por suas opostas isto eacute proposiccedilotildees que em virtude de
serem postas de acordo com a identidade abstrata de entendimento natildeo resistem ao
estabelecimento da antinomia o ceacutetico natildeo tem dificuldade em exercitar sua atitude filosoacutefica
Atitude que para Hegel eacute totalmente pertinente e justificaacutevel quanto agrave sua realizaccedilatildeo
Mas eacute preciso lembrar que o ecircxito do ceticismo no combate ao dogmatismo soacute poderaacute
ocorrer no acircmbito do entendimento No acircmbito da razatildeo como pudemos observar a finitude
do entendimento foi deixada para traacutes Nela a contradiccedilatildeo natildeo leva a filosofia ao seu limite
As proposiccedilotildees que se contradizem satildeo consideradas de uma outra perspectiva Elas
permanecem relacionadas numa siacutentese efetuada pela razatildeo o lado positivo da filosofia A
contradiccedilatildeo natildeo eacute mais aqui um mal a ser evitado pelo contraacuterio ela foi incorporada agrave
filosofia Uma proposiccedilatildeo que exprime um conhecimento racional teraacute como caracteriacutestica
baacutesica ser constituiacuteda por conceitos que do ponto de vista do entendimento se contradizem
(Cf GW 4 p 208) Mas para a razatildeo natildeo haacute nada de aberrante nisso100
Quando a perspectiva racional toma a frente as proposiccedilotildees que se contradizem satildeo
unificadas de modo que se suspende (aufhebt) a antinomia Como diz Hegel ldquoquando em
qualquer proposiccedilatildeo que expressa um conhecimento racional se o aspecto refletido da
mesma ndash os conceitos que nela estatildeo contidos ndash eacute isolado e o modo como eles (os conceitos)
estatildeo ligados eacute considerado entatildeo precisa mostrar-se que esses conceitos estatildeo suspensos
(aufgehoben) ou de tal modo unificados que eles se contradizem caso contraacuterio natildeo teriacuteamos
99 Cf GW 4 p 207 trad cit p 36
100 Tambeacutem no artigo sobre o Ceticismo Hegel se vale de Espinosa como exemplo de filoacutesofo que constroacutei seu sistema a partir de proposiccedilotildees que como diraacute Hegel cometem uma infraccedilatildeo (Verstoszlig) ao princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Proposiccedilotildees de caraacuteter antinocircmico como a que se encontra no iniacutecio da Eacutetica a saber a do conceito de causa sui ou seja aquela causa cuja essecircncia implica sua existecircncia Um tal conceito segundo Hegel foge completamente ao que normalmente se compreende pelo conceito de essecircncia visto que este eacute possiacutevel na medida em que se faz abstraccedilatildeo da existecircncia Da perspectiva racional natildeo haveria contradiccedilatildeo nessa uniatildeo da essecircncia com a existecircncia (Cf GW 4 p 208)
63
uma proposiccedilatildeo racional mas sim uma proposiccedilatildeo de entendimentordquo101 A identidade de
entendimento eacute uma identidade relativa que quando entra em cena a razatildeo daacute lugar a uma
identidade absoluta Essa identidade absoluta eacute uma siacutentese desses contrapostos que formam a
antinomia102 A siacutentese desses postos contrapostos de modo que por ela a antinomia seja
suspensa faz surgir o racional Os contrapostos continuam laacute entretanto eles estatildeo suspensos
(aufgehoben)103 na unidade do racional
Toda proposiccedilatildeo de razatildeo observa Hegel na medida em que ela pode se dissolver em
duas proposiccedilotildees que se contradizem (sich in zwey sich schlechthin widerstreitende aufloumlsen
laumlszligt) ndash por exemplo Deus eacute causa e Deus natildeo eacute causa ele eacute uno e natildeo eacute uno ndash faz entrar em
cena com toda a forccedila o princiacutepio do ceticismo ldquoopor a todo discurso um discurso de forccedila
igualrdquo104
A concepccedilatildeo hegeliana de filosofia reconhece a importacircncia do ceticismo para a
filosofia Entretanto eacute necessaacuterio ir aleacutem desse momento negativo no qual satildeo produzidas
antinomias O ldquoprinciacutepiordquo ceacutetico de ldquoopor a cada discurso um discurso de forccedila igualrdquo (panti
logoi logos isos antikeitai) eacute pertinente apenas no momento negativo da filosofia pois ao
levar agrave produccedilatildeo de antinomias natildeo permite que uma proposiccedilatildeo finita se determine sem
levar em conta a proposiccedilatildeo contraposta e a ela relacionada
A possibilidade de construccedilatildeo do sistema ou a auto-produccedilatildeo da razatildeo estaraacute fundada
na siacutentese de opostos que a cada nova identidade obtida reclama a produccedilatildeo de uma nova
siacutentese de modo que assim o sistema progride e se modela numa totalidade objetiva (Cf GW
4 p 31)105
101 GW 4 p 208 trad p 38 (ldquowenn in irgend einem Satze der eine Vernunfterkenntniszlig ausdruumlckt das Reflectirte desselben die Begriffe die in ihm enthalten sind isolirt und die Art wie sie verbunden sind betrachtet wird so muszlig es sich zeigen daszlig diese Begriffe zugleich aufgehoben oder auf eine solche Art vereinigt sind daszlig sie sich widersprechen sonst waumlre es kein vernuumlnftiger sondern ein verstaumlndiger Satzldquo)
102 Ibidem p 27 trad p 101
103 Suspender com o sentido de suprimir elevar e conservar
104 Hegel cita a famosa foacutermula do ldquoprinciacutepiordquo ceacutetico ndash ldquoopor a cada discurso um discurso de forccedila igualrdquo ndash no original grego Cf GW 4 p 208 e HP I 12
64
105 ldquoA razatildeo a saber a faculdade (neste caso da objetiva) totalidade completa a identidade relativa mediante sua contraposta e produz por meio da siacutentese de ambas uma nova identidade que ela mesma novamente perante a razatildeo eacute uma identidade deficiente e que de novo se completa do mesmo modordquo (GW 4 p 31)
65
Capiacutetulo 3 - O ceticismo nas Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia de Hegel
Segundo nos informa Walter Jaeschke106 com exceccedilatildeo de ldquoLoacutegica e Metafiacutesicardquo
nenhum tema foi tatildeo regular e minuciosamente objeto das preleccedilotildees de Hegel quanto a
ldquoHistoacuteria da filosofiardquo A primeira vez em Iena (18051806) depois Heidelberg (18161817 e
18171818) Nada ainda conforme Jaeschke nos restou como testemunho dessa primeira
ocupaccedilatildeo hegeliana com o tema em suas aulas Como fonte que nos chegou de suas Liccedilotildees
sobre a Histoacuteria da Filosofia temos as que Hegel ministrou em Berlim por seis vezes no
veratildeo de 1819 no inverno de 18201821 e nos invernos de 182324 182526 182728 e
182930 No inverno de 183132 Hegel tambeacutem tinha como tema de suas aulas a histoacuteria da
filosofia mas as mesmas logo foram interrompidas devido agrave morte do filoacutesofo em 14 de
Novembro Hegel havia aqui apenas iniciado a introduccedilatildeo das aulas e sem ao menos poder
concluiacute-la
Com relaccedilatildeo ao nosso interesse a saber as preleccedilotildees que tratavam do tema ceticismo
antigo Jaeschke nota que o estudo intenso do ceticismo jaacute era feito por Hegel desde seus anos
em Frankfurt antes portanto de sua ida em 1801 para Iena Aleacutem disso como jaacute pudemos
observar o ceticismo havia sido objeto de um artigo em Iena e neste artigo consideraccedilotildees de
caraacuteter historiograacutefico a respeito da filosofia ceacutetica se faziam presentes
Nossa intenccedilatildeo agora eacute observar nessas Liccedilotildees a respeito da histoacuteria da filosofia107
que leitura e interpretaccedilatildeo Hegel faz do ceticismo justamente no momento em que jaacute era um
filoacutesofo renomado e com suas principais obras publicadas
106 Cf Jaeschke W Hegel Handbuch Leben- Werk- Schule Stuttgart Metzleer 2003 XIV pp 477 ndash 478
107 Werke 19 pp 358-403 trad pp 759-809
66
No iniacutecio de sua exposiccedilatildeo a respeito do ceticismo pirrocircnico Hegel faz a seguinte
afirmaccedilatildeo ldquoO ceticismo levou a seu acabamento (vollendete) a maneira de ver da
subjetividade de todo saber e potildee de modo geral no lugar do ser a expressatildeo do parecer no
saber O ponto culminante [dessa maneira de ver] eacute o ceticismo a forma do ente e do saber
sobre o ente eacute inteiramente aniquiladardquo 108
E a partir dessa afirmaccedilatildeo fica entatildeo a pergunta o que pode significar o ceticismo ser
o acabamento da maneira de ver subjetivista
Se nos voltarmos para sua Histoacuteria da Filosofia veremos que na filosofia anterior ao
ceticismo os sofistas segundo Hegel podiam ser considerados representantes de uma
filosofia que expressava uma ldquomaneira de ver subjetivardquo109 Foram eles os primeiros a
mostrar assim como depois os ceacuteticos o caraacuteter relativo daquilo que era posto como
verdadeiro ou vaacutelido universalmente Hegel inclusive se refere aos sofistas como ceacuteticos110
Protaacutegoras por exemplo declarava que o homem eacute a medida de todas as coisas daquela que
eacute que ela eacute daquela que natildeo eacute que ela natildeo eacute111 Depende de cada homem em particular o
estabelecimento de qualquer verdade Estaacute relacionado a cada um a verdade a medida a ser
instaurada Assim como o ceacutetico posteriormente jaacute Protaacutegoras procurava nos mostrar que
dada a diversidade dos homens seria muito difiacutecil tentar obter uma verdade que a todos
aparecesse como a uacutenica ldquoa verdade (a medida) eacute fenocircmeno para a consciecircnciardquo112 Aquilo
que a mim me aparece natildeo pode valer para todos os outros dada essa diversidade dos homens
e do caraacuteter relativo daquilo que julgam a respeito das coisas Subjetividade aqui indica aquilo
que natildeo pode obter generalidade que natildeo pode deixar de ser particular e relacionado a
108 Werke 19 p 358 trad cit p 759 (ldquoDer Skeptizismus vollendete die Ansicht der Subjektivitaumlt alles Wissens ud setzte allgemein an die Stelle des Seins im Wissen den Ausdruck des Scheinens Die letzte Spitze ist der Skeptizismus die Form des Seienden und des Wissens des Seienden wird ganz zunichte gemachtrdquo)
109 Cf Werke 18 pp 406-441 trad pp 241-272
110 Hegel denomina de modo claro Protaacutegoras e Goacutergias como representantes do ceticismo isto eacute como aqueles que se expressam em relaccedilatildeo agrave verdade agrave maneira dos ceacuteticos Apoacutes fazer uma exposiccedilatildeo a respeito de Protaacutegoras Hegel comeccedila a tratar de Goacutergias nos seguintes termos ldquoEsse ceticismo chegou a uma profundidade bem maior por meio de Goacutergiasrdquo (ldquoZu einer weit groumlszligeren Tiefe gelangte dieser Skeptizismus durch Gorgiasrdquo) In Werke 18 p 434 trad cit p 266
111 Nessa breve apresentaccedilatildeo de Protaacutegoras guiamo-nos por Hegel na seccedilatildeo que ele dedica ao filoacutesofo Cf Ibidem 18 pp 428-434 trad pp 260-266
112 Citaccedilatildeo de Protaacutegoras que Hegel faz a partir de Sexto Empiacuterico Adversus mathematicos VII 388 In Ibidem 18 p 431 trad p 263 (ldquoDie Wahrheit (das Maszlig) ist die Erscheinung fuumlr das Bewuszligtseinrdquo)
67
determinadas condiccedilotildees Eacute nesse sentido que Hegel chama de maneira de ver da subjetividade
a filosofia ceacutetica
Nessa aproximaccedilatildeo da sofiacutestica ao ceticismo Hegel estaacute em certa medida de acordo
com um comentaacuterio do proacuteprio Sexto Empiacuterico quando este se refere agrave semelhanccedila que possa
haver entre a filosofia ceacutetica e a filosofia de Protaacutegoras113 Mesmo que haja semelhanccedilas entre
os ceacuteticos e Protaacutegoras Sexto adverte que ambos natildeo podem ser confundidos pois o sofista
acaba por fazer afirmaccedilotildees de teor dogmaacutetico algo que para um ceacutetico eacute inadmissiacutevel114
De fato o comentaacuterio de Hegel a respeito da maneira de ver subjetiva ter seu
acabamento no ceticismo quer justamente mostrar essa radicalidade do ceticismo Se antes
houve aqueles que poderiam ser aproximados dos ceacuteticos por forccedila das suas ldquoconclusotildeesrdquo de
teor natildeo-dogmaacutetico natildeo conseguiram eles entretanto se libertar por completo do
dogmatismo
Como jaacute foi dito115 o ceacutetico foi aquele filoacutesofo que natildeo conseguiu afirmar nem
positiva nem negativamente coisa alguma a respeito da verdade Da sua investigaccedilatildeo natildeo
chegou ao mesmo resultado que chegaram os filoacutesofos por ele chamados de dogmaacuteticos O
113 Essa aproximaccedilatildeo entre Protaacutegoras e os ceacuteticos feita por Hegel tambeacutem aparece como pertinente para os estudiosos do ceticismo Oswaldo Porchat refere-se aos sofistas e em especial a Protaacutegoras como algueacutem que antecipava a postura ceacutetica ldquoE eacute verdade entretanto que ao constatar o conflito das opiniotildees e das verdades dos homens umas com as outras ao procurar mostrar que o verdadeiro eacute sempre para cada homem o que tal lhe parece e o que como tal portanto assume e propotildee aos outros Protaacutegoras natildeo visava especificamente as oposiccedilotildees e divergecircncias que dividiam o pensamento filosoacutefico anterior ou contemporacircneo conforme a sua doutrina ao contraacuterio tal diferenccedila de perspectivas sobre a verdade e o saber natildeo configuraria mais do que um caso particular da infinda e irredutiacutevel diversidade das opiniotildees humanas() Ignorando se os deuses satildeo ou natildeo dos homens filoacutesofos ou natildeo Protaacutegoras verificava apenas que as opiniotildees sempre divergem e que eles natildeo se potildeem de acordo Mas tambeacutem descobria mestre de retoacuterica e de eloquumlecircncia que os homens se deixam persuadir com frequumlecircncia pelo discurso e que eacute sempre possiacutevel opor persuasivamente a um argumento um argumento contraacuterio ou tornar mais forte a razatildeo anteriormente mais fraca Uma primeira formulaccedilatildeo assim se propunha do que seria a contribuiccedilatildeo fundamental da sofiacutestica para a filosofia a saber a descoberta de que se pode provar tudo que se quer de que todas as teses se podem demonstrar se se domina de modo adequado e conveniente a teacutecnica de argumentaccedilatildeo Goacutergias natildeo pretenderaacute dizer outra coisa ao proclamar no famoso Elogio de Helena que lsquoo Loacutegos eacute um grande senhorrsquordquo(Porchat O ldquoO conflito das filosofiasrdquo Vida comum e ceticismo Satildeo Paulo Brasiliense 1993 pp 5-7) Ou ainda ldquoEm sua polecircmica antidogmaacutetica os ceacuteticos mostraram retomando o ensinamento de Protaacutegoras que a todo discurso se pode sempre opor um discurso igual isto eacute um discurso de igual forccedila persuasivardquo (Porchat O Rumo ao ceticismo p 297)
114 A respeito de Protaacutegoras diz Sexto Empiacuterico ldquoNoacutes vemos entatildeo que ele dogmatiza natildeo somente a respeito da fluidez da mateacuteria como tambeacutem a respeito disso que os fundamentos de todos os fenocircmenos nela existiam estes assuntos poreacutem satildeo natildeo-evidentes e a respeito dos quais noacutes suspendemos o julgamentordquo (HP I 219)
115 Ver de modo geral o capiacutetulo 1
68
que terminava por acontecer era sempre encontrar uma diversidade de pontos de vista
conflitantes uns aparentemente tatildeo persuasivos quanto os outros Em vista de tal situaccedilatildeo
como interromper a investigaccedilatildeo e poder entatildeo aceitar que um desses pontos de vista seja a
expressatildeo de uma verdade absoluta qualquer Ante a precipitaccedilatildeo no julgar caracteriacutestica por
ele comumente encontrada entre os dogmaacuteticos prefere contudo continuar a investigar E
esta investigaccedilatildeo far-se-aacute por meio da contraposiccedilatildeo de argumentos O ceacutetico entatildeo vai se
esforccedilar em de variadas formas examinar se os argumentos postos pelos dogmaacuteticos resistem
a outros argumentos aparentemente tatildeo persuasivos quanto os primeiros Em resumo o ceacutetico
substitui a busca pela verdade por uma criacutetica do dogmatismo assentada no exerciacutecio dessa
atitude produtora de contraposiccedilotildees ou antinomias Podemos supor que a dificuldade imensa
em encontrar a verdade levou-o a essa mudanccedila de atitude No limite natildeo tem ele mais no
horizonte a esperanccedila de encontrar alguma verdade116 Tanto eacute assim que sua filosofia teraacute
desdobramentos que em nenhum aspecto se assemelham ao que tradicionalmente se podia
encontrar em outras filosofias Referimo-nos aqui agrave suspensatildeo do juiacutezo e a conduta ceacutetica de
se guiar na vida de acordo com os fenocircmenos117
Mas a que nos interessa chamar a atenccedilatildeo neste momento eacute para esse ecircxito dos ceacuteticos
em produzir antinomias em reiteradamente mostrar que eacute possiacutevel a um determinado ponto
de vista um outro ser contraposto ficando difiacutecil portanto decidir em favor de um lado ou de
outro Cremos que natildeo seja por outro motivo que Hegel reconheccedila a forccedila do ceticismo
Como combatecirc-lo Seria mesmo possiacutevel combatecirc-lo Uma filosofia reconhece Hegel que
sempre foi muito temida ldquoNa medida em que eacute a arte de dissolver todo determinado de
mostraacute-lo em sua nulidade o ceticismo passou em todos os tempos e ainda hoje pelo mais
terriacutevel adversaacuterio da filosofia e tambeacutem passou por invenciacutevelrdquo118
Para Hegel qualquer tentativa de refutaccedilatildeo direta do ceticismo estaacute condenada ao
fracasso Natildeo diga-se de passagem que ele pretendesse ser mais um na lista dos que tentaram
116
Com efeito trata-se de uma questatildeo bastante controversa entre os estudiosos do ceticismo ndash uma vexata quaestio ndash se efetivamente o ceacutetico teria desistido da busca da verdade por decorrecircncia dessa dificuldade em encontrar alguma que porventura pudesse passar ilesa perante o exame ceacutetico Daiacute entatildeo com o reiterado fracasso na tentativa de executar a tarefa substituiria a busca pela verdade pelo exerciacutecio da praacutetica dialeacutetica antinocircmica
117 Ver a respeito no cap 1 pp 40-45
118 Werke 19 p 358 (ldquoDer Skeptizismus hat zu Allen Zeiten und noch jetzt fuumlr den furchtbarsten Gegner der Philosophie gegolten und fuumlr unbezwinglich indem er die Kunst sei alles Bestimmte aufzuloumlsen es in seiner Nichtigkeit zu zeigenrdquo)
69
essa faccedilanha Segundo ele natildeo haacute como lutar contra o ceticismo Ele sempre encontraraacute uma
maneira de se sobrepocircr ldquoSe (algueacutem) de fato lhe tivesse escapado natildeo seria ele assim
subjugado mas antes ele por seu lado permaneceria subsistindo e prevaleceriardquo119
No seu juiacutezo a respeito dos ceacuteticos Hegel ao mesmo tempo que louva a atitude ceacutetica
de dissoluccedilatildeo de todo determinado por meio da produccedilatildeo de antinomias recrimina o que
poderiacuteamos chamar de uma certa desmesura presente nessa postura filosoacutefica Uma
desmesura que acaba na incapacidade ceacutetica em chegar a alguma verdade e advinda desse
reiterado ecircxito em conseguir mostrar a todo argumento o argumento que o contrapotildee
Todavia a pertinecircncia da criacutetica ceacutetica eacute tal que ele o ceticismo ldquoparece ser algo a que
devamos nos entregar e que faz imaginar que natildeo se possa vencer aquele que se entregou a
elerdquo120
O ceticismo aos olhos de Hegel apresenta esse caraacuteter ambivalente O que o torna
forte e pertinente leva-o nesse mesmo movimento agrave sua derrocada Derrocada da perspectiva
de Hegel porque da perspectiva dos ceacuteticos a incapacidade de chegar a uma verdade natildeo traz
junto de si nada de problemaacutetico Hegel sabe disso e tambeacutem natildeo se cansa de lembrar que
natildeo haacute como se sobrepor ao ceacutetico que este consegue sempre ao fim ao cabo prevalecer
perante as filosofias ldquodogmaacuteticasrdquo Chega mesmo a dizer que aquele que decidiu tornar-se
ceacutetico natildeo poderaacute com efeito ser dominado e nem ser reconduzido aos braccedilos de uma
filosofia positiva121 Mas que intenccedilatildeo teria ele em insistentemente mostrar a impossibilidade
de se conseguir vencer ao ceacutetico
Parece-nos que a intenccedilatildeo de Hegel eacute de fato mostrar que o ceacutetico eacute um adversaacuterio
extremamente difiacutecil de ser vencido ou que natildeo pode mesmo ser vencido Que contra ele
nada podemos Ele sempre encontraraacute um meio para nos vencer Mas a despeito desse fato
Hegel tem como veremos plena consciecircncia da forccedila do ceticismo A questatildeo eacute que
independente da pertinecircncia da postura filosoacutefica do ceticismo natildeo teria ele ainda a uacuteltima
palavra Sua forccedila eacute a outra face de sua cegueira como tambeacutem veremos Eacute como se ele
realmente estivesse cego perante suas proacuteprias deficiecircncias Natildeo supotildee portanto que possa
119 Ibidem p 359 trad cit p 760 (ldquoWenn in der Tat ihm nur entgangen wuumlrde so waumlre er nicht bezwungen sondern er bliebe seinerseits bestehen und er haumltte die Oberhandrdquo)
120 Ibidem p 358 trad cit p 760 (ldquo[hellip] scheint so etwas zu sein dem man sich ergebe und man hat die Vorstellung daszlig man einem der sich ihm so in die Arme werfe gar nicht beikommen koumlnnerdquo)
121 Cf Ibidem p 359 trad cit p 760
70
ser tatildeo limitado quanto as filosofias que critica Essa eacute ao que parece a posiccedilatildeo de Hegel a
seu respeito Mas dizer que ele eacute limitado natildeo nos pode levar a concluir que Hegel seja
favoraacutevel a que o ceticismo mereccedila ser descartado
Desde o iniacutecio do periacuteodo de Iena quando comeccedila a publicar Hegel afirma que a
filosofia precisa ter um lado ceacutetico que por conseguinte eacute o seu lado negativo122 Mas por
que haveria ela de ter um lado ceacutetico Se partimos do pressuposto como o faz Hegel que a
criacutetica ceacutetica das filosofias dogmaacuteticas eacute dotada de tal forccedila e pertinecircncia que tentar escapar a
ela torna-se uma tarefa dificilmente realizaacutevel vemos que realmente a filosofia precisa
estabelecer uma relaccedilatildeo com o ceticismo que natildeo a de uma mera tentativa de desqualificaccedilatildeo
do mesmo Eacute tatildeo necessaacuterio agrave filosofia tomar a seacuterio o ceticismo que no caso hegeliano
incorpora-se o mesmo a ela
Na anaacutelise do ceticismo antigo nas suas Liccedilotildees o que faz segundo Hegel o ceacutetico na
sua investigaccedilatildeo Ele eacute capaz de mostrar que eacute possiacutevel produzir antinomias a respeito de
qualquer verdade seja de caraacuteter sensiacutevel seja de caraacuteter inteligiacutevel123 Ele aponta uma
contradiccedilatildeo entre aquilo que almejou representar a verdade e aquilo que foi contraposto a essa
suposta verdade ou ainda mostra que cada um dos contrapostos tem tanto valor quanto o
outro ou seja que um natildeo eacute mais capaz que o outro de ser verdadeiro A igual forccedila entre os
contrapostos natildeo nos permite tender para o assentimento a um ou a outro Diante disso soacute
pode o ceacutetico entatildeo suspender seu juiacutezo
Eacute relevante notar que a contradiccedilatildeo que se estabelece entre os contrapostos atesta
apenas que existem argumentos ou discursos de igual forccedila que conflitam o que por si soacute
basta para que natildeo sejamos capazes de nos decidirmos por um dos lados opostos124 Natildeo se
encontra na base da contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos nenhuma teoria que pudesse afirmar
122 Ver cap 2
123 Hegel nesse seu comentaacuterio a respeito da possibilidade do ceacutetico produzir antinomias a respeito de qualquer verdade dogmaacutetica ndash mais ou menos elaborada refere-se explicitamente agraves Hipotiposes I 8-10
124 Cf HP I 10
71
que a contradiccedilatildeo surgiu dadas certas premissas dessa teoria e que apenas de acordo com as
mesmas teriacuteamos entatildeo uma contradiccedilatildeo Temos de consideraacute-la portanto em sentido lato
Hegel tambeacutem estaacute ciente desse sentido amplo ou pouco preciso da contradiccedilatildeo Tanto eacute
assim que reconhece ser a contradiccedilatildeo apenas o resultado de uma oposiccedilatildeo que se faz a partir
do conflito estabelecido entre dois conteuacutedos devendo ser lembrado que essa oposiccedilatildeo natildeo se
restringe a determinados conteuacutedos pelo contraacuterio ela abrange qualquer conteuacutedo125 Essa
possibilidade de que possa ocorrer uma oposiccedilatildeo ou como prefere dizer Hegel uma
contraposiccedilatildeo irrestrita torna o ceticismo antigo mais radical que o puro idealismo formal
moderno a saber Kant ldquoMas os ceacuteticos vatildeo mais aleacutem do que os membros do puro idealismo
formal moderno eles tecircm de se haver com o conteuacutedo e em todo conteuacutedo mostram seja ele
sentido ou pensado que ele tem um contraposto a ele Eles indicam no mesmo portanto a
contradiccedilatildeo que de tudo que eacute posto o contraposto tambeacutem eacute vaacutelidordquo126
Se por um lado para os ceacuteticos antigos a contradiccedilatildeo ou a antinomia natildeo estava
restrita a determinada classe de objetos afinal a mesma podia ser obtida nas mais variadas
formas de oposiccedilatildeo para Kant por outro lado a antinomia se encontrava apenas nos quatro
objetos particulares tomados da Cosmologia127 O que Kant natildeo viu lembra-nos Hegel eacute o
fato de que a antinomia pode ser encontrada ldquoem todos os objetos de todos os gecircneros em
todas as representaccedilotildees conceitos e ideacuteiasrdquo128
Dessa contradiccedilatildeo na qual natildeo tem o ceacutetico como se decidir por um dos contrapostos
adveacutem como jaacute foi dito anteriormente129 a suspensatildeo de juiacutezo Independente do fato de que
Hegel natildeo considere que da incapacidade de decisatildeo entre as opccedilotildees opostas reste como uacutenica
soluccedilatildeo para o impasse a suspensatildeo do juiacutezo natildeo eacute ele avaro em declarar sua admiraccedilatildeo pela
125 Cf Werke 19 p 372 trad cit p 776
126 HEGEL Ibidem p 373 trad p 777 (ldquoAber die Skeptiker gehen weiter als die Anhaumlnger des neueren rein formellen Idealismus sie haben es mit dem Inhalt zu tun und zeigen von allem Inhalt er sei ein empfundener oder gedachter dass er ein ihm Entgegengesetztes habe Sie zeigen also in demselben den Widerspruch auf daszlig von allem was aufgestellt wird auch das Entgegengesetzte giltrdquo)
127 ldquoPode-se notar aleacutem disso que a falta de uma consideraccedilatildeo mais profunda da antinomia ainda levou inicialmente Kant a soacute citar quatro antinomiasrdquo (ldquoEs kann ferner bemerkt werden daszlig die Ermangelung einer tiefern Betrachtung der Antinomie zunaumlchst noch veranlaszligte daszlig Kant nur vier Antinomien auffuumlhrtrdquo) In GW 20 E sect 48 p 85 trad bras p 120
128 HEGEL GW 20 E sect 48 p 85 trad bras p 121 (ldquoin allen Gegenstaumlnden aller Gattungen in allen Vorstellungen Begriffen und Ideenrdquo)
129 Ver o cap 1
72
postura corajosa do ceacutetico que termina na epocheacute seguindo-se agrave mesma casualmente a
ataraxia Natildeo haacute aos olhos de Hegel incerteza para o ceacutetico A incapacidade dele em tomar
uma decisatildeo natildeo lhe traz intranquumlilidade Pelo contraacuterio Para Hegel esse natildeo tomar uma
decisatildeo em favor de um dos lados que se contrapotildeem seria paradoxalmente uma ldquodecisatildeordquo
que se realiza com a suspensatildeo do juiacutezo
Eacute preciso com efeito natildeo deixar de assinalar que Hegel tem consciecircncia de que a
suspensatildeo do juiacutezo e a ataraxia natildeo satildeo frutos de uma atitude deliberada do ceacutetico em favor
delas Ele cita inclusive o exemplo que Sexto nas Hipotiposes nos fornece a respeito do pintor
Apeles que somente consegue seu intento qual seja pintar a espuma na boca do cavalo no
momento que desiste de encontrar a melhor maneira de efetuar tal pintura e entatildeo consegue o
efeito desejado casualmente apenas lanccedilando o pincel em direccedilatildeo agrave tela Hegel tem portanto
plena consciecircncia de que natildeo haacute decisatildeo por parte do ceacutetico com relaccedilatildeo agrave suspensatildeo do juiacutezo
O que contudo quer ele mostrar eacute que o ceacutetico por se sentir incapaz de dar assentimento a
uma suposta verdade que em face dela haja uma outra aparentemente tatildeo persuasiva quanto a
primeira eacute levado a suspender seu juiacutezo Entre natildeo ficar com nada e ficar com uma verdade
qualquer isto eacute ficar com uma verdade a partir de uma decisatildeo puramente arbitraacuteria posto
que infundada o ceacutetico natildeo se ressente de ser levado a ficar de matildeos vazias Pior do que isso
seria ficar oscilando entre verdades contrapostas que natildeo se sustentam agrave luz da investigaccedilatildeo a
que satildeo submetidas Esse oscilar entre poacutelos opostos e que poderia ser interrompido com o
assentimento a um deles natildeo passa para o ceacutetico de uma ilusatildeo a que o dogmaacutetico a si proacuteprio
se condena Fiar-se naquilo que natildeo pode se sustentar somente pode aos olhos do ceacutetico
gerar intranquumlilidade E Hegel na sua concordacircncia com o ceacutetico de que natildeo podemos nos
ater ao que eacute passiacutevel de ter sua verdade contestada procura ainda mostrar a incapacidade do
uso do termo duacutevida para caracterizar o ceticismo
Duvidar segundo Hegel natildeo condiz com a postura ceacutetica ldquoA empresa ceacutetica eacute
caracterizada injustamente como uma doutrina da duacutevidardquo130 Duvidar diz Hegel seria uma
atitude que apenas intranquumlilidade poderia trazer Duvidar significa que fiquemos entre duas
coisas entre duas alternativas e a respeito das quais teriacuteamos que nos decidir por uma ou por
outra Com a tomada dessa decisatildeo obteriacuteamos por conseguinte a tranquumlilidade Mas natildeo eacute
isso que acontece ao ceacutetico ldquoDuacutevida eacute justamente o contraacuterio da tranquumlilidade que eacute o
130 HEGEL Werke 19 p 362 trad cit p 763 (ldquoDas Geschaumlft des Skeptizismus ist unrecht als eine Lehre vom Zweifel ausgedruumlcktrdquo)
73
resultado do ceticismo Duacutevida vem de dois eacute um oscilar entre dois ou mais natildeo sossegamos
nem em um nem no outro e contudo devemos obter sossego em um ou no outrordquo131
O ceacutetico portanto natildeo duvida pois dessa maneira natildeo teria ainda se afastado da
perspectiva dos dogmaacuteticos Quem fica entre dois ou mais e procura por fim obter a
tranquumlilidade se decidindo por entre um dentre esses dois ou mais eacute o dogmaacutetico132 O ceacutetico
ao contraacuterio natildeo adere a nenhuma verdade que possa ter uma outra a ela oposta e
aparentemente de igual forccedila Como obter tranquumlilidade poderia ele pensar sabendo que sua
decisatildeo por uma ou por outra verdade natildeo teria como se sustentar Dada a equumlipolecircncia natildeo
haacute como se decidir por uma ou por outra alternativa sem ao mesmo tempo ter consciecircncia de
que essa decisatildeo natildeo eacute menos arbitraacuteria que a decisatildeo pela outra alternativa e portanto uma
decisatildeo de caraacuteter meramente subjetivo destituiacuteda de qualquer fundamento Quando Hegel se
refere agrave impossibilidade de se obter tranquumlilidade (Ruhe) ao se fazer opccedilatildeo por uma entre duas
ou mais verdades conflitantes assume ele a posiccedilatildeo ceacutetica a respeito da incapacidade de se
131 Ibidem p 371 trad cit p 775 (ldquoZweifel ist gerade das Gegenteil der Ruhe die das Resultat desselben ist Zweifel kommt von Zwei her ist ein Hin- und Herwerfen zwischen zweien und mehreren man beruhigt sich weder bei dem einen noch bei dem anderen - und doch soll man sich bei dem einen oder bei dem anderen beruhigenrdquo)
132 Assim como natildeo considera apropriado caracterizar o ceticismo como uma doutrina da duacutevida dado que aquele que duvida natildeo consegue transpor a perspectiva dogmaacutetica Hegel tambeacutem faz questatildeo de frisar que na Fenomenologia do Espiacuterito o exame efetuado pelo ceticismo que se consuma (der sich vollbringende Skepticismus) em todo acircmbito da consciecircncia fenomenal natildeo pode ser considerado um caminho da duacutevida pois se assim o fosse natildeo seria possiacutevel ir aleacutem da ldquonatildeo-verdade do saber como fenocircmenordquo ldquoTrata-se portanto de um caminho que pode ser considerado caminho da duacutevida ou mais propriamente caminho do desespero Nele com efeito natildeo tem lugar o que geralmente se entende por duacutevida vem a ser o abalo desta ou daquela pretensa verdade ao qual sucede de novo o conveniente desaparecimento da duacutevida e um retorno agrave mesma verdade de sorte que no fim tudo volta a ser como no princiacutepio Ao contraacuterio a duacutevida de que tratamos eacute a vista penetrante e consciente lanccedilada na natildeo-verdade do saber como fenocircmeno []rdquo No original ldquoEr kann deszligwegen als der Weg des Zweifels angesehen werden oder eigentlicher als Weg der Verzweiflung auf ihm geschieht nemlich nicht das was unter zweifeln verstanden zu werden pflegt ein Ruumltteln an dieser oder jener vermeynten Wahrheit auf welches ein gehoumlriges wiederverschwinden des Zweifels und eine Ruumlckkehr zu jener Wahrheit erfolgt so daszlig am Ende die Sache genommen wird wie vorher Sondern er ist die bewusste Einsicht in die Unwahrheit des erscheinenden Wissens [hellip]rdquo In GW 9 p 56 trad Vaz p 50 A respeito de se caracterizar o caminho da duacutevida na Fenomenologia mais propriamente como caminho do desespero eacute bastante esclarecedor citar a seguinte declaraccedilatildeo hegeliana acerca da afinidade do desespero (Verzweiflung) com o ceticismo ldquoO ceticismo poreacutem natildeo eacute um mero duvidar mas antes tambeacutem um desesperar No duvidar ainda existe a esperanccedila ou a expectativa que a duacutevida aiacute-presente possa ser resolvida Uma vez tendo o sujeito perdido essa esperanccedila ou expectativa entatildeo surge um desesperordquo (ldquoDer Skeptizismus ist aber nicht ein bloszliges Zweifeln sondern auch ein Verzweifeln Beim Zweifeln ist noch die Hoffnung oder Erwartung daszlig der Zweifel noch geloumlst werden koumlnne vorhanden ndash Verliert das Subjekt auch diese Hoffnung und Erwartung so entsteht eine Verzweiflungrdquo) Cf Hegel GW Vorlesungen uumlber Logik und Metaphysik Heidelberg 1817 Mitgeschrieben von FAGood ed Karen Gloy In Vorlesungen Ausgewaumlhlte Nachschriften und Manuskripte Band 11 Hamburg Meiner 1992 p 14
74
decidir agrave maneira dogmaacutetica e desse modo chegar agrave ataraxia Como sabemos por Sexto
Empiacuterico o ceacutetico natildeo encontrou tranquumlilidade ao tentar assim como os outros filoacutesofos
descobrir o que eacute verdadeiro e o que eacute falso nas coisas A uacutenica coisa que descobriu foi uma
discordacircncia um conflito ou anomalia nas coisas extremamente difiacutecil de ser solucionado
tanto que termina por adotar como princiacutepio baacutesico de sua filosofia a atitude consistente no
opor a cada argumento o argumento oposto de igual forccedila133
Como vemos o duvidar na visatildeo de Hegel natildeo pode ser um termo apropriado para se
caracterizar a atitude exercida pelo ceacutetico134 Este natildeo duvida pois ele natildeo se resolve por entre
um dos dois ou mais que se opotildeem O ceacutetico ante a falta de meios para fazer uma opccedilatildeo eacute
levado a suspender seu juiacutezo Tentar ao inveacutes disso se decidir por uma das alternativas eacute o
que lhe traraacute intranquumlilidade Duvidar eacute permanecer naquela busca pela verdade assim como o
fizeram os dogmaacuteticos e da mesma maneira fizeram os ceacuteticos inicialmente perturbados
com a anomalia nas coisas passaram entatildeo a investigar o que poderia ser verdadeiro ou falso
nas coisas E o que conseguiram foi ficarem mais perturbados Por isso a mudanccedila de atitude
com relaccedilatildeo agrave busca da verdade e a possibilidade de se encontrar a tranquumlilidade em termos
completamente outros que aqueles dos dogmaacuteticos135 A ataraxia adveacutem dessa indiferenccedila
perante os opostos
133 Cf HP I 12
134 Ainda com referecircncia agrave impropriedade do termo duacutevida para caracterizar o ceticismo diz Hegel a partir de HP I 7 ldquoO ceticismo se chamou tambeacutem de filosofia pirrocircnica e skeacutepsis ldquoefeacuteticardquo de σχέπτειν pesquisar investigar Natildeo devemos traduzir σχέψις por doutrina da duacutevida ou mania da duacutevida O ceticismo natildeo eacute uma duacutevidardquo (ldquoDer Skeptizismus hieszlig auch pyrrhonische Philosophie und ephektische Skepsis von σχέπτειν suchen forschen Man muszlig σχέψις nicht uumlbersetzen Lehre des Zweifels oder Zweifelsucht Skeptizismus ist nicht ein Zweifelrdquo)
135 Cf HP I 12 Com relaccedilatildeo a essa mudanccedila de atitude do ceacutetico para que possa obter a tranquumlilidade declara no mesmo sentido que o fazemos Roberto Bolzani ldquoA constataccedilatildeo dessa incapacidade de resolver o conflito de dar assentimento a uma doutrina em detrimento das outras todas esse estado de equiliacutebrio (άρρεψία HP I 190) e repouso do intelecto (στάσις διανοίας HP I 10) no qual se encontra entatildeo essa impressatildeo ou afecccedilatildeo (πάτος HP I 7187190192 198) nada mais satildeo do que a epokheacute E eacute nessa situaccedilatildeo de suspensatildeo que inesperadamente o filosoacutefo ndash agora ceacutetico ndash se descobre em ataraxiacutea (Cf HP I 29) A meta de todo filosofar agora se obteacutem natildeo mais com a posse da verdade ndash a partir daiacute problemaacutetica ndash mas sim com a produccedilatildeo sempre renovada desse estado intelectual que se impocircs a uma anaacutelise acurada e isenta dos argumentos que os filoacutesofos tecircm proposto para justificar suas doutrinas dogmaacuteticasrdquo (In Bolzani R Acadecircmicos versus Pirrocircnicos Tese de Doutorado em Filosofia Satildeo Paulo FFLCH-USP 2003 p 15)
75
Um outro aspecto a ser considerado nessa leitura hegeliana do ceticismo antigo
refere-se ao motivo que permite ao ceacutetico obter ecircxito na sua criacutetica do dogmatismo seja este
filosoacutefico ou natildeo Por que estaacute a seu alcance mostrar a contradiccedilatildeo naquilo que a ele se
apresenta com valor de verdade
Como vimos anteriormente136 Hegel faz uma distinccedilatildeo entre o domiacutenio do
entendimento e o domiacutenio da razatildeo O primeiro constitui-se em um domiacutenio no qual somente
eacute possiacutevel produzir o limitado e finito137 Qualquer determinaccedilatildeo aiacute posta natildeo estaacute livre de ter
uma outra a ela contraposta A ocorrecircncia desse fato se deve como jaacute mencionado ao caraacuteter
limitado das determinaccedilotildees de entendimento138 Tais determinaccedilotildees satildeo limitadas porque
estatildeo reguladas pelo princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo ou seja que algo natildeo pode ser por
exemplo A e natildeo-A ao mesmo tempo Ou eacute uma coisa ou outra Jaacute o domiacutenio da razatildeo eacute
aquele em que essas determinaccedilotildees finitas produzidas pelo entendimento natildeo satildeo
consideradas isoladamente Se para o entendimento natildeo eacute possiacutevel que algo seja e natildeo seja ao
mesmo tempo que uma determinaccedilatildeo de entendimento desse modo somente valha na sua
unilateralidade e com desconsideraccedilatildeo da outra determinaccedilatildeo que a ela se contraponha e a
limite no domiacutenio racional as duas determinaccedilotildees contrapostas satildeo unificadas A contradiccedilatildeo
aqui natildeo eacute um mal a ser evitado
O que nos interessa com essa pequena retomada da distinccedilatildeo hegeliana entre
entendimento e razatildeo eacute fornecer elementos para que possamos elucidar o significado da
afirmaccedilatildeo do filoacutesofo com relaccedilatildeo ao ecircxito do ceacutetico no seu combate ao dogmatismo Com
efeito o ceacutetico consegue mostrar a fraqueza a limitaccedilatildeo das asserccedilotildees dos dogmaacuteticos devido
a estas estarem estruturadas a partir da loacutegica do entendimento Assim natildeo fica difiacutecil para ele
exercer sua atitude (agogeacute) consistente em mostrar que a cada argumento ou proposiccedilatildeo eacute
136 Ver o cap 2
137 ldquoFinito significa ndash expresso formalmente ndash aquilo que tem um fim o que eacute mas que deixa de ser onde estaacute em conexatildeo com seu outro e por conseguinte eacute limitado por ele Assim o finito consiste em uma relaccedilatildeo ao seu outro que eacute sua negaccedilatildeo e se apresenta como seu limiterdquo (ldquoEndlich heiszligt formell ausgedruumlckt dasjenige was ein Ende hat was ist aber da aufhoumlrt wo es mit seinem Anderen zusammenhaumlngt und somit durch dieses beschraumlnkt wird Das Endliche besteht also in Beziehung auf sein Anderes welches seine Negation ist und sich als dessen Grenze darstellt rdquo In Werke 8 E sect28 Adendo p 94 trad bras p 91
138 ldquoO pensar que soacute produz determinaccedilotildees finitas e nelas se move chama-se entendimento no sentido estrito do termordquo (ldquoDas Denken nur endliche Bestimmungen hervorbringend und in solchen sich bewegend heiszligt Verstand (im genauern Sinne des Wortesrdquo) In GW 20 E sect25 p 68 trad bras p 87
76
possiacutevel contrapor um argumento ou proposiccedilatildeo de igual forccedila No acircmbito do entendimento
natildeo eacute portanto possiacutevel se esquivar dos ataques do ceacutetico Ocorre entretanto que num outro
domiacutenio o da razatildeo a situaccedilatildeo natildeo seja tatildeo favoraacutevel ao ceacutetico Se no acircmbito do racional a
contradiccedilatildeo natildeo precisa ser evitada isso significa que teriacuteamos entatildeo um domiacutenio no qual a
agogeacute ceacutetica seria ineficaz Para aleacutem do acircmbito do dogmatismo produzido pelo
entendimento como poderia o ceacutetico ainda ser uma ameaccedila
Eacute apenas tendo em vista as consideraccedilotildees acima feitas que podemos entender Hegel
quando declara que se trata de um equiacutevoco pensar que toda filosofia que natildeo eacute ceticismo seja
dogmatismo139 As filosofias constituiacutedas segundo a loacutegica do entendimento satildeo para Hegel
filosofias dogmaacuteticas E satildeo essas filosofias que natildeo resistem ao combate empreendido pelo
ceticismo contra elas A filosofia especulativa estaria segundo o filoacutesofo a salvo desse
ataque Ela diferente das filosofias de entendimento (ou dogmaacuteticas) natildeo ldquoafirma algo
determinado como o absolutordquo140
Na Enciclopeacutedia141 Hegel nos fornece uma amostra desse dogmatismo expresso
filosoficamente ao se referir ao que chama de antiga metafiacutesica isto eacute a metafiacutesica que havia
se constituiacutedo anteriormente agrave filosofia kantiana142
Segundo Hegel essa metafiacutesica se articulava por meio de determinaccedilotildees de
pensamento finitas ou seja determinaccedilotildees de entendimento Procurava-se por meio delas
determinar o absoluto pela atribuiccedilatildeo de predicados Elas constituiacuteam os predicados mediante
os quais poderiacuteamos conhecer o objeto a que eram atribuiacutedas Assim dizia-se por exemplo
que o mundo eacute finito ou infinito Temos aqui um sujeito mundo ao qual um dos predicados
finito ou infinito a ele deve ser atribuiacutedo de maneira que possamos conhecer o que ele seja
De fato o que conseguimos ao proceder desse modo natildeo eacute o absoluto Finito eacute uma
determinaccedilatildeo de pensamento que tem diante de si uma outra infinito a ela contraposta Se o
mundo portanto eacute considerado finito podemos por outro lado nos contrapor a essa
afirmaccedilatildeo ao declarar com a mesma intenccedilatildeo de verdade que o mundo eacute infinito Como
impedir entatildeo que se instaure a oposiccedilatildeo Eacute com base nesse tipo de dificuldade oriunda desse
139 Cf Werke 19 p 393 trad cit p 798
140 Ibidem p 393 trad cit p 798 (ldquo etwas Bestimmtes als das Absolute behauptetrdquo)
141 Ver GW 20 E sect26 e ss trad bras p 89 e ss
142 Cf Ibidem E sect27 pp 70-71 trad bras p 90
77
modo de proceder da assim chamada antiga metafiacutesica que podemos compreender Hegel
quando se refere agraves determinaccedilotildees de pensamento finitas como as ldquooposiccedilotildees ainda natildeo
resolvidasrdquo143 A resoluccedilatildeo da oposiccedilatildeo como veremos mais tarde somente poderaacute ocorrer na
filosofia que natildeo mais se articula pela atribuiccedilatildeo de predicados a um sujeito fixo Esta
filosofia eacute a filosofia especulativa
Hegel assinala ainda que em virtude dessa possibilidade de que uma determinaccedilatildeo de
pensamento finita possa ter a ela uma outra determinaccedilatildeo de pensamento finita contraposta
esse procedimento da filosofia calcada no entendimento e consistente em se formular
proposiccedilotildees que possam dar-nos a conhecer o que eacute o objeto por meio da atribuiccedilatildeo de
predicados a um sujeito fixo padece de unilateralidade Em outras palavras para Hegel a
forma proposicional eacute incapaz de exprimir o especulativo ldquoo juiacutezo eacute por sua forma
unilateral e nessa medida eacute falsordquo144 Natildeo haacute como escapar do dogmatismo quando se
pretende portanto que o absoluto seja expresso em forma proposicional A parcialidade desse
absoluto eacute mostrada na medida em que eacute possiacutevel a formulaccedilatildeo de duas proposiccedilotildees opostas
que procurem nos dar a conhecer o que ele seja e como nos adverte Hegel uma delas deve
ser verdadeira e a outra deve ser falsa145 Para o pensar de entendimento natildeo cabe a hipoacutetese
de que essas proposiccedilotildees contrapostas possam coexistir Como admitir a coexistecircncia dos
opostos Se o mundo eacute finito eacute porque ele natildeo eacute infinito e vice-versa Do ponto de vista do
entendimento seria absurdo pensar que determinaccedilotildees opostas pudessem ter contato146 que o
mundo fosse por exemplo finito e infinito ao mesmo tempo sem que isso fosse
contraditoacuterio E uma vez instaurada a contradiccedilatildeo potildee-se a claro o limite do pensamento
dogmaacutetico O que o ceticismo faraacute aos olhos de Hegel eacute justamente atacar esse ponto fraco
do pensamento dogmaacutetico por meio da produccedilatildeo de antinomias
143 Cf Ibidem E sect 27 trad bras p 90 (ldquonoch unaufgeloumlsten Gegensatzerdquo)
144 Ibidem E sect31 p 72 trad bras p 94 (ldquodas Urtheil ist durch seine Form einseitig und in sofern falschrdquo)
145 ldquoEssa metafiacutesica tornou-se dogmatismo porque ela conforme a natureza das determinaccedilotildees finitas devia admitir que de duas afirmaccedilotildees contrapostas tais como eram aquelas proposiccedilotildees uma devia ser verdadeira mas a outra falsardquo (ldquoDiese Metaphysik wurde Dogmatismus weil sie nach der Natur der endlichen Bestimmungen annehmen muszligte daszlig von zwei entgegengesetzten Behauptungen dergleichen jene Saumltze waren die eine wahr die andere aber falsch seyn muumlsserdquo) In Ibidem E sect 32 p 72 trad bras p 94
146 O dogmatismo da metafiacutesica de entendimento natildeo pode imaginar que haja qualquer ponto de contato entre determinaccedilotildees opostas ldquoNoacutes as consideramos como separadas uma da outra por um abismo infinito de modo que as determinaccedilotildees que se contrapotildeem natildeo possam nunca tocar-serdquo (ldquoWir betrachten dieselben als durch einen unendlichen Abgrund voneinander getrennt so daszlig die einander gegenuumlberstehenden Bestimmungen sich nie zu erreichen vermoumlgenrdquo) In Werke 8 E sect32 Adendo p 98 trad bras modificada p 95
78
Mas de volta ao nosso ponto de partida referiacuteamo-nos agrave questatildeo do motivo que levaria
o ceacutetico a ter ecircxito na sua criacutetica ao dogmatismo Vimos entatildeo que na perspectiva hegeliana
esse ecircxito estava vinculado a certas caracteriacutesticas definidoras do dogmatismo ou pensar de
entendimento Eacute preciso contudo abrir aqui um parecircntese para lembrar que o ceacutetico natildeo
admite que haja uma terceira hipoacutetese que natildeo ceticismo ou dogmatismo Ou se eacute ceacutetico ou se
eacute dogmaacutetico147 Natildeo haacute para o ceticismo uma filosofia que natildeo fosse ceacutetica e ao mesmo
tempo tambeacutem natildeo fosse dogmaacutetica Qualquer filosofia que de uma maneira ou de outra
procure afirmar algo sobre a realidade o que seriam as coisas em si mesmas a verdade ou o
absoluto eacute aos olhos do ceticismo dogmaacutetica Qualquer filosofia que enfim avance teses
determinadas Hegel estaacute consciente desse aspecto do ceticismo Ele sabe que da perspectiva
ceacutetica tambeacutem o pensamento especulativo seria considerado dogmaacutetico148 Isto posto
podemos afirmar que para ele o dogmatismo eacute um ldquoconceitordquo que natildeo possui a mesma
abrangecircncia que possuiacutea para os ceacuteticos antigos A filosofia especulativa por exemplo natildeo
poderia ser considerada dogmaacutetica Ela natildeo se constitui na forma de proposiccedilotildees que possam
ser contraditadas por outras a elas contrapostas assim como ocorre no caso do pensar limitado
do entendimento Dessa maneira aos olhos de Hegel ela a filosofia especulativa natildeo eacute
dogmaacutetica Somente as filosofias assentadas no pensar de entendimento poderiam receber tal
denominaccedilatildeo Algo impensaacutevel para o ceacutetico fazer uma tal espeacutecie de distinccedilatildeo
A anaacutelise hegeliana dos tropos utilizados pelos ceacuteticos para combater o dogmatismo
tambeacutem estaacute assentada na distinccedilatildeo que ele faz e acima exposta entre dogmatismo ceticismo
e filosofia especulativa Assim veremos a seguir como Hegel caracteriza os tropos e avalia
em que medida podem ser uacuteteis agrave filosofia especulativa
147 Mesmo a divisatildeo tripartite da filosofia no iniacutecio das Hipotiposes natildeo parece a nosso ver desautorizar a hipoacutetese de que para o ceacutetico apenas haja ou dogmatismo ou ceticismo Cremos que a divisatildeo laacute efetuada apenas pretenda tornar mais precisa a distinccedilatildeo entre um dogmatismo positivo e um dogmatismo negativo Por isso quando declaramos acima que para o ceacutetico apenas haja ou filosofia dogmaacutetica ou filosofia ceacutetica utilizamos o termo dogmatismo em sentido lato isto eacute que o dogmatismo possa ser tanto positivo quanto negativo A respeito da divisatildeo tripartite da filosofia pelo ceticismo cf HP I 1-4 Ver ainda no capiacutetulo inicial deste trabalho p 27 e ss
148 ldquoOs ceacuteticos da Antiguumlidade chamavam em geral dogmatismo toda e qualquer filosofia enquanto ela estabelecia teses determinadas Nesse sentido amplo tambeacutem a filosofia propriamente especulativa conta como dogmaacutetica para o ceticismordquo (ldquoDie alten Skeptiker nannten uumlberhaupt eine jede Philosophie dogmatisch insofern dieselbe bestimmte Lehrsaumltze aufstellt In diesem weiteren Sinne gilt auch die eigentlich spekulative Philosophie dem Skeptizismus fuumlr dogmatischrdquo) In Werke 8 E sect 32 Adendo p 97 trad bras p 94
79
Como jaacute foi observado no iniacutecio deste estudo149 e Hegel faz questatildeo de assinalar150 os
tropos satildeo modos maneiras151 que o ceacutetico se utiliza para por meio da produccedilatildeo de antiacuteteses
chegar agrave suspensatildeo do juiacutezo152 Tambeacutem para Hegel assim como jaacute o eram para os ceacuteticos
antigos os tropos satildeo armas valiosas e eficazes para a criacutetica do dogmatismo
Diferentemente dos ceacuteticos que natildeo procuram efetuar nenhuma distinccedilatildeo entre os dez
tropos de Enesidemo e os cinco tropos de Agripa153 Hegel na sua exposiccedilatildeo dos mesmos
empenha-se em delinear as caracteriacutesticas peculiares de ambos os grupos de tropos Assim os
tropos de Enesidemo satildeo eficazes no combate a uma forma de dogmatismo diferente daquele
que eacute alvo dos cinco tropos de Agripa Os dez tropos tecircm segundo o filoacutesofo como alvo uma
forma mais rudimentar de dogmatismo Uma forma de dogmatismo produzida por uma
consciecircncia vulgar (gemeine Bewuszligtsein) e que tem como crenccedila uma verdade imediata154
Mas a que se deve essa ponderaccedilatildeo de Hegel com relaccedilatildeo ao caraacuteter rudimentar do
dogmatismo que estaacute na mira dos dez tropos Ela se deve com efeito a uma falta de
elaboraccedilatildeo conceitual desses tropos Natildeo haacute neles de acordo com a perspectiva hegeliana a
intenccedilatildeo de se procurar fazer frente a teorias sejam elas filosoacuteficas ou natildeo Eles se dirigem
imediatamente contra o empiacuterico155 A oposiccedilatildeo por meio deles advinda se faz da maneira a
mais simples Tomemos a tiacutetulo de exemplo o primeiro tropo156 baseado nas diferenccedilas dos
animais de acordo com ele dados os caracteres proacuteprios de cada animal diferentes
149 Ver Cap 1 pp 46-48
150 Cf Hegel Werke 19 p 37 trad cit p 778
151 Com respeito ao significado do termo grego tropos no ceticismo antigo cf Barnes J e Annas J The modes of scepticism Cambridge Cambridge University Press 1985 p 21 e ss
152 Cf HP I 3135 e 36
153 No que toca agrave atribuiccedilatildeo dos tropos a Enesidemo e a Agripa veja-se respectivamente em Brochard Les Sceptiques Grecs Paris Vrin 1969 p 253 e ss e p301 e ss
154 Cf Werke pp 374-375 trad cit pp 778-779
155 No mesmo sentido a seguinte observaccedilatildeo de Victor Brochard ldquoLimitemo-nos a notar que os dez tropos de Enesidemo exceto o uacuteltimo (trata-se ainda poreacutem de opiniotildees comumente admitidas sem nenhum caraacuteter cientiacutefico) tecircm por objeto mostrar a insuficiecircncia da percepccedilatildeo sensiacutevel (Cf Brochard p 261)
156 Cf HP I 40-78
80
representaccedilotildees seratildeo produzidas a respeito dos mesmos objetos Desse modo em vista das
diferenccedilas especiacuteficas dos olhos de diversos animais produzir-se-atildeo diferentes representaccedilotildees
visuais a respeito de um mesmo objeto Ou ainda conforme o terceiro tropo157 as diferenccedilas
nos oacutergatildeos sensoriais de um homem para outro natildeo permitem que possamos afirmar nada de
certo no que se refere agrave real natureza daquilo que sentimos Assim natildeo podemos nada dizer
por exemplo quanto ao mel ser em si mesmo doce visto que a um pode parecer doce e a
outro natildeo
Por essa maneira ruacutestica de engendrar oposiccedilotildees apenas apontando a relatividade
daquilo que eacute imediatamente posto como um saber verdadeiro Hegel considera haver uma
falta de abstraccedilatildeo (Mangel der Abstraktion) um caraacuteter a-conceitual (Begriffslosigkeit) desses
dez primeiros tropos que eles expressam um pensamento inabilidoso (ein ungeuumlbtes Denken)
Eacute fato que Sexto nos advirta que o tropo da relatividade eacute o mais geral isto eacute que no fundo
todos os dez tropos satildeo variadas formas de expressar a relatividade de todas as coisas158
Mesmo assim nota Hegel o tropo da relatividade aparece exposto ao lado dos outros nove
como apenas mais um deles159 Natildeo importa portanto que natildeo passem de variaccedilotildees do tropo
da relatividade os outros nove tropos160 Parece-nos que o objetivo do ceacutetico ao apresentar por
meio dos dez tropos diversas maneiras de se poder suspender o juiacutezo eacute ilustrar
extensivamente como fica difiacutecil de se escapar da epokheacute Natildeo eacute suficiente apenas assinalar
que pode ser mostrado o caraacuteter relativo de todas as coisas Eacute necessaacuterio exemplificar
abundantemente essa relatividade A produccedilatildeo de antiacuteteses se daacute portanto dos mais variados
modos tornando a tarefa de se encontrar alguma verdade absoluta um objetivo cada vez mais
distante e irrealizaacutevel
Se o ceticismo assinala Hegel eacute uma filosofia que nos mostra natildeo haver constacircncia
nas coisas que elas satildeo variaacuteveis que nada permanece sempre da mesma maneira no caso
dos dez tropos insiste ele essa inconstacircncia pode ser observada no plano do saber imediato
Por meio deste saber apenas se diz que algo eacute imediatamente de determinado modo E por que
157 Cf HP I 79-91
158 Cf HP I 39
159 Cf Werke 19 p 385 trad cit p 790
160 A respeito da sistematizaccedilatildeo precaacuteria desses tropos ou mesmo falta dela diz Brochard ldquoEsses dez tropos noacutes os vemos se suceder com exceccedilatildeo dos quatro primeiros sem grande ordem Natildeo haacute por que se espantar com isso natildeo eacute metodicamente e nem a priori mas empiricamente e acumulando observaccedilotildees que eles foram determinadosrdquo (Cf Brochard p 259)
81
eacute assim Eacute apenas porque eacute Tenho a experiecircncia imediata de que por exemplo o mel eacute doce
Um outro experimenta do mesmo mel e afirma de igual modo que o mel eacute amargo Diante
portanto de duas percepccedilotildees opostas natildeo eacute possiacutevel saber se o mel eacute doce ou amargo e
assim somos levados agrave suspensatildeo de juiacutezo Segundo Hegel a verdade imediata das coisas eacute
refutada apenas com a posiccedilatildeo do contraacuterio ao que eacute afirmado como o verdadeiro por meio
do ldquoser contrapostordquo (das entgegengesetzte Sein)161 Algueacutem afirma que algo eacute assim mas
outro afirma que natildeo eacute assim que eacute de outro modo
Por mais triviais e vulgares que sejam esses tropos Hegel os considera bastante
apropriados (ganz treffend) contra o dogmatismo do senso comum (den Dogmatismus des
gemeinen Menschenverstandes)162 Exemplo desse dogmatismo grosseiro poderia ser o
ceticismo de Schulze163 Para este autor aquilo que se daacute agrave nossa consciecircncia imediata eacute
verdadeiro164 Natildeo haacute porque de acordo com ele negarmos que seja verdadeiro aquilo que
imediatamente experienciamos Se existe algo verdadeiro este consiste apenas naquilo de que
possamos imediatamente ter certeza165 E Schulze ainda pretende que os ceacuteticos antigos
161 Cf Ibidem p 375 trad cit p 779
162 Cf Hegel Ibidem p 385 trad cit p 790
163 Para a criacutetica detalhada de Hegel ao ceticismo de Schulze ver seu artigo ldquoRelacionamento do ceticismo agrave filosofiardquo In GW 4 pp 197-238 Seja-nos permitido citar tambeacutem a respeito nosso artigo ldquoAlguns aspectos da compreensatildeo hegeliana do ceticismo antigo a partir da criacutetica ao ceticismo de Gottlob Ernst Schulzerdquo In Dois Pontos Ceticismo UFPRUFSCAR vol 4 no 2 2007 pp 221-246 Cf tambeacutem Vieweg Philosophie des Remis especialmente pp 207-221 Por fim cf Forster M N Hegel and Skepticism cap 1
164 Cf Werke 19 p 360 trad cit p 375
165 Ver a propoacutesito a exposiccedilatildeo hegeliana desse lado positivo do ceticismo de Schulze no artigo sobre o ceticismo In GW 4 p 202 Hegel notemos laacute se refere quase textualmente ao seguinte trecho da obra de Schulze Criacutetica da Filosofia Teoacuterica a saber ldquoTem entatildeo certeza completamente incontestaacutevel a existecircncia daquilo que eacute dado presente no acircmbito de nossa consciecircncia Pois o que aiacute estaacute presente na consciecircncia natildeo podemos noacutes de sua existecircncia tampouco duvidar assim como duvidar da proacutepria consciecircncia Querer poreacutem duvidar da consciecircncia eacute absolutamente impossiacutevel porque uma tal duacutevida visto que ela natildeo pode realizar-se sem [que haja] consciecircncia a si mesma se aniquila natildeo seria portanto nada Chamamos entatildeo um fato da consciecircncia aquilo que na e com a consciecircncia eacute dadordquo (ldquoNun hat die Existenz desjenigen was im Umfange unsers Bewuszligtseins als vorhanden gegeben ist ganz unlaumlugbare Gewiszligheit Denn da es im Bewuszligtsein gegenwaumlrtig ist so koumlnnen wir dessen Existenz eben so wenig bezweifeln als das Bewuszligtsein selbst das Bewuszligtsein aber bezweifeln zu wollen ist absolut unmoumlglich weil ein solcher Zweifel da er ohne Bewuszligtsein nicht statt finden kann sich selbst vernichten mithin Nichts seyn wuumlrde Nun nennt man dasjenige was in und mit dem Bewuszligtsein gegeben ist eine Tatsache des Bewuszligtseinsrdquo In Schulze G E Kritik der theoretischen Philosophie Band 1 Hamburg 1801 p 51 (reimpressatildeo por Aetas Kantiana Bruxelas Culture et Civilisation 1973)
82
tambeacutem tenham considerado verdadeiro esse saber imediato e natildeo-filosoacutefico166 Ora natildeo haacute
nada mais distante da filosofia ceacutetica do que esse assentimento a verdades imediatas Os dez
tropos de Enesidemo satildeo prova disso natildeo apenas da perspectiva hegeliana como tambeacutem da
perspectiva ceacutetica Hegel sabe que os ceacuteticos estatildeo longe de afirmar que aquilo que lhes
aparece seja expressatildeo de qualquer verdade Como ele bem nota aquilo que lhes aparece
serve apenas de guia para que o ceacutetico se conduza na sua vida praacutetica167 O ldquofenocircmenordquo natildeo
possui nenhum estatuto epistemoloacutegico e nem ontoloacutegico no sentido dogmaacutetico Se os dez
tropos de Enesidemo servem muito bem aos olhos de Hegel para combater qualquer forma
rudimentar de dogmatismo jaacute o ceticismo de Schulze que tambeacutem poderia ser considerado
uma forma de dogmatismo canhestro natildeo pode ficar fora da mira dos ceacuteticos apontada para
ele por meio dos dez tropos
Na primeira seccedilatildeo da Fenomenologia do Espiacuterito ldquoA certeza sensiacutevel ou o isto ou o
visarrdquo Hegel nos apresenta uma criacutetica de toda forma de saber imediato Assim como no caso
dos dez tropos aqui tambeacutem se aponta para a instabilidade desse saber imediato E para
mostrar que a certeza sensiacutevel que esse saber do imediato nos proporciona natildeo eacute nenhuma
verdade sustentaacutevel que quando procuramos ter acesso agrave coisa que eacute imediatamente para noacutes
de fato natildeo temos acesso a ela Hegel eacute o que nos parece apoacuteia-se tambeacutem no ceticismo
antigo Cremos ser possiacutevel fazer semelhante afirmaccedilatildeo porque em certos momentos do
texto seu modo de proceder com vistas a atacar o saber imediato estaacute em consonacircncia com o
procedimento dos ceacuteticos antigos por meio dos dez tropos168 Essa forma de oposiccedilatildeo que
Hegel vecirc como caracteriacutestica do modo de proceder que opera nos dez tropos a saber que a
uma verdade posta imediatamente uma outra verdade eacute imediatamente contraposta agrave
primeira de maneira que uma anule a outra tambeacutem se encontra presente na seccedilatildeo inicial da
166 Cf GW 4 p 204
167 ldquoO que como ente ou inteligiacutevel valia vale por conseguinte a eles somente por algo que aparece ou uma pura representaccedilatildeo poreacutem lhes vale apenas como algo conforme o qual os ceacuteticos se guiam na sua conduta seu agir e deixar-se submeterrdquo (ldquoWas als Seiendes und Gedachtes galt galt ihnen daher nur fuumlr ein Erscheinendes ode reine Vorstellung aber es galt ihnen als eine solche nach der der Skeptiker sich in seinem Betragen Tun und Lassen richteterdquo) In Werke 19 p 371 trad cit p 775
168 Em sucinto poreacutem bastante elucidativo estudo Klaus Duumlsing relaciona a criacutetica hegeliana da certeza sensiacutevel na Fenomenologia do Espiacuterito ao ceticismo antigo Mais especificamente Duumlsing procura mostrar como estaacute nela presente a criacutetica ceacutetica a toda forma de saber imediato por meio da contraposiccedilatildeo de argumentos com ecircnfase na efetivaccedilatildeo dessa tarefa mediante os tropos de Enesidemo (Cf Duumlsing K ldquoDie Bedeutung des antiken Skeptizismus fuumlr Hegels Kritik der Sinnlichen Gewissheitrdquo Hegel-Studien 8 1973 pp 119-130) Tambeacutem Dietmar Heidemann remete a anaacutelise da certeza sensiacutevel ao ceticismo antigo Em particular ele se refere ao que chama de criacutetica ceacutetica ao realismo imediato (Cf Heidemann D Der Begriff des Skeptizismus pp 280-290)
83
Fenomenologia do Espiacuterito quando do exame que se faz do saber imediato que daiacute se parte
Assim eacute faacutecil mostrar que a certeza sensiacutevel imediata de que agora eacute noite natildeo resiste perante
a certeza oposta a ela e pela qual se declara que agora eacute dia Tanto a certeza de que agora eacute
noite quanto aquela outra de que agora eacute dia satildeo certezas portadoras de verdades
insustentaacuteveis em vista da mais simples oposiccedilatildeo a que sejam submetidas169
O mesmo se passa com a verdade ldquoo aqui eacute a aacutervorerdquo 170 quando me viro prossegue
Hegel essa verdade desvaneceu (ist verschwunden) e mudou na oposta o aqui natildeo eacute uma
aacutervore mas antes uma casa
Sem pretender seguir aqui todos os passos dessa dialeacutetica que aniquila a possibilidade
de que haja um saber imediato vale chamar agora a atenccedilatildeo para a conclusatildeo mais geral a que
se pode chegar qual seja de que o ser que a certeza sensiacutevel quer conhecer imediatamente
natildeo pode ser apreendido Mas por que natildeo podemos ter acesso a essa verdade imediata Seu
acesso nos eacute vedado porque quando pretendemos dizer o imediato apenas conseguimos dizer
o universal Na dialeacutetica do agora natildeo conseguimos de fato dizer verdadeiramente que agora
eacute por exemplo dia Agora pode ser dia ou noite Contra o agora que eacute dia pode ser
contraposto o agora que eacute noite A uacutenica coisa que se manteacutem aqui eacute o agora indiferente a ser
dia ou noite ldquoComo o dia e a noite natildeo satildeo o seu ser assim tambeacutem ele natildeo eacute o dia e a noite
natildeo eacute afetado por esse seu ser-outrordquo171 O agora eacute por meio dessa negaccedilatildeo daquilo que ele
natildeo eacute Quando se pretende dizer verdadeiramente que agora eacute dia somente se consegue dizer
o universal isto eacute o agora que se manteacutem a salvo da oposiccedilatildeo que possa surgir entre o ser
que ele pretende enunciar e o ser que se opotildee a ele
A impossibilidade de dizermos o imediato se deve ao fato de sermos traiacutedos pela
linguagem Ela proacutepria nos mostra que ao tentarmos dizer o ser sensiacutevel apenas estaacute ao nosso
alcance dizer o universal172 Se pretendemos dizer este pedaccedilo de papel segundo o que se nos
169 Cf GW 9 pp 64-65 trad Paulo Meneses p 76
170 Cf Ibidem p 65 trad cit p 77
171 (ldquoso wenig die Nacht und der Tag sein Seyn ist ebensowohl ist es auch Tag und Nacht es ist durch diszlig sein andersseyn nicht afficirtrdquo) In GW 9 p 64 trad cit p 76
172 Cf GW 9 pp 64-65 trad Vaz p 63 Hegel natildeo perde aleacutem disso a oportunidade tambeacutem aqui na Fenomenologia do Espiacuterito de criticar e de modo incisivo Schulze Mesmo que natildeo seja citado nominalmente a referecircncia de Hegel soacute pode ser a ele Vale a pena citar todo o trecho ldquoEacute pois de se admirar quando contra essa experiecircncia se sustenta como experiecircncia universal e tambeacutem como afirmaccedilatildeo filosoacutefica e mesmo como resultado do ceticismo que a realidade ou o ser das coisas exteriores como estas ou como sensiacuteveis tem uma
84
apresenta pelo exame da certeza sensiacutevel natildeo conseguiriacuteamos dizer este pedaccedilo de papel
singular e individual Pela linguagem o ser-aiacute desse objeto exterior a noacutes eacute inatingiacutevel173 Este
pedaccedilo de papel que digo eacute um pedaccedilo de papel como qualquer outro ldquo() como esse pedaco
de papel todo e cada papel eacute um este pedaccedilo de papel e o que eu disse foi sempre e somente
o universalrdquo174
Trazendo novamente o eixo da discussatildeo para o debate entre Hegel e o ceticismo natildeo
conveacutem aqui discutir a respeito do alcance daquilo que aparece para o ceacutetico apoacutes a suspensatildeo
de juiacutezo mas no que nos interessa a saber a possibilidade ou natildeo de se poder afirmar a
verdade simploacuteria do imediato parece-nos oportuno ainda articular a discussatildeo acerca do
saber imediato agrave temaacutetica ceacutetica referente ao ldquoaparecer apoacutes a epokheacuterdquo
Assim quando nas Hipotiposes se discute a respeito dos ceacuteticos abolirem os
fenocircmenos175 parece-nos que a questatildeo em torno da possibilidade de haver ou natildeo saber
imediato esteja presente O ceacutetico procura aiacute justamente desfazer um mal-entendido
concernente agrave sua ldquoposiccedilatildeo filosoacuteficardquo Se natildeo podemos ter acesso agrave verdade no sentido
dogmaacutetico se as coisas se nos apresentam dotadas de um conflito indecidiacutevel somos levados
agrave epokheacute Diante dessa incapacidade do ceacutetico se decidir (dogmaticamente) em nada poder
afirmar absolutamente o que restaria a ele fazer daiacute por diante Esse eacute a espeacutecie de
verdade absoluta para a consciecircncia Semelhante afirmaccedilatildeo natildeo sabe o que diz ou natildeo sabe que diz o contraacuterio do que pretende dizer A verdade do isto sensiacutevel para a consciecircncia deve ser uma experiecircncia universal Aquela consciecircncia suprime uma verdade desse tipo como por exemplo o aqui eacute uma aacutervore ou o agora eacute meio-dia sempre de novo e enuncia o contraacuterio o aqui natildeo eacute uma aacutervore mas uma casa E do mesmo modo a consciecircncia suprime o que nessa afirmaccedilatildeo que suprime a primeira eacute igualmente afirmaccedilatildeo de um isto sensiacutevel Desta sorte em toda certeza sensiacutevel somente eacute experimentado em verdade o que vimos ou seja o isto como um universal o contraacuterio do que aquela afirmaccedilatildeo assegura ser a experiecircncia universal A propoacutesito dessa menccedilatildeo da experiecircncia seja permitido antecipar uma consideraccedilatildeo que pertence ao domiacutenio da praacutetica Na linha dessa consideraccedilatildeo pode-se dizer agravequeles que afirmam a tal verdade e certeza dos objetos sensiacuteveis que eles devem ser reenviados agrave escola mais baixa da sabedoria ou seja aos velhos misteacuterios eleusiacutenicos de Ceres e Baco e que devem aprender pela primeira vez os misteacuterios de comer o patildeo e beber o vinho Com efeito o iniciado nesses misteacuterios natildeo somente chega a duvidar do ser das coisas sensiacuteveis mas a desesperar dele e ele mesmo de uma parte leva a cabo o seu nada de outra o vecirc levar a cabo Tambeacutem os animais natildeo estatildeo excluiacutedos dessa sabedoria mas ao contraacuterio mostram-se profundamente iniciados nela De fato eles natildeo permanecem diante das coisas sensiacuteveis como se elas possuiacutessem um ser em si mas desesperando da sua realidade e na certeza total de seu nada eles as tomam sem mais e as devoram Como eles toda a natureza celebra assim esses misteacuterios revelados que ensinam qual seja a verdade das coisas sensiacuteveisrdquo In GW 9 p 69 trad Vaz p 66-67
173 Cf Ibid pp 69-70 trad Vaz pp 67-68
174 (ldquoals dieses Stuumlck Papier so ist alles und jedes Papier ein dieses Stuumlck Papier und ich habe nur immer das Allgemeine gesagtrdquo) Cf GW 9 p 70 trad de Paulo Meneses p 82
175 Cf HP I 19-20
85
pensamento que poderia surgir para aqueles que natildeo satildeo suficientemente versados no
ceticismo Mais estranho ainda para o natildeo-ceacutetico eacute essa aceitaccedilatildeo adoxaacutestica daquilo que
aparece sem contudo que este aparecer natildeo seja dotado de verdade A partir deste ponto
estamos a um passo de natildeo compreender que o fenocircmeno da perspectiva do ceticismo possa
ter nossa aceitaccedilatildeo isto eacute que possamos dar nosso assentimento ao que nos aparece e se nos
impotildee independente de nossa vontade mas que isto que nos aparece natildeo tem nenhum valor de
verdade
O pensar natildeo-filosoacutefico podemos conjecturar aceita com dificuldade essa hipoacutetese de
um aparecer do qual natildeo possamos ter certeza verdadeira Afinal como natildeo ter certeza de que
vejo que agora eacute dia A ingenuidade do pensar natildeo-filosoacutefico natildeo se daacute conta de que o ceacutetico
tambeacutem talvez concordasse com essa certeza de que agora eacute dia contudo se ele concorda o
faz de uma outra perspectiva
Talvez seja nesse tipo de confusatildeo com respeito agrave sua posiccedilatildeo que o ceacutetico seja
obrigado a tentar esclarecer porque ele natildeo pretende abolir as aparecircncias Parece-nos
portanto que a explicaccedilatildeo fornecida para esse tema pretenda justamente tornar claro que essa
discussatildeo acerca do caraacuteter do aparecer se faccedila ao niacutevel da linguagem e que nesse niacutevel natildeo
podemos obter certezas vinculadas ao que se noacutes daacute imediatamente Natildeo haacute como decidir
entre afirmaccedilotildees opostas a respeito do ldquorealrdquo O ceacutetico portanto constata que no uacutenico plano
ndash a linguagem ndash em que podemos discutir o fenocircmeno natildeo podemos concluir
dogmaticamente nada a seu propoacutesito Mesma conclusatildeo a que chega Hegel exceto que na
dialeacutetica da certeza sensiacutevel se chega a um resultado positivo176 que acerca daquilo que eacute
visado imediatamente apenas podemos ter acesso ao universal
Dessa discussatildeo importa com efeito reter que tanto para os ceacuteticos quanto para
Hegel natildeo podemos por meio da linguagem exprimir o sensiacutevel Mas nada poder dizer a
respeito do sensiacutevel com valor de verdade natildeo impede o ceacutetico de continuar a falar dele Ele
continua a ver uma aacutervore a perceber que agora eacute dia e que este dia se torna noite O que
acontece agora eacute que em virtude da sua incapacidade em poder dizer algo com valor de
verdade ele apenas pode relatar acerca do que lhe aparece deixando de lado qualquer juiacutezo
teacutetico concernente a esse aparecer
176 O ceacutetico chega apenas agrave suspensatildeo do juiacutezo
86
Os tropos nos mostraram o caminho dessa dificuldade em se afirmar algo
dogmaticamente Apoacutes a suspensatildeo do juiacutezo natildeo estamos de acordo com a visatildeo ceacutetica
impedidos de viver como antes o faziacuteamos mas estamos impedidos todavia de tentar nos
referirmos a essa experiecircncia pela qual todos ndash filoacutesofos ou natildeo ndash passamos de modo
dogmaacutetico
O ceacutetico antigo foi obrigado como haacute pouco vimos a ter de se haver com essa falta de
compreensatildeo relacionada agrave sua filosofia E se essa dificuldade de compreensatildeo do
ldquofenomenismordquo ceacutetico jaacute era notaacutevel agrave eacutepoca de Sexto outro exemplo da mesma
incompreensatildeo novamente se verifica agrave eacutepoca de Hegel o ceticismo de Schulze e este eacute o
exemplo mais gritante da mesma
Se na seccedilatildeo Ceticismo das suas Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia a fraqueza do
ceticismo de Schulze era apontada dentro da criacutetica que por meio dos tropos se fazia agrave falta de
solidez do saber imediato das coisas exteriores sensiacuteveis na Fenomenologia do Espiacuterito a
criacutetica a Schulze se desenvolve no mesmo sentido todavia que agora ela vai como haacute pouco
vimos aleacutem da mera criacutetica negativa e aponta para o resultado positivo dessa dialeacutetica
presente na certeza sensiacutevel
De volta aos tropos conveacutem reparar que nas Hipotiposes Sexto natildeo se refere aos
tropos a partir da dupla denominaccedilatildeo tropos de Enesidemo e tropos de Agripa Ele apenas
nota que os modos de Enesidemo surgem em um periacuteodo mais antigo da histoacuteria do
ceticismo177 Jaacute os tropos de Agripa satildeo de um periacuteodo bem posterior da histoacuteria do
ceticismo178 A diferenccedila entre a eacutepoca de surgimento eacute a uacutenica que Sexto menciona A uacutenica
observaccedilatildeo que Sexto faz nas Hipotiposes quanto agrave relaccedilatildeo entre os dois grupos de tropos
refere-se a notar que os cinco posteriores servem para proporcionar maior variedade e
completude agrave exposiccedilatildeo da precipitaccedilatildeo (propeacuteteia) dos dogmaacuteticos179 Mas apesar contudo
177 Cf HP I 36
178 Cf HP I 164
179 Cf HP I 177
87
de natildeo ser feita nenhuma distinccedilatildeo entre eles com relaccedilatildeo a isso Sexto faz uma declaraccedilatildeo
que merece nossa atenccedilatildeo a saber que os cinco tropos de Agripa natildeo pretendem anular os
dez tropos anteriores Ora por que razatildeo eacute declarado que natildeo se pretende por meio dos tropos
de Agripa repelir os anteriores No contexto dessa discussatildeo poderiacuteamos supor subjaz a
ideacuteia de que os tropos posteriores dariam conta da tarefa a ser executada pelos outros dez
tropos Haveria entatildeo uma superioridade dos tropos de Agripa o que por consequumlecircncia
forccedilaria o afastamento dos dez primeiros tropos em prol dos cinco de Agripa Da perspectiva
ceacutetica tal discussatildeo em torno da superioridade tem de ser evitada afinal por qual criteacuterio
julgar a superioridade de uns em relaccedilatildeo aos outros
Com efeito parece-nos que os cinco tropos de Agripa poderiam tomar o lugar dos dez
tropos de Enesidemo Satildeo de caraacuteter mais geral Dentre eles temos inclusive o tropo da
relatividade aquele ao qual poderiam todos os outros nove tropos de Enesidemo serem
reduzidos
Quando Hegel efetua a distinccedilatildeo entre os dois grupos de tropos eacute cabiacutevel que ele natildeo
esteja cometendo nenhum exagero com respeito ao que de fato nos eacute mostrado pelo ceticismo
antigo
Para Hegel a diferenccedila fundamental entre os tropos de Enesidemo e os tropos de
Agripa reside no grau de elaboraccedilatildeo que eles atingem e atrelado a essa marca distintiva o
alvo a ser atacado por meio deles tambeacutem seraacute diferente180 Assim para ele os tropos de
Agripa ldquopertencem mais agrave reflexatildeo pensante e contecircm a dialeacutetica que o conceito determinado
tem nele Esses parecem melhores satildeo manifestamente de uma origem posterior
imediatamente se vecirc que eles designam um ponto de vista e uma cultura inteiramente
180 Jaacute Brochard na sua apresentaccedilatildeo dos tropos de Enesidemo e Agripa empenhava-se em sublinhar a diferenccedila de grau que havia entre os dois grupos de tropos Dessa maneira procurava mostrar que os tropos de Agripa eram dotados de maior generalidade e abstraccedilatildeo sendo portanto mais eficazes que os tropos de Enesidemo no que toca agrave criacutetica ceacutetica por meio deles efetuada ldquoPor mais gerais que sejam as concepccedilotildees criticadas por Enesidemo elas possuem ainda um conteuacutedo determinado os argumentos de Agripa atingem natildeo somente tal ou tal proposiccedilatildeo mas antes toda proposiccedilatildeo de qualquer espeacutecie que ela seja natildeo apenas determinadas verdades mas toda verdade consideradas segundo as condiccedilotildees as mais imediatas e as mais essenciais do conhecimentordquo (Brochard p 305) Ou ainda ldquoOs cinco tropos podem ser considerados como a foacutermula a mais radical e a mais precisa que jamais fora dada a respeito do ceticismo Numa palavra ainda hoje eles satildeo irresitiacuteveis Quem quer que aceite a discussatildeo acerca dos princiacutepios que natildeo os declare superiores ao raciociacutenio e ao conhecido por uma intuiccedilatildeo imediata do espiacuterito admitido por um ato de feacute primitivo do qual natildeo prestamos contas e nem necessitamos justificar natildeo poderia escapar a essa sutil dialeacuteticardquo (Brochard p 306) Natildeo eacute agrave toa que cabe notar Hegel dedique tanta atenccedilatildeo agrave filosofia ceacutetica
88
diferentes do pensamento filosoacutefico Eles se dirigem com efeito especialmente contra as
formas de pensamento e as determinidades do conceitordquo181
O que chama a atenccedilatildeo de Hegel nos cinco tropos de Agripa eacute o caraacuteter geral dos
mesmos que implica na possibilidade de que eles natildeo fiquem restritos ao ataque a um
dogmatismo de aspecto mais rudimentar182 Os tropos de Agripa por sua proacutepria estrutura
nos permitem eacute o que nota Hegel combater o dogmatismo num outro acircmbito Este acircmbito eacute o
da forma do que eacute dito Natildeo existe aqui a preocupaccedilatildeo em exibir a falta de fundamento de
uma premissa por exemplo com relaccedilatildeo a determinado conteuacutedo Eacute indiferente o assunto de
que se trata
Interessa primordialmente a Hegel que por meio desses tropos possamos combater
natildeo apenas o dogmatismo natildeo-filosoacutefico mas tambeacutem o dogmatismo criado pelos filoacutesofos E
por dogmatismo filosoacutefico deve ser entendido aquele dogmatismo denominado por Hegel de
filosofia do entendimento (Verstandesphilosophie)
Como jaacute foi visto anteriormente183 o ecircxito do ceacutetico no combate ao dogmatismo estaacute
na visatildeo hegeliana relacionado agrave limitaccedilatildeo intriacutenseca da esfera do entendimento Assim a
aplicaccedilatildeo do ldquoprinciacutepio programaacutetico do pirronismordquo qual seja opor a todo argumento ou
proposiccedilatildeo a proposiccedilatildeo ou argumento de igual forccedila184 ao saber de entendimento fazia com
que esse saber sempre desmoronasse em vista das antinomias estabelecidas pelo ceacutetico
Contra o limitado posto pelo entendimento o ceacutetico punha um outro que contrapusesse o
primeiro mostrando assim a falta de consistecircncia desse185
Os tropos de Agripa natildeo satildeo nada mais do que variadas formas de apontar o caraacuteter
determinado do pensar filosoacutefico de entendimento ldquoEsses tropos satildeo armas fundamentais
181 (ldquosie gehoumlren mehr der denkenden Refelxion an und enthalten die Dialektik welche der bestimmte Begriff an ihm hat Diese sehen besser aus sie sind offenbar spaumlteren Ursprungs es erhellt sogleich dass sie einen ganz anderen Standpunkt und Bildung des philosophischen Denkens bezeichnen Sie gehen naumlmlich besonders gegen die Gedankenformen und Bestimmtheiten des Begriffsrdquo) In Werke 19 p 386 trad cit p 790
182 ldquoOs dez tropos de Enesidemo tendem a provar que a certeza de fato natildeo existe os cinco tropos de Agripa querem estabelecer que logicamente natildeo poderia haver certeza Por aiacute podemos medir a superioridade dos uacuteltimos por sobre os primeirosrdquo (Brochard p 304)
183 No que se refere agrave relaccedilatildeo entre dogmatismo e entendimento e agrave criacutetica ao dogmatismo produzido pelo entendimento ver de modo geral cap 2
184 Cf HP I 12
185 A respeito da limitaccedilatildeo do entendimento ver neste estudo o capiacutetulo 2
89
contra a filosofia de entendimentordquo186 Hegel natildeo perde a oportunidade de por diversas vezes
elogiar os tropos de Agripa como armas eficazes contra a limitaccedilatildeo da filosofia de
entendimento187
Tomemos um exemplo de como pode ser combatida a limitaccedilatildeo de uma filosofia do
entendimento segundo Hegel a filosofia dogmaacutetica comumente apresenta um princiacutepio em
uma proposiccedilatildeo determinada Ora eacute faacutecil apontar a condicionalidade desse princiacutepio ao se
simplesmente contrapor a ele de acordo com o tropo da hipoacutetese um outro princiacutepio que o
negue Diante dessa oposiccedilatildeo o ceacutetico suspende seu juiacutezo pois natildeo se vecirc em condiccedilotildees de
acolher um ou outro princiacutepio como vaacutelido A posiccedilatildeo do princiacutepio dessa filosofia eacute tatildeo
arbitraacuteria quanto a posiccedilatildeo do princiacutepio que o contrapotildee e posto pelo ceacutetico Contra um tal
princiacutepio determinado tambeacutem poder-se-ia arguumlir qual eacute seu fundamento e assim um outro
princiacutepio seria posto como fundamento do primeiro mas este novo princiacutepio padeceria da
mesma falta de fundamento e entatildeo seria necessaacuterio um outro princiacutepio a fundaacute-lo e assim por
diante Com esse processo de fundamentaccedilatildeo que nunca se basta teriacuteamos entatildeo uma
regressatildeo ao infinito (2ordm tropo de Agripa)
Como podemos observar natildeo eacute difiacutecil para o ceacutetico apontar mediante os tropos a
falta de solidez do que eacute posto pelas filosofias do entendimento ldquoEsses tropos satildeo as
oposiccedilotildees necessaacuterias nas quais o entendimento cai Nesses tropos estaacute contida a deficiecircncia
(das Mangelhafte) de toda metafiacutesica do entendimentordquo188 A proacutepria estrutura da proposiccedilatildeo
favorece a criacutetica ceacutetica Lembremos189 que uma proposiccedilatildeo de entendimento se constitui de
acordo com o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo190 Desse modo natildeo podemos dizer que algo seja
e natildeo seja ao mesmo tempo O ceacutetico apoiado em sua dialeacutetica potildee ao que se diz numa
proposiccedilatildeo de entendimento o seu contraposto tornando assim patente a limitaccedilatildeo do que era
enunciado por meio dessa proposiccedilatildeo
186 (ldquoDiese Tropen sind gruumlndliche Waffe gegen Verstandesphilosophierdquo) Werke 19 p 395 trad cit p 799
187 ldquoEsses tropos demonstram a alta consciecircncia dos ceacuteticos no progredir da argumentaccedilatildeo superior agravequela da loacutegica comum da loacutegica dos estoacuteicos e da canocircnica de Epicurordquo (ldquoDiese Tropen beweisen das hohe Bewuszligtsein der Skeptiker in dem Fortgehen der Argumentation -- ein houmlheres als in der gewoumlhnliche Logik der Logik der Stoiker und der Kanonik des Epikur vorhanden istrdquo) In Ibidem p394 trad cit p 799
188 (ldquoDiese Tropen sind notwendige Gegensaumltze in welche der Verstand faumlllt In diesen Tropen ist das Mangelhafte aller Verstandesmetaphysik enthaltenrdquo) In Ibidem p 394 trad cit p 799
189 Veja-se a respeito o capiacutetulo 2
190 Hegel a ele se refere como princiacutepio de contradiccedilatildeo
90
Ainda sobre os tropos de Agripa atacarem a forma do que eacute dito dogmaticamente por
essas filosofias limitadas Hegel se refere a essa operaccedilatildeo como ldquodesse determinado
encontrar o que eacute sua determinidaderdquo191 Encontrar nesse determinado produzido pelo
entendimento aquilo que o faz limitado e que dessa maneira torna-o vulneraacutevel agrave criacutetica
ceacutetica
A fim ainda de esclarecer o que eacute o ceticismo Hegel distingue dois momentos formais
do que ele chama de cultura (Bildung) ceacutetica Esses dois momentos constituem uma espeacutecie
de descriccedilatildeo hegeliana da estrutura fundamental do modo de operar dessa filosofia
Assim no primeiro momento Hegel salienta essa forccedila da consciecircncia (ceacutetica) de se
retirar de si mesma e tomar a totalidade do que existe incluiacuteda aiacute ela mesma ndash sua operaccedilatildeo ndash
como seu objeto192 Talvez com essa espeacutecie de caracterizaccedilatildeo Hegel se refira agrave neutralidade
que haacute nessa postura filosoacutefica quando do exame daquilo que a ela se apresenta
dogmaticamente
Natildeo haveria como ser diferente pois se o ceacutetico em virtude de sua proacutepria atitude
filosoacutefica natildeo possui dogmas a defender natildeo parte portanto de nenhuma verdade seja ela
qual for ou diga respeito ao que quer que seja o seu exame do que eacute afirmado
dogmaticamente seraacute isento e neutro O exame dos enunciados dos dogmaacuteticos se efetua
levando apenas em conta aquilo que eles mesmos propuseram e os argumentos utilizados
pelos ceacuteticos para combater tais enunciados expressam somente a forma por eles encontrada
para verificar a sustentabilidade do que foi dogmaticamente posto193
191 (ldquovon diesem Bestimmten zu finden was seine Bestimmtheit istrdquo) In Werke 19 p 395 trad cit pp 799-800
192 Cf Ibidem p 395 trad cit p 800
193 Nada fica por conseguinte excluiacutedo do acircmbito do exame do dogmatismo filosoacutefico Natildeo se parte de premissas que sirvam como criteacuterio a ser seguido com relaccedilatildeo ao que seraacute analisado Eacute de acordo com essa forma de proceder do ceacutetico que na Fenomenologia do Espiacuterito eacute o que nos parece dir-se-aacute que o exame ceacutetico da consciecircncia aconteceraacute a partir daquilo mesmo que se apresenta nesta ou naquela figura da consciecircncia de maneira que ldquonatildeo temos portanto necessidade de trazer outras medidas e aplicar na investigaccedilatildeo nossas descobertas e nossos pensamentos Deixando-os de lado conseguiremos tratar o objeto de nossa inquisiccedilatildeo tal como ele eacute em-si e para-si Torna-se supeacuterflua por conseguinte uma intervenccedilatildeo de nossa parte desde que o
91
O segundo momento da Bildung ceacutetica consiste na operaccedilatildeo efetivamente realizada
quando do exame do que eacute dito dogmaticamente Pensemos por exemplo numa proposiccedilatildeo
qualquer o interesse do ceacutetico natildeo estaacute voltado primordialmente para o conteuacutedo enunciado
por meio dessa proposiccedilatildeo mas antes na forma do que eacute dito194 Desse modo no juiacutezo ldquoa
coisa eacute unardquo sua preocupaccedilatildeo natildeo eacute com a coisa que eacute dita e com o fato dela ser uma
preocupa-se ele antes que nessa proposiccedilatildeo haacute um algo um determinado relacionado ao uno
O essencial consiste nessa relaccedilatildeo entre esse singular que se potildee como um com o universal
que por sua vez eacute diverso (verschieden) dele195 O essencial prossegue Hegel eacute o elemento
loacutegico trazido ao primeiro plano pelo ceticismo196
Os tropos de Agripa exemplificam essa mudanccedila de foco do conteuacutedo para a forma do
que eacute enunciado A criacutetica ao dogmatismo independe do conteuacutedo que estaacute presente num
argumento ou proposiccedilatildeo pois esses tropos satildeo eficazes no combate ao dogmatismo apenas
ao apontar em seu aspecto formal a falta de solidez do que eacute afirmado
Outro aspecto que adveacutem como consequumlecircncia desse desinteresse pelo conteuacutedo do que
eacute dito refere-se ao fato de que a investigaccedilatildeo ceacutetica por natildeo poder ndash em virtude de sua
conceito e o objeto a medida e a coisa a ser examinada estatildeo presentes na consciecircncia mesmardquo (ldquo[]und hiemit wir nicht noumlthig haben Masszligstaumlbe mitzubringen und unsere Einfaumllle und Gedanken bey der Untersuchung zu appliciren dadurch daszlig wir diese weglassen erreichen wir es die Sache wie sie an und fuumlr sich selbst ist zu betrachten Aber nicht nur nach dieser Seite daszlig Begriff und Gegenstand der Maszligstab und das zu Pruumlffende in dem Bewuszligtsein selbst vorhanden sind [hellip] rdquo In GW 9 p 59 trad Vaz p 54
194 Cf Werke 19 p 395 trad cit p 800
195 Cf Ibidem p 395 trad cit p 800
196 Poderiacuteamos aproximar essa discussatildeo a respeito da mudanccedila de foco realizada pelo ceacutetico do conteuacutedo para a forma do que seraacute examinado agrave discussatildeo no iniacutecio da Enciclopeacutedia precisamente no sect3 acerca da necessidade de se passar para o plano dos pensamentos puros quando se pretende pensar filosoficamente Nesse sentido eacute interessante o comentaacuterio hegeliano acerca da dificuldade da consciecircncia ordinaacuteria compreender o ponto de vista da filosofia Dessa ldquofalta de costume de pensar abstratamenterdquo deriva a acusaccedilatildeo de ininteligibilidade (Unverstaumlndlichkeit) da filosofia (cf GW 20 p42 trad cit p 42) O pensar que natildeo consegue se libertar de suas representaccedilotildees sentimentos intuiccedilotildees tem dificuldade em se elevar ao plano de uma discussatildeo na qual lhe sejam retirados os conteuacutedos familiares a que estaacute acostumado a lidar O que o ceacutetico faz eacute passar desse plano mais terra-a-terra da consciecircncia ordinaacuteria e como quer Hegel transpor-se para o plano dos pensamentos puros ldquoEm qualquer proposiccedilatildeo de conteuacutedo inteiramente sensiacutevel como lsquoessa folha eacute verdersquo jaacute estatildeo inseridas categorias ser singularidaderdquo (GW 20 p 42 trad p 42) Quando se faz essa passagem para esse plano mais abstrato o exame se aprofunda As proacuteprias coordenadas que regulam a constituiccedilatildeo de nosso pensamento acerca das coisas satildeo postas em questatildeo Por isso a consciecircncia ordinaacuteria diraacute Hegel se sente aturdida pois perde seu ponto fixo e domiciacutelio ldquoQuando se encontra deslocada para a regiatildeo pura dos conceitos natildeo sabe onde estaacute no mundordquo (Cf GW 20 p 43 trad p 43) A ldquoresoluccedilatildeo de querer pensar puramenterdquo (rein denken zu wollen) cumpre essa exigecircncia ceacutetica de submeter tudo a exame o que envolve a ldquoausecircncia de pressuposiccedilatildeo a respeito de tudordquo (Cf GW 20 E sect 78 p 118 trad p 156)
92
proacutepria atitude filosoacutefica ndash nada pressupor natildeo considera nada como dado isto eacute daquilo que
eacute afirmado dogmaticamente nenhum dos elementos componentes dessa afirmaccedilatildeo ficaria
excluiacutedo da investigaccedilatildeo
Talvez pudeacutessemos compreender a partir do que se disse agora a declaraccedilatildeo de Hegel
referente aos ceacuteticos natildeo estarem preocupados em disputar se a coisa eacute deste ou daquele
modo mas que eles se preocupam antes se a coisa eacute mesmo algo197
O exemplo extraiacutedo das Hipotiposes198 que Hegel nos daacute a esse respeito eacute o seguinte
na discussatildeo acerca das propriedades que porventura Deus possua eacute preciso primeiro que
saibamos se ele tem realidade (Realitaumlt)199 Antes de conceber quais propriedades Deus
possui primeiro se faz necessaacuterio saber se Deus mesmo eacute algo ldquonatildeo fornecer a coisa se a
coisa eacute assim ou assado mas antes se coisa mesma eacute algordquo200 A postura filosoacutefica ceacutetica
implica essa mudanccedila de atitude perante o discurso filosoacutefico ou natildeo Antes de empregar a
linguagem ldquodoacutexicardquo eacute preciso examinar se as ldquoessecircnciasrdquo que essa linguagem nos fornece satildeo
algo de soacutelido e estaacutevel Via de regra o pensamento dogmaacutetico natildeo se questiona a respeito do
que diz Eacute como se desde sempre os conceitos dos quais se vale tivessem os significados que
num determinado contexto prevaleceram O ceacutetico recua ante esse emprego ingecircnuo das
palavras e examina se as ldquoessecircnciasrdquo que nelas habitam satildeo efetivamente ldquoessecircnciasrdquo estaacuteveis
Nesse exame da ldquoessecircncia do expressordquo para falar em linguagem hegeliana se atinge o
caraacuteter limitado e instaacutevel dessas ldquoessecircnciasrdquo E ao se atingir a limitaccedilatildeo das mesmas
descobre-se tambeacutem que como veremos natildeo podem ser visadas apenas na sua
unilateralidade Em suma para que possamos pretender aceitar determinada posiccedilatildeo
dogmaacutetica filosoacutefica ou natildeo eacute necessaacuterio que nada deixe de ser investigado Eacute por essa
amplitude e falta de restriccedilotildees embutidas na investigaccedilatildeo ceacutetica que Hegel se referiu agrave forccedila
da consciecircncia ceacutetica em fazer seu objeto tudo que eacute existente inclusive a si mesma e sua
proacutepria operaccedilatildeo
197 Cf Ibidem p 396 trad cit p 800
198 Cf HP III 4
199 Nas Hipotiposes III 4 no trecho que certamente Hegel tem em mente trata-se de saber o que eacute a essecircncia (οὐσίαν) de Deus antes de se aprender e conceber suas propriedades
200 (ldquonicht die Sache zu geben ob die Sache so oder so ist sondern ob die Sache selbst etwas istrdquo) Ibidem p 396 trad cit p 800
93
No que respeita propriamente ao seu exame Hegel vislumbra jaacute no ceticismo antigo
um procedimento operatoacuterio caracteriacutestico do pensamento especulativo201 Eacute o que ele nos
diraacute logo apoacutes ter feito a exposiccedilatildeo da anaacutelise de Sexto Empiacuterico sobre as noccedilotildees geomeacutetricas
Natildeo apenas com relaccedilatildeo agraves noccedilotildees geomeacutetricas mas tambeacutem em todas as
determinaccedilotildees das ciecircncias o ceacutetico apresenta a determinidade delas ao indicar nas mesmas o
seu outro202 No caso especiacutefico das determinaccedilotildees da geometria Sexto prossegue Hegel
critica a matemaacutetica por nela se dizer que haacute um ponto um espaccedilo uma linha uma superfiacutecie
uma unidade e assim por diante Com efeito o que para Hegel se encontra na criacutetica ceacutetica agraves
determinaccedilotildees matemaacuteticas eacute o fato dessas determinaccedilotildees padecerem de unilateralidade quer
dizer que nelas natildeo se consideram as determinaccedilotildees agraves mesmas opostas e unidas
Hegel cita um exemplo dessa criacutetica agrave matemaacutetica a saber o exemplo do
relacionamento dialeacutetico entre o ponto e o espaccedilo
ldquoO ponto eacute um espaccedilo e eacute um simples no espaccedilo ele natildeo tem nenhuma dimensatildeo
(mas se) ele natildeo tem nenhuma dimensatildeo entatildeo ele natildeo estaacute no espaccedilo Na medida em que o
um eacute espacial noacutes o denominamos um ponto mas se isso deve ter um sentido ele precisa ser
espacial e enquanto espacial ter uma dimensatildeo ndash mas entatildeo natildeo eacute mais um ponto O ponto eacute a
negaccedilatildeo do espaccedilo na medida em que eacute o seu limite e como tal ele toca o espaccedilo essa
negaccedilatildeo participa portanto do espaccedilo ela proacutepria eacute espacial eacute assim um nulo (Nichtiges) em
si mas com isso eacute tambeacutem um dialeacutetico em sirdquo203
Como acabamos de observar nessa dialeacutetica do ponto e do espaccedilo o ponto somente se
determina como ponto na medida em que estaacute intrinsecamente relacionado ao outro elemento
201 ldquoO ceticismo tratou portanto tambeacutem propriamente de ideacuteias especulativas e apontou a importacircncia delasrdquo (ldquoDer Skeptizismus hat also auch eigentlich spekulative Ideen behandelt und ihre Wichtigkeit aufgezeigtrdquo) Cf Ibidem p 396 trad cit p 802
202 Cf Ibidem p 396 trad cit p 802
203 Ibidem p 396 trad cit p 802 (ldquoPunkt ist ein Raum und ein Einfaches im Raum er hat keine Dimension hat er keine Dimension so ist er nicht im Raume Insofern das Eins raumlumlich ist nennen wir es einen Punkt wenn dies aber einen Sinn haben soll so muszlig es raumlumlich sein und als Raumlumliches Dimension haben ndash so ist es aber kein Punkt mehr Er ist die Negation des Raums insofern er die Grenze des Raums ist als solche beruumlhrt er den Raum diese Negation hat also einen Anteil an dem Raum ist selbst raumlumlich ndash ist so ein Nichtiges in sich ist aber damit auch ein Dialektisches in sichrdquo)
94
que nega o espaccedilo mas sem o qual o ponto natildeo se constitui como ponto O limite do ponto eacute
o espaccedilo e o limite do espaccedilo eacute o ponto Um somente eacute o que eacute na medida em que o outro natildeo
eacute todavia esse relacionamento dos opostos eacute o que permite que ambos sejam ponto e espaccedilo
A limitaccedilatildeo de um pelo outro eacute a condiccedilatildeo para que cada um se determine ou como ponto ou
como espaccedilo Para o pensamento finito de entendimento o ponto eacute um simples no espaccedilo que
natildeo possui dimensatildeo Ora o ceacutetico mostra que natildeo eacute possiacutevel pensar o ponto desvinculado da
dimensatildeo Como estar no espaccedilo e natildeo ter dimensatildeo Aqui temos o ldquolimiterdquo do entendimento
natildeo eacute capaz de conceber que o ponto seja no espaccedilo e dependa da dimensatildeo espacial para se
determinar como ponto Para o entendimento essa convivecircncia muacutetua de ponto e espaccedilo eacute
uma contradiccedilatildeo e por ser uma contradiccedilatildeo natildeo eacute nada O que o ceacutetico faz eacute mostrar que
ponto e espaccedilo efetivamente contradizem um ao outro entretanto essa contradiccedilatildeo entre
ambos os elementos eacute o que permite aos olhos do pensamento especulativo que sejam como
jaacute dissemos ponto e espaccedilo Cremos que a partir dessas consideraccedilotildees possamos compreender
porque Hegel se refira ao fato do ceticismo ter tratado de ideacuteias especulativas204 Esse na
liacutengua hegeliana indicar da contradiccedilatildeo no finito aqui especificamente pelo exemplo do
ponto e do espaccedilo eacute segundo o filoacutesofo ldquoum ponto essencial do meacutetodo filosoacutefico
especulativordquo205
Mas o ceacutetico natildeo se restringe como gostaria Hegel a combater apenas o finito Ele
natildeo reconhece que o especulativo seja um domiacutenio a salvo de suas investidas Se o ponto e o
204 Em Ordem do tempo Paulo Eduardo Arantes ao refazer todos os passos da argumentaccedilatildeo hegeliana a respeito da passagem especulativa do espaccedilo ao tempo explicita a articulaccedilatildeo dialeacutetica presente nessa passagem entre ponto e espaccedilo ldquoGraccedilas agrave ideacuteia de limite ndash primeira negaccedilatildeo ou negaccedilatildeo simples ndash eacute a armaccedilatildeo dialeacutetica inteira que estaacute montada na exposiccedilatildeo do conceito de espaccedilo O ponto eacute a negaccedilatildeo do espaccedilo uma vez que este se mostra inicialmente como o ser-fora-de-si indiferenciado ou imediato Certo natildeo haacute como falar de pontos espaciais como constituindo o elemento positivo do espaccedilo (agregado obtido por soma de pontos) A continuidade abstrata do espaccedilo eacute apenas a possibilidade mas natildeo o estar-posto do ser-um-fora-do-outro e do negativo Vale dizer que a desarticulaccedilatildeo do contiacutenuo pela limitaccedilatildeo equivale a uma posiccedilatildeo do negativo por isso lsquoo ponto o ser-para-si eacute antes a negaccedilatildeo do espaccedilo e essa negaccedilatildeo posta nelersquo (ibid sect 254 p 207 trad p 245) Vale dizer tambeacutem que a negatividade de que o ponto eacute portador eacute da ordem da negaccedilatildeo determinada Em suma o ponto eacute a negaccedilatildeo do espaccedilo portanto essa negaccedilatildeo mesma eacute espacial e a linha que natildeo eacute mais que o ponto suprimido eacute assim o ser espacial do ponto (cf ibid sect 256)rdquo In Arantes P E A ordem do tempo Satildeo Paulo Ed Polis 1981 p 37
205 Ibidem p 396 trad 802 (ldquoein wesentlicher Punkt der spekulativ philosophischen Methoderdquo) Nesse sentido podemos compreender que o conceito absoluto seja uma arma da qual se vale o ceacutetico ldquoContra o conceito como conceito conceito absoluto nada pode o ceticismo o conceito absoluto eacute antes sua arma apenas que ele natildeo tem nenhuma consciecircncia a respeito dissordquo (ldquoGegen den Begriff als Begriff absoluten Begriff geht der Skeptizismus nicht der absolute Begriff ist vielmehr seine Waffe nur daszlig er kein Bewuszligtsein daruumlber hatrdquo) In Ibidem p 372 trad cit p 776
95
espaccedilo se contradizem natildeo haacute conciliaccedilatildeo possiacutevel A incapacidade de decidir soacute o leva agrave
suspensatildeo do juiacutezo Da contradiccedilatildeo natildeo se pode esperar nada
Se o ceacutetico segundo Hegel acertadamente eacute capaz de apontar (aufzeigen) a
limitaccedilatildeo do pensar de entendimento que seu saber por natureza unilateral estaacute condenado a
ser sempre contraditado por um outro ele natildeo eacute entretanto capaz de enxergar nessa
contradiccedilatildeo a possibilidade de que haja nela um aspecto afirmativo ldquoos ceacuteticos permanecem
no resultado como perante um negativo tal coisa tem uma contradiccedilatildeo em si portanto se
dissolve (loumlst es sich auf) portanto natildeo eacuterdquo206 O termo da investigaccedilatildeo ceacutetica se consuma
nessa aporia Mas o negativo a que se chega ldquoeacute novamente uma determinidade unilateral em
face do positivo isto significa que o ceticismo se comporta somente como entendimentordquo207
O que Hegel pretende com essa criacutetica eacute mostrar que o ceacutetico por mais que se
empenhe em efetuar sua investigaccedilatildeo da maneira a mais abrangente mesmo ele natildeo se daacute
conta de que assume certos pressupostos tambeacutem passiacuteveis de exame Aqui especificamente
falta a ele atentar para o fato de que o negativo a que chega eacute tatildeo limitado quanto o positivo
que aboliu que a negaccedilatildeo comporta um lado afirmativo208 que o nada que adveacutem da
contradiccedilatildeo natildeo eacute um puro nada
ldquoEssa dialeacutetica permanece assim simplesmente no lado negativo do resultado e abstrai
daquilo que ao mesmo tempo estaacute aiacute-presente um resultado determinado aqui um puro nada
mas um nada que em si inclui o ser e igualmente um ser que nele inclui o nadardquo209
206 (ldquo[] die Skeptiker bei dem Resultat als einem Negativen stehenbleiben dies und dies hat einen Widerspruch in sich also loumlst es sich auf also ist es nichtrdquo) Werke 19 p 360 trad cit p 761
207 (ldquo [hellip]ist wieder eine einseitige Bestimmtheit gegen das Positive dh der Skeptizismus verhaumllt sich nur als
Verstand rdquo) Ibidem p 360 trad cit p 761
208 Ibidem p 360 trad cit p 761
209 GW 20 E sect89 p 129 trad cit p 185 No original ldquoDiese Dialektik bleib so blos bei der Negativen Seite des Resultates stehen und abstrahirt von dem was zugleich wirklich vorhanden ist ein bestimmtes Resultat hier ein reines Nichts aber Nichts welches das Seyn und eben so ein Seyn welches das Nichts in sich schlieszligtrdquo
96
O pressuposto natildeo assumido pelo ceacutetico eacute portanto que o nada eacute uma determinaccedilatildeo
unilateral que se relaciona apenas exteriormente ao ser Com efeito vemos nos paraacutegrafos
iniciais da Doutrina do Ser na Enciclopeacutedia que o ser e o nada estatildeo unidos que eles se
determinam mutuamente210 Sem pretender adentrar na anaacutelise desses paraacutegrafos da
Enciclopeacutedia importa agora reparar que o ponto de vista do ceacutetico tambeacutem eacute passiacutevel de
criacutetica que por mais que ele deseje o contraacuterio aos olhos de Hegel natildeo conseguiu ele se
desvencilhar do horizonte do dogmatismo211 Seu exame natildeo fora tatildeo radical quanto ele o
quereria212 O ceacutetico natildeo deixa por conseguinte de ser tributaacuterio da ontologia que critica
Mas mesmo que natildeo vaacute aleacutem da contradiccedilatildeo soacute por chegar ateacute ela o ceticismo aos olhos de
Hegel honra a filosofia especulativa Natildeo eacute por outro motivo que Hegel considera o ceticismo
como parte da filosofia positiva que esta tem incorporado a ela o negativo do ceticismo como
seu momento Eacute claro deve ser ressalvado que o negativo devidamente tingido pela filosofia
especulativa ldquoA filosofia positiva [] ela tem o negativo do ceticismo nela mesma ele natildeo eacute
contraposto a ela natildeo eacute fora dela mas antes eacute um momento da mesma poreacutem o negativo em
sua verdade tal como o ceticismo natildeo o temrdquo213
Fica bastante expliacutecito por meio dessas Liccedilotildees de Hegel eacute o que natildeo podemos deixar
de notar a enorme influecircncia exercida pela filosofia ceacutetica na especulaccedilatildeo hegeliana
Na filosofia isto eacute na filosofia especulativa que por sua vez estaacute para aleacutem da
alternativa ou dogmatismo ou ceticismo ndash afinal a especulaccedilatildeo para Hegel conteacutem em si
210 Cf E sect86 e ss
211 Uma espeacutecie de criacutetica que diga-se de passagem mesmo que recebesse aceitaccedilatildeo unacircnime ainda assim natildeo faria com que ele se desse por vencido Provavelmente seria a seguinte sua resposta ldquo[] quando algueacutem nos propotildee um argumento que natildeo podemos refutar dizemos-lhe que assim como antes de surgir o introdutor da doutrina de que ele participa o argumento dela natildeo aparecia ainda como vaacutelido embora jaacute existisse por natureza assim tambeacutem eacute possiacutevel que o argumento oposto agravequele agora proposto exista por natureza mas ainda natildeo nos apareccedila de modo que natildeo devemos ainda dar assentimento ao argumento que agora parece ser mais forterdquo In HP I 33-34
212 Nesse sentido diz Geacuterard Lebrun ldquoBasta mostrar que seu uacutenico erro foi natildeo o de ir tatildeo longe que fosse impossiacutevel acreditar em sua sinceridade mas de natildeo ter ido longe o bastanterdquo In A paciecircncia do conceito Satildeo Paulo Unesp 2000 p 243
213 (ldquoDie positive Philosophie [] sie hat das Negative des Skeptizismus in ihr selbst er ist nicht ihr entgegengesetzt nicht auszliger ihr sondern ein Moment derselben aber das Negative in seiner Wahrheit wie es der Skeptizismus nicht hatrdquo) Werke 19 p 359 trad cit p 760 Tambeacutem a esse respeito ldquoContudo essa (a ideacuteia especulativa) tem o ceticismo nela como seu momento e vai ainda para aleacutem delerdquo No original ldquoAllein diese hat den Skeptizismus selbst als Moment in ihr und ist wieder uumlber ihn hinausrdquo Ibidem p 372 trad cit p 776
97
mesma a oposiccedilatildeo do determinado e de seu contraposto214 ndash encontra-se poderiacuteamos dizer
um lado ceacutetico presente Esse ceticismo presente na filosofia especulativa Hegel o chama de
dialeacutetica de todo determinado215 Por meio dessa dialeacutetica podemos indicar que o finito dada
sua limitaccedilatildeo comporta uma negaccedilatildeo ou seja eacute determinado por um outro que o nega o que
por consequumlecircncia envolve uma contradiccedilatildeo Quando Hegel declara ldquoO conceito loacutegico eacute
igualmente essa dialeacutetica pois o conhecimento verdadeiro da ideacuteia eacute essa negatividade que
no ceticismo do mesmo modo estaacute na sua terra natalrdquo 216 torna-se patente a importacircncia
dessa incorporaccedilatildeo de um procedimento ceacutetico agrave filosofia especulativa Mesmo que seja
necessaacuterio obviamente natildeo deixar de lado o que haacute de especiacutefico nessa incorporaccedilatildeo do
ceticismo agrave filosofia especulativa se faz necessaacuterio sublinhar que eacute ele o ceticismo que
transfigurado constitui esse lado negativo da especulaccedilatildeo hegeliana217 Natildeo haveria portanto
diferenccedila de intenccedilatildeo entre o ceticismo pensante e o ceticismo antigo na medida em que
ambos se empenham como quer Hegel no combate ao pensamento finito do entendimento
Todavia o ceticismo puro218 natildeo distingue entre um domiacutenio no qual se daria a finitude e um
outro que estivesse para aleacutem dela Para esse ceticismo fazer uma tal espeacutecie de demarcaccedilatildeo
jaacute pressuporia algum criteacuterio Em outras palavras estariacuteamos partindo de alguma verdade que
nos permitisse investigar dentro de certos paracircmetros Estariacuteamos portanto em territoacuterio
dogmaacutetico O ceacutetico ao natildeo demarcar o terreno da finitude estaacute apenas sendo coerente com
as coordenadas que balizam sua proacutepria postura E Hegel sabe disso Mas em virtude dessa
sua natildeo-distinccedilatildeo entre o domiacutenio do entendimento e o domiacutenio do racional o ceticismo
214 Cf Werke 19 p 397 trad pp 802-803
215 Cf Ibidem p 359 trad cit p 760
216 (ldquoDer logische Begriff ist ebenso selbst diese Dialektik denn die wahrhafte Kenntnis der Idee ist diese Negativitaumlt die im Skeptizismus ebenso einheimisch istrdquo) Ibidem p 360 trad cit pp 760-761
217 No iniacutecio de suas Liccedilotildees sobre o ceticismo Hegel se refere ao ceticismo que faz parte da filosofia especulativa como ceticismo pensante (denkende Skeptizismus) Um ceticismo que natildeo terminaraacute numa negaccedilatildeo unilateral isto eacute um negativo que natildeo desaacutegua nos termos da Fenomenologia do Espiacuterito num puro nada Na Fenomenologia Hegel se refere a esse ceticismo que impulsiona o percurso fenomenoloacutegico como ceticismo que se consuma (sich vollbringenden Skeptizismus) Com efeito dentro do contexto das anaacutelises precedentes tambeacutem poderiacuteamos considerar esse ceticismo pensante agrave luz dessa denominaccedilatildeo feita na Fenomenologia do Espiacuterito O ceticismo que faz parte da filosofia especulativa natildeo peca por insuficiecircncia pois seu exame traz um resultado que a partir do mesmo a investigaccedilatildeo continua Seu caraacuteter consumado eacute o que permite dar impulso ao processo
218 Denominaccedilatildeo que Hegel fornece na Fenomenologia ao ceticismo natildeo incorporado ao pensamento especulativo E cremos certamente que ele esteja aiacute se referindo ao ceticismo antigo
98
como jaacute observamos anteriormente tambeacutem critica a especulaccedilatildeo filosoacutefica todavia nessa
sua criacutetica contra o especulativo ele eacute impotente (unkraumlftig)219
Segundo Hegel os ataques do ceacutetico ao especulativo satildeo ineficazes porque neste
domiacutenio natildeo lidamos com determinaccedilotildees finitas como ocorre no caso do entendimento O
que isso significa Significa que o ceacutetico natildeo poderaacute mostrar que a um posto um outro se
contrapotildee ldquono que concerne agrave ideacuteia especulativa natildeo eacute esta precisamente um determinado
natildeo tem a unilateralidade que existe na proposiccedilatildeo natildeo eacute finita ela tem antes o absolutamente
negativo (das absolut Negativ) nela mesma tem a oposiccedilatildeo dentro dela mesma ela eacute em si
mesma circular conteacutem nela esse determinado e seu contraposto essa idealidade dentro dela
mesmardquo220
Como acabamos de ver a proacutepria ideacuteia especulativa daacute conta daquilo que seria tarefa
do ceacutetico mostrar o argumento contraposto agravequele que se punha isoladamente na sua
unilateralidade Ela abarca nela mesma o determinado e aquele outro determinado que o nega
Eacute por esse motivo que a ideacuteia especulativa natildeo pode ser atacada pelo ceticismo Aquilo que
por ela eacute afirmado natildeo se faz do mesmo modo que numa proposiccedilatildeo221 Jaacute foi notado neste
estudo222 que a proposiccedilatildeo por sua proacutepria estrutura natildeo admite a contradiccedilatildeo ou se diz que
algo eacute ou que ele natildeo eacute nunca as duas coisas A ideacuteia especulativa natildeo tem a unilateralidade
que existe na proposiccedilatildeo porque nela satildeo admitidas ambas as determinaccedilotildees que se
contradizem O princiacutepio de contradiccedilatildeo natildeo possui aqui validade
A contradiccedilatildeo existente na ideacuteia especulativa resolve-se numa nova unidade que da
mesma maneira ldquoestaacute aberta agrave potecircncia do negativordquo223 Isto quer dizer que estaacute sujeita a ser
219 Cf Werke 19 p 397 trad cit p 802
220 Cf Ibidem p 397 trad cit pp 802-803 (ldquoDenn was die spekulative Idee selbst anbetrifft so ist diese eben nicht ein Bestimmtes hat nicht die Einseitigkeit welche im Satze liegt ist nicht endlich sondern sie hat das absolut Negative an ihr selbst den Gegensatz in ihr selbst sie ist in sich rund enthaumllt dies Bestimmte und sein Entgegengesetztes an ihr diese Idealitaumlt in ihr selbst rdquo
221 ldquoMas a filosofia a filosofia especulativa afirma sem duacutevida mas natildeo um determinado ela natildeo expressa sua verdade na forma de uma proposiccedilatildeo ela natildeo tem proposiccedilatildeo fundamentalrdquo (ldquoAber die Philosophie spekulative Philosophie behauptet wohl aber nicht so ein Bestimmtes oder sie spricht ihr Wahres nicht in der Form eines Satzes aus sie hat keinen Grundsatzrdquo) Cf Ibidem p 393 trad cit p 798
222 Veja-se o cap 2 e tambeacutem o que se diraacute no cap 4
223 Werke 19 p 397 trad cit p 803 (ldquo [hellip] steht sie der Macht des Negativen offenrdquo)
99
contraposta por uma nova determinaccedilatildeo agrave qual se uniraacute e assim indefinidamente224 A
natureza dialeacutetica da ideacuteia implica essa continuaccedilatildeo do movimento225
A partir do que foi exposto vemos por que Hegel julga que o ceticismo seja impotente
(unkraumlftig) quando pretende atacar a filosofia especulativa Esta procura se defender do
ceticismo adotando seu modo de proceder Aleacutem disso mesmo que considere correta a atitude
filosoacutefica ceacutetica natildeo deixa entretanto de assinalar a limitaccedilatildeo de seu alcance o que faz
assim que o ceticismo stricto sensu fique restrito a atuar apenas no acircmbito do entendimento
224 ldquoNo especulativo o outro jaacute estaacute contido Eacute uma outra identidade que aquela do entendimento O objeto eacute em si concreto contraposto a si mesmo Estaacute poreacutem do mesmo modo aiacute-presente a resoluccedilatildeo dessa oposiccedilatildeo O especulativo natildeo pode ser expresso como proposiccedilatildeordquo No original ldquoIm Spekulativen ist das Andere schon selbst enthalten Das ist andere Identitaumlt als die des Verstandes Der Gegenstand ist konkret in sich sich selbst entgegengestzt Ebenso ist aber Aufloumlsung dieses Gegensatzes selbst vorhanden Das Spekulative kann so nicht als Satz ausgedruumlckt werdenrdquo Ibidem p 397 trad cit p 803 Ver ainda a propoacutesito o capiacutetulo 5
225 Cf Ibidem p 397 trad cit p 803 Ver tambeacutem Ibidem p 360 trad cit p 761
101
II ndash A dialeacutetica especulativa de Hegel
Capiacutetulo 1 ndash As determinaccedilotildees de reflexatildeo da identidade agrave contradiccedilatildeo especulativa
Natildeo eacute muito bom para a filosofia
ter uma proposiccedilatildeo e entatildeo
apenas poder dizer isto eacute ou isto
natildeo eacute
Hegel226
Eacute na Loacutegica da Essecircncia227 especificamente no capiacutetulo que trata das determinaccedilotildees
de reflexatildeo que podemos comeccedilar a compreender como a criacutetica hegeliana ao aspecto
limitado do ceticismo pode ser efetuada a partir da Loacutegica o motivo da suposta falta de
eficaacutecia do ceticismo quando pretende atacar a filosofia especulativa Neste capiacutetulo que
comeccedila com a anaacutelise da determinaccedilatildeo da identidade e termina na exposiccedilatildeo da sua
concepccedilatildeo de contradiccedilatildeo que se resolve no fundamento nos satildeo fornecidos elementos
importantes e necessaacuterios tanto para a jaacute mencionada criacutetica do ceticismo quanto para o
entendimento de seu meacutetodo dialeacutetico-especulativo228 que permite segundo ele agrave filosofia
natildeo ficar refeacutem da criacutetica ceacutetica229
226
Aforisma no 68 da eacutepoca de docecircncia em Iena In Hoffmeister J Dokumente zu Hegels Entwicklung Stuttgart Frommann-Holzboog 1974
227 GW 11 pp258-290
228 A ser tratado no capiacutetulo 5
229 Para uma anaacutelise precisa das determinaccedilotildees de reflexatildeo veja-se tambeacutem o estudo de Andreas Arndt Dialektik und Reflexion zur Rekonstruktion des Vernunftbegriffs Hamburg Meiner 1994 pp 203-216
102
A identidade
Hegel comeccedila a tratar da unilateralidade da identidade que eacute caracteriacutestica do
entendimento ao considerar as determinaccedilotildees reflexivas num percurso que teraacute o seu teacutermino
quando expotildee o significado da contradiccedilatildeo especulativa
Segundo Hegel as determinaccedilotildees de reflexatildeo eram antigamente acolhidas na forma de
proposiccedilotildees (Saumltzen) e declarava-se que as mesmas valiam como leis universais do
pensamento isto eacute leis que estariam na base de todo pensamento nelas mesmas absolutas e
indemonstraacuteveis aceitas por todo pensamento como imediatas e natildeo-contraditoacuterias (GW 11
p 258 trad pp 33-34) O princiacutepio de identidade eacute uma das dessas proposiccedilotildees que valem
como leis universais do pensamento Tudo eacute igual a si mesmo A=A E dito de forma
negativa A natildeo pode ao mesmo tempo ser A e natildeo-A230
Com efeito natildeo se deve desconsiderar prossegue Hegel qual seria o motivo pelo qual
apenas tais simples determinaccedilotildees de reflexatildeo sejam apreendidas nessa forma particular isto
eacute como proposiccedilotildees imediatas indemonstraacuteveis e natildeo-contraditoacuterias e natildeo tambeacutem outras
categorias e todas as determinidades da esfera do ser231 Uma proposiccedilatildeo eacute o meio pelo qual
se pode dizer por exemplo que tudo eacute ou tudo tem um ser-aiacute tem uma qualidade tem uma
quantidade etc232 Ocorre que eacute disso que Hegel parece querer nos advertir categorias e
determinidades satildeo componentes de proposiccedilotildees e nas quais figuram como predicados
(Praumldicate) E para ressaltar essa vinculaccedilatildeo estreita entre proposiccedilotildees e categorias Hegel
chega inclusive a nos lembrar que ldquosegundo a etimologia e segundo Aristoacuteteles categoria eacute
aquilo que eacute dito do que eacute (von dem Seyenden)233
E agora antes de prosseguirmos cabe a pergunta As determinidades de ser que
fazem parte das proposiccedilotildees como predicados isto eacute como aquilo que eacute dito de algo seriam
tambeacutem assim como as proposiccedilotildees imediatas indemonstraacuteveis e natildeo-contraditoacuterias
230 GW 11 p 258 trad p 34
231 Cf Ibidem p 259 trad p 34
232 Cf Ibidem p 259 trad p 34
233 Ibidem p 259 trad p 34
103
A resposta de Hegel eacute a seguinte
Uma determinidade de ser eacute essencialmente um passar no seu oposto a
negativa de qualquer determinidade eacute tatildeo necessaacuteria como ela proacutepria como
determinidades imediatas frente a cada uma delas se encontra imediatamente a outra
Quando por conseguinte essas categorias satildeo formuladas em tais proposiccedilotildees entatildeo
aparecem do mesmo modo as proposiccedilotildees contrapostas ambas se apresentam com a
mesma necessidade e possuem como afirmaccedilotildees imediatas iguais direitos234
Como teremos oportunidade de mais detidamente a seguir observar mas que desde jaacute
Hegel faz questatildeo de frisar eacute que as determinidades de ser ou as categorias por sua proacutepria
estrutura interna natildeo podem ser afastadas da contradiccedilatildeo isto eacute mediante o pocircr das
determinidades a elas contrapostas Aleacutem disso na medida em que satildeo partes constituintes de
proposiccedilotildees tambeacutem estas natildeo podem escapar agrave posiccedilatildeo de proposiccedilotildees a elas contrapostas
Um pequeno parecircnteses aqui merece ser aberto para que natildeo se deixe de sublinhar a
influecircncia do ceticismo antigo nessa discussatildeo acerca da inevitabilidade235 da contradiccedilatildeo em
decorrecircncia de proposiccedilotildees estarem submetidas ao princiacutepio de identidade Assim Hegel
apenas nos faz ver que natildeo haacute como escapar da criacutetica ceacutetica quando lidamos com tais
proposiccedilotildees Dessa maneira natildeo haacute como escapar do ataque ceacutetico mediante o uso que este
pode fazer de seu ldquoprinciacutepio baacutesicordquo a saber opor a cada proposiccedilatildeo uma proposiccedilatildeo de igual
valor236 Eacute por essa limitaccedilatildeo constitutiva dessas proposiccedilotildees regidas pelo princiacutepio de
identidade que o ceacutetico conclui Hegel eacute capaz de produzir antinomias
234 Ibidem p259 trad p 34 (ldquoAllein eine Bestimmtheit des Seyns ist wesentlich ein Uebergehen ins Entgegengesetzte die negative einer jeden Bestimmtheit ist so nothwendig als sie selbst als unmittelbaren Bestimmtheiten steht jeder die andere unmittelbar gegenuumlber Wenn diese Kategorien daher in solche Saumltze gefaszligt werden so kommen eben so sehr die entgegengesetzten Saumltze zum Vorschein beyde bieten sich mit gleicher Nothwendigkeit dar und haben als unmittelbare Behauptungen wenigstens gleiches Rechtrdquo)
235 A propoacutesito o ceacutetico natildeo diria que a contradiccedilatildeo eacute inevitaacutevel Isto seria ir contra sua proacutepria postura filosoacutefica A esse respeito veja-se de modo geral o capiacutetulo 1
236 Cf HP I 12
104
Tomadas apenas como relacionadas a si as determinaccedilotildees reflexivas uma vez de
acordo com o princiacutepio de identidade natildeo tecircm postas perante as mesmas as suas contrapostas
que por direito a elas se relacionam
Se fossem consideradas em si e para si ver-se-ia entatildeo que as determinaccedilotildees
reflexivas ldquosatildeo determinadas umas contra as outras natildeo estatildeo portanto mediante sua forma de
reflexatildeo retiradas do passar e da contradiccedilatildeordquo237 Toda proposiccedilatildeo estaacute sujeita a ser
contraditada por uma outra de modo que ambas se suprimam mutuamente (heben sich
gegenseitig auf)238
Mas por que eacute possiacutevel que toda proposiccedilatildeo estabelecida de acordo com o princiacutepio de
identidade possa ser contraditada por uma outra Qual o mecanismo impliacutecito a reger tais
proposiccedilotildees e que leva as mesmas inelutavelmente agrave contradiccedilatildeo
A resposta de Hegel a essas questotildees pode comeccedilar a ser entrevista a partir de um
exame da proacutepria articulaccedilatildeo do princiacutepio de identidade isto eacute daquilo que constitui esse
princiacutepio enquanto tal
Fundamentalmente Hegel quer mostrar que a admissatildeo do princiacutepio de identidade
implica afirmar que aquilo que eacute diferente estaacute fora e ao lado da identidade (GW 11 p 261
trad p 37) Aquilo que eacute igual a si mesmo de acordo com esse princiacutepio tem necessariamente
a diferenccedila fora dele afinal A natildeo pode ser ao mesmo tempo A e natildeo-A Numa proposiccedilatildeo eacute
expressa a identidade e na outra a diferenccedila Hegel chama de negar relativo essa negaccedilatildeo que
agravequilo posto pela identidade abstrata potildee-se ao seu lado e fora dela como aquilo que ela natildeo
eacute239 De um lado temos portanto a identidade e de outro lado temos a diferenccedila Algo eacute
aquilo que eacute sem que para isso seja necessaacuterio que ele esteja em relaccedilatildeo com aquilo que ele
nega a sua diferenccedila Considerar as coisas desse modo eacute proacuteprio assinala Hegel de uma
reflexatildeo extriacutenseca A diferenccedila que aiacute existe entre algo e aquilo que natildeo eacute esse algo eacute apenas
uma diversidade indiferente (gleichguumlltige Verschiedenheit)240
237 Ibidem p260 trad p 35 (ldquosind sie bestimmt gegen einander sie sind also durch ihre Form der Reflexion dem Uebergehen und dem Widerspruche nicht entnommenrdquo)
238 Ibidem p 260 trad p 36
239 Cf Ibidem p 260 trad p 36
240 Cf Ibidem p 261 trad pp 37-38
105
Segundo Hegel aqueles que se submetem ao princiacutepio de identidade natildeo se datildeo conta
que de acordo com o mesmo a identidade e a diferenccedila satildeo diversos ldquoque a identidade eacute um
diversordquo (GW 11 p 262 trad p 39) A identidade eacute assim distinta com relaccedilatildeo ao diverso
dela mesma e que todavia natildeo eacute exterior a ela ldquoque a identidade nela mesma em sua
natureza eacute isso ser distinta e natildeo de modo exteriorrdquo241
A identidade somente vai se constituir efetivamente como identidade caso se abandone
o ponto de vista unilateral e incompleto que parte do pressuposto de que a identidade exclui
de si o natildeo-idecircntico Eacute esse o ponto de vista que uma vez aceito viabiliza a criacutetica ceacutetica
Poderiacuteamos dizer que o ceacutetico aproveitando-se dessa limitaccedilatildeo do pensar de entendimento
que aceita o princiacutepio de identidade como lei de pensamento acaba por conseguir sempre
mostrar o natildeo-idecircntico a diferenccedila que se contrapotildee ao idecircntico E dentro desse quadro vale
insistir a contradiccedilatildeo eacute sempre um mal a ser evitado Todavia a identidade que natildeo eacute abstrata
estaacute unida com a diferenccedila Ela se sustenta como identidade ao ter nela mesma aquilo que a
contradiz
Mas antes de tentar responder agraves questotildees que acima foram postas talvez seja
interessante continuar a examinar o princiacutepio de identidade e tentar compreender porque ele
natildeo passa aos olhos de Hegel de uma tautologia vazia sem conteuacutedo e que natildeo leva a lugar
nenhum (GW 11 p 262 trad p 39)
Se pensarmos242 diz Hegel na pergunta O que eacute uma planta E se responde uma
planta eacute -- uma planta todos admitem a verdade de tal proposiccedilatildeo e ao mesmo tempo de
maneira tambeacutem unacircnime eacute dito que com isso nada eacute dito A mesma situaccedilatildeo poderia ocorrer
com algueacutem que pretende declarar o que eacute Deus e apenas diz que Deus eacute ndash Deus Com essa
declaraccedilatildeo temos nossa expectativa frustrada pois esperaacutevamos uma determinaccedilatildeo diferente
ou em outras palavras uma declaraccedilatildeo que pudesse efetivamente nos informar a respeito do
que seja Deus E se essa proposiccedilatildeo eacute verdade absoluta continua Hegel eacute pouco apreciado
essa espeacutecie de palavroacuterio (Rednerei) afinal nada mais aborrecido e maccedilante do que uma
conversa que segue ruminando sempre a mesma coisa Espera-se que se diga algo a respeito
da planta e quando se tem como resposta somente a repeticcedilatildeo do mesmo tem-se o contraacuterio
do que era esperado a saber nada
241 Ibidem p 262 trad p 39 (ldquodaszlig die Identitaumlt nicht aumlusserlich sondern an ihr selbst in ihrer Natur diszlig sey verschieden zu seynrdquo)
106
Se tomarmos agora a forma da proposiccedilatildeo que expressa a identidade qual seja A eacute ndash
A ao se dizer que A eacute espera-se chegar a algo diferente mas esse outro entra em cena
apenas como um imediato desvanecer (als unmittelbares Verschwinden) A diferenccedila eacute apenas
um desvanecer De A se vai a A novamente ldquoo movimento retorna a si mesmordquo (GW 11 p
264 trad p 42) todavia mesmo que o diferente seja apenas vislumbrado para entatildeo em
seguida imediatamente desaparecer ele eacute algo ou nas palavras de Hegel o excedente daquele
movimento (das Mehr jener Bewegung) Esse excedente eacute o nada a que se chega quando se
sai de A e se chega novamente a A eacute o diferente que se apresenta quando se quer apenas
afirmar a identidade ldquoque na expressatildeo da identidade tambeacutem aparece imediatamente a
diferenccedilardquo243
Com a outra expressatildeo do princiacutepio de identidade o chamado princiacutepio de
contradiccedilatildeo a saber ldquoA natildeo pode ser ao mesmo tempo A e natildeo-A ocorre o mesmo que
havia ocorrido com a primeira isto eacute tambeacutem se apresenta uma negaccedilatildeo que imediatamente
se desvanece Mais precisamente A eacute A porque ele natildeo eacute natildeo-A Este eacute o puro outro de A que
aparece para em seguida desaparecer ldquoa identidade eacute portanto nessa proposiccedilatildeo expressa
como negaccedilatildeo da negaccedilatildeordquo244
Dessa discussatildeo em torno ao que se pode pretender afirmar por meio do princiacutepio de
identidade e do princiacutepio de contradiccedilatildeo o mais importante para Hegel eacute mostrar que tais
princiacutepios pecam por incompletude A verdade que eles pretendem exprimir eacute abstrata e
como jaacute foi dito incompleta Como bem adverte Hegel ldquoo que resulta dessa consideraccedilatildeo eacute
que em primeiro lugar o princiacutepio de identidade ou de contradiccedilatildeo como ele apenas deve
expressar como o verdadeiro a identidade abstrata em oposiccedilatildeo agrave diferenccedila natildeo eacute nenhuma lei
do pensamento mas antes o contraacuterio disso em segundo lugar que esses princiacutepios contecircm
242 Do que seraacute dito a seguir veja-se Ibidem pp 264-265 trad pp 41-43
243 Ibidem p 264-5 trad p 42 (ldquo[] daszlig in dem Ausdrucke der Identitaumlt auch unmittelbar die Verschiedenheit vorkommtrdquo) Ou ainda ldquoEssa proposiccedilatildeo em lugar de ser uma verdadeira lei-do-pensamento natildeo eacute outra coisa que a lei do entendimento abstrato A forma da proposiccedilatildeo jaacute a contradiz ela mesma porque uma proposiccedilatildeo tambeacutem promete uma diferenccedila entre sujeito e predicado enquanto esta natildeo fornece o que sua forma exigerdquo (ldquoDieser Satz statt ein wahres Denkgesetz zu seyn ist nichts als das Gesetz des abstracten Verstandes Die Form des Satzes widerspricht ihm schon selbst da ein Satz auch einen Unterschied zwischen Subject und Praumldicat verspricht dieser aber das nicht leistet was seine Form fodert rdquo) In GW 20 E sect115 p 147 trad p 228
244 GW 11 p 265 trad p 43 (ldquoDie Identitaumlt ist also in diesem Satze ausgedruumlckt ndash als Negation der Negationrdquo)
107
mais do que se visa com eles precisamente esse contraacuterio a proacutepria diferenccedila absolutardquo245
Esses princiacutepios por apresentarem mais do que efetivamente pretendem apresentar natildeo satildeo de
natureza meramente analiacutetica mas sim tambeacutem de natureza sinteacutetica Ao se pretender
apresentar a identidade apenas abstrata aponta-se para algo que contradiz essa suposta
identidade afastada de seu negativo e mesmo que o diferente surja como um imediato
desvanecer esse diferente natildeo pode ser afastado Como veremos a seguir a diferenccedila eacute
ldquomomento essencial da identidade mesmardquo246
A diferenccedila
Quando Hegel expotildee o que eacute a diferenccedila eacute preciso que esta seja considerada sob um
duplo ponto-de-vista como diferenccedila em si e por si e como diferenccedila em si
Hegel chama tambeacutem essa diferenccedila que eacute em si e por si de diferenccedila absoluta ou de
diferenccedila simples247 Mas o que entatildeo pretende ele quando considera a diferenccedila em si e por
si Basicamente a diferenccedila em si e por si eacute aquela que natildeo eacute por meio de algo exterior248
Esta diferenccedila natildeo se constitui como antes se fazia na esfera do ser Laacute um ser-aiacute e um outro
ser-aiacute eram postos separados um do outro Um ser-aiacute se encontrava perante o outro ser-aiacute mas
apenas exteriormente O que Hegel pretende frisar eacute que na diferenccedila em si e por si uma
diferenccedila que se daacute no acircmbito loacutegico da essecircncia portanto uma diferenccedila reflexiva os
diferentes satildeo diferentes sob um uacutenico e mesmo aspecto uma diferenccedila numa uacutenica relaccedilatildeo
O caraacuteter simples dessa diferenccedila adveacutem dessa relaccedilatildeo (Beziehung) dos diferentes ocorrer no
acircmbito de um movimento uacutenico ldquona diferenccedila absoluta de A e natildeo-A de um a outro eacute o
245 Ibidem p 265 trad p 43 (ldquoWas sich also aus dieser Betrachtung ergibt ist daszlig erstens der Satz der Identitaumlt oder des Widerspruchs wie er nur die abstracte Identitaumlt im Gegensatz gegen den Unterschied als Wahres ausdruumlcken soll kein Denkgesetz sondern vielmehr das Gegentheil davon ist zweytens daszlig diese Saumltze mehr als mit ihnen gemeynt wird nemlich dieses Gegentheil den absoluten Unterschied selbst enthaltenrdquo)
246 Ibidem p 265 trad p 43 (ldquowesentlich Moment der Identitaumlt selbstrdquo)
247 Cf GW 11 p 266-267 trad p 44-45
248 Ibidem p 266 trad p 44
108
simples natildeo que constitui a mesmardquo249 Se a diferenccedila se desse entre diferentes exteriores um
ao outro natildeo seria possiacutevel que ela fosse completa em si mesma em outras palavras absoluta
Considerar a diferenccedila apenas como em si significa tomaacute-la no seu relacionamento a
si uma diferenccedila de si por si mesma (seiner von sich selbst)250 Perante a mesma temos a
identidade Somente com a consideraccedilatildeo de ambos isto eacute na relaccedilatildeo que natildeo eacute exterior da
diferenccedila com a identidade que se constitui a diferenccedila (natildeo-unilateral) A diferenccedila apenas
relacionada a si mesma eacute um momento que exige o outro a saber a identidade para que se
possa ter o todo da diferenccedila
Nessa relaccedilatildeo da diferenccedila com a identidade tem-se portanto uma unidade de dois
momentos que natildeo obstante o fato mesmo da relaccedilatildeo de ambos cada um natildeo deixa de ser
uma relaccedilatildeo (Beziehung) a si proacuteprio ou seja continuam a ser refletidos em si mesmos Hegel
chama cada um desses momentos que constituem a diferenccedila de ser-posto (Gesetzsein) Cada
um deles em virtude do seu caraacuteter auto-reflexivo que faz com que se coloquem
distintamente como diferenccedila e identidade seraacute poder-se-ia dizer impermeaacutevel um ao outro
A diversidade
Quais as consequumlecircncias que advecircm para a constituiccedilatildeo da diferenccedila terem os dois
momentos constituintes da diferenccedila precisamente identidade e diferenccedila a caracteriacutestica de
serem refletidos em si mesmos Por que ao inveacutes de uma diferenccedila temos apenas uma
diversidade (Verschiedenheit)
Em primeiro lugar identidade e diferenccedila natildeo satildeo tatildeo distintas assim Tanto uma
quanta a outra por meio da auto-reflexatildeo de cada uma satildeo idecircnticas a si mesmas A
identidade se afirma como identidade ao suprimir imediatamente o seu negar Como jaacute foi
dito a identidade somente se manteacutem como identidade porque eacute uma tautologia A confirma
sua identidade ao se refletir em si mesmo Esse refletir-se em si mesmo e que fornece a A a
249 Ibidem p 266 trad p 44 (ldquoIm absoluten Unterschiede des A und Nicht-A von einander ist es das einfache
Nicht was als solches denselben ausmachtrdquo)
250 Ibidem p 266 trad p 44
109
identidade eacute o que Hegel chama de a sua determinaccedilatildeo (Bestimmung)251 Tambeacutem no caso do
diferente ele eacute o que eacute na identidade que estabelece consigo mesmo Eacute como se um e outro o
idecircntico e o diferente natildeo fossem nada de diferentes afinal ambos satildeo o que satildeo por meio da
identidade que cada um tem consigo mesmo e que lhes daacute independecircncia reciacuteproca
Eles satildeo diversos como refletidos em si mesmos como relacionando-se a si eles satildeo
assim na determinaccedilatildeo da identidade apenas relacionamentos a si a identidade natildeo estaacute
relacionada com a diferenccedila nem a diferenccedila estaacute relacionada com a identidade posto entatildeo
que cada um desses momentos estaacute relacionado somente a si natildeo satildeo eles determinados um
em face do outro252
Nesses termos como se pode estabelecer a diferenccedila entre eles De acordo com Hegel
apenas uma diversidade indiferente (gleichguumlltig verschiedenes) reciacuteproca Natildeo haacute ponto
algum de contato que permita-nos entrever aquilo que torna um diferente do outro ldquoa
diferenccedila lhes eacute exteriorrdquo253
Para que surja essa indiferenccedila dos diferentes o que Hegel chama de diversidade
(Verschiedenheit) a diferenccedila que de fato somente se constitui com a unidade de identidade e
diferenccedila precisa ser enxergada como apenas um dos lados da ldquooposiccedilatildeordquo A diferenccedila seraacute
apenas uma determinaccedilatildeo que teraacute perante si uma outra determinaccedilatildeo a saber a identidade
Essa determinaccedilatildeo ou ser-posto que eacute a diferenccedila constitui o lado negativo da relaccedilatildeo o que
Hegel chama de negaccedilatildeo como negaccedilatildeo254 A diferenccedila seraacute portanto exterior agrave identidade
oposta de modo indiferente a ela Da mesma maneira teremos a identidade tambeacutem oposta
de modo indiferente agrave negaccedilatildeo Se a diferenccedila eacute o ser-posto como negaccedilatildeo a identidade seraacute o
251 Ibidem p 267 trad p 45
252 Ibidem p 267 trad p 46 (ldquoVerschiedene sind sie als in sich selbst reflectirte sich auf sich beziehende so sind sie in der Bestimmung der Identitaumlt Beziehungen nur auf sich die Identitaumlt ist nicht bezogen auf den Unterschied noch ist der Unterschied bezogen auf die Identitaumlt indem so jedes dieser Momente nur auf sich bezogen ist sind sie nicht bestimmt gegen einanderrdquo)
253 Ibidem p 267 trad p 46(ldquo ist der Unterschied ihnen aumlusserlicherdquo)
254 Ibidem p 268 trad p46 Eacute uacutetil aqui alertar para que natildeo se confunda negaccedilatildeo como negaccedilatildeo com negaccedilatildeo da negaccedilatildeo A primeira se refere apenas a essa negaccedilatildeo somente relacionada a si e assim diversa da identidade Jaacute a segunda a negaccedilatildeo da negaccedilatildeo constitui-se como adiante veremos na negaccedilatildeo especulativa negaccedilatildeo que envolve em si a identidade e a diferenccedila
110
ser-posto como reflexatildeo em si isto eacute como reflexatildeo que se relaciona a si e forma a
identidade
De fato identidade e diferenccedila natildeo poderiam ser consideradas como completamente
exteriores uma agrave outra pois justamente ldquocada uma eacute unidade de si mesma e de seu outro cada
uma eacute o todordquo255 Ambas se refletem internamente uma na outra Se elas se tornam exteriores
isso se daacute devido a uma reflexatildeo que se tornou exterior a si mesma Identidade e diferenccedila natildeo
satildeo qualidades Qualidade aqui deve ser entendida conforme o que diz Hegel na Doutrina do
Ser na Enciclopeacutedia a saber que a qualidade eacute o ser com uma determinidade que como tal
constitui a categoria do ser-aiacute A qualidade eacute o ser-aiacute unido imediatamente a essa
determinidade O ser-aiacute refletido sobre si nessa sua determinidade eacute algo256 A qualidade
assim constituiacuteda faz com que o ser-aiacute seja um algo que tenha afastado de si a negaccedilatildeo Esse
ser-aiacute poderiacuteamos dizer eacute uma pura identidade Vale seguir um pouco mais com a descriccedilatildeo
da qualidade na Doutrina do Ser257 e observar que a qualidade tem a negaccedilatildeo contida nela
mesmo que essa seja diferente dela e enquanto um ser-outro Aleacutem disso esse ser-outro eacute sua
determinaccedilatildeo proacutepria todavia neste momento diferente dela (a qualidade) Quando Hegel
afirma que a identidade e diferenccedila natildeo satildeo qualidades podemos agora avanccedilar a hipoacutetese de
que se elas fossem qualidades identidade e diferenccedila seriam apenas cada uma a determinaccedilatildeo
unilateral refletida sobre si e afastada do negativo O que de fato natildeo se verifica pois a
determinidade tanto da identidade quanto da diferenccedila por meio da reflexatildeo em si eacute ao
mesmo tempo somente como negaccedilatildeo258 Em outras palavras elas satildeo o que satildeo porque
negam a sua oposta e natildeo de modo exterior
Na diversidade poreacutem eacute como se diferenccedila e identidade fossem efetivamente duas
qualidades O que resultaria em considerar a ambas como duas determinaccedilotildees inteiramente
positivas Pelo contraacuterio uma determinaccedilatildeo aos olhos de Hegel natildeo pode ser somente
positiva Nesse sentido o filoacutesofo retoma Espinosa quando este diz que toda determinaccedilatildeo eacute
uma negaccedilatildeo (omnis determinatio est negatio) Para Hegel a base de toda determinaccedilatildeo eacute a
negaccedilatildeo ldquoO opinar carente-de-pensamento considera as coisas determinadas como somente
positivas e as sustenta sob a forma do ser Com o simples ser contudo o opinar natildeo eacute
255 Ibidem p 267 trad p 46 (ldquojedes Einheit seiner selbst und seines Andern jedes ist das Ganzerdquo)
256 Cf GW 20 E sect 90 pp 129-130 trad p 186
257 Ibidem sect 91 p 130 trad p 187
258 GW 11 p 268 trad p 46
111
abolido pois esse como vimos antes eacute o absolutamente vazio e ao mesmo tempo o carente-
de-consistecircnciardquo259
Esses dois positivos ndash a identidade e a diferenccedila ndash que se colocam um frente ao outro
de modo indiferente mediante uma reflexatildeo que se tornou exterior a si mesma seratildeo
denominados por Hegel de reflexatildeo em si e de reflexatildeo exterior respectivamente Reflexatildeo em
si porque nessa determinaccedilatildeo temos o momento da identidade que por sua vez eacute
ldquodeterminada para ser indiferente (gleichguumlltig) com respeito agrave diferenccedilardquo260 Reflexatildeo
exterior porque nessa determinaccedilatildeo temos o momento da diferenccedila ldquoperante agrave qual a reflexatildeo
sendo em si (die an sich seiend Reflexion) eacute indiferenterdquo261
E uma vez entatildeo visto que identidade e diferenccedila natildeo se datildeo numa mesma reflexatildeo
como se produziraacute essa diferenccedila de duas determinaccedilotildees exteriores uma agrave outra O
estabelecimento da diferenccedila segundo Hegel dependeraacute da consideraccedilatildeo de um terceiro que
se coloca fora de ambos identidade e diferenccedila Seraacute esse terceiro que declararaacute o que eacute a
identidade e a diferenccedila e que agora seratildeo denominadas por Hegel respectivamente como
igualdade (a identidade exterior) e desigualdade (a diferenccedila exterior)
Nem a igualdade e nem a desigualdade seratildeo em si e por si E o que isso significa
Significa que se algo eacute igual a um outro algo isso natildeo depende nem de um e nem de outro262
Depende antes da referecircncia a esse terceiro Da comparaccedilatildeo que ele estabelece Essa reflexatildeo
que tornou-se estranha a si mesma ora declara que temos uma igualdade e ora declara que
temos uma desigualdade A igualdade e a desigualdade nunca segundo o ponto-de-vista da
diversidade dependem uma da outra para se efetivarem Natildeo haveria diferenccedila intriacutenseca
entre uma e outra Para Hegel esse natildeo relacionar-se entre o igual e o desigual longe de
afastar delas a contradiccedilatildeo (Widerspruch) e a dissoluccedilatildeo (Aufloumlsung) eacute o que de fato leva agrave
destruiccedilatildeo (Zerstoumlrung) das mesmas Se o igual eacute colocado junto do desigual mas sem que
259 Werke 8 E sect 91 Adendo p 195 trad p 187 (ldquoDas gedankenlose Meinen betrachtet die bestimmten Dinge als nur positiv und haumllt dieselben unter der Form des Seins fest Mit dem bloszligen Sein ist es indes nicht abgetan
denn dieses ist wie wir fruumlher gesehen haben das schlechthin Leere und zugleich Haltloserdquo)
260 GW 11 p 268 trad p 47
261 Ibidem p 268 trad p 47
262 Ibidem p 268 trad p 47
112
haja entre eles o menor contato entatildeo eles se contradizem263 Do ponto-de-vista da loacutegica que
rege o entendimento eacute isto o que ocorre264
Admitir que natildeo haja uma diferenccedila que vincule o igual ao desigual que essa
diferenccedila seja exterior e indiferente eacute proacuteprio segundo Hegel de uma consideraccedilatildeo que natildeo
consegue se dar conta de que ldquoo que compara (das Vergleichende) vai da igualdade agrave
desigualdade e desta para aquela novamente faz portanto uma desvanecer na outra e de fato
eacute a unidade negativa de ambas Ela estaacute em primeiro lugar para aleacutem do comparado assim
como aleacutem dos momentos da comparaccedilatildeo como um subjetivo um operar exterior que incide
fora deles Mas essa unidade negativa em verdade eacute a natureza da igualdade e da
desigualdade mesma tal como resultourdquo265
263 ldquoPara Hegel isso significa que tem de se destruir a si mesma a reflexatildeo que se perdeu na exterioridade As determinaccedilotildees da igualdade e da desigualdade se excluem reciprocamente elas satildeo nas palavras de Hegel lsquodeterminaccedilotildees da diferenccedilarsquo lsquorelaccedilatildeo de uma a outra que uma para ser eacute aquilo que a outra natildeo eacutersquo (GW 11 p 269)rdquo Ou ainda ldquoA reflexatildeo exterior na medida em que poe as determinaccedilotildees da igualdade e da desigualdade relaciona ambas uma a outra Hegel assim expressa isso que a contradiccedilatildeo mantida afastada dos objetos se reitera nessa reflexatildeordquo In Arndt A Dialektik und p 206 e 207 respectivamente
264 Eacute essa contradiccedilatildeo que o ceacutetico natildeo se cansa de apontar segundo Hegel no acircmbito do entendimento
265 Ibidem p 269 trad pp 48-49 (ldquoDas Vergleichende geht von der Gleichheit zur Ungleichheit und von dieser zu jener zuruumlck laumlszligt also das eine im andern verschwinden und ist in der That die negative Einheit beyder Sie ist zunaumlchst jenseits des Verglichenen so wie jenseits der Momente der Vergleichung als ein subjectives ausserhalb ihnen fallendes Thun Aber diese negative Einheit ist in der That die Natur der Gleichheit und Ungleichheit selbst wie sich ergeben hatrdquo) Ou ainda ldquoEnquanto os [termos] simplesmente diversos se mostram como indiferentes entre si ao contraacuterio a igualdade e a desigualdade satildeo um par de determinaccedilotildees que se referem pura e simplesmente uma agrave outra e natildeo se pode pensar uma delas sem a outra Essa progressatildeo da mera diversidade agrave oposiccedilatildeo se encontra jaacute tambeacutem na consciecircncia ordinaacuteria na medida em que admitimos que a comparaccedilatildeo soacute tem um sentido na pressuposiccedilatildeo de uma diferenccedila dada e inversamente tambeacutem a diferenciaccedilatildeo soacute [tem sentido] na pressuposiccedilatildeo de uma igualdade dada Por conseguinte quando se potildee como tarefa indicar uma diferenccedila natildeo se atribui grande perspicaacutecia a quem soacute diferencia um do outro objetos cuja diferenccedila eacute imediatamente visiacutevel (como por exemplo uma caneta e um camelo) De outro lado dir-se-aacute igualmente que natildeo foi longe na comparaccedilatildeo quem soacute sabe comparar coisas que estatildeo proacuteximas umas das outras uma faia com um carvalho um templo com uma igreja Exigimos portanto na diferenccedila a identidade e na identidade a diferenccedilardquo (ldquoWaumlhrend die bloszlig Verschiedenen sich als gleichguumlltig gegeneinander erweisen so sind dagegen die Gleichheit und die Ungleichheit ein Paar Bestimmungen die sich schlechthin aufeinander beziehen und von denen die eine nicht ohne die andere gedacht werden kann Dieser Fortgang von der bloszligen Verschiedenheit zur Entgegensetzung findet sich dann auch insofern schon im gewoumlhnlichen Bewuszligtsein als wir einraumlumen daszlig das Vergleichen nur einen Sinn hat unter der Voraussetzung eines vorhandenen Unterschiedes und ebenso umgekehrt das Unterscheiden nur unter der Voraussetzung vorhandener Gleichheit Man schreibt demgemaumlszlig auch wenn die Aufgabe gestellt wird einen Unterschied anzugeben demjenigen keinen groszligen Scharfsinn zu der nur solche Gegenstaumlnde voneinander unterscheidet deren Unterschied unmittelbar zutage liegt (wie z B eine Schreibfeder und ein Kamel) wie man andererseits sagen wird daszlig es derjenige nicht weit im Vergleichen gebracht hat welcher nur einander Naheliegendes - eine Buche mit einer Eiche einen Tempel mit einer Kirche - zu vergleichen weiszlig Wir verlangen somit beim Unterschied die Identitaumlt und bei der Identitaumlt
den Unterschiedrdquo) In Werke 8 E sect 118 Adendo p 241 trad pp 232-233]
113
Tanto o igual quanto o desigual por terem o caraacuteter de ser-posto natildeo satildeo apenas essa
identidade abstrata consigo mesmos essa relaccedilatildeo a si sem negaccedilatildeo Cada um como um
diverso passa por meio do ser-posto agrave reflexatildeo negativa O que Hegel pretende nos apontar
refere-se ao caraacuteter determinado de cada um dos diversos isto eacute que cada um somente se
determina como o que eacute por meio da relaccedilatildeo com o outro ldquoO igual natildeo eacute portanto o igual de
si mesmo e o desigual como o desigual natildeo de si mesmo mas sim de um desigual a ele eacute ele
mesmo o igualrdquo266
Identidade e diferenccedila natildeo satildeo por meio dessa unidade negativa momentos separados
mas antes uma uacutenica unidade e esta eacute a oposiccedilatildeo267
A oposiccedilatildeo
Hegel inicia sua anaacutelise do que estaacute em jogo na oposiccedilatildeo da seguinte maneira ldquoNa
oposiccedilatildeo a reflexatildeo determinada a diferenccedila estaacute acabada (Im Gegensatze ist die bestimmte
Reflexion der Unterschied vollendet)rdquo268
Como jaacute observamos anteriormente269 a diferenccedila se constitui de dois momentos
precisamente a identidade e a diferenccedila Ela eacute o todo que abrange esses dois momentos no
relacionamento que haacute entre eles Tambeacutem na diversidade havia um relacionamento entre
identidade e diferenccedila ou entre igualdade e desigualdade todavia do ponto-de-vista da
diversidade a diferenccedila que havia entre eles era indiferente (gleichguumlltig) Quer dizer era
como se cada um dos momentos natildeo tivesse a sua determinaccedilatildeo a igualdade e a desigualdade
em virtude de um relacionamento negativo entre ambos Em suma a diferenccedila natildeo estava
acabada (vollendet) A igualdade e a desigualdade eram declaradas a partir de uma reflexatildeo
exterior a si na qual os termos da relaccedilatildeo natildeo se vinculavam internamente um ao outro O
266 GW 11 p 269 trad p 49 (ldquoSo ist das Gleiche nicht das Gleiche seiner selbst und das Ungleiche als das Ungleiche nicht seiner selbst sondern eines ihm ungleichen ist selbst das Gleicherdquo)
267 Ibidem p 270 trad p 50
268 Ibidem p 272 trad p 53
269 Ver a esse respeito as paacuteginas 107 e 108
114
tertius comparationis postulava a igualdade ou a desigualdade dos termos diferentes ou
poderiacuteamos tambeacutem dizer efetuava a ldquomediaccedilatildeordquo entre ambos
Posto tudo isso podemos agora comeccedilar a entrever porque a diferenccedila na oposiccedilatildeo
estaacute acabada Mas do que realmente se trata nesse passo aleacutem
A tiacutetulo meramente introdutoacuterio podemos assinalar que a diferenccedila na oposiccedilatildeo teraacute
seus momentos unidos numa uacutenica identidade E seraacute essa unidade interior que permitiraacute a
Hegel afirmar que na oposiccedilatildeo a diferenccedila estaacute acabada no sentido de que aqui ela teraacute sua
completude
Mesmo assim ainda aqui na oposiccedilatildeo esse relacionamento entre identidade e
diferenccedila estaacute de alguma maneira afetado pela diversidade da qual parte Vejamos entatildeo agora
como se estabelece esse relacionamento de identidade e diferenccedila na oposiccedilatildeo
Originariamente igualdade e desigualdade satildeo a indiferenccedila reciacuteproca Cada uma eacute
apenas idecircntica consigo mesma sem que haja referecircncia ao seu negativo Eacute o que Hegel
chama de imediatez natildeo refletida em si (die nicht in sich reflectirte Unmittelbarkeit)270 Como
ser-posto cada momento deveria ser oposto ao outro entretanto por consequumlecircncia da reflexatildeo
exterior cada um deles eacute um ser e aquele que deveria ser seu contraposto isto eacute seu natildeo-ser-
posto (Nichtgesetztsein) eacute apenas um natildeo-ser (Nichtsein) Quando Hegel declara que cada
momento eacute apenas um ser que tem diante de si um natildeo-ser estamos ainda eacute o que nos parece
no terreno da diversidade no qual ser eacute uma determinaccedilatildeo visada de acordo com esse ponto-
de-vista e que de fato estaacute aqueacutem do que efetivamente se passa nos momentos dessa
diferenccedila A tiacutetulo de esclarecimento Hegel caracterizava o ser na Enciclopeacutedia271 como
apenas o imediato indeterminado Parece-nos que denominar os momentos da igualdade e da
desigualdade como ser se faccedila de acordo com tal caracterizaccedilatildeo do ser na obra acima citada
O ser eacute indeterminado porque ele natildeo possui nenhuma relaccedilatildeo com um outro e a
determinaccedilatildeo natildeo se faz sem uma negaccedilatildeo272 o que implica uma relaccedilatildeo a um outro
270 GW 11 p 272 trad p 53
271 Cf GW 20 E sect 86 p 122 trad p175
272 Leia-se a propoacutesito o que foi dito na paacutegina 97 a respeito da determinaccedilatildeo implicar uma negaccedilatildeo
115
ldquoQuando se comeccedila a pensar natildeo temos outra coisa que o pensamento em sua
carecircncia-de- determinaccedilatildeo pois para a determinaccedilatildeo jaacute se requer um e um outro O carente-de-
determinaccedilatildeo como temos aqui eacute o imediato e natildeo a mediatizada carecircncia-de-determinaccedilatildeo
natildeo a suspensatildeo de toda a determinidade mas a imediatez da carecircncia-de-determinaccedilatildeo a
carecircncia-de-determinaccedilatildeo preacutevia a toda a determinidade o carente-de-determinaccedilatildeo enquanto
o que eacute o primeiro-de-todos Ora [eacute] isso o [que] chamamos o ser O ser natildeo pode ser sentido
nem intuiacutedo e nem representado mas eacute o pensamento puro e como tal constitui o
comeccedilordquo273
Mas como momentos da oposiccedilatildeo a igualdade e a desigualdade satildeo o ser-posto
refletido em si ou a determinaccedilatildeo em geral274 Isto significa que igualdade e desigualdade
como refletidas em si mesmas cada uma eacute a unidade da igualdade e da desigualdade Nessa
unidade cada uma estaacute mediada pela outra no entanto a relaccedilatildeo entre elas ainda se faz de
modo indiferente Frente agrave diversidade pode-se notar um avanccedilo na relaccedilatildeo entre identidade e
diferenccedila cada uma estaacute referida agrave outra Desse modo na oposiccedilatildeo teremos como seus dois
momentos o positivo e o negativo O positivo eacute ldquoessa igualdade consigo mesma refletida em
si que nela mesma conteacutem a relaccedilatildeo com a desigualdaderdquo275 e o negativo eacute ldquoa desigualdade
que conteacutem nela mesma a relaccedilatildeo com seu natildeo-ser a igualdaderdquo276 Eacute devido a essa relaccedilatildeo
que ambos mantecircm com seus respectivos negativos que Hegel denomina cada um de ser-
posto isto eacute aquilo que estaacute em relaccedilatildeo com seu oposto O positivo como ser-posto estaacute
refletido na igualdade consigo mesmo e o refletido eacute a negaccedilatildeo como negaccedilatildeo O negativo
273 Werke 8 E sect 86 Adendo p 183 trad p 176 (ldquoWir haben wenn angefangen wird zu denken nichts als den Gedanken in seiner reinen Bestimmungslosigkeit denn zur Bestimmung gehoumlrt schon Eines und ein Anderes im Anfang aber haben wir noch kein Anderes Das Bestimmungslose wie wir es hier haben ist das Unmittelbare nicht die vermittelte Bestimmungslosigkeit nicht die Aufhebung aller Bestimmtheit sondern die Unmittelbarkeit der Bestimmungslosigkeit die Bestimmungslosigkeit vor aller Bestimmtheit das Bestimmungslose als Allererstes Dies aber nennen wir das Sein Dieses ist nicht zu empfinden nicht anzuschauen und nicht vorzustellen sondern es ist der reine Gedanke und als solcher macht es den Anfangrdquo)
274 Cf GW 11 p 272 trad p 53
275 Ibidem p273 trad p 53 (ldquoDiese in sich reflectirte Gleichheit mit sich die in ihr selbst die Beziehung auf die Ungleichheit enthaumlltrdquo)
276 Ibidem p 273 trad p 54 (ldquodie Ungleichheit die in ihr selbst die Beziehung auf ihr Nichtseyn die Gleichheit enthaumlltrdquo)
116
como ser-posto estaacute refletido na desigualdade e o refletido eacute a desigualdade dele (o
positivo)277
Como consequumlecircncia dessa reflexatildeo do todo neles mesmos o positivo e o negativo se
tornam independentes Mas nessa reflexatildeo na qual estaacute posta uma relaccedilatildeo com seu outro e que
fornece o caraacuteter independente do positivo e do negativo o outro de cada um deles eacute um natildeo-
ser pois o outro apesar de continuar presente na relaccedilatildeo estaacute presente como o que natildeo tem
ldquosubstacircnciardquo como se estivesse suprimido278 Em vista disso ao inveacutes de ser-posto positivo e
negativo voltam a adquirir a feiccedilatildeo do mero ser ou seja de um indeterminado que natildeo tem
relaccedilatildeo com um outro um indiferente subsistir (ein gleichguumlltiges Bestehen)279
Com vistas a uma explicitaccedilatildeo mais detalhada das determinaccedilotildees que constituem o
positivo e o negativo Hegel realiza uma anaacutelise na qual distingue trecircs aspectos que a seguir
retomamos280
Assim cabe notar em primeiro lugar que positivo e negativo subsistem numa uacutenica
reflexatildeo inseparaacutevel na qual cada um eacute mediante o natildeo-ser de seu outro mediante portanto
seu proacuteprio natildeo-ser Mas se existe a oposiccedilatildeo entre eles essa oposiccedilatildeo todavia eacute apenas
exterior Cada um eacute o que eacute na medida em que o outro natildeo eacute Na relaccedilatildeo que haacute entre os
opostos um procura afastar de si o outro como aquele que cada um natildeo eacute dessa maneira ldquoum
natildeo eacute ainda o positivo e o outro natildeo eacute ainda o negativo mas antes satildeo ambos negativos um em
relaccedilatildeo ao outrordquo281
277 Cf Ibidem p 273 trad p 54
278 Hegel utiliza eacute o que nos parece o verbo alematildeo aufheben em um sentido meramente negativo por isso optamos pela traduccedilatildeo do verbo como suprimir Na maioria das vezes no entanto preferimos traduzir aufheben por suspender termo que em portuguecircs cremos estar mais de acordo com a polissemia semacircntica do verbo em alematildeo pois suspender pode significar 1) elevar levantar (-se) erguer (-se) 2) suprimir pocircr fim anular abolir abrogar revogar cancelar 3) guardar conservar
Para essa pequena explicaccedilatildeo dos muacuteltiplos significados do verbo suspender e que estatildeo de acordo com os significados do verbo em alematildeo baseamo-nos aqui na nota 25 da traduccedilatildeo da Introduccedilatildeo agrave Filosofia do Direito elaborada por Marcos Lutz Muumlller e na qual o tradutor discute os motivos de se optar por traduzir aufheben por suspender Ver a esse respeito HEGEL G W Introduccedilatildeo agrave Filosofia do Direito Campinas IFCH UNICAMP Claacutessicos da Filosofia Cadernos de Traduccedilatildeo no 10 pp 87-90
279 Cf GW 11 p 273 trad p 54
280 Ver a propoacutesito GW11 pp 273-274 trad pp 54-56
281 Cf GW 11 p 273 trad p 55 (ldquodas eine ist noch nicht positiv und das andre noch nicht negativ sondern beyde sind negativ gegen einanderrdquo)
117
Em segundo lugar dado que cada um dos opostos natildeo considera como parte de si o
outro que ele natildeo eacute como se de fato o outro ndash o natildeo-ser ndash natildeo fosse necessaacuterio para a
determinaccedilatildeo que estaacute no outro poacutelo da relaccedilatildeo resulta dessa espeacutecie de relaccedilatildeo a completa
indiferenccedila entre ambos Dessa perspectiva cada um estaacute apenas refletido em si mesmo Que
consequumlecircncias adveacutem entatildeo para a oposiccedilatildeo uma vez que essa relaccedilatildeo se faz a partir de uma
indiferenccedila dos opostos
Para Hegel a relaccedilatildeo pautada pela indiferenccedila relaccedilatildeo que cada um estabelece com
seu outro como natildeo-ser faz com que ldquoa cada lado caiba por conseguinte uma das
determinidades do positivo e do negativo mas elas podem ser trocadas e cada lado eacute de tal
espeacutecie que eles podem mesmo ser tomados tanto como o positivo quanto como o
negativordquo282
De fato caberia afirmar que natildeo existe oposiccedilatildeo Soacute haacute como diz Hegel oposiccedilatildeo em
geral283 Tanto do lado do positivo quanto do lado do negativo procura-se manter somente
numa relaccedilatildeo idecircntica consigo Nega-se o outro da relaccedilatildeo como se este natildeo determinasse em
nenhuma hipoacutetese a identidade do positivo ou do negativo Eacute como se o outro fosse apenas
um outro em geral
Na doutrina dos conceitos contraditoacuterios um dos conceitos significa por exemplo
azul ( em tal doutrina algo como representaccedilatildeo sensiacutevel de uma cor se chama tambeacutem
conceito) o outro significa natildeo-azul de modo que este outro natildeo eacute algo afirmativo como
seria digamos o amarelo mas somente como o abstratamente negativo deve afirmar-se284
Natildeo se deve esquecer que nesse relacionamento dos opostos e que natildeo vai aleacutem da
indiferenccedila muacutetua o princiacutepio de contradiccedilatildeo pertencente ao arcabouccedilo da loacutegica claacutessica se
282 Ibidem p 274 trad p 55 (ldquojeder Seite kommt daher zwar eine der Bestimmtheiten von Positivem und Negativem zu aber sie koumlnnen verwechselt werden und jede Seite ist von der Art daszlig sie eben so gut als positiv wie als negativ genommen werden kannrdquo)
283 Ibidem p 273 trad p 55
284 GW 20 E sect 119 p150 trad p 234 (ldquoIn der Lehre von den contradictorischen Begriffen heiszligt der eine Begriff z B Blau (auch so ewas wie die sinnliche Vorstellung einer Farbe wird in solcher Lehre Begriff genannt) der andere Nichtblau so daszlig diszlig Andere nicht ein Affirmatives etwa Gelb waumlre sondern nur [als] das Abstract-Negative festgehalten werden sollrdquo)
118
faz atuante Uma determinaccedilatildeo eacute positiva independente daquilo que ela nega E o que eacute
negado mas que todavia estaacute relacionado ao positivo eacute como se natildeo existisse como se
estivesse completamente ausente285 Se algo eacute ele eacute porque um outro indeterminado natildeo eacute286
Natildeo pode haver algo que seja e natildeo seja ao mesmo tempo a contradiccedilatildeo precisa ser evitada a
todo custo A determinaccedilatildeo do positivo ou do negativo conforme a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo natildeo
estaacute vinculada agrave relaccedilatildeo que de fato eles mantecircm A despeito da relaccedilatildeo que eles estabelecem
entre si o princiacutepio de contradiccedilatildeo eacute respeitado e a contradiccedilatildeo eacute evitada287
Nessa indiferenccedila de cada um perante seu outro tanto faz chamar um de positivo
quanto chamar o outro de negativo Temos aqui apenas nomes diferentes para designar duas
positividades que por consequumlecircncia satildeo intercambiaacuteveis Apenas que um eacute o positivo como o
que eacute e o outro o positivo como o que natildeo eacute Enquanto forem indiferentes um ao outro
enquanto a diferenccedila entre eles natildeo for estabelecida a partir do relacionamento que os une
natildeo deixaratildeo os mesmos de serem duas determinaccedilotildees positivas abstratas288
285 Na precisa formulaccedilatildeo de Geacuterard Lebrun ldquoPode-se constatar um natildeo-ser mas sem lhe dar apoio sem contar de onde ele proveacutem O negativo eacute essa ausecircncia nunca localizaacutevel desprovida de toda espessurardquo in Lebrun G A paciecircncia do conceito Satildeo Paulo Editora da Unesp 2006 p275
286 ldquoEsse vazio da oposiccedilatildeo de conceitos que se dizem contraditoacuterios tinha jaacute sua plena exposiccedilatildeo na por assim dizer grandiosa expressatildeo de uma lei universal pela qual de todos os predicados assim opostos um pertence a cada coisa e o outro natildeo de sorte que o espiacuterito seria branco ou natildeo-branco amarelo ou natildeo-amarelo etc ateacute o infinitordquo (ldquo Die Leerheit des Gegensatzes von sogennanten contradictorischen Begriffen hatte ihre volle Darstellung in dem so zu sagen grandiosen Ausdruck eines allgemeinen Gesetzes daszlig jedem Dinge von Allen so entgegengesetzten Praumldicaten das Eine zukomme und das Andere nicht so daszlig der Geist sey entweder weiszlig oder nicht weiszlig gelb oder nicht gelb usf ins Unendlicherdquo) In GW 20 E sect119 p 150 trad p 234
287 ldquoQuando se esquece que identidade e oposiccedilatildeo satildeo opostas elas mesmas a proposiccedilatildeo da oposiccedilatildeo eacute tambeacutem tomada pela proposiccedilatildeo da identidade na forma da proposiccedilatildeo da contradiccedilatildeo e um conceito ao qual das duas caracteriacutesticas que se contradizem uma agrave outra nenhuma delas conveacutem (ver acima) ou convecircm as duas eacute declarado logicamente falso como por exemplo um ciacuterculo quadradordquo (ldquoIndem vergessen wird daszlig Identitaumlt und Entgegensetzung selbst entgegengesetzt sind wird der Satz der Entgegensetzung auch fuumlr den der Identitaumlt in der Form des Satzes des Widerspruchs genommen und ein Begriff dem von Zwey einander widersprechenden Merkmalen keins (s vorhin) oder alle beyde zukommen fuumlr logisch falsch erklaumlrt wie zB ein viereckiger Cirkelrdquo) In GW 20 E sect119 p 150 trad pp 234-235
288 ldquoO positivo eacute de novo a identidade mas na sua verdade mais alta enquanto relaccedilatildeo idecircntica a si mesma e ao mesmo tempo de modo que natildeo eacute o negativo O negativo para si natildeo eacute outra coisa que a diferenccedila mesma O idecircntico como tal eacute antes de tudo o carente-de-determinaccedilatildeo o positivo ao contraacuterio eacute o idecircntico consigo mesmo mas enquanto determinado frente a um outro e o negativo eacute a diferenccedila como tal na determinaccedilatildeo de natildeo ser identidade Eacute isso a diferenccedila da diferenccedila nela mesma No positivo e negativo acredita-se ter uma diferenccedila absoluta Contudo os dois satildeo em si o mesmo e por isso se poderia chamar tambeacutem o positivo negativo e vice-versa igualmente o negativo positivordquo (ldquo Das Positive ist wieder die Identitaumlt aber in ihrer houmlheren Wahrheit als identische Beziehung auf sich selbst und zugleich so daszlig es nicht das Negative ist Das Negative fuumlr sich ist nichts anderes als der Unterschied selbst Das Identische als solches ist zunaumlchst das
119
Podemos ilustrar a afirmaccedilatildeo acima de que positivo e negativo satildeo ambos positivos e
justamente por isso intercambiaacuteveis com um dos exemplos fornecidos por Hegel na anotaccedilatildeo
agrave seccedilatildeo que trata da oposiccedilatildeo na Ciecircncia da Loacutegica
Assim se pensarmos em uma hora de caminhada para o leste veremos que este natildeo eacute
ao mesmo tempo o positivo em si nem o caminho para o oeste seria o caminho negativo O
trecho percorrido natildeo pode ser considerado o positivo ou o negativo em si Em relaccedilatildeo a ele
tais determinaccedilotildees lhe satildeo indiferentes Apenas por meio de uma consideraccedilatildeo exterior se
determina o positivo ou o negativo289
A mesma coisa eacute vaacutelida para um exemplo tirado da aritmeacutetica290 Se A deve ser +A ou
ndashA com isso jaacute estaacute enunciado um terceiro que eacute A ou a base na qual se tem de modo
indiferente o positivo +A e o negativo ndashA291
Bestimmungslose das Positive dagegen ist das mit sich Identische aber als gegen ein Anderes bestimmt und das Negative ist der Unterschied als solcher in der Bestimmung nicht Identitaumlt zu sein Dies ist der Unterschied des Unterschiedes in ihm selbst - Am Positiven und Negativen meint man einen absoluten Unterschied zu haben Beide sind indes an sich dasselbe und man koumlnnte deshalb das Positive auch das Negative nennen und ebenso umgekehrt das Negative das Positiverdquo) In Werke 8 E sect 119 Adendo p 244 trad p 235
289 GW 11 p 276 trad p 58
290 Ver a propoacutesito GW 20 E sect 119 p 150 trad p 234
291 Todo esse trecho da Ciecircncia da Loacutegica no qual Hegel trata da oposiccedilatildeo envolve uma criacutetica da oposiccedilatildeo real kantiana no seu Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia [In Escritos preacute-criacuteticos Satildeo Paulo Unesp 2005 pp 51-99] Com efeito Kant comeccedila a seccedilatildeo Elucidaccedilatildeo do conceito de grandezas negativas em geral distinguindo entre oposiccedilatildeo loacutegica e oposiccedilatildeo real Segundo o filoacutesofo ldquooposto um ao outro eacute quando um suprime aquilo que eacute posto pelo outrordquo (Kant p 57) E esta oposiccedilatildeo pode se dar de duas maneiras se for oposiccedilatildeo loacutegica pela contradiccedilatildeo se for real sem contradiccedilatildeo
Teremos uma oposiccedilatildeo loacutegica quando a seguinte situaccedilatildeo ocorre ldquode uma uacutenica e mesma coisa afirma-se e nega-se algo ao mesmo tempordquo (Kant p 57) A consequumlecircncia advinda de uma tal espeacutecie de afirmaccedilatildeo eacute segundo Kant absolutamente nada (nihil negativum irrepraesentabile) Devido agrave transgressatildeo ao princiacutepio de contradiccedilatildeo aquilo que se tentou exprimir natildeo pode ser representado Como um corpo poderia ao mesmo tempo e sob a mesma relaccedilatildeo estar e natildeo estar em movimento Do ponto de vista das leis da loacutegica claacutessica eacute impossiacutevel(Kant p 58)
Para Kant ao se considerar a oposiccedilatildeo como real teremos dois predicados opostos de uma coisa relacionados no entanto sem que nessa relaccedilatildeo se infrinja o princiacutepio de contradiccedilatildeo Neste caso temos como consequumlecircncia da oposiccedilatildeo algo (cogitabile) Em um dos exemplos dados por Kant algueacutem que tenha por haver uma diacutevida ativa A= 100 taacuteleres ou seja tem a receber A Ao mesmo tempo essa pessoa possui uma diacutevida passiva B=100 taacuteleres logo tem a pagar a quantia expressa por B Se reunimos as duas diacutevidas a ativa e a passiva entatildeo teremos como consequumlecircncia nada As duas diacutevidas se anulam entretanto esse nada eacute algo pois houve um certo movimento de um certo capital Aqui ocorre efetivamente supressatildeo todavia em virtude de dois predicados atuantes e verdadeiros na mesma coisa Kant nomeia esse nada como zero =0 Diferente do nada a que se chega a partir da oposiccedilatildeo loacutegica esse nada chamado de zero natildeo expressa nenhuma contradiccedilatildeo entre os termos Temos uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo da qual se extrai uma consequumlecircncia compreensiacutevel ainda sob o amparo do princiacutepio de contradiccedilatildeo Os opostos se regem pelo princiacutepio de contradiccedilatildeo e quando relacionados continuam a natildeo se
120
Por fim haacute que se considerar que positivo e negativo natildeo estatildeo de fato relacionados
apenas exteriormente Ambos estatildeo relacionados um ao outro numa unidade na qual cada um
se determina como positivo e como negativo mediante essa reflexatildeo dos contrapostos ldquoCada
um eacute em si mesmo positivo e negativordquo292 O positivo se determina como positivo na sua
relaccedilatildeo com seu outro o negativo e o negativo da mesma maneira na sua relaccedilatildeo com o
positivo Nenhum deles pode ser portanto apenas uma reflexatildeo em si ou seja positivo e
negativo natildeo estatildeo desvinculados um do outro Natildeo se constituem como tais por meio de um
puro refletir-se em si mesmos sem que isso envolva a relaccedilatildeo com seu outro e contraposto
Somente na relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo que positivo e negativo se determinam desse modo como
tais e essa reflexatildeo pode ser considerada em si e para si
contradizer Os opostos aqui satildeo dois positivos E eacute por pura conveniecircncia que um eacute chamado de positivo e o outro de negativo
Pensemos por exemplo neste exemplo fornecido por Kant um navio que navega de Portugal para o Brasil(Kant p 60) Indicaremos com o sinal + os trechos que ele perfaz com o vento matutino e com o sinal ndash indicaremos os trechos que ele retrocede mediante o vento vespertino Os nuacutemeros significam as milhas percorridas Poderia ter ocorrido uma viagem rumo a oeste que somando e subtraindo o efeito do vento no navio seria em milhas a seguinte +12 + 7 ndash 3 ndash 5 + 8= 19 milhas Soacute existe uma subtraccedilatildeo aqui porque haacute grandezas precedidas do sinal + e haacute grandezas precedidas do sinal -- Em ndash 4 ndash 5= -- 9 por exemplo temos uma soma de grandezas natildeo obstante estas estarem precedidas do sinal -- Uma soma tambeacutem se verificaria caso no exemplo citado fosse utilizado o sinal + antes das grandezas A questatildeo eacute que natildeo eacute o sinal que por si soacute pode designar uma subtraccedilatildeo Como acabamos de observar pode haver soma para uma operaccedilatildeo envolvendo grandezas precedidas de sinal -- Eacute somente na reuniatildeo de + e ndash que temos uma subtraccedilatildeo E natildeo importa qual das grandezas por exemplo em + 4 ndash 5= -- 1 seja precedida por + ou por -- que enquanto haja uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo o resultado seraacute sempre uma subtraccedilatildeo
Eacute meramente convencional portanto que se utilize o sinal ndash ou o sinal + para denominar as grandezas Natildeo eacute em virtude de uma propriedade intriacutenseca desses sinais que teremos uma soma ou uma subtraccedilatildeo ldquoos matemaacuteticos decidiram denominar negativas as grandezas precedidas de -- com o que igualmente natildeo se deve perder de vista que essa denominaccedilatildeo natildeo remete a uma espeacutecie particular de coisas em sua qualidade interna mas a esta relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo que as une com certas outras coisas indicadas com + reunidas em uma oposiccedilatildeordquo (Kant pp 61-62)
Numa oposiccedilatildeo real satildeo efetivamente dois positivos que se relacionam e eacute indiferente qual deles possa ser o positivo ou o negativo Para Kant diferente do que pensa Hegel esses positivos relacionados podem produzir como efeito algo e continuarem a ser abstratamente idecircnticos a si mesmos nessa relaccedilatildeo Jaacute para Hegel ldquoo que eacute em si (ansichseiende) positivo ou negativo significa essencialmente ser oposto natildeo meramente ser momento nem pertencente agrave comparaccedilatildeo mas sim que eacute a proacutepria determinaccedilatildeo dos lados da oposiccedilatildeordquo (Cf GW 11 p 275 trad p 57) Eacute na relaccedilatildeo que eles se determinam e poderatildeo constituir uma unidade naquilo que Hegel chama de contradiccedilatildeo resolvida
292 GW 11 p 274 trad p 55 (ldquojedes ist an ihm selbst positiv und negativrdquo)
121
A contradiccedilatildeo
Na oposiccedilatildeo temos dois lados o positivo e o negativo indiferentes um perante o outro
Como jaacute foi visto cada lado eacute toda a oposiccedilatildeo pois apesar da indiferenccedila eles se relacionam
cada um ao seu outro Todavia devido agrave indiferenccedila potildeem-se eles como se natildeo houvesse
relaccedilatildeo com seu outro isto eacute excluem de si o seu outro
Mas eacute na relaccedilatildeo com seu outro que cada lado conteacutem em si que eles satildeo ambos a
oposiccedilatildeo completa e assim satildeo auto-subsistentes A auto-subsistecircncia entatildeo consiste nesse
conter o seu oposto em si mesmo e relacionado a si A relaccedilatildeo com o outro desse modo natildeo eacute
exterior Hegel chama o positivo e o negativo de tal modo constituiacutedos de determinaccedilotildees
reflexivas autocircnomas293 Mas ao mesmo tempo e na mesma relaccedilatildeo uma determinaccedilatildeo
reflexiva autocircnoma exclui de si a outra Como consequumlecircncia dessa exclusatildeo ldquoexclui entatildeo ela
de si na sua autonomia (Selbststaumlndigkeit) a sua proacutepria autonomiardquo294 Uma determinaccedilatildeo
conteacutem portanto em si a outra e na mesma relaccedilatildeo exclui de si essa outra que eacute sua negativa e
assim se auto-exclui de si mesma Desse modo nesse vai-e-vem ndash em um mesmo
relacionamento ndash entre a autonomia e a sua exclusatildeo ela a determinaccedilatildeo eacute a contradiccedilatildeo295
Nesse relacionamento das determinaccedilotildees cada uma ao se pocircr remete agrave outra que a ela
se relaciona Cada uma eacute o que eacute na relaccedilatildeo com a outra sua afirmaccedilatildeo vincula-se agrave outra que
eacute negada mas que ao mesmo tempo estaacute contida na primeira como elemento de sua
autonomia Temos aqui o que Hegel chama de contradiccedilatildeo posta (der gesetzte Widerspruch)
realizada por meio de uma reflexatildeo excludente ao me pocircr ponho ao mesmo tempo o outro
que excluo de mim e assim me suspendo296
Se nos voltarmos por exemplo para a contradiccedilatildeo que haacute no positivo veremos que o
positivo potildee sua identidade ao excluir de si o negativo mas nessa exclusatildeo ele se faz
negativo desse outro (o negativo excluiacutedo) e assim potildee seu outro ao mesmo tempo que o
inclui297 Dessa maneira se auto-exclui de si ao se fazer seu outro Tambeacutem com o negativo
293 Ibidem p 279 trad p 62
294 Ibidem p 279 trad p 62
295 Ibidem p 279 trad p 62
296 Ibidem p 279 trad p 62
297 Cf Ibidem p 280 trad p 63
122
se passa o mesmo a saber o negativo que exclui de si o positivo potildee-se e assim potildee seu
outro (o seu negativo que neste caso eacute o positivo) Eacute numa reflexatildeo uacutenica que se daacute o pocircr de
ambos298 Mas a contradiccedilatildeo do negativo eacute por assim dizer mais completa que a do positivo
O negativo eacute o idecircntico consigo justamente na determinaccedilatildeo do ser natildeo-idecircntico do
determinar-se como negativo ou seja no ser exclusatildeo da identidade
O positivo e o negativo satildeo portanto essa unidade dos que se excluem e
simultaneamente se tornam um o outro ldquoesse incansaacutevel desvanecer dos contrapostos neles
mesmos (Diszlig rastlose Verschwinden der Entgegengesetzten in ihnen selbst)rdquo299
Poder-se-ia pensar que o resultado da contradiccedilatildeo desses opostos seria um resultado
meramente negativo precisamente o zero (Null)300 Contudo o que efetivamente eacute aniquilado
(zu Grund geht) na contradiccedilatildeo eacute o ser-posto da auto-subsistecircncia do positivo e do negativo301
Em outras palavras o que natildeo se manteacutem eacute a auto-subsistecircncia em que cada um se potildee como
se estivessem fora da relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo que eles mantecircm com seu outro Como ser-posto
298 Cf Ibidem p 280 trad p 63
299 Ibidem p280 trad p 64 Ou ainda ldquo[] cada um eacute absolutamente o passar ou antes o transpor-setraduzir-se de si mesmo no seu contrapostordquo (ldquojedes ist schlechthin das Uebergehn oder vielmehr das sich Uebersetzen seiner in sein Gegentheilrdquo) Cf GW 11 p 280 trad p 64
300 ldquoQuando em qualquer objeto ou conceito for mostrada a contradiccedilatildeo --- e por toda a parte natildeo haacute absolutamente nada em que natildeo possa e na deva ser mostrada a contradiccedilatildeo isto eacute determinaccedilotildees opostas o abstrair do entendimento eacute o fixar-se agrave forccedila em uma soacute determinidade eacute um esforccedilo de obscurecer e de afastar a consciecircncia da outra determinidade --- quando pois tal contradiccedilatildeo eacute reconhecida costuma-se fazer a conclusatildeo ldquoLogo este objeto eacute nadardquo [Faz-se] como Zenatildeo que primeiro mostrou [a respeito] do movimento que ele se contradizia e que portanto o movimento natildeo era ou como os antigos que reconheceram o nascer e o perecer --- as duas espeacutecies do vir-a-ser --- como determinaccedilotildees natildeo-verdadeiras com a expressatildeo de que o uno isto eacute o absoluto natildeo nascia nem perecia Essa dialeacutetica fica assim simplesmente no lado negativo do resultado e abstrai do que ao mesmo tempo estaacute efetivamente presente um resultado determinado aqui um puro nada mas um nada que em si inclui um ser e igualmente um ser que nele inclui o nadardquo (ldquoWenn in irgend einem Gegestand oder Begriff der Widerspruch aufgezeigt wird (ndash und es ist uumlberall gar nichts worin nicht der Widerspruch di entgegengesetzte Bestimmungen aufgezeigt werden koumlnnen und muumlssen ndash das Abstrahiren des Verstandes ist das gewaltsame Festhalten an Einer Bestimmtheit eine Anstrengung das Bewuszligtsein der andern die darin liegt zu verdunkeln und zu entfernen) ndash wenn nun solcher Widerspruch erkannt wird so pflegt man den Schluszligsatz zu machen Also ist dieser Gegenstand Nichts wie Zeno zuerst von der Bewegung zeigte daszlig sie sich widerspreche daszlig sie also nicht sey oder wie die Alten das Entstehen und Vergehen die zwei Arten des Werdens fuumlr unwahre Bestimmungen mit dem Ausdrucke erkannten daszlig das Eine di das Absolute nicht entstehe noch vergehe Diese Dialektik bleibt so blos bei der negativen Seite des Resultates stehen und abstrahirt vom dem was zugleich wirklich vorhanden ist ein bestimmtes Resultat hier ein reines Nichts aber Nichts welches das Seyn und eben so ein Seyn welches das Nichts in sich schlieszligtrdquo) In GW 20 E sect 89 p 129 trad p 185
301 GW 11 p 281 trad p 64
123
cada lado da oposiccedilatildeo eacute um contraposto (Entgegengesetzt) mas o positivo eacute a suspensatildeo da
oposiccedilatildeo posta como natildeo-contraposto enquanto um lado ao mesmo tempo que o negativo eacute o
contraposto subsistente por si enquanto todo da oposiccedilatildeo que repousa em si Hegel denomina
de reflexatildeo em si essa relaccedilatildeo de auto-subsistecircncia a si na qual cada lado da oposiccedilatildeo se potildee
como momento distinto do outro302
A reflexatildeo se torna para si somente com a relaccedilatildeo negativa de cada um com seu outro
reflexatildeo excludente (ausschliessende Reflexion) por meio da qual o ser-posto de cada um
como relaccedilatildeo autocircnoma a si eacute suspenso (aufgehoben)303 ldquoElas se levam agrave destruiccedilatildeo (richten
sich zu Grunde) ao se determinarem como o idecircntico consigo poreacutem nisto antes como o
negativo como um idecircntico consigo que eacute relaccedilatildeo com outrordquo304
Nessa reflexatildeo excludente um lado se potildee negando o outro e ao negar seu outro ele se
potildee como negaccedilatildeo e como tal ele retorna a si a partir dessa negaccedilatildeo
ldquoEla (a reflexatildeo excludente da autonomia) eacute relaccedilatildeo a si que se suspende ela nisto
primeiro suspende o negativo e em segundo lugar potildee-se a si como negativo e esse eacute somente
aquele negativo que ela suspende no suspender do negativo ela ao mesmo tempo o potildee e
suspende A determinaccedilatildeo excludente eacute desse modo a si o outro do qual ela eacute a negaccedilatildeo o
suspender desse ser-posto natildeo eacute por conseguinte novamente o ser-posto como o negativo de
um outro mas sim o reunir-se consigo mesmo que eacute a unidade positiva consigo A autonomia
eacute assim a unidade que retorna a si por meio de sua proacutepria negaccedilatildeo visto que ela retorna a si
mediante a negaccedilatildeo de seu ser-postordquo305
302 Ibidem p 281 trad p 64
303 Ibidem p 281 trad p 65 Ou ainda ldquoEla eacute auto-subsistecircncia sendo-em-si e eacute o suspender desse ser-posto e que- eacute-para-si somente mediante esse suspender que eacute para si e de fato unidade auto-subsistente (Sie ist ansichseyende Selbststaumlndigkeit und ist das Aufheben dieses Gesetztseyens und durch diss Aufheben erst fuumlrsichseyende und in der That selbstsaumlndige Einheit) In Ibidem p 281 trad p 65
304 Ibidem p 281 trad p 65 (ldquoSie richten sich zu Grunde indem sie sich bestimmen als das mit sich identische aber darin vielmehr als das Negative als ein mit sich identisches das Beziehung auf anderes istrdquo)
305 Ibidem p 281 trad p 65 (ldquoSie ist aufhebende Beziehung auf sich sie hebt darin erstens das Negative auf und zweytens setzt sie sich als negatives und diszlig ist erst dasjenig Negative das sie aufhebt im Aufheben des Negativen setzt und hebt sie zugleich auf Die ausschliessende Bestimmung selbst ist auf diese Weise sich das Andre dessen Negation sie ist das Aufheben dieses Gesetztseyns ist daher nicht wieder Geseztseyn als das Negative eines Andern sondern ist das Zusammengehen mit sich selbst das positive Einheit mit sich ist Die Selbstaumlndigkeit ist so durch ihre eigene Negation in sich zuruumlckkehrende Einheit indem sie durch die Negation ihres Gesetztseyns in sich zuruumlckkehrtrdquo)
124
Por meio portanto dessa reflexatildeo excludente dos opostos eles se potildeem e
simultaneamente se suspendem Numa uacutenica e mesma relaccedilatildeo se afirmam e se negam
mutuamente Qual o resultado desse processo Com a negaccedilatildeo muacutetua eles certamente se
aniquilam (gehen zu Grunde) entretanto esse aspecto negativo da relaccedilatildeo natildeo seraacute o uacuteltimo e
assim predominante nessa destruiccedilatildeo a oposiccedilatildeo retornou ao mesmo tempo ao seu
fundamento (ist in seinen Grund zuruumlckgegangen)306 O retorno ao fundamento mediante a
suspensatildeo da oposiccedilatildeo natildeo ocorre sem essa relaccedilatildeo da oposiccedilatildeo a um negativo algo que
significa rebaixar (herabsetzen) as determinaccedilotildees autocircnomas positivo e negativo a o que de
fato satildeo meras determinaccedilotildees que na sua suspensatildeo (Aufhebung) reuacutenem-se
(zusammengehen) na unidade da essecircncia como fundamento ldquoMediante o suspender das
determinaccedilotildees da essecircncia que se contradizem nelas mesmas esta (a essecircncia) eacute restaurada
contudo com a determinaccedilatildeo de ser unidade reflexiva excludente unidade simples []rdquo307
O fundamento desse modo somente surge da contradiccedilatildeo apresentada na oposiccedilatildeo
autocircnoma (selbstaumlndige Gegensatz) Esta eacute o imediato o primeiro do qual se parte e na sua
suspensatildeo o fundamento vem a ser ldquoA contradiccedilatildeo resolvida308 (der aufgeloumlste Widerspruch)
eacute portanto o fundamento a essecircncia como unidade do positivo e negativordquo309
Se jaacute ressalta Hegel na oposiccedilatildeo se desenvolve a determinaccedilatildeo ateacute que se atinja a
autonomia (Selbstaumlndigkeit) a mesma contudo somente teraacute seu acabamento (Vollendung)
306 Ibidem pp 281-282 trad pp 65-66
307 Ibidem p 282 trad p 66 (ldquoDurch das Aufheben der sich an sich selbst widersprechenden Bestimmungen des Wesens ist dieses wiederhergestellt jedoch mit der Bestimmung ausschliessende Reflexionseinheit zu seyn einfache Einheit [hellip]rdquo)
308 Um dos significados do verbo aufloumlsen na liacutengua alematilde eacute resolver E resolver com o sentido de se encontrar a soluccedilatildeo de um problema por exemplo uma equaccedilatildeo matemaacutetica O mesmo verbo tambeacutem significa a dissoluccedilatildeo de algo sua desagregaccedilatildeo como no caso de uma substacircncia quiacutemica em outra ou sua anulaccedilatildeoextinccedilatildeo caso de um contrato por exemplo Com referecircncia agrave traduccedilatildeo do verbo por resolver no trecho em questatildeo parece-nos que seja a melhor soluccedilatildeo pois assim fica ressaltado esse aspecto positivo de uma unidade superior dos contraditoacuterios no fundamento Ao mesmo tempo o verbo tambeacutem significa dissoluccedilatildeo que no que respeita agrave contradiccedilatildeo eacute um significado que tambeacutem deve ser considerado visto que a contradiccedilatildeo eacute dissolvida para que assim possa entatildeo resultar uma unidade superior todavia a ressonacircncia meramente negativa de dissoluccedilatildeo talvez deixe de lado esse aspecto o mais importante de unidade dos contraditoacuterios no fundamento Aleacutem disso resolver jaacute nos daacute tambeacutem a ideacuteia de que duacutevidas incoerecircncias e contradiccedilotildees presentes num problema sejam dissolvidasdissipadas para que enfim encontremos sua resoluccedilatildeo
309 Ibidem p 282 trad p 66 (ldquoDer aufgeloumlste Widerspruch ist also der Grund das Wesen als Einheit des Positiven und Negativenrdquo)
125
no fundamento Na oposiccedilatildeo jaacute temos a relaccedilatildeo negativa e interna dos opostos relaccedilatildeo que
fornece a autonomia agrave essecircncia poreacutem essa autonomia seraacute apenas completa e acabada no
fundamento porque somente nele o negativo estaraacute efetivamente incorporado a essa reflexatildeo
das determinaccedilotildees contrapostas Eacute o que nos parece que Hegel queira dizer310 Eacute nessa
relaccedilatildeo portanto em que o negativo intrinsicamente faz dela parte que o fundamento pode
ser ldquoa identidade positiva consigo mas ao mesmo tempo como a negatividade que se
relaciona a sirdquo311 E natildeo podemos esquecer que eacute por meio dessa negatividade incorporada
ao processo que a contradiccedilatildeo se torna contradiccedilatildeo posta e eacute resolvida no fundamento312 Uma
resoluccedilatildeo na qual ldquoA oposiccedilatildeo e sua contradiccedilatildeo eacute por conseguinte tanto suprimida no
fundamento quanto conservadardquo313 O fundamento eacute a unidade dos contrapostos nessa relaccedilatildeo
negativa e contraditoacuteria que eles manteacutem entre si
ldquoA oposiccedilatildeo autocircnoma que se contradiz era jaacute portanto ela mesma o fundamento
somente que agora (como fundamento) acrescida da determinaccedilatildeo da unidade consigo
mesma que sobressai pelo fato de que os contrapostos autocircnomos cada um se suspendem e
se convertem no outro de si com isto se destruindo mas nisto ao mesmo tempo reunindo-se
consigo mesmo e desse modo no seu afundar isto eacute no seu ser-posto ou na negaccedilatildeo eacute
antes a essecircncia refletida em si idecircntica consigordquo 314
310 Ibidem p 282 trad p 67
311 Ibidem p 282 trad p 67 (ldquodie positive Identitaumlt mit sich aber die sich zugleich als die Negativitaumlt auf sich beziehtrdquo)
312 No que respeita agrave importacircncia central da dupla negaccedilatildeo ndash ou como o autor a ela se refere negaccedilatildeo autonomizada ndash para Hegel ver o ensaio de Dieter Henrich ldquoHegels Grundoperation (Eine Einleitung in die lsquoWissenschaft der Logikrsquordquo especialmente as pp 214-219 In Guzzoni Ute Der Idealismus und seine Gegenwart (Festschrift fuumlr Werner Marx) Hamburg Meiner 1976 pp 208-230
313 Ibidem p 282 trad p 67 (ldquoDer Gegensatz und sein Widerspruch ist daher im Grunde so sehr aufgehoben als erhaltenrdquo)
314 Ibidem p 282-283 trad p 67 (ldquoDer sich widersprechende selbstaumlndige Gegensatz war also bereits selbst der Grund es kam nur die Bestimmung der Einheit mit sich selbst hinzu welche dadurch hervortritt daszlig die selbstaumlndigen Entgegengesetzten jedes sich selbst aufhebt und sich zu dem andern seiner macht somit zu Grunde geht aber darin zugleich nur mit sich selbst zusammengeht also in seinem Untergange das ist in seinem Gesetztseyn oder in der Negation vielmehr erst das in sich reflectirte mit sich identische Wesen istrdquo)
126
De tudo que foi dito podemos entatildeo concluir que a contradiccedilatildeo eacute justamente o que natildeo
deve ser afastado Ela eacute ldquoa raiz de todo movimento e vitalidade somente na medida em que
algo tem a contradiccedilatildeo em si mesmo ele se movimenta tem impulso (Trieb) e atividaderdquo315
Contra o pensamento representativo o pensar do entendimento a contradiccedilatildeo natildeo
deve ser afastada Eacute por meio dela que um posto se une a seu contraposto numa unidade
negativa que teraacute como consequumlecircncia a geraccedilatildeo de um novo ser-posto Hegel assim inverte o
jogo o que antes era considerado negativo agora merece uma avaliaccedilatildeo positiva
O entendimento procurou sempre afastar a contradiccedilatildeo porque se ordena segundo uma
sintaxe na qual nada pode ser contraditoacuterio A identidade tal como estabelecida pela loacutegica
claacutessica eacute o que deve ser preservado Se haacute contradiccedilatildeo ela se resolve em um nada Em um
nada vazio vale ser lembrado
Se o ceticismo sempre teve ecircxito no seu combate ao dogmatismo eacute porque nunca se
furtou a atacar o ponto fraco do pensar de entendimento a saber que a contradiccedilatildeo sempre
pode ser obtida a partir da produccedilatildeo de antinomias Aleacutem disso o entendimento se apoacuteia em
uma ontologia que inviabiliza a sua proacutepria manutenccedilatildeo Tanto eacute assim que o ceacutetico consegue
reiteradamente estabelecer uma contradiccedilatildeo a partir daquilo que eacute posto unilateralmente pelo
discurso dogmaacutetico
Toda forma de oposiccedilatildeo que se apoacuteia na identidade abstrata de entendimento procura
sempre considerar o negativo como aquilo que natildeo existe ou para usar o vocabulaacuterio de
Hegel como um natildeo-ser Se algo eacute ele eacute idecircntico a si mesmo independente da relaccedilatildeo com
um outro O positivo natildeo se conecta ao negativo para se manter como positivo Ele eacute Esse
algo que eacute entretanto nunca eacute independente de sua relaccedilatildeo com um outro A um posto
determinado sempre se pode contrapor um outro determinado Em outras palavras uma
determinaccedilatildeo de entendimento eacute limitada por uma outra e desse modo mostra-se seu caraacuteter
finito Mas por que as determinaccedilotildees finitas quando no acircmbito do entendimento satildeo
relacionadas acabam finalmente por se contradizer Segundo Hegel a contradiccedilatildeo se efetiva
devido a esse ser finito apresentar-se como um absoluto O finito que como veremos a seguir
eacute aquilo que estaacute fadado a perecer no acircmbito do entendimento eacute encarado como se fosse um
absoluto O resultado disso eacute que a contradiccedilatildeo precisa ser evitada Se o finito fosse
315 Ibidem p 286 trad p 72 (ldquo[] ist die Wurzel aller Bewegung und Lebendigkeit nur insofern etwas in sich selbst einen Widerspruch hat bewegt es sich hat Trieb und Thaumltigkeitrdquo)
127
considerado como o que ele realmente eacute a saber como ldquoa oposiccedilatildeo que se contradiz em si
mesma (an sich selbst widersprechende Gegensatz)rdquo 316 a contradiccedilatildeo natildeo precisaria ser
evitada e o ceticismo natildeo seria mais considerado o fantasma que assombra a filosofia
Vejamos agora a partir de uma anaacutelise das categorias de finito e infinito como se
constitui essa gramaacutetica ontoloacutegica que precisa ser abandonada caso se pretenda que a
contradiccedilatildeo e o ceticismo natildeo sejam mais vistos como inimigos mortais da filosofia que tanto
horror causam no pensamento natildeo-especulativo
316 Ibidem p 290 trad p 77
128
O finito e o infinito
Para que possamos compreender o que eacute o finito tomaremos como ponto de partida a
categoria do ser-aiacute como qualidade tal como exposta na Doutrina do Ser na Enciclopeacutedia317
Assim veremos no sect 90 que o ser-aiacute unido com uma determinidade eacute a qualidade318
Na qualidade jaacute estaacute contida a negaccedilatildeo como um ser-aiacute e algo A negaccedilatildeo eacute o ser-outro
(Anderssein) desse ser-aiacute que eacute a qualidade Eacute ela que fornece a determinaccedilatildeo proacutepria da
qualidade O ser-aiacute eacute algo porque ele eacute determinado ou seja porque ele eacute um algo que natildeo
pode ser confundido com outro algo Ele eacute portanto este algo e natildeo eacute aquele outro O ser-aiacute
estaacute delimitado ele possui um limite A negaccedilatildeo diraacute Hegel eacute esse limite (Grenze) Essa
limitaccedilatildeo que atravessa esse algo faz com que ele seja finito O que natildeo eacute difiacutecil de se
compreender pois o algo por ser limitado necessariamente remete a um outro que o limita ldquoo
limite do algo se lhe torna objetivo no outrordquo319 O ser-aiacute se determina ao avanccedilar ateacute o ponto
em que se defronta com seu outro que eacute o seu limite
O ser-aiacute por ser limitado ao mesmo tempo tambeacutem eacute finito o que traz por
consequumlecircncia que ele estaacute destinado a ter um fim Segundo Hegel eacute proacuteprio das coisas finitas
o perecer (vergehen) ldquoo ser das coisas finitas como tal consiste em ter o germe do perecer
como seu ser-em-si (Insichsein) a hora de seu nascimento eacute a hora de sua morterdquo320 Se algo
perece eacute porque ele se altera o que implica numa negaccedilatildeo constante daquilo que se eacute ateacute o seu
fim O finito desse modo se altera porque ele se nega e esse negar-se significa que ele vai
aleacutem de si mesmo Eacute por esse motivo que Hegel afirma que as coisas finitas se relacionam
317 Cf GW 20 p 129 e ss trad p 186 e ss
318 Ibidem sect 90 p 129 trad p 186
319 Werke 8 E sect 92 Adendo p 197 trad p 189 (ldquo[hellip] dem Etwas wird im Anderen seine Grenze objektivrdquo) Ou ainda ldquoQuando noacutes dizemos das coisas que elas satildeo finitas com isto tambeacutem se entende que elas natildeo somente possuem uma determinidade a qualidade natildeo somente como realidade e determinaccedilatildeo que eacute em si que elas natildeo satildeo apenas limitadas ndash elas ainda tem fora de seu limite um ser-aiacute ndash mas que antes tambeacutem o natildeo-ser constitui sua natureza seu serrdquo (ldquo Wenn wir von den Dingen sagen sie sind endlich so wird darunter verstanden daszlig sie nicht nu eine Bestimmtheit haben die Qualitaumlt nicht nur als Realitaumlt und ansichseyende Bestimmung daszlig sie nicht bloszlig begrenzt sind sie haben so noch Daseyn ausser ihrer Grenze ndash sondern daszlig vielmehr das Nichtseyn ihre Natur ihr Seyn ausmacht rdquo) In GW 21 p 116 trad p 166
320 GW 21 p 116 trad p 166 (ldquodas Seyn der endlichen Dinge als solches ist den Keim des Vergehens als ihr Insichseyn zu haben die Stude ihrer Geburt ist die Stunde ihres Todesrdquo)
129
negativamente a si mesmas e nesse negar se remetem para aleacutem de si mesmas e de seu ser
(sich uumlber sich uumlber ihr Sein hinauszuschicken)321
Esse ir aleacutem de si mesmo do finito esse ir para um outro natildeo acontece como se esse
outro fosse exterior e indiferente ao algo a que estaacute vinculado Caso assim ocorresse a relaccedilatildeo
entre o algo e o outro natildeo teriacuteamos a efetiva negaccedilatildeo do finito E eacute isto que se passa quando o
finito natildeo eacute efetivamente negado e portanto natildeo vai aleacutem de si mesmo no seu outro que natildeo
seja indiferente a ele O que aiacute acontece eacute que o finito eacute negado tem um fim E entatildeo um novo
finito surge no lugar do anterior Esse novo finito tambeacutem eacute negado e assim um outro finito
surge e esse processo se reproduz de modo infinito Hegel denomina de maacute infinitude esse
processo322
ldquoA negaccedilatildeo em geral a qualidade o limite podem se conciliar com seu outro o ser-
aiacute tambeacutem o nada abstrato eacute abandonado para si como abstraccedilatildeo mas a finitude eacute como a
negaccedilatildeo fixada em si e estaacute por conseguinte rudemente defronte de seu afirmativo O finito
pode se deixar levar no fluxo ele eacute isto mesmo ser determinado ao seu fim mas somente ao
seu fim -- eacute antes o recusar se deixar levar afirmativamente ao seu afirmativo ao infinito e se
deixar ligar a ele encontra-se posto como inseparaacutevel de seu nada e com isto toda
conciliaccedilatildeo com seu outro com o afirmativo estaacute cortadardquo323
De um lado portanto temos um finito negado e de outro lado um finito afirmado O
finito assim natildeo tem inscrito nele mesmo o perecer Ele eacute tatildeo positivo quanto o outro finito
que se afirma no lugar daquele que foi negado O finito torna-se assim um absoluto Essa eacute a
321 Ibidem p 116 trad p 166
322 GW 20 E sect 94 p 130 trad p 189
323 GW 21 p 117 trad p 166-167 (ldquodie Negation uumlberhaupt Beschaffenheit Grenze vertragen sich mit ihrem Andern dem Daseyn auch das Abstracte Nichts wird fuumlr sich als Abstraction aufgegeben aber Endlichkeit ist die als an sich fixirte Negation und steht daher seinem Affirmativen schroff gegenuumlber Das Endliche laumlsst sich so in Fluszlig wohl bringen es ist selbst diszlig zu seinem Ende bestimmt zu seyn aber nur zu seinem Ende -- es ist vielmehr das Verweigern sich zu seinem Affirmativen dem Unendlichen hin affirmativ bringen mit ihm sich verbinden zu lassen es ist also untrennbar von seinem Nichts gesetzt und alle Vesoumlhnung mit seinem Andern dem Affirmativen dadurch abgeschnittenrdquo)
130
conclusatildeo a que chega Hegel324 Temos aqui um finito absolutizado E por meio dessa
sucessatildeo de finitos absolutizados como que perfilados numa linha se vai ao infinito
Com efeito a alternacircncia dos finitos soacute eacute possibilitada devido agrave separaccedilatildeo do algo e de
seu outro Esse finito assim tem a contradiccedilatildeo afastada de si Sem que um deles seja negado
natildeo se pode afirmar o outro Nesses termos eacute efetivamente impossiacutevel que a infinitude seja
outra coisa que uma sucessatildeo de finitos que nunca perecem
Para que a verdadeira infinitude venha agrave luz eacute preciso que o finito efetivamente
pereccedila Do ponto de vista da loacutegica que regula o entendimento natildeo pode ser realizado o
efetivo perecer do finito Este finito determinado de acordo com o princiacutepio de natildeo-
contradiccedilatildeo se afirma sem levar em conta seu negativo Seu outro o nega apenas
exteriormente Dentro desse quadro relacionar um finito qualquer ao seu outro isto eacute aquilo
que o nega significa estabelecer uma contradiccedilatildeo mas uma contradiccedilatildeo que natildeo se resolve
positivamente Os contraditoacuterios se anulam sem que se vaacute aleacutem disso um nada vazio e
abstrato
Mas eacute justamente porque o finito eacute unilateral que ele natildeo pode se afastar da
contradiccedilatildeo Ele eacute o que eacute por ser determinado por um outro que o limita E essa relaccedilatildeo dele
com seu outro natildeo eacute exterior O finito eacute aquilo que comporta em si seu outro Nessa relaccedilatildeo a
si ele se nega e torna-se outro a partir dele mesmo O que Hegel chama de negaccedilatildeo da
negaccedilatildeo325 Nessa negaccedilatildeo interna do finito da qual surge outro o finito se torna infinito 326
324 Cf ldquoEacute uma afirmaccedilatildeo expressa que o finito eacute inconciliaacutevel e natildeo unificaacutevel com o infinito que o finito eacute posto pura e simplesmente contra o infinito Ao infinito eacute atribuiacutedo o ser o ser absoluto perante ele se manteacutem afirmado o finito como o negativo do mesmo natildeo podendo ser unificado com o absoluto permanece ele absoluto por seu lado tambeacutemrdquo (ldquoEs ist die ausdruumlckliche Behauptung daszlig das Endliche mit dem Unendlichen unvertraumlglich und unvereinbar sey das Endliche dem Unendlichen schlechthin etgegen gesetzt sey Dem Unendlichen ist Seyn absolutes Seyn zugeschrieben ihm gegenuumlber bleibt so das Endliche festgehalten als das Negative desselben unvereinbar mit dem Unendlichen bleibt es absolut auf seiner eigenen Seiterdquo) In GW 21 p 117-118 trad p 167
325 Cf GW 21 p 135 trad p 188 Aqui diga-se de passagem ocorre a mesma dialeacutetica que acabamos de observar na contradiccedilatildeo especulativa e que a seguir veremos no meacutetodo (cap 5)
326 A respeito do surgimento do infinito a partir do finito e do relacionamento interno de ambos eacute oportuno retomar o seguinte comentaacuterio de Andreas Arndt ldquoComo eacute essa a identidade em si refletida de si mesma e do contraposto (Entgegensetzung) na medida em que ela se estende por sobre si mesma e seu contraacuterio (Gegenteil) entatildeo eacute assim tambeacutem o infinito concebido que ele se estende por sobre si mesmo e seu contraacuterio Esse resultado natildeo deve poreacutem basear-se numa prevalecircncia da identidade ou da infinitude mas sim que o finito deve a partir dele mesmo e sem coaccedilatildeo exterior ser suspenso na infinitude afirmativa e nesta descobrir (herausfinden) a
131
Capiacutetulo 2 - O meacutetodo dialeacutetico-especulativo
O dialeacutetico eacute o pulso da vida em geral
Hegel327
Como tivemos oportunidade de observar nas suas Preleccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia
mais especificamente quando tratou do ceticismo Hegel se referia a termos como conceito
absoluto ideacuteia especulativa ou ideacuteia filosoacutefica mas sem efetuar uma exposiccedilatildeo mais precisa
do significado desses termos em sua filosofia Essa exposiccedilatildeo laacute natildeo se encontra obviamente
por natildeo se tratar ali do local adequado para o desenvolvimento da mesma Todavia no
contexto em que elas aparecem a saber a discussatildeo a respeito da filosofia ceacutetica podemos
mais ou menos vislumbrar qual significado esses termos possuem em sua filosofia A tiacutetulo
meramente rememorativo o contexto no qual apareciam esses termos dizia respeito agrave
investigaccedilatildeo do relacionamento porventura existente entre o ceticismo (o antigo) e a filosofia
especulativa Que o ceticismo eacute uma filosofia ambivalente no sentido de que pode ser
aproximada do pensamento especulativo e ao mesmo tempo tambeacutem ser afastada dessa
forma filosoacutefica
Hegel procurava entatildeo mostrar que o ceticismo consistia numa forma filosoacutefica que
poderia ser incorporada agrave filosofia especulativa Uma hipoacutetese que eacute bem pouco provaacutevel que
o ceacutetico pudesse considerar como vaacutelida Grosso modo a especulaccedilatildeo parecer-lhe-ia apenas
mais uma forma bastante extravagante de dogmatismo
Sem pretender avanccedilar numa discussatildeo acerca da viabilidade ou natildeo da incorporaccedilatildeo do
ceticismo agrave filosofia especulativa nem dos motivos que talvez levassem a convencer o ceacutetico
da aceitaccedilatildeo dessa hipoacutetese ou dos motivos que embasassem sua recusa interessa-nos aqui
resoluccedilatildeo da contradiccedilatildeo no finitordquo in ARNDT A Dialektik und Reflexion zur Rekonstruktion des Vernunftbegriffs Hamburg Meiner 1994 p 190
327 Vorlesungen uumlber Logik und Metaphysik Heidelberg 1817 Mitgeschrieben von FAGood ed Karen Gloy In Vorlesungen Ausgewaumlhlte Nachschriften und Manuskripte Band 11 Hamburg Meiner 1992 p 13
132
retomar a Hegel na sua Ciecircncia da Loacutegica no ponto especiacutefico onde se faz a exposiccedilatildeo do
meacutetodo especulativo a saber o capiacutetulo final do livro a Ideacuteia Absoluta328 E antes de
continuar eacute preciso deixar consignado que eacute nesse capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica que
Hegel expotildee em detalhes o significado e o funcionamento desse meacutetodo especulativo e que
segundo o que laacute ele diz eacute o que podemos apreender torna possiacutevel agrave filosofia permanecer
imune aos ataques do ceticismo Apenas como menccedilatildeo Hegel chega inclusive a mostrar nesse
mesmo capiacutetulo como por meio do meacutetodo a filosofia se potildee a salvo da criacutetica ceacutetica
mediante o tropo da regressatildeo ao infinito329 e tambeacutem no que se refere agrave discussatildeo acerca do
comeccedilo da filosofia do tropo da hipoacutetese330 Na medida em que seja necessaacuterio faremos
remissatildeo a outros momentos da Doutrina do Conceito parte da Loacutegica na qual se insere o
capiacutetulo haacute pouco mencionado A escolha desse modo de proceder se deve ao fato de que
dado seu proacuteprio caraacuteter de fechamento do livro e dessa parte especiacutefica da Loacutegica ndash a Loacutegica
Subjetiva ndash tornasse necessaacuteria e mais clara a compreensatildeo acerca do que seraacute analisado a
partir da referecircncia a outros momentos da mesma Doutrina do Conceito
Vistas as coisas do acircngulo meramente formal a Doutrina do Conceito compotildee a terceira
parte da Ciecircncia da Loacutegica apoacutes a Doutrina do Ser e a Doutrina da Essecircncia
respectivamente Mas o que nos importa reter dessa posiccedilatildeo derradeira da Doutrina do
Conceito na economia do texto da Ciecircncia da Loacutegica eacute o seu significado filosoacutefico preciso o
conceito somente eacute tratado na terceira parte da obra pois sua implementaccedilatildeo estaacute relacionada
e dependente dos desdobramentos dialeacuteticos ocorridos nos dois momentos anteriores da
mesma Loacutegica ndash os jaacute citados Doutrina do Ser e Doutrina da Essecircncia Como Hegel assinala
em vaacuterias passagens da Ciecircncia da Loacutegica e tambeacutem da Loacutegica da Enciclopeacutedia ldquoo conceito
eacute assim a verdade do ser e da essecircncia [] Enquanto o conceito se demonstrou como a
328 Cf GW 12 pp 236-253
329 Cf HP I 170-172
330 Cf HP I 173-174
133
verdade do ser e da essecircncia que a ele retornaram os dois como ao seu fundamento o
conceito inversamente se desenvolveu a partir do ser como seu fundamentordquo331
A citaccedilatildeo de Hegel acima feita confirma o que haviacuteamos haacute pouco dito que esse terceiro
momento da Loacutegica a Doutrina do Conceito surge como resultado dos desdobramentos
dialeacuteticos anteriores ndash ou na liacutengua hegeliana de um processo de determinaccedilatildeo que no caso eacute
um processo de autodeterminaccedilatildeo ndash ocorridos na Doutrina do Ser e na Doutrina da Essecircncia
Mas o que eacute contudo mais interessante e agrave primeira vista perturbador eacute o fato de que o
conceito seja considerado o fundamento do ser e da essecircncia Como pode ser possiacutevel que o
fundamento somente venha a aparecer ao final
Da perspectiva do entendimento o que comumente acontece eacute que o fundamento de uma
ciecircncia ou ainda de modo mais simples de um argumento qualquer seja posto logo no iniacutecio
e entatildeo a partir dele teremos por exemplo o desenvolvimento de uma ciecircncia ou de um
argumento A questatildeo eacute que utilizar esse tipo de procedimento no mais das vezes torna-nos
vulneraacuteveis agraves investidas do ceticismo Como impedir que um fundamento qualquer possa
estar protegido do ataque a ele feito por meio de algum dos tropos ceacuteticos
Cremos que Hegel esteja ciente dessa fraqueza da maneira tradicional de fundamentaccedilatildeo
perante a criacutetica que a mesma possa sofrer por parte do ceticismo Jaacute no primeiro paraacutegrafo da
Enciclopeacutedia ele chama a atenccedilatildeo para esse problema do fundamento ao se referir agrave
dificuldade de se instituir um comeccedilo para a filosofia ldquoporque um comeccedilo como algo
imediato faz sua pressuposiccedilatildeo ou melhor ele mesmo eacute uma pressuposiccedilatildeordquo332 Ora o que
Hegel natildeo diz mas aiacute estaacute impliacutecito eacute apenas que da mesma maneira que posso fazer uma
331 Cf GW 20 E sect159 p 174 trad cit p 288 (ldquoDer Begriff ist hiemit die Wahrheit des Seyns und des Wesens [hellip] Indem der Begriff sich als die Wahrheit des Seyns und Wesens erwiesen hat welche beide in ihm als in ihren Grund zuruumlckgegangen sind so hat er umgekehrt sich aus dem Seyn als aus seinem Grunde entwickeltrdquo) Ou ainda ldquoSob este aspecto o conceito eacute em primeiro lugar considerado em geral como o terceiro com respeito ao ser e agrave essecircncia ao imediato e agrave reflexatildeo Ser e essecircncia satildeo nessa medida os momentos de seu vir-a-ser poreacutem ele eacute o fundamento e a verdade deles como a identidade na qual soccedilobraram (untergegangen sind) e estatildeo contidos Eles estatildeo nele contidos porque ele eacute seu resultado mas natildeo estatildeo mais como ser e essecircncia eles soacute possuem essa determinaccedilatildeo na medida em que natildeo retornaram a essa sua unidaderdquo (ldquoDer Begriff ist von dieser Seite zunaumlchst uumlberhaupt als das Dritte zum Seyn und Wesen zum Unmittelbaren und zur Reflexion anzusehen Seyn und Wesen sind insofern die Momente seines Werdens er aber ist ihre Grundlage und Wahrheit als die Identitaumlt in welcher sie untergegangen und enthalten sind Sie sind in ihm weil er ihr Resultat ist enthalten aber nicht mehr als Seyn und als Wesen diese Bestimmung haben sie nur insofern sie noch nicht in diese ihre Einheit zuruumlckgegangen sindrdquo) Cf GW 12 p 11 trad p 249
332 Cf GW 20 E sect 1 p 39 trad cit p 40 (ldquoda ein Anfang als ein Unmittelbares eine Voraussetzung macht oder vielmehr selbst eine solche istrdquo)
134
pressuposiccedilatildeo um outro pode pressupor algo que se contraponha agrave primeira pressuposiccedilatildeo e
assim natildeo haacute como se decidir por uma ou por outra sem que essa decisatildeo seja considerada
arbitraacuteria
Hegel pretende que o modo de proceder com respeito agrave fundamentaccedilatildeo na Ciecircncia da
Loacutegica natildeo sofra da mesma fraqueza que acabou por levar o entendimento a tornar-se
vulneraacutevel agrave criacutetica ceacutetica Como ele declara no iniacutecio da Doutrina do Conceito o conceito333
apesar de somente vir ao final constitui o fundamento absoluto mas que esse fundamento
necessita ter-se feito como fundamento334
O conceito eacute portanto o fundamento mas ele somente poderaacute vir a lume como
fundamento a partir de um processo dialeacutetico que comeccedila com o ser e passa pela essecircncia Eacute
justamente no uacuteltimo capiacutetulo da Loacutegica a Ideacuteia Absoluta que Hegel nos apresenta esse
meacutetodo dialeacutetico que eacute o motor e o fundamento natildeo soacute de todo o desenvolvimento da Loacutegica
mas tambeacutem da sua filosofia como um todo Ocorre que esse fundamento precisa ser
justificado e ldquouma tal intelecccedilatildeo eacute ela mesma um conhecer filosoacutefico que portanto soacute incide
no interior da filosofia Uma explicaccedilatildeo preacutevia deveria por isso ser uma explicaccedilatildeo natildeo-
filosoacutefica e natildeo poderia ser mais que um tecido de pressuposiccedilotildees asseveraccedilotildees e
raciociacutenios isto eacute de afirmaccedilotildees contingentes contra as quais se poderiam sustentar com o
mesmo direito afirmaccedilotildees opostasrdquo335
Com efeito qualquer forma de explicaccedilatildeo preacutevia a respeito do fundamento implicaria que
jaacute se partisse de algo dado e injustificado sujeito portanto a ser combatido por uma outra
afirmaccedilatildeo que a ela se contraponha com o mesmo direito que a primeira Natildeo haacute como natildeo
notar nessa declaraccedilatildeo de Hegel a preocupaccedilatildeo com um possiacutevel ataque ceacutetico por meio do
333 Quando nos referimos a conceito tambeacutem podemos entender esse termo como significando natildeo apenas o conceito em sentido estrito tal como exposto na mesma Doutrina do Conceito mas tambeacutem que esse termo abranja todas as configuraccedilotildees especiacuteficas do conceito nesta terceira parte da Loacutegica ndash assim como na Doutrina do Ser e na Doutrina da Essecircncia ndash afinal a ideacuteia absoluta tambeacutem eacute conceito e eacute o que Hegel chamaraacute de o conceito adequado
334 Cf GW 12 p 11 trad p 249
335 Cf GW 20 E sect10 p 50trad cit p 49 (ldquoEine solche Einsicht ist aber selbst philosophisches Erkennen das daher nur innerhalb der Philosophie faumlllt Eine vorlaumlufige Explication wuumlrde hiemit eine unphilosophische seyn sollen und koumlnnte nicht mehr seyn als ein Gewebe von Voraussetzungen Versicherungen und Raisonnements di von zufaumllligen Behauptungen denen mit demselben Rechte die entgegengesetzten gegenuumlber versichert werden koumlnnenrdquo)
135
exerciacutecio daquilo que se poderia chamar de ldquoprinciacutepio programaacutetico do pirronismordquo opor a
todo argumento ou proposiccedilatildeo o argumento ou proposiccedilatildeo que se lhe contraponha336
A justificaccedilatildeo do fundamento eacute a maneira que o filoacutesofo encontra para evitar que a
filosofia caia viacutetima das aporias ceacuteticas Nesse contexto o comeccedilo desse processo dialeacutetico
que termina com o estabelecimento do fundamento absoluto pode ser considerado como o faz
Hegel condiccedilatildeo a partir da qual se chega ao fundamento todavia essa condiccedilatildeo que eacute o ser
natildeo eacute o incondicionado em-si e para-si337 A este soacute se alcanccedila ao final Esse comeccedilo
portanto natildeo eacute o incondicionado que condicionaria o saber dele derivado Ele eacute apenas a
condiccedilatildeo da qual se parte para ao final do percurso alcanccedilar o fundamento absoluto
Mas entatildeo algueacutem poderia perguntar De que caraacuteter se reveste esse ser que eacute o comeccedilo e
que natildeo o torna viacutetima do ceticismo A um ser posto diria entatildeo o ceacutetico se pode contrapor
um outro com o mesmo direito A resposta de Hegel eacute a seguinte este ser do qual se parte eacute
completamente indeterminado isto eacute natildeo comporta nenhuma determinaccedilatildeo em si mesmo e
nesse sentido ele eacute tambeacutem completamente abstrato338 Essa falta de determinaccedilatildeo interna e
externa que assim permite consideraacute-lo um puro imediato eacute a ldquocondiccedilatildeordquo de que a nosso ver
Hegel utiliza para afastar a filosofia de um ataque ceacutetico O comeccedilo estaria passiacutevel de ser
criticado pelo ceacutetico caso fosse um mediatizado quer dizer caso contivesse em si uma
determinaccedilatildeo algo que acarretaria a existecircncia de uma relaccedilatildeo de um para com um outro de
um determinado relacionado a outro determinado Dessa maneira natildeo teriacuteamos efetivamente
um comeccedilo pois um comeccedilo que eacute o ser no qual jaacute houvesse um conteuacutedo seria jaacute mediado
e desse modo passiacutevel da criacutetica ceacutetica
Eacute curioso notar que Hegel chame a esse puro ser imediato e indeterminado de absoluto
Mas absoluto aqui natildeo significa que estejamos na posse daquele incondicionado do qual se
derive o sistema assim como poderia ocorrer pelo menos eacute o que nos parece dizer Hegel aos
filoacutesofos dogmaacuteticos O comeccedilo tem de ser absoluto no sentido de que ldquoele natildeo permite nada
pressupor natildeo deve ser mediado por nada nem ter um fundamentordquo339 O absoluto ou o puro
336 Cf HP I 12
337 Cf GW 12 p 22 tr p263
338 Cf GW 21 59 tr p 94
339 Cf GW 21 56 trad p 91 (ldquo[] er darf so nichts voraussetzen muszlig durch nichts vermittelt seyn noch einen Grund habenrdquo) Ou ainda ldquoQue o comeccedilo comeccedilo da filosofia eacute dele natildeo pode ser tirado propriamente nenhuma determinaccedilatildeo mais precisa ou um conteuacutedo positivo para o mesmo Pois aqui no comeccedilo onde a coisa
136
ser portanto eacute o que natildeo estaacute a nada relacionado mas nessa sua indeterminaccedilatildeo ele eacute ao
mesmo tempo unilateral340 Como veremos adiante por meio da exposiccedilatildeo do meacutetodo essa
unilateralidade seraacute na terminologia da especulaccedilatildeo hegeliana suspensa mediante a
autodeterminaccedilatildeo dialeacutetica desse ser Eacute somente com a exposiccedilatildeo do meacutetodo da filosofia
especulativa que teremos talvez condiccedilotildees de melhor compreender o que eacute esse comeccedilo ao
mesmo tempo unilateral e absoluto e que aleacutem disso por estarmos fora do ciacuterculo do
entendimento estamos eacute o que pretende Hegel fora do alcance da criacutetica ceacutetica
Toda essa longa digressatildeo acerca do porquecirc o conceito constitui o terceiro momento da
Ciecircncia da Loacutegica obrigou-nos a que nos remetecircssemos a abordar a temaacutetica da
fundamentaccedilatildeo da filosofia em Hegel Desse modo pudemos comeccedilar a compreender porque
na Loacutegica hegeliana o fundamento somente se estabelece ao final apoacutes um processo dialeacutetico
de justificaccedilatildeo que tem seu iniacutecio no puro ser indeterminado Se o conceito eacute a verdade do ser
e da essecircncia na unidade de ambos no mesmo conceito pareceria estranho que se comeccedilasse
com algo que pressupotildee o conhecimento do que sejam ser e essecircncia ou como assinala Hegel
ldquoentatildeo surgiria a questatildeo do que se entende por ser e essecircncia e como os dois termos vecircm a
condensar-se na unidade do conceitordquo341
O conceito como ideacuteia absoluta fundamenta regressivamente todas as etapas do percurso
da Loacutegica Como meacutetodo estaacute na base do processo dialeacutetico que se desenrola do ser ateacute a
ideacuteia absoluta todavia soacute temos conhecimento do que eacute o meacutetodo a partir desse processo de
justificaccedilatildeo do mesmo por meio do desdobrar-se do seu conteuacutedo que nada menos eacute que o
sistema do loacutegico342
mesma ainda natildeo estaacute aiacute-presente a filosofia eacute uma palavra vazia ou uma qualquer representaccedilatildeo suposta natildeo justificadardquo (ldquoDaszlig der Anfang Anfang der Philosophie ist daraus kann eigentlich auch keine naumlhere Bestimmung oder ein positiver Inhalt fuumlr denselben genommen werden Denn die Philosophie ist hier im Anfange wo die Sache selbst noch nicht vorhanden ist ein leeres Wort oder irgend eine angenommene ungerechtfertigte Vorstellungrdquo) In GW 21 59 trad p 94
340 ldquoMas ele precisa ser do mesmo modo tomado essencialmente na sua unilateralidade de ser o puro-imediato mesmo porque ele aqui estaacute como comeccedilordquo (ldquoAber er muszlig ebenso wesentlich nur in der Einseitigkeit das Rein-Unmittelbare zu seyn genommen werden eben weil es hier als der Anfang istrdquo) In GW 21 59 trad p 94
341 Cf Werke 8 E sect159 Adendo p 305 trad citp 289 (ldquo[]so entstaumlnde die Frage was man sich unter dem Sein und was unter dem Wesen zu denken hat und wie diese beiden dazu kommen in die Einheit des Begriffs zusammengefaszligt zu werdenrdquo)
342 Cf GW 20 E sect237 pp 228-229 trad cit p 367
137
Dentro do contexto das anaacutelises precedentes podemos agora compreender porque a
exposiccedilatildeo do meacutetodo somente seja feita no capiacutetulo final do livro Cabe portanto agora
tratar mediante a anaacutelise do capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica ndash a Ideacuteia Absoluta ndash de
compreender o significado do meacutetodo especulativo meacutetodo pelo qual a filosofia eacute o que
almeja Hegel potildee-se entre outras coisas a salvo da criacutetica do ceticismo ao dogmatismo
De acordo com o exposto ficou consignado que a determinaccedilatildeo da ideacuteia ou mais
precisamente da ideacuteia absoluta envolveu um processo dialeacutetico de determinaccedilatildeo
consubstanciado no todo do percurso da Ciecircncia da Loacutegica343 Essa ideacuteia que eacute como jaacute
vimos o fundamento da Loacutegica carrega em si todas as determinaccedilotildees desdobradas no
decorrer do processo O interesse principal da filosofia eacute a ideacuteia absoluta pois esta eacute seu uacutenico
objeto e conteuacutedo Cabe agrave filosofia reconhececirc-la nas diversas configuraccedilotildees que ela assume
no seu processo de autodeterminaccedilatildeo ou particularizaccedilatildeo Mas a ideacuteia absoluta todavia ainda
que determinada por todas as figuras apresentadas no curso da Loacutegica344 mostra-se
determinada enquanto ideacuteia absoluta como forma
Nessa sua determinaccedilatildeo de forma que faz com que a ideacuteia seja portanto ldquopura e
simplesmente como a ideacuteia universalrdquo345 natildeo tem ela como forma uma oposiccedilatildeo ao conteuacutedo
como se este fosse apenas como um outro e como um dado perante a forma e que a ela se
relacionasse346 Em outras palavras a forma natildeo eacute apenas uma pura forma abstrata que tem
diante de si e em oposiccedilatildeo um conteuacutedo dado qualquer Apesar da ideacuteia absoluta apresentar-se
na sua determinidade peculiar de forma isto natildeo significa eacute o que veremos a seguir que seu
conteuacutedo seja composto de um material tomado dalhures e completamente desvinculado do
processo de autodeterminaccedilatildeo da ideacuteia Ela estaacute na origem desse processo de determinaccedilatildeo do
343 Cf GW 12 p 237 trad p 561
344 ldquoA ideacuteia como unidade da ideacuteia subjetiva e da objetiva eacute o conceito da ideacuteia para o qual a ideacuteia como tal eacute o objeto para o qual o objeto eacute ela um objeto em que vieram reunir-se todas as determinaccedilotildeesrdquo In GW 20 E sect236 p 228 trad cit p 366
345 Cf GW 12 p 237 trad p 561 (ldquoals die schlechthin allgemeine Ideerdquo)
346 Cf Ibidem p 237 trad p 561
138
conteuacutedo mas considerada contudo na sua pura essecircncia como ela se encontra incluiacuteda na
mais simples identidade em seu conceito a mesma ainda natildeo se fez aparecer como
determinaccedilatildeo da forma347 A Loacutegica segundo Hegel representa o automovimento da ideacuteia
absoluta mas que nesse efetivo movimentar-se a ideacuteia estaacute presente apenas como aquilo que
impulsiona348 o processo e na medida em que este se cristaliza em formas determinadas Eacute
como se a ideacuteia jaacute natildeo mais aiacute estivesse assim como a palavra originaacuteria ldquoque eacute uma
exteriorizaccedilatildeo mas uma tal que como exterior imediatamente desaparece na medida
justamente que existerdquo349
Ainda que preliminarmente acabamos de observar a existecircncia de uma imbricaccedilatildeo muacutetua
entre forma e conteuacutedo na ideacuteia absoluta mas o que interessa agora considerar pela anaacutelise do
meacutetodo diz respeito a o que eacute essa forma que constitui a ideacuteia e aleacutem disso uma forma que
natildeo pode ser distinguida de seu conteuacutedo mas que na sua apresentaccedilatildeo como meacutetodo seu
conteuacutedo natildeo estaacute ainda desdobrado Isto somente ocorreraacute como decorrecircncia do processo de
determinaccedilatildeo dessa forma
Segundo Hegel o meacutetodo como forma e ideacuteia universal natildeo pode ser confundido
como um simples modo de conhecer entre outros Ele eacute dotado de uma abrangecircncia bem
maior e para ser mais preciso como ldquoa alma de toda objetividade e todo conteuacutedo
determinado somente tem sua verdade na formardquo350 O meacutetodo como veremos eacute bem mais
que um simples modo de conhecer que um simples modo de conhecer determinados
conteuacutedos Ele ldquoeacute o conceito que se sabe a si mesmo que tem a si mesmo por objeto como o
absoluto tanto subjetivo quanto objetivo por conseguinte como o puro corresponder do
conceito e de sua realidade como uma existecircncia que eacute ele (o conceito) mesmordquo351
347 Cf Ibidem p 237 trad p 560
348 Vale notar que Hegel tambeacutem chama a ideacuteia absoluta de supremo e uacutenico impulso (houmlchster und einziger Trieb) Cf Ibidem p 238 trad cit p 562
349 Cf GW 12 p 237 trad 560 (ldquodas eine Aeusserung ist aber eine solche die als Aeusseres unmittelbar wieder verschwunden ist indem sie istrdquo)
350 Ibidem p 237 trad p 561 (ldquo[hellip] die Seele aller Objectivitaumlt ist und aller sonst bestimmte Inhalt seine Wahrheit allein in der Form hat rdquo)
351 Ibidem p 238 trad p 561 (ldquoist daraus als der sich selbst wissende sich als das Absolute sowohl Subjective als Objective zum Gegenstande habende Begriff somit als das reine Entsprechen des Begriffs und seiner Realitaumlt als eine Existenz die er selbst ist hervorgegangen rdquo)
139
Mas antes de prosseguir na anaacutelise da Ideacuteia Absoluta talvez seja necessaacuterio retroceder
um pouco na Loacutegica e ainda que sumariamente tratar do significado do conceito de conceito
e tambeacutem do significado de ideacuteia na filosofia hegeliana Tal remissatildeo aos momentos da
Loacutegica no qual satildeo expostos e comentados esses termos eacute relevante na medida em que assim
ficaraacute mais claro o motivo pelo qual a Ideacuteia Absoluta ndash ou o meacutetodo ndash seja considerada o
conceito que sabe a si mesmo tanto subjetiva quanto objetivamente ou ainda que o meacutetodo
seja ldquoo movimento do proacuteprio conceito [] que o conceito eacute tudo e seu movimento eacute a
atividade universal absoluta o movimento que se determina e se realiza a si mesmordquo352
Natildeo pretendemos como haacute pouco foi dito efetuar uma anaacutelise pormenorizada do
conceito hegeliano de conceito Queremos antes apenas apresentaacute-lo em suas linhas gerais e
na medida que possamos entatildeo nos municiar dos elementos suficientes para compreender
porque a ideacuteia eacute o conceito adequado353 O conceito tal como veremos aqui eacute apenas o que
poderiacuteamos chamar de conceito em sentido estrito
Assim o conceito considerado de modo geral compotildee-se de trecircs momentos
universalidade particularidade e singularidade No seu processo de determinaccedilatildeo ou
diferenciaccedilatildeo ele se daacute cada um desses momentos que mesmo considerados cada um na sua
determinaccedilatildeo proacutepria cada um deles natildeo deixa de espelhar o conceito como um todo354 Esse
processo de determinaccedilatildeo eacute segundo Hegel um processo dialeacutetico fundado no proacuteprio
conceito e mediante o qual ele se produz a partir de si mesmo e assim passa agrave realidade355
Como o conceito portanto somente se torna aquilo que por ele proacuteprio foi gerado e nesse
sentido ele eacute livre em virtude dessa sua autodeterminaccedilatildeo
352 Ibidem p 238 trad p 562 (ldquodie Bewegung des Begriffs selbst [hellip] daszlig der Begriff Alles und seine Bewegung die allgemeine absolute Thaumltigkeit die sich selbst bestimmende und selbst realisirende Bewegung istrdquo)
353 Ibidem p 44 trad p 294
354 Ibidem p32 trad p 277 e tambeacutem GW 20 E sect 160 p 177 trad p 292
355 GW 12 p 25 trad p 267
140
A determinaccedilatildeo completa do conceito como conceito total se faz por essa
diferenciaccedilatildeo de si a partir de si mesmo que conforme Hegel eacute uma dupla negaccedilatildeo ndash negaccedilatildeo
da negaccedilatildeo ndash por meio da qual o conceito se relaciona a si e assim constitui uma absoluta
identidade consigo mesmo356 Independente do conceito posto no seu momento de
universalidade todo esse processo acima descrito tambeacutem pode ser chamado de universal Eacute o
que Hegel faz ao referi-lo como a universalidade do conceito357 Desse modo o universal
pode ser tanto o processo de determinaccedilatildeo no seu todo e efetuado mediante essa negatividade
absoluta358 quanto o universal que eacute momento do conceito nessa sua mesma determinaccedilatildeo
Para que fique claro o que eacute o conceito como nele ocorrem esses trecircs momentos
constituintes do mesmo eacute preciso compreender como essa dupla negaccedilatildeo nele opera Assim
o universal primeiramente eacute o indeterminado sua determinaccedilatildeo eacute esta mas ele entatildeo torna-se
particular ao se determinar ou seja ao se negar ndash primeira negaccedilatildeo ndash esse particular por sua
vez que adveacutem da negaccedilatildeo do universal eacute entatildeo negado ndash segunda negaccedilatildeo ou negaccedilatildeo da
negaccedilatildeo ndash e dessa maneira se potildee a singularidade359 A segunda negaccedilatildeo mediante a qual
surge a singularidade leva o conceito a tornar-se novamente universal mas um universal
superior um universal que em virtude dessa negatividade absoluta pela qual o conceito eacute
relaccedilatildeo a si saiu de si ao se determinar mas termina por retornar novamente para junto de
si360 Eacute importante deixar registrado que nesse seu sair de si isto eacute nesse determinar-se do
conceito a determinidade que surgiu eacute uma diferenccedila (Unterschied) mas uma diferenccedila que
adveio do proacuteprio determinar-se do conceito361
356 Ibidem p 33 trad p 279
357 Ibidem p 33 trad p 279
358 O universal no sentido indicado tambeacutem eacute chamado de potecircncia criadora (schoumlpferische Macht) como negatividade absoluta Cf GW 12 p 36 trad p 283
359 Ibidem p 35 trad p 281
360 ldquoOra o universal do conceito natildeo eacute simplesmente algo comum ante o qual o particular tem sua consistecircncia para si mas eacute antes o que se particulariza (o que se especifica) a si mesmo e em seu outro permanece em uma imperturbada clareza junto de si mesmordquo (ldquoNun aber ist das Allgemeine des Begriffs nicht bloszlig ein Gemeinschaftliches welchem gegenuumlber das Besondere seinen Bestand fuumlr sich hat sondern vielmehr das sich selbst Besondernde (Spezifizierende) und in seinem Anderen in ungetruumlbter Klarheit bei sich selbst Bleibenderdquo) Cf Werke 8 E sect163 Adendo p 311 trad p 297
361 GW 12 p 38 trad p 285
141
A singularidade nota Hegel ao mesmo tempo que leva o conceito a retornar a si
mesmo com a negaccedilatildeo da particularidade por meio da operaccedilatildeo da negaccedilatildeo da negaccedilatildeo
tambeacutem faz com que o conceito ao se singularizar se perca362 Essa perda do conceito
esclarece Hegel diz respeito ao fato de que ele ao tornar-se singular363 ele se potildee (treten) na
realidade efetiva (Wirklichkeit) Eacute como se o conceito deixasse de ser essa dialeacutetica oriunda de
sua proacutepria atividade e se tornasse algo soacutelido e concreto Pareceria que o conceito desse
modo natildeo mais pudesse levar adiante esse processo de autodeterminaccedilatildeo Cremos que seja
nesse sentido em que haacute uma espeacutecie de cristalizaccedilatildeo do conceito por meio de sua efetiva
penetraccedilatildeo na realidade que Hegel considere haver uma perda do conceito
O conceito poderiacuteamos entatildeo dizer torna-se realidade apenas quando eleva-se agrave ideacuteia
ldquoque eacute somente a unidade do conceito e da realidaderdquo364 Uma realidade que eacute criaccedilatildeo do
proacuteprio conceito365 Mas neste momento ainda temos apenas o conceito em sua abstraccedilatildeo
Conceito abstrato aqui deve ser entendido segundo Hegel portanto no sentido de que ldquoo
elemento do conceito eacute o pensar em geral e natildeo o sensiacutevel empiricamente concreto e de outra
parte enquanto natildeo eacute ainda a ideacuteiardquo366
E uma vez feitas as consideraccedilotildees acima a respeito da estrutura do conceito cabe
agora tratar do conceito que se torna realidade ou mais precisamente da ideacuteia
O conceito stricto sensu foi o que acabamos ver tem apenas em projeto aquilo de que
a ideacuteia seraacute a realizaccedilatildeo a produccedilatildeo da objetividade que adveacutem da proacutepria atividade do
conceito como ideacuteia
362 Ibidem p 51 trad p 303
363 Hegel tambeacutem se refere agrave singularidade como a determinidade determinada
364 GW 12 p 20 trad p 262 (ldquo[hellip] welche erst die Einheit des Begriffs und der Realitaumlt ist rdquo)
365 Ibidem p 36 trad p 283
366 Cf GW 20 E sect164 p 180 trad p 299 (ldquo[]als das Denken uumlberhaupt und nicht das empirisch concrete Sinnliche sein Element theils als er noch nicht die Idee istrdquo)
142
O conceito como ideacuteia eacute tanto subjetivo quanto objetivo ldquoA ideacuteia eacute o verdadeiro em si
e para si a unidade absoluta do conceito e da objetividade Seu conteuacutedo ideal natildeo eacute outro que
o conceito em suas determinaccedilotildees seu conteuacutedo real eacute somente a exposiccedilatildeo do conceito que
ele se daacute na forma de um ser-aiacute exterior e estando essa figura incluiacuteda na idealidade do
conceito na sua potecircncia assim se manteacutem na ideacuteiardquo367
A subjetividade da ideacuteia natildeo pode ser tomada como aquela que se relacionasse a um
objeto que fosse independente da proacutepria atividade subjetiva A determinaccedilatildeo da objetividade
eacute fruto da atividade subjetiva como negatividade absoluta O que eacute posto eacute posto pelo sujeito
torna-se diferente dele mas esse diferente retorna agrave identidade com o sujeito por meio dessa
negaccedilatildeo autoreferencial A objetividade assim natildeo estaacute afastada e separada do sujeito que a
ela se relaciona Natildeo temos aqui um sujeito como uma mera forma abstrata que exteriormente
se relacionasse a um objeto dado O sujeito se determina ndash e nesse sentido ele eacute autofinalidade
e impulso ndash e nessa sua atividade a objetividade toma forma e adquire subsistecircncia ao estar
perpassada pelo sujeito368 A objetividade dessa maneira tem sua consistecircncia e sentido
vinculada agrave atividade subjetiva da qual se originou e agrave qual retorna por meio desse processo
dialeacutetico imanente
O conceito realizado da ideacuteia se apresenta de modo condensado nessa unidade do
conceito e da objetividade na qual estaacute resolvido (aufgeloumlszligst) o processo de determinaccedilatildeo da
ideacuteia processo pelo qual a ideacuteia eacute ldquo [] a relaccedilatildeo da subjetividade sendo para si do simples
conceito e de sua objetividade distinta dela [] Ela eacute como essa relaccedilatildeo o processo de se
separar (dirimieren) na individualidade e na natureza inorgacircnica desta e de trazer novamente
essa por sob o poder (Gewalt) do sujeito e de retornar agrave primeira simples universalidade A
identidade da ideacuteia consigo mesma eacute uma e a mesma coisa com o processordquo369
367 Cf Ibidem E sect213 p 215 trad p 348 (ldquoDie Idee ist das Wahre an und fuumlr sich die absolute Einheit des Begriffs und der Objectivitaumlt Ihr ideeller Inhalt ist kein anderer als der Begriff in seinen Bestimmungen ihr reeller Inhalt ist nur seine Darstellung die er sich in der Form aumluszligerlichen Daseyns gibt und diese Gestalt in seiner Idealitaumlt eingeschlossen in seiner Macht so sich in ihr erhaumlltrdquo)
368 GW 12 p 176 trad p 475-476
369 Ibidem p 177 trad p 476-477 (ldquo[] die Beziehung der fuumlr sich seyenden Subjectivitaumlt des einfachen Befriffs und seiner davon unterschiedenen Objectivitaumlt [] Sie ist als diese Beziehung der Proceszlig sich in die Individualitaumlt und in deren unorganische Natur zu dirimiren und wieder diese unter die Gewalt des Subjects
143
A par das exposiccedilotildees efetuadas a respeito do conceito como conceito e da ideacuteia torna-
se mais faacutecil eacute o que cremos apreender o significado desse meacutetodo que eacute o movimento do
conceito em sua maior amplitude do conceito que se autodetermina e dessa maneira
perpassa e daacute forma agrave objetividade que como jaacute tivemos oportunidade de observar eacute fruto de
sua proacutepria atividade Pela atividade conceitual do meacutetodo atuante em cada coisa a razatildeo
pode por meio de si proacutepria encontrar e reconhecer a si mesma em tudo370
Cabe agora contudo avanccedilar propriamente na analise do meacutetodo isto eacute na anaacutelise
daquilo em que consiste a operaccedilatildeo efetiva desse meacutetodo por meio do qual o conceito se
realiza
Com efeito no iniacutecio de sua exposiccedilatildeo do ldquomecanismordquo de funcionamento do meacutetodo
Hegel nos chama a atenccedilatildeo para o fato de que as determinaccedilotildees que constituem o conceito e
suas relaccedilotildees tem de ser consideradas agora no seu significado de determinaccedilotildees do meacutetodo
As determinaccedilotildees do conceito a saber universalidade particularidade e singularidade eacute o
que adiante veremos reaparecem como as determinaccedilotildees que articulam o meacutetodo
A universalidade
Assim para comeccedilar do comeccedilo como jaacute o proacuteprio Hegel pede371 eacute preciso que
compreendamos o que eacute esse comeccedilo a partir do qual se inicia a determinaccedilatildeo do conceito
como ideacuteia absoluta
No comeccedilo o que pode entatildeo haver No comeccedilo apenas haacute um imediato e um
imediato que como determinaccedilatildeo conceitual ldquotem o sentido e a forma da universalidade
abstratardquo372
zuruumlckzubringen und zu der ersten einfachen Allgemeinheit zuruumlckzukehren Die Identitaumlt der Idee mit sich selbst ist ein mit dem Processerdquo)
370 Ibidem p 238 trad p 562
144
Anteriormente tivemos oportunidade de observar373 na importante questatildeo acerca do
comeccedilo da filosofia que somente torna-se possiacutevel cogitar de um comeccedilo que natildeo seja
arbitraacuterio e nesta medida seria ele totalmente vulneraacutevel agrave criacutetica ceacutetica se esse comeccedilo
implique a total falta de pressuposiccedilotildees ou como prefere Hegel que jaacute natildeo seja um mediado
e por isso entatildeo estaria em relaccedilatildeo com um outro A mediaccedilatildeo envolve a relaccedilatildeo de um para
com um outro Se pensarmos por conseguinte no tropo da relatividade o que faz o ceacutetico
Ele mostra por meio desse tropo que as coisas em geral (natildeo importa se sensiacuteveis ou
inteligiacuteveis) acabam aparecendo sempre numa determinada relaccedilatildeo entre elas que essa
relatividade de todas as coisas afasta a hipoacutetese da constituiccedilatildeo de algo natildeo-relativo logo
absoluto Nesse sentido compreendemos a preocupaccedilatildeo de Hegel com a necessidade de um
comeccedilo que natildeo seja mediado Por isso a declaraccedilatildeo tanto no comeccedilo da Ciecircncia da Loacutegica
quanto no seu uacuteltimo capiacutetulo A Ideacuteia Absoluta a respeito do comeccedilo consistir em um
imediato
O imediato eacute sem pressupostos portanto ele natildeo eacute posto pois caso assim o fosse
seria um mediado Mas se ele eacute imediato diria o ceacutetico ele eacute um posto e como tal eacute possiacutevel
que um outro seja imediatamente contraposto a ele com o mesmo direito Ocorre aqui no
entanto que Hegel natildeo pensa o imediato nesses termos Imediato segundo ele eacute o abstrato e
o completamente indeterminado Se ele eacute imediato eacute o que o proacuteprio significado da palavra
nos diz eacute porque eacute natildeo-mediado A mediaccedilatildeo envolve a determinaccedilatildeo logo se temos o
imediato temos o indeterminado No comeccedilo soacute temos o indeterminado ldquo[] porque o
comeccedilo como comeccedilo do pensar deve ser totalmente abstrato universal totalmente forma
sem nenhum conteuacutedordquo374
Esta universalidade que constitui o comeccedilo por ser imediata e indeterminada
possuiraacute e de acordo com a discussatildeo em torno do comeccedilo da Loacutegica375 tambeacutem no meacutetodo
o significado do ser376
371 Cf Ibidem p 239 trad p 563
372 Ibidem p 239 trad p 563 (ldquo[] den Sinn und die Form abstracter Allgemeinheit hatrdquo)
373 Ver a propoacutesito nossa discussatildeo a respeito do comeccedilo da filosofia agraves paacuteginas 132-137
374 GW 21 p 60 trad p 95 (ldquo[hellip] weil der Anfang als des Denkens ganz abstract ganz allgemein ganz Form ohne allen Inhalt seyn sollrdquo
375 Cf GW 21 ldquoCom que tem de ser feito o comeccedilo da ciecircnciardquo (ldquoWomit muszlig der Anfang der Wissenschaft gemacht werdenrdquo) pp 53-65 trad pp 87-101
145
Nessa aproximaccedilatildeo da universalidade imediata com o ser haacute dois aspectos a serem
considerados em primeiro lugar o fato do meacutetodo ser o ponto de chegada de toda a Loacutegica e
ao mesmo tempo seu fundamento em segundo lugar o caraacuteter abstrato e indeterminado do
puro ser
Com respeito ao primeiro aspecto haacute que se lembrar o que jaacute foi comentado acerca do
fundamento se constituir apenas ao final do processo de determinaccedilatildeo do conceito na
Loacutegica377 O fundamento natildeo pode ser dado no comeccedilo porque o comeccedilo tem de ser o
imediato e por conseguinte indeterminado O comeccedilo que jaacute fosse o fundamento pareceria
segundo Hegel uma espeacutecie de pressuposiccedilatildeo arbitraacuteria De fato o fundamento estaacute presente
e atuante no iniacutecio todavia sua posiccedilatildeo efetiva como fundamento precisa ser justificada e
essa justificaccedilatildeo na sua completude necessita do desdobramento dialeacutetico que constitui todo o
percurso da Loacutegica ateacute que se atinja o fundamento Nesse ponto de chegada que eacute o
fundamento faz-se a conexatildeo com o comeccedilo E no comeccedilo noacutes temos o puro ser imediato
que vai se determinar de acordo com esse meacutetodo (ou fundamento) que eacute imanente ao
mesmo Desse modo eacute o que nos parece fica em parte explicada a aproximaccedilatildeo que Hegel
faz da universalidade imediata que constitui o meacutetodo em seu comeccedilo com o ser
Em relaccedilatildeo ao segundo aspecto o comeccedilo se faz com o ser porque como jaacute vimos ele
eacute a completa falta de determinaccedilatildeo sem nenhuma mediaccedilatildeo e portanto natildeo relacionado a
nenhum outro Esse comeccedilo em virtude de sua indeterminaccedilatildeo e abstraccedilatildeo eacute um comeccedilo
absoluto ldquoo que constitui o comeccedilo o comeccedilo mesmo tem de ser tomado por conseguinte
como um algo que natildeo pode ser analisado tem de ser tomado em sua simples imediatez natildeo
preenchida portanto como ser como o completamente vaziordquo378
O ser diriacuteamos por nossa conta eacute essa determinidade da indeterminaccedilatildeo que preenche
os requisitos para que se constitua em comeccedilo O ser na sua absoluta vacuidade cumpre a
contento a sua obrigaccedilatildeo de constituir o ponto zero do processo de determinaccedilatildeo do conceito
loacutegico
376 Cf GW 12 p 239 trad p 564
377 Ver a respeito pp 132-137
378 GW 21 p 62 trad p 97 (ldquoWas den Anfang macht der Anfang selbst ist daher als ein Nicht-analysirbares in seiner einfachen unerfuumlllten Unmittelbarkeit also als Seyn als das ganz Leere zu nehmenrdquo)
146
E o que temos entatildeo no ser que estaacute no comeccedilo Apenas a relaccedilatildeo abstrata a si
mesmo379 O ser assim como o universal e como universal imediato eacute a negaccedilatildeo completa de
toda determinaccedilatildeo e na medida em que nega todo outro volta-se para si e entatildeo apenas se
relaciona a si mesmo Essa relaccedilatildeo abstrata a si constitui-se em virtude dessa completa falta
de determinaccedilatildeo
Dessa indeterminaccedilatildeo e abstraccedilatildeo do ser o meacutetodo pode cumprir ldquoa exigecircncia de
realizaccedilatildeo do conceito em geral que natildeo reside no proacuteprio comeccedilo mas que eacute antes a meta e
a tarefa de todo ulterior desenvolvimento do conhecerrdquo380
Mas se o ser eacute o imediato que na sua relaccedilatildeo a si eacute vazia e inteiramente
indeterminada como se pode efetivamente dar esse processo de determinaccedilatildeo pelo qual o
conceito se realiza
Segundo Hegel o ser tem a determinidade de ser simples e universal e em virtude
dessa determinidade ele eacute deficiente (mangelhaft) Eacute o meacutetodo como forma objetiva imanente
que faz com que esse comeccedilo imediato deficiente seja dotado do impulso que o faz se
conduzir adiante no processo de determinaccedilatildeo desse ser inicial381
Jaacute vimos quando tratamos do significado do conceito de conceito382 que no iniacutecio do
seu processo ndash em si mesmo dialeacutetico ndash de autodeterminaccedilatildeo o conceito como universal por
sua proacutepria abstraccedilatildeo eacute incompleto383 E este universal abstrato do iniacutecio do meacutetodo que
tambeacutem eacute conceito eacute do mesmo modo incompleto Essa incompletude do universal se
apresenta na forma de uma negaccedilatildeo que o afeta384 Ora essa negaccedilatildeo que o afeta eacute a mesma
que estaacute presente na determinaccedilatildeo do ser no iniacutecio da Loacutegica Natildeo nos esqueccedilamos que o
universal abstrato como Hegel nos indicou tem o mesmo significado que o ser385 Tanto o ser
379 Cf GW 12 p 239 trad p 564
380 Ibidem p 240 trad p 564 (ldquo[] die Foderung der Realisirung des Begriffs uumlberhaupt gemeynt welche nicht im Anfange selbst liegt sondern vielmehr das Ziel und Geschaumlfte der ganzen weitern Entwicklung des Erkennens istrdquo)
381 Cf Ibidem p 240 trad p 565
382 Ver a respeito pp 139-141
383 Cf GW 12 p 24 trad p 267
384 Cf Ibidem p 240 trad p 565
385 Cf Ibidem p 239 trad p 564
147
como o universal satildeo indeterminados e completamente vazios logo eles natildeo satildeo nada Seraacute
somente no processo determinaccedilatildeo desse universal nele mesmo que esse universal inicial se
torna concreto e deixa para traacutes essa unilateralidade que tem como abstrato386 Se no iniacutecio
natildeo podemos ter uma totalidade concreta isto se deve ao caraacuteter deficiente do comeccedilo que
somente teraacute condiccedilotildees de ser sanado na determinaccedilatildeo progressiva do conceito de acordo
com o meacutetodo absoluto que ldquotoma o determinado como seu proacuteprio objeto visto que ele (o
meacutetodo) eacute o princiacutepio e a alma imanente delerdquo387
De acordo com as anaacutelises precedentes natildeo haacute como supor que desde o iniacutecio do
processo o absoluto esteja posto Eacute justamente isso que Hegel faz questatildeo de ressaltar O
iniacutecio eacute apenas um momento abstrato e unilateral Soacute com a autodeterminaccedilatildeo do universal o
conceito deixa de ser em-si e tornar-se para-si de modo que o universal seja igualmente
singular e sujeito388 ldquoSomente em seu acabamento (Vollendung) ele eacute o absolutordquo389
Do universal para o particular
Nesse processo de determinaccedilatildeo do conceito da ideacuteia absoluta (ou meacutetodo) o
universal imediato torna-se um particular ldquo[] o imediato inicial eacute posto como mediado
relacionado a um outro []rdquo390 Temos aqui o primeiro negativo isto eacute o particular que nega
esse universal imediato Esse segundo que surge o particular na sua negaccedilatildeo desse primeiro
no processo de determinaccedilatildeo o imediato conserva-o e o manteacutem em si391 Nessa negaccedilatildeo natildeo
ocorre portanto adverte Hegel aquilo que usualmente eacute resultado da dialeacutetica como meacutetodo
386 ldquoNatildeo haacute tambeacutem por isso seja na realidade efetiva ou em pensamento nada tatildeo simples e tatildeo abstrato como usualmente se imaginardquo Cf GW 12 p 240 trad p 565 (ldquoEs gibt deswegen auch es sey in der Wirklichkeit oder in Gedanken kein so Einfaches und so Abstractes wie man es sich gewoumlhnlich vorstelltrdquo)
387 GW 12 p 241 trad p 567 (ldquo[hellip] nimmt das Bestimmte aus ihrem Gegenstande selbst da sie selbst dessen immanentes Princip und Seele istrdquo)
388 GW 12 p 241 trad p 566
389 GW 12 p 241 trad p 566 (ldquoNur in seiner Vollendung ist es das Absoluterdquo)
390 GW 12 p 244 trad p 571 (ldquo[hellip] das zuerst Unmittelbare hiemit als Vermitteltes bezogen auf ein andres [hellip] ist rdquo)
391 Ibidem p 245 trad p 571
148
subjetivo a saber que a negaccedilatildeo que adveacutem seja meramente vazia o negativo vazio ou o
nada sem nenhum conteuacutedo Abrindo um parecircnteses uma espeacutecie de negaccedilatildeo que ocorre por
exemplo no ceticismo392 No que respeita agrave negaccedilatildeo atuante no meacutetodo o que foi negado
para que surgisse o particular continua a determinaacute-lo Como mediado o particular eacute fruto
dessa determinaccedilatildeo do universal como particular
Mas o particular acrescenta Hegel natildeo eacute apenas a determinaccedilatildeo negativa ou mediada
ela eacute aleacutem disso a mediadora (die Vermittelnde)393 Aqui ainda contudo natildeo nos deteremos
mais pormenorizadamente nesse aspecto de mediador que estaacute embutido no particular
Quando tratarmos mais a frente da negaccedilatildeo da negaccedilatildeo aiacute entatildeo ficaraacute claro porque estamos
aqui diante de uma determinaccedilatildeo mediadora Antes disso interessa inicialmente a Hegel
indicar que essa segunda determinaccedilatildeo o particular eacute o outro de um outro Nesse sentido
Hegel denomina o particular como sendo em sua verdade uma relaccedilatildeo ou relacionamento
(Beziehung oder Verhaumlltniszlig)394 Realmente haacute uma relaccedilatildeo da primeira com a segunda
determinaccedilatildeo e eacute preciso segundo Hegel insistir que essa relaccedilatildeo natildeo eacute meramente exterior
como se esse outro fosse indiferente (gleichguumlltig) com respeito ao primeiro395 A relaccedilatildeo com
seu outro isto eacute da segunda determinaccedilatildeo com a primeira constitui uma relaccedilatildeo que se daacute
num uacutenico ldquoobjetordquo O universal que se determina em um outro o particular e assim sai de si
natildeo deixa por esse mesmo motivo de estar em um outro que eacute parte dele mesmo A relaccedilatildeo
entre o positivo e o negativo natildeo eacute jaacute dissemos de exterioridade ao contraacuterio eles satildeo um soacute
o positivo contido no negativo que veio a ser no processo de determinaccedilatildeo Esse
392 ldquoTrata-se com efeito do ceticismo que vecirc sempre no resultado o puro nada tatildeo-somente e abstrai do fato de que esse nada eacute determinadamente o nada daquilo do qual ele procede Mas o nada considerado apenas como o nada daquilo do qual procede eacute na realidade o resultado verdadeiro Eacute pois um nada determinado e possui um conteuacutedo O ceticismo que termina com a abstraccedilatildeo do nada e da vacuidade natildeo pode avanccedilar aleacutem dessa abstraccedilatildeo mas deve esperar que algo de novo se lhe ofereccedila para lanccedilaacute-lo no mesmo abismo vaziordquo No original ldquoSie ist nemlich der Skepticismus der in dem Resultate nur immer das reine Nichts sieht und davon abstrahirt daszlig diszlig Nichts bestimmt das Nichts dessen ist woraus es resultirt Das Nichts ist aber nur genommen als das Nichts dessen woraus es herkoumlmmt in der That das wahrhafte Resultat es ist hiemit selbst ein bestimmtes und hat einen Inhalt Der Skepticismus der mit der Abstraction des Nichts oder der Leerheit endigt kann von dieser nicht weiter fortgehen sondern muszlig es erwarten ob und was ihm etwa neues sich darbietet um es in denselben leeren Abgrund zu werfenrdquo In GW 9 p 57 trad Vaz p 51
393 Cf GW 12 p 245 trad p 572
394 Cf Ibidem p 245 trad p 572
395 Cf Ibidem p 245 trad p 572
149
relacionamento umbilical dos opostos eacute segundo Hegel ldquoa contradiccedilatildeo a dialeacutetica posta de si
proacutepria (da determinaccedilatildeo)rdquo396
Logo a seguir Hegel trata do significado que essa dialeacutetica assume tanto considerada
pelo lado do universal quanto considerada pelo lado do particular Conveacutem de passagem
notar que o que preside esse processo mas ainda sem ser citada eacute a negatividade absoluta
Assim o que temos no universal imediato ou como tambeacutem a ele se refere Hegel no
conceito em si Temos nesse momento inicial em geacutermen o negativo e o momento dialeacutetico
presente nesse iniacutecio consiste nisto ldquoque a diferenccedila (Unterschied) que ele (o conceito)
conteacutem em si nele estaacute postardquo397
Com respeito ao outro o efetivamente determinado a diferenccedila o momento dialeacutetico
consiste na posiccedilatildeo da unidade que nele estaacute contida mas que ainda natildeo estaacute posta398 Ela a
unidade se potildee com a negaccedilatildeo do primeiro negativo o particular A negaccedilatildeo da negaccedilatildeo eacute a
suspensatildeo da contradiccedilatildeo399 Na terminologia do conceito poderiacuteamos dizer que a suspensatildeo
da contradiccedilatildeo consiste na posiccedilatildeo da singularidade por meio da reflexatildeo do conceito em si
mesmo a partir de sua determinidade400 Essa atividade do conceito eacute conduzida pela
negatividade absoluta401 que faz com que tenhamos na singularidade o retorno ao universal
soacute que agora um universal superior natildeo mais imediato e vazio mas agora efetivamente
concreto
Na consideraccedilatildeo desse silogismo que eacute o movimento do conceito observa Hegel a
primeira premissa corresponde ao momento da universalidade e agrave segunda premissa ao
momento da singularidade Ditas as coisas desse modo torna-se um tanto vaga a compreensatildeo
do que sejam essa universalidade e singularidade da primeira e da segunda premissas de todo
o silogismo Aleacutem disso Hegel se refere agrave primeira premissa como analiacutetica e a segunda
396 Cf Ibidem p 245 trad p 572 (ldquo[hellip] der Widerspruch die gesetzte Dialektik ihrer selbst rdquo) Ver tambeacutem a propoacutesito da contradiccedilatildeo pp 84-88
397 Cf Ibidem pp 245-246 trad p 572 (ldquodaszlig die Unterschied den es an sich enthaumllt in ihm gesetzt wirdrdquo)
398 Cf Ibidem p 246 trad p 572
399 Cf Ibidem p 246 trad p 573
400 Cf Ibidem p 49 trad p 300
401 Ou como ainda a denomina Hegel o ponto de virada (der Wendungspunkt) do movimento do conceito Cf Ibidem p 246 trad p 573
150
como sinteacutetica Mas eacute justamente com base nessa dupla denominaccedilatildeo das premissas
denominaccedilatildeo que tambeacutem eacute utilizada para o meacutetodo em si mesmo que talvez fique mais claro
o significado de universalidade e singularidade quando referidas agraves premissas do silogismo
Com efeito o meacutetodo por um lado eacute analiacutetico pois ldquoa ulterior determinaccedilatildeo de seu
universal inicial se encontra somente nele eacute a absoluta objetividade do conceito da qual ele
(o meacutetodo) eacute a certezardquo402 por outro lado o meacutetodo eacute sinteacutetico ldquona medida em que seu
objeto determinado imediatamente como universal simples mediante a determinidade que ele
proacuteprio tem na sua imediatez e universalidade mostra-se como um outrordquo403
Detenhamo-nos primeiro no aspecto analiacutetico do meacutetodo Por ele nossa atenccedilatildeo natildeo
estaacute voltada como no caso do aspecto sinteacutetico para a determinaccedilatildeo efetiva do universal esse
mostrar-se como um outro do mesmo Importa antes aqui salientar que o meacutetodo eacute
absolutamente objetivo em virtude dessa sua capacidade inerente de a partir de si gerar seu
proacuteprio progredir e desenvolvimento Na sua relaccedilatildeo negativa a si o meacutetodo daacute andamento a
esse processo de determinar-se que ao final faz com que se torne novamente idecircntico e igual
a si Dessa maneira ele eacute universal404 Numa outra passagem Hegel indica com respeito ao
caraacuteter analiacutetico do meacutetodo que ele representa a proacutepria relaccedilatildeo no conceito O que isto pode
significar Significa que o meacutetodo como a proacutepria relaccedilatildeo estaacute pensado na sua unidade ou
melhor dizendo nessa relaccedilatildeo negativa a si que se resolve no universal Ao chamar o meacutetodo
de analiacutetico Hegel eacute o que nos parece pretende pocircr o acento nessa unidade do conceito que
eacute o universal e uma unidade que ao mesmo tempo representa esse autorelacionar-se
(Selbstbezuumlglichkeit) do conceito todavia num acircmbito global
Com respeito agora ao outro aspecto o acento recai natildeo nessa unidade e identidade a
si do conceito que conteacutem em si como virtualidade a determinaccedilatildeo mas sim no proacuteprio
determinar-se do universal e com isso nesse seu fazer-se outro por meio da negaccedilatildeo ateacute
constituir-se numa singularidade Aqui importa fundamentalmente aponta para a efetiva
402 Cf Ibidem p 242 trad p 567 (ldquodie weitere Bestimmung ihres anfaumlnglichen Allgemein ganz allein in ihm findet ist die absolute Objectivitaumlt des Begriffes deren Gewiszligheit sie istrdquo)
403 Cf Ibidem p 242 trad p 567 (ldquoindem ihr Gegenstand unmittelbar als einfaches allgemeines bestimmt durch die Bestimmtheit die er in seiner Unmittelbarkeit und Allgemeinheit selbst hat als ein Anderes sich zeigtrdquo)
404 Cf Ibidem p 16 trad p 255
151
atividade de determinaccedilatildeo a partir da qual um outro concretamente surge e se singulariza no
movimento da dupla negaccedilatildeo
O procedimento dialeacutetico do meacutetodo consiste nisso a saber nessa implicaccedilatildeo muacutetua
das determinaccedilotildees do analiacutetico e do sinteacutetico nele presentes Haacute portanto tanto esse
movimento de sair de si do universal inicial e pelo qual se determina como o outro de si
mesmo (o momento sinteacutetico) quanto o retorno ao universal ou agrave unidade de si a partir do
processo de determinaccedilatildeo (momento analiacutetico)405
Dentro do contexto das anaacutelises precedentes talvez fique mais faacutecil entender porque
1) a primeira premissa do silogismo eacute considerada analiacutetica e corresponde ao momento da
universalidade 2) a segunda premissa eacute considerada sinteacutetica e corresponde ao momento da
singularidade
Com relaccedilatildeo agrave primeira premissa Hegel sublinha a universalidade objetiva da mesma
ao notar que o imediato inicial se relaciona imediatamente ao seu outro no qual passou e com
o qual estaacute assim identificado Na universalidade da primeira premissa sabe-se que haacute uma
relaccedilatildeo de um para com seu outro pois a unidade adveacutem dessa relaccedilatildeo e como diz Hegel
dessa comunicaccedilatildeo (Mittheilung)406 E o momento dialeacutetico desse universal consiste
justamente em pocircr essa diferenccedila que aiacute estaacute contida mas de modo latente407
Eacute na segunda premissa que essa diferenccedila estaacute posta a partir dessa relaccedilatildeo do negativo
consigo mesmo a relaccedilatildeo constitutiva dessa mesma premissa Determinada como
singularidade originada portanto da negaccedilatildeo do particular (a segunda negaccedilatildeo) essa
premissa como singularidade aparece inicialmente como se na relaccedilatildeo com o outro ela fosse
apenas por si e diversa408 excludente da outra determinaccedilatildeo a ela relacionada Como sinteacutetica
405 Eacute uacutetil citar neste momento o comentaacuterio de Rainer Schaumlfer a respeito desse vai-e-veacutem entre o sinteacutetico e o analiacutetico no desenvolvimento dialeacutetico do meacutetodo ldquo Dialeacutetica eacute o duplo conhecimento que algo eacute igual a si (momento analiacutetico) na medida em que se altera (sich veraumlndert) (momento sinteacutetico) e que algo ao se alterar eacute consigo mesmo igual isto eacute consigo mesmo torna-se igual Essa constituiccedilatildeo simultacircnea da mesmidade (Selbigkeit) na outridade (Andersheit) e da outridade na mesmidade mostra que o processo analiacutetico natildeo eacute pensaacutevel sem o sinteacutetico e o sinteacutetico natildeo eacute pensaacutevel sem o analiacuteticordquo In Schaumlfer R Die Dialektik und ihrehellip p 259
406 Cf GW 12 p 246 trad p 574
407 Cf Ibidem p 245-246 trad p 572
408 A singularidade como diversa aqui deve ser entendida de acordo com a determinaccedilatildeo reflexiva da diversidade exposta agraves pp 108-113
152
a segunda premissa traz ao primeiro plano esse passar de um no outro a realizaccedilatildeo da divisatildeo
de si do imediato com a posiccedilatildeo do outro409 Esse outro posto pela atividade do conceito
aparece como por si diverso e excludente pois antes de tornar-se singularidade ele antes eacute
particular O particular surge portanto como um diverso com respeito ao universal imediato
contudo no processo da dupla negaccedilatildeo esse particular se determina como singular e como
suspensatildeo da contradiccedilatildeo entre universal imediato e particular retorna agrave unidade
A volta agrave unidade corresponde a um retorno agrave imediatez a partir da mediaccedilatildeo ldquoo
imediato poreacutem mediante a suspensatildeo da mediaccedilatildeo o simples por meio do suspender da
diferenccedila o positivo mediante o suspender do negativo o conceito que se realiza mediante o
ser-outro e mediante o suspender dessa realidade se reuniu consigo e produziu sua realidade
absoluta sua relaccedilatildeo simplesrdquo410
A divisatildeo formal do meacutetodo desde o primeiro imediato ateacute o novo retorno ao
imediato compotildee-se segundo Hegel de quatro partes o primeiro termo eacute o universal
imediato inicial o segundo corresponde ao primeiro negativo ou o particular que se
determina pela negaccedilatildeo do universal o terceiro termo corresponde ao segundo negativo ou a
negaccedilatildeo da negaccedilatildeo por fim temos o quarto termo que natildeo eacute nada mais do que o terceiro
409 ldquo[hellip] porque ela eacute a relaccedilatildeo do diverso como tal ao seu diversordquo (ldquo[] weil sie die Beziehung des Unterschiedenen als solchen auf sein Unterschiedenes istrdquo) Cf GW 12 p 246 trad p 574
410 Cf Ibidem p 248 trad p 575 (ldquodas Unmittelbare aber durch Aufhebung der Vermittlung das Einfache durch Aufheben des Unterschiedes das Positive durch Aufheben des Negativen der Begriff der sich durch das Andersseyn realisirt und durch Aufheben dieser Realitaumlt mit sich zusammengegangen und seine absolute Realitaumlt seine einfache Beziehung auf sich hergestellt hatrdquo) Ou ainda ldquoComo o inicial eacute o universal o resultado eacute entatildeo o singular concreto sujeito o que aquele eacute em si este eacute agora do mesmo modo o para si o universal estaacute posto no sujeito Os dois primeiros momentos da triplicidade satildeo os momentos abstratos natildeo-verdadeiros que por isso mesmo satildeo dialeacuteticos e por meio dessa sua negatividade se fazem sujeito O conceito eacute para noacutes inicialmente natildeo soacute o universal sendo em si como o negativo sendo para si e como tambeacutem o terceiro sendo em si e para si o universal que atravessa todos os momentos do silogismo mas o terceiro [termo] eacute a conclusatildeo na qual ele se mediatiza consigo mesmo mediante sua negatividadedeste modo eacute posto para si como o universal e idecircntico de seus momentosrdquo (ldquoWie das Anfangende das Allgemeine so ist das Resultat das Einzelne Concrete Subject was jenes an sich ist dieses nun ebensosehr fuumlr sich das Allgemeine ist im Subjecte gesetzt Die beyden ersten Momente der Triplicitaumlt sind die abstracten unwahren Momente die eben darum dialektisch sind und durch diese ihre Negativitaumlt sich zum Subjecte machen Der Begriff selbst ist fuumlr uns zunaumlchst sowohl das An sich seyende Allgemeine als dar Fuumlr sich seyende Negative als auch das Dritte an und fuumlr sich seyende das Allgemeine welches durch alle Momente des Schlusses hindurchgeht aber das Dritte ist der Schluszligsatz in welchen er durch seine Negativitaumlt mit sich selbst vermittelt hiemit fuumlr sich als das Allgemeine und Identische seiner Momente gesetzt ist rdquo) In Ibidem p 248 trad p 575
153
apenas que no seu retorno agrave imediatez portanto como segundo imediato ele pode aparecer de
um ponto de vista meramente didaacutetico como quarto nesse processo de determinaccedilatildeo411
O meacutetodo e sua determinaccedilatildeo como sistema
Uma vez feita a anaacutelise do modus operandi do meacutetodo na Ideacuteia Absoluta Hegel toca
entatildeo num tema de fundamental importacircncia a saber a constituiccedilatildeo do sistema Mais uma vez
ele retoma o diaacutelogo com os ceacuteticos pois uma de suas principais preocupaccedilotildees agora talvez a
principal eacute mostrar como na constituiccedilatildeo do sistema a partir do procedimento dialeacutetico
inscrito no meacutetodo a filosofia especulativa natildeo daacute nenhum passo atraacutes de modo que
permitisse ainda novamente abrir a guarda perante o ceacutetico
Assim do percurso de determinaccedilatildeo do conceito observado no meacutetodo a que
chegamos no final Como pudemos ver a um novo universal e no qual todo o processo se
condensa numa nova identidade que ao mesmo tempo eacute uma nova imediatez412 Seraacute a partir
desse novo imediato que justamente pela suspensatildeo da contradiccedilatildeo daacute origem a essa
determinidade simples que teremos um novo comeccedilo e daiacute entatildeo o meacutetodo se amplia na
forma de um sistema413
Isto posto a questatildeo que a nosso ver Hegel potildee e procura responder diz respeito ao
seguinte esse novo comeccedilo a que se chega adveacutem do processo de autodeterminaccedilatildeo do
meacutetodo e em virtude dessa mesma determinaccedilatildeo eacute um comeccedilo determinado Perante essa
determinidade do resultado o proacuteprio comeccedilo inicial que eacute indeterminado tambeacutem eacute um
determinado logo ldquonatildeo deve ser tomado como um imediato mas antes como mediado e
deduzidordquo414 Ora o comeccedilo como mediado e deduzido natildeo seria um comeccedilo destituiacutedo de
pressupostos e seria assim tatildeo arbitraacuterio quanto qualquer outro comeccedilo que a ele se
411 Ibidem p 247 trad p 574
412 Ibidem p 248 trad p 576
413 Ibidem p 248 trad p 576
414 Ibidem p 249 trad p 577
154
contrapusesse com o mesmo direito Hegel se refere especificamente agrave possiacutevel ocorrecircncia de
uma regressatildeo ao infinito em virtude desse caraacuteter mediado do comeccedilo415
Como combater essa possiacutevel criacutetica Abrindo um parecircnteses uma criacutetica sim
possiacutevel mas que natildeo deixa de ser mesmo assim resultado de uma maacute compreensatildeo da
filosofia especulativa Pelo menos da perspectiva hegeliana O fato eacute que Hegel se adianta em
relaccedilatildeo a seus possiacuteveis criacuteticos a nossos olhos fundamentalmente aqui o ceacutetico na tentativa
de natildeo deixar duacutevidas ou perplexidades quanto aos seus propoacutesitos Mas de volta agrave pergunta
acima feita a resposta de Hegel vai no sentido de mostrar que estamos num outro acircmbito que
aquele da filosofia do entendimento ldquoJaacute foi mostrado repetidas vezes que o progresso
infinito em geral pertence agrave reflexatildeo carente de conceito o meacutetodo absoluto que tem o
conceito como sua alma e conteuacutedo natildeo pode levar ao mesmordquo416
O ponto principal da resposta de Hegel agrave criacutetica referente ao caraacuteter determinado do
comeccedilo seja ele o comeccedilo inicial ou o comeccedilo que resulta da dialeacutetica do conceito baseia-se
na jaacute mencionada417 indeterminaccedilatildeo do conceito e sua consequumlente imediaccedilatildeo A
determinaccedilatildeo do comeccedilo e que impede ao mesmo ser considerado um mediado apresenta-se
por meio de sua indeterminaccedilatildeo Nele natildeo haacute nenhum conteuacutedo E natildeo haver conteuacutedo ou ndash o
que eacute o mesmo ndash ser indeterminado significa que natildeo seja admissiacutevel nenhuma regressatildeo
Aleacutem disso o conteuacutedo somente se origina da proacutepria determinaccedilatildeo da forma absoluta que eacute o
meacutetodo O indeterminado passa para o determinado mas o indeterminado apesar de ser um
determinado perante o outro a saber o determinado que dele resulta natildeo eacute contudo ainda a
mediaccedilatildeo no sentido de que fosse um determinado ao qual um outro pudesse ser contraposto
E no caso do comeccedilo que surge da dialeacutetica do conceito Como veremos a mesma
coisa se passa O comeccedilo imediato se determina como um outro e na negatividade absoluta
da relaccedilatildeo a si a contradiccedilatildeo posta eacute suspensa e assim se restabelece a primeira
indeterminidade418 O novo comeccedilo eacute sim um comeccedilo mediado e determinado mas ele eacute tal
somente no que se refere a ser resultado desse processo que ele traz conservado dentro dele
Esse novo comeccedilo eacute uma nova unidade que por isso mesmo constitui uma nova imediaccedilatildeo e
415 Ver de modo geral ibidem p 249 trad pp 577-578
416 Ibidem p 249 trad pp 577-578
417 Ver a respeito pp 143-147
418 Cf GW 12 p 250 trad p 579
155
dessa maneira estatildeo dadas as condiccedilotildees para que o processo siga adiante ldquoA determinidade
que era resultado eacute como se mostrou por causa da forma da simplicidade na qual ela
convergiu um novo comeccedilo na medida em que ele eacute diferente de seu [comeccedilo] precedente
justamente mediante essa determinidade o conhecer se impele (sich fortwaumllzen) de conteuacutedo
em conteuacutedo adianterdquo419 Desse novo comeccedilo vai portanto repetir-se o mesmo processo
dialeacutetico e que levaraacute ao surgimento de uma outra determinaccedilatildeo mais rica do que a anterior
ldquoO conceito no meacutetodo absoluto manteacutem-se no seu ser-outro o universal na sua
particularizaccedilatildeo no juiacutezo e na realidade ele eleva a massa inteira do seu conteuacutedo precedente
a cada degrau da sua determinaccedilatildeo ulterior e natildeo somente natildeo perde nada atraveacutes do seu
progredir dialeacutetico nem deixa nada para traacutes senatildeo que carrega tudo consigo e se enriquece e
se condensa dentro de sirdquo420
Eacute por meio desse processo que partindo do comeccedilo indeterminado se chega ao
fundamento de todo o processo Ao mesmo tempo que nos afastamos do comeccedilo estamos
novamente retornando a ele Hegel chama esse procedimento de fundamentaccedilatildeo regressiva do
comeccedilo421 Fundamento que somente eacute alcanccedilado no seu processo de justificaccedilatildeo a partir da
determinaccedilatildeo progressiva do comeccedilo indeterminado Nesse processo progressivo e ao mesmo
tempo regressivo de fundamentaccedilatildeo o meacutetodo se entrelaccedila (sich schlingt) num ciacuterculo422 E
419 Cf Ibidem p 250 trad p 579 (ldquoDie Bestimmheit welche Resultat war ist wie gezeigt worden um der Form der Einfachheit willen in welche sie zusammengegangen selbst ein neuer Anfang indem er von seinem vorhergehenden durch eben diese Bestimmtheit unterschieden ist so waumllzt sich das Erkennen von Inhalt zu Inhalt fortrdquo)
420 Cf Ibidem p 250 trad p 579 (ldquoDer Begriff in der absoluten Methode erhaumllt sich in seinem Andersseyn das Allgemeine in seiner Besonderung in dem Urtheile und der Realitaumlt es erhebt auf jede Stuffe weiterer Bestimmung die ganze Masse seines vorhergehenden Inhalts und verliert durch sein dialektisches Fortgehen nicht nur nichts noch laumlszligt etwas dahinten sondern traumlgt alles Erworbene mit sich und bereichert und verdichtet sich in sichrdquo)
421 Cf Ibidem p 251 trad p 580
422 Ibidem p 251 trad p 580 E tambeacutem a ciecircncia (Wissenschaft) desenvolvida a partir desse meacutetodo imanente circular seraacute do mesmo modo circular ldquoEm virtude da natureza do meacutetodo [que foi] indicada a ciecircncia se apresenta como um ciacuterculo entrelaccedilado em si em cujo comeccedilo o fundamento simples a mediaccedilatildeo entrelaccedila o fim do mesmo modo esse ciacuterculo eacute um ciacuterculo dos ciacuterculos pois cada membro singular como [algo] animado pelo meacutetodo eacute a reflexatildeo-em-si que na medida em que ela retorna ao comeccedilo eacute ao mesmo tempo o comeccedilo de um novo membro Fragmentos dessa cadeia satildeo as ciecircncias singulares e cada uma delas tem um antes e um depois ou para falar com mais exatidatildeo somente tem o antes e no seu silogismo mostra seu depoisrdquo No original ldquoVermoumlge der aufgezeigten Natur der Methode stellt sich die Wissenschaft als einen in sich geschlungenen Kreis dar in dessen Anfang den einfachen Grund die Vermittlung das Ende zuruumlckschlingt dabey ist dieser Kreis ein Kreis von Kreisen denn jedes einzelne Glied als Beseeltes der Methode ist die Reflexion-in-sich die indem si in den Anfang zuruumlckkehrt zugleich der Anfang eines neuen Gliedes ist
156
contra aqueles que por impaciecircncia (Ungeduld) pretendem de antematildeo encontrar-se para
aleacutem do determinado portanto desde o iniacutecio se encontrarem imediatamente no absoluto
Hegel mais uma vez nos alerta para o fracasso que estaacute agrave vista dos que querem seguir essa
via423 pois o absoluto ldquosomente se deixa apreender pela mediaccedilatildeo do conhecer do qual o
universal e imediato eacute um momento a verdade poreacutem somente eacute no percurso desenvolvido e
no finalrdquo424 O absoluto que se pusesse independente desse processo de determinaccedilatildeo que
tambeacutem eacute um processo de justificaccedilatildeo do fundamento seria um absoluto suposto (ein
gemeyntes Absolutes) um absoluto que teria tanta validade e creacutedito quanto qualquer outro
que a ele se pusesse em sentido contraacuterio Essa espeacutecie de criacutetica ceacutetica Hegel quer evitar
Uma criacutetica que dificilmente se deixa evitar quando se parte de um absoluto que natildeo foi posto
a partir do processo de fundamentaccedilatildeo que observamos no meacutetodo Mas natildeo apenas isso
Cabe ainda assinalar que quando Hegel fala em absoluto eacute o que nos parece natildeo
esteja ele se referindo a um ponto que se chegasse sem que daiacute natildeo mais se pudesse avanccedilar
adiante O absoluto eacute o proacuteprio meacutetodo ndash a ideacuteia absoluta ndash ao qual se chega por esse
processo de justificaccedilatildeo que constitui a Ciecircncia da Loacutegica Ele eacute essa atividade inerente ao
meacutetodo e pela qual o conceito se autodetermina e forma (ausbildet) o sistema da ciecircncia (Cf
GW 12 pp 252-3 trad p 582) O caraacuteter absoluto do meacutetodo eacute o que faz com que por meio
dele os resultados obtidos pelo menos eacute o que almeja Hegel natildeo sejam passiacuteveis de serem
criticados pelo ceacutetico Esse absoluto eacute fruto de um modo de proceder que considera o posto e
seu contraposto e mediante a negatividade absoluta inscrita no meacutetodo a contradiccedilatildeo posta
pode ser resolvida425 Chega-se ao absoluto no final da Loacutegica mas esse absoluto eacute como jaacute
dissemos o proacuteprio meacutetodo que incorpora a si um procedimento ceacutetico a saber esse
procedimento consistente na oposiccedilatildeo de argumentos Eacute somente pela contradiccedilatildeo dos
Bruchstuumlcke dieser Kette sind die einzelnen Wissenschaften deren jede ein Vor und ein Nach hat - oder genauer gesprochen nur das Vor hat und in ihrem Schlusse selbst ihr Nach zeigt rdquo In Ibidem p 252 trad pp 581-2
423 Ibidem p 252 trad p 581
424 Ibidem p 252 trad p 581 (ldquo[hellip] erfassen laumlszligt es sich nur durch die Vermittlung des Erkennens von der das Allgemeine und Unmittelbare ein Moment die Wahrheit selbst aber nur im ausgebreiteten Verlauf und im Ende istrdquo)
425 Tanto na Ciecircncia da Loacutegica (Cf GW 12 p 46 trad p 296) quanto na Enciclopeacutedia (sect164) Hegel natildeo deixa de apontar para o fato de que o mesmo processo dialeacutetico ocorrido com as determinaccedilotildees de reflexatildeo vai se repetir na Doutrina do Conceito com as determinaccedilotildees da universalidade particularidade e singularidade Quanto a isso citemos o referido sect 164 ldquoUniversalidade particularidade e singularidade tomadas abstratamente satildeo o mesmo que identidade diferenccedila e fundamentordquo (ldquoAllgemeinheit Besonderheit und Einzelheit sind abstract genommen dasselbe was Identitaumlt Unterschied und Grundrdquo In GW 20 p 180 trad p 299
157
opostos resolvida de acordo com o meacutetodo dialeacutetico imanente apresentado na Ideacuteia Absoluta
que eacute possiacutevel agrave ciecircncia avanccedilar e a verdade que ela alcanccedila como resultado ldquotorna-se o
comeccedilo de uma outra esfera e ciecircnciardquo426 Dessa maneira eacute a que somos levados a concluir o
processo natildeo tem de se deter necessariamente num ponto determinado ao contraacuterio o saber
alcanccedilado estaraacute sempre sujeito a ser suspenso (aufgehoben)427
Hans Friedrich Fulda dedica um ensaio a mostrar como Hegel na formulaccedilatildeo do
meacutetodo especulativo diretamente se preocupa em se sobrepor agrave criacutetica ceacutetica por meio da
integraccedilatildeo de sua dialeacutetica antinocircmica ao mesmo meacutetodo428 A possibilidade de uma filosofia
especulativa estaria assim segundo o autor assentada em um meacutetodo que na sua instacircncia
negativa tivesse em si operando a contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos e uma vez cumprido
seu papel criacutetico com relaccedilatildeo ao pensar enquanto entendimento seu trabalho seria rematado
na instacircncia especulativa do meacutetodo com a modificaccedilatildeo dos conceitos que foram ceticamente
examinados anteriormente Fulda natildeo se cansa de afirmar que a possibilidade do pensamento
absoluto pressupotildee o exerciacutecio da agogeacute ceacutetica na instacircncia dialeacutetica do meacutetodo Eacute somente
por meio desse exerciacutecio que a filosofia conseguiraacute eacute o que acredita Hegel se desvencilhar do
ceticismo stricto sensu
No comeccedilo do capiacutetulo que trata do meacutetodo ndash a ideacuteia absoluta ndash Hegel faz uma
afirmaccedilatildeo importante no que se refere agrave proacutepria ideacuteia absoluta que ldquoela eacute o uacutenico objeto e
conteuacutedo da filosofiardquo429 Aleacutem disso que a tarefa da filosofia eacute reconhececirc-la nas diversas
426 GW 12 p 253 trad pp 582-3 (ldquo[hellip] wird als letztes Resultat auch den Anfang einer andern Sphaumlre und Wissenschaftrdquo)
427 Nesse sentido eacute entatildeo pertinente aqui recordar Geacuterard Lebrun ldquoQuando interpretam o saber absoluto como o coroamento da metafiacutesica e lhe reprovam deixar fora de si uma zona de natildeo-sentido um negativo irredutiacutevel que ignoraria soberbamente ainda tecircm certeza de natildeo conceder a certas significaccedilotildees um lsquovalor isoladorsquo Assim compreendem a dialeacutetica como uma outra ontologia outra experiecircncia do ser ndash e a negatividade se torna gradualmente uma reapropriaccedilatildeo laboriosa mas sempre exitosa Mas afinal onde eacute o lugar desse ecircxito Em que lugar do percurso nos datildeo o direito de parar em uma significaccedilatildeo isolada que o totalizariardquo E veja-se ainda tambeacutem o seguinte trecho ldquoO jogo portanto natildeo paacutera nenhuma descriccedilatildeo eacute privilegiada nenhum movimento termina em um nome que resumiria seu percurso Incessante vitoacuteria do sentido tanto quanto se quiser mas tambeacutem advento da mais desconcertante noccedilatildeo de lsquosentidorsquo Estranho lsquocoroamento da metafiacutesicarsquo com efeito um discurso que natildeo paacutera de denunciar como parcial a tese que ao que parece ele vem formular ndash discurso que ao ponto final prefere o corretivo que torna a questionar a frase inteira Estranho lsquodogmatismorsquo esse interditando ao leitor jamais se repousar em um ponto fixo e sempre o deportando mais longerdquo (Lebrun G A paciecircncia do Conceito respectivamente p 307 e p 308)
428 Ver Fulda H F Philosophisches Denken in einer spekulativen Metaphysik in Paumltzold DVandejagt A (eds) Hegels Transformation der Metaphysik Koumlln Dinter 1991 pp 62-82
429 GW 12 p 236 trad p 559 (ldquoSie ist der einzige Gegenstand und Inhalt der Philosophierdquo)
158
configuraccedilotildees (Gestaltungen) que ela assume no seu processo de autodeterminaccedilatildeo430 Esse
reconhecimento se daacute portanto conforme ao meacutetodo ndash que eacute a proacutepria ideacuteia absoluta como
forma ndash e o qual foi objeto de nossa anaacutelise neste capiacutetulo O processo dialeacutetico que ocorre no
meacutetodo compotildee segundo a descriccedilatildeo hegeliana nos sectsect79-82 da Enciclopeacutedia431 de trecircs
aspectos (Seiten) atuantes em ldquotodo loacutegico-realrdquo432 Isto significa que no processo de
autodeterminaccedilatildeo da ideacuteia absoluta esses trecircs aspectos satildeo trecircs momentos que se realizam
naquilo que a cada caso se determina Assim temos em cada loacutegico-real o momento do
entendimento o dialeacutetico ou negativamente-racional e por fim o especulativo ou
positivamente-racional433
O momento do entendimento eacute aquele em que se permanece na determinidade finita e
limitada O combate a essa a essa unilateralidade do que eacute posto pelo entendimento eacute efetuado
pelo ceticismo434 operante no momento negativo-dialeacutetico do meacutetodo Eacute esse ceticismo que
atua no sentido de mostrar como jaacute observara Fulda que as determinidades postas pelo
entendimento natildeo apenas natildeo satildeo fixas como tambeacutem satildeo negadas por suas opostas que as
limitam Cabe por fim ao especulativo apreender ldquoa unidade das determinaccedilotildees em sua
oposiccedilatildeordquo435 na medida em que resolve a contradiccedilatildeo que haacute entre elas com a negaccedilatildeo das
mesmas no passar (Uebergehen) a outra coisa que nada mais eacute que o resultado Resultado que
conserva em si essas determinaccedilotildees que foram negadas no processo de Aufhebung
Fulda crecirc que esse exame efetuado no lado ceacutetico do meacutetodo eacute o que permite a
modificaccedilatildeo de conteuacutedo dos conceitos pela especulaccedilatildeo436 O exame ceacutetico bem realizado
continua ele torna possiacutevel a sistematizaccedilatildeo do que foi obtido no momento positivo-racional
do meacutetodo437
430 Cf Ibidem p 236 trad pp 559-560
431 Cf GW 20 pp 118-120 trad pp 159-169
432 GW 20 E sect79 p 118 trad p 159
433 Ibidem p 118 trad p 159
434 Hegel no sect78 da Enciclopeacutedia chama esse momento dialeacutetico de ceticismo consumado (vollbrachte Skepticismus) Cf Ibidem p 118 trad p 156
435 Ibidem p 120 trad p 166 (ldquofaszligt die Einheit der Bestimmungen in ihrer Entgegensetzung auf []rdquo)
436 Cf Fulda Philosophisches Denkenhellip p 70
437 Cf Ibidem p 70
159
Parece-nos que para Hegel a saiacuteda para natildeo se cair novamente no ceticismo estaacute
justamente em proceder como o ceacutetico Eacute claro que a partir da integraccedilatildeo de seu procedimento
agrave filosofia especulativa e deixando-se para traacutes o ponto de vista do entendimento que tambeacutem
era o do ceacutetico ao se aceitar que a negaccedilatildeo fosse abstrata E antes que o ceacutetico pudesse
novamente acusar a filosofia especulativa de parcialidade esta dado que natildeo pretende que
seus resultados natildeo possam ser superados estaacute pronta para um outro exame ceacutetico de suas
determinaccedilotildees ateacute que um novo resultado seja alcanccedilado A precipitaccedilatildeo (propeacuteteia)
dogmaacutetica tatildeo combatida pelos ceacuteticos pode entatildeo ser evitada com esse paciente exerciacutecio
dialeacutetico que acabamos de expor Se natildeo haacute porque se deter num ponto determinado de uma
vez por todas como vingar a acusaccedilatildeo de precipitaccedilatildeo Hegel deixa sempre aberta a hipoacutetese
de que a investigaccedilatildeo continue assim como o queriam os ceacuteticos Mas a despeito desse fato
cremos que mesmo assim e nosso filoacutesofo tambeacutem estaacute ciente disso seja difiacutecil que os
advogados da duacutevida terminem por concordar com ele
161
CONCLUSAtildeO
Nesta nossa pesquisa acerca da temaacutetica do ceticismo na filosofia de Hegel
procuramos ressaltar a importacircncia que ele concede ao ceticismo como procedimento criacutetico-
investigativo na constituiccedilatildeo de sua proacutepria filosofia
Nesse trajeto buscamos apontar o interesse de Hegel pela filosofia ceacutetica desde o
iniacutecio de sua carreira filosoacutefica verificaacutevel jaacute nas suas primeiras publicaccedilotildees como o escrito
sobre a Diferenccedila e o artigo sobre o ceticismo
Na apresentaccedilatildeo e anaacutelise da interpretaccedilatildeo hegeliana do ceticismo torna-se patente a
preocupaccedilatildeo do filoacutesofo em uma resposta ao desafio que o ceticismo constitui para a
elaboraccedilatildeo e sustentaccedilatildeo de sua filosofia positiva A intenccedilatildeo ceacutetica de tudo que se lhe
apresenta com valor de verdade submeter a exame visto que sem essa atitude natildeo se vecirc o
ceacutetico em condiccedilotildees de talvez poder assentir a qualquer verdade eacute vista com bons olhos por
Hegel Esse natildeo aceitar nada como dado natildeo aceitar pressupostos natildeo examinados eacute uma
exigecircncia que Hegel adota para a filosofia especulativa A questatildeo eacute que no seu exame o
ceacutetico reiteradamente mostra a limitaccedilatildeo e a falta de universalidade das verdades
pretensamente absolutas que foram objeto da sua investigaccedilatildeo Ele mostra assim que a um
discurso se pode opor um outro discurso de igual forccedila
Hegel se daacute conta dessa forccedila da criacutetica ceacutetica Que a filosofia que natildeo a considera estaacute
fadada a perecer Para responder ao ceacutetico contudo Hegel natildeo se empenhou simplesmente
em refutaacute-lo Isso seria inviaacutevel justamente porque a filosofia precisa valer-se da criacutetica ceacutetica
para se constituir Por outro lado natildeo entrava em pauta para ele adotar a posiccedilatildeo ceacutetica E isto
porque nota que o ceacutetico tambeacutem assume certos pressupostos dos quais natildeo tem consciecircncia
O seu ecircxito no combate ao dogmatismo eacute possiacutevel em virtude de exercer sua criacutetica no
domiacutenio do entendimento logo assumindo como pressuposto as regras que regulam esse
domiacutenio Assim o ceacutetico consegue contrapor discursos ou argumentos porque no acircmbito do
entendimento aquilo que eacute afirmado natildeo leva em consideraccedilatildeo o seu oposto A limitaccedilatildeo das
determinaccedilotildees postas no acircmbito do entendimento faz com que as mesmas sejam aniquiladas
com a posiccedilatildeo daquelas que se lhes contrapotildeem Aleacutem disso nesse domiacutenio vige o princiacutepio
de natildeo-contradiccedilatildeo e uma vez estabelecida a contradiccedilatildeo o resultado eacute um nada a que se
162
chega com a aniquilaccedilatildeo dos contrapostos Diante da contradiccedilatildeo o ceacutetico natildeo tem como
avanccedilar Ele natildeo vecirc que haja uma outra maneira de considerar a oposiccedilatildeo e a contradiccedilatildeo
Independente dessas limitaccedilotildees o que Hegel faz eacute incorporar reformulado o
procedimento ceacutetico de contraposiccedilatildeo de argumentos agrave sua filosofia O que ele denominou de
seu lado negativo Mas aleacutem do domiacutenio do entendimento haacute o especulativo no qual as
oposiccedilotildees e a consequumlente contradiccedilatildeo entre elas satildeo vistas de maneira positiva Natildeo se
termina aqui com a contradiccedilatildeo num nada vazio Ela se resolve positivamente pois a
negaccedilatildeo aqui atuante faz com que o movimento avance nesse sentido A possibilidade de
conseguirmos escapar da criacutetica ceacutetica estaacute vinculada portanto agrave integraccedilatildeo de sua dialeacutetica
antinocircmica agrave filosofia o que tambeacutem envolveraacute a criacutetica dos pressupostos assumidos pelo
ceticismo Assim a soluccedilatildeo que Hegel encontra para que natildeo nos tornemos alvo do ceticismo
e ao mesmo tempo natildeo tenhamos que assumir a posiccedilatildeo ceacutetica implica na incorporaccedilatildeo do
procedimento criacutetico-ceacutetico agrave filosofia
163
OBRAS DE HEGEL
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Kritische Schriften Gesammelte Werke vol 4
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Moldehhauer e K M Michel Frankfurt a M Suhrkamp 1986 vol 18
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Moldehhauer e K M Michel Frankfurt a M Suhrkamp 2003 vol 19
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ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Wissenschaft der Logik Erster Band Erstes Buch Die Lehre vom Sein
(1832) Gesammelte Werke vol 21 Hamburg Meiner 1984
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(1813) Gesammelte Werke vol 11 Hamburg Meiner 1978
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ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Wissenschaft der Logik Zweiter Band Die subjektive Logik oder die
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da criacutetica ao ceticismo de Gottlob Ernst Schulzerdquo in Revista Dois Pontos UFSCARUFPR
vol 4 nuacutemero 2 2007
MUumlLLER M L ldquoO idealismo especulativo de Hegel e a modernidade filosoacutefica criacutetica ou
radicalizaccedilatildeo dessa modernidaderdquo Revista Eletrocircnica Estudos Hegelianos ano 2ordm Nordm 3
2005
PORCHAT PEREIRA O Rumo ao ceticismo Satildeo Paulo Unesp 2006
____________________ Vida comum e ceticismo Satildeo Paulo Brasiliense 1993
SCHAumlFER R Die Dialektik und ihre besonderen Formen in Hegels Logik In Hegel-
Studien Beiheft 45 Hamburg Felix Meiner 2001
SCHULZE G E Kritik der theoretischen Philosophie Band 1 Hamburg 1801 (reimpressatildeo por Aetas Kantiana Bruxelas Culture et Civilisation 1973)
SEXTO EMPIacuteRICO Outlines of Pyrrhonism vol I trad de RG Bury Cambridge Harvard
University Press 2000 Grundriszlig der pyrrhonischen Skepsis trad de Malte Hossenfelder
Frankfurt a M Suhrkamp 1985
SEXTO EMPIacuteRICO Adversus Mathematicos trad de RG Bury The Loeb Classical
Library in four volumes Cambridge Harvard University Press 1985
168
VIEWEG K e BOWMAN B (orgs) Die freie Seite der Philosophie (Skeptizismus in
hegelscher Perspektive) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der
Philosophie Band 10 2006
_________________________________ Wissen und Begruumlndung (Die Skeptizismus-Debatte
um 1800 im Kontext neuzeitlicher Wissenskonzeptionen Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp
Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 8 2003
VIEWEG K (org) Gegen das lsquounphilosophische Unwesenrsquo (Das Kritische Journal der
Philosophie von Schelling und Hegel) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches
Jahrbuch der Philosophie Band 7 2002
___________ Die Philosophie des Remis - Der junge Hegel und das ldquoGespenst des
Skepticismusrdquo Muumlnchen Wilhelm Fink 1999
ZIMMERLI W C DIE FRAGE NACH DER PHILOSOPHIE Interpretation zu Hegels
Differenzschrif In Hegel-Studien Beiheft 12 Bonn Bouvier 1974
2
FICHA CATALOGRAacuteFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP Por Sandra Ferreira Moreira CRB nordm 085124
Tiacutetulo em inglecircs Skepticism and speculative dialectic in Hegelrsquos philosophy
Palavras chaves em inglecircs (keywords)
Aacuterea de Concentraccedilatildeo Filosofia Titulaccedilatildeo Doutorado Banca examinadora
Data da defesa 04122009 Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia
Hegel Georg Wilhelm Friedrich 1770-1831 Dialectic Skepticism Sextus Empiricus Idealism German Criticism Philosophy German Knowledge Theory of
Roberto Bolzani Filho Eduardo Brandatildeo Joseacute Eduardo Marques Baioni Hans Christian Klotz
Martin Luiz Fernando Barreacutere M364c Ceticismo e dialeacutetica especulativa na filosofia de Hegel Luiz
Fernando Barreacutere Martin - - Campinas SP [s n] 2009 Orientador Marcos Lutz Muumlller Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e Ciecircncias Humanas
1 Hegel Georg Wilhelm Friedrich 1770-1831 2 Dialeacutetica 3 Ceticismo 4 Sexto Empiacuterico 5 Idealismo alematildeo 6 Criacutetica 7 Filosofia alematilde 8 Teoria do conhecimento I Muumlller Marcos Lutz II Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e Ciecircncias Humanas IIITiacutetulo
5
RESUMO
Trata-se inicialmente de neste trabalho analisar a leitura hegeliana da filosofia ceacutetica
especificamente o ceticismo pirrocircnico Dessa maneira seraacute possiacutevel comeccedilar a avaliar em
que medida o ceticismo eacute importante para a filosofia de Hegel em geral e em particular para
a constituiccedilatildeo de seu meacutetodo dialeacutetico especulativo Percorreremos textos de vaacuterias fases da
filosofia de Hegel no qual o ceticismo ou eacute tema central ou aparece dentro de um contexto
que tambeacutem nos interessa a saber a discussatildeo acerca do meacutetodo No que respeita a este
uacuteltimo objeto da segunda parte da tese examinaremos na Ciecircncia da Loacutegica os momentos
onde podemos observar de modo privilegiado a constituiccedilatildeo do meacutetodo dialeacutetico hegeliano a
saber a seccedilatildeo dedicada na Doutrina da Essecircncia agraves determinaccedilotildees de reflexatildeo e a seccedilatildeo
intitulada Ideacuteia Absoluta uacuteltimo capiacutetulo do livro A partir desse estudo da Ciecircncia da
Loacutegica poderemos entatildeo julgar com maior exatidatildeo no que o meacutetodo filosoacutefico hegeliano eacute
devedor da filosofia ceacutetica isto eacute como esse meacutetodo eacute formulado de modo que o ceticismo
seja integrado a ele A ideacuteia central eacute mostrar que natildeo haacute da parte de Hegel uma simples
refutaccedilatildeo do ceticismo mas antes que o ceticismo eacute a filosofia incontornaacutevel da qual se
deve partir para que a filosofia natildeo caia viacutetima das aporias ceacuteticas Essa eacute a via que Hegel
encontra para natildeo se tornar ceacutetico pirrocircnico e ao mesmo tempo natildeo ser alvo da criacutetica ceacutetica
7
ABSTRACT
First it means to analyse Hegelrsquos reading of the skeptical philosophy specifically
pyrrhonian skepticism Thus it will be possible to assess to what extent the skepticism is
important to Hegelrsquos philosophy in general and in particular for the formation of his
speculative dialectical method We will cover texts from many phases of Hegelrsquos philosophy
in which skepticism is focus or appears within a context that also interests us namely the
discussion of the method Regarding this last one subject of the second part of the thesis we
examine in Science of Logic the moments where we can observe in a special way the
formation of hegelian dialectical method the section in Doctrine of Essence that is dedicated
to the determinations of reflection and the section entitled Absolute Idea the last chapter of
the book From this study of Science of Logic we can judge more accurately what the
Hegelian philosophical method is liable to the skeptical philosophy which means how this
method is formulated in a way that skepticism is a part of it The main idea is to show that
Hegel does not try a simple refutation of skepticism more than this he shows that skepticism
is the philosophy unavoiable which preserves the philosophy from fall victim of skepticals
aporias This is the way that Hegel finds to not become skeptical pyrrhonian and also the
subject of skeptical criticism
9
Para a Luciana
11
Eacute poreacutem muito mais difiacutecil conferir fluidez aos
pensamentos fixos do que ao ser-aiacute sensiacutevel
Hegel
A razatildeo captou sua proacutepria fundaccedilatildeo na ausecircncia
de fundamento das limitaccedilotildees e particularidades
Hegel
13
AGRADECIMENTOS
Ao Prof Marcos Lutz Muumlller pela oportunidade de poder jaacute haacute alguns anos conviver
intelectualmente por sua orientaccedilatildeo rigorosa pelas indicaccedilotildees valiosas pela liberdade de
pesquisa que sempre me proporcionou fundamental para a realizaccedilatildeo desta tese e por sua
amizade
Aos Profs Roberto Bolzani e Joseacute Eduardo M Baioni pelas anaacutelises criteriosas no
meu exame de qualificaccedilatildeo que muito contribuiacuteram para o andamento posterior deste
trabalho
Ao prof Oswaldo Porchat que talvez nem se decirc conta de quanto tambeacutem participou
da orientaccedilatildeo desta tese e pela sua amizade
Agrave Capes pela bolsa de doutorado a mim concedida fundamental para a realizaccedilatildeo
deste trabalho
Ao convecircnio Capes-DAAD pela bolsa de doutorado-sanduiacuteche que me permitiu
pesquisar na Freien Universitaumlt Berlin sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Andreas Arndt e
tambeacutem pela bolsa de estudos de alematildeo em Dresden
Ao DAAD pelo auxiacutelio que me permitiu uma nova temporada de pesquisa na Freien
Universitaumlt Berlin sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Andreas Arndt
Aos meus pais Nelson e Doralice e aos meus irmatildeos Carlos Frederico e Viviane
Agrave minha famiacutelia
Ao apoio e incentivo dos amigos do Brasil e da Alemanha
Especialmente agrave Luciana que talvez natildeo tenha a dimensatildeo de o quanto foi importante
em todos os aspectos sua presenccedila e incentivo
A todos do departamento de Filosofia e da Secretaria de Poacutes-Graduaccedilatildeo do IFCH-
UNICAMP que direta ou indiretamente tornaram viaacutevel esta pesquisa
15
SUMAacuteRIO
LISTA DE ABREVIATURAS p 17
INTRODUCcedilAtildeO p 19
I ndash Ceticismo pirrocircnico e ceticismo na perspectiva hegeliana
Capiacutetulo 1 ndash O ceticismo pirrocircnico p 25
Capiacutetulo 2 ndash O ceticismo na filosofia do jovem Hegel p 49
Capiacutetulo 3 ndash O ceticismo nas Liccedilotildees sobre a histoacuteria da filosofia de Hegel p 65
II ndash A dialeacutetica-especulativa de Hegel
Capiacutetulo 1 ndash As determinaccedilotildees de reflexatildeo da identidade agrave contradiccedilatildeo especulativa p 101
Capiacutetulo 2 ndash O meacutetodo dialeacutetico-especulativo p 131
CONCLUSAtildeO p 161
BIBLIOGRAFIA p 163
17
LISTA DE ABREVIATURAS
Georg Wilhelm Friedrich Hegel
GW Gesammelte Werke Ediccedilatildeo histoacuterico-criacutetica editada pela ldquoRheinisch-Westfaumllische
Akademie der Wissenschaftenrdquo e publicada pela editora Felix Meiner Hamburg de 1968 em
diante A indicaccedilatildeo seraacute seguida do nuacutemero do volume e da paacutegina
Vol 4 Jenaer Kritische Schriften (Eds) H Buchner e O Poumlggeler 1968
Vol 9 Phaumlnomenologie des Geistes (Eds) W Bonsiepen e R Heede 1980
Vol 11 Wissenschaft der Logik Erster Band Die objective Logik Zweites Buch Die Lehre
vom Wesen (1813) (Eds) F Hogemann e W Jaeschke 1978
Vol 12 Wissenschaft der Logik Zweiter Band Die subjective Logik oder die Lehre vom
Begriff (1816) (Eds) F Hogemann e W Jaeschke 1981
Vol 20 Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830) (Eds) W
Bosiepen e H -C Lucas 1992
Vol 21 Wissenschaft der Logik Erster Band Die objective Logik Erstes Buch Die Lehre
vom Sein (1832) (Eds) F Hogemann e W Jaeschke 1984
Werke Ediccedilatildeo de Eva Moldenhauer e Karl Markus Michel Frankfurt a M
Suhrkamp em 20 volumes A indicaccedilatildeo seraacute seguida do nuacutemero do volume e da paacutegina
Vol 8 Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenchaften I Frankfurt a M Suhrkamp 1993
Vol 18 Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie I Frankfurt a M Suhrkamp
1986
Vol 19 Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie II Frankfurt a M Suhrkamp
2003
19
Introduccedilatildeo
Talvez natildeo seja demasiado dizer que no iniacutecio do seacuteculo XIX Hegel tenha sido o
filoacutesofo que mais detidamente dedicou sua atenccedilatildeo ao estudo e anaacutelise do ceticismo antigo1
Uma de suas primeiras publicaccedilotildees o artigo ienense ldquoRelacionamento do ceticismo agrave
filosofiardquo2 como o proacuteprio tiacutetulo nos informa era todo voltado para o tema e vale mencionar
que parte importante do ensaio cuidava de uma anaacutelise minuciosa do ceticismo antigo3
O interesse de Hegel pelo ceticismo antigo vem mesmo antes de sua mudanccedila para
Iena em 18014 Aleacutem disso eacute preciso ser ressaltado a presenccedila do ceticismo na filosofia
hegeliana eacute o que nos parece natildeo se restringe apenas ao primeiro periacuteodo de sua carreira
1 Em alentado estudo recente Dietmar Heidemann chega mesmo a afirmar o seguinte ldquoNa histoacuteria da filosofia ningueacutem se ocupou mais aprofundadamente do ceticismo antigo pirrocircnico do que Hegel Na sua discussatildeo com a skepsis pirrocircnica Hegel no que respeita ao problema do ceticismo chegou a juiacutezos a que mesmo um veemente adversaacuterio de sua filosofia natildeo pode em princiacutepio negar um significado filosoacutefico sistemaacutetico Entre os neo-pirrocircnicos atuais estatildeo contudo completamente esquecidas as fundamentais anaacutelises de Hegel do conceito do ceticismo ou melhor dizendo satildeo elas completamente desconhecidas por eles Isso eacute mais do que lamentaacutevel pois em muitos aspectos neo-pirronistas como Fogelin Stroud ou Nagel poderiam obter em Hegel sugestotildees produtivas para suas proacuteprias avaliaccedilotildees de maneiras ceacuteticas de problematizarrdquo Cf Heidemann D H Der Begriff des Skeptizismus (Seine systematischen Formen die pyrrhonische Skepsis und Hegels Herausforderung) BerlinNew York Walter de Gruyter Band 78 2007 p 117 Concordo com Heidemann que Hegel possui uma leitura bastante atenta e profunda do ceticismo antigo mas sem endossar sua afirmaccedilatildeo referente a ser Hegel o filoacutesofo que mais se ocupou na histoacuteria da filosofia do ceticismo antigo De fato poderiacuteamos acrescentar o desconhecimento da leitura hegeliana do ceticismo antigo por parte dos estudiosos desta filosofia chama atenccedilatildeo Pensemos por exemplo no caso de Jonathan Barnes e de Julia Annas no livro conjunto The modes of scepticism neste livro ao citarem vaacuterios filoacutesofos importantes que se ocuparam do ceticismo ndash como Montaigne Descartes Hume e Kant ndash natildeo haacute nenhuma menccedilatildeo a Hegel (Cf The modes of scepticism Cambridge Cambridge UP 1985 pp 6-7)
2 Cf GW 4 pp 197-238
3 Apesar de nesse artigo tambeacutem ser feita referecircncia ao ceticismo acadecircmico o interesse principal de Hegel eacute pelo ceticismo pirrocircnico e mais precisamente o ceticismo pirrocircnico exposto por Sexto Empiacuterico nas suas Hipotiposes Pirronianas Dessa maneira sempre que daqui em diante se falar em ceticismo antigo estaremos nos referindo ao ceticismo pirrocircnico A respeito da referecircncia ao ceticismo acadecircmico no artigo especificamente na disputa entre pirrocircnicos e acadecircmicos acerca de qual deles poderia ser o legiacutetimo representante do ceticismo ver nosso artigo ldquoAlguns aspectos da compreensatildeo hegeliana do ceticismo antigo a partir da criacutetica ao ceticismo de Gottlob Ernst Schulzerdquo pp 237-240 In Revista Dois Pontos UFSCARUFPR vol 4 nuacutemero 2 2007
4 A propoacutesito do interesse de Hegel pelo ceticismo no periacuteodo anterior agrave sua ida para Iena ver de Klaus Vieweg Philosophie des Remis (Der junge Hegel und das lsquogespenst des Skeptizismusrsquo) Muumlnchen Wilhelm Fink 1999
20
filosoacutefica que vai justamente ateacute 1807 com a publicaccedilatildeo da Fenomenologia do Espiacuterito5 O
diaacutelogo hegeliano com o ceticismo pode ser observado natildeo apenas nesse periacuteodo inicial de
sua atividade intelectual filosoacutefica visto que ele se espraia por toda sua obra
No acircmbito de um estudo a respeito das relaccedilotildees da filosofia de Hegel com o ceticismo
nossas pretensotildees satildeo modestas Isto quer dizer que natildeo eacute nosso intento neste trabalho
explorar em todos os seus aspectos a minuciosa ocupaccedilatildeo de Hegel com o ceticismo Hans
Friedrich Fulda vem no que a isso se refere inclusive a declarar que ldquocomo poucos outros o
tema lsquoceticismo e pensamento especulativorsquo eacute adequado para se discutir o conjunto do
conceito filosoacutefico hegeliano e suas conexotildees exteriores que com isso natildeo se eacute meramente
escravo de curiosidade doxograacutefica mas antes que se pode notar o mais nobre interesse por
uma ocupaccedilatildeo filosoacutefica com a histoacuteria da filosofia descobrir o que era significativo numa
filosofia passada e eacute uma demanda natildeo-satisfeitardquo6
De um ponto de vista mais amplo nos importa com efeito mostrar que o ceticismo
antigo se faz um interlocutor fundamental de Hegel no que toca agrave possibilidade de
constituiccedilatildeo e sustentaccedilatildeo de sua filosofia especulativa Nesse contexto natildeo eacute porque a
filosofia hegeliana natildeo possa obviamente ser considerada ceacutetica que isto signifique como
algueacutem poderia pensar que o filoacutesofo tenha uma visatildeo essencialmente negativa do ceticismo
pirrocircnico Muito ao contraacuterio E se Hegel tece criacuteticas ao ceacutetico elas se devem por exemplo
natildeo ao seu modo de proceder no combate ao dogmatismo mas ao resultado a que ele chega
em virtude da incapacidade de se decidir agrave maneira dogmaacutetica a suspensatildeo do juiacutezo (epokheacute)
A criacutetica ceacutetica ao dogmatismo na sua prolificidade necessita ser tomada tatildeo a seacuterio que
Hegel acaba por propor a incorporaccedilatildeo do ceticismo agrave filosofia Uma estrateacutegia poderiacuteamos
dizer de imunizaccedilatildeo De fato a integraccedilatildeo do ceticismo agrave filosofia constitui-se numa maneira
de se defender da posiccedilatildeo ceacutetica levada agraves suas uacuteltimas consequumlecircncias Hegel natildeo pretende se
tornar ceacutetico pirrocircnico Ocorre que a filosofia que almeje continuar de peacute natildeo importa em que
novos termos natildeo pode fingir que o ceticismo natildeo existe Eacute preciso como veremos estar
atento ao que ele nos pede O que significaraacute afastar duas espeacutecies de atitudes que
5 Obra na qual o ceticismo aparece como o motor do exame a que a consciecircncia submete a si mesma e cujo progredir se daacute por meio de figuras que essa consciecircncia assume Eacute necessaacuterio frisar que natildeo faraacute parte de nossa pesquisa a abordagem do ceticismo na Fenomenologia do Espiacuterito salvo alguns raacutepidos comentaacuterios a respeito do tema em notas de rodapeacute Cremos que o estudo desse texto mereceria um trabalho apenas a ele dedicado
6 Cf Fulda H F e Horstmann R P (eds) Skeptizismus und spekulatives Denken in der Philosophie Hegels Stuttgart Klett-Cotta 1996 p 26 Vale notar que este livro eacute formado por um conjunto de artigos de diversos autores a respeito de distintos aspectos nos quais o tema ceticismo pode ser vinculado agrave filosofia hegeliana
21
comumente os filoacutesofos tomam perante a filosoacutefica ceacutetica ou adoccedilatildeo ou refutaccedilatildeo dessa
postura filosoacutefica Indo aleacutem dessas duas atitudes parece-nos que a questatildeo que Hegel iraacute se
fazer eacute a seguinte Haveria possibilidade de uma filosofia que incorporasse o ceticismo agrave
mesma de modo que ele operasse no seu interior mas sem que ao final se terminasse na
assunccedilatildeo de uma posiccedilatildeo ceacutetico pirrocircnica Seria isso uma mera refutaccedilatildeo do ceticismo
Em linhas gerais Hegel natildeo vecirc desacerto na postura ceacutetica com relaccedilatildeo ao
dogmatismo Pensemos no caso da fundaccedilatildeo de um sistema filosoacutefico seria aos olhos de
Hegel arriscado fazecirc-la deixando de lado a criacutetica que porventura o ceacutetico a ela dirija Uma
vez essa criacutetica desconsiderada as chances de fracasso satildeo iminentes Em outras palavras
seria inoacutecuo tentar se esquivar da posiccedilatildeo ceacutetica Tanto eacute assim que como veremos estaraacute no
cerne da discussatildeo hegeliana acerca da fundamentaccedilatildeo em filosofia a preocupaccedilatildeo em
responder a uma possiacutevel criacutetica ceacutetica por exemplo por meio dos tropos de Agripa
Com efeito a filosofia especulativa seria aquela que a partir do ceticismo terminaria
por encontrar um outro caminho que natildeo fossem aqueles trilhados distintamente por ceacuteticos e
dogmaacuteticos Pelo menos eacute essa cremos a intenccedilatildeo de Hegel Quanto a saber se o objetivo foi
atingido ou natildeo trata-se de uma questatildeo que natildeo assumimos o compromisso de respondecirc-la
A propoacutesito seria possiacutevel ao ceacutetico considerar que a filosofia especulativa natildeo fosse
dogmaacutetica Para tentar responder questotildees desse teor talvez fosse necessaacuterio levar em conta
outros elementos implicados nessa discussatildeo Nesse sentido poderiacuteamos aqui por um lado
nos fazermos de advogado do ceacutetico contra Hegel e sustentar em seu favor como um ceacutetico
poderia acreditar na sinceridade de Hegel quando este avalia positivamente sua filosofia De
fato a linguagem de Hegel seu vocabulaacuterio a complexidade de sua filosofia e a pretensatildeo em
ir aleacutem da diaphoniacutea filosoacutefica datildeo razatildeo para o ceacutetico se afastar dessa filosofia como se esta
representasse mais uma forma de dogmatismo Por outro lado em favor de Hegel e contra o
ceacutetico poder-se-ia entre outras coisas afirmar como ele poderia bom conhecedor que era da
filosofia ceacutetica pretender elaborar um sistema filosoacutefico assentado nas mesmas balizas que o
fizeram as filosofias anteriores Estaria ele na hora de elaborar sua filosofia simplesmente se
esquecendo como que acometido de uma amneacutesia momentacircnea daquilo que positivamente
avaliara no ceticismo 7
7 Parece-nos talvez que Geacuterard Lebrun procurou avanccedilar uma resposta no sentido de mostrar que Hegel continua de onde o ceacutetico paacutera Natildeo haveria assim conflito entre os ceacuteticos e Hegel apenas que ele teria levado mais adiante a investigaccedilatildeo que os ceacuteticos por precipitaccedilatildeo deixaram ainda por fazer Vaacuterias satildeo as passagens em que Lebrun nos daacute a impressatildeo de considerar a filosofia hegeliana como uma espeacutecie de terapecircutica filosoacutefica da
22
Para aleacutem da disputa entre Hegel e o ceticismo talvez a questatildeo a ser feita devesse ser
formulada nos seguintes termos o que distinguiria essa filosofia que ao mesmo tempo
acolhe e afasta de si o ceticismo das outras filosofias O que significa essa filosofia que
almeja nem ser dogmatismo nem ceticismo
Neste estudo nossa proposta eacute a de perscrutar tendo a questatildeo do meacutetodo filosoacutefico
como ponto de fuga a respeito da singularidade dessa filosofia que se quer localizar fora dos
limites dessa arena onde se confrontam dogmaacuteticos e ceacuteticos Assim articulamos este
trabalho em duas partes na primeira trataremos especificamente do ceticismo isto eacute tanto do
ceticismo antigo (cap 1) quanto do ceticismo de acordo com a leitura que dele Hegel faz
(caps 2 e 3) A retomada do ceticismo pirrocircnico serve principalmente para que
comparativamente tenhamos elementos suficientes para avaliar a leitura hegeliana do
pirronismo e tentar melhor compreender o que levou o filoacutesofo a integrar o ceticismo em seu
sistema A seguir com a abordagem de textos de Hegel ndash de vaacuterias fases de sua obra ndash nos
quais o ceticismo ou eacute o tema principal ou esteja fundamentalmente implicado na discussatildeo
desenvolvida poderemos assim tomar aprofundadamente contato com sua interpretaccedilatildeo e
anaacutelise do ceticismo Dessa maneira teremos condiccedilotildees de compreender em que aspectos o
ceticismo positivamente avaliado torna-se importante para a concepccedilatildeo filosoacutefica hegeliana
e faz entatildeo com que ele mereccedila ser integrado agrave filosofia especulativa Aleacutem disso poderemos
observar por que ele ao mesmo tempo eacute limitado Por que por exemplo a espeacutecie de
negaccedilatildeo envolvida na investigaccedilatildeo ceacutetica significa para Hegel a admissatildeo de pressupostos que
mereceriam ser examinados Fundamentalmente a filosofia ceacutetica para Hegel tambeacutem natildeo eacute
isenta de pressupostos que mereceriam ser examinados e satildeo esses pressupostos que
impedem a ela de estender sua criacutetica ao pensamento especulativo
Na segunda parte de nosso trabalho tratamos particularmente da reformulaccedilatildeo
hegeliana do conceito de contradiccedilatildeo (cap 4) a partir da anaacutelise das determinaccedilotildees de
reflexatildeo na Loacutegica da Essecircncia Aleacutem disso no capiacutetulo 5 veremos como os resultados
obtidos no capiacutetulo anterior se refletem na constituiccedilatildeo de seu meacutetodo dialeacutetico-especulativo
tal como desenvolvido no capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica a Ideacuteia Absoluta Seraacute somente
assim a partir dessa ocupaccedilatildeo com a temaacutetica do meacutetodo que poderemos observar como a
linguagem Hegel assim natildeo seria um dogmaacutetico mas em certa medida seria antes o continuador da tarefa investigativa ceacutetica Ver a propoacutesito A paciecircncia do conceito cap 5 ldquoA dialeacutetica nos limites da simples razatildeordquo
23
filosofia especulativa procura ao mesmo tempo vencer as limitaccedilotildees do ceticismo e integraacute-
lo reformulado a si proacutepria
Em todo nosso percurso portanto a preocupaccedilatildeo principal eacute conduzir a pesquisa de
acordo com a tentativa de se compreender na elaboraccedilatildeo da dialeacutetica hegeliana como o
ceticismo pode ser superado e ao mesmo tempo conservado na filosofia hegeliana como o
lado negativo de seu meacutetodo dialeacutetico-especulativo Que natildeo haacute como se esquivar do
ceticismo pelo contraacuterio deve-se dele partir para que a filosofia natildeo seja viacutetima das suas
aporias Essa eacute a via que Hegel encontra para natildeo se tornar um pirrocircnico e simultaneamente
natildeo poder ser alvo da criacutetica ceacutetica
25
I ndash Ceticismo pirrocircnico e ceticismo na perspectiva hegeliana
Capiacutetulo 1 ndash O ceticismo pirrocircnico
Na histoacuteria da filosofia ocupa o ceticismo uma posiccedilatildeo singular Isto se deve ao fato
dele pretender ser uma forma de filosofar que natildeo possui e nem sustenta doutrinas e dogmas
E por doutrina filosoacutefica entendamos o conjunto de teses que uma filosofia procura apresentar
por meio de argumentos concatenados que por fim pretendam nos fazer crer que atingimos
por exemplo algo de verdadeiro a respeito do que eacute investigado Natildeo importa que uma
filosofia seja construiacuteda ou natildeo na forma de um sistema de teses concatenadas e desdobradas
por argumentos ou numa forma natildeo-sistemaacutetica isto eacute por exemplo na forma de aforismos O
que importa eacute que se pretenda afirmar algo de absoluto e verdadeiro a respeito do tema
filosoacutefico exposto8
Como veremos mais adiante o ceacutetico natildeo procura apresentar teses que afirmem com
verdade absoluta e aqui tanto faz se positiva ou negativamente a respeito de um tema
qualquer Ele de fato natildeo sustenta teses pelo contraacuterio procura se manter afastado de
qualquer espeacutecie de enunciaccedilatildeo que remotamente lembre o discurso teacutetico Mas se sua
filosofia natildeo pode ser considerada doutrinal da maneira acima exposta se ela natildeo pretende
dizer o verdadeiro ou como algo seria em sua verdadeira realidade entatildeo o que poderia ser
essa filosofia que vai na contramatildeo do que comumente nos acostumamos a entender por
filosofia Se o ceticismo natildeo possui uma doutrina entatildeo o que sobraria dessa filosofia
Poderia parecer agrave primeira vista que francamente pouca coisa Se uma filosofia natildeo possui
doutrina entatildeo o que seria e teria a oferecer Qual deveria ser para finalmente entrarmos no
nosso assunto o interesse que Hegel teria tido nessa filosofia sui generis
Antes de prosseguir conveacutem notar que quando nos referimos a ceticismo estamos nos
referindo ao ceticismo antigo Mais especificamente ao ceticismo tal como apresentado por
8 Cf Sexto Empiacuterico Outlines of Pyrrhonism (Hipotiposes Pirronianas) vol 1 Ed Por RG Bury Cambridge Harvard University Press 2000 livro I paraacutegrafos 13-15 [doravante citado como HP seguido da indicaccedilatildeo do livro e do paraacutegrafo]
26
Sexto Empiacuterico nas suas Hipotiposes Pirronianas e que tambeacutem poderiacuteamos denominar de
ceticismo pirrocircnico em virtude da filiaccedilatildeo que Sexto estabelece entre esse ceticismo e Pirro9
Voltando a Hegel a forma de ceticismo que lhe interessa eacute a antiga Aleacutem disso o
ponto interessante dessa filosofia seria para ele justamente essa sua falta de conteuacutedo
doutrinal Seratildeo justamente algumas caracteriacutesticas definidoras do ceticismo pirrocircnico e que o
tornam diferente das demais filosofias que faratildeo Hegel se aproximar dessa filosofia Mas o
que poder-se-ia perguntar numa filosofia natildeo-doutrinal pode haver de atrativo
filosoficamente falando Ainda mais quando se sabe que na longa histoacuteria da filosofia o
ceticismo foi em larga medida mal visto foi considerado de modo predominante uma forma
menor de pensamento Eacute certo que houve muitas vozes discordantes e algumas de peso
Hegel eacute uma delas o que todavia natildeo impede que o juiacutezo negativo tenha sido preponderante
Mas graccedilas a que a quais motivos o ceticismo foi sempre atacado O que para a
filosofia que natildeo se quer ceacutetica haveria de tatildeo perigoso nele
Podemos desde jaacute adiantar que na apreciaccedilatildeo positiva do ceticismo antigo por parte de
Hegel haacute espaccedilo para criacuteticas a essa filosofia A posiccedilatildeo de Hegel em relaccedilatildeo ao ceticismo
natildeo consiste eacute o que nos parece nem em uma mera adesatildeo integral e nem em uma simples
tentativa de refutaccedilatildeo do mesmo Cremos que a questatildeo vaacute aleacutem disso Mas que espeacutecie de
relacionamento portanto se estabelece entre a filosofia de Hegel e o ceticismo Se natildeo haacute
nem adesatildeo e nem recusa a essa filosofia o que haveria entatildeo
Mas antes de tentar responder agraves questotildees haacute pouco esboccediladas comecemos por uma
breve exposiccedilatildeo do ceticismo pirrocircnico a partir das Hipotiposes Pirronianas de Sexto
Empiacuterico Uma exposiccedilatildeo que vai se ater ao delineamento dos traccedilos principais dessa
filosofia Talvez assim fique mais faacutecil e claro compreender natildeo soacute a leitura a nosso ver
9 Acerca da filiaccedilatildeo do ceticismo a Pirro eacute uacutetil citar a seguinte observaccedilatildeo de Oswaldo Porchat ldquoTambeacutem o termo lsquoceticismorsquo se usa no vocabulaacuterio filosoacutefico em diferentes sentidos Vou considerar o termo aqui somente com referecircncia ao pirronismo grego doutrina que se desenvolveu no seacuteculo I antes de Cristo e nos primeiros seacuteculos de nossa era Nossa principal fonte para o estudo do pirronismo eacute a obra de Sexto Empiacuterico que provavelmente viveu na uacuteltima metade do seacuteculo II Os pirrocircnicos se chamaram a si mesmos de lsquoceacuteticosrsquo (skeptikoiacute em grego) e esse termo aparentado ao verbo skeacuteptomai tatildeo-somente significava lsquoaqueles que observamrsquo isto eacute lsquoaqueles que examinam consideram com atenccedilatildeorsquo O nome lsquopirrocircnicosrsquo lhes foi dado porque invocavam o nome do lendaacuterio filoacutesofo Pirro contemporacircneo e companheiro das expediccedilotildees de Alexandre como inspirador de sua doutrinardquo (Cf Porchat O ldquoEmpirismo e ceticismordquo In Rumo ao ceticismo Satildeo Paulo Ed Unesp 2006 p 296) E para uma discussatildeo em torno da filiaccedilatildeo do ceticismo a Pirro ou de sua natildeo-filiaccedilatildeo como no caso do ceticismo chamado de acadecircmico cf Bolzani F R Acadecircmicos versus Pirrocircnicos Tese de Doutorado FFLCH-USP 2003 p2 e ss
27
rigorosa e atenta que Hegel faz do ceticismo como tambeacutem em que medida essa filosofia se
incorpora agrave filosofia hegeliana
Que a filosofia ceacutetica possui um caraacuteter singular que ela como veremos pela
descriccedilatildeo de Sexto Empiacuterico natildeo corresponde agrave maneira ldquotradicionalrdquo de filosofar eacute
declarado de modo bastante niacutetido desde as primeiras linhas das Hipotiposes Pirronianas
Sexto inicia o livro distinguindo as trecircs espeacutecies de filoacutesofos que pode haver de acordo
com o resultado que cada um alcanccedila na sua investigaccedilatildeo10 Assim existem aqueles que em
virtude do resultado de suas investigaccedilotildees declaram ter descoberto a verdade outros
declaram natildeo poder ser apreendida a verdade e por fim haacute aqueles que continuam a
investigar E por que continuam a investigar Porque provavelmente natildeo chegaram a nenhum
resultado conclusivo como no caso das duas outras espeacutecies de filosofia natildeo se consideram
capazes de emitir nenhuma declaraccedilatildeo positiva ou negativa a respeito da existecircncia de uma
suposta verdade filosoacutefica
Sexto denomina entatildeo aqueles filoacutesofos que declaram ter obtido a verdade como
resultado de suas investigaccedilotildees de ldquodogmaacuteticosrdquo aqueles que afirmam ser a verdade
inapreensiacutevel de acadecircmicos e aqueles que continuam a investigar de ceacuteticos As filosofias se
dividem portanto em dogmaacutetica acadecircmica e ceacutetica
Desse iniacutecio das Hipotiposes jaacute se pode depreender que o que vai distanciando o
ceticismo das outras duas espeacutecies de filosofia eacute o fato dele natildeo chegar a uma verdade que
ponha termo agrave investigaccedilatildeo Mas devido a que motivo ou motivos o ceacutetico continua a
investigar E se ele continua a investigar eacute porque talvez ainda pretende chegar a algum
resultado parecido com aqueles que as filosofias dogmaacutetica e acadecircmica chegaram Mas o
uacutenico resultado a que chegou apoacutes ter investigado foi diferente do que ocorreu aos outros
filoacutesofos natildeo chegar a nenhuma verdade Mas natildeo chegar a nenhum verdade numa
10 A esse respeito veja-se HP I 1-4
28
investigaccedilatildeo filosoacutefica natildeo eacute algo pelo menos agrave eacutepoca de Sexto que ocorresse com
frequumlecircncia Ainda mais caracterizar uma filosofia apenas como investigaccedilatildeo permanente
Tambeacutem soa estranho dizer que a descriccedilatildeo a ser feita da filosofia ceacutetica natildeo significa
que o que foi afirmado pretenda ser a expressatildeo de como as coisas satildeo mas antes como diz
Sexto Empiacuterico ldquocomo um cronista noacutes simplesmente relatamos cada fato como ele aparece
a noacutes no momentordquo11
Agrave primeira vista parece contraditoacuterio dizer que algo seraacute afirmado mas que o
afirmado natildeo seja exatamente ldquocomo noacutes o declaramosrdquo Parece assim que se afirma algo
mas que o peso dessa afirmaccedilatildeo ndash e aqui precisamente a respeito da proacutepria descriccedilatildeo da
filosofia ceacutetica ndash natildeo eacute relevante Ora a tomar as coisas dessa maneira ficamos com a
impressatildeo de que natildeo deveriacuteamos entatildeo considerar digno de creacutedito o que se declara da
filosofia ceacutetica A continuaccedilatildeo da frase causa ainda mais estranheza ao se dizer que o relato
concernente agrave filosofia ceacutetica se faz de acordo com o que aparece ao ceacutetico no momento da
descriccedilatildeo ou seja podemos talvez concluir que aquilo que eacute dito do ceticismo poderia variar
de acordo com o momento Hoje seria de um modo e amanhatilde seria de outro
Como veremos no curso desta exposiccedilatildeo a respeito do ceticismo pirrocircnico se
inicialmente a partir do que o proacuteprio Sexto afirma podemos ser levados a enxergar com
receio e a vislumbrar contradiccedilotildees nessa filosofia veremos entatildeo depois que haacute coerecircncia e
sentido nas formulaccedilotildees de Sexto por mais diferentes e estranhas que num primeiro
momento pareccedilam Afinal uma filosofia que se caracteriza pela persistecircncia na investigaccedilatildeo
e que parte da ideacuteia de que o dito a seu respeito natildeo deve ser considerado como as coisas satildeo
mas antes de acordo com o que nos aparece no momento natildeo representa a forma canocircnica de
se fazer filosofia no decorrer de sua histoacuteria
Assim como no caso das outras formas de filosofar a origem do ceticismo foi a
esperanccedila de obter tranquumlilidade (ataraxiacutea)12 Como o ceacutetico atinge a ataraxia isto eacute uma
questatildeo que vai depender para ser respondida de como ele se posiciona perante a
possibilidade de encontrar verdade ou falsidade naquilo que investiga pois inicialmente se
trata tambeacutem para ele de tentar encontrar algo de certo definitivo verdadeiro ndash positiva ou
negativamente ndash naquilo que investiga
11 Cf HP I 4
12 Cf HP I 12
29
Segundo o relato de Sexto tambeacutem o ceacutetico perturbado com as anomalias que
encontrava nas coisas desejava chegar a algo de certo por meio da investigaccedilatildeo a respeito do
que poderia ser verdadeiro ou falso no objeto da pesquisa13 Nesse aspecto o ceacutetico natildeo se
distingue dos chamados dogmaacuteticos e acadecircmicos Tambeacutem ele almejou obter a tranquumlilidade
a partir de uma investigaccedilatildeo filosoacutefica que tivesse seu teacutermino com a descoberta da verdade
ou falsidade nas coisas Em princiacutepio portanto estatildeo os filoacutesofos unidos pela busca do
mesmo fim a saber a ataraxiacutea
Mas se contudo os outros filoacutesofos ou descobriram a verdade ou descobriram que ela eacute
inapreensiacutevel dando por conseguinte um teacutermino agraves suas investigaccedilotildees o ceacutetico natildeo teve ndash se
eacute que podemos dizer isso a seu respeito ndash a mesma sorte
Da sua pesquisa natildeo chegou ao encontro da verdade ou falsidade nas coisas de modo
que ao final se tornasse livre de perturbaccedilotildees Ao contraacuterio o que conseguiu mesmo foi se
tornar mais perturbado Nas coisas investigadas encontrou apenas discordacircncia (diaphoniacutea)
anomalias contradiccedilotildees Natildeo se sentia capaz de assentir que isto era verdadeiro em
detrimento de outra ou outra hipoacutetese que seriam falsas Nenhuma alternativa mostrava-se
mais digna de creacutedito que a outra Dessa maneira a almejada tranquumlilidade fazia-se um
objetivo difiacutecil de ser realizado Pela via da busca do verdadeiro ou do falso do que as coisas
satildeo ou natildeo satildeo real e absolutamente um objetivo cada vez mais distante
E por que com relaccedilatildeo a essa busca as coisas se passariam desse modo A resposta se
encontra no acontecimento de um fato que acabaraacute por se tornar a caracteriacutestica definidora do
que eacute o ceticismo Mais precisamente no curso de sua investigaccedilatildeo filosoacutefica o ceacutetico
terminava sempre encontrando para cada possiacutevel argumento em favor da verdade ou
falsidade de qualquer tema um argumento contraacuterio de igual forccedila (isostheacuteneia) tornando-se
portanto difiacutecil decidir-se por um ou por outro lado14
A repeticcedilatildeo dessa experiecircncia leva o ceacutetico a descrer da possibilidade de que enfim
chegue aos mesmos resultados que as outras filosofias Ele natildeo se sente capaz de decidir entre
as alternativas opostas e igualmente persuasivas A saiacuteda desse impasse natildeo consistiraacute na
opccedilatildeo por um lado ou por outro mas antes natildeo haveraacute decisatildeo nenhuma nesse sentido o que
13 Cf HP I 12
14 Cf HP I 10 tambeacutem 202-5
30
acontece sim eacute ele ser levado agrave suspensatildeo de juiacutezo (epokheacute)15 isto eacute a um estado do intelecto
(staacutesis dianoiacuteas) devido ao qual natildeo se sente capaz de nem afirmar nem negar algo16
Na suspensatildeo do juiacutezo se cristaliza essa incapacidade do ceacutetico se decidir agrave maneira
dogmaacutetica Eacute importante frisar que para a efetivaccedilatildeo da suspensatildeo de juiacutezo natildeo haacute uma atitude
deliberada e positiva do ceacutetico para que tenha o juiacutezo suspenso Ele natildeo decide que iraacute
suspender seu juiacutezo Como Sexto assinala ldquonoacutes somos levados em primeiro lugar a um estado
de intelecto suspensivordquo17
Como vemos a epokheacute eacute um estado do intelecto a que o ceacutetico eacute levado por fruto do
conflito indecidiacutevel que encontra nas coisas que investiga Reiteradamente encontra-se
diante de alternativas opostas uma tatildeo persuasiva quanto a outra Como decidir A partir de
qual criteacuterio tomar essa decisatildeo A precipitaccedilatildeo a imoderaccedilatildeo e porque natildeo dizer o capricho
e vaidade do ldquodogmaacuteticordquo contribuem para sua decisatildeo excludente de uma das alternativas
Caso fosse mais ponderado menos afoito talvez natildeo decidisse tatildeo raacutepido Do ponto de vista
do ceacutetico o problema do dogmatismo reside nisso sua precipitaccedilatildeo (propeacuteteia)
Mas voltando agrave questatildeo da incapacidade de decisatildeo devido agrave equumlipolecircncia
(isostheacuteneia) dos opostos isto eacute por forccedila da igualdade quanto agrave credibilidade e natildeo-
credibilidade dos contrapostos natildeo haacute meio de se fazer uma opccedilatildeo Soacute resta enfim suspender
o juiacutezo E como consequumlecircncia da suspensatildeo adveacutem casualmente a tranquumlilidade (ataraxiacutea)
Natildeo pretendemos adentrar neste momento no tema referente ao significado da
tranquumlilidade no ceticismo pirrocircnico conveacutem antes explicitar porque a oposiccedilatildeo de
argumentos se torna a caracteriacutestica definidora da atitude (agogeacute) filosoacutefica ceacutetica
A agogeacute ceacutetica
A certa altura do iniacutecio das Hipotiposes Sexto apresenta uma definiccedilatildeo do que eacute o
ceticismo ldquoeacute uma habilidade ou atitude intelectual que opotildee fenocircmenos a nuacutemenos de todas
15 Cf HP I 7 10 26 165
16 Cf HP I 10
17 Cf HP I 8
31
as maneiras tendo como resultado que devido agrave equipotecircncia dos objetos e discursos (loacutegois)
assim opostos somos noacutes levados primeiro a um estado suspensivo do intelecto e em seguida
a um estado de tranquumlilidade (ataraxiacutea)rdquo18
Da descriccedilatildeo acima podemos perceber que eacute fundamental para a caracterizaccedilatildeo da
filosofia ceacutetica a oposiccedilatildeo de um discurso a outro Natildeo eacute por outro motivo que Sexto
apresenta como princiacutepio baacutesico do ceticismo a oposiccedilatildeo de todo discurso a um discurso de
igual forccedila (pantiacute loacutegoi loacutegon ison antikeiacutesthai)19
Devido a que poderiacuteamos agora perguntar o ceticismo se caracteriza como uma tal
atitude (agogeacute) um tal modo de proceder
Eacute a renovada experiecircncia do conflito (diaphoniacutea) das posiccedilotildees contraacuterias que o leva a
adotar essa postura como caracterizadora da filosofia ceacutetica Diferente dos ldquodogmaacuteticosrdquo o
ceacutetico natildeo vecirc como adotar outra postura Natildeo eacute nem uma nem satildeo duas vezes que ele se vecirc
diante de discursos opostos de igual persuasividade A cada nova investigaccedilatildeo depara-se ele
com a isostheacuteneia e por consequumlecircncia eacute levado agrave suspensatildeo de juiacutezo Dessa maneira
podemos supor diante dessa frequumlente experiecircncia resolve mudar de atitude a ponto de
caracterizar sua postura filosoacutefica desse modo ineacutedito
A preocupaccedilatildeo central agora eacute tentar opor a cada discurso aquele outro que se lhe
contrapotildee tornando-se assim difiacutecil dar assentimento a um dos lados opostos em virtude da
igualdade de ambos os lados quanto agrave credibilidade ou natildeo-credibilidade do que por ele eacute
declarado Se o ldquodogmaacuteticordquo tem como meta primeira tentar apreender aquilo que eacute real
verdadeiro e nessa busca podendo chegar agrave conclusatildeo de que a apreensatildeo do real do
verdadeiro comporta duas hipoacuteteses a saber ser possiacutevel ou natildeo ser possiacutevel a apreensatildeo jaacute
o ceacutetico teraacute essa meta apenas em um horizonte distante isto eacute caberaacute primeiro exercitar a
atitude opositiva Essa espeacutecie de decepccedilatildeo a que eacute acometido toda vez que encontra conflito
nas posiccedilotildees dogmaacuteticas leva-o a adotar essa atitude com relaccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo filosoacutefica
Eacute preciso sublinhar que a atitude opositiva ceacutetica natildeo se realiza apenas com relaccedilatildeo a
temas filosoacuteficos Como estaacute descrito naquela definiccedilatildeo haacute pouco citada20 a oposiccedilatildeo se faz
18 Cf HP I 8
19 Cf HP I 12 tambeacutem HP I 8
20 Cf HP I 8
32
entre fenocircmenos e nuacutemenos de todas as maneiras Isto quer dizer que a oposiccedilatildeo natildeo segue
um certo protocolo que regule sua realizaccedilatildeo Ela se faz de variadas maneiras21 fenocircmenos a
fenocircmenos nuacutemenos a nuacutemenos fenocircmenos a nuacutemenos e por aiacute adiante Com efeito o que
Sexto pretende mostrar eacute que o conflito se pode estabelecer de muitos modos possiacuteveis Um
argumento pode se opor a uma suposta evidecircncia fenomenal Exemplo disso temos na
contestaccedilatildeo feita por Anaxaacutegoras contra o fato da neve ser branca com base no argumento de
que se a neve eacute aacutegua congelada e a aacutegua eacute preta por conseguinte a neve tambeacutem eacute preta22 O
que importa aqui portanto eacute mostrar que a oposiccedilatildeo natildeo estaacute sujeita a regras estritas ao
contraacuterio ela se efetua das mais variadas maneiras e com vistas a produzir discursos
conflitantes equumlipotentes ou seja discursos que natildeo podem ter precedecircncia um em relaccedilatildeo ao
outro quanto a ser mais digno de creacutedito23
Se o ceacutetico natildeo consegue tomar uma decisatildeo entre duas alternativas equumlipotentes
entatildeo ele eacute levado a suspender seu juiacutezo Isto significa que ele se vecirc incapacitado de decidir agrave
maneira dogmaacutetica ou seja ele natildeo correraacute o risco de dogmatizar Eacute nesse espiacuterito que eacute dito
nas Hipotiposes que em virtude da oposiccedilatildeo de argumentos ter-se-aacute como consequumlecircncia o
ceacutetico cessar de dogmatizar24 E o que quereria dizer de um modo um pouco mais preciso
cessar de dogmatizar Sexto de antematildeo esclarece que dogma natildeo deve ser aqui entendido
como o simples fato de aceitar algo determinado isto eacute o ceacutetico daria seu assentimento agraves
afecccedilotildees que a ele se impotildeem atraveacutes de uma impressatildeo Ele assim natildeo diria que natildeo lhe
parece que tenha calor ou frio ao ter a sensaccedilatildeo de calor ou frio25 Noutras palavras se ele
sente frio ele natildeo diraacute que natildeo sente frio Se dogma for entatildeo pensado no sentido do exemplo
exposto agora natildeo teria o ceacutetico nada que a ele se opor visto natildeo estar assim dogmatizando
21 Cf HP I 9
22 Cf HP I 33
23 Cf HP I 10
24 Cf HP I 12
25 Cf HP I 13
33
De fato dogma no sentido acima estaacute muito mais proacuteximo daquilo que o ceacutetico entende por
fenocircmeno Posto isso voltemos agrave questatildeo referente ao significado do ceacutetico ldquocessar de
dogmatizarrdquo
Se nos ativermos apenas agrave passagem do texto na qual Sexto expotildee a questatildeo de modo
expliacutecito poderiacuteamos ficar com a impressatildeo de que o ceacutetico esboccedila uma restriccedilatildeo ao alcance
de sua investigaccedilatildeo Tal impressatildeo poder-se-ia assim confirmar porque laacute se declara que o
ceacutetico natildeo dogmatiza caso tomemos o termo doacutegma como ldquoassentimento a qualquer das
coisas natildeo-evidentes investigadas nas ciecircnciasrdquo26 Desse modo parece que a investigaccedilatildeo
restringe-se apenas aos produtos de elaboraccedilotildees conceituais mais sofisticadas o que seria o
caso correspondente agraves ciecircncias Todavia natildeo eacute essa a intenccedilatildeo uacutenica do ceacutetico Seu escopo eacute
mais geral pois ele natildeo pretende dogmatizar natildeo apenas em relaccedilatildeo agraves ciecircncias mas tambeacutem
em relaccedilatildeo a qualquer coisa que seja natildeo-evidente
ldquoCom efeito o pirrocircnico natildeo daacute seu assentimento a nenhum dos natildeo-evidentesrdquo27
Em outra passagem das Hipotiposes veremos que a intenccedilatildeo do ceacutetico ao natildeo
dogmatizar eacute de caraacuteter mais geral pois a natildeo-evidecircncia abrange qualquer coisa objeto de
controveacutersia ldquoAliaacutes as coisas controvertidas na medida mesma em que satildeo controvertidas
exibem sua natildeo-evidecircnciardquo28 Aqui natildeo haacute mais referecircncia a objetos de uma determinada
espeacutecie visto que satildeo consideradas natildeo-evidentes simplesmente as coisas controvertidas
Devemos lembrar tambeacutem a discussatildeo haacute pouco feita a respeito da definiccedilatildeo do
ceticismo29 especificamente no que se refere agrave oposiccedilatildeo ceacutetica se realizar das mais variadas
maneiras possiacuteveis ou seja que natildeo haacute restriccedilatildeo quanto ao que vai se contrapor nuacutemenos a
fenocircmenos fenocircmenos a fenocircmenos nuacutemenos a nuacutemenos e assim por diante
26 Cf HP I 13
27 Cf HP I 13
28 Cf HP I 182
29 Ver a respeito pp 30-32 deste estudo
34
Se eacute assim entatildeo que as coisas procedem eacute porque a controveacutersia se estabelece
indiscriminadamente onde houver conflito e discrepacircncia de opiniotildees natildeo importa quanto a
quecirc existiraacute controveacutersia a respeito do que eacute natildeo-evidente30 Por aiacute jaacute podemos ter uma
amostra da radicalidade da criacutetica ceacutetica Natildeo haacute nada que fique a salvo de suas investidas31
Tal radicalidade do ceticismo trouxe por outro lado problemas ao ceacutetico pois a sua criacutetica
foi alvo de muita incompreensatildeo
A partir de agora e ainda no acircmbito dessa discussatildeo acerca do ceacutetico evitar
dogmatizar conveacutem analisar a questatildeo concernente ao estatuto natildeo-dogmaacutetico da linguagem
ceacutetica
Quando no iniacutecio das Hipotiposes Sexto nos alerta para o fato de que suas afirmaccedilotildees
natildeo podem ser tomadas exatamente tal como proferidas e que o alegado a respeito do
ceticismo tem de ser encarado como o relato de um cronista32 Sexto estaacute apenas se
expressando eacute o que nos parece de acordo com uma concepccedilatildeo natildeo-dogmaacutetica da linguagem
ou tambeacutem poderiacuteamos dizer uma concepccedilatildeo ldquomais frouxardquo da mesma
A ideacuteia central para que possamos compreender o caraacuteter das foacutermulas ceacuteticas eacute a de
instrumentalidade O ceacutetico natildeo busca como o dogmaacutetico dizer o real o verdadeiro como as
30 No mesmo sentido Roberto Bolzani sustenta que a contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos natildeo se restringe a determinada classe de objetos isto eacute natildeo se restringe apenas a discursos filosoacuteficos ou cientiacuteficos mas que abrange tambeacutem opiniotildees de caraacuteter mais ruacutestico como por exemplo a suposta lsquoevidecircncia sensiacutevelrsquo de que lsquoagora eacute diarsquo ldquo[] a contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos diz respeito a lsquofenocircmenosrsquo e lsquonuacutemenosrsquo o que significa que a mais simples ndash e na verdade problemaacutetica ndash lsquoevidecircncia sensiacutevelrsquo natildeo escapa de seu caminho A isostheacuteneia natildeo ocorre apenas entre discursos filosoacuteficos que respectivamente afirmem ou neguem por exemplo a existecircncia de uma providecircncia no mundo encontra-se tambeacutem entre duas diferentes visotildees de uma torre ndash uma proacutexima mostrando-a redonda outra distante revelando-a quadrada (cf HP I 32) E natildeo haacute diferenccedila de intensidade persuasiva entre pretensas evidecircncias oriundas de diferentes fontes argumentos e dados sensoriais imediatos todos se misturam em isostheacuteneia como se vecirc por exemplo na anaacutelise do tempo lsquoa julgar pelos fenocircmenos o tempo parece ser algo mas a julgar pelos fenocircmenos o movimento eacute algo mas a julgar pelo discurso filosoacutefico natildeo existersquo(AM X 49)rdquo Cf Bolzani R O ceticismo pirrocircnico na obra de Sexto Empiacuterico Dissertaccedilatildeo de Mestrado FFLCH-USP 1992 pp 36-37
31 Essa criacutetica radical que chamaraacute a atenccedilatildeo de Hegel para a filosofia ceacutetica
32 Cf HP I 4
35
coisas (praacutegmata)33 satildeo em si mesmas Natildeo tenciona que suas asserccedilotildees suas foacutermulas sejam
a expressatildeo de qualquer sentido absoluto O ldquodogmaacuteticordquo sim ele tenciona fornecer um
caraacuteter absoluto verdadeiro ao que afirma Tambeacutem o homem comum muitas vezes intenta se
expressar a respeito de qualquer aspecto de sua vida num sentido amplo de uma maneira
dogmaacutetica isto eacute que possa dizer algo absoluta e verdadeiramente Apenas conveacutem notar
que ele o faz sem a sofisticaccedilatildeo e a elaboraccedilatildeo do discurso filosoacutefico
Diferente dos filoacutesofos e do homem comum ldquoo ceacutetico natildeo potildee suas foacutermulas em
nenhum sentido absolutordquo34 Fundamentalmente o que ele diz natildeo possui a intenccedilatildeo de
expressar o real o verdadeiro o absoluto Em outras palavras natildeo pretende por meio de seu
discurso dogmatizar Tanto na sua vida quanto no combate ao dogmatismo procura ele
sempre evitar dogmatizar
Tomemos entatildeo como objeto de anaacutelise o combate ao dogmatismo e tentemos ver
nesse caso em que sentido ele se expressa mas sem dogmatizar
Quando o ceacutetico natildeo se sente capaz de declarar algo dogmaticamente a respeito das
coisas natildeo-evidentes que investiga simplesmente enuncia ele uma certa afecccedilatildeo Isto quer
dizer que ele apenas estaacute enunciando algo que a ele se impotildee e natildeo pode evitar a saber que
natildeo se vecirc em condiccedilotildees de dizer que isto eacute mais verdadeiro do que aquilo que esta tese
filosoacutefica seja mais plausiacutevel do que aquela outra em suma natildeo eacute capaz de asserir algo
dogmaticamente Neste sentido parece-nos que tecircm de ser compreendidas as ldquofoacutermulasrdquo dos
ceacuteticos anuacutencio de suas humanas afecccedilotildees35 daquilo que lhe aparece
Por natildeo conseguirem nem afirmar nem negar nada a respeito de qualquer tema natildeo-
evidente investigado acabam eles referindo-se a essa situaccedilatildeo pela qual passam por meio de
foacutermulas que expressam essa incapacidade
33 Coisas aqui devendo ser entendidas num sentido amplo ou seja com referecircncia tanto ao que chamamos de fenocircmeno quanto ao que chamamos de nuacutemenos A distinccedilatildeo entre fenocircmenos ou coisas sensiacuteveis e entre nuacutemenos ou coisas inteligiacuteveis eacute elaborada pelo assim chamado pensamento dogmaacutetico Vale antecipar que se o ceacutetico fala por exemplo em fenocircmenos natildeo estaacute ele se expressando dentro do quadro dessa distinccedilatildeo Na continuaccedilatildeo do nosso tratamento do tema da linguagem no ceticismo tentaremos esclarecer o motivo pelo qual o ceacutetico pode ainda se utilizar de termos carregados de significado dogmaacutetico sem no entanto incorrer em dogmatismo
34 Cf HP I 14
35 Cf HP I 203
36
Se essas foacutermulas podem transmitir a impressatildeo de que expressam como as coisas satildeo
absolutamente que o ceacutetico esteja afirmando ou negando algo eacute preciso atentar para o fato de
que essas foacutermulas satildeo expressotildees de algo que ao ceacutetico se impotildee que lhe aparece Tratam-se
de meras afecccedilotildees Ao dedicar algumas seccedilotildees das Hipotiposes36 ao comentaacuterio das foacutermulas
ceacuteticas natildeo eacute outra sua intenccedilatildeo que natildeo a de esclarecer de que maneira natildeo-dogmaacutetica elas
satildeo enunciadas e o que se pretende expressar por meio delas
Quando o ceacutetico diz por exemplo ldquoque todas as coisas satildeo indeterminadasrdquo natildeo
existe a tentativa de afirmar definitivamente que das coisas nada em nenhuma hipoacutetese possa
ser determinado Mas antes que a indeterminaccedilatildeo significa um estado de intelecto (paacutethos
dianoiacuteas) no qual o ceacutetico natildeo se sente capaz de negar ou afirmar algo e mais precisamente a
respeito de temas propostos pela investigaccedilatildeo dogmaacutetica isto eacute daquilo que eacute natildeo-evidente37
Assim38 quando diz que ldquotodas as coisas satildeo indeterminadasrdquo a palavra lsquosatildeorsquo apenas
quer significar lsquoaparece a elersquo e por lsquotodas as coisasrsquo ele somente se refere agraves coisas natildeo-
evidentes investigadas pelos dogmaacuteticos e que foram apenas essas objetos do seu exame
finalmente por lsquoindeterminadasrsquo quer ele dizer que agraves coisas opostas ou em relaccedilatildeo agraves quais
conflitam natildeo sejam [essas coisas natildeo-evidentes] superiores no que respeita agrave credibilidade
ou incredibilidade Sexto repete o mesmo procedimento de anaacutelise em relaccedilatildeo agraves outras
foacutermulas ceacuteticas apresentadas nas Hipotiposes e sempre com o intuito de apontar o caraacuteter
natildeo-dogmaacutetico das mesmas
Nesse contexto se pode compreender segundo o relato de Sexto porque essas
foacutermulas se cancelam juntamente com aquilo a que se aplica a duacutevida ceacutetica39 Cancelam-se
no sentido de que natildeo podem ser tomadas como testemunho de um dogma Nem poderia ser
de outra maneira pois se o ceacutetico natildeo pretende dogmatizar nem suas proacuteprias declaraccedilotildees a
respeito do seu estado de incapacidade em tomar uma decisatildeo podem contrariar a sua atitude
filosoacutefica
A propoacutesito de suas foacutermulas eacute bem conveniente a imagem que ele se utiliza para
esclarecer em que sentido suas foacutermulas satildeo anuladas por elas mesmas
36 Ver a respeito HP I 187-209
37 Cf HP I 198
38 Sobre o que se diraacute a seguir veja-se HP I 198
37
ldquoAliaacutes no que respeita agraves expressotildees ceacuteticas eacute preciso primeiro compreender que noacutes
natildeo fazemos nenhuma asserccedilatildeo positiva no que se refere a elas serem absolutamente
verdadeiras visto que noacutes dizemos que elas podem ser anuladas por si proacuteprias suprimindo-se
ao mesmo tempo que as coisas a propoacutesito das quais elas satildeo ditas assim como aquelas drogas
purificadoras que natildeo somente eliminam os humores do corpo mas tambeacutem a si mesmas com
os humores se expelemrdquo40
Uma vez cumprida sua funccedilatildeo essas foacutermulas podem ser descartadas O ceacutetico apenas
expressou por meio delas aquilo que lhe apareceu a saber que ele se encontra num estado no
qual natildeo se sente capaz de afirmar nem de negar algo e por isso eacute levado a suspender seu
juiacutezo
Sua relaccedilatildeo com a linguagem eacute de outra ordem que aquela que o dogmaacutetico
estabeleceu Este tem a preocupaccedilatildeo com a verdade das coisas com o possiacutevel caraacuteter
absoluto do que assere O ceacutetico natildeo sua preocupaccedilatildeo eacute por meio da linguagem exercer uma
atitude filosoacutefica singular que ao fim ao cabo e por um caminho diferente do trilhado pelo
dogmaacutetico trar-lhe-aacute a ataraxiacutea
O mesmo caraacuteter instrumental que apresentam as foacutermulas ceacuteticas tambeacutem
apresentam os argumentos de que utiliza tanto os criados por ele proacuteprio quanto os que toma
de empreacutestimo para produzir antinomias e assim combater o dogmatismo
A finalidade desses argumentos consiste em como acabou de ser assinalado produzir
antinomias isto eacute contrapor a um argumento posto pelos dogmaacuteticos um outro argumento
que devido agrave equipotecircncia (isostheacuteneia) impeccedila ao ceacutetico de se decidir por um ou por outro
visto que ambos os argumentos parecem ser igualmente persuasivos E uma vez dada a
isostheacuteneia essa posiccedilatildeo de equiliacutebrio das forccedilas em disputa o ceacutetico eacute conduzido agrave
suspensatildeo do juiacutezo
Os ldquoargumentos ceacuteticosrdquo natildeo tecircm portanto outra funccedilatildeo que haacute de levar o ceacutetico a
concretizar seu propoacutesito filosoacutefico natildeo-dogmaacutetico Eles servem como instrumentos que o
39 Cf HP I 14-15 206
40 Cf HP I 206
38
conduzem a isso Quando argumenta contra o dogmaacutetico natildeo procura ldquopocircrrdquo outras tantas
teses no lugar das que foram avanccediladas pelo dogmaacutetico41 A metaacutefora da escada presente no
uacuteltimo capiacutetulo do segundo livro de Contra os Loacutegicos refere-se explicitamente a essa
instrumentalidade dos argumentos utilizados
ldquoAssim como um homem pode apoacutes ter subido a um lugar alto por meio de uma
escada desfazer-se dela assim tambeacutem o ceacutetico ao atingir por via da argumentaccedilatildeo sua
lsquotesersquo que contradiz e portanto suprime uma formulaccedilatildeo lsquodogmaacuteticarsquo tambeacutem suprime no
mesmo movimento sua proacutepria argumentaccedilatildeordquo42
Uma vez chegado ao seu objetivo qual seja estabelecer uma posiccedilatildeo de equiliacutebrio
entre os argumentos opostos (isostheacuteneia) fazendo assim com que se torne um ato precipitado
decidir-se por um dos lados o ceacutetico pode abandonar seu argumento Como instrumento a
serviccedilo de sua atitude anti-dogmaacutetica cumpriu ele sua funccedilatildeo Esses argumentos natildeo
poderiam permanecer como se fossem a demonstraccedilatildeo de teses ceacuteticas opostas agraves teses
adversas levantadas pelos dogmaacuteticos Se pela sua forccedila eles podem fornecer a impressatildeo de
que expressam teses dogmaacuteticas afinal por meio deles o ceacutetico chega agrave epokheacute a
persuasividade desses argumentos eacute aparente43
41 Com respeito ao caraacuteter instrumental dos argumentos de que se utiliza o ceacutetico para construir antinomias cabe recorrer ao comentaacuterio de Oswaldo Porchat ldquoOs argumentos lsquodestrutivosrsquo satildeo construiacutedos no melhor estilo dogmaacutetico seguem os padrotildees da loacutegica e da demonstraccedilatildeo dogmaacutetica satildeo argumentos dogmaacuteticos sob esse prisma em nada se distinguem em natureza dos argumentos dogmaacuteticos lsquoconstrutivosrsquo com os quais se fazem conflitar Porque o que importa aos pirrocircnicos mostrar eacute precisamente esta ambivalecircncia fundamental e constitutiva da argumentaccedilatildeo dogmaacutetica que implica sua autodestruiccedilatildeo graccedilas agrave manifestaccedilatildeo da isostheacuteneia e agrave subsequumlente inevitabilidade da epokheacute O pirronismo faz o dogmatismo assim servir agrave denuacutencia do dogmatismo ele usa o dogmatismo instrumentalmenterdquo Cf Porchat O Rumo ao ceticismo pp 158-159
42 Cf AM VIII 481 In Contra os loacutegicos segundo livro ediccedilatildeo da Loeb Classical Library Willian Heinemann Londres trad de R G Bury 1983 vol 2
43 A propoacutesito da instrumentalidade dos argumentos proferidos pelos ceacuteticos veja-se tambeacutem a seguinte passagem das Hipotiposes ldquoMas eacute preciso saber que natildeo eacute nosso desiacutegnio asserir que eacute irreal o criteacuterio da verdade (isso seria dogmaacutetico) poreacutem jaacute que os dogmaacuteticos parecem ter estabelecido de modo persuasivo que haacute um criteacuterio da verdade noacutes lhe opusemos argumentos que parecem ser persuasivos nem sustentando que satildeo verdadeiros nem que satildeo mais persuasivos que seus contraacuterios mas inferindo a suspensatildeo de juiacutezo em virtude da aparente igual persuasividade desses argumentos e dos que foram expostos pelos dogmaacuteticosrdquo (Cf HP II 79 tambeacutem AM VII 443-4)
39
Tambeacutem aqui em relaccedilatildeo aos argumentos que os ceacuteticos apresentam contra os
argumentos dogmaacuteticos vale ser feita a comparaccedilatildeo dos mesmos com os remeacutedios purgativos
ndash e o ceacutetico a faz ndash pois esses argumentos de algum modo se suprimem a si proacuteprios
juntamente com aqueles outros que se pretendem probativos44
Em suma a linguagem para o ceacutetico eacute considerada de um ponto de vista bem diferente
do que ela o eacute para o dogmaacutetico Para este a linguagem deve ser veiacuteculo de transmissatildeo do
verdadeiro do que eacute absoluto daquilo que eacute natildeo-evidente Dessa perspectiva cada palavra
tem um peso precisa ser empregada de uma maneira muito especiacutefica a fim de que
determinada tese dogmaacutetica seja posta
Outra eacute todavia a perspectiva do ceacutetico as palavras expressotildees argumentos natildeo
possuem para ele essa capacidade de dizer o conhecimento a verdade o absoluto Elas apenas
satildeo o meio pelo qual declara aquilo que lhe aparece em determinado momento Como ele
mesmo diz seu uso da linguagem eacute frouxo natildeo pretende se expressar de modo preciso Assim
como agora se valeu deste termo pode substituiacute-lo por um outro com vistas a evitar que o
compreendam dogmaticamente45 Eacute-lhe indiferente que termos utilize na sua vida cotidiana
ou no seu ataque ao dogmatismo ldquonatildeo conveacutem ao ceacutetico disputar a respeito de palavras
(expressotildees)rdquo46
E aqui entra em cena um outro aspecto do ceticismo e que se vincula a essa forma natildeo-
dogmaacutetica de encarar a linguagem o ldquofenomenismordquo ceacutetico
A linguagem eacute apenas o meio pelo qual o ceacutetico expressa como foi dito em algumas
ocasiotildees neste estudo aquilo que lhe aparece E o que lhe aparece eacute tatildeo sujeito a variaccedilotildees
quanto a linguagem de que ele se utiliza Como veremos a noccedilatildeo de fenocircmeno vai
desempenhar um papel central na economia da filosofia ceacutetica Eacute por meio dela que o ceacutetico
passa a se orientar na sua vida comum e tambeacutem no exerciacutecio de sua atitude filosoacutefica natildeo-
44 Cf HP I 188 Ou ainda ldquoPois haacute muitas coisas que produzem em si proacuteprias o mesmo efeito que produzem em outras coisas Por exemplo assim como o fogo apoacutes consumir a madeira se destroacutei tambeacutem a si proacuteprio e da mesma maneira como os purgativos apoacutes expulsarem dos corpos os fluidos tambeacutem a si mesmos se expelem assim tambeacutem pode o argumento contra a prova ao ter destruiacutedo toda prova tambeacutem a si mesmo suprimir-serdquo (Cf AM VIII 480)
45 Cf HP I 207
46 Ibidem I 207
40
dogmaacutetica Mas o que propriamente significa o fenocircmeno para ele Por que ele seraacute o criteacuterio
segundo o qual ele se conduz
Uma vez que seja estabelecida a equumlipolecircncia isto eacute essa posiccedilatildeo de equiliacutebrio das
forccedilas em disputa o ceacutetico natildeo tendo como decidir por uma ou por outra alternativa dado
que ambas satildeo aparentemente uma tatildeo persuasiva quanto a outra eacute levado agrave epokheacute A
respeito de todas as formas de dogmatismo que investiga tanto os filosoacuteficos quanto os natildeo-
filosoacuteficos acaba sendo ele levado casualmente agrave suspensatildeo de seu juiacutezo
Se for incapaz de decidir fica a impressatildeo de que uma vez adotado o seu ponto de
vista estariacuteamos condenados agrave paralisia Fazer opccedilotildees tomar decisotildees tanto no plano praacutetico
quanto no plano discursivo de alguma forma envolve que se considere que isto eacute preferiacutevel a
aquilo outro que um seja melhor que o outro em determinada situaccedilatildeo Se um ceacutetico se vecirc na
incapacidade de preferir isto a aquilo outro se natildeo consegue decidir visto que encontra
reiteradamente um conflito indecidiacutevel nas coisas que na sua investigaccedilatildeo dos natildeo-evidentes
um equiliacutebrio das posiccedilotildees opostas se estabelece como algueacutem poderia continuar a viver caso
pautasse sua vida pelo ceticismo O resultado da empresa ceacutetica soacute poderia ser mesmo a
paralisia a impossibilidade do agir no seu sentido mais geral
Um dogmaacutetico entatildeo poderia dizer que o ceacutetico assim como ele para agir precisa
decidir E se decidiu teve de considerar que esta decisatildeo eacute melhor que a outra segundo algum
criteacuterio que ele todavia outrora criticou como dogmaacutetico E natildeo haveria como acontecer de
outra forma afinal como poderiacuteamos prosseguir com nossa vida sem que tomaacutessemos
qualquer forma de decisatildeo
De fato o ceacutetico natildeo permaneceraacute inativo em virtude da sua incapacidade de decidir e
que o leva agrave suspensatildeo de juiacutezo Ele como qualquer outro homem continuaraacute tomando
decisotildees e levando adiante sua vida Mas como eacute possiacutevel que apoacutes a epokheacute deixe de ser
inativo sem que ao mesmo tempo acabe por contradizer a sua proacutepria postura filosoacutefica
A resposta estaacute no criteacuterio que vai guiar sua conduta o fenocircmeno Como sabemos o
ceacutetico natildeo tem instrumentos suficientes que lhe permitam decidir a respeito da verdade ou da
41
falsidade de uma teoria que porventura pretenda apresentar a verdade Ele natildeo tem mesmo
como decidir se no acircmbito da experiecircncia sensiacutevel mais comezinha se o mel eacute realmente
doce ou natildeo Enfim tanto no acircmbito dos discursos mais sofisticados da filosofia ou da ciecircncia
quanto no acircmbito de tudo que diga respeito agrave sua vida de homem comum natildeo tem como
proferir um juiacutezo de caraacuteter dogmaacutetico Com o apoio de qual criteacuterio poderaacute decidir que isto eacute
verdadeiro e aquilo falso Naquilo que investiga em relaccedilatildeo ao que se diz dogmaticamente
natildeo consegue encontrar um criteacuterio que lhe permita ter ecircxito na busca pela verdade realidade
das coisas assim como o faz o dogmaacutetico Por toda a parte encontra conflito e desacordo
Para alguns o criteacuterio da verdade possui tais e tais caracteriacutesticas para outros ele possui
caracteriacutesticas diferentes Para outros ainda nem haveria um criteacuterio de verdade47 A noccedilatildeo de
criteacuterio proposta pelos dogmaacuteticos qualquer que ela seja ndash filosoacutefica ou natildeo mais ou menos
elaborada ndash acaba sempre natildeo passando ilesa pelo exame ceacutetico Nos termos pretendidos
pelos dogmaacuteticos natildeo haacute como o ceacutetico natildeo ser levado a suspender seu juiacutezo em relaccedilatildeo a
essa noccedilatildeo Guiar-se por um criteacuterio de maneira anaacuteloga a que os dogmaacuteticos o fazem
significa para o ceacutetico ir portanto contra a orientaccedilatildeo central de sua atitude filosoacutefica Como
obter um criteacuterio que permita concluir pela verdade de que as coisas sejam realmente desta ou
daquela maneira Toda vez que investigou se este ou aquele criteacuterio eacute o verdadeiro o ceacutetico
em acordo com sua atitude investigativa apenas foi trazido agravequele estado de incapacidade de
se decidir agrave maneira dogmaacutetica que assim fez com que suspendesse seu juiacutezo
Eacute em virtude do que acima dissemos que criteacuterio para ele natildeo pode ser entendido
como ldquoaquele a que recorremos para nos convencer da realidade ou da natildeo-realidade de
qualquer coisardquo48
Em que sentido poderiacuteamos entatildeo falar ainda em criteacuterio Para o ceacutetico o criteacuterio seraacute
como jaacute foi mencionado o ldquofenocircmenordquo o que aparece (tograve phainoacutemenon) aquilo que lhe
permite natildeo permanecer inativo em virtude da epokheacute e ldquoconforme ao qual na conduta da
vida praticamos certas accedilotildees e nos abstemos de outrasrdquo49
Se o ceacutetico assim como qualquer outro natildeo estaacute impossibilitado de agir visto que age
de acordo com o que lhe aparece isto que lhe aparece e o faz agir natildeo envolve alguma espeacutecie
47 Para uma discussatildeo geral da problemaacutetica do criteacuterio cf HP II 14-79
48 Cf HP I 21
49 Cf HP I 21
42
de decisatildeo baseada em algum criteacuterio dogmaacutetico a respeito do que quer que seja O que lhe
aparece eacute fruto de um assentimento e de uma afecccedilatildeo involuntaacuteria (Cf HP I 22) Ele eacute
constrangido por uma afecccedilatildeo que a ele se impotildee a agir dessa ou daquela maneira Assim se
ele sente calor ou frio ele natildeo iraacute dizer que acredita natildeo sentir nem calor nem frio (Cf HP I
13) Ele daraacute seu assentimento a esse fenocircmeno que a ele se impotildee ou o calor ou o frio As
decisotildees a serem tomadas seratildeo todas feitas a partir do que aparece Natildeo estaacute no poder dele
por conseguinte decidir-se a respeito do que lhe aparece mas sim decidir-se a partir do que
lhe apareceu Nem poderia ser de outro modo afinal como poderia questionar o proacuteprio
aparecer Quais criteacuterios poderiam guiaacute-lo A mera tentativa que se encaminhasse nessa
direccedilatildeo envolveria um retorno agrave perspectiva dos dogmaacuteticos O fenocircmeno eacute inquestionaacutevel
(azeacutetetoacutes)50 Natildeo haacute o que teorizar a respeito dele Se o ceacutetico tem algo a questionar do
fenocircmeno ele o faz com relaccedilatildeo agraves discussotildees que os dogmaacuteticos dele fazem Qualquer
asserccedilatildeo proferida com a intenccedilatildeo de demonstrar como o fenocircmeno seja realmente e por meio
da qual pretenda-se afirmar uma verdade a seu respeito eacute posta sob investigaccedilatildeo
A partir do que acaba de ser dito talvez fique mais faacutecil entender porque Sexto se
refira no capiacutetulo 10 das Hipotiposes agravequeles que dizem que os ceacuteticos suprimem as
aparecircncias51 Com efeito se for levado em conta os discursos que dogmaticamente pretendem
estabelecer algo em relaccedilatildeo agraves aparecircncias poderiacuteamos entatildeo dizer que os ceacuteticos ldquosuprimemrdquo
as aparecircncias Natildeo eacute o que de fato acontece Os ceacuteticos ndash diante da existecircncia de diversos
discursos conflitantes que tentam cada um de maneira diferente com um grau maior ou
menor de sofisticaccedilatildeo dogmatizar a respeito do que aparece discursos que podem ter contra
eles outros discursos opostos e aparentemente tatildeo dignos de aceitaccedilatildeo ndash satildeo levados agrave
suspensatildeo de juiacutezo Do que se diz a respeito dos fenocircmenos nada pode ele afirmar ou negar
Qualquer juiacutezo que emitisse acerca dos fenocircmenos envolveria a assunccedilatildeo de dogmas E se haacute
supressatildeo das aparecircncias essa supressatildeo se faz a respeito das aparecircncias vistas sob a oacutetica do
discurso dogmaacutetico Natildeo haacute supressatildeo portanto daquilo que lhe aparece e natildeo pode evitar
ldquoPois como noacutes dissemos acima noacutes natildeo derrubamos a representaccedilatildeo passiva (φαντασίαν
παθητικήν) que induz nosso assentimento involuntariamente e essas impressotildees satildeo os
fenocircmenosrdquo52
50 Cf HP I 22
51 Cf HP I 19
52 Cf HP I 19-20
43
Mas tatildeo longe da perspectiva ceacutetica seria tambeacutem todavia afirmar que o dogmatismo
se pode encontrar no coraccedilatildeo do ceticismo em virtude de se considerar o fenocircmeno
inquestionaacutevel
Quando se afirma que o fenocircmeno eacute inquestionaacutevel natildeo se procura dessa maneira
afirmar que ele seja representaccedilatildeo fiel da realidade A aceitaccedilatildeo do fenocircmeno por parte do
ceacutetico se faz isenta de opiniatildeo (adoxaacutestos) Constato diria ele que algo me aparece e guia
minha accedilatildeo natildeo sou capaz contudo de afirmar nada dogmaticamente a respeito desse
aparecer O que natildeo posso eacute questionar que ele a mim se impotildee Dizer o que ele eacute realmente
natildeo eacute algo que esteja em meu poder afirmar Para aleacutem dessa constataccedilatildeo isenta de opiniatildeo
isto eacute natildeo acompanhada de nenhum discurso que procure por exemplo fundamentar esse
caraacuteter inquestionaacutevel daquilo que me aparece natildeo tenho nada a dizer meu juiacutezo estaacute quanto
a este ponto suspenso O que a mim me aparece aparece de modo irrecusaacutevel independente
de minha vontade
Natildeo eacute agrave toa que comumente qualifica de involuntaacuteria a afecccedilatildeo que determinaraacute o seu
agir O fenocircmeno eacute uma afecccedilatildeo isto eacute um paacutethos algo que afeta o ceacutetico e natildeo depende
dele Ele sofre a accedilatildeo de algo que o leva ao assentimento53
O proacuteprio assentimento ao fenocircmeno eacute fruto de um reconhecimento O assentimento
que ele daacute agravequilo que lhe aparece seria apenas a concessatildeo agravequilo que ele natildeo pode evitar e
determina seu agir54
Nessa nossa tentativa de explicitar o ldquofenomenismordquo ceacutetico talvez seja vaacutelido ainda
acrescentar que quando se trata de fenocircmeno no ceticismo eacute necessaacuterio que deixemos de
pensar em termos de uma distinccedilatildeo que poderia existir entre ser e aparecer Natildeo estamos mais
aqui nos movendo no quadro da distinccedilatildeo que muitos filoacutesofos ldquodogmaacuteticosrdquo fizeram entre o
domiacutenio do sensiacutevel das coisas que nos aparecem e o domiacutenio do inteligiacutevel no qual
poderiacuteamos ter acesso ao que as coisas sejam realmente para aleacutem das variaccedilotildees que podem
ser observadas no domiacutenio sensiacutevel
53 ldquo() mas nos dizemos que o ceacutetico eacute perturbado pelas coisas que natildeo consegue evitar Assim noacutes concedemos que ele agraves vezes sente frio e tem sede e sofre vaacuterias afecccedilotildees semelhantesrdquo (Cf HP I 29)
54 A mesma passividade jaacute se observava com relaccedilatildeo agrave suspensatildeo de juiacutezo O que temos agora no que concerne agrave atitude ceacutetica para com o ldquofenocircmenordquo eacute apenas um desdobramento de como um ceacutetico pode exercer sua conduta filosoacutefica uma vez afastado do dogmatismo
44
O fenocircmeno ou aquilo que aparece natildeo abrange para o ceacutetico um domiacutenio separado e
que remeta a um outro domiacutenio que lhe daria seu fundamento No ceticismo fenocircmeno tem
de ser compreendido no sentido mais amplo possiacutevel Nenhum estatuto ontoloacutegico ou
epistemoloacutegico deve lhe ser acrescentado Tudo que aparece ao ceacutetico e lhe determina o agir
apoacutes a epokheacute eacute fenocircmeno Aderindo entatildeo aos ldquofenocircmenosrdquo na observacircncia da vida vive ele
sem opinar (adoxaacutestos)55
Aparece entatildeo a ele que ele tem de se guiar por suas faculdades naturais pelas
afecccedilotildees compulsoacuterias pela tradiccedilatildeo das leis e costumes e pelos ensinamentos das artes56
Com essa divisatildeo do que pode aparecer ao ceacutetico e o permite se conduzir em sua vida mostra-
se assim que do mesmo modo que com os outros homens filoacutesofos ou natildeo seu agir em
princiacutepio natildeo diferiraacute em nada do deles Apoacutes a epokheacute continuaraacute a realizar as mesmas
accedilotildees a viver a mesma vida que todos os outros vivem mas apenas com uma diferenccedila ele
viveraacute mas sem opinar O ceacutetico estaacute consciente de que ele sente fome sede que pensa que
ouve que haacute uma mesa agrave sua frente que algueacutem passa andando agrave sua frente que esta pessoa
se movimenta Ele natildeo nega esses fatos Apenas que natildeo profere nenhuma asserccedilatildeo natildeo
elabora nenhuma teoria que pretendesse dizer o que significariam em si mesmos em sua
realidade esses fenocircmenos Isso quer dizer que ele na sua vida age mas sem pretender fazer
algo fundado nalguma teoria segundo algum criteacuterio que o indique ser melhor isto do que
aquilo este preferiacutevel agravequele dado que soubesse estar agindo de acordo com a verdade
O ceacutetico assente ao que lhe aparece entretanto isto que lhe aparece pode hoje aparecer
de um modo e amanhatilde pode aparecer de outro Aquilo que lhe aparece natildeo eacute aceito porque
estaria de acordo com alguma verdade seria a expressatildeo da realidade mesma em suma essa
afecccedilatildeo (paacutethos) que se lhe impotildee natildeo deve sua aceitaccedilatildeo a um possiacutevel teor dogmaacutetico da
mesma As aparecircncias estatildeo sujeitas a mudanccedilas tanto quanto aquele para quem elas
aparecem Fundado em que posso dizer que aquilo que a mim me aparece tambeacutem iraacute
aparecer da mesma maneira para todos os outros homens Uma vez afastada a perspectiva
dogmaacutetica soacute resta ao ceacutetico comunicar individualmente como fruto de uma experiecircncia
pessoal aquilo que lhe aparece Se a perspectiva dogmaacutetica estaacute afastada eacute perfeitamente
coerente com o ceticismo que o que conduz o ceacutetico na sua vida possa variar Natildeo haacute nada
que o prenda a determinada linha de conduta Se ele age sempre da mesma maneira tal
55 Cf HP I 23
56 Cf HP I 23
45
comportamento natildeo eacute obstaacuteculo a uma mudanccedila de conduta Como jaacute foi salientado o que
hoje lhe aparece de um modo amanhatilde pode aparecer diferente
Na conduccedilatildeo natildeo-dogmaacutetica de sua vida de acordo com o fenocircmeno o ceacutetico procura
agir em conformidade com a finalidade do ceticismo a saber tranquumlilidade (ataraxiacutea) com
respeito a mateacuteria de opiniatildeo e moderaccedilatildeo nos sentimentos (metriopateacuteia) com respeito a
coisas inevitaacuteveis57
Com efeito a busca dogmaacutetica pela tranquumlilidade soacute trouxe dissabores ao ceacutetico Por
essa via natildeo foi capaz de distinguir o verdadeiro do falso nas coisas que investigou natildeo
conseguiu chegar a nenhuma verdade absoluta A uacutenica coisa a que chegou foi encontrar
contradiccedilotildees naquilo que investigava Dessa maneira diante do conflito de igual forccedila entre
argumentos discursos opostos sem poder se decidir por um dos lados em disputa a
tranquumlilidade lhe adveio casualmente com a suspensatildeo do juiacutezo58
Aleacutem disso a moderaccedilatildeo nos sentimentos adveacutem de sua postura natildeo-dogmaacutetica e que
o leva a conduzir-se na vida de acordo com os fenocircmenos Se natildeo haacute dogmas a serem aceitos
entatildeo os ceacuteticos natildeo sofreratildeo como no caso dos dogmaacuteticos por considerarem que possa
haver coisas boas ou maacutes por natureza59 Se o ceacutetico sofre e como assinala Sexto ele de fato
natildeo estaacute assim como natildeo estatildeo os outros homens isento de perturbaccedilotildees em sua vida60 o
sofrimento causado por qualquer forma de perturbaccedilatildeo poderaacute ser minimizado em virtude
dessa atitude consistente no viver conforme o fenocircmeno Natildeo que ele efetivamente natildeo possa
em nenhuma hipoacutetese vir a ter uma qualquer perturbaccedilatildeo Nada mais distante do ceticismo
Apenas que a sua postura filosoacutefica talvez seja mais capaz de realizar a finalidade que ele se
propotildee alcanccedilar De acordo com o que me aparece poderia ele dizer vejo que agindo como
ajo estou menos propenso a ficar perturbado e intranquumlilo do que aqueles que procuram viver
de acordo com dogmas
57 Cf HP I 25
58 Cf Ibidem I 26
59 Cf Ibidem I 27
60 Cf Ibidem I 29
46
Os tropos ceacuteticos
Com o intuito de chegar agrave suspensatildeo de juiacutezo o procedimento de que se serve o ceacutetico
consiste como jaacute mencionado61 em produzir oposiccedilotildees entre as coisas Essas oposiccedilotildees natildeo
seguem regras especiacuteficas Das mais variadas maneiras portanto satildeo elas produzidas Desse
modo opotildeem-se aparecircncias a aparecircncias juiacutezos a juiacutezos aparecircncias a juiacutezos e assim por
diante62
Os tropos satildeo diversos modos pelos quais os ceacuteticos produzem essas antinomias e
assim ele pode ser levado agrave suspensatildeo do juiacutezo Entre os modos mais antigos contam dez63
Satildeo eles o primeiro baseado na variedade dos animais o segundo nas diferenccedilas entre os
homens o terceiro nas diferentes estruturas dos oacutergatildeos dos sentidos o quarto nas
circunstacircncias o quinto nas posiccedilotildees distacircncias e lugares o sexto nas misturas o seacutetimo
nas quantidades e constituiccedilatildeo dos objetos o oitavo na relaccedilatildeo o nono na frequumlecircncia ou
raridade de ocorrecircncia o deacutecimo nos costumes e leis nas crenccedilas miacuteticas e convicccedilotildees
dogmaacuteticas
Podemos dizer de modo sucinto que esses tropos nos mostram o caraacuteter relativo de
todas as coisas A partir de cada um deles considerando-se um aspecto especiacutefico podemos
apontar a relatividade das coisas Tanto eacute assim que o tropo da relaccedilatildeo eacute visto como aquele ao
qual todos os outros nove podem se referir64
Aleacutem desse tropos existem outros cinco posteriores que igualmente satildeo meios de que
se vale o ceacutetico para ser trazido agrave epokheacute o primeiro baseado na diaphoniacutea (discrepacircncia
controveacutersia) o segundo na regressatildeo ao infinito o terceiro na relatividade o quarto na
61 Ver a respeito pp 30-32
62 Cf HP I 31
63 Na sua exposiccedilatildeo do ceticismo de Enesidemo Brochard nos lembra que se os dez tropos foram argumentos que os ceacuteticos mais antigos nos legaram foi justamente Enesidemo que os ordenou e numerou na forma que noacutes os conhecemos O proacuteprio Sexto continua ele assim como Aristocleacutes e Dioacutegenes atribuem os dez tropos a Enesidemo Assim para os estudiosos do ceticismo esses tropos satildeo conhecidos como os tropos de Enesidemo A respeito do que agora foi dito e para uma apresentaccedilatildeo sumaacuteria desses tropos cf Brochard V Les sceptiques grecs Paris Vrin 1969 pp 253-259
64 Cf HP I 39
47
hipoacutetese o quinto no raciociacutenio circular Esses cinco tropos ficaram conhecidos como os
tropos de Agripa65
Com efeito pelo tropo da diaphoniacutea somos postos de frente ao conflito interminaacutevel
de opiniotildees a respeito de todos os assuntos conflito que pode ter surgido tanto entre pessoas
comuns e entre filoacutesofos A dificuldade em decidir do ceacutetico dada essa imensa variedade de
opiniotildees a sua incapacidade em acolher ou rejeitar esta ou aquela opiniatildeo acaba por levaacute-lo agrave
suspensatildeo do juiacutezo66
Pelo tropo da regressatildeo ao infinito o ceacutetico pede ao dogmaacutetico que forneccedila uma nova
prova para o tema pesquisado pois a prova que fora aduzida natildeo lhe pareceu suficiente E
essa nova prova tambeacutem natildeo eacute suficiente e assim pede uma nova prova o que leva a uma
regressatildeo que natildeo tem fim67
O tropo da relatividade nos mostra que o assunto investigado aparece recorrentemente
numa determinada relaccedilatildeo isto eacute estaacute sujeito a uma determinada condiccedilatildeo o que impede que
o que se diga dele seja posto de modo absoluto Assim o assunto estaacute por exemplo
relacionado ao sujeito que julga esse sujeito constitui-se num determinado ponto de vista
natildeo-universalizaacutevel Desse modo diante da relatividade das coisas o ceacutetico eacute induzido agrave
suspensatildeo do juiacutezo68
O tropo da hipoacutetese nos impede de aceitar algo como ponto de partida sem nenhuma
demonstraccedilatildeo Isto acontece porque podemos da mesma maneira que aquele que avanccedilou
essa hipoacutetese tambeacutem levantar uma outra hipoacutetese contraacuteria e sem para tanto aduzir nenhuma
demonstraccedilatildeo para a mesma Tanto uma quanto a outra seratildeo dignas do mesmo creacutedito Natildeo
haacute assim motivo para que uma seja mais aceitaacutevel que sua contraacuteria69
65 De acordo com Brochard a referecircncia desses tropos a Agripa se faz com base na menccedilatildeo de Dioacutegenes a esse filoacutesofo no momento em que cita esses cinco tropos na mesma ordem e termos que o faz Sexto Empiacuterico que no entanto natildeo faz menccedilatildeo a Agripa Acerca da exposiccedilatildeo desses tropos por Brochard cf Les sceptiques grecs pp 300-303
66 Cf HP I 165
67 Cf HP I 166
68 Cf Ibidem I 167
69 Cf Ibidem I 168
48
Por fim pelo tropo do raciociacutenio circular eacute absurdo imaginar que aquilo que seraacute
objeto de prova seja provado a partir daquilo mesmo que aguarda prova e desse modo
acabamos sendo levados novamente agrave epokheacute70
Como poderemos acompanhar neste estudo Hegel estaraacute sempre convencido que a
filosofia precisa tomar a seacuterio essa radicalidade da criacutetica ceacutetica pois de outra maneira a
filosofia corre o risco de perecer diante dessa mesma criacutetica Hegel estaacute atento a esse aspecto
diriacuteamos negativo do ceticismo Tanto eacute assim que ele por exemplo na discussatildeo que
empreende na Ciecircncia da Loacutegica71 acerca do comeccedilo da filosofia tem em vista sempre uma
possiacutevel criacutetica ceacutetica e mais precisamente por meio dos tropos Aleacutem disso esta exposiccedilatildeo
da filosofia ceacutetica permite que se possa eacute o que nos parece avaliar a compreensatildeo hegeliana
do ceticismo e o aproveitamento do mesmo em sua filosofia
70 Cf Ibidem I 169
71 Com relaccedilatildeo ao mesmo tema tambeacutem haacute essa preocupaccedilatildeo na Enciclopeacutedia quando trata da Loacutegica
49
Capiacutetulo 2 ndash O ceticismo na filosofia do jovem Hegel
No seu artigo ldquoRelacionamento do ceticismo agrave filosofiardquo72 Hegel dentre outros
objetivos apresenta sua concepccedilatildeo do papel do ceticismo na filosofia A esse respeito natildeo
nos parece insensato dizer que para o filoacutesofo a possibilidade da filosofia estaacute em larga
medida atrelada agrave consideraccedilatildeo do desafio imposto pela criacutetica ceacutetica do caraacuteter dogmaacutetico
das filosofias73 Natildeo que para que haja filosofia o ceticismo precise ser afastado por meio de
uma refutaccedilatildeo que aponte a falta de propoacutesito de sua atitude filosoacutefica Eacute legiacutetima para Hegel
a criacutetica ceacutetica das filosofias O que natildeo implica para ele que devamos nos tornar ceacuteticos Natildeo
teremos aqui portanto nem adesatildeo ao ceticismo e nem uma mera refutaccedilatildeo do mesmo
Teremos o quecirc entatildeo
No mesmo artigo sobre o Ceticismo veremos que a soluccedilatildeo apresentada por Hegel
para esse impasse envolve a incorporaccedilatildeo do ceticismo agrave sua filosofia Nesta o ceticismo seraacute
um momento fundamental O que ele chama de seu lado negativo e que prepara o surgimento
de seu momento positivo ou o lado positivo da filosofia Por traacutes dessa incorporaccedilatildeo do
ceticismo agrave filosofia opera uma distinccedilatildeo feita por Hegel entre o que seja o entendimento e o
que seja a razatildeo Neste escrito que trata da filosofia ceacutetica natildeo temos todavia uma exposiccedilatildeo
mais minuciosa do significado desses termos
Interessa-nos aqui retomar um outro texto de Hegel a saber Diferenccedila entre o sistema
filosoacutefico de Fichte e de Schelling74o assim chamado Escrito sobre a Diferenccedila pois eacute nele
72 GW 4 pp 197-238
73 No tocante ainda agrave importacircncia decisiva da filosofia ceacutetica para Hegel e levando-se em conta nossa interpretaccedilatildeo que busca entre outras coisas apontar para a relaccedilatildeo natildeo-defensiva do autor para com o ceticismo cremos natildeo estar sozinhos e por isso talvez natildeo seja exagerado mencionar a seguinte declaraccedilatildeo de Michael Forster ldquoEm primeiro lugar a interpretaccedilatildeo hegeliana da tradiccedilatildeo ceacutetica na filosofia e sua reaccedilatildeo a essa tradiccedilatildeo satildeo absolutamente fundamentais para a sua perspectiva filosoacutefica de modo que regiotildees extensas de seu pensamento permanecem obscuras ateacute que essa interpretaccedilatildeo e reaccedilatildeo sejam apropriadamente compreendidas Em segundo lugar as reflexotildees hegelianas a respeito da natureza da tradiccedilatildeo ceacutetica possuem meacuterito intriacutenseco consideraacutevel contendo lsquoinsightsrsquo originais e que podem ser aproveitados por historiadores contemporacircneos da filosofia e filoacutesofos interessados pelo ceticismordquo In Forster M Hegel and Skepticism CambridgeMassachusetts Harvard University Press 1989 p 1 E com respeito precisamente agrave interpretaccedilatildeo hegeliana do ceticismo antigo no livro de Forster ver os capiacutetulos 1 e 2
74 GW 4 pp 5-92
50
que encontraremos uma exposiccedilatildeo detalhada do significado de entendimento e razatildeo e que
nos permitiraacute melhor compreender na visatildeo do jovem Hegel o papel do ceticismo na
filosofia75
Eacute no capiacutetulo inicial do Escrito sobre a Diferenccedila que tem como tiacutetulo ldquo[Das] vaacuterias
formas que se encontram no filosofar atualrdquo que encontramos um tratamento mais detalhado
do significado de entendimento e razatildeo
Tendo como pano de fundo um diagnoacutestico e uma criacutetica da cultura (Bildung) de sua
eacutepoca todavia com o foco aiacute voltado para a filosofia que satildeo efetuadas as consideraccedilotildees
hegelianas a respeito de entendimento e razatildeo Esta criacutetica estaacute alicerccedilada na reflexatildeo criacutetica
da razatildeo sobre si mesma empreendida por Kant mas que Hegel por considerar a mesma
insuficiente procura prolongar e tornaacute-la mais radical76 Nesse sentido a radicalidade da
criacutetica ceacutetica a toda forma de pensamento finito eacute um elemento importante a contribuir nessa
tarefa criacutetica hegeliana
Com efeito Hegel afirma que a razatildeo como manifestaccedilatildeo do absoluto que eacute busca na
sua auto-produccedilatildeo modelar o absoluto numa totalidade objetiva77 O ecircxito da atividade
especulativa da razatildeo depende de se alcanccedilar a identidade a mais completa a identidade
absoluta quando a filosofia do sistema coincide com o proacuteprio sistema Todavia nem sempre
essa identidade eacute alcanccedilada Ainda mais numa eacutepoca em que ldquoa potecircncia de unificaccedilatildeo
desaparece da vida dos homens e as oposiccedilotildees tendo perdido seu relacionamento vivo e sua
75 Vale mencionar ainda apenas a tiacutetulo ilustrativo que o Escrito sobre a Diferenccedila fora publicado em 1801 e o artigo sobre o Ceticismo em 1802 e apenas com poucos meses de diferenccedila
76 ldquoO princiacutepio da independecircncia da razatildeo de sua absoluta autonomia em si mesma deve ser considerado de agora em diante como princiacutepio universal da filosofia e tambeacutem como um dos preconceitos da eacutepocardquo In GW 20 p 99 trad brasileira por Paulo Meneses Enciclopeacutedia das Ciecircncias Filosoacuteficas Satildeo Paulo Loyola 1992 p 136
77 Cf GW 4 p 10 e p 30 trad p 84 e p 104
51
accedilatildeo reciacuteproca ganham subsistecircncia por sirdquo78 Vive-se portanto numa eacutepoca em que a
fragmentaccedilatildeo e o isolamento passaram a ser dominantes em todos os aspectos da vida Uma
cultura fundada no entendimento prosperou e passou a ser dominante79 Mas por mais que seja
um dado da vida esse seu cultivar-se a partir da eterna produccedilatildeo de oposiccedilotildees esta atividade
natildeo pode levar agrave perda de qualquer possibilidade de unificaccedilatildeo Por isso eacute preciso a partir do
combate a essa Bildung limitadora tentar restaurar a harmonia perdida
No aspecto filosoacutefico esse desaparecimento da unificaccedilatildeo que pode ser observado
pelo predomiacutenio dessa cultura regida pela potecircncia da cisatildeo (Entzweiung)80 na qual as
oposiccedilotildees como jaacute foi dito tornaram-se autocircnomas configura-se em uma cultura filosoacutefica
fundada tambeacutem no entendimento uma cultura filosoacutefica na qual a razatildeo renuncia a si mesma
em prol do entendimento (Cf GW 4 p 15)
E o que pode significar para a filosofia estar sob a eacutegide do entendimento Significa
como veremos estar vulneraacutevel aos ataques do ceticismo Cremos que Hegel jaacute neste
momento mesmo sem haver referecircncia direta estaacute preocupado com a defesa da filosofia
perante a criacutetica ceacutetica Em vista da situaccedilatildeo da filosofia naquele momento o diagnoacutestico
hegeliano aponta para o fracasso de qualquer tentativa filosoacutefica de se sustentar perante uma
possiacutevel criacutetica de teor ceacutetico
Com efeito Hegel constatou ser a sua eacutepoca aquela em que a cultura fruto da cisatildeo do
absoluto isolou-se do mesmo e tornou-se autocircnoma81 Mas o fenocircmeno justamente por advir
do absoluto quer se constituir numa totalidade Se o fenocircmeno se constituir num todo a partir
dessa forccedila que limita ndash o entendimento e apoiado em todas as potecircncias da natureza e dos
talentos82 ao final desse processo teraacute apenas uma totalidade composta de limitaccedilotildees um
conjunto de partes justapostas mas natildeo o absoluto E quanto maior o esforccedilo em direccedilatildeo ao
absoluto mais e mais o entendimento produz a si mesmo numa totalidade composta de
finitos que natildeo teraacute fim O entendimento aiacute soacute faz zombar de si mesmo (seiner selbst
78 Ibidem p 14 trad p 88
79 Cf Ibidem pp 12-16 trad pp 86-90
80 Cf Ibidem p 14 trad p 88
81 Ibid p 12 trad p 86
82 Ibid pp 12-13 trad pp 86-87
52
spottet)83 Por outro lado o entendimento ao inveacutes de justapor os limitados por ele mesmo
postos num todo pode suprimindo todo finito fixar ldquoem um produto o negar racionalrdquo (ibid
p 13 trad p 87) Se a reflexatildeo pretendia elevar-se agrave razatildeo com a oposiccedilatildeo do infinito a todo
finito que nega fracassa nesse intento pois ldquoela se rebaixa novamente a entendimento ao
fixar o fazer da razatildeo na oposiccedilatildeordquo84 O infinito enquanto ato racional de negar opotildee-se a
todo finito por ele negado ldquoo entendimento ao fixar o negar do finito opotildee o mesmo
absolutamente ao finitordquo85 Nos dois casos acima descritos por mais que se tente natildeo se
consegue deixar a esfera das oposiccedilotildees Ou porque os opostos permanecem justapostos numa
totalidade finita que sempre pode se ampliar sem nunca tornar-se absoluta ou porque o negar
que se pretende racional natildeo atinge sua meta por manter-se em oposiccedilatildeo a todo finito
A cultura (Bildung) de diferentes eacutepocas observa Hegel mediante o trabalho do
entendimento produziu variadas formas de oposiccedilatildeo e pretendeu que elas valessem como
expressotildees do racional e do absoluto (Cf ibid p 13 trad p 87) Todavia o entendimento
arvorava-se em vatildeo realizar uma tarefa para a qual natildeo fora destinado A razatildeo tem como
uacutenico interesse suspender86 (aufheben) as oposiccedilotildees fixadas pelo entendimento pois essa eacute a
maneira de se tentar restabelecer a harmonia perdida com a dilaceraccedilatildeo do absoluto A tarefa
da razatildeo eacute ainda mais urgente numa eacutepoca que conforme o cenaacuterio descrito por Hegel a
formaccedilatildeo cultural cada vez mais se estende na forma de uma exteriorizaccedilatildeo da vida mediante
a potecircncia da cisatildeo num processo vertiginoso em que tornam-se os esforccedilos da vida mais e
mais alheios ao todo da formaccedilatildeo cultural e insignificantes na sua tentativa de parir
novamente a harmonia (Cf ibid p 14 trad p 88)
Este cenaacuterio eacute a descriccedilatildeo que Hegel faz de uma eacutepoca a sua na qual a filosofia que
natildeo seja mera expressatildeo do pensar limitado de entendimento faz falta Somente com a
realizaccedilatildeo da filosofia pode a cisatildeo absoluta posta pelo entendimento ser posta na sua
condiccedilatildeo verdadeira subalterna de cisatildeo relativa (Cf ibid p 14 trad p 88) Vive-se
83 Cf Ibid p 13 trad p 87
84 Ibid p 13 trad p 87 (ldquohat sich wieder zum Verstand erniedrigt indem sie das Thun der Vernunft in Entgegensetzung fixirterdquo)
85 Ibid p 13 trad p 87 (ldquoindem der Verstand es fixirt setzt er es dem Endlichen absolut entgegen rdquo)
86 Com efeito ao dizer que a razatildeo tem como uacutenico interesse suspender as oposiccedilotildees fixadas pelo entendimento isto se deve ao fato de que a razatildeo natildeo eacute contraacuteria agrave oposiccedilatildeo e agrave limitaccedilatildeo elas precisam existir mas que as oposiccedilotildees absolutamente fixadas impedem a restauraccedilatildeo da totalidade da harmonia absoluta (Cf GW 4 pp 13-14 trad pp 87-88)
53
segundo ele num periacuteodo carente de uma filosofia que cumpra sua tarefa isto eacute que ponha o
ser no natildeo-ser ndash como vir-a-ser a cisatildeo no absoluto ndash como seu fenocircmeno o finito no infinito
ndash como vida (GW 4 16) Sua concepccedilatildeo de razatildeo e de entendimento aleacutem do relacionamento
que entre ambos se estabelece indicam a direccedilatildeo pela qual poderaacute ocorrer o suprimento dessa
carecircncia e ao mesmo tempo tornar a filosofia imune ao ceticismo
Mas de volta agraves paacuteginas iniciais do Escrito sobre a Diferenccedila Hegel laacute notava que o
entendimento constitui-se num domiacutenio onde predomina o limitado Ele eacute ldquoa forccedila da
limitaccedilatildeordquo (GW 4 p 12) Toda determinaccedilatildeo que produz adveacutem de uma atividade reflexiva
apartada da razatildeo Hegel a chama de reflexatildeo isolada (GW 4 p 16) A reflexatildeo soacute pode dar
origem ao o limitado Isto significa que todo ser que ela produz estaraacute sempre numa relaccedilatildeo
com um outro ldquotodo ser porque ele eacute posto eacute um contraposto condicionado e
condicionanterdquo (GW 4 p 17) Sempre haveraacute um outro perante um posto A construccedilatildeo de
uma totalidade no plano do entendimento a formaccedilatildeo de um sistema filosoacutefico segundo suas
regras eacute uma tarefa que nunca se completaraacute uma tarefa fadada ao fracasso o entendimento
completa suas limitaccedilotildees que lhe satildeo proacuteprias mediante o pocircr das limitaccedilotildees contrapostas na
qualidade de condiccedilotildees essas carecem do mesmo completamento (Vervollstaumlndigung) e o
trabalho do entendimento se estende ao infinitordquo (GW 4 p 17) Todo ser posto pela atividade
reflexiva do entendimento natildeo subsiste por si soacute A sua limitaccedilatildeo torna-o dependente de um
outro que a ele se relaciona O entendimento contudo natildeo quer enxergar essa relaccedilatildeo de
dependecircncia existente entre os contrapostos Hegel chama isso de teimosia (Eigensinn) do
entendimento que ldquodeixa subsistir um ao lado do outro numa contraposiccedilatildeo natildeo unificada o
determinado e o indeterminado a finitude e a infinitude dadardquo (GW 4 p 17)
Na criacutetica de Hegel agrave limitaccedilatildeo do entendimento Klaus Vieweg vecirc e julgamos que de
modo acertado a aplicaccedilatildeo do 2ordm e 3ordm tropos de Agripa a essa faculdade do conhecer finito o
entendimento87
87 Vieweg K Philosophie des Remis Der junge Hegel und das ldquoGespenst des Skepticismusrdquo Muumlnchen Wilhelm Fink 1999 p 129 Cabe notar que este livro de Vieweg constitui uma minuciosa investigaccedilatildeo acerca da presenccedila do ceticismo na filosofia do jovem Hegel e em larga medida da discussatildeo em torno do ceticismo no mesmo periacuteodo na Alemanha Ver tambeacutem a respeito ndash e sob um ponto de vista mais amplo ndash da compreensatildeo hegeliana do ceticismo Vieweg K e Bowman B (orgs) Die freie Seite der Philosophie (Skeptizismus in hegelscher Perspektive) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 10 2006 O volume conteacutem uma seacuterie de artigos de diversos autores acerca do tema Tambeacutem no volume que organizou em torno do Jornal criacutetico da filosofia de Schelling e Hegel onde foi publicado o artigo ienense de Hegel sobre o ceticismo haacute alguns artigos tratando do tema ceticismo na filosofia do jovem Hegel Para tanto cf Vieweg K (org) Gegen das lsquounphilosophische Unwesenrsquo (Das Kritische Journal der Philosophie von
54
Se tudo que eacute posto pelo entendimento eacute limitado e finito ou seja em virtude dessas
caracteriacutesticas estaacute sempre na dependecircncia dado seu caraacuteter condicionado de um outro que o
complete na medida que a ele se relacione entatildeo natildeo seria descabido pensar aqui na criacutetica
por meio do 3ordm modo de Agripa ao caraacuteter relativo de todas as coisas (Cf HP I 167 tambeacutem
I 175-7)
Essa relatividade adveacutem para Hegel do fato de que o entendimento eacute regido pelo
princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo algo natildeo pode ser A e natildeo-A ao mesmo tempo Ao se aceitar o
princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo aceita-se concomitantemente o princiacutepio de identidade que A eacute
igual a A Segundo Hegel eacute por estar comandado por esses princiacutepios que o entendimento
estaraacute sempre sujeito a que as determinaccedilotildees por ele postas sejam sempre condicionadas e
possam a elas outras serem contrapostas Ele chama a identidade que rege o entendimento de
relativa e abstrata uma identidade limitada pois as determinaccedilotildees produzidas de acordo com
ela tem como caracteriacutestica proacutepria estarem abstraiacutedas de suas opostas (GW 4 p 25)
As proposiccedilotildees de entendimento satildeo constituiacutedas a partir de uma igualdade que exclui
de si a desigualdade Isto ocorre porque tais proposiccedilotildees satildeo regidas por uma identidade
formal Para o entendimento prossegue Hegel em A=A como princiacutepio de identidade estaacute
contida apenas uma igualdade e na qual se faz abstraccedilatildeo de toda desigualdade (GW 4 pp 24-
25)
Podemos adiantar entretanto que do ponto de vista da razatildeo postula-se tambeacutem ldquoa
posiccedilatildeo daquilo que foi abstraiacutedo na igualdade pura o pocircr do contraposto o pocircr da
desigualdaderdquo (GW 4 p 25) Assim A=A natildeo consiste numa igualdade pura Tal igualdade
se sustenta na medida em que o entendimento abstrai da posiccedilatildeo do contraposto da
desigualdade
Schelling und Hegel) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 7 2002 Cabe ainda mencionar a respeito do tema ceticismo e dos debates no qual ele aparece na filosofia alematilde em 1800 o volume organizado por Vieweg e Bowman Wissen und Begruumlndung (Die Skeptizismus-Debatte um 1800 im Kontext neuzeitlicher Wissenskonzeptionen Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 8 2003 Para uma anaacutelise do ceticismo na filosofia do jovem Hegel ver tambeacutem Hofweber G Skeptizismus als bdquodie erste Stuffe zur Philosophieldquo beim Jenaer Hegel Heidelberg Winter 2006 Dentro ainda do mesmo tema o artigo de Paulo Eduardo Arantes Nihilismusstreit in Ressentimento da Dialeacutetica Satildeo Paulo Paz e Terra 1996
55
Segundo Hegel em A=A o primeiro A eacute um sujeito e o outro A eacute um objeto O A que
estaacute posto do lado do sujeito natildeo eacute o mesmo A que estaacute posto do lado do objeto Eles satildeo
diferentes E a expressatildeo dessa diferenccedila eacute A natildeo eacute = A ou A eacute = B
Uma proposiccedilatildeo formal natildeo pode ser contraditoacuteria em si mesma No domiacutenio do
entendimento se expressa a igualdade numa proposiccedilatildeo e a cisatildeo ou desigualdade em outra
Mas quando entra em cena a razatildeo a identidade formal eacute deixada de lado Em A=A o A
posto do lado do sujeito soacute afirma sua identidade ao se relacionar com seu oposto o A posto
do lado do objeto negando-o Como jaacute foi dito haacute uma diferenccedila entre o A (sujeito) e o A
(objeto)
ldquoA=A conteacutem a diferenccedila de A como sujeito e de A como objeto ao mesmo tempo
que sua identidaderdquo(GW 4 p 26)
O mesmo se passa em A=B --- e por isso eacute indiferente pocircr A=A ou A=B o A sujeito eacute
diferente do B objeto ao mesmo tempo que haacute uma identidade aiacute contida Como conclusatildeo
podemos dizer que a identidade no acircmbito da razatildeo somente eacute possiacutevel com a diferenccedila
Se o entendimento no entanto manteacutem-se de acordo com o princiacutepio de natildeo-
contradiccedilatildeo estaacute condenado a perecer devido a estar sob a legislaccedilatildeo desse mesmo princiacutepio
Conforme Hegel a lei da contradiccedilatildeo eacute o que possibilita ao entendimento constituir-se como
absoluto e dessa maneira fazer com que seu ser-posto (Gesetzsein) seja e permaneccedila (GW 4
p 18) Mas em virtude de se reger por essa lei os produtos do entendimento natildeo podem se
manter jaacute que a limitaccedilatildeo dos mesmos eacute mostrada pelo seu contraposto
O que isso significa Significa que de acordo com o que foi dito haacute pouco a
contradiccedilatildeo precisa ser afastada As proposiccedilotildees produzidas no acircmbito do entendimento natildeo
admitem a contradiccedilatildeo Natildeo podem admitir que se diga que algo seja e natildeo seja ao mesmo
tempo No que nos interessa mais de perto a filosofia Hegel procura a todo momento neste
no iniacutecio do Escrito sobre a Diferenccedila mostrar que os sistemas filosoacuteficos de sua eacutepoca se
articulam na forma de proposiccedilotildees de acordo com a lei do entendimento (Cf GW 4 p 24) O
que traz por consequumlecircncia a impossibilidade de manutenccedilatildeo desses sistemas ldquopois algo
posto por meio da reflexatildeo uma proposiccedilatildeo eacute por si um limitado e condicionado e carece de
um outro para sua fundamentaccedilatildeo e assim ao infinitordquo (GW 4 p 23) Natildeo haacute como natildeo
pensar aqui assim como jaacute fora notado por Vieweg no 2ordm tropo de Agripa o da regressatildeo ao
infinito Por meio desse tropo o ceacutetico pretende mostrar a inexistecircncia de demonstraccedilotildees pois
56
se pode questionar as premissas de uma argumentaccedilatildeo proposta dogmaticamente e tambeacutem as
premissas dessas premissas de modo que esse processo de justificaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo
possa sempre se renovar numa regressatildeo ao infinito (Cf HP I 166)
Qualquer proposiccedilatildeo posta como fundamento absoluto de um sistema baseado no
entendimento natildeo teraacute como se sustentar ldquopois de um algo pensado que a proposiccedilatildeo
exprime se pode facilmente demonstrar que ele eacute condicionado por um contraposto e
portanto natildeo eacute absoluto e se pode demonstrar por esse contraposto agrave proposiccedilatildeo que ela
precisa ser posta e que portanto aquele algo pensado que a proposiccedilatildeo exprime eacute nadardquo
(GW 4 p 24) Uma tal proposiccedilatildeo natildeo tem condiccedilotildees de cumprir seu propoacutesito de fundaccedilatildeo
do sistema A ela uma outra pode ser posta em sentido contraacuterio de maneira que sua pretensatildeo
ao absoluto fique prejudicada Parece-nos que natildeo seja por outro motivo que Hegel afirme que
uma proposiccedilatildeo dessa natureza seja no fundo uma antinomia e por isso fadada a ser
suprimida (Cf GW 4 p 24)88 Do ponto de vista do que ele chama de mera reflexatildeo (die
blosse Reflexion) natildeo eacute entatildeo possiacutevel que um sistema construiacutedo a partir da ldquoloacutegicardquo do
entendimento possa pretender tornar-se incondicionado Essa conclusatildeo a nosso ver estaacute
dentro do espiacuterito da filosofia ceacutetica Diante do conflito entre proposiccedilotildees ou argumentos
contraditoacuterios o ceacutetico natildeo tendo como se decidir por um dos lados afinal ambos parecem
igualmente persuasivos eacute levado a suspender seu juiacutezo (Cf HP I 8) No caso de Hegel a
antinomia estabelecida tambeacutem impede que se aceite que um sistema qualquer tenha sido bem
sucedido na sua pretensatildeo ao absoluto Do ponto de vista do entendimento a contradiccedilatildeo eacute
um mal a ser evitado Mas como mostrou o ceacutetico ela natildeo pode ser evitada e Hegel leitor
atento de Sexto Empiacuterico concorda com ele
A filosofia numa eacutepoca dominada pela potecircncia da cisatildeo torna-se um alvo faacutecil do
ceticismo Natildeo haacute como evitar que o ceacutetico possa sempre mostrar o oposto daquilo que foi
posto A constataccedilatildeo desse difiacutecil e improvaacutevel ecircxito das filosofias perante o ceticismo faz
com que sua eacutepoca esteja como jaacute foi dito anteriormente carente de uma filosofia que
cumpra sua tarefa Como entatildeo suprir essa carecircncia Como a filosofia pode configurar-se
88 O aspecto negativo que assume a antinomia no domiacutenio do entendimento se deve a que como jaacute dissemos a contradiccedilatildeo aiacute precisa ser evitada Diferente seraacute a situaccedilatildeo como veremos na sequumlecircncia do texto quando entrar em cena o racional A antinomia adquire entatildeo outro aspecto precisamente um aspecto positivo Tanto seraacute assim que Hegel elogia Espinosa por comeccedilar a filosofia com a proacutepria filosofia isto eacute inicia o sistema com uma antinomia (Cf GW4 p 24)
57
sistematicamente ainda mais se se considerar pertinente a atitude investigativa ceacutetica Como
escapar da antinomia estabelecida entre proposiccedilotildees ou argumentos que se contrapotildeem
Aqui entra em cena a razatildeo o momento positivo do saber Como veremos eacute nesse
domiacutenio que seraacute possiacutevel conforme Hegel agrave filosofia se constituir de modo que as aporias
surgidas no domiacutenio do entendimento entregue a si mesmo sejam resolvidas
Seraacute por meio da razatildeo que na sua atividade especulativa a filosofia poderaacute se
realizar Mas como especificamente esse objetivo poderaacute ser alcanccedilado Segundo Hegel natildeo
seraacute possiacutevel atingir a filosofia sem que tenham sido resolvidas as cisotildees produzidas pelo
entendimento Desde este momento jaacute estaacute ele convencido que a filosofia e o que ele
compreende por saber absoluto soacute poderatildeo advir como o resultado de um processo
Esse processo ocorreraacute em momento anterior e exterior ao surgimento da filosofia (vor
und ausser der Philosophie) [GW 4 p 16] Seraacute comandado pela razatildeo e esse momento
anterior consiste na esfera do entendimento aquela que se constitui por meio de uma
atividade reflexiva que potildee seus produtos como independentes absolutamente quer dizer
como se estivessem livres da possibilidade de que a eles pudesse algo ser contraposto o que
resultaria numa antinomia
A filosofia aos olhos de Hegel pressupotildee esse momento em que as determinaccedilotildees
postas pela atividade reflexiva do entendimento se desenvolvem Mas o que significa essa
pressuposiccedilatildeo Significa que natildeo haacute como desconsiderar essa esfera das cisotildees postas pelo
entendimento ldquoeacute um fator da vida que se cultiva mediante um eterno contrapor-serdquo (GW 4
p 13) Deixar entretanto entregue a si mesma essa dimensatildeo onde predomina a finitude eacute
deixar prosseguir a esmo seu processo de determinaccedilatildeo que jamais chegaraacute a um termo E
assim em virtude do caraacuteter limitado das proposiccedilotildees resultantes da atividade do
entendimento natildeo se pode impedir que novas antinomias se constituam Eacute preciso que se decirc
conta dessas oposiccedilotildees que continuamente surgem Sem isso torna-se a filosofia apenas uma
promessa natildeo passiacutevel de se cumprir
58
Hegel de maneira bastante sucinta refere-se agrave necessidade de justificaccedilatildeo dessas
determinaccedilotildees limitadas produzidas pelo entendimento Soacute ao teacutermino desse procedimento de
justificaccedilatildeo que a filosofia poderaacute aparecer89 Esse procedimento seraacute efetuado pelo que ele
chama de ldquoinstrumento do filosofarrdquo ou a reflexatildeo como razatildeo90
Para se ultrapassar esse domiacutenio da finitude a razatildeo precisa aniquilar as oposiccedilotildees
(Gegensaumltze) fixas do entendimento Para que entatildeo alcancemos o plano filosoacutefico eacute preciso
ir aleacutem dessa esfera onde predomina o limitado A razatildeo somente produz o absoluto ao
libertar a consciecircncia das limitaccedilotildees (GW 4 p 15)
A filosofia expressa de acordo com as regras do entendimento soacute pode se dar numa
forma reflexiva Esta por sua vez pode ou natildeo pode apoderar-se (zu fassen) do absoluto A
rigor a reflexatildeo e seus produtos satildeo apenas limitaccedilotildees (Beschraumlnkungen) Assim o absoluto
refletido por ser posto pela reflexatildeo seraacute um limitado Como entatildeo seraacute possiacutevel que a
reflexatildeo seja capaz de apoderar-se do absoluto A este respeito e a partir de uma distinccedilatildeo
entre a reflexatildeo apartada do absoluto e a reflexatildeo vinculada ao absoluto Hegel diraacute A
reflexatildeo isolada como pocircr dos contrapostos seria um suprimir (Aufheben) do absoluto ela eacute a
faculdade do ser e da limitaccedilatildeo mas a reflexatildeo como razatildeo tem relaccedilatildeo com o absoluto e ela
somente eacute razatildeo mediante essa relaccedilatildeo a reflexatildeo nesta medida aniquila a si mesma e a todo
ser e limitado enquanto se refere ao absoluto mas ao mesmo tempo por sua referecircncia ao
absoluto tem o limitado uma consistecircncia (ein Bestehen) (GW 4 pp 16-17)91
89 ldquoQuando poreacutem a razatildeo se reconhece como absoluta entatildeo com isso comeccedila a filosofia ao cessar esse modo de proceder proacuteprio da reflexatildeordquo (GW 4 p 29) Na Fenomenologia do Espiacuterito tambeacutem o saber absoluto soacute poderaacute aparecer ao teacutermino de um processo de exame da consciecircncia no qual esta se liberta de sua forma natildeo-verdadeira ldquoImpelindo-se a si mesma em direccedilatildeo agrave sua verdadeira existecircncia a consciecircncia alcanccedilaraacute aquele ponto no qual depotildee a sua aparecircncia qual seja a de estar presa a algo estranho que eacute somente para ela e como um outro ou no qual o fenocircmeno se torna igual agrave essecircncia A apresentaccedilatildeo da consciecircncia coincide aqui justamente com esse ponto da ciecircncia do espiacuterito propriamente dita e finalmente apreendendo ela mesma a sua essecircncia a consciecircncia designaraacute a natureza do proacuteprio saber absolutordquo (Hegel Fenomenologia do Espiacuterito Col Os Pensadores trad Henrique Vaz Satildeo Paulo Ed Abril 1974 p 56)
90 Parece-nos que o procedimento de justificaccedilatildeo dos produtos do entendimento a ser efetuado por esse instrumento da atividade filosoacutefica que eacute a reflexatildeo como razatildeo seja uma antecipaccedilatildeo do processo de exame pelo qual a consciecircncia na Fenomenologia do Espiacuterito eacute submetida ateacute que por fim possa chegar ao saber absoluto Talvez seja por isso que Klaus Vieweg considere no que concordamos com ele haver nesse capiacutetulo inicial do Escrito da Diferenccedila um procedimento ceacutetico de exame de diversos tipos de pensamento finito Os rudimentos do que seraacute na Fenomenologia o ldquoceticismo que se consumardquo (der sich vollbringende Skeptizismus) (Cf Vieweg Philosophie des p 129)
91 Com respeito agrave distinccedilatildeo hegeliana entre reflexatildeo isolada e reflexatildeo relacionada ao absoluto eacute com proveito que podemos nos remeter ao que diz Rainer Schaumlfer A reflexatildeo finita persiste nas suas determinaccedilotildees
59
A reflexatildeo isolada se constitui de acordo com o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Eacute
segundo este princiacutepio que ela potildee seus produtos e lhes daacute subsistecircncia A reflexatildeo ao mesmo
tempo que suprime o absoluto potildee-se como um absoluto ela fixa seus produtos como
absolutamente opostos ao absoluto daacute para si como lei eterna permanecer entendimento e
natildeo se tornar razatildeo e mantendo-se na sua obra em oposiccedilatildeo ao absoluto nada eacute ndashndash e como
limitada eacute ao absoluto oposta (GW 4 p 18)92 Todavia o subsistir daquilo que por ela eacute
posto eacute um condicionado e estaacute fadado a ser contraditado por seu oposto
Jaacute no caso da reflexatildeo como instrumento do filosofar sua vinculaccedilatildeo agrave razatildeo natildeo
permitiraacute que o limitado permaneccedila e seja esse absoluto capenga tal como acontecia na
reflexatildeo isolada A reflexatildeo aqui tambeacutem chamada por Hegel de reflexatildeo filosoacutefica aniquila
todo ser posto pelo entendimento A emergecircncia do absoluto depende dessa aniquilaccedilatildeo de
todo condicionado Na medida em que a reflexatildeo se potildee sob a lei da razatildeo ela daacute iniacutecio a esse
processo de auto-aniquilaccedilatildeo que permitiraacute que ela se torne razatildeo93 Na medida em que a
reflexatildeo se faz objeto de si mesma sua aniquilaccedilatildeo (Vernichtung) eacute sua lei suprema que a
razatildeo lhe daacute e pela qual ela se torna razatildeo (GW 4 p 18) A reflexatildeo relacionada ao absoluto
eacute a razatildeo como negaccedilatildeo absoluta que aniquila o ser limitado e condicionado posto pelo
entendimento Eacute dessa maneira que seraacute possiacutevel ir aleacutem da esfera limitada do entendimento
unilaterais natildeo chega de nenhum modo ao conhecimento de sua nulidade suas siacutenteses satildeo mesmo as de niacutevel mais complexo sempre unilaterais e abstratas pois aqui tambeacutem ainda vigoram os pontos de vista distintos Nas siacutenteses finitas vale por conseguinte ainda o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Nas siacutenteses reflexivas finitas natildeo estatildeo efetivadas (vollzogen) as destruiccedilotildees dialeacuteticas dos pontos de vista distintos A reflexatildeo em contrapartida que reconhece a nulidade dos pontos de vista distintos vai aleacutem da reflexatildeo finita e torna-se deste modo ldquoinstrumento do filosofarldquo (Schaumlfer R Die Dialektik und ihre besonderen Formen in Hegels Logik Hegel-Studien Beiheft 45 Hamburg Meiner 2001 p 41) Ver tambeacutem a esse respeito o comentaacuterio de Gilbert Geacuterard ldquoDe maneira geral a reflexatildeo designa nos Escritos Criacuteticos a atividade proacutepria do entendimento ou a subjetividade pensante na medida em que separada isto eacute cortada da objetividade real do ser ela soacute tem que ver com suas proacuteprias representaccedilotildees e portanto apenas com ela mesma Se Hegel fala aqui de reflexatildeo isolada isto se deve por um lado para sublinhar de um modo talvez redundante seu caraacuteter abstrato mas eacute contudo tambeacutem para distingui-la daquilo que ele chama de ldquoa reflexatildeo como razatildeordquo ou ldquoreflexatildeo filosoacuteficardquo Natildeo se deve deixar induzir em erro por essas uacuteltimas expressotildees elas natildeo significam de nenhum modo que a reflexatildeo como tal seja racional ou filosoacutefica Pelo contraacuterio noacutes veremos que a reflexatildeo soacute chega agrave filosofia ao se suprimir como reflexatildeo Ela se torna entatildeo na terminologia hegeliana especulaccedilatildeo (Geacuterard G Critique et dialectique Bruxelas Saint-Louis 1982 nota 54 p 37)
92 Eacute por esse processo de absolutizaccedilatildeo do limitado que se forma o entendimento Nesse sentido ver Geacuterard 1982 nota 4 p 66
93 Ver tambeacutem a esse respeito Zimmerli W C Die Frage nach der Philosophie Interpretation zu Hegels Differenzschrift Hegel-Studien Beiheft 12 Bonn Bouvier Verlag Herbert Grundmann 1974 p 99
60
Ao mesmo tempo que todo limitado mostra sua nulidade94 visto que eacute um oposto a um outro
que o nega esse limitado adquiriraacute uma consistecircncia ao ser integrado ao absoluto Mas o
absoluto porque eacute produzido para a consciecircncia mediante o filosofar da reflexatildeo torna-se
deste modo uma totalidade objetiva um todo de saber (Wissen) uma organizaccedilatildeo de
conhecimentos nessa organizaccedilatildeo cada parte eacute o todo pois ela consiste numa relaccedilatildeo com o
absoluto como parte que tem outra fora de si ela eacute um limitado e somente eacute mediante as
outros isolada como limitaccedilatildeo ela eacute deficiente somente tem sentido e significaccedilatildeo mediante
sua conexatildeo com o todo (GW 4 p 19)
Vemos assim que a reflexatildeo filosoacutefica eacute o meio pelo qual eacute possiacutevel o retorno ao
absoluto Relacionada ao absoluto a reflexatildeo eacute esse negar absoluto que suspende ( aufhebt )95
as oposiccedilotildees produzidas pelo entendimento Assim essa reflexatildeo que por ser relacionada ao
absoluto eacute razatildeo tem como tarefa suprimir a oposiccedilatildeo absoluta ela denuncia o caraacuteter
abstrato do entendimento ao mostrar que cada uma de suas posiccedilotildees eacute em verdade uma
antinomia quer dizer desvelando o viacutenculo que une cada uma delas agrave tese imediatamente
adversa (Geacuterard p 83) A pretensatildeo ao absoluto do entendimento natildeo passa de um malogro
afinal todo o posto pelo entendimento com sua suposta absolutez natildeo resiste ao encontro
com seu oposto quando este se apresenta e o contradiz formando uma antinomia A reflexatildeo
eacute o lado negativo do saber ou seja aquele que regido pela razatildeo faraacute com que todo limitado
destrua a si mesmo Mas para que surja a filosofia natildeo podemos permanecer nessa esfera
dominada pela negatividade produtora de antinomias A permanecermos aqui natildeo vamos
aleacutem do aspecto formal da especulaccedilatildeo Se se reflete apenas sobre o aspecto formal da
especulaccedilatildeo e se manteacutem firmemente a siacutentese do saber em forma analiacutetica assim eacute a
antinomia a contradiccedilatildeo que a si mesma se suspende (der sich selbst aufhebende
Widerspruch) a suprema expressatildeo formal do saber e da verdade (GW 4 p 26) O
reconhecimento da antinomia como expressatildeo formal da verdade significa para Hegel dar-se
conta por meio da razatildeo da essecircncia formal da reflexatildeo (GW 4 p 26) Eacute preciso entatildeo ir
aleacutem desse lado negativo
94 Natildeo haacute por isso nenhuma verdade da reflexatildeo isolada do pensar puro a natildeo ser aquela de sua aniquilaccedilatildeo (GW 4 p 19)
95 O termo alematildeo aufheben pode significar suprimir elevar e conservar Para o propoacutesito especulativo de Hegel a polissemia do termo vem bem a calhar pois as determinaccedilotildees de entendimento satildeo suprimidas pela reflexatildeo como razatildeo e ao mesmo tempo conservadas na sua elevaccedilatildeo ao plano especulativo da razatildeo Isto posto traduzimos aufheben por suspender em virtude do termo em portuguecircs tambeacutem poder significar suprimir elevar e conservar Apenas quando o uso do termo eacute exclusivamente negativo traduzimos entatildeo por suprimir
61
O completamento (Vervollstaumlndigung) da unilateralidade da obra da reflexatildeo dar-se-
aacute na intuiccedilatildeo (Anschauung) A intuiccedilatildeo diz Hegel eacute o que postula a razatildeo para que a obra da
reflexatildeo seja completada (GW 4 p 29) Daacute-se com essa siacutentese dos opostos que se
contradizem a possibilidade que possa surgir o lado positivo do saber qual seja a intuiccedilatildeo o
racional precisa ser deduzido de acordo com seu conteuacutedo determinado isto eacute a partir da
contradiccedilatildeo dos opostos determinados cuja siacutentese eacute o racional o postulaacutevel eacute a intuiccedilatildeo que
preenche e manteacutem esse lado antinocircmico (GW 4 p 29)96 Eacute na intuiccedilatildeo que a siacutentese dos
opostos teraacute sua subsistecircncia (ihr Bestehen) Nessa identidade de reflexatildeo e intuiccedilatildeo teremos
portanto o saber especulativo (Cf GW 4 p 29) Em resumo podemos dizer que uma vez
realizada a tarefa (negativa) da reflexatildeo filosoacutefica torna-se possiacutevel a siacutentese da mesma com a
intuiccedilatildeo absoluta de modo que possa ocorrer o desdobramento do lado positivo do saber
Neste momento a filosofia deixaraacute de ser algo a ser buscado deixaraacute de ser uma carecircncia
pois a filosofia comeccedila onde termina essa maneira que procede da reflexatildeo com a
identidade da ideacuteia e do ser (GW 4 p 29-30)97
No artigo sobre o Ceticismo essa atividade de aniquilaccedilatildeo daquilo que eacute posto pelo
entendimento conforme ao princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo eacute exercida pelo ceticismo ou como a
ele se refere Hegel o lado negativo do conhecimento do absoluto (Cf GW 4 p 207)98 Eacute por
meio dele que com a produccedilatildeo de antinomias mostra-se o caraacuteter limitado e condicionado
das determinaccedilotildees produzidas pelo entendimento e se permite a passagem para a razatildeo que eacute
96 Tambeacutem a este respeito mas a razatildeo unifica os contraditoacuterios potildee a ambos ao mesmo tempo e os suspende (GW 4 p 23)
97 Com relaccedilatildeo ao escrito sobre a Diferenccedila jaacute apresentar-se como um primeiro esboccedilo de certos desenvolvimentos posteriores da filosofia de Hegel eacute oportuno lembrar o comentaacuterio de Marcos Lutz Muumlller a respeito dessa articulaccedilatildeo do relacionamento entre entendimento e razatildeo nesse mesmo escrito sobre a Diferenccedila como sendo o motivo inspirador da constituiccedilatildeo da relaccedilatildeo dos trecircs ldquomomentosrdquo da estrutura loacutegico-especulativa do pensamento e da realidade efetiva conforme exposta condensadamente nos sectsect 79-82 da Enciclopeacutedia e no seu desdobramento quaternaacuterio no capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica A ideacuteia absoluta (Cf Muumlller M L ldquoO idealismo especulativo de Hegel e a modernidade filosoacutefica criacutetica ou radicalizaccedilatildeo dessa modernidaderdquo Revista Eletrocircnica Estudos Hegelianos ano 2ordm Nordm 3 2005 p 3)
98 Para Hegel o ceticismo se encontra implicitamente em todo autecircntico sistema filosoacutefico e como seu lado negativo (Cf GW 4 p 208) De modo expliacutecito apenas no Parmecircnides de Platatildeo sendo que deve ser notado haja no mesmo somente o lado negativo da filosofia (Cf GW 4 pp 207-208) Quanto ao ceticismo pirrocircnico Hegel o chama de ceticismo separado da filosofia Um ceticismo que assim como aquele presente no diaacutelogo platocircnico Parmecircnides tambeacutem natildeo possui um lado positivo e com relaccedilatildeo ao saber declara apenas uma pura negatividade O ceacutetico sentido-se incapaz de decidir por entre argumentos ou proposiccedilotildees aparentemente igualmente persuasivos suspende seu juiacutezo e assim nem afirma nem nega a respeito de algo dito com pretensatildeo agrave verdade Para Hegel eacute o que nos parece agir assim eacute afirmar uma pura negatividade (A respeito do ceticismo pirrocircnico ver de modo geral GW 4 pp 213-222)
62
o lado positivo do conhecimento do absoluto99 O grande valor do ceticismo para Hegel reside
nessa sua perseverante luta contra o dogmatismo realizada por meio do que poderiacuteamos
chamar de seu princiacutepio programaacutetico opor a todo argumento ou proposiccedilatildeo uma proposiccedilatildeo
ou o argumento de igual forccedila (Cf HP I 12 tb I 8)
Como o domiacutenio do entendimento eacute aquele no qual apenas lidamos com proposiccedilotildees
passiacuteveis de serem contraditadas por suas opostas isto eacute proposiccedilotildees que em virtude de
serem postas de acordo com a identidade abstrata de entendimento natildeo resistem ao
estabelecimento da antinomia o ceacutetico natildeo tem dificuldade em exercitar sua atitude filosoacutefica
Atitude que para Hegel eacute totalmente pertinente e justificaacutevel quanto agrave sua realizaccedilatildeo
Mas eacute preciso lembrar que o ecircxito do ceticismo no combate ao dogmatismo soacute poderaacute
ocorrer no acircmbito do entendimento No acircmbito da razatildeo como pudemos observar a finitude
do entendimento foi deixada para traacutes Nela a contradiccedilatildeo natildeo leva a filosofia ao seu limite
As proposiccedilotildees que se contradizem satildeo consideradas de uma outra perspectiva Elas
permanecem relacionadas numa siacutentese efetuada pela razatildeo o lado positivo da filosofia A
contradiccedilatildeo natildeo eacute mais aqui um mal a ser evitado pelo contraacuterio ela foi incorporada agrave
filosofia Uma proposiccedilatildeo que exprime um conhecimento racional teraacute como caracteriacutestica
baacutesica ser constituiacuteda por conceitos que do ponto de vista do entendimento se contradizem
(Cf GW 4 p 208) Mas para a razatildeo natildeo haacute nada de aberrante nisso100
Quando a perspectiva racional toma a frente as proposiccedilotildees que se contradizem satildeo
unificadas de modo que se suspende (aufhebt) a antinomia Como diz Hegel ldquoquando em
qualquer proposiccedilatildeo que expressa um conhecimento racional se o aspecto refletido da
mesma ndash os conceitos que nela estatildeo contidos ndash eacute isolado e o modo como eles (os conceitos)
estatildeo ligados eacute considerado entatildeo precisa mostrar-se que esses conceitos estatildeo suspensos
(aufgehoben) ou de tal modo unificados que eles se contradizem caso contraacuterio natildeo teriacuteamos
99 Cf GW 4 p 207 trad cit p 36
100 Tambeacutem no artigo sobre o Ceticismo Hegel se vale de Espinosa como exemplo de filoacutesofo que constroacutei seu sistema a partir de proposiccedilotildees que como diraacute Hegel cometem uma infraccedilatildeo (Verstoszlig) ao princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Proposiccedilotildees de caraacuteter antinocircmico como a que se encontra no iniacutecio da Eacutetica a saber a do conceito de causa sui ou seja aquela causa cuja essecircncia implica sua existecircncia Um tal conceito segundo Hegel foge completamente ao que normalmente se compreende pelo conceito de essecircncia visto que este eacute possiacutevel na medida em que se faz abstraccedilatildeo da existecircncia Da perspectiva racional natildeo haveria contradiccedilatildeo nessa uniatildeo da essecircncia com a existecircncia (Cf GW 4 p 208)
63
uma proposiccedilatildeo racional mas sim uma proposiccedilatildeo de entendimentordquo101 A identidade de
entendimento eacute uma identidade relativa que quando entra em cena a razatildeo daacute lugar a uma
identidade absoluta Essa identidade absoluta eacute uma siacutentese desses contrapostos que formam a
antinomia102 A siacutentese desses postos contrapostos de modo que por ela a antinomia seja
suspensa faz surgir o racional Os contrapostos continuam laacute entretanto eles estatildeo suspensos
(aufgehoben)103 na unidade do racional
Toda proposiccedilatildeo de razatildeo observa Hegel na medida em que ela pode se dissolver em
duas proposiccedilotildees que se contradizem (sich in zwey sich schlechthin widerstreitende aufloumlsen
laumlszligt) ndash por exemplo Deus eacute causa e Deus natildeo eacute causa ele eacute uno e natildeo eacute uno ndash faz entrar em
cena com toda a forccedila o princiacutepio do ceticismo ldquoopor a todo discurso um discurso de forccedila
igualrdquo104
A concepccedilatildeo hegeliana de filosofia reconhece a importacircncia do ceticismo para a
filosofia Entretanto eacute necessaacuterio ir aleacutem desse momento negativo no qual satildeo produzidas
antinomias O ldquoprinciacutepiordquo ceacutetico de ldquoopor a cada discurso um discurso de forccedila igualrdquo (panti
logoi logos isos antikeitai) eacute pertinente apenas no momento negativo da filosofia pois ao
levar agrave produccedilatildeo de antinomias natildeo permite que uma proposiccedilatildeo finita se determine sem
levar em conta a proposiccedilatildeo contraposta e a ela relacionada
A possibilidade de construccedilatildeo do sistema ou a auto-produccedilatildeo da razatildeo estaraacute fundada
na siacutentese de opostos que a cada nova identidade obtida reclama a produccedilatildeo de uma nova
siacutentese de modo que assim o sistema progride e se modela numa totalidade objetiva (Cf GW
4 p 31)105
101 GW 4 p 208 trad p 38 (ldquowenn in irgend einem Satze der eine Vernunfterkenntniszlig ausdruumlckt das Reflectirte desselben die Begriffe die in ihm enthalten sind isolirt und die Art wie sie verbunden sind betrachtet wird so muszlig es sich zeigen daszlig diese Begriffe zugleich aufgehoben oder auf eine solche Art vereinigt sind daszlig sie sich widersprechen sonst waumlre es kein vernuumlnftiger sondern ein verstaumlndiger Satzldquo)
102 Ibidem p 27 trad p 101
103 Suspender com o sentido de suprimir elevar e conservar
104 Hegel cita a famosa foacutermula do ldquoprinciacutepiordquo ceacutetico ndash ldquoopor a cada discurso um discurso de forccedila igualrdquo ndash no original grego Cf GW 4 p 208 e HP I 12
64
105 ldquoA razatildeo a saber a faculdade (neste caso da objetiva) totalidade completa a identidade relativa mediante sua contraposta e produz por meio da siacutentese de ambas uma nova identidade que ela mesma novamente perante a razatildeo eacute uma identidade deficiente e que de novo se completa do mesmo modordquo (GW 4 p 31)
65
Capiacutetulo 3 - O ceticismo nas Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia de Hegel
Segundo nos informa Walter Jaeschke106 com exceccedilatildeo de ldquoLoacutegica e Metafiacutesicardquo
nenhum tema foi tatildeo regular e minuciosamente objeto das preleccedilotildees de Hegel quanto a
ldquoHistoacuteria da filosofiardquo A primeira vez em Iena (18051806) depois Heidelberg (18161817 e
18171818) Nada ainda conforme Jaeschke nos restou como testemunho dessa primeira
ocupaccedilatildeo hegeliana com o tema em suas aulas Como fonte que nos chegou de suas Liccedilotildees
sobre a Histoacuteria da Filosofia temos as que Hegel ministrou em Berlim por seis vezes no
veratildeo de 1819 no inverno de 18201821 e nos invernos de 182324 182526 182728 e
182930 No inverno de 183132 Hegel tambeacutem tinha como tema de suas aulas a histoacuteria da
filosofia mas as mesmas logo foram interrompidas devido agrave morte do filoacutesofo em 14 de
Novembro Hegel havia aqui apenas iniciado a introduccedilatildeo das aulas e sem ao menos poder
concluiacute-la
Com relaccedilatildeo ao nosso interesse a saber as preleccedilotildees que tratavam do tema ceticismo
antigo Jaeschke nota que o estudo intenso do ceticismo jaacute era feito por Hegel desde seus anos
em Frankfurt antes portanto de sua ida em 1801 para Iena Aleacutem disso como jaacute pudemos
observar o ceticismo havia sido objeto de um artigo em Iena e neste artigo consideraccedilotildees de
caraacuteter historiograacutefico a respeito da filosofia ceacutetica se faziam presentes
Nossa intenccedilatildeo agora eacute observar nessas Liccedilotildees a respeito da histoacuteria da filosofia107
que leitura e interpretaccedilatildeo Hegel faz do ceticismo justamente no momento em que jaacute era um
filoacutesofo renomado e com suas principais obras publicadas
106 Cf Jaeschke W Hegel Handbuch Leben- Werk- Schule Stuttgart Metzleer 2003 XIV pp 477 ndash 478
107 Werke 19 pp 358-403 trad pp 759-809
66
No iniacutecio de sua exposiccedilatildeo a respeito do ceticismo pirrocircnico Hegel faz a seguinte
afirmaccedilatildeo ldquoO ceticismo levou a seu acabamento (vollendete) a maneira de ver da
subjetividade de todo saber e potildee de modo geral no lugar do ser a expressatildeo do parecer no
saber O ponto culminante [dessa maneira de ver] eacute o ceticismo a forma do ente e do saber
sobre o ente eacute inteiramente aniquiladardquo 108
E a partir dessa afirmaccedilatildeo fica entatildeo a pergunta o que pode significar o ceticismo ser
o acabamento da maneira de ver subjetivista
Se nos voltarmos para sua Histoacuteria da Filosofia veremos que na filosofia anterior ao
ceticismo os sofistas segundo Hegel podiam ser considerados representantes de uma
filosofia que expressava uma ldquomaneira de ver subjetivardquo109 Foram eles os primeiros a
mostrar assim como depois os ceacuteticos o caraacuteter relativo daquilo que era posto como
verdadeiro ou vaacutelido universalmente Hegel inclusive se refere aos sofistas como ceacuteticos110
Protaacutegoras por exemplo declarava que o homem eacute a medida de todas as coisas daquela que
eacute que ela eacute daquela que natildeo eacute que ela natildeo eacute111 Depende de cada homem em particular o
estabelecimento de qualquer verdade Estaacute relacionado a cada um a verdade a medida a ser
instaurada Assim como o ceacutetico posteriormente jaacute Protaacutegoras procurava nos mostrar que
dada a diversidade dos homens seria muito difiacutecil tentar obter uma verdade que a todos
aparecesse como a uacutenica ldquoa verdade (a medida) eacute fenocircmeno para a consciecircnciardquo112 Aquilo
que a mim me aparece natildeo pode valer para todos os outros dada essa diversidade dos homens
e do caraacuteter relativo daquilo que julgam a respeito das coisas Subjetividade aqui indica aquilo
que natildeo pode obter generalidade que natildeo pode deixar de ser particular e relacionado a
108 Werke 19 p 358 trad cit p 759 (ldquoDer Skeptizismus vollendete die Ansicht der Subjektivitaumlt alles Wissens ud setzte allgemein an die Stelle des Seins im Wissen den Ausdruck des Scheinens Die letzte Spitze ist der Skeptizismus die Form des Seienden und des Wissens des Seienden wird ganz zunichte gemachtrdquo)
109 Cf Werke 18 pp 406-441 trad pp 241-272
110 Hegel denomina de modo claro Protaacutegoras e Goacutergias como representantes do ceticismo isto eacute como aqueles que se expressam em relaccedilatildeo agrave verdade agrave maneira dos ceacuteticos Apoacutes fazer uma exposiccedilatildeo a respeito de Protaacutegoras Hegel comeccedila a tratar de Goacutergias nos seguintes termos ldquoEsse ceticismo chegou a uma profundidade bem maior por meio de Goacutergiasrdquo (ldquoZu einer weit groumlszligeren Tiefe gelangte dieser Skeptizismus durch Gorgiasrdquo) In Werke 18 p 434 trad cit p 266
111 Nessa breve apresentaccedilatildeo de Protaacutegoras guiamo-nos por Hegel na seccedilatildeo que ele dedica ao filoacutesofo Cf Ibidem 18 pp 428-434 trad pp 260-266
112 Citaccedilatildeo de Protaacutegoras que Hegel faz a partir de Sexto Empiacuterico Adversus mathematicos VII 388 In Ibidem 18 p 431 trad p 263 (ldquoDie Wahrheit (das Maszlig) ist die Erscheinung fuumlr das Bewuszligtseinrdquo)
67
determinadas condiccedilotildees Eacute nesse sentido que Hegel chama de maneira de ver da subjetividade
a filosofia ceacutetica
Nessa aproximaccedilatildeo da sofiacutestica ao ceticismo Hegel estaacute em certa medida de acordo
com um comentaacuterio do proacuteprio Sexto Empiacuterico quando este se refere agrave semelhanccedila que possa
haver entre a filosofia ceacutetica e a filosofia de Protaacutegoras113 Mesmo que haja semelhanccedilas entre
os ceacuteticos e Protaacutegoras Sexto adverte que ambos natildeo podem ser confundidos pois o sofista
acaba por fazer afirmaccedilotildees de teor dogmaacutetico algo que para um ceacutetico eacute inadmissiacutevel114
De fato o comentaacuterio de Hegel a respeito da maneira de ver subjetiva ter seu
acabamento no ceticismo quer justamente mostrar essa radicalidade do ceticismo Se antes
houve aqueles que poderiam ser aproximados dos ceacuteticos por forccedila das suas ldquoconclusotildeesrdquo de
teor natildeo-dogmaacutetico natildeo conseguiram eles entretanto se libertar por completo do
dogmatismo
Como jaacute foi dito115 o ceacutetico foi aquele filoacutesofo que natildeo conseguiu afirmar nem
positiva nem negativamente coisa alguma a respeito da verdade Da sua investigaccedilatildeo natildeo
chegou ao mesmo resultado que chegaram os filoacutesofos por ele chamados de dogmaacuteticos O
113 Essa aproximaccedilatildeo entre Protaacutegoras e os ceacuteticos feita por Hegel tambeacutem aparece como pertinente para os estudiosos do ceticismo Oswaldo Porchat refere-se aos sofistas e em especial a Protaacutegoras como algueacutem que antecipava a postura ceacutetica ldquoE eacute verdade entretanto que ao constatar o conflito das opiniotildees e das verdades dos homens umas com as outras ao procurar mostrar que o verdadeiro eacute sempre para cada homem o que tal lhe parece e o que como tal portanto assume e propotildee aos outros Protaacutegoras natildeo visava especificamente as oposiccedilotildees e divergecircncias que dividiam o pensamento filosoacutefico anterior ou contemporacircneo conforme a sua doutrina ao contraacuterio tal diferenccedila de perspectivas sobre a verdade e o saber natildeo configuraria mais do que um caso particular da infinda e irredutiacutevel diversidade das opiniotildees humanas() Ignorando se os deuses satildeo ou natildeo dos homens filoacutesofos ou natildeo Protaacutegoras verificava apenas que as opiniotildees sempre divergem e que eles natildeo se potildeem de acordo Mas tambeacutem descobria mestre de retoacuterica e de eloquumlecircncia que os homens se deixam persuadir com frequumlecircncia pelo discurso e que eacute sempre possiacutevel opor persuasivamente a um argumento um argumento contraacuterio ou tornar mais forte a razatildeo anteriormente mais fraca Uma primeira formulaccedilatildeo assim se propunha do que seria a contribuiccedilatildeo fundamental da sofiacutestica para a filosofia a saber a descoberta de que se pode provar tudo que se quer de que todas as teses se podem demonstrar se se domina de modo adequado e conveniente a teacutecnica de argumentaccedilatildeo Goacutergias natildeo pretenderaacute dizer outra coisa ao proclamar no famoso Elogio de Helena que lsquoo Loacutegos eacute um grande senhorrsquordquo(Porchat O ldquoO conflito das filosofiasrdquo Vida comum e ceticismo Satildeo Paulo Brasiliense 1993 pp 5-7) Ou ainda ldquoEm sua polecircmica antidogmaacutetica os ceacuteticos mostraram retomando o ensinamento de Protaacutegoras que a todo discurso se pode sempre opor um discurso igual isto eacute um discurso de igual forccedila persuasivardquo (Porchat O Rumo ao ceticismo p 297)
114 A respeito de Protaacutegoras diz Sexto Empiacuterico ldquoNoacutes vemos entatildeo que ele dogmatiza natildeo somente a respeito da fluidez da mateacuteria como tambeacutem a respeito disso que os fundamentos de todos os fenocircmenos nela existiam estes assuntos poreacutem satildeo natildeo-evidentes e a respeito dos quais noacutes suspendemos o julgamentordquo (HP I 219)
115 Ver de modo geral o capiacutetulo 1
68
que terminava por acontecer era sempre encontrar uma diversidade de pontos de vista
conflitantes uns aparentemente tatildeo persuasivos quanto os outros Em vista de tal situaccedilatildeo
como interromper a investigaccedilatildeo e poder entatildeo aceitar que um desses pontos de vista seja a
expressatildeo de uma verdade absoluta qualquer Ante a precipitaccedilatildeo no julgar caracteriacutestica por
ele comumente encontrada entre os dogmaacuteticos prefere contudo continuar a investigar E
esta investigaccedilatildeo far-se-aacute por meio da contraposiccedilatildeo de argumentos O ceacutetico entatildeo vai se
esforccedilar em de variadas formas examinar se os argumentos postos pelos dogmaacuteticos resistem
a outros argumentos aparentemente tatildeo persuasivos quanto os primeiros Em resumo o ceacutetico
substitui a busca pela verdade por uma criacutetica do dogmatismo assentada no exerciacutecio dessa
atitude produtora de contraposiccedilotildees ou antinomias Podemos supor que a dificuldade imensa
em encontrar a verdade levou-o a essa mudanccedila de atitude No limite natildeo tem ele mais no
horizonte a esperanccedila de encontrar alguma verdade116 Tanto eacute assim que sua filosofia teraacute
desdobramentos que em nenhum aspecto se assemelham ao que tradicionalmente se podia
encontrar em outras filosofias Referimo-nos aqui agrave suspensatildeo do juiacutezo e a conduta ceacutetica de
se guiar na vida de acordo com os fenocircmenos117
Mas a que nos interessa chamar a atenccedilatildeo neste momento eacute para esse ecircxito dos ceacuteticos
em produzir antinomias em reiteradamente mostrar que eacute possiacutevel a um determinado ponto
de vista um outro ser contraposto ficando difiacutecil portanto decidir em favor de um lado ou de
outro Cremos que natildeo seja por outro motivo que Hegel reconheccedila a forccedila do ceticismo
Como combatecirc-lo Seria mesmo possiacutevel combatecirc-lo Uma filosofia reconhece Hegel que
sempre foi muito temida ldquoNa medida em que eacute a arte de dissolver todo determinado de
mostraacute-lo em sua nulidade o ceticismo passou em todos os tempos e ainda hoje pelo mais
terriacutevel adversaacuterio da filosofia e tambeacutem passou por invenciacutevelrdquo118
Para Hegel qualquer tentativa de refutaccedilatildeo direta do ceticismo estaacute condenada ao
fracasso Natildeo diga-se de passagem que ele pretendesse ser mais um na lista dos que tentaram
116
Com efeito trata-se de uma questatildeo bastante controversa entre os estudiosos do ceticismo ndash uma vexata quaestio ndash se efetivamente o ceacutetico teria desistido da busca da verdade por decorrecircncia dessa dificuldade em encontrar alguma que porventura pudesse passar ilesa perante o exame ceacutetico Daiacute entatildeo com o reiterado fracasso na tentativa de executar a tarefa substituiria a busca pela verdade pelo exerciacutecio da praacutetica dialeacutetica antinocircmica
117 Ver a respeito no cap 1 pp 40-45
118 Werke 19 p 358 (ldquoDer Skeptizismus hat zu Allen Zeiten und noch jetzt fuumlr den furchtbarsten Gegner der Philosophie gegolten und fuumlr unbezwinglich indem er die Kunst sei alles Bestimmte aufzuloumlsen es in seiner Nichtigkeit zu zeigenrdquo)
69
essa faccedilanha Segundo ele natildeo haacute como lutar contra o ceticismo Ele sempre encontraraacute uma
maneira de se sobrepocircr ldquoSe (algueacutem) de fato lhe tivesse escapado natildeo seria ele assim
subjugado mas antes ele por seu lado permaneceria subsistindo e prevaleceriardquo119
No seu juiacutezo a respeito dos ceacuteticos Hegel ao mesmo tempo que louva a atitude ceacutetica
de dissoluccedilatildeo de todo determinado por meio da produccedilatildeo de antinomias recrimina o que
poderiacuteamos chamar de uma certa desmesura presente nessa postura filosoacutefica Uma
desmesura que acaba na incapacidade ceacutetica em chegar a alguma verdade e advinda desse
reiterado ecircxito em conseguir mostrar a todo argumento o argumento que o contrapotildee
Todavia a pertinecircncia da criacutetica ceacutetica eacute tal que ele o ceticismo ldquoparece ser algo a que
devamos nos entregar e que faz imaginar que natildeo se possa vencer aquele que se entregou a
elerdquo120
O ceticismo aos olhos de Hegel apresenta esse caraacuteter ambivalente O que o torna
forte e pertinente leva-o nesse mesmo movimento agrave sua derrocada Derrocada da perspectiva
de Hegel porque da perspectiva dos ceacuteticos a incapacidade de chegar a uma verdade natildeo traz
junto de si nada de problemaacutetico Hegel sabe disso e tambeacutem natildeo se cansa de lembrar que
natildeo haacute como se sobrepor ao ceacutetico que este consegue sempre ao fim ao cabo prevalecer
perante as filosofias ldquodogmaacuteticasrdquo Chega mesmo a dizer que aquele que decidiu tornar-se
ceacutetico natildeo poderaacute com efeito ser dominado e nem ser reconduzido aos braccedilos de uma
filosofia positiva121 Mas que intenccedilatildeo teria ele em insistentemente mostrar a impossibilidade
de se conseguir vencer ao ceacutetico
Parece-nos que a intenccedilatildeo de Hegel eacute de fato mostrar que o ceacutetico eacute um adversaacuterio
extremamente difiacutecil de ser vencido ou que natildeo pode mesmo ser vencido Que contra ele
nada podemos Ele sempre encontraraacute um meio para nos vencer Mas a despeito desse fato
Hegel tem como veremos plena consciecircncia da forccedila do ceticismo A questatildeo eacute que
independente da pertinecircncia da postura filosoacutefica do ceticismo natildeo teria ele ainda a uacuteltima
palavra Sua forccedila eacute a outra face de sua cegueira como tambeacutem veremos Eacute como se ele
realmente estivesse cego perante suas proacuteprias deficiecircncias Natildeo supotildee portanto que possa
119 Ibidem p 359 trad cit p 760 (ldquoWenn in der Tat ihm nur entgangen wuumlrde so waumlre er nicht bezwungen sondern er bliebe seinerseits bestehen und er haumltte die Oberhandrdquo)
120 Ibidem p 358 trad cit p 760 (ldquo[hellip] scheint so etwas zu sein dem man sich ergebe und man hat die Vorstellung daszlig man einem der sich ihm so in die Arme werfe gar nicht beikommen koumlnnerdquo)
121 Cf Ibidem p 359 trad cit p 760
70
ser tatildeo limitado quanto as filosofias que critica Essa eacute ao que parece a posiccedilatildeo de Hegel a
seu respeito Mas dizer que ele eacute limitado natildeo nos pode levar a concluir que Hegel seja
favoraacutevel a que o ceticismo mereccedila ser descartado
Desde o iniacutecio do periacuteodo de Iena quando comeccedila a publicar Hegel afirma que a
filosofia precisa ter um lado ceacutetico que por conseguinte eacute o seu lado negativo122 Mas por
que haveria ela de ter um lado ceacutetico Se partimos do pressuposto como o faz Hegel que a
criacutetica ceacutetica das filosofias dogmaacuteticas eacute dotada de tal forccedila e pertinecircncia que tentar escapar a
ela torna-se uma tarefa dificilmente realizaacutevel vemos que realmente a filosofia precisa
estabelecer uma relaccedilatildeo com o ceticismo que natildeo a de uma mera tentativa de desqualificaccedilatildeo
do mesmo Eacute tatildeo necessaacuterio agrave filosofia tomar a seacuterio o ceticismo que no caso hegeliano
incorpora-se o mesmo a ela
Na anaacutelise do ceticismo antigo nas suas Liccedilotildees o que faz segundo Hegel o ceacutetico na
sua investigaccedilatildeo Ele eacute capaz de mostrar que eacute possiacutevel produzir antinomias a respeito de
qualquer verdade seja de caraacuteter sensiacutevel seja de caraacuteter inteligiacutevel123 Ele aponta uma
contradiccedilatildeo entre aquilo que almejou representar a verdade e aquilo que foi contraposto a essa
suposta verdade ou ainda mostra que cada um dos contrapostos tem tanto valor quanto o
outro ou seja que um natildeo eacute mais capaz que o outro de ser verdadeiro A igual forccedila entre os
contrapostos natildeo nos permite tender para o assentimento a um ou a outro Diante disso soacute
pode o ceacutetico entatildeo suspender seu juiacutezo
Eacute relevante notar que a contradiccedilatildeo que se estabelece entre os contrapostos atesta
apenas que existem argumentos ou discursos de igual forccedila que conflitam o que por si soacute
basta para que natildeo sejamos capazes de nos decidirmos por um dos lados opostos124 Natildeo se
encontra na base da contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos nenhuma teoria que pudesse afirmar
122 Ver cap 2
123 Hegel nesse seu comentaacuterio a respeito da possibilidade do ceacutetico produzir antinomias a respeito de qualquer verdade dogmaacutetica ndash mais ou menos elaborada refere-se explicitamente agraves Hipotiposes I 8-10
124 Cf HP I 10
71
que a contradiccedilatildeo surgiu dadas certas premissas dessa teoria e que apenas de acordo com as
mesmas teriacuteamos entatildeo uma contradiccedilatildeo Temos de consideraacute-la portanto em sentido lato
Hegel tambeacutem estaacute ciente desse sentido amplo ou pouco preciso da contradiccedilatildeo Tanto eacute
assim que reconhece ser a contradiccedilatildeo apenas o resultado de uma oposiccedilatildeo que se faz a partir
do conflito estabelecido entre dois conteuacutedos devendo ser lembrado que essa oposiccedilatildeo natildeo se
restringe a determinados conteuacutedos pelo contraacuterio ela abrange qualquer conteuacutedo125 Essa
possibilidade de que possa ocorrer uma oposiccedilatildeo ou como prefere dizer Hegel uma
contraposiccedilatildeo irrestrita torna o ceticismo antigo mais radical que o puro idealismo formal
moderno a saber Kant ldquoMas os ceacuteticos vatildeo mais aleacutem do que os membros do puro idealismo
formal moderno eles tecircm de se haver com o conteuacutedo e em todo conteuacutedo mostram seja ele
sentido ou pensado que ele tem um contraposto a ele Eles indicam no mesmo portanto a
contradiccedilatildeo que de tudo que eacute posto o contraposto tambeacutem eacute vaacutelidordquo126
Se por um lado para os ceacuteticos antigos a contradiccedilatildeo ou a antinomia natildeo estava
restrita a determinada classe de objetos afinal a mesma podia ser obtida nas mais variadas
formas de oposiccedilatildeo para Kant por outro lado a antinomia se encontrava apenas nos quatro
objetos particulares tomados da Cosmologia127 O que Kant natildeo viu lembra-nos Hegel eacute o
fato de que a antinomia pode ser encontrada ldquoem todos os objetos de todos os gecircneros em
todas as representaccedilotildees conceitos e ideacuteiasrdquo128
Dessa contradiccedilatildeo na qual natildeo tem o ceacutetico como se decidir por um dos contrapostos
adveacutem como jaacute foi dito anteriormente129 a suspensatildeo de juiacutezo Independente do fato de que
Hegel natildeo considere que da incapacidade de decisatildeo entre as opccedilotildees opostas reste como uacutenica
soluccedilatildeo para o impasse a suspensatildeo do juiacutezo natildeo eacute ele avaro em declarar sua admiraccedilatildeo pela
125 Cf Werke 19 p 372 trad cit p 776
126 HEGEL Ibidem p 373 trad p 777 (ldquoAber die Skeptiker gehen weiter als die Anhaumlnger des neueren rein formellen Idealismus sie haben es mit dem Inhalt zu tun und zeigen von allem Inhalt er sei ein empfundener oder gedachter dass er ein ihm Entgegengesetztes habe Sie zeigen also in demselben den Widerspruch auf daszlig von allem was aufgestellt wird auch das Entgegengesetzte giltrdquo)
127 ldquoPode-se notar aleacutem disso que a falta de uma consideraccedilatildeo mais profunda da antinomia ainda levou inicialmente Kant a soacute citar quatro antinomiasrdquo (ldquoEs kann ferner bemerkt werden daszlig die Ermangelung einer tiefern Betrachtung der Antinomie zunaumlchst noch veranlaszligte daszlig Kant nur vier Antinomien auffuumlhrtrdquo) In GW 20 E sect 48 p 85 trad bras p 120
128 HEGEL GW 20 E sect 48 p 85 trad bras p 121 (ldquoin allen Gegenstaumlnden aller Gattungen in allen Vorstellungen Begriffen und Ideenrdquo)
129 Ver o cap 1
72
postura corajosa do ceacutetico que termina na epocheacute seguindo-se agrave mesma casualmente a
ataraxia Natildeo haacute aos olhos de Hegel incerteza para o ceacutetico A incapacidade dele em tomar
uma decisatildeo natildeo lhe traz intranquumlilidade Pelo contraacuterio Para Hegel esse natildeo tomar uma
decisatildeo em favor de um dos lados que se contrapotildeem seria paradoxalmente uma ldquodecisatildeordquo
que se realiza com a suspensatildeo do juiacutezo
Eacute preciso com efeito natildeo deixar de assinalar que Hegel tem consciecircncia de que a
suspensatildeo do juiacutezo e a ataraxia natildeo satildeo frutos de uma atitude deliberada do ceacutetico em favor
delas Ele cita inclusive o exemplo que Sexto nas Hipotiposes nos fornece a respeito do pintor
Apeles que somente consegue seu intento qual seja pintar a espuma na boca do cavalo no
momento que desiste de encontrar a melhor maneira de efetuar tal pintura e entatildeo consegue o
efeito desejado casualmente apenas lanccedilando o pincel em direccedilatildeo agrave tela Hegel tem portanto
plena consciecircncia de que natildeo haacute decisatildeo por parte do ceacutetico com relaccedilatildeo agrave suspensatildeo do juiacutezo
O que contudo quer ele mostrar eacute que o ceacutetico por se sentir incapaz de dar assentimento a
uma suposta verdade que em face dela haja uma outra aparentemente tatildeo persuasiva quanto a
primeira eacute levado a suspender seu juiacutezo Entre natildeo ficar com nada e ficar com uma verdade
qualquer isto eacute ficar com uma verdade a partir de uma decisatildeo puramente arbitraacuteria posto
que infundada o ceacutetico natildeo se ressente de ser levado a ficar de matildeos vazias Pior do que isso
seria ficar oscilando entre verdades contrapostas que natildeo se sustentam agrave luz da investigaccedilatildeo a
que satildeo submetidas Esse oscilar entre poacutelos opostos e que poderia ser interrompido com o
assentimento a um deles natildeo passa para o ceacutetico de uma ilusatildeo a que o dogmaacutetico a si proacuteprio
se condena Fiar-se naquilo que natildeo pode se sustentar somente pode aos olhos do ceacutetico
gerar intranquumlilidade E Hegel na sua concordacircncia com o ceacutetico de que natildeo podemos nos
ater ao que eacute passiacutevel de ter sua verdade contestada procura ainda mostrar a incapacidade do
uso do termo duacutevida para caracterizar o ceticismo
Duvidar segundo Hegel natildeo condiz com a postura ceacutetica ldquoA empresa ceacutetica eacute
caracterizada injustamente como uma doutrina da duacutevidardquo130 Duvidar diz Hegel seria uma
atitude que apenas intranquumlilidade poderia trazer Duvidar significa que fiquemos entre duas
coisas entre duas alternativas e a respeito das quais teriacuteamos que nos decidir por uma ou por
outra Com a tomada dessa decisatildeo obteriacuteamos por conseguinte a tranquumlilidade Mas natildeo eacute
isso que acontece ao ceacutetico ldquoDuacutevida eacute justamente o contraacuterio da tranquumlilidade que eacute o
130 HEGEL Werke 19 p 362 trad cit p 763 (ldquoDas Geschaumlft des Skeptizismus ist unrecht als eine Lehre vom Zweifel ausgedruumlcktrdquo)
73
resultado do ceticismo Duacutevida vem de dois eacute um oscilar entre dois ou mais natildeo sossegamos
nem em um nem no outro e contudo devemos obter sossego em um ou no outrordquo131
O ceacutetico portanto natildeo duvida pois dessa maneira natildeo teria ainda se afastado da
perspectiva dos dogmaacuteticos Quem fica entre dois ou mais e procura por fim obter a
tranquumlilidade se decidindo por entre um dentre esses dois ou mais eacute o dogmaacutetico132 O ceacutetico
ao contraacuterio natildeo adere a nenhuma verdade que possa ter uma outra a ela oposta e
aparentemente de igual forccedila Como obter tranquumlilidade poderia ele pensar sabendo que sua
decisatildeo por uma ou por outra verdade natildeo teria como se sustentar Dada a equumlipolecircncia natildeo
haacute como se decidir por uma ou por outra alternativa sem ao mesmo tempo ter consciecircncia de
que essa decisatildeo natildeo eacute menos arbitraacuteria que a decisatildeo pela outra alternativa e portanto uma
decisatildeo de caraacuteter meramente subjetivo destituiacuteda de qualquer fundamento Quando Hegel se
refere agrave impossibilidade de se obter tranquumlilidade (Ruhe) ao se fazer opccedilatildeo por uma entre duas
ou mais verdades conflitantes assume ele a posiccedilatildeo ceacutetica a respeito da incapacidade de se
131 Ibidem p 371 trad cit p 775 (ldquoZweifel ist gerade das Gegenteil der Ruhe die das Resultat desselben ist Zweifel kommt von Zwei her ist ein Hin- und Herwerfen zwischen zweien und mehreren man beruhigt sich weder bei dem einen noch bei dem anderen - und doch soll man sich bei dem einen oder bei dem anderen beruhigenrdquo)
132 Assim como natildeo considera apropriado caracterizar o ceticismo como uma doutrina da duacutevida dado que aquele que duvida natildeo consegue transpor a perspectiva dogmaacutetica Hegel tambeacutem faz questatildeo de frisar que na Fenomenologia do Espiacuterito o exame efetuado pelo ceticismo que se consuma (der sich vollbringende Skepticismus) em todo acircmbito da consciecircncia fenomenal natildeo pode ser considerado um caminho da duacutevida pois se assim o fosse natildeo seria possiacutevel ir aleacutem da ldquonatildeo-verdade do saber como fenocircmenordquo ldquoTrata-se portanto de um caminho que pode ser considerado caminho da duacutevida ou mais propriamente caminho do desespero Nele com efeito natildeo tem lugar o que geralmente se entende por duacutevida vem a ser o abalo desta ou daquela pretensa verdade ao qual sucede de novo o conveniente desaparecimento da duacutevida e um retorno agrave mesma verdade de sorte que no fim tudo volta a ser como no princiacutepio Ao contraacuterio a duacutevida de que tratamos eacute a vista penetrante e consciente lanccedilada na natildeo-verdade do saber como fenocircmeno []rdquo No original ldquoEr kann deszligwegen als der Weg des Zweifels angesehen werden oder eigentlicher als Weg der Verzweiflung auf ihm geschieht nemlich nicht das was unter zweifeln verstanden zu werden pflegt ein Ruumltteln an dieser oder jener vermeynten Wahrheit auf welches ein gehoumlriges wiederverschwinden des Zweifels und eine Ruumlckkehr zu jener Wahrheit erfolgt so daszlig am Ende die Sache genommen wird wie vorher Sondern er ist die bewusste Einsicht in die Unwahrheit des erscheinenden Wissens [hellip]rdquo In GW 9 p 56 trad Vaz p 50 A respeito de se caracterizar o caminho da duacutevida na Fenomenologia mais propriamente como caminho do desespero eacute bastante esclarecedor citar a seguinte declaraccedilatildeo hegeliana acerca da afinidade do desespero (Verzweiflung) com o ceticismo ldquoO ceticismo poreacutem natildeo eacute um mero duvidar mas antes tambeacutem um desesperar No duvidar ainda existe a esperanccedila ou a expectativa que a duacutevida aiacute-presente possa ser resolvida Uma vez tendo o sujeito perdido essa esperanccedila ou expectativa entatildeo surge um desesperordquo (ldquoDer Skeptizismus ist aber nicht ein bloszliges Zweifeln sondern auch ein Verzweifeln Beim Zweifeln ist noch die Hoffnung oder Erwartung daszlig der Zweifel noch geloumlst werden koumlnne vorhanden ndash Verliert das Subjekt auch diese Hoffnung und Erwartung so entsteht eine Verzweiflungrdquo) Cf Hegel GW Vorlesungen uumlber Logik und Metaphysik Heidelberg 1817 Mitgeschrieben von FAGood ed Karen Gloy In Vorlesungen Ausgewaumlhlte Nachschriften und Manuskripte Band 11 Hamburg Meiner 1992 p 14
74
decidir agrave maneira dogmaacutetica e desse modo chegar agrave ataraxia Como sabemos por Sexto
Empiacuterico o ceacutetico natildeo encontrou tranquumlilidade ao tentar assim como os outros filoacutesofos
descobrir o que eacute verdadeiro e o que eacute falso nas coisas A uacutenica coisa que descobriu foi uma
discordacircncia um conflito ou anomalia nas coisas extremamente difiacutecil de ser solucionado
tanto que termina por adotar como princiacutepio baacutesico de sua filosofia a atitude consistente no
opor a cada argumento o argumento oposto de igual forccedila133
Como vemos o duvidar na visatildeo de Hegel natildeo pode ser um termo apropriado para se
caracterizar a atitude exercida pelo ceacutetico134 Este natildeo duvida pois ele natildeo se resolve por entre
um dos dois ou mais que se opotildeem O ceacutetico ante a falta de meios para fazer uma opccedilatildeo eacute
levado a suspender seu juiacutezo Tentar ao inveacutes disso se decidir por uma das alternativas eacute o
que lhe traraacute intranquumlilidade Duvidar eacute permanecer naquela busca pela verdade assim como o
fizeram os dogmaacuteticos e da mesma maneira fizeram os ceacuteticos inicialmente perturbados
com a anomalia nas coisas passaram entatildeo a investigar o que poderia ser verdadeiro ou falso
nas coisas E o que conseguiram foi ficarem mais perturbados Por isso a mudanccedila de atitude
com relaccedilatildeo agrave busca da verdade e a possibilidade de se encontrar a tranquumlilidade em termos
completamente outros que aqueles dos dogmaacuteticos135 A ataraxia adveacutem dessa indiferenccedila
perante os opostos
133 Cf HP I 12
134 Ainda com referecircncia agrave impropriedade do termo duacutevida para caracterizar o ceticismo diz Hegel a partir de HP I 7 ldquoO ceticismo se chamou tambeacutem de filosofia pirrocircnica e skeacutepsis ldquoefeacuteticardquo de σχέπτειν pesquisar investigar Natildeo devemos traduzir σχέψις por doutrina da duacutevida ou mania da duacutevida O ceticismo natildeo eacute uma duacutevidardquo (ldquoDer Skeptizismus hieszlig auch pyrrhonische Philosophie und ephektische Skepsis von σχέπτειν suchen forschen Man muszlig σχέψις nicht uumlbersetzen Lehre des Zweifels oder Zweifelsucht Skeptizismus ist nicht ein Zweifelrdquo)
135 Cf HP I 12 Com relaccedilatildeo a essa mudanccedila de atitude do ceacutetico para que possa obter a tranquumlilidade declara no mesmo sentido que o fazemos Roberto Bolzani ldquoA constataccedilatildeo dessa incapacidade de resolver o conflito de dar assentimento a uma doutrina em detrimento das outras todas esse estado de equiliacutebrio (άρρεψία HP I 190) e repouso do intelecto (στάσις διανοίας HP I 10) no qual se encontra entatildeo essa impressatildeo ou afecccedilatildeo (πάτος HP I 7187190192 198) nada mais satildeo do que a epokheacute E eacute nessa situaccedilatildeo de suspensatildeo que inesperadamente o filosoacutefo ndash agora ceacutetico ndash se descobre em ataraxiacutea (Cf HP I 29) A meta de todo filosofar agora se obteacutem natildeo mais com a posse da verdade ndash a partir daiacute problemaacutetica ndash mas sim com a produccedilatildeo sempre renovada desse estado intelectual que se impocircs a uma anaacutelise acurada e isenta dos argumentos que os filoacutesofos tecircm proposto para justificar suas doutrinas dogmaacuteticasrdquo (In Bolzani R Acadecircmicos versus Pirrocircnicos Tese de Doutorado em Filosofia Satildeo Paulo FFLCH-USP 2003 p 15)
75
Um outro aspecto a ser considerado nessa leitura hegeliana do ceticismo antigo
refere-se ao motivo que permite ao ceacutetico obter ecircxito na sua criacutetica do dogmatismo seja este
filosoacutefico ou natildeo Por que estaacute a seu alcance mostrar a contradiccedilatildeo naquilo que a ele se
apresenta com valor de verdade
Como vimos anteriormente136 Hegel faz uma distinccedilatildeo entre o domiacutenio do
entendimento e o domiacutenio da razatildeo O primeiro constitui-se em um domiacutenio no qual somente
eacute possiacutevel produzir o limitado e finito137 Qualquer determinaccedilatildeo aiacute posta natildeo estaacute livre de ter
uma outra a ela contraposta A ocorrecircncia desse fato se deve como jaacute mencionado ao caraacuteter
limitado das determinaccedilotildees de entendimento138 Tais determinaccedilotildees satildeo limitadas porque
estatildeo reguladas pelo princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo ou seja que algo natildeo pode ser por
exemplo A e natildeo-A ao mesmo tempo Ou eacute uma coisa ou outra Jaacute o domiacutenio da razatildeo eacute
aquele em que essas determinaccedilotildees finitas produzidas pelo entendimento natildeo satildeo
consideradas isoladamente Se para o entendimento natildeo eacute possiacutevel que algo seja e natildeo seja ao
mesmo tempo que uma determinaccedilatildeo de entendimento desse modo somente valha na sua
unilateralidade e com desconsideraccedilatildeo da outra determinaccedilatildeo que a ela se contraponha e a
limite no domiacutenio racional as duas determinaccedilotildees contrapostas satildeo unificadas A contradiccedilatildeo
aqui natildeo eacute um mal a ser evitado
O que nos interessa com essa pequena retomada da distinccedilatildeo hegeliana entre
entendimento e razatildeo eacute fornecer elementos para que possamos elucidar o significado da
afirmaccedilatildeo do filoacutesofo com relaccedilatildeo ao ecircxito do ceacutetico no seu combate ao dogmatismo Com
efeito o ceacutetico consegue mostrar a fraqueza a limitaccedilatildeo das asserccedilotildees dos dogmaacuteticos devido
a estas estarem estruturadas a partir da loacutegica do entendimento Assim natildeo fica difiacutecil para ele
exercer sua atitude (agogeacute) consistente em mostrar que a cada argumento ou proposiccedilatildeo eacute
136 Ver o cap 2
137 ldquoFinito significa ndash expresso formalmente ndash aquilo que tem um fim o que eacute mas que deixa de ser onde estaacute em conexatildeo com seu outro e por conseguinte eacute limitado por ele Assim o finito consiste em uma relaccedilatildeo ao seu outro que eacute sua negaccedilatildeo e se apresenta como seu limiterdquo (ldquoEndlich heiszligt formell ausgedruumlckt dasjenige was ein Ende hat was ist aber da aufhoumlrt wo es mit seinem Anderen zusammenhaumlngt und somit durch dieses beschraumlnkt wird Das Endliche besteht also in Beziehung auf sein Anderes welches seine Negation ist und sich als dessen Grenze darstellt rdquo In Werke 8 E sect28 Adendo p 94 trad bras p 91
138 ldquoO pensar que soacute produz determinaccedilotildees finitas e nelas se move chama-se entendimento no sentido estrito do termordquo (ldquoDas Denken nur endliche Bestimmungen hervorbringend und in solchen sich bewegend heiszligt Verstand (im genauern Sinne des Wortesrdquo) In GW 20 E sect25 p 68 trad bras p 87
76
possiacutevel contrapor um argumento ou proposiccedilatildeo de igual forccedila No acircmbito do entendimento
natildeo eacute portanto possiacutevel se esquivar dos ataques do ceacutetico Ocorre entretanto que num outro
domiacutenio o da razatildeo a situaccedilatildeo natildeo seja tatildeo favoraacutevel ao ceacutetico Se no acircmbito do racional a
contradiccedilatildeo natildeo precisa ser evitada isso significa que teriacuteamos entatildeo um domiacutenio no qual a
agogeacute ceacutetica seria ineficaz Para aleacutem do acircmbito do dogmatismo produzido pelo
entendimento como poderia o ceacutetico ainda ser uma ameaccedila
Eacute apenas tendo em vista as consideraccedilotildees acima feitas que podemos entender Hegel
quando declara que se trata de um equiacutevoco pensar que toda filosofia que natildeo eacute ceticismo seja
dogmatismo139 As filosofias constituiacutedas segundo a loacutegica do entendimento satildeo para Hegel
filosofias dogmaacuteticas E satildeo essas filosofias que natildeo resistem ao combate empreendido pelo
ceticismo contra elas A filosofia especulativa estaria segundo o filoacutesofo a salvo desse
ataque Ela diferente das filosofias de entendimento (ou dogmaacuteticas) natildeo ldquoafirma algo
determinado como o absolutordquo140
Na Enciclopeacutedia141 Hegel nos fornece uma amostra desse dogmatismo expresso
filosoficamente ao se referir ao que chama de antiga metafiacutesica isto eacute a metafiacutesica que havia
se constituiacutedo anteriormente agrave filosofia kantiana142
Segundo Hegel essa metafiacutesica se articulava por meio de determinaccedilotildees de
pensamento finitas ou seja determinaccedilotildees de entendimento Procurava-se por meio delas
determinar o absoluto pela atribuiccedilatildeo de predicados Elas constituiacuteam os predicados mediante
os quais poderiacuteamos conhecer o objeto a que eram atribuiacutedas Assim dizia-se por exemplo
que o mundo eacute finito ou infinito Temos aqui um sujeito mundo ao qual um dos predicados
finito ou infinito a ele deve ser atribuiacutedo de maneira que possamos conhecer o que ele seja
De fato o que conseguimos ao proceder desse modo natildeo eacute o absoluto Finito eacute uma
determinaccedilatildeo de pensamento que tem diante de si uma outra infinito a ela contraposta Se o
mundo portanto eacute considerado finito podemos por outro lado nos contrapor a essa
afirmaccedilatildeo ao declarar com a mesma intenccedilatildeo de verdade que o mundo eacute infinito Como
impedir entatildeo que se instaure a oposiccedilatildeo Eacute com base nesse tipo de dificuldade oriunda desse
139 Cf Werke 19 p 393 trad cit p 798
140 Ibidem p 393 trad cit p 798 (ldquo etwas Bestimmtes als das Absolute behauptetrdquo)
141 Ver GW 20 E sect26 e ss trad bras p 89 e ss
142 Cf Ibidem E sect27 pp 70-71 trad bras p 90
77
modo de proceder da assim chamada antiga metafiacutesica que podemos compreender Hegel
quando se refere agraves determinaccedilotildees de pensamento finitas como as ldquooposiccedilotildees ainda natildeo
resolvidasrdquo143 A resoluccedilatildeo da oposiccedilatildeo como veremos mais tarde somente poderaacute ocorrer na
filosofia que natildeo mais se articula pela atribuiccedilatildeo de predicados a um sujeito fixo Esta
filosofia eacute a filosofia especulativa
Hegel assinala ainda que em virtude dessa possibilidade de que uma determinaccedilatildeo de
pensamento finita possa ter a ela uma outra determinaccedilatildeo de pensamento finita contraposta
esse procedimento da filosofia calcada no entendimento e consistente em se formular
proposiccedilotildees que possam dar-nos a conhecer o que eacute o objeto por meio da atribuiccedilatildeo de
predicados a um sujeito fixo padece de unilateralidade Em outras palavras para Hegel a
forma proposicional eacute incapaz de exprimir o especulativo ldquoo juiacutezo eacute por sua forma
unilateral e nessa medida eacute falsordquo144 Natildeo haacute como escapar do dogmatismo quando se
pretende portanto que o absoluto seja expresso em forma proposicional A parcialidade desse
absoluto eacute mostrada na medida em que eacute possiacutevel a formulaccedilatildeo de duas proposiccedilotildees opostas
que procurem nos dar a conhecer o que ele seja e como nos adverte Hegel uma delas deve
ser verdadeira e a outra deve ser falsa145 Para o pensar de entendimento natildeo cabe a hipoacutetese
de que essas proposiccedilotildees contrapostas possam coexistir Como admitir a coexistecircncia dos
opostos Se o mundo eacute finito eacute porque ele natildeo eacute infinito e vice-versa Do ponto de vista do
entendimento seria absurdo pensar que determinaccedilotildees opostas pudessem ter contato146 que o
mundo fosse por exemplo finito e infinito ao mesmo tempo sem que isso fosse
contraditoacuterio E uma vez instaurada a contradiccedilatildeo potildee-se a claro o limite do pensamento
dogmaacutetico O que o ceticismo faraacute aos olhos de Hegel eacute justamente atacar esse ponto fraco
do pensamento dogmaacutetico por meio da produccedilatildeo de antinomias
143 Cf Ibidem E sect 27 trad bras p 90 (ldquonoch unaufgeloumlsten Gegensatzerdquo)
144 Ibidem E sect31 p 72 trad bras p 94 (ldquodas Urtheil ist durch seine Form einseitig und in sofern falschrdquo)
145 ldquoEssa metafiacutesica tornou-se dogmatismo porque ela conforme a natureza das determinaccedilotildees finitas devia admitir que de duas afirmaccedilotildees contrapostas tais como eram aquelas proposiccedilotildees uma devia ser verdadeira mas a outra falsardquo (ldquoDiese Metaphysik wurde Dogmatismus weil sie nach der Natur der endlichen Bestimmungen annehmen muszligte daszlig von zwei entgegengesetzten Behauptungen dergleichen jene Saumltze waren die eine wahr die andere aber falsch seyn muumlsserdquo) In Ibidem E sect 32 p 72 trad bras p 94
146 O dogmatismo da metafiacutesica de entendimento natildeo pode imaginar que haja qualquer ponto de contato entre determinaccedilotildees opostas ldquoNoacutes as consideramos como separadas uma da outra por um abismo infinito de modo que as determinaccedilotildees que se contrapotildeem natildeo possam nunca tocar-serdquo (ldquoWir betrachten dieselben als durch einen unendlichen Abgrund voneinander getrennt so daszlig die einander gegenuumlberstehenden Bestimmungen sich nie zu erreichen vermoumlgenrdquo) In Werke 8 E sect32 Adendo p 98 trad bras modificada p 95
78
Mas de volta ao nosso ponto de partida referiacuteamo-nos agrave questatildeo do motivo que levaria
o ceacutetico a ter ecircxito na sua criacutetica ao dogmatismo Vimos entatildeo que na perspectiva hegeliana
esse ecircxito estava vinculado a certas caracteriacutesticas definidoras do dogmatismo ou pensar de
entendimento Eacute preciso contudo abrir aqui um parecircntese para lembrar que o ceacutetico natildeo
admite que haja uma terceira hipoacutetese que natildeo ceticismo ou dogmatismo Ou se eacute ceacutetico ou se
eacute dogmaacutetico147 Natildeo haacute para o ceticismo uma filosofia que natildeo fosse ceacutetica e ao mesmo
tempo tambeacutem natildeo fosse dogmaacutetica Qualquer filosofia que de uma maneira ou de outra
procure afirmar algo sobre a realidade o que seriam as coisas em si mesmas a verdade ou o
absoluto eacute aos olhos do ceticismo dogmaacutetica Qualquer filosofia que enfim avance teses
determinadas Hegel estaacute consciente desse aspecto do ceticismo Ele sabe que da perspectiva
ceacutetica tambeacutem o pensamento especulativo seria considerado dogmaacutetico148 Isto posto
podemos afirmar que para ele o dogmatismo eacute um ldquoconceitordquo que natildeo possui a mesma
abrangecircncia que possuiacutea para os ceacuteticos antigos A filosofia especulativa por exemplo natildeo
poderia ser considerada dogmaacutetica Ela natildeo se constitui na forma de proposiccedilotildees que possam
ser contraditadas por outras a elas contrapostas assim como ocorre no caso do pensar limitado
do entendimento Dessa maneira aos olhos de Hegel ela a filosofia especulativa natildeo eacute
dogmaacutetica Somente as filosofias assentadas no pensar de entendimento poderiam receber tal
denominaccedilatildeo Algo impensaacutevel para o ceacutetico fazer uma tal espeacutecie de distinccedilatildeo
A anaacutelise hegeliana dos tropos utilizados pelos ceacuteticos para combater o dogmatismo
tambeacutem estaacute assentada na distinccedilatildeo que ele faz e acima exposta entre dogmatismo ceticismo
e filosofia especulativa Assim veremos a seguir como Hegel caracteriza os tropos e avalia
em que medida podem ser uacuteteis agrave filosofia especulativa
147 Mesmo a divisatildeo tripartite da filosofia no iniacutecio das Hipotiposes natildeo parece a nosso ver desautorizar a hipoacutetese de que para o ceacutetico apenas haja ou dogmatismo ou ceticismo Cremos que a divisatildeo laacute efetuada apenas pretenda tornar mais precisa a distinccedilatildeo entre um dogmatismo positivo e um dogmatismo negativo Por isso quando declaramos acima que para o ceacutetico apenas haja ou filosofia dogmaacutetica ou filosofia ceacutetica utilizamos o termo dogmatismo em sentido lato isto eacute que o dogmatismo possa ser tanto positivo quanto negativo A respeito da divisatildeo tripartite da filosofia pelo ceticismo cf HP I 1-4 Ver ainda no capiacutetulo inicial deste trabalho p 27 e ss
148 ldquoOs ceacuteticos da Antiguumlidade chamavam em geral dogmatismo toda e qualquer filosofia enquanto ela estabelecia teses determinadas Nesse sentido amplo tambeacutem a filosofia propriamente especulativa conta como dogmaacutetica para o ceticismordquo (ldquoDie alten Skeptiker nannten uumlberhaupt eine jede Philosophie dogmatisch insofern dieselbe bestimmte Lehrsaumltze aufstellt In diesem weiteren Sinne gilt auch die eigentlich spekulative Philosophie dem Skeptizismus fuumlr dogmatischrdquo) In Werke 8 E sect 32 Adendo p 97 trad bras p 94
79
Como jaacute foi observado no iniacutecio deste estudo149 e Hegel faz questatildeo de assinalar150 os
tropos satildeo modos maneiras151 que o ceacutetico se utiliza para por meio da produccedilatildeo de antiacuteteses
chegar agrave suspensatildeo do juiacutezo152 Tambeacutem para Hegel assim como jaacute o eram para os ceacuteticos
antigos os tropos satildeo armas valiosas e eficazes para a criacutetica do dogmatismo
Diferentemente dos ceacuteticos que natildeo procuram efetuar nenhuma distinccedilatildeo entre os dez
tropos de Enesidemo e os cinco tropos de Agripa153 Hegel na sua exposiccedilatildeo dos mesmos
empenha-se em delinear as caracteriacutesticas peculiares de ambos os grupos de tropos Assim os
tropos de Enesidemo satildeo eficazes no combate a uma forma de dogmatismo diferente daquele
que eacute alvo dos cinco tropos de Agripa Os dez tropos tecircm segundo o filoacutesofo como alvo uma
forma mais rudimentar de dogmatismo Uma forma de dogmatismo produzida por uma
consciecircncia vulgar (gemeine Bewuszligtsein) e que tem como crenccedila uma verdade imediata154
Mas a que se deve essa ponderaccedilatildeo de Hegel com relaccedilatildeo ao caraacuteter rudimentar do
dogmatismo que estaacute na mira dos dez tropos Ela se deve com efeito a uma falta de
elaboraccedilatildeo conceitual desses tropos Natildeo haacute neles de acordo com a perspectiva hegeliana a
intenccedilatildeo de se procurar fazer frente a teorias sejam elas filosoacuteficas ou natildeo Eles se dirigem
imediatamente contra o empiacuterico155 A oposiccedilatildeo por meio deles advinda se faz da maneira a
mais simples Tomemos a tiacutetulo de exemplo o primeiro tropo156 baseado nas diferenccedilas dos
animais de acordo com ele dados os caracteres proacuteprios de cada animal diferentes
149 Ver Cap 1 pp 46-48
150 Cf Hegel Werke 19 p 37 trad cit p 778
151 Com respeito ao significado do termo grego tropos no ceticismo antigo cf Barnes J e Annas J The modes of scepticism Cambridge Cambridge University Press 1985 p 21 e ss
152 Cf HP I 3135 e 36
153 No que toca agrave atribuiccedilatildeo dos tropos a Enesidemo e a Agripa veja-se respectivamente em Brochard Les Sceptiques Grecs Paris Vrin 1969 p 253 e ss e p301 e ss
154 Cf Werke pp 374-375 trad cit pp 778-779
155 No mesmo sentido a seguinte observaccedilatildeo de Victor Brochard ldquoLimitemo-nos a notar que os dez tropos de Enesidemo exceto o uacuteltimo (trata-se ainda poreacutem de opiniotildees comumente admitidas sem nenhum caraacuteter cientiacutefico) tecircm por objeto mostrar a insuficiecircncia da percepccedilatildeo sensiacutevel (Cf Brochard p 261)
156 Cf HP I 40-78
80
representaccedilotildees seratildeo produzidas a respeito dos mesmos objetos Desse modo em vista das
diferenccedilas especiacuteficas dos olhos de diversos animais produzir-se-atildeo diferentes representaccedilotildees
visuais a respeito de um mesmo objeto Ou ainda conforme o terceiro tropo157 as diferenccedilas
nos oacutergatildeos sensoriais de um homem para outro natildeo permitem que possamos afirmar nada de
certo no que se refere agrave real natureza daquilo que sentimos Assim natildeo podemos nada dizer
por exemplo quanto ao mel ser em si mesmo doce visto que a um pode parecer doce e a
outro natildeo
Por essa maneira ruacutestica de engendrar oposiccedilotildees apenas apontando a relatividade
daquilo que eacute imediatamente posto como um saber verdadeiro Hegel considera haver uma
falta de abstraccedilatildeo (Mangel der Abstraktion) um caraacuteter a-conceitual (Begriffslosigkeit) desses
dez primeiros tropos que eles expressam um pensamento inabilidoso (ein ungeuumlbtes Denken)
Eacute fato que Sexto nos advirta que o tropo da relatividade eacute o mais geral isto eacute que no fundo
todos os dez tropos satildeo variadas formas de expressar a relatividade de todas as coisas158
Mesmo assim nota Hegel o tropo da relatividade aparece exposto ao lado dos outros nove
como apenas mais um deles159 Natildeo importa portanto que natildeo passem de variaccedilotildees do tropo
da relatividade os outros nove tropos160 Parece-nos que o objetivo do ceacutetico ao apresentar por
meio dos dez tropos diversas maneiras de se poder suspender o juiacutezo eacute ilustrar
extensivamente como fica difiacutecil de se escapar da epokheacute Natildeo eacute suficiente apenas assinalar
que pode ser mostrado o caraacuteter relativo de todas as coisas Eacute necessaacuterio exemplificar
abundantemente essa relatividade A produccedilatildeo de antiacuteteses se daacute portanto dos mais variados
modos tornando a tarefa de se encontrar alguma verdade absoluta um objetivo cada vez mais
distante e irrealizaacutevel
Se o ceticismo assinala Hegel eacute uma filosofia que nos mostra natildeo haver constacircncia
nas coisas que elas satildeo variaacuteveis que nada permanece sempre da mesma maneira no caso
dos dez tropos insiste ele essa inconstacircncia pode ser observada no plano do saber imediato
Por meio deste saber apenas se diz que algo eacute imediatamente de determinado modo E por que
157 Cf HP I 79-91
158 Cf HP I 39
159 Cf Werke 19 p 385 trad cit p 790
160 A respeito da sistematizaccedilatildeo precaacuteria desses tropos ou mesmo falta dela diz Brochard ldquoEsses dez tropos noacutes os vemos se suceder com exceccedilatildeo dos quatro primeiros sem grande ordem Natildeo haacute por que se espantar com isso natildeo eacute metodicamente e nem a priori mas empiricamente e acumulando observaccedilotildees que eles foram determinadosrdquo (Cf Brochard p 259)
81
eacute assim Eacute apenas porque eacute Tenho a experiecircncia imediata de que por exemplo o mel eacute doce
Um outro experimenta do mesmo mel e afirma de igual modo que o mel eacute amargo Diante
portanto de duas percepccedilotildees opostas natildeo eacute possiacutevel saber se o mel eacute doce ou amargo e
assim somos levados agrave suspensatildeo de juiacutezo Segundo Hegel a verdade imediata das coisas eacute
refutada apenas com a posiccedilatildeo do contraacuterio ao que eacute afirmado como o verdadeiro por meio
do ldquoser contrapostordquo (das entgegengesetzte Sein)161 Algueacutem afirma que algo eacute assim mas
outro afirma que natildeo eacute assim que eacute de outro modo
Por mais triviais e vulgares que sejam esses tropos Hegel os considera bastante
apropriados (ganz treffend) contra o dogmatismo do senso comum (den Dogmatismus des
gemeinen Menschenverstandes)162 Exemplo desse dogmatismo grosseiro poderia ser o
ceticismo de Schulze163 Para este autor aquilo que se daacute agrave nossa consciecircncia imediata eacute
verdadeiro164 Natildeo haacute porque de acordo com ele negarmos que seja verdadeiro aquilo que
imediatamente experienciamos Se existe algo verdadeiro este consiste apenas naquilo de que
possamos imediatamente ter certeza165 E Schulze ainda pretende que os ceacuteticos antigos
161 Cf Ibidem p 375 trad cit p 779
162 Cf Hegel Ibidem p 385 trad cit p 790
163 Para a criacutetica detalhada de Hegel ao ceticismo de Schulze ver seu artigo ldquoRelacionamento do ceticismo agrave filosofiardquo In GW 4 pp 197-238 Seja-nos permitido citar tambeacutem a respeito nosso artigo ldquoAlguns aspectos da compreensatildeo hegeliana do ceticismo antigo a partir da criacutetica ao ceticismo de Gottlob Ernst Schulzerdquo In Dois Pontos Ceticismo UFPRUFSCAR vol 4 no 2 2007 pp 221-246 Cf tambeacutem Vieweg Philosophie des Remis especialmente pp 207-221 Por fim cf Forster M N Hegel and Skepticism cap 1
164 Cf Werke 19 p 360 trad cit p 375
165 Ver a propoacutesito a exposiccedilatildeo hegeliana desse lado positivo do ceticismo de Schulze no artigo sobre o ceticismo In GW 4 p 202 Hegel notemos laacute se refere quase textualmente ao seguinte trecho da obra de Schulze Criacutetica da Filosofia Teoacuterica a saber ldquoTem entatildeo certeza completamente incontestaacutevel a existecircncia daquilo que eacute dado presente no acircmbito de nossa consciecircncia Pois o que aiacute estaacute presente na consciecircncia natildeo podemos noacutes de sua existecircncia tampouco duvidar assim como duvidar da proacutepria consciecircncia Querer poreacutem duvidar da consciecircncia eacute absolutamente impossiacutevel porque uma tal duacutevida visto que ela natildeo pode realizar-se sem [que haja] consciecircncia a si mesma se aniquila natildeo seria portanto nada Chamamos entatildeo um fato da consciecircncia aquilo que na e com a consciecircncia eacute dadordquo (ldquoNun hat die Existenz desjenigen was im Umfange unsers Bewuszligtseins als vorhanden gegeben ist ganz unlaumlugbare Gewiszligheit Denn da es im Bewuszligtsein gegenwaumlrtig ist so koumlnnen wir dessen Existenz eben so wenig bezweifeln als das Bewuszligtsein selbst das Bewuszligtsein aber bezweifeln zu wollen ist absolut unmoumlglich weil ein solcher Zweifel da er ohne Bewuszligtsein nicht statt finden kann sich selbst vernichten mithin Nichts seyn wuumlrde Nun nennt man dasjenige was in und mit dem Bewuszligtsein gegeben ist eine Tatsache des Bewuszligtseinsrdquo In Schulze G E Kritik der theoretischen Philosophie Band 1 Hamburg 1801 p 51 (reimpressatildeo por Aetas Kantiana Bruxelas Culture et Civilisation 1973)
82
tambeacutem tenham considerado verdadeiro esse saber imediato e natildeo-filosoacutefico166 Ora natildeo haacute
nada mais distante da filosofia ceacutetica do que esse assentimento a verdades imediatas Os dez
tropos de Enesidemo satildeo prova disso natildeo apenas da perspectiva hegeliana como tambeacutem da
perspectiva ceacutetica Hegel sabe que os ceacuteticos estatildeo longe de afirmar que aquilo que lhes
aparece seja expressatildeo de qualquer verdade Como ele bem nota aquilo que lhes aparece
serve apenas de guia para que o ceacutetico se conduza na sua vida praacutetica167 O ldquofenocircmenordquo natildeo
possui nenhum estatuto epistemoloacutegico e nem ontoloacutegico no sentido dogmaacutetico Se os dez
tropos de Enesidemo servem muito bem aos olhos de Hegel para combater qualquer forma
rudimentar de dogmatismo jaacute o ceticismo de Schulze que tambeacutem poderia ser considerado
uma forma de dogmatismo canhestro natildeo pode ficar fora da mira dos ceacuteticos apontada para
ele por meio dos dez tropos
Na primeira seccedilatildeo da Fenomenologia do Espiacuterito ldquoA certeza sensiacutevel ou o isto ou o
visarrdquo Hegel nos apresenta uma criacutetica de toda forma de saber imediato Assim como no caso
dos dez tropos aqui tambeacutem se aponta para a instabilidade desse saber imediato E para
mostrar que a certeza sensiacutevel que esse saber do imediato nos proporciona natildeo eacute nenhuma
verdade sustentaacutevel que quando procuramos ter acesso agrave coisa que eacute imediatamente para noacutes
de fato natildeo temos acesso a ela Hegel eacute o que nos parece apoacuteia-se tambeacutem no ceticismo
antigo Cremos ser possiacutevel fazer semelhante afirmaccedilatildeo porque em certos momentos do
texto seu modo de proceder com vistas a atacar o saber imediato estaacute em consonacircncia com o
procedimento dos ceacuteticos antigos por meio dos dez tropos168 Essa forma de oposiccedilatildeo que
Hegel vecirc como caracteriacutestica do modo de proceder que opera nos dez tropos a saber que a
uma verdade posta imediatamente uma outra verdade eacute imediatamente contraposta agrave
primeira de maneira que uma anule a outra tambeacutem se encontra presente na seccedilatildeo inicial da
166 Cf GW 4 p 204
167 ldquoO que como ente ou inteligiacutevel valia vale por conseguinte a eles somente por algo que aparece ou uma pura representaccedilatildeo poreacutem lhes vale apenas como algo conforme o qual os ceacuteticos se guiam na sua conduta seu agir e deixar-se submeterrdquo (ldquoWas als Seiendes und Gedachtes galt galt ihnen daher nur fuumlr ein Erscheinendes ode reine Vorstellung aber es galt ihnen als eine solche nach der der Skeptiker sich in seinem Betragen Tun und Lassen richteterdquo) In Werke 19 p 371 trad cit p 775
168 Em sucinto poreacutem bastante elucidativo estudo Klaus Duumlsing relaciona a criacutetica hegeliana da certeza sensiacutevel na Fenomenologia do Espiacuterito ao ceticismo antigo Mais especificamente Duumlsing procura mostrar como estaacute nela presente a criacutetica ceacutetica a toda forma de saber imediato por meio da contraposiccedilatildeo de argumentos com ecircnfase na efetivaccedilatildeo dessa tarefa mediante os tropos de Enesidemo (Cf Duumlsing K ldquoDie Bedeutung des antiken Skeptizismus fuumlr Hegels Kritik der Sinnlichen Gewissheitrdquo Hegel-Studien 8 1973 pp 119-130) Tambeacutem Dietmar Heidemann remete a anaacutelise da certeza sensiacutevel ao ceticismo antigo Em particular ele se refere ao que chama de criacutetica ceacutetica ao realismo imediato (Cf Heidemann D Der Begriff des Skeptizismus pp 280-290)
83
Fenomenologia do Espiacuterito quando do exame que se faz do saber imediato que daiacute se parte
Assim eacute faacutecil mostrar que a certeza sensiacutevel imediata de que agora eacute noite natildeo resiste perante
a certeza oposta a ela e pela qual se declara que agora eacute dia Tanto a certeza de que agora eacute
noite quanto aquela outra de que agora eacute dia satildeo certezas portadoras de verdades
insustentaacuteveis em vista da mais simples oposiccedilatildeo a que sejam submetidas169
O mesmo se passa com a verdade ldquoo aqui eacute a aacutervorerdquo 170 quando me viro prossegue
Hegel essa verdade desvaneceu (ist verschwunden) e mudou na oposta o aqui natildeo eacute uma
aacutervore mas antes uma casa
Sem pretender seguir aqui todos os passos dessa dialeacutetica que aniquila a possibilidade
de que haja um saber imediato vale chamar agora a atenccedilatildeo para a conclusatildeo mais geral a que
se pode chegar qual seja de que o ser que a certeza sensiacutevel quer conhecer imediatamente
natildeo pode ser apreendido Mas por que natildeo podemos ter acesso a essa verdade imediata Seu
acesso nos eacute vedado porque quando pretendemos dizer o imediato apenas conseguimos dizer
o universal Na dialeacutetica do agora natildeo conseguimos de fato dizer verdadeiramente que agora
eacute por exemplo dia Agora pode ser dia ou noite Contra o agora que eacute dia pode ser
contraposto o agora que eacute noite A uacutenica coisa que se manteacutem aqui eacute o agora indiferente a ser
dia ou noite ldquoComo o dia e a noite natildeo satildeo o seu ser assim tambeacutem ele natildeo eacute o dia e a noite
natildeo eacute afetado por esse seu ser-outrordquo171 O agora eacute por meio dessa negaccedilatildeo daquilo que ele
natildeo eacute Quando se pretende dizer verdadeiramente que agora eacute dia somente se consegue dizer
o universal isto eacute o agora que se manteacutem a salvo da oposiccedilatildeo que possa surgir entre o ser
que ele pretende enunciar e o ser que se opotildee a ele
A impossibilidade de dizermos o imediato se deve ao fato de sermos traiacutedos pela
linguagem Ela proacutepria nos mostra que ao tentarmos dizer o ser sensiacutevel apenas estaacute ao nosso
alcance dizer o universal172 Se pretendemos dizer este pedaccedilo de papel segundo o que se nos
169 Cf GW 9 pp 64-65 trad Paulo Meneses p 76
170 Cf Ibidem p 65 trad cit p 77
171 (ldquoso wenig die Nacht und der Tag sein Seyn ist ebensowohl ist es auch Tag und Nacht es ist durch diszlig sein andersseyn nicht afficirtrdquo) In GW 9 p 64 trad cit p 76
172 Cf GW 9 pp 64-65 trad Vaz p 63 Hegel natildeo perde aleacutem disso a oportunidade tambeacutem aqui na Fenomenologia do Espiacuterito de criticar e de modo incisivo Schulze Mesmo que natildeo seja citado nominalmente a referecircncia de Hegel soacute pode ser a ele Vale a pena citar todo o trecho ldquoEacute pois de se admirar quando contra essa experiecircncia se sustenta como experiecircncia universal e tambeacutem como afirmaccedilatildeo filosoacutefica e mesmo como resultado do ceticismo que a realidade ou o ser das coisas exteriores como estas ou como sensiacuteveis tem uma
84
apresenta pelo exame da certeza sensiacutevel natildeo conseguiriacuteamos dizer este pedaccedilo de papel
singular e individual Pela linguagem o ser-aiacute desse objeto exterior a noacutes eacute inatingiacutevel173 Este
pedaccedilo de papel que digo eacute um pedaccedilo de papel como qualquer outro ldquo() como esse pedaco
de papel todo e cada papel eacute um este pedaccedilo de papel e o que eu disse foi sempre e somente
o universalrdquo174
Trazendo novamente o eixo da discussatildeo para o debate entre Hegel e o ceticismo natildeo
conveacutem aqui discutir a respeito do alcance daquilo que aparece para o ceacutetico apoacutes a suspensatildeo
de juiacutezo mas no que nos interessa a saber a possibilidade ou natildeo de se poder afirmar a
verdade simploacuteria do imediato parece-nos oportuno ainda articular a discussatildeo acerca do
saber imediato agrave temaacutetica ceacutetica referente ao ldquoaparecer apoacutes a epokheacuterdquo
Assim quando nas Hipotiposes se discute a respeito dos ceacuteticos abolirem os
fenocircmenos175 parece-nos que a questatildeo em torno da possibilidade de haver ou natildeo saber
imediato esteja presente O ceacutetico procura aiacute justamente desfazer um mal-entendido
concernente agrave sua ldquoposiccedilatildeo filosoacuteficardquo Se natildeo podemos ter acesso agrave verdade no sentido
dogmaacutetico se as coisas se nos apresentam dotadas de um conflito indecidiacutevel somos levados
agrave epokheacute Diante dessa incapacidade do ceacutetico se decidir (dogmaticamente) em nada poder
afirmar absolutamente o que restaria a ele fazer daiacute por diante Esse eacute a espeacutecie de
verdade absoluta para a consciecircncia Semelhante afirmaccedilatildeo natildeo sabe o que diz ou natildeo sabe que diz o contraacuterio do que pretende dizer A verdade do isto sensiacutevel para a consciecircncia deve ser uma experiecircncia universal Aquela consciecircncia suprime uma verdade desse tipo como por exemplo o aqui eacute uma aacutervore ou o agora eacute meio-dia sempre de novo e enuncia o contraacuterio o aqui natildeo eacute uma aacutervore mas uma casa E do mesmo modo a consciecircncia suprime o que nessa afirmaccedilatildeo que suprime a primeira eacute igualmente afirmaccedilatildeo de um isto sensiacutevel Desta sorte em toda certeza sensiacutevel somente eacute experimentado em verdade o que vimos ou seja o isto como um universal o contraacuterio do que aquela afirmaccedilatildeo assegura ser a experiecircncia universal A propoacutesito dessa menccedilatildeo da experiecircncia seja permitido antecipar uma consideraccedilatildeo que pertence ao domiacutenio da praacutetica Na linha dessa consideraccedilatildeo pode-se dizer agravequeles que afirmam a tal verdade e certeza dos objetos sensiacuteveis que eles devem ser reenviados agrave escola mais baixa da sabedoria ou seja aos velhos misteacuterios eleusiacutenicos de Ceres e Baco e que devem aprender pela primeira vez os misteacuterios de comer o patildeo e beber o vinho Com efeito o iniciado nesses misteacuterios natildeo somente chega a duvidar do ser das coisas sensiacuteveis mas a desesperar dele e ele mesmo de uma parte leva a cabo o seu nada de outra o vecirc levar a cabo Tambeacutem os animais natildeo estatildeo excluiacutedos dessa sabedoria mas ao contraacuterio mostram-se profundamente iniciados nela De fato eles natildeo permanecem diante das coisas sensiacuteveis como se elas possuiacutessem um ser em si mas desesperando da sua realidade e na certeza total de seu nada eles as tomam sem mais e as devoram Como eles toda a natureza celebra assim esses misteacuterios revelados que ensinam qual seja a verdade das coisas sensiacuteveisrdquo In GW 9 p 69 trad Vaz p 66-67
173 Cf Ibid pp 69-70 trad Vaz pp 67-68
174 (ldquoals dieses Stuumlck Papier so ist alles und jedes Papier ein dieses Stuumlck Papier und ich habe nur immer das Allgemeine gesagtrdquo) Cf GW 9 p 70 trad de Paulo Meneses p 82
175 Cf HP I 19-20
85
pensamento que poderia surgir para aqueles que natildeo satildeo suficientemente versados no
ceticismo Mais estranho ainda para o natildeo-ceacutetico eacute essa aceitaccedilatildeo adoxaacutestica daquilo que
aparece sem contudo que este aparecer natildeo seja dotado de verdade A partir deste ponto
estamos a um passo de natildeo compreender que o fenocircmeno da perspectiva do ceticismo possa
ter nossa aceitaccedilatildeo isto eacute que possamos dar nosso assentimento ao que nos aparece e se nos
impotildee independente de nossa vontade mas que isto que nos aparece natildeo tem nenhum valor de
verdade
O pensar natildeo-filosoacutefico podemos conjecturar aceita com dificuldade essa hipoacutetese de
um aparecer do qual natildeo possamos ter certeza verdadeira Afinal como natildeo ter certeza de que
vejo que agora eacute dia A ingenuidade do pensar natildeo-filosoacutefico natildeo se daacute conta de que o ceacutetico
tambeacutem talvez concordasse com essa certeza de que agora eacute dia contudo se ele concorda o
faz de uma outra perspectiva
Talvez seja nesse tipo de confusatildeo com respeito agrave sua posiccedilatildeo que o ceacutetico seja
obrigado a tentar esclarecer porque ele natildeo pretende abolir as aparecircncias Parece-nos
portanto que a explicaccedilatildeo fornecida para esse tema pretenda justamente tornar claro que essa
discussatildeo acerca do caraacuteter do aparecer se faccedila ao niacutevel da linguagem e que nesse niacutevel natildeo
podemos obter certezas vinculadas ao que se noacutes daacute imediatamente Natildeo haacute como decidir
entre afirmaccedilotildees opostas a respeito do ldquorealrdquo O ceacutetico portanto constata que no uacutenico plano
ndash a linguagem ndash em que podemos discutir o fenocircmeno natildeo podemos concluir
dogmaticamente nada a seu propoacutesito Mesma conclusatildeo a que chega Hegel exceto que na
dialeacutetica da certeza sensiacutevel se chega a um resultado positivo176 que acerca daquilo que eacute
visado imediatamente apenas podemos ter acesso ao universal
Dessa discussatildeo importa com efeito reter que tanto para os ceacuteticos quanto para
Hegel natildeo podemos por meio da linguagem exprimir o sensiacutevel Mas nada poder dizer a
respeito do sensiacutevel com valor de verdade natildeo impede o ceacutetico de continuar a falar dele Ele
continua a ver uma aacutervore a perceber que agora eacute dia e que este dia se torna noite O que
acontece agora eacute que em virtude da sua incapacidade em poder dizer algo com valor de
verdade ele apenas pode relatar acerca do que lhe aparece deixando de lado qualquer juiacutezo
teacutetico concernente a esse aparecer
176 O ceacutetico chega apenas agrave suspensatildeo do juiacutezo
86
Os tropos nos mostraram o caminho dessa dificuldade em se afirmar algo
dogmaticamente Apoacutes a suspensatildeo do juiacutezo natildeo estamos de acordo com a visatildeo ceacutetica
impedidos de viver como antes o faziacuteamos mas estamos impedidos todavia de tentar nos
referirmos a essa experiecircncia pela qual todos ndash filoacutesofos ou natildeo ndash passamos de modo
dogmaacutetico
O ceacutetico antigo foi obrigado como haacute pouco vimos a ter de se haver com essa falta de
compreensatildeo relacionada agrave sua filosofia E se essa dificuldade de compreensatildeo do
ldquofenomenismordquo ceacutetico jaacute era notaacutevel agrave eacutepoca de Sexto outro exemplo da mesma
incompreensatildeo novamente se verifica agrave eacutepoca de Hegel o ceticismo de Schulze e este eacute o
exemplo mais gritante da mesma
Se na seccedilatildeo Ceticismo das suas Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia a fraqueza do
ceticismo de Schulze era apontada dentro da criacutetica que por meio dos tropos se fazia agrave falta de
solidez do saber imediato das coisas exteriores sensiacuteveis na Fenomenologia do Espiacuterito a
criacutetica a Schulze se desenvolve no mesmo sentido todavia que agora ela vai como haacute pouco
vimos aleacutem da mera criacutetica negativa e aponta para o resultado positivo dessa dialeacutetica
presente na certeza sensiacutevel
De volta aos tropos conveacutem reparar que nas Hipotiposes Sexto natildeo se refere aos
tropos a partir da dupla denominaccedilatildeo tropos de Enesidemo e tropos de Agripa Ele apenas
nota que os modos de Enesidemo surgem em um periacuteodo mais antigo da histoacuteria do
ceticismo177 Jaacute os tropos de Agripa satildeo de um periacuteodo bem posterior da histoacuteria do
ceticismo178 A diferenccedila entre a eacutepoca de surgimento eacute a uacutenica que Sexto menciona A uacutenica
observaccedilatildeo que Sexto faz nas Hipotiposes quanto agrave relaccedilatildeo entre os dois grupos de tropos
refere-se a notar que os cinco posteriores servem para proporcionar maior variedade e
completude agrave exposiccedilatildeo da precipitaccedilatildeo (propeacuteteia) dos dogmaacuteticos179 Mas apesar contudo
177 Cf HP I 36
178 Cf HP I 164
179 Cf HP I 177
87
de natildeo ser feita nenhuma distinccedilatildeo entre eles com relaccedilatildeo a isso Sexto faz uma declaraccedilatildeo
que merece nossa atenccedilatildeo a saber que os cinco tropos de Agripa natildeo pretendem anular os
dez tropos anteriores Ora por que razatildeo eacute declarado que natildeo se pretende por meio dos tropos
de Agripa repelir os anteriores No contexto dessa discussatildeo poderiacuteamos supor subjaz a
ideacuteia de que os tropos posteriores dariam conta da tarefa a ser executada pelos outros dez
tropos Haveria entatildeo uma superioridade dos tropos de Agripa o que por consequumlecircncia
forccedilaria o afastamento dos dez primeiros tropos em prol dos cinco de Agripa Da perspectiva
ceacutetica tal discussatildeo em torno da superioridade tem de ser evitada afinal por qual criteacuterio
julgar a superioridade de uns em relaccedilatildeo aos outros
Com efeito parece-nos que os cinco tropos de Agripa poderiam tomar o lugar dos dez
tropos de Enesidemo Satildeo de caraacuteter mais geral Dentre eles temos inclusive o tropo da
relatividade aquele ao qual poderiam todos os outros nove tropos de Enesidemo serem
reduzidos
Quando Hegel efetua a distinccedilatildeo entre os dois grupos de tropos eacute cabiacutevel que ele natildeo
esteja cometendo nenhum exagero com respeito ao que de fato nos eacute mostrado pelo ceticismo
antigo
Para Hegel a diferenccedila fundamental entre os tropos de Enesidemo e os tropos de
Agripa reside no grau de elaboraccedilatildeo que eles atingem e atrelado a essa marca distintiva o
alvo a ser atacado por meio deles tambeacutem seraacute diferente180 Assim para ele os tropos de
Agripa ldquopertencem mais agrave reflexatildeo pensante e contecircm a dialeacutetica que o conceito determinado
tem nele Esses parecem melhores satildeo manifestamente de uma origem posterior
imediatamente se vecirc que eles designam um ponto de vista e uma cultura inteiramente
180 Jaacute Brochard na sua apresentaccedilatildeo dos tropos de Enesidemo e Agripa empenhava-se em sublinhar a diferenccedila de grau que havia entre os dois grupos de tropos Dessa maneira procurava mostrar que os tropos de Agripa eram dotados de maior generalidade e abstraccedilatildeo sendo portanto mais eficazes que os tropos de Enesidemo no que toca agrave criacutetica ceacutetica por meio deles efetuada ldquoPor mais gerais que sejam as concepccedilotildees criticadas por Enesidemo elas possuem ainda um conteuacutedo determinado os argumentos de Agripa atingem natildeo somente tal ou tal proposiccedilatildeo mas antes toda proposiccedilatildeo de qualquer espeacutecie que ela seja natildeo apenas determinadas verdades mas toda verdade consideradas segundo as condiccedilotildees as mais imediatas e as mais essenciais do conhecimentordquo (Brochard p 305) Ou ainda ldquoOs cinco tropos podem ser considerados como a foacutermula a mais radical e a mais precisa que jamais fora dada a respeito do ceticismo Numa palavra ainda hoje eles satildeo irresitiacuteveis Quem quer que aceite a discussatildeo acerca dos princiacutepios que natildeo os declare superiores ao raciociacutenio e ao conhecido por uma intuiccedilatildeo imediata do espiacuterito admitido por um ato de feacute primitivo do qual natildeo prestamos contas e nem necessitamos justificar natildeo poderia escapar a essa sutil dialeacuteticardquo (Brochard p 306) Natildeo eacute agrave toa que cabe notar Hegel dedique tanta atenccedilatildeo agrave filosofia ceacutetica
88
diferentes do pensamento filosoacutefico Eles se dirigem com efeito especialmente contra as
formas de pensamento e as determinidades do conceitordquo181
O que chama a atenccedilatildeo de Hegel nos cinco tropos de Agripa eacute o caraacuteter geral dos
mesmos que implica na possibilidade de que eles natildeo fiquem restritos ao ataque a um
dogmatismo de aspecto mais rudimentar182 Os tropos de Agripa por sua proacutepria estrutura
nos permitem eacute o que nota Hegel combater o dogmatismo num outro acircmbito Este acircmbito eacute o
da forma do que eacute dito Natildeo existe aqui a preocupaccedilatildeo em exibir a falta de fundamento de
uma premissa por exemplo com relaccedilatildeo a determinado conteuacutedo Eacute indiferente o assunto de
que se trata
Interessa primordialmente a Hegel que por meio desses tropos possamos combater
natildeo apenas o dogmatismo natildeo-filosoacutefico mas tambeacutem o dogmatismo criado pelos filoacutesofos E
por dogmatismo filosoacutefico deve ser entendido aquele dogmatismo denominado por Hegel de
filosofia do entendimento (Verstandesphilosophie)
Como jaacute foi visto anteriormente183 o ecircxito do ceacutetico no combate ao dogmatismo estaacute
na visatildeo hegeliana relacionado agrave limitaccedilatildeo intriacutenseca da esfera do entendimento Assim a
aplicaccedilatildeo do ldquoprinciacutepio programaacutetico do pirronismordquo qual seja opor a todo argumento ou
proposiccedilatildeo a proposiccedilatildeo ou argumento de igual forccedila184 ao saber de entendimento fazia com
que esse saber sempre desmoronasse em vista das antinomias estabelecidas pelo ceacutetico
Contra o limitado posto pelo entendimento o ceacutetico punha um outro que contrapusesse o
primeiro mostrando assim a falta de consistecircncia desse185
Os tropos de Agripa natildeo satildeo nada mais do que variadas formas de apontar o caraacuteter
determinado do pensar filosoacutefico de entendimento ldquoEsses tropos satildeo armas fundamentais
181 (ldquosie gehoumlren mehr der denkenden Refelxion an und enthalten die Dialektik welche der bestimmte Begriff an ihm hat Diese sehen besser aus sie sind offenbar spaumlteren Ursprungs es erhellt sogleich dass sie einen ganz anderen Standpunkt und Bildung des philosophischen Denkens bezeichnen Sie gehen naumlmlich besonders gegen die Gedankenformen und Bestimmtheiten des Begriffsrdquo) In Werke 19 p 386 trad cit p 790
182 ldquoOs dez tropos de Enesidemo tendem a provar que a certeza de fato natildeo existe os cinco tropos de Agripa querem estabelecer que logicamente natildeo poderia haver certeza Por aiacute podemos medir a superioridade dos uacuteltimos por sobre os primeirosrdquo (Brochard p 304)
183 No que se refere agrave relaccedilatildeo entre dogmatismo e entendimento e agrave criacutetica ao dogmatismo produzido pelo entendimento ver de modo geral cap 2
184 Cf HP I 12
185 A respeito da limitaccedilatildeo do entendimento ver neste estudo o capiacutetulo 2
89
contra a filosofia de entendimentordquo186 Hegel natildeo perde a oportunidade de por diversas vezes
elogiar os tropos de Agripa como armas eficazes contra a limitaccedilatildeo da filosofia de
entendimento187
Tomemos um exemplo de como pode ser combatida a limitaccedilatildeo de uma filosofia do
entendimento segundo Hegel a filosofia dogmaacutetica comumente apresenta um princiacutepio em
uma proposiccedilatildeo determinada Ora eacute faacutecil apontar a condicionalidade desse princiacutepio ao se
simplesmente contrapor a ele de acordo com o tropo da hipoacutetese um outro princiacutepio que o
negue Diante dessa oposiccedilatildeo o ceacutetico suspende seu juiacutezo pois natildeo se vecirc em condiccedilotildees de
acolher um ou outro princiacutepio como vaacutelido A posiccedilatildeo do princiacutepio dessa filosofia eacute tatildeo
arbitraacuteria quanto a posiccedilatildeo do princiacutepio que o contrapotildee e posto pelo ceacutetico Contra um tal
princiacutepio determinado tambeacutem poder-se-ia arguumlir qual eacute seu fundamento e assim um outro
princiacutepio seria posto como fundamento do primeiro mas este novo princiacutepio padeceria da
mesma falta de fundamento e entatildeo seria necessaacuterio um outro princiacutepio a fundaacute-lo e assim por
diante Com esse processo de fundamentaccedilatildeo que nunca se basta teriacuteamos entatildeo uma
regressatildeo ao infinito (2ordm tropo de Agripa)
Como podemos observar natildeo eacute difiacutecil para o ceacutetico apontar mediante os tropos a
falta de solidez do que eacute posto pelas filosofias do entendimento ldquoEsses tropos satildeo as
oposiccedilotildees necessaacuterias nas quais o entendimento cai Nesses tropos estaacute contida a deficiecircncia
(das Mangelhafte) de toda metafiacutesica do entendimentordquo188 A proacutepria estrutura da proposiccedilatildeo
favorece a criacutetica ceacutetica Lembremos189 que uma proposiccedilatildeo de entendimento se constitui de
acordo com o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo190 Desse modo natildeo podemos dizer que algo seja
e natildeo seja ao mesmo tempo O ceacutetico apoiado em sua dialeacutetica potildee ao que se diz numa
proposiccedilatildeo de entendimento o seu contraposto tornando assim patente a limitaccedilatildeo do que era
enunciado por meio dessa proposiccedilatildeo
186 (ldquoDiese Tropen sind gruumlndliche Waffe gegen Verstandesphilosophierdquo) Werke 19 p 395 trad cit p 799
187 ldquoEsses tropos demonstram a alta consciecircncia dos ceacuteticos no progredir da argumentaccedilatildeo superior agravequela da loacutegica comum da loacutegica dos estoacuteicos e da canocircnica de Epicurordquo (ldquoDiese Tropen beweisen das hohe Bewuszligtsein der Skeptiker in dem Fortgehen der Argumentation -- ein houmlheres als in der gewoumlhnliche Logik der Logik der Stoiker und der Kanonik des Epikur vorhanden istrdquo) In Ibidem p394 trad cit p 799
188 (ldquoDiese Tropen sind notwendige Gegensaumltze in welche der Verstand faumlllt In diesen Tropen ist das Mangelhafte aller Verstandesmetaphysik enthaltenrdquo) In Ibidem p 394 trad cit p 799
189 Veja-se a respeito o capiacutetulo 2
190 Hegel a ele se refere como princiacutepio de contradiccedilatildeo
90
Ainda sobre os tropos de Agripa atacarem a forma do que eacute dito dogmaticamente por
essas filosofias limitadas Hegel se refere a essa operaccedilatildeo como ldquodesse determinado
encontrar o que eacute sua determinidaderdquo191 Encontrar nesse determinado produzido pelo
entendimento aquilo que o faz limitado e que dessa maneira torna-o vulneraacutevel agrave criacutetica
ceacutetica
A fim ainda de esclarecer o que eacute o ceticismo Hegel distingue dois momentos formais
do que ele chama de cultura (Bildung) ceacutetica Esses dois momentos constituem uma espeacutecie
de descriccedilatildeo hegeliana da estrutura fundamental do modo de operar dessa filosofia
Assim no primeiro momento Hegel salienta essa forccedila da consciecircncia (ceacutetica) de se
retirar de si mesma e tomar a totalidade do que existe incluiacuteda aiacute ela mesma ndash sua operaccedilatildeo ndash
como seu objeto192 Talvez com essa espeacutecie de caracterizaccedilatildeo Hegel se refira agrave neutralidade
que haacute nessa postura filosoacutefica quando do exame daquilo que a ela se apresenta
dogmaticamente
Natildeo haveria como ser diferente pois se o ceacutetico em virtude de sua proacutepria atitude
filosoacutefica natildeo possui dogmas a defender natildeo parte portanto de nenhuma verdade seja ela
qual for ou diga respeito ao que quer que seja o seu exame do que eacute afirmado
dogmaticamente seraacute isento e neutro O exame dos enunciados dos dogmaacuteticos se efetua
levando apenas em conta aquilo que eles mesmos propuseram e os argumentos utilizados
pelos ceacuteticos para combater tais enunciados expressam somente a forma por eles encontrada
para verificar a sustentabilidade do que foi dogmaticamente posto193
191 (ldquovon diesem Bestimmten zu finden was seine Bestimmtheit istrdquo) In Werke 19 p 395 trad cit pp 799-800
192 Cf Ibidem p 395 trad cit p 800
193 Nada fica por conseguinte excluiacutedo do acircmbito do exame do dogmatismo filosoacutefico Natildeo se parte de premissas que sirvam como criteacuterio a ser seguido com relaccedilatildeo ao que seraacute analisado Eacute de acordo com essa forma de proceder do ceacutetico que na Fenomenologia do Espiacuterito eacute o que nos parece dir-se-aacute que o exame ceacutetico da consciecircncia aconteceraacute a partir daquilo mesmo que se apresenta nesta ou naquela figura da consciecircncia de maneira que ldquonatildeo temos portanto necessidade de trazer outras medidas e aplicar na investigaccedilatildeo nossas descobertas e nossos pensamentos Deixando-os de lado conseguiremos tratar o objeto de nossa inquisiccedilatildeo tal como ele eacute em-si e para-si Torna-se supeacuterflua por conseguinte uma intervenccedilatildeo de nossa parte desde que o
91
O segundo momento da Bildung ceacutetica consiste na operaccedilatildeo efetivamente realizada
quando do exame do que eacute dito dogmaticamente Pensemos por exemplo numa proposiccedilatildeo
qualquer o interesse do ceacutetico natildeo estaacute voltado primordialmente para o conteuacutedo enunciado
por meio dessa proposiccedilatildeo mas antes na forma do que eacute dito194 Desse modo no juiacutezo ldquoa
coisa eacute unardquo sua preocupaccedilatildeo natildeo eacute com a coisa que eacute dita e com o fato dela ser uma
preocupa-se ele antes que nessa proposiccedilatildeo haacute um algo um determinado relacionado ao uno
O essencial consiste nessa relaccedilatildeo entre esse singular que se potildee como um com o universal
que por sua vez eacute diverso (verschieden) dele195 O essencial prossegue Hegel eacute o elemento
loacutegico trazido ao primeiro plano pelo ceticismo196
Os tropos de Agripa exemplificam essa mudanccedila de foco do conteuacutedo para a forma do
que eacute enunciado A criacutetica ao dogmatismo independe do conteuacutedo que estaacute presente num
argumento ou proposiccedilatildeo pois esses tropos satildeo eficazes no combate ao dogmatismo apenas
ao apontar em seu aspecto formal a falta de solidez do que eacute afirmado
Outro aspecto que adveacutem como consequumlecircncia desse desinteresse pelo conteuacutedo do que
eacute dito refere-se ao fato de que a investigaccedilatildeo ceacutetica por natildeo poder ndash em virtude de sua
conceito e o objeto a medida e a coisa a ser examinada estatildeo presentes na consciecircncia mesmardquo (ldquo[]und hiemit wir nicht noumlthig haben Masszligstaumlbe mitzubringen und unsere Einfaumllle und Gedanken bey der Untersuchung zu appliciren dadurch daszlig wir diese weglassen erreichen wir es die Sache wie sie an und fuumlr sich selbst ist zu betrachten Aber nicht nur nach dieser Seite daszlig Begriff und Gegenstand der Maszligstab und das zu Pruumlffende in dem Bewuszligtsein selbst vorhanden sind [hellip] rdquo In GW 9 p 59 trad Vaz p 54
194 Cf Werke 19 p 395 trad cit p 800
195 Cf Ibidem p 395 trad cit p 800
196 Poderiacuteamos aproximar essa discussatildeo a respeito da mudanccedila de foco realizada pelo ceacutetico do conteuacutedo para a forma do que seraacute examinado agrave discussatildeo no iniacutecio da Enciclopeacutedia precisamente no sect3 acerca da necessidade de se passar para o plano dos pensamentos puros quando se pretende pensar filosoficamente Nesse sentido eacute interessante o comentaacuterio hegeliano acerca da dificuldade da consciecircncia ordinaacuteria compreender o ponto de vista da filosofia Dessa ldquofalta de costume de pensar abstratamenterdquo deriva a acusaccedilatildeo de ininteligibilidade (Unverstaumlndlichkeit) da filosofia (cf GW 20 p42 trad cit p 42) O pensar que natildeo consegue se libertar de suas representaccedilotildees sentimentos intuiccedilotildees tem dificuldade em se elevar ao plano de uma discussatildeo na qual lhe sejam retirados os conteuacutedos familiares a que estaacute acostumado a lidar O que o ceacutetico faz eacute passar desse plano mais terra-a-terra da consciecircncia ordinaacuteria e como quer Hegel transpor-se para o plano dos pensamentos puros ldquoEm qualquer proposiccedilatildeo de conteuacutedo inteiramente sensiacutevel como lsquoessa folha eacute verdersquo jaacute estatildeo inseridas categorias ser singularidaderdquo (GW 20 p 42 trad p 42) Quando se faz essa passagem para esse plano mais abstrato o exame se aprofunda As proacuteprias coordenadas que regulam a constituiccedilatildeo de nosso pensamento acerca das coisas satildeo postas em questatildeo Por isso a consciecircncia ordinaacuteria diraacute Hegel se sente aturdida pois perde seu ponto fixo e domiciacutelio ldquoQuando se encontra deslocada para a regiatildeo pura dos conceitos natildeo sabe onde estaacute no mundordquo (Cf GW 20 p 43 trad p 43) A ldquoresoluccedilatildeo de querer pensar puramenterdquo (rein denken zu wollen) cumpre essa exigecircncia ceacutetica de submeter tudo a exame o que envolve a ldquoausecircncia de pressuposiccedilatildeo a respeito de tudordquo (Cf GW 20 E sect 78 p 118 trad p 156)
92
proacutepria atitude filosoacutefica ndash nada pressupor natildeo considera nada como dado isto eacute daquilo que
eacute afirmado dogmaticamente nenhum dos elementos componentes dessa afirmaccedilatildeo ficaria
excluiacutedo da investigaccedilatildeo
Talvez pudeacutessemos compreender a partir do que se disse agora a declaraccedilatildeo de Hegel
referente aos ceacuteticos natildeo estarem preocupados em disputar se a coisa eacute deste ou daquele
modo mas que eles se preocupam antes se a coisa eacute mesmo algo197
O exemplo extraiacutedo das Hipotiposes198 que Hegel nos daacute a esse respeito eacute o seguinte
na discussatildeo acerca das propriedades que porventura Deus possua eacute preciso primeiro que
saibamos se ele tem realidade (Realitaumlt)199 Antes de conceber quais propriedades Deus
possui primeiro se faz necessaacuterio saber se Deus mesmo eacute algo ldquonatildeo fornecer a coisa se a
coisa eacute assim ou assado mas antes se coisa mesma eacute algordquo200 A postura filosoacutefica ceacutetica
implica essa mudanccedila de atitude perante o discurso filosoacutefico ou natildeo Antes de empregar a
linguagem ldquodoacutexicardquo eacute preciso examinar se as ldquoessecircnciasrdquo que essa linguagem nos fornece satildeo
algo de soacutelido e estaacutevel Via de regra o pensamento dogmaacutetico natildeo se questiona a respeito do
que diz Eacute como se desde sempre os conceitos dos quais se vale tivessem os significados que
num determinado contexto prevaleceram O ceacutetico recua ante esse emprego ingecircnuo das
palavras e examina se as ldquoessecircnciasrdquo que nelas habitam satildeo efetivamente ldquoessecircnciasrdquo estaacuteveis
Nesse exame da ldquoessecircncia do expressordquo para falar em linguagem hegeliana se atinge o
caraacuteter limitado e instaacutevel dessas ldquoessecircnciasrdquo E ao se atingir a limitaccedilatildeo das mesmas
descobre-se tambeacutem que como veremos natildeo podem ser visadas apenas na sua
unilateralidade Em suma para que possamos pretender aceitar determinada posiccedilatildeo
dogmaacutetica filosoacutefica ou natildeo eacute necessaacuterio que nada deixe de ser investigado Eacute por essa
amplitude e falta de restriccedilotildees embutidas na investigaccedilatildeo ceacutetica que Hegel se referiu agrave forccedila
da consciecircncia ceacutetica em fazer seu objeto tudo que eacute existente inclusive a si mesma e sua
proacutepria operaccedilatildeo
197 Cf Ibidem p 396 trad cit p 800
198 Cf HP III 4
199 Nas Hipotiposes III 4 no trecho que certamente Hegel tem em mente trata-se de saber o que eacute a essecircncia (οὐσίαν) de Deus antes de se aprender e conceber suas propriedades
200 (ldquonicht die Sache zu geben ob die Sache so oder so ist sondern ob die Sache selbst etwas istrdquo) Ibidem p 396 trad cit p 800
93
No que respeita propriamente ao seu exame Hegel vislumbra jaacute no ceticismo antigo
um procedimento operatoacuterio caracteriacutestico do pensamento especulativo201 Eacute o que ele nos
diraacute logo apoacutes ter feito a exposiccedilatildeo da anaacutelise de Sexto Empiacuterico sobre as noccedilotildees geomeacutetricas
Natildeo apenas com relaccedilatildeo agraves noccedilotildees geomeacutetricas mas tambeacutem em todas as
determinaccedilotildees das ciecircncias o ceacutetico apresenta a determinidade delas ao indicar nas mesmas o
seu outro202 No caso especiacutefico das determinaccedilotildees da geometria Sexto prossegue Hegel
critica a matemaacutetica por nela se dizer que haacute um ponto um espaccedilo uma linha uma superfiacutecie
uma unidade e assim por diante Com efeito o que para Hegel se encontra na criacutetica ceacutetica agraves
determinaccedilotildees matemaacuteticas eacute o fato dessas determinaccedilotildees padecerem de unilateralidade quer
dizer que nelas natildeo se consideram as determinaccedilotildees agraves mesmas opostas e unidas
Hegel cita um exemplo dessa criacutetica agrave matemaacutetica a saber o exemplo do
relacionamento dialeacutetico entre o ponto e o espaccedilo
ldquoO ponto eacute um espaccedilo e eacute um simples no espaccedilo ele natildeo tem nenhuma dimensatildeo
(mas se) ele natildeo tem nenhuma dimensatildeo entatildeo ele natildeo estaacute no espaccedilo Na medida em que o
um eacute espacial noacutes o denominamos um ponto mas se isso deve ter um sentido ele precisa ser
espacial e enquanto espacial ter uma dimensatildeo ndash mas entatildeo natildeo eacute mais um ponto O ponto eacute a
negaccedilatildeo do espaccedilo na medida em que eacute o seu limite e como tal ele toca o espaccedilo essa
negaccedilatildeo participa portanto do espaccedilo ela proacutepria eacute espacial eacute assim um nulo (Nichtiges) em
si mas com isso eacute tambeacutem um dialeacutetico em sirdquo203
Como acabamos de observar nessa dialeacutetica do ponto e do espaccedilo o ponto somente se
determina como ponto na medida em que estaacute intrinsecamente relacionado ao outro elemento
201 ldquoO ceticismo tratou portanto tambeacutem propriamente de ideacuteias especulativas e apontou a importacircncia delasrdquo (ldquoDer Skeptizismus hat also auch eigentlich spekulative Ideen behandelt und ihre Wichtigkeit aufgezeigtrdquo) Cf Ibidem p 396 trad cit p 802
202 Cf Ibidem p 396 trad cit p 802
203 Ibidem p 396 trad cit p 802 (ldquoPunkt ist ein Raum und ein Einfaches im Raum er hat keine Dimension hat er keine Dimension so ist er nicht im Raume Insofern das Eins raumlumlich ist nennen wir es einen Punkt wenn dies aber einen Sinn haben soll so muszlig es raumlumlich sein und als Raumlumliches Dimension haben ndash so ist es aber kein Punkt mehr Er ist die Negation des Raums insofern er die Grenze des Raums ist als solche beruumlhrt er den Raum diese Negation hat also einen Anteil an dem Raum ist selbst raumlumlich ndash ist so ein Nichtiges in sich ist aber damit auch ein Dialektisches in sichrdquo)
94
que nega o espaccedilo mas sem o qual o ponto natildeo se constitui como ponto O limite do ponto eacute
o espaccedilo e o limite do espaccedilo eacute o ponto Um somente eacute o que eacute na medida em que o outro natildeo
eacute todavia esse relacionamento dos opostos eacute o que permite que ambos sejam ponto e espaccedilo
A limitaccedilatildeo de um pelo outro eacute a condiccedilatildeo para que cada um se determine ou como ponto ou
como espaccedilo Para o pensamento finito de entendimento o ponto eacute um simples no espaccedilo que
natildeo possui dimensatildeo Ora o ceacutetico mostra que natildeo eacute possiacutevel pensar o ponto desvinculado da
dimensatildeo Como estar no espaccedilo e natildeo ter dimensatildeo Aqui temos o ldquolimiterdquo do entendimento
natildeo eacute capaz de conceber que o ponto seja no espaccedilo e dependa da dimensatildeo espacial para se
determinar como ponto Para o entendimento essa convivecircncia muacutetua de ponto e espaccedilo eacute
uma contradiccedilatildeo e por ser uma contradiccedilatildeo natildeo eacute nada O que o ceacutetico faz eacute mostrar que
ponto e espaccedilo efetivamente contradizem um ao outro entretanto essa contradiccedilatildeo entre
ambos os elementos eacute o que permite aos olhos do pensamento especulativo que sejam como
jaacute dissemos ponto e espaccedilo Cremos que a partir dessas consideraccedilotildees possamos compreender
porque Hegel se refira ao fato do ceticismo ter tratado de ideacuteias especulativas204 Esse na
liacutengua hegeliana indicar da contradiccedilatildeo no finito aqui especificamente pelo exemplo do
ponto e do espaccedilo eacute segundo o filoacutesofo ldquoum ponto essencial do meacutetodo filosoacutefico
especulativordquo205
Mas o ceacutetico natildeo se restringe como gostaria Hegel a combater apenas o finito Ele
natildeo reconhece que o especulativo seja um domiacutenio a salvo de suas investidas Se o ponto e o
204 Em Ordem do tempo Paulo Eduardo Arantes ao refazer todos os passos da argumentaccedilatildeo hegeliana a respeito da passagem especulativa do espaccedilo ao tempo explicita a articulaccedilatildeo dialeacutetica presente nessa passagem entre ponto e espaccedilo ldquoGraccedilas agrave ideacuteia de limite ndash primeira negaccedilatildeo ou negaccedilatildeo simples ndash eacute a armaccedilatildeo dialeacutetica inteira que estaacute montada na exposiccedilatildeo do conceito de espaccedilo O ponto eacute a negaccedilatildeo do espaccedilo uma vez que este se mostra inicialmente como o ser-fora-de-si indiferenciado ou imediato Certo natildeo haacute como falar de pontos espaciais como constituindo o elemento positivo do espaccedilo (agregado obtido por soma de pontos) A continuidade abstrata do espaccedilo eacute apenas a possibilidade mas natildeo o estar-posto do ser-um-fora-do-outro e do negativo Vale dizer que a desarticulaccedilatildeo do contiacutenuo pela limitaccedilatildeo equivale a uma posiccedilatildeo do negativo por isso lsquoo ponto o ser-para-si eacute antes a negaccedilatildeo do espaccedilo e essa negaccedilatildeo posta nelersquo (ibid sect 254 p 207 trad p 245) Vale dizer tambeacutem que a negatividade de que o ponto eacute portador eacute da ordem da negaccedilatildeo determinada Em suma o ponto eacute a negaccedilatildeo do espaccedilo portanto essa negaccedilatildeo mesma eacute espacial e a linha que natildeo eacute mais que o ponto suprimido eacute assim o ser espacial do ponto (cf ibid sect 256)rdquo In Arantes P E A ordem do tempo Satildeo Paulo Ed Polis 1981 p 37
205 Ibidem p 396 trad 802 (ldquoein wesentlicher Punkt der spekulativ philosophischen Methoderdquo) Nesse sentido podemos compreender que o conceito absoluto seja uma arma da qual se vale o ceacutetico ldquoContra o conceito como conceito conceito absoluto nada pode o ceticismo o conceito absoluto eacute antes sua arma apenas que ele natildeo tem nenhuma consciecircncia a respeito dissordquo (ldquoGegen den Begriff als Begriff absoluten Begriff geht der Skeptizismus nicht der absolute Begriff ist vielmehr seine Waffe nur daszlig er kein Bewuszligtsein daruumlber hatrdquo) In Ibidem p 372 trad cit p 776
95
espaccedilo se contradizem natildeo haacute conciliaccedilatildeo possiacutevel A incapacidade de decidir soacute o leva agrave
suspensatildeo do juiacutezo Da contradiccedilatildeo natildeo se pode esperar nada
Se o ceacutetico segundo Hegel acertadamente eacute capaz de apontar (aufzeigen) a
limitaccedilatildeo do pensar de entendimento que seu saber por natureza unilateral estaacute condenado a
ser sempre contraditado por um outro ele natildeo eacute entretanto capaz de enxergar nessa
contradiccedilatildeo a possibilidade de que haja nela um aspecto afirmativo ldquoos ceacuteticos permanecem
no resultado como perante um negativo tal coisa tem uma contradiccedilatildeo em si portanto se
dissolve (loumlst es sich auf) portanto natildeo eacuterdquo206 O termo da investigaccedilatildeo ceacutetica se consuma
nessa aporia Mas o negativo a que se chega ldquoeacute novamente uma determinidade unilateral em
face do positivo isto significa que o ceticismo se comporta somente como entendimentordquo207
O que Hegel pretende com essa criacutetica eacute mostrar que o ceacutetico por mais que se
empenhe em efetuar sua investigaccedilatildeo da maneira a mais abrangente mesmo ele natildeo se daacute
conta de que assume certos pressupostos tambeacutem passiacuteveis de exame Aqui especificamente
falta a ele atentar para o fato de que o negativo a que chega eacute tatildeo limitado quanto o positivo
que aboliu que a negaccedilatildeo comporta um lado afirmativo208 que o nada que adveacutem da
contradiccedilatildeo natildeo eacute um puro nada
ldquoEssa dialeacutetica permanece assim simplesmente no lado negativo do resultado e abstrai
daquilo que ao mesmo tempo estaacute aiacute-presente um resultado determinado aqui um puro nada
mas um nada que em si inclui o ser e igualmente um ser que nele inclui o nadardquo209
206 (ldquo[] die Skeptiker bei dem Resultat als einem Negativen stehenbleiben dies und dies hat einen Widerspruch in sich also loumlst es sich auf also ist es nichtrdquo) Werke 19 p 360 trad cit p 761
207 (ldquo [hellip]ist wieder eine einseitige Bestimmtheit gegen das Positive dh der Skeptizismus verhaumllt sich nur als
Verstand rdquo) Ibidem p 360 trad cit p 761
208 Ibidem p 360 trad cit p 761
209 GW 20 E sect89 p 129 trad cit p 185 No original ldquoDiese Dialektik bleib so blos bei der Negativen Seite des Resultates stehen und abstrahirt von dem was zugleich wirklich vorhanden ist ein bestimmtes Resultat hier ein reines Nichts aber Nichts welches das Seyn und eben so ein Seyn welches das Nichts in sich schlieszligtrdquo
96
O pressuposto natildeo assumido pelo ceacutetico eacute portanto que o nada eacute uma determinaccedilatildeo
unilateral que se relaciona apenas exteriormente ao ser Com efeito vemos nos paraacutegrafos
iniciais da Doutrina do Ser na Enciclopeacutedia que o ser e o nada estatildeo unidos que eles se
determinam mutuamente210 Sem pretender adentrar na anaacutelise desses paraacutegrafos da
Enciclopeacutedia importa agora reparar que o ponto de vista do ceacutetico tambeacutem eacute passiacutevel de
criacutetica que por mais que ele deseje o contraacuterio aos olhos de Hegel natildeo conseguiu ele se
desvencilhar do horizonte do dogmatismo211 Seu exame natildeo fora tatildeo radical quanto ele o
quereria212 O ceacutetico natildeo deixa por conseguinte de ser tributaacuterio da ontologia que critica
Mas mesmo que natildeo vaacute aleacutem da contradiccedilatildeo soacute por chegar ateacute ela o ceticismo aos olhos de
Hegel honra a filosofia especulativa Natildeo eacute por outro motivo que Hegel considera o ceticismo
como parte da filosofia positiva que esta tem incorporado a ela o negativo do ceticismo como
seu momento Eacute claro deve ser ressalvado que o negativo devidamente tingido pela filosofia
especulativa ldquoA filosofia positiva [] ela tem o negativo do ceticismo nela mesma ele natildeo eacute
contraposto a ela natildeo eacute fora dela mas antes eacute um momento da mesma poreacutem o negativo em
sua verdade tal como o ceticismo natildeo o temrdquo213
Fica bastante expliacutecito por meio dessas Liccedilotildees de Hegel eacute o que natildeo podemos deixar
de notar a enorme influecircncia exercida pela filosofia ceacutetica na especulaccedilatildeo hegeliana
Na filosofia isto eacute na filosofia especulativa que por sua vez estaacute para aleacutem da
alternativa ou dogmatismo ou ceticismo ndash afinal a especulaccedilatildeo para Hegel conteacutem em si
210 Cf E sect86 e ss
211 Uma espeacutecie de criacutetica que diga-se de passagem mesmo que recebesse aceitaccedilatildeo unacircnime ainda assim natildeo faria com que ele se desse por vencido Provavelmente seria a seguinte sua resposta ldquo[] quando algueacutem nos propotildee um argumento que natildeo podemos refutar dizemos-lhe que assim como antes de surgir o introdutor da doutrina de que ele participa o argumento dela natildeo aparecia ainda como vaacutelido embora jaacute existisse por natureza assim tambeacutem eacute possiacutevel que o argumento oposto agravequele agora proposto exista por natureza mas ainda natildeo nos apareccedila de modo que natildeo devemos ainda dar assentimento ao argumento que agora parece ser mais forterdquo In HP I 33-34
212 Nesse sentido diz Geacuterard Lebrun ldquoBasta mostrar que seu uacutenico erro foi natildeo o de ir tatildeo longe que fosse impossiacutevel acreditar em sua sinceridade mas de natildeo ter ido longe o bastanterdquo In A paciecircncia do conceito Satildeo Paulo Unesp 2000 p 243
213 (ldquoDie positive Philosophie [] sie hat das Negative des Skeptizismus in ihr selbst er ist nicht ihr entgegengesetzt nicht auszliger ihr sondern ein Moment derselben aber das Negative in seiner Wahrheit wie es der Skeptizismus nicht hatrdquo) Werke 19 p 359 trad cit p 760 Tambeacutem a esse respeito ldquoContudo essa (a ideacuteia especulativa) tem o ceticismo nela como seu momento e vai ainda para aleacutem delerdquo No original ldquoAllein diese hat den Skeptizismus selbst als Moment in ihr und ist wieder uumlber ihn hinausrdquo Ibidem p 372 trad cit p 776
97
mesma a oposiccedilatildeo do determinado e de seu contraposto214 ndash encontra-se poderiacuteamos dizer
um lado ceacutetico presente Esse ceticismo presente na filosofia especulativa Hegel o chama de
dialeacutetica de todo determinado215 Por meio dessa dialeacutetica podemos indicar que o finito dada
sua limitaccedilatildeo comporta uma negaccedilatildeo ou seja eacute determinado por um outro que o nega o que
por consequumlecircncia envolve uma contradiccedilatildeo Quando Hegel declara ldquoO conceito loacutegico eacute
igualmente essa dialeacutetica pois o conhecimento verdadeiro da ideacuteia eacute essa negatividade que
no ceticismo do mesmo modo estaacute na sua terra natalrdquo 216 torna-se patente a importacircncia
dessa incorporaccedilatildeo de um procedimento ceacutetico agrave filosofia especulativa Mesmo que seja
necessaacuterio obviamente natildeo deixar de lado o que haacute de especiacutefico nessa incorporaccedilatildeo do
ceticismo agrave filosofia especulativa se faz necessaacuterio sublinhar que eacute ele o ceticismo que
transfigurado constitui esse lado negativo da especulaccedilatildeo hegeliana217 Natildeo haveria portanto
diferenccedila de intenccedilatildeo entre o ceticismo pensante e o ceticismo antigo na medida em que
ambos se empenham como quer Hegel no combate ao pensamento finito do entendimento
Todavia o ceticismo puro218 natildeo distingue entre um domiacutenio no qual se daria a finitude e um
outro que estivesse para aleacutem dela Para esse ceticismo fazer uma tal espeacutecie de demarcaccedilatildeo
jaacute pressuporia algum criteacuterio Em outras palavras estariacuteamos partindo de alguma verdade que
nos permitisse investigar dentro de certos paracircmetros Estariacuteamos portanto em territoacuterio
dogmaacutetico O ceacutetico ao natildeo demarcar o terreno da finitude estaacute apenas sendo coerente com
as coordenadas que balizam sua proacutepria postura E Hegel sabe disso Mas em virtude dessa
sua natildeo-distinccedilatildeo entre o domiacutenio do entendimento e o domiacutenio do racional o ceticismo
214 Cf Werke 19 p 397 trad pp 802-803
215 Cf Ibidem p 359 trad cit p 760
216 (ldquoDer logische Begriff ist ebenso selbst diese Dialektik denn die wahrhafte Kenntnis der Idee ist diese Negativitaumlt die im Skeptizismus ebenso einheimisch istrdquo) Ibidem p 360 trad cit pp 760-761
217 No iniacutecio de suas Liccedilotildees sobre o ceticismo Hegel se refere ao ceticismo que faz parte da filosofia especulativa como ceticismo pensante (denkende Skeptizismus) Um ceticismo que natildeo terminaraacute numa negaccedilatildeo unilateral isto eacute um negativo que natildeo desaacutegua nos termos da Fenomenologia do Espiacuterito num puro nada Na Fenomenologia Hegel se refere a esse ceticismo que impulsiona o percurso fenomenoloacutegico como ceticismo que se consuma (sich vollbringenden Skeptizismus) Com efeito dentro do contexto das anaacutelises precedentes tambeacutem poderiacuteamos considerar esse ceticismo pensante agrave luz dessa denominaccedilatildeo feita na Fenomenologia do Espiacuterito O ceticismo que faz parte da filosofia especulativa natildeo peca por insuficiecircncia pois seu exame traz um resultado que a partir do mesmo a investigaccedilatildeo continua Seu caraacuteter consumado eacute o que permite dar impulso ao processo
218 Denominaccedilatildeo que Hegel fornece na Fenomenologia ao ceticismo natildeo incorporado ao pensamento especulativo E cremos certamente que ele esteja aiacute se referindo ao ceticismo antigo
98
como jaacute observamos anteriormente tambeacutem critica a especulaccedilatildeo filosoacutefica todavia nessa
sua criacutetica contra o especulativo ele eacute impotente (unkraumlftig)219
Segundo Hegel os ataques do ceacutetico ao especulativo satildeo ineficazes porque neste
domiacutenio natildeo lidamos com determinaccedilotildees finitas como ocorre no caso do entendimento O
que isso significa Significa que o ceacutetico natildeo poderaacute mostrar que a um posto um outro se
contrapotildee ldquono que concerne agrave ideacuteia especulativa natildeo eacute esta precisamente um determinado
natildeo tem a unilateralidade que existe na proposiccedilatildeo natildeo eacute finita ela tem antes o absolutamente
negativo (das absolut Negativ) nela mesma tem a oposiccedilatildeo dentro dela mesma ela eacute em si
mesma circular conteacutem nela esse determinado e seu contraposto essa idealidade dentro dela
mesmardquo220
Como acabamos de ver a proacutepria ideacuteia especulativa daacute conta daquilo que seria tarefa
do ceacutetico mostrar o argumento contraposto agravequele que se punha isoladamente na sua
unilateralidade Ela abarca nela mesma o determinado e aquele outro determinado que o nega
Eacute por esse motivo que a ideacuteia especulativa natildeo pode ser atacada pelo ceticismo Aquilo que
por ela eacute afirmado natildeo se faz do mesmo modo que numa proposiccedilatildeo221 Jaacute foi notado neste
estudo222 que a proposiccedilatildeo por sua proacutepria estrutura natildeo admite a contradiccedilatildeo ou se diz que
algo eacute ou que ele natildeo eacute nunca as duas coisas A ideacuteia especulativa natildeo tem a unilateralidade
que existe na proposiccedilatildeo porque nela satildeo admitidas ambas as determinaccedilotildees que se
contradizem O princiacutepio de contradiccedilatildeo natildeo possui aqui validade
A contradiccedilatildeo existente na ideacuteia especulativa resolve-se numa nova unidade que da
mesma maneira ldquoestaacute aberta agrave potecircncia do negativordquo223 Isto quer dizer que estaacute sujeita a ser
219 Cf Werke 19 p 397 trad cit p 802
220 Cf Ibidem p 397 trad cit pp 802-803 (ldquoDenn was die spekulative Idee selbst anbetrifft so ist diese eben nicht ein Bestimmtes hat nicht die Einseitigkeit welche im Satze liegt ist nicht endlich sondern sie hat das absolut Negative an ihr selbst den Gegensatz in ihr selbst sie ist in sich rund enthaumllt dies Bestimmte und sein Entgegengesetztes an ihr diese Idealitaumlt in ihr selbst rdquo
221 ldquoMas a filosofia a filosofia especulativa afirma sem duacutevida mas natildeo um determinado ela natildeo expressa sua verdade na forma de uma proposiccedilatildeo ela natildeo tem proposiccedilatildeo fundamentalrdquo (ldquoAber die Philosophie spekulative Philosophie behauptet wohl aber nicht so ein Bestimmtes oder sie spricht ihr Wahres nicht in der Form eines Satzes aus sie hat keinen Grundsatzrdquo) Cf Ibidem p 393 trad cit p 798
222 Veja-se o cap 2 e tambeacutem o que se diraacute no cap 4
223 Werke 19 p 397 trad cit p 803 (ldquo [hellip] steht sie der Macht des Negativen offenrdquo)
99
contraposta por uma nova determinaccedilatildeo agrave qual se uniraacute e assim indefinidamente224 A
natureza dialeacutetica da ideacuteia implica essa continuaccedilatildeo do movimento225
A partir do que foi exposto vemos por que Hegel julga que o ceticismo seja impotente
(unkraumlftig) quando pretende atacar a filosofia especulativa Esta procura se defender do
ceticismo adotando seu modo de proceder Aleacutem disso mesmo que considere correta a atitude
filosoacutefica ceacutetica natildeo deixa entretanto de assinalar a limitaccedilatildeo de seu alcance o que faz
assim que o ceticismo stricto sensu fique restrito a atuar apenas no acircmbito do entendimento
224 ldquoNo especulativo o outro jaacute estaacute contido Eacute uma outra identidade que aquela do entendimento O objeto eacute em si concreto contraposto a si mesmo Estaacute poreacutem do mesmo modo aiacute-presente a resoluccedilatildeo dessa oposiccedilatildeo O especulativo natildeo pode ser expresso como proposiccedilatildeordquo No original ldquoIm Spekulativen ist das Andere schon selbst enthalten Das ist andere Identitaumlt als die des Verstandes Der Gegenstand ist konkret in sich sich selbst entgegengestzt Ebenso ist aber Aufloumlsung dieses Gegensatzes selbst vorhanden Das Spekulative kann so nicht als Satz ausgedruumlckt werdenrdquo Ibidem p 397 trad cit p 803 Ver ainda a propoacutesito o capiacutetulo 5
225 Cf Ibidem p 397 trad cit p 803 Ver tambeacutem Ibidem p 360 trad cit p 761
101
II ndash A dialeacutetica especulativa de Hegel
Capiacutetulo 1 ndash As determinaccedilotildees de reflexatildeo da identidade agrave contradiccedilatildeo especulativa
Natildeo eacute muito bom para a filosofia
ter uma proposiccedilatildeo e entatildeo
apenas poder dizer isto eacute ou isto
natildeo eacute
Hegel226
Eacute na Loacutegica da Essecircncia227 especificamente no capiacutetulo que trata das determinaccedilotildees
de reflexatildeo que podemos comeccedilar a compreender como a criacutetica hegeliana ao aspecto
limitado do ceticismo pode ser efetuada a partir da Loacutegica o motivo da suposta falta de
eficaacutecia do ceticismo quando pretende atacar a filosofia especulativa Neste capiacutetulo que
comeccedila com a anaacutelise da determinaccedilatildeo da identidade e termina na exposiccedilatildeo da sua
concepccedilatildeo de contradiccedilatildeo que se resolve no fundamento nos satildeo fornecidos elementos
importantes e necessaacuterios tanto para a jaacute mencionada criacutetica do ceticismo quanto para o
entendimento de seu meacutetodo dialeacutetico-especulativo228 que permite segundo ele agrave filosofia
natildeo ficar refeacutem da criacutetica ceacutetica229
226
Aforisma no 68 da eacutepoca de docecircncia em Iena In Hoffmeister J Dokumente zu Hegels Entwicklung Stuttgart Frommann-Holzboog 1974
227 GW 11 pp258-290
228 A ser tratado no capiacutetulo 5
229 Para uma anaacutelise precisa das determinaccedilotildees de reflexatildeo veja-se tambeacutem o estudo de Andreas Arndt Dialektik und Reflexion zur Rekonstruktion des Vernunftbegriffs Hamburg Meiner 1994 pp 203-216
102
A identidade
Hegel comeccedila a tratar da unilateralidade da identidade que eacute caracteriacutestica do
entendimento ao considerar as determinaccedilotildees reflexivas num percurso que teraacute o seu teacutermino
quando expotildee o significado da contradiccedilatildeo especulativa
Segundo Hegel as determinaccedilotildees de reflexatildeo eram antigamente acolhidas na forma de
proposiccedilotildees (Saumltzen) e declarava-se que as mesmas valiam como leis universais do
pensamento isto eacute leis que estariam na base de todo pensamento nelas mesmas absolutas e
indemonstraacuteveis aceitas por todo pensamento como imediatas e natildeo-contraditoacuterias (GW 11
p 258 trad pp 33-34) O princiacutepio de identidade eacute uma das dessas proposiccedilotildees que valem
como leis universais do pensamento Tudo eacute igual a si mesmo A=A E dito de forma
negativa A natildeo pode ao mesmo tempo ser A e natildeo-A230
Com efeito natildeo se deve desconsiderar prossegue Hegel qual seria o motivo pelo qual
apenas tais simples determinaccedilotildees de reflexatildeo sejam apreendidas nessa forma particular isto
eacute como proposiccedilotildees imediatas indemonstraacuteveis e natildeo-contraditoacuterias e natildeo tambeacutem outras
categorias e todas as determinidades da esfera do ser231 Uma proposiccedilatildeo eacute o meio pelo qual
se pode dizer por exemplo que tudo eacute ou tudo tem um ser-aiacute tem uma qualidade tem uma
quantidade etc232 Ocorre que eacute disso que Hegel parece querer nos advertir categorias e
determinidades satildeo componentes de proposiccedilotildees e nas quais figuram como predicados
(Praumldicate) E para ressaltar essa vinculaccedilatildeo estreita entre proposiccedilotildees e categorias Hegel
chega inclusive a nos lembrar que ldquosegundo a etimologia e segundo Aristoacuteteles categoria eacute
aquilo que eacute dito do que eacute (von dem Seyenden)233
E agora antes de prosseguirmos cabe a pergunta As determinidades de ser que
fazem parte das proposiccedilotildees como predicados isto eacute como aquilo que eacute dito de algo seriam
tambeacutem assim como as proposiccedilotildees imediatas indemonstraacuteveis e natildeo-contraditoacuterias
230 GW 11 p 258 trad p 34
231 Cf Ibidem p 259 trad p 34
232 Cf Ibidem p 259 trad p 34
233 Ibidem p 259 trad p 34
103
A resposta de Hegel eacute a seguinte
Uma determinidade de ser eacute essencialmente um passar no seu oposto a
negativa de qualquer determinidade eacute tatildeo necessaacuteria como ela proacutepria como
determinidades imediatas frente a cada uma delas se encontra imediatamente a outra
Quando por conseguinte essas categorias satildeo formuladas em tais proposiccedilotildees entatildeo
aparecem do mesmo modo as proposiccedilotildees contrapostas ambas se apresentam com a
mesma necessidade e possuem como afirmaccedilotildees imediatas iguais direitos234
Como teremos oportunidade de mais detidamente a seguir observar mas que desde jaacute
Hegel faz questatildeo de frisar eacute que as determinidades de ser ou as categorias por sua proacutepria
estrutura interna natildeo podem ser afastadas da contradiccedilatildeo isto eacute mediante o pocircr das
determinidades a elas contrapostas Aleacutem disso na medida em que satildeo partes constituintes de
proposiccedilotildees tambeacutem estas natildeo podem escapar agrave posiccedilatildeo de proposiccedilotildees a elas contrapostas
Um pequeno parecircnteses aqui merece ser aberto para que natildeo se deixe de sublinhar a
influecircncia do ceticismo antigo nessa discussatildeo acerca da inevitabilidade235 da contradiccedilatildeo em
decorrecircncia de proposiccedilotildees estarem submetidas ao princiacutepio de identidade Assim Hegel
apenas nos faz ver que natildeo haacute como escapar da criacutetica ceacutetica quando lidamos com tais
proposiccedilotildees Dessa maneira natildeo haacute como escapar do ataque ceacutetico mediante o uso que este
pode fazer de seu ldquoprinciacutepio baacutesicordquo a saber opor a cada proposiccedilatildeo uma proposiccedilatildeo de igual
valor236 Eacute por essa limitaccedilatildeo constitutiva dessas proposiccedilotildees regidas pelo princiacutepio de
identidade que o ceacutetico conclui Hegel eacute capaz de produzir antinomias
234 Ibidem p259 trad p 34 (ldquoAllein eine Bestimmtheit des Seyns ist wesentlich ein Uebergehen ins Entgegengesetzte die negative einer jeden Bestimmtheit ist so nothwendig als sie selbst als unmittelbaren Bestimmtheiten steht jeder die andere unmittelbar gegenuumlber Wenn diese Kategorien daher in solche Saumltze gefaszligt werden so kommen eben so sehr die entgegengesetzten Saumltze zum Vorschein beyde bieten sich mit gleicher Nothwendigkeit dar und haben als unmittelbare Behauptungen wenigstens gleiches Rechtrdquo)
235 A propoacutesito o ceacutetico natildeo diria que a contradiccedilatildeo eacute inevitaacutevel Isto seria ir contra sua proacutepria postura filosoacutefica A esse respeito veja-se de modo geral o capiacutetulo 1
236 Cf HP I 12
104
Tomadas apenas como relacionadas a si as determinaccedilotildees reflexivas uma vez de
acordo com o princiacutepio de identidade natildeo tecircm postas perante as mesmas as suas contrapostas
que por direito a elas se relacionam
Se fossem consideradas em si e para si ver-se-ia entatildeo que as determinaccedilotildees
reflexivas ldquosatildeo determinadas umas contra as outras natildeo estatildeo portanto mediante sua forma de
reflexatildeo retiradas do passar e da contradiccedilatildeordquo237 Toda proposiccedilatildeo estaacute sujeita a ser
contraditada por uma outra de modo que ambas se suprimam mutuamente (heben sich
gegenseitig auf)238
Mas por que eacute possiacutevel que toda proposiccedilatildeo estabelecida de acordo com o princiacutepio de
identidade possa ser contraditada por uma outra Qual o mecanismo impliacutecito a reger tais
proposiccedilotildees e que leva as mesmas inelutavelmente agrave contradiccedilatildeo
A resposta de Hegel a essas questotildees pode comeccedilar a ser entrevista a partir de um
exame da proacutepria articulaccedilatildeo do princiacutepio de identidade isto eacute daquilo que constitui esse
princiacutepio enquanto tal
Fundamentalmente Hegel quer mostrar que a admissatildeo do princiacutepio de identidade
implica afirmar que aquilo que eacute diferente estaacute fora e ao lado da identidade (GW 11 p 261
trad p 37) Aquilo que eacute igual a si mesmo de acordo com esse princiacutepio tem necessariamente
a diferenccedila fora dele afinal A natildeo pode ser ao mesmo tempo A e natildeo-A Numa proposiccedilatildeo eacute
expressa a identidade e na outra a diferenccedila Hegel chama de negar relativo essa negaccedilatildeo que
agravequilo posto pela identidade abstrata potildee-se ao seu lado e fora dela como aquilo que ela natildeo
eacute239 De um lado temos portanto a identidade e de outro lado temos a diferenccedila Algo eacute
aquilo que eacute sem que para isso seja necessaacuterio que ele esteja em relaccedilatildeo com aquilo que ele
nega a sua diferenccedila Considerar as coisas desse modo eacute proacuteprio assinala Hegel de uma
reflexatildeo extriacutenseca A diferenccedila que aiacute existe entre algo e aquilo que natildeo eacute esse algo eacute apenas
uma diversidade indiferente (gleichguumlltige Verschiedenheit)240
237 Ibidem p260 trad p 35 (ldquosind sie bestimmt gegen einander sie sind also durch ihre Form der Reflexion dem Uebergehen und dem Widerspruche nicht entnommenrdquo)
238 Ibidem p 260 trad p 36
239 Cf Ibidem p 260 trad p 36
240 Cf Ibidem p 261 trad pp 37-38
105
Segundo Hegel aqueles que se submetem ao princiacutepio de identidade natildeo se datildeo conta
que de acordo com o mesmo a identidade e a diferenccedila satildeo diversos ldquoque a identidade eacute um
diversordquo (GW 11 p 262 trad p 39) A identidade eacute assim distinta com relaccedilatildeo ao diverso
dela mesma e que todavia natildeo eacute exterior a ela ldquoque a identidade nela mesma em sua
natureza eacute isso ser distinta e natildeo de modo exteriorrdquo241
A identidade somente vai se constituir efetivamente como identidade caso se abandone
o ponto de vista unilateral e incompleto que parte do pressuposto de que a identidade exclui
de si o natildeo-idecircntico Eacute esse o ponto de vista que uma vez aceito viabiliza a criacutetica ceacutetica
Poderiacuteamos dizer que o ceacutetico aproveitando-se dessa limitaccedilatildeo do pensar de entendimento
que aceita o princiacutepio de identidade como lei de pensamento acaba por conseguir sempre
mostrar o natildeo-idecircntico a diferenccedila que se contrapotildee ao idecircntico E dentro desse quadro vale
insistir a contradiccedilatildeo eacute sempre um mal a ser evitado Todavia a identidade que natildeo eacute abstrata
estaacute unida com a diferenccedila Ela se sustenta como identidade ao ter nela mesma aquilo que a
contradiz
Mas antes de tentar responder agraves questotildees que acima foram postas talvez seja
interessante continuar a examinar o princiacutepio de identidade e tentar compreender porque ele
natildeo passa aos olhos de Hegel de uma tautologia vazia sem conteuacutedo e que natildeo leva a lugar
nenhum (GW 11 p 262 trad p 39)
Se pensarmos242 diz Hegel na pergunta O que eacute uma planta E se responde uma
planta eacute -- uma planta todos admitem a verdade de tal proposiccedilatildeo e ao mesmo tempo de
maneira tambeacutem unacircnime eacute dito que com isso nada eacute dito A mesma situaccedilatildeo poderia ocorrer
com algueacutem que pretende declarar o que eacute Deus e apenas diz que Deus eacute ndash Deus Com essa
declaraccedilatildeo temos nossa expectativa frustrada pois esperaacutevamos uma determinaccedilatildeo diferente
ou em outras palavras uma declaraccedilatildeo que pudesse efetivamente nos informar a respeito do
que seja Deus E se essa proposiccedilatildeo eacute verdade absoluta continua Hegel eacute pouco apreciado
essa espeacutecie de palavroacuterio (Rednerei) afinal nada mais aborrecido e maccedilante do que uma
conversa que segue ruminando sempre a mesma coisa Espera-se que se diga algo a respeito
da planta e quando se tem como resposta somente a repeticcedilatildeo do mesmo tem-se o contraacuterio
do que era esperado a saber nada
241 Ibidem p 262 trad p 39 (ldquodaszlig die Identitaumlt nicht aumlusserlich sondern an ihr selbst in ihrer Natur diszlig sey verschieden zu seynrdquo)
106
Se tomarmos agora a forma da proposiccedilatildeo que expressa a identidade qual seja A eacute ndash
A ao se dizer que A eacute espera-se chegar a algo diferente mas esse outro entra em cena
apenas como um imediato desvanecer (als unmittelbares Verschwinden) A diferenccedila eacute apenas
um desvanecer De A se vai a A novamente ldquoo movimento retorna a si mesmordquo (GW 11 p
264 trad p 42) todavia mesmo que o diferente seja apenas vislumbrado para entatildeo em
seguida imediatamente desaparecer ele eacute algo ou nas palavras de Hegel o excedente daquele
movimento (das Mehr jener Bewegung) Esse excedente eacute o nada a que se chega quando se
sai de A e se chega novamente a A eacute o diferente que se apresenta quando se quer apenas
afirmar a identidade ldquoque na expressatildeo da identidade tambeacutem aparece imediatamente a
diferenccedilardquo243
Com a outra expressatildeo do princiacutepio de identidade o chamado princiacutepio de
contradiccedilatildeo a saber ldquoA natildeo pode ser ao mesmo tempo A e natildeo-A ocorre o mesmo que
havia ocorrido com a primeira isto eacute tambeacutem se apresenta uma negaccedilatildeo que imediatamente
se desvanece Mais precisamente A eacute A porque ele natildeo eacute natildeo-A Este eacute o puro outro de A que
aparece para em seguida desaparecer ldquoa identidade eacute portanto nessa proposiccedilatildeo expressa
como negaccedilatildeo da negaccedilatildeordquo244
Dessa discussatildeo em torno ao que se pode pretender afirmar por meio do princiacutepio de
identidade e do princiacutepio de contradiccedilatildeo o mais importante para Hegel eacute mostrar que tais
princiacutepios pecam por incompletude A verdade que eles pretendem exprimir eacute abstrata e
como jaacute foi dito incompleta Como bem adverte Hegel ldquoo que resulta dessa consideraccedilatildeo eacute
que em primeiro lugar o princiacutepio de identidade ou de contradiccedilatildeo como ele apenas deve
expressar como o verdadeiro a identidade abstrata em oposiccedilatildeo agrave diferenccedila natildeo eacute nenhuma lei
do pensamento mas antes o contraacuterio disso em segundo lugar que esses princiacutepios contecircm
242 Do que seraacute dito a seguir veja-se Ibidem pp 264-265 trad pp 41-43
243 Ibidem p 264-5 trad p 42 (ldquo[] daszlig in dem Ausdrucke der Identitaumlt auch unmittelbar die Verschiedenheit vorkommtrdquo) Ou ainda ldquoEssa proposiccedilatildeo em lugar de ser uma verdadeira lei-do-pensamento natildeo eacute outra coisa que a lei do entendimento abstrato A forma da proposiccedilatildeo jaacute a contradiz ela mesma porque uma proposiccedilatildeo tambeacutem promete uma diferenccedila entre sujeito e predicado enquanto esta natildeo fornece o que sua forma exigerdquo (ldquoDieser Satz statt ein wahres Denkgesetz zu seyn ist nichts als das Gesetz des abstracten Verstandes Die Form des Satzes widerspricht ihm schon selbst da ein Satz auch einen Unterschied zwischen Subject und Praumldicat verspricht dieser aber das nicht leistet was seine Form fodert rdquo) In GW 20 E sect115 p 147 trad p 228
244 GW 11 p 265 trad p 43 (ldquoDie Identitaumlt ist also in diesem Satze ausgedruumlckt ndash als Negation der Negationrdquo)
107
mais do que se visa com eles precisamente esse contraacuterio a proacutepria diferenccedila absolutardquo245
Esses princiacutepios por apresentarem mais do que efetivamente pretendem apresentar natildeo satildeo de
natureza meramente analiacutetica mas sim tambeacutem de natureza sinteacutetica Ao se pretender
apresentar a identidade apenas abstrata aponta-se para algo que contradiz essa suposta
identidade afastada de seu negativo e mesmo que o diferente surja como um imediato
desvanecer esse diferente natildeo pode ser afastado Como veremos a seguir a diferenccedila eacute
ldquomomento essencial da identidade mesmardquo246
A diferenccedila
Quando Hegel expotildee o que eacute a diferenccedila eacute preciso que esta seja considerada sob um
duplo ponto-de-vista como diferenccedila em si e por si e como diferenccedila em si
Hegel chama tambeacutem essa diferenccedila que eacute em si e por si de diferenccedila absoluta ou de
diferenccedila simples247 Mas o que entatildeo pretende ele quando considera a diferenccedila em si e por
si Basicamente a diferenccedila em si e por si eacute aquela que natildeo eacute por meio de algo exterior248
Esta diferenccedila natildeo se constitui como antes se fazia na esfera do ser Laacute um ser-aiacute e um outro
ser-aiacute eram postos separados um do outro Um ser-aiacute se encontrava perante o outro ser-aiacute mas
apenas exteriormente O que Hegel pretende frisar eacute que na diferenccedila em si e por si uma
diferenccedila que se daacute no acircmbito loacutegico da essecircncia portanto uma diferenccedila reflexiva os
diferentes satildeo diferentes sob um uacutenico e mesmo aspecto uma diferenccedila numa uacutenica relaccedilatildeo
O caraacuteter simples dessa diferenccedila adveacutem dessa relaccedilatildeo (Beziehung) dos diferentes ocorrer no
acircmbito de um movimento uacutenico ldquona diferenccedila absoluta de A e natildeo-A de um a outro eacute o
245 Ibidem p 265 trad p 43 (ldquoWas sich also aus dieser Betrachtung ergibt ist daszlig erstens der Satz der Identitaumlt oder des Widerspruchs wie er nur die abstracte Identitaumlt im Gegensatz gegen den Unterschied als Wahres ausdruumlcken soll kein Denkgesetz sondern vielmehr das Gegentheil davon ist zweytens daszlig diese Saumltze mehr als mit ihnen gemeynt wird nemlich dieses Gegentheil den absoluten Unterschied selbst enthaltenrdquo)
246 Ibidem p 265 trad p 43 (ldquowesentlich Moment der Identitaumlt selbstrdquo)
247 Cf GW 11 p 266-267 trad p 44-45
248 Ibidem p 266 trad p 44
108
simples natildeo que constitui a mesmardquo249 Se a diferenccedila se desse entre diferentes exteriores um
ao outro natildeo seria possiacutevel que ela fosse completa em si mesma em outras palavras absoluta
Considerar a diferenccedila apenas como em si significa tomaacute-la no seu relacionamento a
si uma diferenccedila de si por si mesma (seiner von sich selbst)250 Perante a mesma temos a
identidade Somente com a consideraccedilatildeo de ambos isto eacute na relaccedilatildeo que natildeo eacute exterior da
diferenccedila com a identidade que se constitui a diferenccedila (natildeo-unilateral) A diferenccedila apenas
relacionada a si mesma eacute um momento que exige o outro a saber a identidade para que se
possa ter o todo da diferenccedila
Nessa relaccedilatildeo da diferenccedila com a identidade tem-se portanto uma unidade de dois
momentos que natildeo obstante o fato mesmo da relaccedilatildeo de ambos cada um natildeo deixa de ser
uma relaccedilatildeo (Beziehung) a si proacuteprio ou seja continuam a ser refletidos em si mesmos Hegel
chama cada um desses momentos que constituem a diferenccedila de ser-posto (Gesetzsein) Cada
um deles em virtude do seu caraacuteter auto-reflexivo que faz com que se coloquem
distintamente como diferenccedila e identidade seraacute poder-se-ia dizer impermeaacutevel um ao outro
A diversidade
Quais as consequumlecircncias que advecircm para a constituiccedilatildeo da diferenccedila terem os dois
momentos constituintes da diferenccedila precisamente identidade e diferenccedila a caracteriacutestica de
serem refletidos em si mesmos Por que ao inveacutes de uma diferenccedila temos apenas uma
diversidade (Verschiedenheit)
Em primeiro lugar identidade e diferenccedila natildeo satildeo tatildeo distintas assim Tanto uma
quanta a outra por meio da auto-reflexatildeo de cada uma satildeo idecircnticas a si mesmas A
identidade se afirma como identidade ao suprimir imediatamente o seu negar Como jaacute foi
dito a identidade somente se manteacutem como identidade porque eacute uma tautologia A confirma
sua identidade ao se refletir em si mesmo Esse refletir-se em si mesmo e que fornece a A a
249 Ibidem p 266 trad p 44 (ldquoIm absoluten Unterschiede des A und Nicht-A von einander ist es das einfache
Nicht was als solches denselben ausmachtrdquo)
250 Ibidem p 266 trad p 44
109
identidade eacute o que Hegel chama de a sua determinaccedilatildeo (Bestimmung)251 Tambeacutem no caso do
diferente ele eacute o que eacute na identidade que estabelece consigo mesmo Eacute como se um e outro o
idecircntico e o diferente natildeo fossem nada de diferentes afinal ambos satildeo o que satildeo por meio da
identidade que cada um tem consigo mesmo e que lhes daacute independecircncia reciacuteproca
Eles satildeo diversos como refletidos em si mesmos como relacionando-se a si eles satildeo
assim na determinaccedilatildeo da identidade apenas relacionamentos a si a identidade natildeo estaacute
relacionada com a diferenccedila nem a diferenccedila estaacute relacionada com a identidade posto entatildeo
que cada um desses momentos estaacute relacionado somente a si natildeo satildeo eles determinados um
em face do outro252
Nesses termos como se pode estabelecer a diferenccedila entre eles De acordo com Hegel
apenas uma diversidade indiferente (gleichguumlltig verschiedenes) reciacuteproca Natildeo haacute ponto
algum de contato que permita-nos entrever aquilo que torna um diferente do outro ldquoa
diferenccedila lhes eacute exteriorrdquo253
Para que surja essa indiferenccedila dos diferentes o que Hegel chama de diversidade
(Verschiedenheit) a diferenccedila que de fato somente se constitui com a unidade de identidade e
diferenccedila precisa ser enxergada como apenas um dos lados da ldquooposiccedilatildeordquo A diferenccedila seraacute
apenas uma determinaccedilatildeo que teraacute perante si uma outra determinaccedilatildeo a saber a identidade
Essa determinaccedilatildeo ou ser-posto que eacute a diferenccedila constitui o lado negativo da relaccedilatildeo o que
Hegel chama de negaccedilatildeo como negaccedilatildeo254 A diferenccedila seraacute portanto exterior agrave identidade
oposta de modo indiferente a ela Da mesma maneira teremos a identidade tambeacutem oposta
de modo indiferente agrave negaccedilatildeo Se a diferenccedila eacute o ser-posto como negaccedilatildeo a identidade seraacute o
251 Ibidem p 267 trad p 45
252 Ibidem p 267 trad p 46 (ldquoVerschiedene sind sie als in sich selbst reflectirte sich auf sich beziehende so sind sie in der Bestimmung der Identitaumlt Beziehungen nur auf sich die Identitaumlt ist nicht bezogen auf den Unterschied noch ist der Unterschied bezogen auf die Identitaumlt indem so jedes dieser Momente nur auf sich bezogen ist sind sie nicht bestimmt gegen einanderrdquo)
253 Ibidem p 267 trad p 46(ldquo ist der Unterschied ihnen aumlusserlicherdquo)
254 Ibidem p 268 trad p46 Eacute uacutetil aqui alertar para que natildeo se confunda negaccedilatildeo como negaccedilatildeo com negaccedilatildeo da negaccedilatildeo A primeira se refere apenas a essa negaccedilatildeo somente relacionada a si e assim diversa da identidade Jaacute a segunda a negaccedilatildeo da negaccedilatildeo constitui-se como adiante veremos na negaccedilatildeo especulativa negaccedilatildeo que envolve em si a identidade e a diferenccedila
110
ser-posto como reflexatildeo em si isto eacute como reflexatildeo que se relaciona a si e forma a
identidade
De fato identidade e diferenccedila natildeo poderiam ser consideradas como completamente
exteriores uma agrave outra pois justamente ldquocada uma eacute unidade de si mesma e de seu outro cada
uma eacute o todordquo255 Ambas se refletem internamente uma na outra Se elas se tornam exteriores
isso se daacute devido a uma reflexatildeo que se tornou exterior a si mesma Identidade e diferenccedila natildeo
satildeo qualidades Qualidade aqui deve ser entendida conforme o que diz Hegel na Doutrina do
Ser na Enciclopeacutedia a saber que a qualidade eacute o ser com uma determinidade que como tal
constitui a categoria do ser-aiacute A qualidade eacute o ser-aiacute unido imediatamente a essa
determinidade O ser-aiacute refletido sobre si nessa sua determinidade eacute algo256 A qualidade
assim constituiacuteda faz com que o ser-aiacute seja um algo que tenha afastado de si a negaccedilatildeo Esse
ser-aiacute poderiacuteamos dizer eacute uma pura identidade Vale seguir um pouco mais com a descriccedilatildeo
da qualidade na Doutrina do Ser257 e observar que a qualidade tem a negaccedilatildeo contida nela
mesmo que essa seja diferente dela e enquanto um ser-outro Aleacutem disso esse ser-outro eacute sua
determinaccedilatildeo proacutepria todavia neste momento diferente dela (a qualidade) Quando Hegel
afirma que a identidade e diferenccedila natildeo satildeo qualidades podemos agora avanccedilar a hipoacutetese de
que se elas fossem qualidades identidade e diferenccedila seriam apenas cada uma a determinaccedilatildeo
unilateral refletida sobre si e afastada do negativo O que de fato natildeo se verifica pois a
determinidade tanto da identidade quanto da diferenccedila por meio da reflexatildeo em si eacute ao
mesmo tempo somente como negaccedilatildeo258 Em outras palavras elas satildeo o que satildeo porque
negam a sua oposta e natildeo de modo exterior
Na diversidade poreacutem eacute como se diferenccedila e identidade fossem efetivamente duas
qualidades O que resultaria em considerar a ambas como duas determinaccedilotildees inteiramente
positivas Pelo contraacuterio uma determinaccedilatildeo aos olhos de Hegel natildeo pode ser somente
positiva Nesse sentido o filoacutesofo retoma Espinosa quando este diz que toda determinaccedilatildeo eacute
uma negaccedilatildeo (omnis determinatio est negatio) Para Hegel a base de toda determinaccedilatildeo eacute a
negaccedilatildeo ldquoO opinar carente-de-pensamento considera as coisas determinadas como somente
positivas e as sustenta sob a forma do ser Com o simples ser contudo o opinar natildeo eacute
255 Ibidem p 267 trad p 46 (ldquojedes Einheit seiner selbst und seines Andern jedes ist das Ganzerdquo)
256 Cf GW 20 E sect 90 pp 129-130 trad p 186
257 Ibidem sect 91 p 130 trad p 187
258 GW 11 p 268 trad p 46
111
abolido pois esse como vimos antes eacute o absolutamente vazio e ao mesmo tempo o carente-
de-consistecircnciardquo259
Esses dois positivos ndash a identidade e a diferenccedila ndash que se colocam um frente ao outro
de modo indiferente mediante uma reflexatildeo que se tornou exterior a si mesma seratildeo
denominados por Hegel de reflexatildeo em si e de reflexatildeo exterior respectivamente Reflexatildeo em
si porque nessa determinaccedilatildeo temos o momento da identidade que por sua vez eacute
ldquodeterminada para ser indiferente (gleichguumlltig) com respeito agrave diferenccedilardquo260 Reflexatildeo
exterior porque nessa determinaccedilatildeo temos o momento da diferenccedila ldquoperante agrave qual a reflexatildeo
sendo em si (die an sich seiend Reflexion) eacute indiferenterdquo261
E uma vez entatildeo visto que identidade e diferenccedila natildeo se datildeo numa mesma reflexatildeo
como se produziraacute essa diferenccedila de duas determinaccedilotildees exteriores uma agrave outra O
estabelecimento da diferenccedila segundo Hegel dependeraacute da consideraccedilatildeo de um terceiro que
se coloca fora de ambos identidade e diferenccedila Seraacute esse terceiro que declararaacute o que eacute a
identidade e a diferenccedila e que agora seratildeo denominadas por Hegel respectivamente como
igualdade (a identidade exterior) e desigualdade (a diferenccedila exterior)
Nem a igualdade e nem a desigualdade seratildeo em si e por si E o que isso significa
Significa que se algo eacute igual a um outro algo isso natildeo depende nem de um e nem de outro262
Depende antes da referecircncia a esse terceiro Da comparaccedilatildeo que ele estabelece Essa reflexatildeo
que tornou-se estranha a si mesma ora declara que temos uma igualdade e ora declara que
temos uma desigualdade A igualdade e a desigualdade nunca segundo o ponto-de-vista da
diversidade dependem uma da outra para se efetivarem Natildeo haveria diferenccedila intriacutenseca
entre uma e outra Para Hegel esse natildeo relacionar-se entre o igual e o desigual longe de
afastar delas a contradiccedilatildeo (Widerspruch) e a dissoluccedilatildeo (Aufloumlsung) eacute o que de fato leva agrave
destruiccedilatildeo (Zerstoumlrung) das mesmas Se o igual eacute colocado junto do desigual mas sem que
259 Werke 8 E sect 91 Adendo p 195 trad p 187 (ldquoDas gedankenlose Meinen betrachtet die bestimmten Dinge als nur positiv und haumllt dieselben unter der Form des Seins fest Mit dem bloszligen Sein ist es indes nicht abgetan
denn dieses ist wie wir fruumlher gesehen haben das schlechthin Leere und zugleich Haltloserdquo)
260 GW 11 p 268 trad p 47
261 Ibidem p 268 trad p 47
262 Ibidem p 268 trad p 47
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haja entre eles o menor contato entatildeo eles se contradizem263 Do ponto-de-vista da loacutegica que
rege o entendimento eacute isto o que ocorre264
Admitir que natildeo haja uma diferenccedila que vincule o igual ao desigual que essa
diferenccedila seja exterior e indiferente eacute proacuteprio segundo Hegel de uma consideraccedilatildeo que natildeo
consegue se dar conta de que ldquoo que compara (das Vergleichende) vai da igualdade agrave
desigualdade e desta para aquela novamente faz portanto uma desvanecer na outra e de fato
eacute a unidade negativa de ambas Ela estaacute em primeiro lugar para aleacutem do comparado assim
como aleacutem dos momentos da comparaccedilatildeo como um subjetivo um operar exterior que incide
fora deles Mas essa unidade negativa em verdade eacute a natureza da igualdade e da
desigualdade mesma tal como resultourdquo265
263 ldquoPara Hegel isso significa que tem de se destruir a si mesma a reflexatildeo que se perdeu na exterioridade As determinaccedilotildees da igualdade e da desigualdade se excluem reciprocamente elas satildeo nas palavras de Hegel lsquodeterminaccedilotildees da diferenccedilarsquo lsquorelaccedilatildeo de uma a outra que uma para ser eacute aquilo que a outra natildeo eacutersquo (GW 11 p 269)rdquo Ou ainda ldquoA reflexatildeo exterior na medida em que poe as determinaccedilotildees da igualdade e da desigualdade relaciona ambas uma a outra Hegel assim expressa isso que a contradiccedilatildeo mantida afastada dos objetos se reitera nessa reflexatildeordquo In Arndt A Dialektik und p 206 e 207 respectivamente
264 Eacute essa contradiccedilatildeo que o ceacutetico natildeo se cansa de apontar segundo Hegel no acircmbito do entendimento
265 Ibidem p 269 trad pp 48-49 (ldquoDas Vergleichende geht von der Gleichheit zur Ungleichheit und von dieser zu jener zuruumlck laumlszligt also das eine im andern verschwinden und ist in der That die negative Einheit beyder Sie ist zunaumlchst jenseits des Verglichenen so wie jenseits der Momente der Vergleichung als ein subjectives ausserhalb ihnen fallendes Thun Aber diese negative Einheit ist in der That die Natur der Gleichheit und Ungleichheit selbst wie sich ergeben hatrdquo) Ou ainda ldquoEnquanto os [termos] simplesmente diversos se mostram como indiferentes entre si ao contraacuterio a igualdade e a desigualdade satildeo um par de determinaccedilotildees que se referem pura e simplesmente uma agrave outra e natildeo se pode pensar uma delas sem a outra Essa progressatildeo da mera diversidade agrave oposiccedilatildeo se encontra jaacute tambeacutem na consciecircncia ordinaacuteria na medida em que admitimos que a comparaccedilatildeo soacute tem um sentido na pressuposiccedilatildeo de uma diferenccedila dada e inversamente tambeacutem a diferenciaccedilatildeo soacute [tem sentido] na pressuposiccedilatildeo de uma igualdade dada Por conseguinte quando se potildee como tarefa indicar uma diferenccedila natildeo se atribui grande perspicaacutecia a quem soacute diferencia um do outro objetos cuja diferenccedila eacute imediatamente visiacutevel (como por exemplo uma caneta e um camelo) De outro lado dir-se-aacute igualmente que natildeo foi longe na comparaccedilatildeo quem soacute sabe comparar coisas que estatildeo proacuteximas umas das outras uma faia com um carvalho um templo com uma igreja Exigimos portanto na diferenccedila a identidade e na identidade a diferenccedilardquo (ldquoWaumlhrend die bloszlig Verschiedenen sich als gleichguumlltig gegeneinander erweisen so sind dagegen die Gleichheit und die Ungleichheit ein Paar Bestimmungen die sich schlechthin aufeinander beziehen und von denen die eine nicht ohne die andere gedacht werden kann Dieser Fortgang von der bloszligen Verschiedenheit zur Entgegensetzung findet sich dann auch insofern schon im gewoumlhnlichen Bewuszligtsein als wir einraumlumen daszlig das Vergleichen nur einen Sinn hat unter der Voraussetzung eines vorhandenen Unterschiedes und ebenso umgekehrt das Unterscheiden nur unter der Voraussetzung vorhandener Gleichheit Man schreibt demgemaumlszlig auch wenn die Aufgabe gestellt wird einen Unterschied anzugeben demjenigen keinen groszligen Scharfsinn zu der nur solche Gegenstaumlnde voneinander unterscheidet deren Unterschied unmittelbar zutage liegt (wie z B eine Schreibfeder und ein Kamel) wie man andererseits sagen wird daszlig es derjenige nicht weit im Vergleichen gebracht hat welcher nur einander Naheliegendes - eine Buche mit einer Eiche einen Tempel mit einer Kirche - zu vergleichen weiszlig Wir verlangen somit beim Unterschied die Identitaumlt und bei der Identitaumlt
den Unterschiedrdquo) In Werke 8 E sect 118 Adendo p 241 trad pp 232-233]
113
Tanto o igual quanto o desigual por terem o caraacuteter de ser-posto natildeo satildeo apenas essa
identidade abstrata consigo mesmos essa relaccedilatildeo a si sem negaccedilatildeo Cada um como um
diverso passa por meio do ser-posto agrave reflexatildeo negativa O que Hegel pretende nos apontar
refere-se ao caraacuteter determinado de cada um dos diversos isto eacute que cada um somente se
determina como o que eacute por meio da relaccedilatildeo com o outro ldquoO igual natildeo eacute portanto o igual de
si mesmo e o desigual como o desigual natildeo de si mesmo mas sim de um desigual a ele eacute ele
mesmo o igualrdquo266
Identidade e diferenccedila natildeo satildeo por meio dessa unidade negativa momentos separados
mas antes uma uacutenica unidade e esta eacute a oposiccedilatildeo267
A oposiccedilatildeo
Hegel inicia sua anaacutelise do que estaacute em jogo na oposiccedilatildeo da seguinte maneira ldquoNa
oposiccedilatildeo a reflexatildeo determinada a diferenccedila estaacute acabada (Im Gegensatze ist die bestimmte
Reflexion der Unterschied vollendet)rdquo268
Como jaacute observamos anteriormente269 a diferenccedila se constitui de dois momentos
precisamente a identidade e a diferenccedila Ela eacute o todo que abrange esses dois momentos no
relacionamento que haacute entre eles Tambeacutem na diversidade havia um relacionamento entre
identidade e diferenccedila ou entre igualdade e desigualdade todavia do ponto-de-vista da
diversidade a diferenccedila que havia entre eles era indiferente (gleichguumlltig) Quer dizer era
como se cada um dos momentos natildeo tivesse a sua determinaccedilatildeo a igualdade e a desigualdade
em virtude de um relacionamento negativo entre ambos Em suma a diferenccedila natildeo estava
acabada (vollendet) A igualdade e a desigualdade eram declaradas a partir de uma reflexatildeo
exterior a si na qual os termos da relaccedilatildeo natildeo se vinculavam internamente um ao outro O
266 GW 11 p 269 trad p 49 (ldquoSo ist das Gleiche nicht das Gleiche seiner selbst und das Ungleiche als das Ungleiche nicht seiner selbst sondern eines ihm ungleichen ist selbst das Gleicherdquo)
267 Ibidem p 270 trad p 50
268 Ibidem p 272 trad p 53
269 Ver a esse respeito as paacuteginas 107 e 108
114
tertius comparationis postulava a igualdade ou a desigualdade dos termos diferentes ou
poderiacuteamos tambeacutem dizer efetuava a ldquomediaccedilatildeordquo entre ambos
Posto tudo isso podemos agora comeccedilar a entrever porque a diferenccedila na oposiccedilatildeo
estaacute acabada Mas do que realmente se trata nesse passo aleacutem
A tiacutetulo meramente introdutoacuterio podemos assinalar que a diferenccedila na oposiccedilatildeo teraacute
seus momentos unidos numa uacutenica identidade E seraacute essa unidade interior que permitiraacute a
Hegel afirmar que na oposiccedilatildeo a diferenccedila estaacute acabada no sentido de que aqui ela teraacute sua
completude
Mesmo assim ainda aqui na oposiccedilatildeo esse relacionamento entre identidade e
diferenccedila estaacute de alguma maneira afetado pela diversidade da qual parte Vejamos entatildeo agora
como se estabelece esse relacionamento de identidade e diferenccedila na oposiccedilatildeo
Originariamente igualdade e desigualdade satildeo a indiferenccedila reciacuteproca Cada uma eacute
apenas idecircntica consigo mesma sem que haja referecircncia ao seu negativo Eacute o que Hegel
chama de imediatez natildeo refletida em si (die nicht in sich reflectirte Unmittelbarkeit)270 Como
ser-posto cada momento deveria ser oposto ao outro entretanto por consequumlecircncia da reflexatildeo
exterior cada um deles eacute um ser e aquele que deveria ser seu contraposto isto eacute seu natildeo-ser-
posto (Nichtgesetztsein) eacute apenas um natildeo-ser (Nichtsein) Quando Hegel declara que cada
momento eacute apenas um ser que tem diante de si um natildeo-ser estamos ainda eacute o que nos parece
no terreno da diversidade no qual ser eacute uma determinaccedilatildeo visada de acordo com esse ponto-
de-vista e que de fato estaacute aqueacutem do que efetivamente se passa nos momentos dessa
diferenccedila A tiacutetulo de esclarecimento Hegel caracterizava o ser na Enciclopeacutedia271 como
apenas o imediato indeterminado Parece-nos que denominar os momentos da igualdade e da
desigualdade como ser se faccedila de acordo com tal caracterizaccedilatildeo do ser na obra acima citada
O ser eacute indeterminado porque ele natildeo possui nenhuma relaccedilatildeo com um outro e a
determinaccedilatildeo natildeo se faz sem uma negaccedilatildeo272 o que implica uma relaccedilatildeo a um outro
270 GW 11 p 272 trad p 53
271 Cf GW 20 E sect 86 p 122 trad p175
272 Leia-se a propoacutesito o que foi dito na paacutegina 97 a respeito da determinaccedilatildeo implicar uma negaccedilatildeo
115
ldquoQuando se comeccedila a pensar natildeo temos outra coisa que o pensamento em sua
carecircncia-de- determinaccedilatildeo pois para a determinaccedilatildeo jaacute se requer um e um outro O carente-de-
determinaccedilatildeo como temos aqui eacute o imediato e natildeo a mediatizada carecircncia-de-determinaccedilatildeo
natildeo a suspensatildeo de toda a determinidade mas a imediatez da carecircncia-de-determinaccedilatildeo a
carecircncia-de-determinaccedilatildeo preacutevia a toda a determinidade o carente-de-determinaccedilatildeo enquanto
o que eacute o primeiro-de-todos Ora [eacute] isso o [que] chamamos o ser O ser natildeo pode ser sentido
nem intuiacutedo e nem representado mas eacute o pensamento puro e como tal constitui o
comeccedilordquo273
Mas como momentos da oposiccedilatildeo a igualdade e a desigualdade satildeo o ser-posto
refletido em si ou a determinaccedilatildeo em geral274 Isto significa que igualdade e desigualdade
como refletidas em si mesmas cada uma eacute a unidade da igualdade e da desigualdade Nessa
unidade cada uma estaacute mediada pela outra no entanto a relaccedilatildeo entre elas ainda se faz de
modo indiferente Frente agrave diversidade pode-se notar um avanccedilo na relaccedilatildeo entre identidade e
diferenccedila cada uma estaacute referida agrave outra Desse modo na oposiccedilatildeo teremos como seus dois
momentos o positivo e o negativo O positivo eacute ldquoessa igualdade consigo mesma refletida em
si que nela mesma conteacutem a relaccedilatildeo com a desigualdaderdquo275 e o negativo eacute ldquoa desigualdade
que conteacutem nela mesma a relaccedilatildeo com seu natildeo-ser a igualdaderdquo276 Eacute devido a essa relaccedilatildeo
que ambos mantecircm com seus respectivos negativos que Hegel denomina cada um de ser-
posto isto eacute aquilo que estaacute em relaccedilatildeo com seu oposto O positivo como ser-posto estaacute
refletido na igualdade consigo mesmo e o refletido eacute a negaccedilatildeo como negaccedilatildeo O negativo
273 Werke 8 E sect 86 Adendo p 183 trad p 176 (ldquoWir haben wenn angefangen wird zu denken nichts als den Gedanken in seiner reinen Bestimmungslosigkeit denn zur Bestimmung gehoumlrt schon Eines und ein Anderes im Anfang aber haben wir noch kein Anderes Das Bestimmungslose wie wir es hier haben ist das Unmittelbare nicht die vermittelte Bestimmungslosigkeit nicht die Aufhebung aller Bestimmtheit sondern die Unmittelbarkeit der Bestimmungslosigkeit die Bestimmungslosigkeit vor aller Bestimmtheit das Bestimmungslose als Allererstes Dies aber nennen wir das Sein Dieses ist nicht zu empfinden nicht anzuschauen und nicht vorzustellen sondern es ist der reine Gedanke und als solcher macht es den Anfangrdquo)
274 Cf GW 11 p 272 trad p 53
275 Ibidem p273 trad p 53 (ldquoDiese in sich reflectirte Gleichheit mit sich die in ihr selbst die Beziehung auf die Ungleichheit enthaumlltrdquo)
276 Ibidem p 273 trad p 54 (ldquodie Ungleichheit die in ihr selbst die Beziehung auf ihr Nichtseyn die Gleichheit enthaumlltrdquo)
116
como ser-posto estaacute refletido na desigualdade e o refletido eacute a desigualdade dele (o
positivo)277
Como consequumlecircncia dessa reflexatildeo do todo neles mesmos o positivo e o negativo se
tornam independentes Mas nessa reflexatildeo na qual estaacute posta uma relaccedilatildeo com seu outro e que
fornece o caraacuteter independente do positivo e do negativo o outro de cada um deles eacute um natildeo-
ser pois o outro apesar de continuar presente na relaccedilatildeo estaacute presente como o que natildeo tem
ldquosubstacircnciardquo como se estivesse suprimido278 Em vista disso ao inveacutes de ser-posto positivo e
negativo voltam a adquirir a feiccedilatildeo do mero ser ou seja de um indeterminado que natildeo tem
relaccedilatildeo com um outro um indiferente subsistir (ein gleichguumlltiges Bestehen)279
Com vistas a uma explicitaccedilatildeo mais detalhada das determinaccedilotildees que constituem o
positivo e o negativo Hegel realiza uma anaacutelise na qual distingue trecircs aspectos que a seguir
retomamos280
Assim cabe notar em primeiro lugar que positivo e negativo subsistem numa uacutenica
reflexatildeo inseparaacutevel na qual cada um eacute mediante o natildeo-ser de seu outro mediante portanto
seu proacuteprio natildeo-ser Mas se existe a oposiccedilatildeo entre eles essa oposiccedilatildeo todavia eacute apenas
exterior Cada um eacute o que eacute na medida em que o outro natildeo eacute Na relaccedilatildeo que haacute entre os
opostos um procura afastar de si o outro como aquele que cada um natildeo eacute dessa maneira ldquoum
natildeo eacute ainda o positivo e o outro natildeo eacute ainda o negativo mas antes satildeo ambos negativos um em
relaccedilatildeo ao outrordquo281
277 Cf Ibidem p 273 trad p 54
278 Hegel utiliza eacute o que nos parece o verbo alematildeo aufheben em um sentido meramente negativo por isso optamos pela traduccedilatildeo do verbo como suprimir Na maioria das vezes no entanto preferimos traduzir aufheben por suspender termo que em portuguecircs cremos estar mais de acordo com a polissemia semacircntica do verbo em alematildeo pois suspender pode significar 1) elevar levantar (-se) erguer (-se) 2) suprimir pocircr fim anular abolir abrogar revogar cancelar 3) guardar conservar
Para essa pequena explicaccedilatildeo dos muacuteltiplos significados do verbo suspender e que estatildeo de acordo com os significados do verbo em alematildeo baseamo-nos aqui na nota 25 da traduccedilatildeo da Introduccedilatildeo agrave Filosofia do Direito elaborada por Marcos Lutz Muumlller e na qual o tradutor discute os motivos de se optar por traduzir aufheben por suspender Ver a esse respeito HEGEL G W Introduccedilatildeo agrave Filosofia do Direito Campinas IFCH UNICAMP Claacutessicos da Filosofia Cadernos de Traduccedilatildeo no 10 pp 87-90
279 Cf GW 11 p 273 trad p 54
280 Ver a propoacutesito GW11 pp 273-274 trad pp 54-56
281 Cf GW 11 p 273 trad p 55 (ldquodas eine ist noch nicht positiv und das andre noch nicht negativ sondern beyde sind negativ gegen einanderrdquo)
117
Em segundo lugar dado que cada um dos opostos natildeo considera como parte de si o
outro que ele natildeo eacute como se de fato o outro ndash o natildeo-ser ndash natildeo fosse necessaacuterio para a
determinaccedilatildeo que estaacute no outro poacutelo da relaccedilatildeo resulta dessa espeacutecie de relaccedilatildeo a completa
indiferenccedila entre ambos Dessa perspectiva cada um estaacute apenas refletido em si mesmo Que
consequumlecircncias adveacutem entatildeo para a oposiccedilatildeo uma vez que essa relaccedilatildeo se faz a partir de uma
indiferenccedila dos opostos
Para Hegel a relaccedilatildeo pautada pela indiferenccedila relaccedilatildeo que cada um estabelece com
seu outro como natildeo-ser faz com que ldquoa cada lado caiba por conseguinte uma das
determinidades do positivo e do negativo mas elas podem ser trocadas e cada lado eacute de tal
espeacutecie que eles podem mesmo ser tomados tanto como o positivo quanto como o
negativordquo282
De fato caberia afirmar que natildeo existe oposiccedilatildeo Soacute haacute como diz Hegel oposiccedilatildeo em
geral283 Tanto do lado do positivo quanto do lado do negativo procura-se manter somente
numa relaccedilatildeo idecircntica consigo Nega-se o outro da relaccedilatildeo como se este natildeo determinasse em
nenhuma hipoacutetese a identidade do positivo ou do negativo Eacute como se o outro fosse apenas
um outro em geral
Na doutrina dos conceitos contraditoacuterios um dos conceitos significa por exemplo
azul ( em tal doutrina algo como representaccedilatildeo sensiacutevel de uma cor se chama tambeacutem
conceito) o outro significa natildeo-azul de modo que este outro natildeo eacute algo afirmativo como
seria digamos o amarelo mas somente como o abstratamente negativo deve afirmar-se284
Natildeo se deve esquecer que nesse relacionamento dos opostos e que natildeo vai aleacutem da
indiferenccedila muacutetua o princiacutepio de contradiccedilatildeo pertencente ao arcabouccedilo da loacutegica claacutessica se
282 Ibidem p 274 trad p 55 (ldquojeder Seite kommt daher zwar eine der Bestimmtheiten von Positivem und Negativem zu aber sie koumlnnen verwechselt werden und jede Seite ist von der Art daszlig sie eben so gut als positiv wie als negativ genommen werden kannrdquo)
283 Ibidem p 273 trad p 55
284 GW 20 E sect 119 p150 trad p 234 (ldquoIn der Lehre von den contradictorischen Begriffen heiszligt der eine Begriff z B Blau (auch so ewas wie die sinnliche Vorstellung einer Farbe wird in solcher Lehre Begriff genannt) der andere Nichtblau so daszlig diszlig Andere nicht ein Affirmatives etwa Gelb waumlre sondern nur [als] das Abstract-Negative festgehalten werden sollrdquo)
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faz atuante Uma determinaccedilatildeo eacute positiva independente daquilo que ela nega E o que eacute
negado mas que todavia estaacute relacionado ao positivo eacute como se natildeo existisse como se
estivesse completamente ausente285 Se algo eacute ele eacute porque um outro indeterminado natildeo eacute286
Natildeo pode haver algo que seja e natildeo seja ao mesmo tempo a contradiccedilatildeo precisa ser evitada a
todo custo A determinaccedilatildeo do positivo ou do negativo conforme a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo natildeo
estaacute vinculada agrave relaccedilatildeo que de fato eles mantecircm A despeito da relaccedilatildeo que eles estabelecem
entre si o princiacutepio de contradiccedilatildeo eacute respeitado e a contradiccedilatildeo eacute evitada287
Nessa indiferenccedila de cada um perante seu outro tanto faz chamar um de positivo
quanto chamar o outro de negativo Temos aqui apenas nomes diferentes para designar duas
positividades que por consequumlecircncia satildeo intercambiaacuteveis Apenas que um eacute o positivo como o
que eacute e o outro o positivo como o que natildeo eacute Enquanto forem indiferentes um ao outro
enquanto a diferenccedila entre eles natildeo for estabelecida a partir do relacionamento que os une
natildeo deixaratildeo os mesmos de serem duas determinaccedilotildees positivas abstratas288
285 Na precisa formulaccedilatildeo de Geacuterard Lebrun ldquoPode-se constatar um natildeo-ser mas sem lhe dar apoio sem contar de onde ele proveacutem O negativo eacute essa ausecircncia nunca localizaacutevel desprovida de toda espessurardquo in Lebrun G A paciecircncia do conceito Satildeo Paulo Editora da Unesp 2006 p275
286 ldquoEsse vazio da oposiccedilatildeo de conceitos que se dizem contraditoacuterios tinha jaacute sua plena exposiccedilatildeo na por assim dizer grandiosa expressatildeo de uma lei universal pela qual de todos os predicados assim opostos um pertence a cada coisa e o outro natildeo de sorte que o espiacuterito seria branco ou natildeo-branco amarelo ou natildeo-amarelo etc ateacute o infinitordquo (ldquo Die Leerheit des Gegensatzes von sogennanten contradictorischen Begriffen hatte ihre volle Darstellung in dem so zu sagen grandiosen Ausdruck eines allgemeinen Gesetzes daszlig jedem Dinge von Allen so entgegengesetzten Praumldicaten das Eine zukomme und das Andere nicht so daszlig der Geist sey entweder weiszlig oder nicht weiszlig gelb oder nicht gelb usf ins Unendlicherdquo) In GW 20 E sect119 p 150 trad p 234
287 ldquoQuando se esquece que identidade e oposiccedilatildeo satildeo opostas elas mesmas a proposiccedilatildeo da oposiccedilatildeo eacute tambeacutem tomada pela proposiccedilatildeo da identidade na forma da proposiccedilatildeo da contradiccedilatildeo e um conceito ao qual das duas caracteriacutesticas que se contradizem uma agrave outra nenhuma delas conveacutem (ver acima) ou convecircm as duas eacute declarado logicamente falso como por exemplo um ciacuterculo quadradordquo (ldquoIndem vergessen wird daszlig Identitaumlt und Entgegensetzung selbst entgegengesetzt sind wird der Satz der Entgegensetzung auch fuumlr den der Identitaumlt in der Form des Satzes des Widerspruchs genommen und ein Begriff dem von Zwey einander widersprechenden Merkmalen keins (s vorhin) oder alle beyde zukommen fuumlr logisch falsch erklaumlrt wie zB ein viereckiger Cirkelrdquo) In GW 20 E sect119 p 150 trad pp 234-235
288 ldquoO positivo eacute de novo a identidade mas na sua verdade mais alta enquanto relaccedilatildeo idecircntica a si mesma e ao mesmo tempo de modo que natildeo eacute o negativo O negativo para si natildeo eacute outra coisa que a diferenccedila mesma O idecircntico como tal eacute antes de tudo o carente-de-determinaccedilatildeo o positivo ao contraacuterio eacute o idecircntico consigo mesmo mas enquanto determinado frente a um outro e o negativo eacute a diferenccedila como tal na determinaccedilatildeo de natildeo ser identidade Eacute isso a diferenccedila da diferenccedila nela mesma No positivo e negativo acredita-se ter uma diferenccedila absoluta Contudo os dois satildeo em si o mesmo e por isso se poderia chamar tambeacutem o positivo negativo e vice-versa igualmente o negativo positivordquo (ldquo Das Positive ist wieder die Identitaumlt aber in ihrer houmlheren Wahrheit als identische Beziehung auf sich selbst und zugleich so daszlig es nicht das Negative ist Das Negative fuumlr sich ist nichts anderes als der Unterschied selbst Das Identische als solches ist zunaumlchst das
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Podemos ilustrar a afirmaccedilatildeo acima de que positivo e negativo satildeo ambos positivos e
justamente por isso intercambiaacuteveis com um dos exemplos fornecidos por Hegel na anotaccedilatildeo
agrave seccedilatildeo que trata da oposiccedilatildeo na Ciecircncia da Loacutegica
Assim se pensarmos em uma hora de caminhada para o leste veremos que este natildeo eacute
ao mesmo tempo o positivo em si nem o caminho para o oeste seria o caminho negativo O
trecho percorrido natildeo pode ser considerado o positivo ou o negativo em si Em relaccedilatildeo a ele
tais determinaccedilotildees lhe satildeo indiferentes Apenas por meio de uma consideraccedilatildeo exterior se
determina o positivo ou o negativo289
A mesma coisa eacute vaacutelida para um exemplo tirado da aritmeacutetica290 Se A deve ser +A ou
ndashA com isso jaacute estaacute enunciado um terceiro que eacute A ou a base na qual se tem de modo
indiferente o positivo +A e o negativo ndashA291
Bestimmungslose das Positive dagegen ist das mit sich Identische aber als gegen ein Anderes bestimmt und das Negative ist der Unterschied als solcher in der Bestimmung nicht Identitaumlt zu sein Dies ist der Unterschied des Unterschiedes in ihm selbst - Am Positiven und Negativen meint man einen absoluten Unterschied zu haben Beide sind indes an sich dasselbe und man koumlnnte deshalb das Positive auch das Negative nennen und ebenso umgekehrt das Negative das Positiverdquo) In Werke 8 E sect 119 Adendo p 244 trad p 235
289 GW 11 p 276 trad p 58
290 Ver a propoacutesito GW 20 E sect 119 p 150 trad p 234
291 Todo esse trecho da Ciecircncia da Loacutegica no qual Hegel trata da oposiccedilatildeo envolve uma criacutetica da oposiccedilatildeo real kantiana no seu Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia [In Escritos preacute-criacuteticos Satildeo Paulo Unesp 2005 pp 51-99] Com efeito Kant comeccedila a seccedilatildeo Elucidaccedilatildeo do conceito de grandezas negativas em geral distinguindo entre oposiccedilatildeo loacutegica e oposiccedilatildeo real Segundo o filoacutesofo ldquooposto um ao outro eacute quando um suprime aquilo que eacute posto pelo outrordquo (Kant p 57) E esta oposiccedilatildeo pode se dar de duas maneiras se for oposiccedilatildeo loacutegica pela contradiccedilatildeo se for real sem contradiccedilatildeo
Teremos uma oposiccedilatildeo loacutegica quando a seguinte situaccedilatildeo ocorre ldquode uma uacutenica e mesma coisa afirma-se e nega-se algo ao mesmo tempordquo (Kant p 57) A consequumlecircncia advinda de uma tal espeacutecie de afirmaccedilatildeo eacute segundo Kant absolutamente nada (nihil negativum irrepraesentabile) Devido agrave transgressatildeo ao princiacutepio de contradiccedilatildeo aquilo que se tentou exprimir natildeo pode ser representado Como um corpo poderia ao mesmo tempo e sob a mesma relaccedilatildeo estar e natildeo estar em movimento Do ponto de vista das leis da loacutegica claacutessica eacute impossiacutevel(Kant p 58)
Para Kant ao se considerar a oposiccedilatildeo como real teremos dois predicados opostos de uma coisa relacionados no entanto sem que nessa relaccedilatildeo se infrinja o princiacutepio de contradiccedilatildeo Neste caso temos como consequumlecircncia da oposiccedilatildeo algo (cogitabile) Em um dos exemplos dados por Kant algueacutem que tenha por haver uma diacutevida ativa A= 100 taacuteleres ou seja tem a receber A Ao mesmo tempo essa pessoa possui uma diacutevida passiva B=100 taacuteleres logo tem a pagar a quantia expressa por B Se reunimos as duas diacutevidas a ativa e a passiva entatildeo teremos como consequumlecircncia nada As duas diacutevidas se anulam entretanto esse nada eacute algo pois houve um certo movimento de um certo capital Aqui ocorre efetivamente supressatildeo todavia em virtude de dois predicados atuantes e verdadeiros na mesma coisa Kant nomeia esse nada como zero =0 Diferente do nada a que se chega a partir da oposiccedilatildeo loacutegica esse nada chamado de zero natildeo expressa nenhuma contradiccedilatildeo entre os termos Temos uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo da qual se extrai uma consequumlecircncia compreensiacutevel ainda sob o amparo do princiacutepio de contradiccedilatildeo Os opostos se regem pelo princiacutepio de contradiccedilatildeo e quando relacionados continuam a natildeo se
120
Por fim haacute que se considerar que positivo e negativo natildeo estatildeo de fato relacionados
apenas exteriormente Ambos estatildeo relacionados um ao outro numa unidade na qual cada um
se determina como positivo e como negativo mediante essa reflexatildeo dos contrapostos ldquoCada
um eacute em si mesmo positivo e negativordquo292 O positivo se determina como positivo na sua
relaccedilatildeo com seu outro o negativo e o negativo da mesma maneira na sua relaccedilatildeo com o
positivo Nenhum deles pode ser portanto apenas uma reflexatildeo em si ou seja positivo e
negativo natildeo estatildeo desvinculados um do outro Natildeo se constituem como tais por meio de um
puro refletir-se em si mesmos sem que isso envolva a relaccedilatildeo com seu outro e contraposto
Somente na relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo que positivo e negativo se determinam desse modo como
tais e essa reflexatildeo pode ser considerada em si e para si
contradizer Os opostos aqui satildeo dois positivos E eacute por pura conveniecircncia que um eacute chamado de positivo e o outro de negativo
Pensemos por exemplo neste exemplo fornecido por Kant um navio que navega de Portugal para o Brasil(Kant p 60) Indicaremos com o sinal + os trechos que ele perfaz com o vento matutino e com o sinal ndash indicaremos os trechos que ele retrocede mediante o vento vespertino Os nuacutemeros significam as milhas percorridas Poderia ter ocorrido uma viagem rumo a oeste que somando e subtraindo o efeito do vento no navio seria em milhas a seguinte +12 + 7 ndash 3 ndash 5 + 8= 19 milhas Soacute existe uma subtraccedilatildeo aqui porque haacute grandezas precedidas do sinal + e haacute grandezas precedidas do sinal -- Em ndash 4 ndash 5= -- 9 por exemplo temos uma soma de grandezas natildeo obstante estas estarem precedidas do sinal -- Uma soma tambeacutem se verificaria caso no exemplo citado fosse utilizado o sinal + antes das grandezas A questatildeo eacute que natildeo eacute o sinal que por si soacute pode designar uma subtraccedilatildeo Como acabamos de observar pode haver soma para uma operaccedilatildeo envolvendo grandezas precedidas de sinal -- Eacute somente na reuniatildeo de + e ndash que temos uma subtraccedilatildeo E natildeo importa qual das grandezas por exemplo em + 4 ndash 5= -- 1 seja precedida por + ou por -- que enquanto haja uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo o resultado seraacute sempre uma subtraccedilatildeo
Eacute meramente convencional portanto que se utilize o sinal ndash ou o sinal + para denominar as grandezas Natildeo eacute em virtude de uma propriedade intriacutenseca desses sinais que teremos uma soma ou uma subtraccedilatildeo ldquoos matemaacuteticos decidiram denominar negativas as grandezas precedidas de -- com o que igualmente natildeo se deve perder de vista que essa denominaccedilatildeo natildeo remete a uma espeacutecie particular de coisas em sua qualidade interna mas a esta relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo que as une com certas outras coisas indicadas com + reunidas em uma oposiccedilatildeordquo (Kant pp 61-62)
Numa oposiccedilatildeo real satildeo efetivamente dois positivos que se relacionam e eacute indiferente qual deles possa ser o positivo ou o negativo Para Kant diferente do que pensa Hegel esses positivos relacionados podem produzir como efeito algo e continuarem a ser abstratamente idecircnticos a si mesmos nessa relaccedilatildeo Jaacute para Hegel ldquoo que eacute em si (ansichseiende) positivo ou negativo significa essencialmente ser oposto natildeo meramente ser momento nem pertencente agrave comparaccedilatildeo mas sim que eacute a proacutepria determinaccedilatildeo dos lados da oposiccedilatildeordquo (Cf GW 11 p 275 trad p 57) Eacute na relaccedilatildeo que eles se determinam e poderatildeo constituir uma unidade naquilo que Hegel chama de contradiccedilatildeo resolvida
292 GW 11 p 274 trad p 55 (ldquojedes ist an ihm selbst positiv und negativrdquo)
121
A contradiccedilatildeo
Na oposiccedilatildeo temos dois lados o positivo e o negativo indiferentes um perante o outro
Como jaacute foi visto cada lado eacute toda a oposiccedilatildeo pois apesar da indiferenccedila eles se relacionam
cada um ao seu outro Todavia devido agrave indiferenccedila potildeem-se eles como se natildeo houvesse
relaccedilatildeo com seu outro isto eacute excluem de si o seu outro
Mas eacute na relaccedilatildeo com seu outro que cada lado conteacutem em si que eles satildeo ambos a
oposiccedilatildeo completa e assim satildeo auto-subsistentes A auto-subsistecircncia entatildeo consiste nesse
conter o seu oposto em si mesmo e relacionado a si A relaccedilatildeo com o outro desse modo natildeo eacute
exterior Hegel chama o positivo e o negativo de tal modo constituiacutedos de determinaccedilotildees
reflexivas autocircnomas293 Mas ao mesmo tempo e na mesma relaccedilatildeo uma determinaccedilatildeo
reflexiva autocircnoma exclui de si a outra Como consequumlecircncia dessa exclusatildeo ldquoexclui entatildeo ela
de si na sua autonomia (Selbststaumlndigkeit) a sua proacutepria autonomiardquo294 Uma determinaccedilatildeo
conteacutem portanto em si a outra e na mesma relaccedilatildeo exclui de si essa outra que eacute sua negativa e
assim se auto-exclui de si mesma Desse modo nesse vai-e-vem ndash em um mesmo
relacionamento ndash entre a autonomia e a sua exclusatildeo ela a determinaccedilatildeo eacute a contradiccedilatildeo295
Nesse relacionamento das determinaccedilotildees cada uma ao se pocircr remete agrave outra que a ela
se relaciona Cada uma eacute o que eacute na relaccedilatildeo com a outra sua afirmaccedilatildeo vincula-se agrave outra que
eacute negada mas que ao mesmo tempo estaacute contida na primeira como elemento de sua
autonomia Temos aqui o que Hegel chama de contradiccedilatildeo posta (der gesetzte Widerspruch)
realizada por meio de uma reflexatildeo excludente ao me pocircr ponho ao mesmo tempo o outro
que excluo de mim e assim me suspendo296
Se nos voltarmos por exemplo para a contradiccedilatildeo que haacute no positivo veremos que o
positivo potildee sua identidade ao excluir de si o negativo mas nessa exclusatildeo ele se faz
negativo desse outro (o negativo excluiacutedo) e assim potildee seu outro ao mesmo tempo que o
inclui297 Dessa maneira se auto-exclui de si ao se fazer seu outro Tambeacutem com o negativo
293 Ibidem p 279 trad p 62
294 Ibidem p 279 trad p 62
295 Ibidem p 279 trad p 62
296 Ibidem p 279 trad p 62
297 Cf Ibidem p 280 trad p 63
122
se passa o mesmo a saber o negativo que exclui de si o positivo potildee-se e assim potildee seu
outro (o seu negativo que neste caso eacute o positivo) Eacute numa reflexatildeo uacutenica que se daacute o pocircr de
ambos298 Mas a contradiccedilatildeo do negativo eacute por assim dizer mais completa que a do positivo
O negativo eacute o idecircntico consigo justamente na determinaccedilatildeo do ser natildeo-idecircntico do
determinar-se como negativo ou seja no ser exclusatildeo da identidade
O positivo e o negativo satildeo portanto essa unidade dos que se excluem e
simultaneamente se tornam um o outro ldquoesse incansaacutevel desvanecer dos contrapostos neles
mesmos (Diszlig rastlose Verschwinden der Entgegengesetzten in ihnen selbst)rdquo299
Poder-se-ia pensar que o resultado da contradiccedilatildeo desses opostos seria um resultado
meramente negativo precisamente o zero (Null)300 Contudo o que efetivamente eacute aniquilado
(zu Grund geht) na contradiccedilatildeo eacute o ser-posto da auto-subsistecircncia do positivo e do negativo301
Em outras palavras o que natildeo se manteacutem eacute a auto-subsistecircncia em que cada um se potildee como
se estivessem fora da relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo que eles mantecircm com seu outro Como ser-posto
298 Cf Ibidem p 280 trad p 63
299 Ibidem p280 trad p 64 Ou ainda ldquo[] cada um eacute absolutamente o passar ou antes o transpor-setraduzir-se de si mesmo no seu contrapostordquo (ldquojedes ist schlechthin das Uebergehn oder vielmehr das sich Uebersetzen seiner in sein Gegentheilrdquo) Cf GW 11 p 280 trad p 64
300 ldquoQuando em qualquer objeto ou conceito for mostrada a contradiccedilatildeo --- e por toda a parte natildeo haacute absolutamente nada em que natildeo possa e na deva ser mostrada a contradiccedilatildeo isto eacute determinaccedilotildees opostas o abstrair do entendimento eacute o fixar-se agrave forccedila em uma soacute determinidade eacute um esforccedilo de obscurecer e de afastar a consciecircncia da outra determinidade --- quando pois tal contradiccedilatildeo eacute reconhecida costuma-se fazer a conclusatildeo ldquoLogo este objeto eacute nadardquo [Faz-se] como Zenatildeo que primeiro mostrou [a respeito] do movimento que ele se contradizia e que portanto o movimento natildeo era ou como os antigos que reconheceram o nascer e o perecer --- as duas espeacutecies do vir-a-ser --- como determinaccedilotildees natildeo-verdadeiras com a expressatildeo de que o uno isto eacute o absoluto natildeo nascia nem perecia Essa dialeacutetica fica assim simplesmente no lado negativo do resultado e abstrai do que ao mesmo tempo estaacute efetivamente presente um resultado determinado aqui um puro nada mas um nada que em si inclui um ser e igualmente um ser que nele inclui o nadardquo (ldquoWenn in irgend einem Gegestand oder Begriff der Widerspruch aufgezeigt wird (ndash und es ist uumlberall gar nichts worin nicht der Widerspruch di entgegengesetzte Bestimmungen aufgezeigt werden koumlnnen und muumlssen ndash das Abstrahiren des Verstandes ist das gewaltsame Festhalten an Einer Bestimmtheit eine Anstrengung das Bewuszligtsein der andern die darin liegt zu verdunkeln und zu entfernen) ndash wenn nun solcher Widerspruch erkannt wird so pflegt man den Schluszligsatz zu machen Also ist dieser Gegenstand Nichts wie Zeno zuerst von der Bewegung zeigte daszlig sie sich widerspreche daszlig sie also nicht sey oder wie die Alten das Entstehen und Vergehen die zwei Arten des Werdens fuumlr unwahre Bestimmungen mit dem Ausdrucke erkannten daszlig das Eine di das Absolute nicht entstehe noch vergehe Diese Dialektik bleibt so blos bei der negativen Seite des Resultates stehen und abstrahirt vom dem was zugleich wirklich vorhanden ist ein bestimmtes Resultat hier ein reines Nichts aber Nichts welches das Seyn und eben so ein Seyn welches das Nichts in sich schlieszligtrdquo) In GW 20 E sect 89 p 129 trad p 185
301 GW 11 p 281 trad p 64
123
cada lado da oposiccedilatildeo eacute um contraposto (Entgegengesetzt) mas o positivo eacute a suspensatildeo da
oposiccedilatildeo posta como natildeo-contraposto enquanto um lado ao mesmo tempo que o negativo eacute o
contraposto subsistente por si enquanto todo da oposiccedilatildeo que repousa em si Hegel denomina
de reflexatildeo em si essa relaccedilatildeo de auto-subsistecircncia a si na qual cada lado da oposiccedilatildeo se potildee
como momento distinto do outro302
A reflexatildeo se torna para si somente com a relaccedilatildeo negativa de cada um com seu outro
reflexatildeo excludente (ausschliessende Reflexion) por meio da qual o ser-posto de cada um
como relaccedilatildeo autocircnoma a si eacute suspenso (aufgehoben)303 ldquoElas se levam agrave destruiccedilatildeo (richten
sich zu Grunde) ao se determinarem como o idecircntico consigo poreacutem nisto antes como o
negativo como um idecircntico consigo que eacute relaccedilatildeo com outrordquo304
Nessa reflexatildeo excludente um lado se potildee negando o outro e ao negar seu outro ele se
potildee como negaccedilatildeo e como tal ele retorna a si a partir dessa negaccedilatildeo
ldquoEla (a reflexatildeo excludente da autonomia) eacute relaccedilatildeo a si que se suspende ela nisto
primeiro suspende o negativo e em segundo lugar potildee-se a si como negativo e esse eacute somente
aquele negativo que ela suspende no suspender do negativo ela ao mesmo tempo o potildee e
suspende A determinaccedilatildeo excludente eacute desse modo a si o outro do qual ela eacute a negaccedilatildeo o
suspender desse ser-posto natildeo eacute por conseguinte novamente o ser-posto como o negativo de
um outro mas sim o reunir-se consigo mesmo que eacute a unidade positiva consigo A autonomia
eacute assim a unidade que retorna a si por meio de sua proacutepria negaccedilatildeo visto que ela retorna a si
mediante a negaccedilatildeo de seu ser-postordquo305
302 Ibidem p 281 trad p 64
303 Ibidem p 281 trad p 65 Ou ainda ldquoEla eacute auto-subsistecircncia sendo-em-si e eacute o suspender desse ser-posto e que- eacute-para-si somente mediante esse suspender que eacute para si e de fato unidade auto-subsistente (Sie ist ansichseyende Selbststaumlndigkeit und ist das Aufheben dieses Gesetztseyens und durch diss Aufheben erst fuumlrsichseyende und in der That selbstsaumlndige Einheit) In Ibidem p 281 trad p 65
304 Ibidem p 281 trad p 65 (ldquoSie richten sich zu Grunde indem sie sich bestimmen als das mit sich identische aber darin vielmehr als das Negative als ein mit sich identisches das Beziehung auf anderes istrdquo)
305 Ibidem p 281 trad p 65 (ldquoSie ist aufhebende Beziehung auf sich sie hebt darin erstens das Negative auf und zweytens setzt sie sich als negatives und diszlig ist erst dasjenig Negative das sie aufhebt im Aufheben des Negativen setzt und hebt sie zugleich auf Die ausschliessende Bestimmung selbst ist auf diese Weise sich das Andre dessen Negation sie ist das Aufheben dieses Gesetztseyns ist daher nicht wieder Geseztseyn als das Negative eines Andern sondern ist das Zusammengehen mit sich selbst das positive Einheit mit sich ist Die Selbstaumlndigkeit ist so durch ihre eigene Negation in sich zuruumlckkehrende Einheit indem sie durch die Negation ihres Gesetztseyns in sich zuruumlckkehrtrdquo)
124
Por meio portanto dessa reflexatildeo excludente dos opostos eles se potildeem e
simultaneamente se suspendem Numa uacutenica e mesma relaccedilatildeo se afirmam e se negam
mutuamente Qual o resultado desse processo Com a negaccedilatildeo muacutetua eles certamente se
aniquilam (gehen zu Grunde) entretanto esse aspecto negativo da relaccedilatildeo natildeo seraacute o uacuteltimo e
assim predominante nessa destruiccedilatildeo a oposiccedilatildeo retornou ao mesmo tempo ao seu
fundamento (ist in seinen Grund zuruumlckgegangen)306 O retorno ao fundamento mediante a
suspensatildeo da oposiccedilatildeo natildeo ocorre sem essa relaccedilatildeo da oposiccedilatildeo a um negativo algo que
significa rebaixar (herabsetzen) as determinaccedilotildees autocircnomas positivo e negativo a o que de
fato satildeo meras determinaccedilotildees que na sua suspensatildeo (Aufhebung) reuacutenem-se
(zusammengehen) na unidade da essecircncia como fundamento ldquoMediante o suspender das
determinaccedilotildees da essecircncia que se contradizem nelas mesmas esta (a essecircncia) eacute restaurada
contudo com a determinaccedilatildeo de ser unidade reflexiva excludente unidade simples []rdquo307
O fundamento desse modo somente surge da contradiccedilatildeo apresentada na oposiccedilatildeo
autocircnoma (selbstaumlndige Gegensatz) Esta eacute o imediato o primeiro do qual se parte e na sua
suspensatildeo o fundamento vem a ser ldquoA contradiccedilatildeo resolvida308 (der aufgeloumlste Widerspruch)
eacute portanto o fundamento a essecircncia como unidade do positivo e negativordquo309
Se jaacute ressalta Hegel na oposiccedilatildeo se desenvolve a determinaccedilatildeo ateacute que se atinja a
autonomia (Selbstaumlndigkeit) a mesma contudo somente teraacute seu acabamento (Vollendung)
306 Ibidem pp 281-282 trad pp 65-66
307 Ibidem p 282 trad p 66 (ldquoDurch das Aufheben der sich an sich selbst widersprechenden Bestimmungen des Wesens ist dieses wiederhergestellt jedoch mit der Bestimmung ausschliessende Reflexionseinheit zu seyn einfache Einheit [hellip]rdquo)
308 Um dos significados do verbo aufloumlsen na liacutengua alematilde eacute resolver E resolver com o sentido de se encontrar a soluccedilatildeo de um problema por exemplo uma equaccedilatildeo matemaacutetica O mesmo verbo tambeacutem significa a dissoluccedilatildeo de algo sua desagregaccedilatildeo como no caso de uma substacircncia quiacutemica em outra ou sua anulaccedilatildeoextinccedilatildeo caso de um contrato por exemplo Com referecircncia agrave traduccedilatildeo do verbo por resolver no trecho em questatildeo parece-nos que seja a melhor soluccedilatildeo pois assim fica ressaltado esse aspecto positivo de uma unidade superior dos contraditoacuterios no fundamento Ao mesmo tempo o verbo tambeacutem significa dissoluccedilatildeo que no que respeita agrave contradiccedilatildeo eacute um significado que tambeacutem deve ser considerado visto que a contradiccedilatildeo eacute dissolvida para que assim possa entatildeo resultar uma unidade superior todavia a ressonacircncia meramente negativa de dissoluccedilatildeo talvez deixe de lado esse aspecto o mais importante de unidade dos contraditoacuterios no fundamento Aleacutem disso resolver jaacute nos daacute tambeacutem a ideacuteia de que duacutevidas incoerecircncias e contradiccedilotildees presentes num problema sejam dissolvidasdissipadas para que enfim encontremos sua resoluccedilatildeo
309 Ibidem p 282 trad p 66 (ldquoDer aufgeloumlste Widerspruch ist also der Grund das Wesen als Einheit des Positiven und Negativenrdquo)
125
no fundamento Na oposiccedilatildeo jaacute temos a relaccedilatildeo negativa e interna dos opostos relaccedilatildeo que
fornece a autonomia agrave essecircncia poreacutem essa autonomia seraacute apenas completa e acabada no
fundamento porque somente nele o negativo estaraacute efetivamente incorporado a essa reflexatildeo
das determinaccedilotildees contrapostas Eacute o que nos parece que Hegel queira dizer310 Eacute nessa
relaccedilatildeo portanto em que o negativo intrinsicamente faz dela parte que o fundamento pode
ser ldquoa identidade positiva consigo mas ao mesmo tempo como a negatividade que se
relaciona a sirdquo311 E natildeo podemos esquecer que eacute por meio dessa negatividade incorporada
ao processo que a contradiccedilatildeo se torna contradiccedilatildeo posta e eacute resolvida no fundamento312 Uma
resoluccedilatildeo na qual ldquoA oposiccedilatildeo e sua contradiccedilatildeo eacute por conseguinte tanto suprimida no
fundamento quanto conservadardquo313 O fundamento eacute a unidade dos contrapostos nessa relaccedilatildeo
negativa e contraditoacuteria que eles manteacutem entre si
ldquoA oposiccedilatildeo autocircnoma que se contradiz era jaacute portanto ela mesma o fundamento
somente que agora (como fundamento) acrescida da determinaccedilatildeo da unidade consigo
mesma que sobressai pelo fato de que os contrapostos autocircnomos cada um se suspendem e
se convertem no outro de si com isto se destruindo mas nisto ao mesmo tempo reunindo-se
consigo mesmo e desse modo no seu afundar isto eacute no seu ser-posto ou na negaccedilatildeo eacute
antes a essecircncia refletida em si idecircntica consigordquo 314
310 Ibidem p 282 trad p 67
311 Ibidem p 282 trad p 67 (ldquodie positive Identitaumlt mit sich aber die sich zugleich als die Negativitaumlt auf sich beziehtrdquo)
312 No que respeita agrave importacircncia central da dupla negaccedilatildeo ndash ou como o autor a ela se refere negaccedilatildeo autonomizada ndash para Hegel ver o ensaio de Dieter Henrich ldquoHegels Grundoperation (Eine Einleitung in die lsquoWissenschaft der Logikrsquordquo especialmente as pp 214-219 In Guzzoni Ute Der Idealismus und seine Gegenwart (Festschrift fuumlr Werner Marx) Hamburg Meiner 1976 pp 208-230
313 Ibidem p 282 trad p 67 (ldquoDer Gegensatz und sein Widerspruch ist daher im Grunde so sehr aufgehoben als erhaltenrdquo)
314 Ibidem p 282-283 trad p 67 (ldquoDer sich widersprechende selbstaumlndige Gegensatz war also bereits selbst der Grund es kam nur die Bestimmung der Einheit mit sich selbst hinzu welche dadurch hervortritt daszlig die selbstaumlndigen Entgegengesetzten jedes sich selbst aufhebt und sich zu dem andern seiner macht somit zu Grunde geht aber darin zugleich nur mit sich selbst zusammengeht also in seinem Untergange das ist in seinem Gesetztseyn oder in der Negation vielmehr erst das in sich reflectirte mit sich identische Wesen istrdquo)
126
De tudo que foi dito podemos entatildeo concluir que a contradiccedilatildeo eacute justamente o que natildeo
deve ser afastado Ela eacute ldquoa raiz de todo movimento e vitalidade somente na medida em que
algo tem a contradiccedilatildeo em si mesmo ele se movimenta tem impulso (Trieb) e atividaderdquo315
Contra o pensamento representativo o pensar do entendimento a contradiccedilatildeo natildeo
deve ser afastada Eacute por meio dela que um posto se une a seu contraposto numa unidade
negativa que teraacute como consequumlecircncia a geraccedilatildeo de um novo ser-posto Hegel assim inverte o
jogo o que antes era considerado negativo agora merece uma avaliaccedilatildeo positiva
O entendimento procurou sempre afastar a contradiccedilatildeo porque se ordena segundo uma
sintaxe na qual nada pode ser contraditoacuterio A identidade tal como estabelecida pela loacutegica
claacutessica eacute o que deve ser preservado Se haacute contradiccedilatildeo ela se resolve em um nada Em um
nada vazio vale ser lembrado
Se o ceticismo sempre teve ecircxito no seu combate ao dogmatismo eacute porque nunca se
furtou a atacar o ponto fraco do pensar de entendimento a saber que a contradiccedilatildeo sempre
pode ser obtida a partir da produccedilatildeo de antinomias Aleacutem disso o entendimento se apoacuteia em
uma ontologia que inviabiliza a sua proacutepria manutenccedilatildeo Tanto eacute assim que o ceacutetico consegue
reiteradamente estabelecer uma contradiccedilatildeo a partir daquilo que eacute posto unilateralmente pelo
discurso dogmaacutetico
Toda forma de oposiccedilatildeo que se apoacuteia na identidade abstrata de entendimento procura
sempre considerar o negativo como aquilo que natildeo existe ou para usar o vocabulaacuterio de
Hegel como um natildeo-ser Se algo eacute ele eacute idecircntico a si mesmo independente da relaccedilatildeo com
um outro O positivo natildeo se conecta ao negativo para se manter como positivo Ele eacute Esse
algo que eacute entretanto nunca eacute independente de sua relaccedilatildeo com um outro A um posto
determinado sempre se pode contrapor um outro determinado Em outras palavras uma
determinaccedilatildeo de entendimento eacute limitada por uma outra e desse modo mostra-se seu caraacuteter
finito Mas por que as determinaccedilotildees finitas quando no acircmbito do entendimento satildeo
relacionadas acabam finalmente por se contradizer Segundo Hegel a contradiccedilatildeo se efetiva
devido a esse ser finito apresentar-se como um absoluto O finito que como veremos a seguir
eacute aquilo que estaacute fadado a perecer no acircmbito do entendimento eacute encarado como se fosse um
absoluto O resultado disso eacute que a contradiccedilatildeo precisa ser evitada Se o finito fosse
315 Ibidem p 286 trad p 72 (ldquo[] ist die Wurzel aller Bewegung und Lebendigkeit nur insofern etwas in sich selbst einen Widerspruch hat bewegt es sich hat Trieb und Thaumltigkeitrdquo)
127
considerado como o que ele realmente eacute a saber como ldquoa oposiccedilatildeo que se contradiz em si
mesma (an sich selbst widersprechende Gegensatz)rdquo 316 a contradiccedilatildeo natildeo precisaria ser
evitada e o ceticismo natildeo seria mais considerado o fantasma que assombra a filosofia
Vejamos agora a partir de uma anaacutelise das categorias de finito e infinito como se
constitui essa gramaacutetica ontoloacutegica que precisa ser abandonada caso se pretenda que a
contradiccedilatildeo e o ceticismo natildeo sejam mais vistos como inimigos mortais da filosofia que tanto
horror causam no pensamento natildeo-especulativo
316 Ibidem p 290 trad p 77
128
O finito e o infinito
Para que possamos compreender o que eacute o finito tomaremos como ponto de partida a
categoria do ser-aiacute como qualidade tal como exposta na Doutrina do Ser na Enciclopeacutedia317
Assim veremos no sect 90 que o ser-aiacute unido com uma determinidade eacute a qualidade318
Na qualidade jaacute estaacute contida a negaccedilatildeo como um ser-aiacute e algo A negaccedilatildeo eacute o ser-outro
(Anderssein) desse ser-aiacute que eacute a qualidade Eacute ela que fornece a determinaccedilatildeo proacutepria da
qualidade O ser-aiacute eacute algo porque ele eacute determinado ou seja porque ele eacute um algo que natildeo
pode ser confundido com outro algo Ele eacute portanto este algo e natildeo eacute aquele outro O ser-aiacute
estaacute delimitado ele possui um limite A negaccedilatildeo diraacute Hegel eacute esse limite (Grenze) Essa
limitaccedilatildeo que atravessa esse algo faz com que ele seja finito O que natildeo eacute difiacutecil de se
compreender pois o algo por ser limitado necessariamente remete a um outro que o limita ldquoo
limite do algo se lhe torna objetivo no outrordquo319 O ser-aiacute se determina ao avanccedilar ateacute o ponto
em que se defronta com seu outro que eacute o seu limite
O ser-aiacute por ser limitado ao mesmo tempo tambeacutem eacute finito o que traz por
consequumlecircncia que ele estaacute destinado a ter um fim Segundo Hegel eacute proacuteprio das coisas finitas
o perecer (vergehen) ldquoo ser das coisas finitas como tal consiste em ter o germe do perecer
como seu ser-em-si (Insichsein) a hora de seu nascimento eacute a hora de sua morterdquo320 Se algo
perece eacute porque ele se altera o que implica numa negaccedilatildeo constante daquilo que se eacute ateacute o seu
fim O finito desse modo se altera porque ele se nega e esse negar-se significa que ele vai
aleacutem de si mesmo Eacute por esse motivo que Hegel afirma que as coisas finitas se relacionam
317 Cf GW 20 p 129 e ss trad p 186 e ss
318 Ibidem sect 90 p 129 trad p 186
319 Werke 8 E sect 92 Adendo p 197 trad p 189 (ldquo[hellip] dem Etwas wird im Anderen seine Grenze objektivrdquo) Ou ainda ldquoQuando noacutes dizemos das coisas que elas satildeo finitas com isto tambeacutem se entende que elas natildeo somente possuem uma determinidade a qualidade natildeo somente como realidade e determinaccedilatildeo que eacute em si que elas natildeo satildeo apenas limitadas ndash elas ainda tem fora de seu limite um ser-aiacute ndash mas que antes tambeacutem o natildeo-ser constitui sua natureza seu serrdquo (ldquo Wenn wir von den Dingen sagen sie sind endlich so wird darunter verstanden daszlig sie nicht nu eine Bestimmtheit haben die Qualitaumlt nicht nur als Realitaumlt und ansichseyende Bestimmung daszlig sie nicht bloszlig begrenzt sind sie haben so noch Daseyn ausser ihrer Grenze ndash sondern daszlig vielmehr das Nichtseyn ihre Natur ihr Seyn ausmacht rdquo) In GW 21 p 116 trad p 166
320 GW 21 p 116 trad p 166 (ldquodas Seyn der endlichen Dinge als solches ist den Keim des Vergehens als ihr Insichseyn zu haben die Stude ihrer Geburt ist die Stunde ihres Todesrdquo)
129
negativamente a si mesmas e nesse negar se remetem para aleacutem de si mesmas e de seu ser
(sich uumlber sich uumlber ihr Sein hinauszuschicken)321
Esse ir aleacutem de si mesmo do finito esse ir para um outro natildeo acontece como se esse
outro fosse exterior e indiferente ao algo a que estaacute vinculado Caso assim ocorresse a relaccedilatildeo
entre o algo e o outro natildeo teriacuteamos a efetiva negaccedilatildeo do finito E eacute isto que se passa quando o
finito natildeo eacute efetivamente negado e portanto natildeo vai aleacutem de si mesmo no seu outro que natildeo
seja indiferente a ele O que aiacute acontece eacute que o finito eacute negado tem um fim E entatildeo um novo
finito surge no lugar do anterior Esse novo finito tambeacutem eacute negado e assim um outro finito
surge e esse processo se reproduz de modo infinito Hegel denomina de maacute infinitude esse
processo322
ldquoA negaccedilatildeo em geral a qualidade o limite podem se conciliar com seu outro o ser-
aiacute tambeacutem o nada abstrato eacute abandonado para si como abstraccedilatildeo mas a finitude eacute como a
negaccedilatildeo fixada em si e estaacute por conseguinte rudemente defronte de seu afirmativo O finito
pode se deixar levar no fluxo ele eacute isto mesmo ser determinado ao seu fim mas somente ao
seu fim -- eacute antes o recusar se deixar levar afirmativamente ao seu afirmativo ao infinito e se
deixar ligar a ele encontra-se posto como inseparaacutevel de seu nada e com isto toda
conciliaccedilatildeo com seu outro com o afirmativo estaacute cortadardquo323
De um lado portanto temos um finito negado e de outro lado um finito afirmado O
finito assim natildeo tem inscrito nele mesmo o perecer Ele eacute tatildeo positivo quanto o outro finito
que se afirma no lugar daquele que foi negado O finito torna-se assim um absoluto Essa eacute a
321 Ibidem p 116 trad p 166
322 GW 20 E sect 94 p 130 trad p 189
323 GW 21 p 117 trad p 166-167 (ldquodie Negation uumlberhaupt Beschaffenheit Grenze vertragen sich mit ihrem Andern dem Daseyn auch das Abstracte Nichts wird fuumlr sich als Abstraction aufgegeben aber Endlichkeit ist die als an sich fixirte Negation und steht daher seinem Affirmativen schroff gegenuumlber Das Endliche laumlsst sich so in Fluszlig wohl bringen es ist selbst diszlig zu seinem Ende bestimmt zu seyn aber nur zu seinem Ende -- es ist vielmehr das Verweigern sich zu seinem Affirmativen dem Unendlichen hin affirmativ bringen mit ihm sich verbinden zu lassen es ist also untrennbar von seinem Nichts gesetzt und alle Vesoumlhnung mit seinem Andern dem Affirmativen dadurch abgeschnittenrdquo)
130
conclusatildeo a que chega Hegel324 Temos aqui um finito absolutizado E por meio dessa
sucessatildeo de finitos absolutizados como que perfilados numa linha se vai ao infinito
Com efeito a alternacircncia dos finitos soacute eacute possibilitada devido agrave separaccedilatildeo do algo e de
seu outro Esse finito assim tem a contradiccedilatildeo afastada de si Sem que um deles seja negado
natildeo se pode afirmar o outro Nesses termos eacute efetivamente impossiacutevel que a infinitude seja
outra coisa que uma sucessatildeo de finitos que nunca perecem
Para que a verdadeira infinitude venha agrave luz eacute preciso que o finito efetivamente
pereccedila Do ponto de vista da loacutegica que regula o entendimento natildeo pode ser realizado o
efetivo perecer do finito Este finito determinado de acordo com o princiacutepio de natildeo-
contradiccedilatildeo se afirma sem levar em conta seu negativo Seu outro o nega apenas
exteriormente Dentro desse quadro relacionar um finito qualquer ao seu outro isto eacute aquilo
que o nega significa estabelecer uma contradiccedilatildeo mas uma contradiccedilatildeo que natildeo se resolve
positivamente Os contraditoacuterios se anulam sem que se vaacute aleacutem disso um nada vazio e
abstrato
Mas eacute justamente porque o finito eacute unilateral que ele natildeo pode se afastar da
contradiccedilatildeo Ele eacute o que eacute por ser determinado por um outro que o limita E essa relaccedilatildeo dele
com seu outro natildeo eacute exterior O finito eacute aquilo que comporta em si seu outro Nessa relaccedilatildeo a
si ele se nega e torna-se outro a partir dele mesmo O que Hegel chama de negaccedilatildeo da
negaccedilatildeo325 Nessa negaccedilatildeo interna do finito da qual surge outro o finito se torna infinito 326
324 Cf ldquoEacute uma afirmaccedilatildeo expressa que o finito eacute inconciliaacutevel e natildeo unificaacutevel com o infinito que o finito eacute posto pura e simplesmente contra o infinito Ao infinito eacute atribuiacutedo o ser o ser absoluto perante ele se manteacutem afirmado o finito como o negativo do mesmo natildeo podendo ser unificado com o absoluto permanece ele absoluto por seu lado tambeacutemrdquo (ldquoEs ist die ausdruumlckliche Behauptung daszlig das Endliche mit dem Unendlichen unvertraumlglich und unvereinbar sey das Endliche dem Unendlichen schlechthin etgegen gesetzt sey Dem Unendlichen ist Seyn absolutes Seyn zugeschrieben ihm gegenuumlber bleibt so das Endliche festgehalten als das Negative desselben unvereinbar mit dem Unendlichen bleibt es absolut auf seiner eigenen Seiterdquo) In GW 21 p 117-118 trad p 167
325 Cf GW 21 p 135 trad p 188 Aqui diga-se de passagem ocorre a mesma dialeacutetica que acabamos de observar na contradiccedilatildeo especulativa e que a seguir veremos no meacutetodo (cap 5)
326 A respeito do surgimento do infinito a partir do finito e do relacionamento interno de ambos eacute oportuno retomar o seguinte comentaacuterio de Andreas Arndt ldquoComo eacute essa a identidade em si refletida de si mesma e do contraposto (Entgegensetzung) na medida em que ela se estende por sobre si mesma e seu contraacuterio (Gegenteil) entatildeo eacute assim tambeacutem o infinito concebido que ele se estende por sobre si mesmo e seu contraacuterio Esse resultado natildeo deve poreacutem basear-se numa prevalecircncia da identidade ou da infinitude mas sim que o finito deve a partir dele mesmo e sem coaccedilatildeo exterior ser suspenso na infinitude afirmativa e nesta descobrir (herausfinden) a
131
Capiacutetulo 2 - O meacutetodo dialeacutetico-especulativo
O dialeacutetico eacute o pulso da vida em geral
Hegel327
Como tivemos oportunidade de observar nas suas Preleccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia
mais especificamente quando tratou do ceticismo Hegel se referia a termos como conceito
absoluto ideacuteia especulativa ou ideacuteia filosoacutefica mas sem efetuar uma exposiccedilatildeo mais precisa
do significado desses termos em sua filosofia Essa exposiccedilatildeo laacute natildeo se encontra obviamente
por natildeo se tratar ali do local adequado para o desenvolvimento da mesma Todavia no
contexto em que elas aparecem a saber a discussatildeo a respeito da filosofia ceacutetica podemos
mais ou menos vislumbrar qual significado esses termos possuem em sua filosofia A tiacutetulo
meramente rememorativo o contexto no qual apareciam esses termos dizia respeito agrave
investigaccedilatildeo do relacionamento porventura existente entre o ceticismo (o antigo) e a filosofia
especulativa Que o ceticismo eacute uma filosofia ambivalente no sentido de que pode ser
aproximada do pensamento especulativo e ao mesmo tempo tambeacutem ser afastada dessa
forma filosoacutefica
Hegel procurava entatildeo mostrar que o ceticismo consistia numa forma filosoacutefica que
poderia ser incorporada agrave filosofia especulativa Uma hipoacutetese que eacute bem pouco provaacutevel que
o ceacutetico pudesse considerar como vaacutelida Grosso modo a especulaccedilatildeo parecer-lhe-ia apenas
mais uma forma bastante extravagante de dogmatismo
Sem pretender avanccedilar numa discussatildeo acerca da viabilidade ou natildeo da incorporaccedilatildeo do
ceticismo agrave filosofia especulativa nem dos motivos que talvez levassem a convencer o ceacutetico
da aceitaccedilatildeo dessa hipoacutetese ou dos motivos que embasassem sua recusa interessa-nos aqui
resoluccedilatildeo da contradiccedilatildeo no finitordquo in ARNDT A Dialektik und Reflexion zur Rekonstruktion des Vernunftbegriffs Hamburg Meiner 1994 p 190
327 Vorlesungen uumlber Logik und Metaphysik Heidelberg 1817 Mitgeschrieben von FAGood ed Karen Gloy In Vorlesungen Ausgewaumlhlte Nachschriften und Manuskripte Band 11 Hamburg Meiner 1992 p 13
132
retomar a Hegel na sua Ciecircncia da Loacutegica no ponto especiacutefico onde se faz a exposiccedilatildeo do
meacutetodo especulativo a saber o capiacutetulo final do livro a Ideacuteia Absoluta328 E antes de
continuar eacute preciso deixar consignado que eacute nesse capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica que
Hegel expotildee em detalhes o significado e o funcionamento desse meacutetodo especulativo e que
segundo o que laacute ele diz eacute o que podemos apreender torna possiacutevel agrave filosofia permanecer
imune aos ataques do ceticismo Apenas como menccedilatildeo Hegel chega inclusive a mostrar nesse
mesmo capiacutetulo como por meio do meacutetodo a filosofia se potildee a salvo da criacutetica ceacutetica
mediante o tropo da regressatildeo ao infinito329 e tambeacutem no que se refere agrave discussatildeo acerca do
comeccedilo da filosofia do tropo da hipoacutetese330 Na medida em que seja necessaacuterio faremos
remissatildeo a outros momentos da Doutrina do Conceito parte da Loacutegica na qual se insere o
capiacutetulo haacute pouco mencionado A escolha desse modo de proceder se deve ao fato de que
dado seu proacuteprio caraacuteter de fechamento do livro e dessa parte especiacutefica da Loacutegica ndash a Loacutegica
Subjetiva ndash tornasse necessaacuteria e mais clara a compreensatildeo acerca do que seraacute analisado a
partir da referecircncia a outros momentos da mesma Doutrina do Conceito
Vistas as coisas do acircngulo meramente formal a Doutrina do Conceito compotildee a terceira
parte da Ciecircncia da Loacutegica apoacutes a Doutrina do Ser e a Doutrina da Essecircncia
respectivamente Mas o que nos importa reter dessa posiccedilatildeo derradeira da Doutrina do
Conceito na economia do texto da Ciecircncia da Loacutegica eacute o seu significado filosoacutefico preciso o
conceito somente eacute tratado na terceira parte da obra pois sua implementaccedilatildeo estaacute relacionada
e dependente dos desdobramentos dialeacuteticos ocorridos nos dois momentos anteriores da
mesma Loacutegica ndash os jaacute citados Doutrina do Ser e Doutrina da Essecircncia Como Hegel assinala
em vaacuterias passagens da Ciecircncia da Loacutegica e tambeacutem da Loacutegica da Enciclopeacutedia ldquoo conceito
eacute assim a verdade do ser e da essecircncia [] Enquanto o conceito se demonstrou como a
328 Cf GW 12 pp 236-253
329 Cf HP I 170-172
330 Cf HP I 173-174
133
verdade do ser e da essecircncia que a ele retornaram os dois como ao seu fundamento o
conceito inversamente se desenvolveu a partir do ser como seu fundamentordquo331
A citaccedilatildeo de Hegel acima feita confirma o que haviacuteamos haacute pouco dito que esse terceiro
momento da Loacutegica a Doutrina do Conceito surge como resultado dos desdobramentos
dialeacuteticos anteriores ndash ou na liacutengua hegeliana de um processo de determinaccedilatildeo que no caso eacute
um processo de autodeterminaccedilatildeo ndash ocorridos na Doutrina do Ser e na Doutrina da Essecircncia
Mas o que eacute contudo mais interessante e agrave primeira vista perturbador eacute o fato de que o
conceito seja considerado o fundamento do ser e da essecircncia Como pode ser possiacutevel que o
fundamento somente venha a aparecer ao final
Da perspectiva do entendimento o que comumente acontece eacute que o fundamento de uma
ciecircncia ou ainda de modo mais simples de um argumento qualquer seja posto logo no iniacutecio
e entatildeo a partir dele teremos por exemplo o desenvolvimento de uma ciecircncia ou de um
argumento A questatildeo eacute que utilizar esse tipo de procedimento no mais das vezes torna-nos
vulneraacuteveis agraves investidas do ceticismo Como impedir que um fundamento qualquer possa
estar protegido do ataque a ele feito por meio de algum dos tropos ceacuteticos
Cremos que Hegel esteja ciente dessa fraqueza da maneira tradicional de fundamentaccedilatildeo
perante a criacutetica que a mesma possa sofrer por parte do ceticismo Jaacute no primeiro paraacutegrafo da
Enciclopeacutedia ele chama a atenccedilatildeo para esse problema do fundamento ao se referir agrave
dificuldade de se instituir um comeccedilo para a filosofia ldquoporque um comeccedilo como algo
imediato faz sua pressuposiccedilatildeo ou melhor ele mesmo eacute uma pressuposiccedilatildeordquo332 Ora o que
Hegel natildeo diz mas aiacute estaacute impliacutecito eacute apenas que da mesma maneira que posso fazer uma
331 Cf GW 20 E sect159 p 174 trad cit p 288 (ldquoDer Begriff ist hiemit die Wahrheit des Seyns und des Wesens [hellip] Indem der Begriff sich als die Wahrheit des Seyns und Wesens erwiesen hat welche beide in ihm als in ihren Grund zuruumlckgegangen sind so hat er umgekehrt sich aus dem Seyn als aus seinem Grunde entwickeltrdquo) Ou ainda ldquoSob este aspecto o conceito eacute em primeiro lugar considerado em geral como o terceiro com respeito ao ser e agrave essecircncia ao imediato e agrave reflexatildeo Ser e essecircncia satildeo nessa medida os momentos de seu vir-a-ser poreacutem ele eacute o fundamento e a verdade deles como a identidade na qual soccedilobraram (untergegangen sind) e estatildeo contidos Eles estatildeo nele contidos porque ele eacute seu resultado mas natildeo estatildeo mais como ser e essecircncia eles soacute possuem essa determinaccedilatildeo na medida em que natildeo retornaram a essa sua unidaderdquo (ldquoDer Begriff ist von dieser Seite zunaumlchst uumlberhaupt als das Dritte zum Seyn und Wesen zum Unmittelbaren und zur Reflexion anzusehen Seyn und Wesen sind insofern die Momente seines Werdens er aber ist ihre Grundlage und Wahrheit als die Identitaumlt in welcher sie untergegangen und enthalten sind Sie sind in ihm weil er ihr Resultat ist enthalten aber nicht mehr als Seyn und als Wesen diese Bestimmung haben sie nur insofern sie noch nicht in diese ihre Einheit zuruumlckgegangen sindrdquo) Cf GW 12 p 11 trad p 249
332 Cf GW 20 E sect 1 p 39 trad cit p 40 (ldquoda ein Anfang als ein Unmittelbares eine Voraussetzung macht oder vielmehr selbst eine solche istrdquo)
134
pressuposiccedilatildeo um outro pode pressupor algo que se contraponha agrave primeira pressuposiccedilatildeo e
assim natildeo haacute como se decidir por uma ou por outra sem que essa decisatildeo seja considerada
arbitraacuteria
Hegel pretende que o modo de proceder com respeito agrave fundamentaccedilatildeo na Ciecircncia da
Loacutegica natildeo sofra da mesma fraqueza que acabou por levar o entendimento a tornar-se
vulneraacutevel agrave criacutetica ceacutetica Como ele declara no iniacutecio da Doutrina do Conceito o conceito333
apesar de somente vir ao final constitui o fundamento absoluto mas que esse fundamento
necessita ter-se feito como fundamento334
O conceito eacute portanto o fundamento mas ele somente poderaacute vir a lume como
fundamento a partir de um processo dialeacutetico que comeccedila com o ser e passa pela essecircncia Eacute
justamente no uacuteltimo capiacutetulo da Loacutegica a Ideacuteia Absoluta que Hegel nos apresenta esse
meacutetodo dialeacutetico que eacute o motor e o fundamento natildeo soacute de todo o desenvolvimento da Loacutegica
mas tambeacutem da sua filosofia como um todo Ocorre que esse fundamento precisa ser
justificado e ldquouma tal intelecccedilatildeo eacute ela mesma um conhecer filosoacutefico que portanto soacute incide
no interior da filosofia Uma explicaccedilatildeo preacutevia deveria por isso ser uma explicaccedilatildeo natildeo-
filosoacutefica e natildeo poderia ser mais que um tecido de pressuposiccedilotildees asseveraccedilotildees e
raciociacutenios isto eacute de afirmaccedilotildees contingentes contra as quais se poderiam sustentar com o
mesmo direito afirmaccedilotildees opostasrdquo335
Com efeito qualquer forma de explicaccedilatildeo preacutevia a respeito do fundamento implicaria que
jaacute se partisse de algo dado e injustificado sujeito portanto a ser combatido por uma outra
afirmaccedilatildeo que a ela se contraponha com o mesmo direito que a primeira Natildeo haacute como natildeo
notar nessa declaraccedilatildeo de Hegel a preocupaccedilatildeo com um possiacutevel ataque ceacutetico por meio do
333 Quando nos referimos a conceito tambeacutem podemos entender esse termo como significando natildeo apenas o conceito em sentido estrito tal como exposto na mesma Doutrina do Conceito mas tambeacutem que esse termo abranja todas as configuraccedilotildees especiacuteficas do conceito nesta terceira parte da Loacutegica ndash assim como na Doutrina do Ser e na Doutrina da Essecircncia ndash afinal a ideacuteia absoluta tambeacutem eacute conceito e eacute o que Hegel chamaraacute de o conceito adequado
334 Cf GW 12 p 11 trad p 249
335 Cf GW 20 E sect10 p 50trad cit p 49 (ldquoEine solche Einsicht ist aber selbst philosophisches Erkennen das daher nur innerhalb der Philosophie faumlllt Eine vorlaumlufige Explication wuumlrde hiemit eine unphilosophische seyn sollen und koumlnnte nicht mehr seyn als ein Gewebe von Voraussetzungen Versicherungen und Raisonnements di von zufaumllligen Behauptungen denen mit demselben Rechte die entgegengesetzten gegenuumlber versichert werden koumlnnenrdquo)
135
exerciacutecio daquilo que se poderia chamar de ldquoprinciacutepio programaacutetico do pirronismordquo opor a
todo argumento ou proposiccedilatildeo o argumento ou proposiccedilatildeo que se lhe contraponha336
A justificaccedilatildeo do fundamento eacute a maneira que o filoacutesofo encontra para evitar que a
filosofia caia viacutetima das aporias ceacuteticas Nesse contexto o comeccedilo desse processo dialeacutetico
que termina com o estabelecimento do fundamento absoluto pode ser considerado como o faz
Hegel condiccedilatildeo a partir da qual se chega ao fundamento todavia essa condiccedilatildeo que eacute o ser
natildeo eacute o incondicionado em-si e para-si337 A este soacute se alcanccedila ao final Esse comeccedilo
portanto natildeo eacute o incondicionado que condicionaria o saber dele derivado Ele eacute apenas a
condiccedilatildeo da qual se parte para ao final do percurso alcanccedilar o fundamento absoluto
Mas entatildeo algueacutem poderia perguntar De que caraacuteter se reveste esse ser que eacute o comeccedilo e
que natildeo o torna viacutetima do ceticismo A um ser posto diria entatildeo o ceacutetico se pode contrapor
um outro com o mesmo direito A resposta de Hegel eacute a seguinte este ser do qual se parte eacute
completamente indeterminado isto eacute natildeo comporta nenhuma determinaccedilatildeo em si mesmo e
nesse sentido ele eacute tambeacutem completamente abstrato338 Essa falta de determinaccedilatildeo interna e
externa que assim permite consideraacute-lo um puro imediato eacute a ldquocondiccedilatildeordquo de que a nosso ver
Hegel utiliza para afastar a filosofia de um ataque ceacutetico O comeccedilo estaria passiacutevel de ser
criticado pelo ceacutetico caso fosse um mediatizado quer dizer caso contivesse em si uma
determinaccedilatildeo algo que acarretaria a existecircncia de uma relaccedilatildeo de um para com um outro de
um determinado relacionado a outro determinado Dessa maneira natildeo teriacuteamos efetivamente
um comeccedilo pois um comeccedilo que eacute o ser no qual jaacute houvesse um conteuacutedo seria jaacute mediado
e desse modo passiacutevel da criacutetica ceacutetica
Eacute curioso notar que Hegel chame a esse puro ser imediato e indeterminado de absoluto
Mas absoluto aqui natildeo significa que estejamos na posse daquele incondicionado do qual se
derive o sistema assim como poderia ocorrer pelo menos eacute o que nos parece dizer Hegel aos
filoacutesofos dogmaacuteticos O comeccedilo tem de ser absoluto no sentido de que ldquoele natildeo permite nada
pressupor natildeo deve ser mediado por nada nem ter um fundamentordquo339 O absoluto ou o puro
336 Cf HP I 12
337 Cf GW 12 p 22 tr p263
338 Cf GW 21 59 tr p 94
339 Cf GW 21 56 trad p 91 (ldquo[] er darf so nichts voraussetzen muszlig durch nichts vermittelt seyn noch einen Grund habenrdquo) Ou ainda ldquoQue o comeccedilo comeccedilo da filosofia eacute dele natildeo pode ser tirado propriamente nenhuma determinaccedilatildeo mais precisa ou um conteuacutedo positivo para o mesmo Pois aqui no comeccedilo onde a coisa
136
ser portanto eacute o que natildeo estaacute a nada relacionado mas nessa sua indeterminaccedilatildeo ele eacute ao
mesmo tempo unilateral340 Como veremos adiante por meio da exposiccedilatildeo do meacutetodo essa
unilateralidade seraacute na terminologia da especulaccedilatildeo hegeliana suspensa mediante a
autodeterminaccedilatildeo dialeacutetica desse ser Eacute somente com a exposiccedilatildeo do meacutetodo da filosofia
especulativa que teremos talvez condiccedilotildees de melhor compreender o que eacute esse comeccedilo ao
mesmo tempo unilateral e absoluto e que aleacutem disso por estarmos fora do ciacuterculo do
entendimento estamos eacute o que pretende Hegel fora do alcance da criacutetica ceacutetica
Toda essa longa digressatildeo acerca do porquecirc o conceito constitui o terceiro momento da
Ciecircncia da Loacutegica obrigou-nos a que nos remetecircssemos a abordar a temaacutetica da
fundamentaccedilatildeo da filosofia em Hegel Desse modo pudemos comeccedilar a compreender porque
na Loacutegica hegeliana o fundamento somente se estabelece ao final apoacutes um processo dialeacutetico
de justificaccedilatildeo que tem seu iniacutecio no puro ser indeterminado Se o conceito eacute a verdade do ser
e da essecircncia na unidade de ambos no mesmo conceito pareceria estranho que se comeccedilasse
com algo que pressupotildee o conhecimento do que sejam ser e essecircncia ou como assinala Hegel
ldquoentatildeo surgiria a questatildeo do que se entende por ser e essecircncia e como os dois termos vecircm a
condensar-se na unidade do conceitordquo341
O conceito como ideacuteia absoluta fundamenta regressivamente todas as etapas do percurso
da Loacutegica Como meacutetodo estaacute na base do processo dialeacutetico que se desenrola do ser ateacute a
ideacuteia absoluta todavia soacute temos conhecimento do que eacute o meacutetodo a partir desse processo de
justificaccedilatildeo do mesmo por meio do desdobrar-se do seu conteuacutedo que nada menos eacute que o
sistema do loacutegico342
mesma ainda natildeo estaacute aiacute-presente a filosofia eacute uma palavra vazia ou uma qualquer representaccedilatildeo suposta natildeo justificadardquo (ldquoDaszlig der Anfang Anfang der Philosophie ist daraus kann eigentlich auch keine naumlhere Bestimmung oder ein positiver Inhalt fuumlr denselben genommen werden Denn die Philosophie ist hier im Anfange wo die Sache selbst noch nicht vorhanden ist ein leeres Wort oder irgend eine angenommene ungerechtfertigte Vorstellungrdquo) In GW 21 59 trad p 94
340 ldquoMas ele precisa ser do mesmo modo tomado essencialmente na sua unilateralidade de ser o puro-imediato mesmo porque ele aqui estaacute como comeccedilordquo (ldquoAber er muszlig ebenso wesentlich nur in der Einseitigkeit das Rein-Unmittelbare zu seyn genommen werden eben weil es hier als der Anfang istrdquo) In GW 21 59 trad p 94
341 Cf Werke 8 E sect159 Adendo p 305 trad citp 289 (ldquo[]so entstaumlnde die Frage was man sich unter dem Sein und was unter dem Wesen zu denken hat und wie diese beiden dazu kommen in die Einheit des Begriffs zusammengefaszligt zu werdenrdquo)
342 Cf GW 20 E sect237 pp 228-229 trad cit p 367
137
Dentro do contexto das anaacutelises precedentes podemos agora compreender porque a
exposiccedilatildeo do meacutetodo somente seja feita no capiacutetulo final do livro Cabe portanto agora
tratar mediante a anaacutelise do capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica ndash a Ideacuteia Absoluta ndash de
compreender o significado do meacutetodo especulativo meacutetodo pelo qual a filosofia eacute o que
almeja Hegel potildee-se entre outras coisas a salvo da criacutetica do ceticismo ao dogmatismo
De acordo com o exposto ficou consignado que a determinaccedilatildeo da ideacuteia ou mais
precisamente da ideacuteia absoluta envolveu um processo dialeacutetico de determinaccedilatildeo
consubstanciado no todo do percurso da Ciecircncia da Loacutegica343 Essa ideacuteia que eacute como jaacute
vimos o fundamento da Loacutegica carrega em si todas as determinaccedilotildees desdobradas no
decorrer do processo O interesse principal da filosofia eacute a ideacuteia absoluta pois esta eacute seu uacutenico
objeto e conteuacutedo Cabe agrave filosofia reconhececirc-la nas diversas configuraccedilotildees que ela assume
no seu processo de autodeterminaccedilatildeo ou particularizaccedilatildeo Mas a ideacuteia absoluta todavia ainda
que determinada por todas as figuras apresentadas no curso da Loacutegica344 mostra-se
determinada enquanto ideacuteia absoluta como forma
Nessa sua determinaccedilatildeo de forma que faz com que a ideacuteia seja portanto ldquopura e
simplesmente como a ideacuteia universalrdquo345 natildeo tem ela como forma uma oposiccedilatildeo ao conteuacutedo
como se este fosse apenas como um outro e como um dado perante a forma e que a ela se
relacionasse346 Em outras palavras a forma natildeo eacute apenas uma pura forma abstrata que tem
diante de si e em oposiccedilatildeo um conteuacutedo dado qualquer Apesar da ideacuteia absoluta apresentar-se
na sua determinidade peculiar de forma isto natildeo significa eacute o que veremos a seguir que seu
conteuacutedo seja composto de um material tomado dalhures e completamente desvinculado do
processo de autodeterminaccedilatildeo da ideacuteia Ela estaacute na origem desse processo de determinaccedilatildeo do
343 Cf GW 12 p 237 trad p 561
344 ldquoA ideacuteia como unidade da ideacuteia subjetiva e da objetiva eacute o conceito da ideacuteia para o qual a ideacuteia como tal eacute o objeto para o qual o objeto eacute ela um objeto em que vieram reunir-se todas as determinaccedilotildeesrdquo In GW 20 E sect236 p 228 trad cit p 366
345 Cf GW 12 p 237 trad p 561 (ldquoals die schlechthin allgemeine Ideerdquo)
346 Cf Ibidem p 237 trad p 561
138
conteuacutedo mas considerada contudo na sua pura essecircncia como ela se encontra incluiacuteda na
mais simples identidade em seu conceito a mesma ainda natildeo se fez aparecer como
determinaccedilatildeo da forma347 A Loacutegica segundo Hegel representa o automovimento da ideacuteia
absoluta mas que nesse efetivo movimentar-se a ideacuteia estaacute presente apenas como aquilo que
impulsiona348 o processo e na medida em que este se cristaliza em formas determinadas Eacute
como se a ideacuteia jaacute natildeo mais aiacute estivesse assim como a palavra originaacuteria ldquoque eacute uma
exteriorizaccedilatildeo mas uma tal que como exterior imediatamente desaparece na medida
justamente que existerdquo349
Ainda que preliminarmente acabamos de observar a existecircncia de uma imbricaccedilatildeo muacutetua
entre forma e conteuacutedo na ideacuteia absoluta mas o que interessa agora considerar pela anaacutelise do
meacutetodo diz respeito a o que eacute essa forma que constitui a ideacuteia e aleacutem disso uma forma que
natildeo pode ser distinguida de seu conteuacutedo mas que na sua apresentaccedilatildeo como meacutetodo seu
conteuacutedo natildeo estaacute ainda desdobrado Isto somente ocorreraacute como decorrecircncia do processo de
determinaccedilatildeo dessa forma
Segundo Hegel o meacutetodo como forma e ideacuteia universal natildeo pode ser confundido
como um simples modo de conhecer entre outros Ele eacute dotado de uma abrangecircncia bem
maior e para ser mais preciso como ldquoa alma de toda objetividade e todo conteuacutedo
determinado somente tem sua verdade na formardquo350 O meacutetodo como veremos eacute bem mais
que um simples modo de conhecer que um simples modo de conhecer determinados
conteuacutedos Ele ldquoeacute o conceito que se sabe a si mesmo que tem a si mesmo por objeto como o
absoluto tanto subjetivo quanto objetivo por conseguinte como o puro corresponder do
conceito e de sua realidade como uma existecircncia que eacute ele (o conceito) mesmordquo351
347 Cf Ibidem p 237 trad p 560
348 Vale notar que Hegel tambeacutem chama a ideacuteia absoluta de supremo e uacutenico impulso (houmlchster und einziger Trieb) Cf Ibidem p 238 trad cit p 562
349 Cf GW 12 p 237 trad 560 (ldquodas eine Aeusserung ist aber eine solche die als Aeusseres unmittelbar wieder verschwunden ist indem sie istrdquo)
350 Ibidem p 237 trad p 561 (ldquo[hellip] die Seele aller Objectivitaumlt ist und aller sonst bestimmte Inhalt seine Wahrheit allein in der Form hat rdquo)
351 Ibidem p 238 trad p 561 (ldquoist daraus als der sich selbst wissende sich als das Absolute sowohl Subjective als Objective zum Gegenstande habende Begriff somit als das reine Entsprechen des Begriffs und seiner Realitaumlt als eine Existenz die er selbst ist hervorgegangen rdquo)
139
Mas antes de prosseguir na anaacutelise da Ideacuteia Absoluta talvez seja necessaacuterio retroceder
um pouco na Loacutegica e ainda que sumariamente tratar do significado do conceito de conceito
e tambeacutem do significado de ideacuteia na filosofia hegeliana Tal remissatildeo aos momentos da
Loacutegica no qual satildeo expostos e comentados esses termos eacute relevante na medida em que assim
ficaraacute mais claro o motivo pelo qual a Ideacuteia Absoluta ndash ou o meacutetodo ndash seja considerada o
conceito que sabe a si mesmo tanto subjetiva quanto objetivamente ou ainda que o meacutetodo
seja ldquoo movimento do proacuteprio conceito [] que o conceito eacute tudo e seu movimento eacute a
atividade universal absoluta o movimento que se determina e se realiza a si mesmordquo352
Natildeo pretendemos como haacute pouco foi dito efetuar uma anaacutelise pormenorizada do
conceito hegeliano de conceito Queremos antes apenas apresentaacute-lo em suas linhas gerais e
na medida que possamos entatildeo nos municiar dos elementos suficientes para compreender
porque a ideacuteia eacute o conceito adequado353 O conceito tal como veremos aqui eacute apenas o que
poderiacuteamos chamar de conceito em sentido estrito
Assim o conceito considerado de modo geral compotildee-se de trecircs momentos
universalidade particularidade e singularidade No seu processo de determinaccedilatildeo ou
diferenciaccedilatildeo ele se daacute cada um desses momentos que mesmo considerados cada um na sua
determinaccedilatildeo proacutepria cada um deles natildeo deixa de espelhar o conceito como um todo354 Esse
processo de determinaccedilatildeo eacute segundo Hegel um processo dialeacutetico fundado no proacuteprio
conceito e mediante o qual ele se produz a partir de si mesmo e assim passa agrave realidade355
Como o conceito portanto somente se torna aquilo que por ele proacuteprio foi gerado e nesse
sentido ele eacute livre em virtude dessa sua autodeterminaccedilatildeo
352 Ibidem p 238 trad p 562 (ldquodie Bewegung des Begriffs selbst [hellip] daszlig der Begriff Alles und seine Bewegung die allgemeine absolute Thaumltigkeit die sich selbst bestimmende und selbst realisirende Bewegung istrdquo)
353 Ibidem p 44 trad p 294
354 Ibidem p32 trad p 277 e tambeacutem GW 20 E sect 160 p 177 trad p 292
355 GW 12 p 25 trad p 267
140
A determinaccedilatildeo completa do conceito como conceito total se faz por essa
diferenciaccedilatildeo de si a partir de si mesmo que conforme Hegel eacute uma dupla negaccedilatildeo ndash negaccedilatildeo
da negaccedilatildeo ndash por meio da qual o conceito se relaciona a si e assim constitui uma absoluta
identidade consigo mesmo356 Independente do conceito posto no seu momento de
universalidade todo esse processo acima descrito tambeacutem pode ser chamado de universal Eacute o
que Hegel faz ao referi-lo como a universalidade do conceito357 Desse modo o universal
pode ser tanto o processo de determinaccedilatildeo no seu todo e efetuado mediante essa negatividade
absoluta358 quanto o universal que eacute momento do conceito nessa sua mesma determinaccedilatildeo
Para que fique claro o que eacute o conceito como nele ocorrem esses trecircs momentos
constituintes do mesmo eacute preciso compreender como essa dupla negaccedilatildeo nele opera Assim
o universal primeiramente eacute o indeterminado sua determinaccedilatildeo eacute esta mas ele entatildeo torna-se
particular ao se determinar ou seja ao se negar ndash primeira negaccedilatildeo ndash esse particular por sua
vez que adveacutem da negaccedilatildeo do universal eacute entatildeo negado ndash segunda negaccedilatildeo ou negaccedilatildeo da
negaccedilatildeo ndash e dessa maneira se potildee a singularidade359 A segunda negaccedilatildeo mediante a qual
surge a singularidade leva o conceito a tornar-se novamente universal mas um universal
superior um universal que em virtude dessa negatividade absoluta pela qual o conceito eacute
relaccedilatildeo a si saiu de si ao se determinar mas termina por retornar novamente para junto de
si360 Eacute importante deixar registrado que nesse seu sair de si isto eacute nesse determinar-se do
conceito a determinidade que surgiu eacute uma diferenccedila (Unterschied) mas uma diferenccedila que
adveio do proacuteprio determinar-se do conceito361
356 Ibidem p 33 trad p 279
357 Ibidem p 33 trad p 279
358 O universal no sentido indicado tambeacutem eacute chamado de potecircncia criadora (schoumlpferische Macht) como negatividade absoluta Cf GW 12 p 36 trad p 283
359 Ibidem p 35 trad p 281
360 ldquoOra o universal do conceito natildeo eacute simplesmente algo comum ante o qual o particular tem sua consistecircncia para si mas eacute antes o que se particulariza (o que se especifica) a si mesmo e em seu outro permanece em uma imperturbada clareza junto de si mesmordquo (ldquoNun aber ist das Allgemeine des Begriffs nicht bloszlig ein Gemeinschaftliches welchem gegenuumlber das Besondere seinen Bestand fuumlr sich hat sondern vielmehr das sich selbst Besondernde (Spezifizierende) und in seinem Anderen in ungetruumlbter Klarheit bei sich selbst Bleibenderdquo) Cf Werke 8 E sect163 Adendo p 311 trad p 297
361 GW 12 p 38 trad p 285
141
A singularidade nota Hegel ao mesmo tempo que leva o conceito a retornar a si
mesmo com a negaccedilatildeo da particularidade por meio da operaccedilatildeo da negaccedilatildeo da negaccedilatildeo
tambeacutem faz com que o conceito ao se singularizar se perca362 Essa perda do conceito
esclarece Hegel diz respeito ao fato de que ele ao tornar-se singular363 ele se potildee (treten) na
realidade efetiva (Wirklichkeit) Eacute como se o conceito deixasse de ser essa dialeacutetica oriunda de
sua proacutepria atividade e se tornasse algo soacutelido e concreto Pareceria que o conceito desse
modo natildeo mais pudesse levar adiante esse processo de autodeterminaccedilatildeo Cremos que seja
nesse sentido em que haacute uma espeacutecie de cristalizaccedilatildeo do conceito por meio de sua efetiva
penetraccedilatildeo na realidade que Hegel considere haver uma perda do conceito
O conceito poderiacuteamos entatildeo dizer torna-se realidade apenas quando eleva-se agrave ideacuteia
ldquoque eacute somente a unidade do conceito e da realidaderdquo364 Uma realidade que eacute criaccedilatildeo do
proacuteprio conceito365 Mas neste momento ainda temos apenas o conceito em sua abstraccedilatildeo
Conceito abstrato aqui deve ser entendido segundo Hegel portanto no sentido de que ldquoo
elemento do conceito eacute o pensar em geral e natildeo o sensiacutevel empiricamente concreto e de outra
parte enquanto natildeo eacute ainda a ideacuteiardquo366
E uma vez feitas as consideraccedilotildees acima a respeito da estrutura do conceito cabe
agora tratar do conceito que se torna realidade ou mais precisamente da ideacuteia
O conceito stricto sensu foi o que acabamos ver tem apenas em projeto aquilo de que
a ideacuteia seraacute a realizaccedilatildeo a produccedilatildeo da objetividade que adveacutem da proacutepria atividade do
conceito como ideacuteia
362 Ibidem p 51 trad p 303
363 Hegel tambeacutem se refere agrave singularidade como a determinidade determinada
364 GW 12 p 20 trad p 262 (ldquo[hellip] welche erst die Einheit des Begriffs und der Realitaumlt ist rdquo)
365 Ibidem p 36 trad p 283
366 Cf GW 20 E sect164 p 180 trad p 299 (ldquo[]als das Denken uumlberhaupt und nicht das empirisch concrete Sinnliche sein Element theils als er noch nicht die Idee istrdquo)
142
O conceito como ideacuteia eacute tanto subjetivo quanto objetivo ldquoA ideacuteia eacute o verdadeiro em si
e para si a unidade absoluta do conceito e da objetividade Seu conteuacutedo ideal natildeo eacute outro que
o conceito em suas determinaccedilotildees seu conteuacutedo real eacute somente a exposiccedilatildeo do conceito que
ele se daacute na forma de um ser-aiacute exterior e estando essa figura incluiacuteda na idealidade do
conceito na sua potecircncia assim se manteacutem na ideacuteiardquo367
A subjetividade da ideacuteia natildeo pode ser tomada como aquela que se relacionasse a um
objeto que fosse independente da proacutepria atividade subjetiva A determinaccedilatildeo da objetividade
eacute fruto da atividade subjetiva como negatividade absoluta O que eacute posto eacute posto pelo sujeito
torna-se diferente dele mas esse diferente retorna agrave identidade com o sujeito por meio dessa
negaccedilatildeo autoreferencial A objetividade assim natildeo estaacute afastada e separada do sujeito que a
ela se relaciona Natildeo temos aqui um sujeito como uma mera forma abstrata que exteriormente
se relacionasse a um objeto dado O sujeito se determina ndash e nesse sentido ele eacute autofinalidade
e impulso ndash e nessa sua atividade a objetividade toma forma e adquire subsistecircncia ao estar
perpassada pelo sujeito368 A objetividade dessa maneira tem sua consistecircncia e sentido
vinculada agrave atividade subjetiva da qual se originou e agrave qual retorna por meio desse processo
dialeacutetico imanente
O conceito realizado da ideacuteia se apresenta de modo condensado nessa unidade do
conceito e da objetividade na qual estaacute resolvido (aufgeloumlszligst) o processo de determinaccedilatildeo da
ideacuteia processo pelo qual a ideacuteia eacute ldquo [] a relaccedilatildeo da subjetividade sendo para si do simples
conceito e de sua objetividade distinta dela [] Ela eacute como essa relaccedilatildeo o processo de se
separar (dirimieren) na individualidade e na natureza inorgacircnica desta e de trazer novamente
essa por sob o poder (Gewalt) do sujeito e de retornar agrave primeira simples universalidade A
identidade da ideacuteia consigo mesma eacute uma e a mesma coisa com o processordquo369
367 Cf Ibidem E sect213 p 215 trad p 348 (ldquoDie Idee ist das Wahre an und fuumlr sich die absolute Einheit des Begriffs und der Objectivitaumlt Ihr ideeller Inhalt ist kein anderer als der Begriff in seinen Bestimmungen ihr reeller Inhalt ist nur seine Darstellung die er sich in der Form aumluszligerlichen Daseyns gibt und diese Gestalt in seiner Idealitaumlt eingeschlossen in seiner Macht so sich in ihr erhaumlltrdquo)
368 GW 12 p 176 trad p 475-476
369 Ibidem p 177 trad p 476-477 (ldquo[] die Beziehung der fuumlr sich seyenden Subjectivitaumlt des einfachen Befriffs und seiner davon unterschiedenen Objectivitaumlt [] Sie ist als diese Beziehung der Proceszlig sich in die Individualitaumlt und in deren unorganische Natur zu dirimiren und wieder diese unter die Gewalt des Subjects
143
A par das exposiccedilotildees efetuadas a respeito do conceito como conceito e da ideacuteia torna-
se mais faacutecil eacute o que cremos apreender o significado desse meacutetodo que eacute o movimento do
conceito em sua maior amplitude do conceito que se autodetermina e dessa maneira
perpassa e daacute forma agrave objetividade que como jaacute tivemos oportunidade de observar eacute fruto de
sua proacutepria atividade Pela atividade conceitual do meacutetodo atuante em cada coisa a razatildeo
pode por meio de si proacutepria encontrar e reconhecer a si mesma em tudo370
Cabe agora contudo avanccedilar propriamente na analise do meacutetodo isto eacute na anaacutelise
daquilo em que consiste a operaccedilatildeo efetiva desse meacutetodo por meio do qual o conceito se
realiza
Com efeito no iniacutecio de sua exposiccedilatildeo do ldquomecanismordquo de funcionamento do meacutetodo
Hegel nos chama a atenccedilatildeo para o fato de que as determinaccedilotildees que constituem o conceito e
suas relaccedilotildees tem de ser consideradas agora no seu significado de determinaccedilotildees do meacutetodo
As determinaccedilotildees do conceito a saber universalidade particularidade e singularidade eacute o
que adiante veremos reaparecem como as determinaccedilotildees que articulam o meacutetodo
A universalidade
Assim para comeccedilar do comeccedilo como jaacute o proacuteprio Hegel pede371 eacute preciso que
compreendamos o que eacute esse comeccedilo a partir do qual se inicia a determinaccedilatildeo do conceito
como ideacuteia absoluta
No comeccedilo o que pode entatildeo haver No comeccedilo apenas haacute um imediato e um
imediato que como determinaccedilatildeo conceitual ldquotem o sentido e a forma da universalidade
abstratardquo372
zuruumlckzubringen und zu der ersten einfachen Allgemeinheit zuruumlckzukehren Die Identitaumlt der Idee mit sich selbst ist ein mit dem Processerdquo)
370 Ibidem p 238 trad p 562
144
Anteriormente tivemos oportunidade de observar373 na importante questatildeo acerca do
comeccedilo da filosofia que somente torna-se possiacutevel cogitar de um comeccedilo que natildeo seja
arbitraacuterio e nesta medida seria ele totalmente vulneraacutevel agrave criacutetica ceacutetica se esse comeccedilo
implique a total falta de pressuposiccedilotildees ou como prefere Hegel que jaacute natildeo seja um mediado
e por isso entatildeo estaria em relaccedilatildeo com um outro A mediaccedilatildeo envolve a relaccedilatildeo de um para
com um outro Se pensarmos por conseguinte no tropo da relatividade o que faz o ceacutetico
Ele mostra por meio desse tropo que as coisas em geral (natildeo importa se sensiacuteveis ou
inteligiacuteveis) acabam aparecendo sempre numa determinada relaccedilatildeo entre elas que essa
relatividade de todas as coisas afasta a hipoacutetese da constituiccedilatildeo de algo natildeo-relativo logo
absoluto Nesse sentido compreendemos a preocupaccedilatildeo de Hegel com a necessidade de um
comeccedilo que natildeo seja mediado Por isso a declaraccedilatildeo tanto no comeccedilo da Ciecircncia da Loacutegica
quanto no seu uacuteltimo capiacutetulo A Ideacuteia Absoluta a respeito do comeccedilo consistir em um
imediato
O imediato eacute sem pressupostos portanto ele natildeo eacute posto pois caso assim o fosse
seria um mediado Mas se ele eacute imediato diria o ceacutetico ele eacute um posto e como tal eacute possiacutevel
que um outro seja imediatamente contraposto a ele com o mesmo direito Ocorre aqui no
entanto que Hegel natildeo pensa o imediato nesses termos Imediato segundo ele eacute o abstrato e
o completamente indeterminado Se ele eacute imediato eacute o que o proacuteprio significado da palavra
nos diz eacute porque eacute natildeo-mediado A mediaccedilatildeo envolve a determinaccedilatildeo logo se temos o
imediato temos o indeterminado No comeccedilo soacute temos o indeterminado ldquo[] porque o
comeccedilo como comeccedilo do pensar deve ser totalmente abstrato universal totalmente forma
sem nenhum conteuacutedordquo374
Esta universalidade que constitui o comeccedilo por ser imediata e indeterminada
possuiraacute e de acordo com a discussatildeo em torno do comeccedilo da Loacutegica375 tambeacutem no meacutetodo
o significado do ser376
371 Cf Ibidem p 239 trad p 563
372 Ibidem p 239 trad p 563 (ldquo[] den Sinn und die Form abstracter Allgemeinheit hatrdquo)
373 Ver a propoacutesito nossa discussatildeo a respeito do comeccedilo da filosofia agraves paacuteginas 132-137
374 GW 21 p 60 trad p 95 (ldquo[hellip] weil der Anfang als des Denkens ganz abstract ganz allgemein ganz Form ohne allen Inhalt seyn sollrdquo
375 Cf GW 21 ldquoCom que tem de ser feito o comeccedilo da ciecircnciardquo (ldquoWomit muszlig der Anfang der Wissenschaft gemacht werdenrdquo) pp 53-65 trad pp 87-101
145
Nessa aproximaccedilatildeo da universalidade imediata com o ser haacute dois aspectos a serem
considerados em primeiro lugar o fato do meacutetodo ser o ponto de chegada de toda a Loacutegica e
ao mesmo tempo seu fundamento em segundo lugar o caraacuteter abstrato e indeterminado do
puro ser
Com respeito ao primeiro aspecto haacute que se lembrar o que jaacute foi comentado acerca do
fundamento se constituir apenas ao final do processo de determinaccedilatildeo do conceito na
Loacutegica377 O fundamento natildeo pode ser dado no comeccedilo porque o comeccedilo tem de ser o
imediato e por conseguinte indeterminado O comeccedilo que jaacute fosse o fundamento pareceria
segundo Hegel uma espeacutecie de pressuposiccedilatildeo arbitraacuteria De fato o fundamento estaacute presente
e atuante no iniacutecio todavia sua posiccedilatildeo efetiva como fundamento precisa ser justificada e
essa justificaccedilatildeo na sua completude necessita do desdobramento dialeacutetico que constitui todo o
percurso da Loacutegica ateacute que se atinja o fundamento Nesse ponto de chegada que eacute o
fundamento faz-se a conexatildeo com o comeccedilo E no comeccedilo noacutes temos o puro ser imediato
que vai se determinar de acordo com esse meacutetodo (ou fundamento) que eacute imanente ao
mesmo Desse modo eacute o que nos parece fica em parte explicada a aproximaccedilatildeo que Hegel
faz da universalidade imediata que constitui o meacutetodo em seu comeccedilo com o ser
Em relaccedilatildeo ao segundo aspecto o comeccedilo se faz com o ser porque como jaacute vimos ele
eacute a completa falta de determinaccedilatildeo sem nenhuma mediaccedilatildeo e portanto natildeo relacionado a
nenhum outro Esse comeccedilo em virtude de sua indeterminaccedilatildeo e abstraccedilatildeo eacute um comeccedilo
absoluto ldquoo que constitui o comeccedilo o comeccedilo mesmo tem de ser tomado por conseguinte
como um algo que natildeo pode ser analisado tem de ser tomado em sua simples imediatez natildeo
preenchida portanto como ser como o completamente vaziordquo378
O ser diriacuteamos por nossa conta eacute essa determinidade da indeterminaccedilatildeo que preenche
os requisitos para que se constitua em comeccedilo O ser na sua absoluta vacuidade cumpre a
contento a sua obrigaccedilatildeo de constituir o ponto zero do processo de determinaccedilatildeo do conceito
loacutegico
376 Cf GW 12 p 239 trad p 564
377 Ver a respeito pp 132-137
378 GW 21 p 62 trad p 97 (ldquoWas den Anfang macht der Anfang selbst ist daher als ein Nicht-analysirbares in seiner einfachen unerfuumlllten Unmittelbarkeit also als Seyn als das ganz Leere zu nehmenrdquo)
146
E o que temos entatildeo no ser que estaacute no comeccedilo Apenas a relaccedilatildeo abstrata a si
mesmo379 O ser assim como o universal e como universal imediato eacute a negaccedilatildeo completa de
toda determinaccedilatildeo e na medida em que nega todo outro volta-se para si e entatildeo apenas se
relaciona a si mesmo Essa relaccedilatildeo abstrata a si constitui-se em virtude dessa completa falta
de determinaccedilatildeo
Dessa indeterminaccedilatildeo e abstraccedilatildeo do ser o meacutetodo pode cumprir ldquoa exigecircncia de
realizaccedilatildeo do conceito em geral que natildeo reside no proacuteprio comeccedilo mas que eacute antes a meta e
a tarefa de todo ulterior desenvolvimento do conhecerrdquo380
Mas se o ser eacute o imediato que na sua relaccedilatildeo a si eacute vazia e inteiramente
indeterminada como se pode efetivamente dar esse processo de determinaccedilatildeo pelo qual o
conceito se realiza
Segundo Hegel o ser tem a determinidade de ser simples e universal e em virtude
dessa determinidade ele eacute deficiente (mangelhaft) Eacute o meacutetodo como forma objetiva imanente
que faz com que esse comeccedilo imediato deficiente seja dotado do impulso que o faz se
conduzir adiante no processo de determinaccedilatildeo desse ser inicial381
Jaacute vimos quando tratamos do significado do conceito de conceito382 que no iniacutecio do
seu processo ndash em si mesmo dialeacutetico ndash de autodeterminaccedilatildeo o conceito como universal por
sua proacutepria abstraccedilatildeo eacute incompleto383 E este universal abstrato do iniacutecio do meacutetodo que
tambeacutem eacute conceito eacute do mesmo modo incompleto Essa incompletude do universal se
apresenta na forma de uma negaccedilatildeo que o afeta384 Ora essa negaccedilatildeo que o afeta eacute a mesma
que estaacute presente na determinaccedilatildeo do ser no iniacutecio da Loacutegica Natildeo nos esqueccedilamos que o
universal abstrato como Hegel nos indicou tem o mesmo significado que o ser385 Tanto o ser
379 Cf GW 12 p 239 trad p 564
380 Ibidem p 240 trad p 564 (ldquo[] die Foderung der Realisirung des Begriffs uumlberhaupt gemeynt welche nicht im Anfange selbst liegt sondern vielmehr das Ziel und Geschaumlfte der ganzen weitern Entwicklung des Erkennens istrdquo)
381 Cf Ibidem p 240 trad p 565
382 Ver a respeito pp 139-141
383 Cf GW 12 p 24 trad p 267
384 Cf Ibidem p 240 trad p 565
385 Cf Ibidem p 239 trad p 564
147
como o universal satildeo indeterminados e completamente vazios logo eles natildeo satildeo nada Seraacute
somente no processo determinaccedilatildeo desse universal nele mesmo que esse universal inicial se
torna concreto e deixa para traacutes essa unilateralidade que tem como abstrato386 Se no iniacutecio
natildeo podemos ter uma totalidade concreta isto se deve ao caraacuteter deficiente do comeccedilo que
somente teraacute condiccedilotildees de ser sanado na determinaccedilatildeo progressiva do conceito de acordo
com o meacutetodo absoluto que ldquotoma o determinado como seu proacuteprio objeto visto que ele (o
meacutetodo) eacute o princiacutepio e a alma imanente delerdquo387
De acordo com as anaacutelises precedentes natildeo haacute como supor que desde o iniacutecio do
processo o absoluto esteja posto Eacute justamente isso que Hegel faz questatildeo de ressaltar O
iniacutecio eacute apenas um momento abstrato e unilateral Soacute com a autodeterminaccedilatildeo do universal o
conceito deixa de ser em-si e tornar-se para-si de modo que o universal seja igualmente
singular e sujeito388 ldquoSomente em seu acabamento (Vollendung) ele eacute o absolutordquo389
Do universal para o particular
Nesse processo de determinaccedilatildeo do conceito da ideacuteia absoluta (ou meacutetodo) o
universal imediato torna-se um particular ldquo[] o imediato inicial eacute posto como mediado
relacionado a um outro []rdquo390 Temos aqui o primeiro negativo isto eacute o particular que nega
esse universal imediato Esse segundo que surge o particular na sua negaccedilatildeo desse primeiro
no processo de determinaccedilatildeo o imediato conserva-o e o manteacutem em si391 Nessa negaccedilatildeo natildeo
ocorre portanto adverte Hegel aquilo que usualmente eacute resultado da dialeacutetica como meacutetodo
386 ldquoNatildeo haacute tambeacutem por isso seja na realidade efetiva ou em pensamento nada tatildeo simples e tatildeo abstrato como usualmente se imaginardquo Cf GW 12 p 240 trad p 565 (ldquoEs gibt deswegen auch es sey in der Wirklichkeit oder in Gedanken kein so Einfaches und so Abstractes wie man es sich gewoumlhnlich vorstelltrdquo)
387 GW 12 p 241 trad p 567 (ldquo[hellip] nimmt das Bestimmte aus ihrem Gegenstande selbst da sie selbst dessen immanentes Princip und Seele istrdquo)
388 GW 12 p 241 trad p 566
389 GW 12 p 241 trad p 566 (ldquoNur in seiner Vollendung ist es das Absoluterdquo)
390 GW 12 p 244 trad p 571 (ldquo[hellip] das zuerst Unmittelbare hiemit als Vermitteltes bezogen auf ein andres [hellip] ist rdquo)
391 Ibidem p 245 trad p 571
148
subjetivo a saber que a negaccedilatildeo que adveacutem seja meramente vazia o negativo vazio ou o
nada sem nenhum conteuacutedo Abrindo um parecircnteses uma espeacutecie de negaccedilatildeo que ocorre por
exemplo no ceticismo392 No que respeita agrave negaccedilatildeo atuante no meacutetodo o que foi negado
para que surgisse o particular continua a determinaacute-lo Como mediado o particular eacute fruto
dessa determinaccedilatildeo do universal como particular
Mas o particular acrescenta Hegel natildeo eacute apenas a determinaccedilatildeo negativa ou mediada
ela eacute aleacutem disso a mediadora (die Vermittelnde)393 Aqui ainda contudo natildeo nos deteremos
mais pormenorizadamente nesse aspecto de mediador que estaacute embutido no particular
Quando tratarmos mais a frente da negaccedilatildeo da negaccedilatildeo aiacute entatildeo ficaraacute claro porque estamos
aqui diante de uma determinaccedilatildeo mediadora Antes disso interessa inicialmente a Hegel
indicar que essa segunda determinaccedilatildeo o particular eacute o outro de um outro Nesse sentido
Hegel denomina o particular como sendo em sua verdade uma relaccedilatildeo ou relacionamento
(Beziehung oder Verhaumlltniszlig)394 Realmente haacute uma relaccedilatildeo da primeira com a segunda
determinaccedilatildeo e eacute preciso segundo Hegel insistir que essa relaccedilatildeo natildeo eacute meramente exterior
como se esse outro fosse indiferente (gleichguumlltig) com respeito ao primeiro395 A relaccedilatildeo com
seu outro isto eacute da segunda determinaccedilatildeo com a primeira constitui uma relaccedilatildeo que se daacute
num uacutenico ldquoobjetordquo O universal que se determina em um outro o particular e assim sai de si
natildeo deixa por esse mesmo motivo de estar em um outro que eacute parte dele mesmo A relaccedilatildeo
entre o positivo e o negativo natildeo eacute jaacute dissemos de exterioridade ao contraacuterio eles satildeo um soacute
o positivo contido no negativo que veio a ser no processo de determinaccedilatildeo Esse
392 ldquoTrata-se com efeito do ceticismo que vecirc sempre no resultado o puro nada tatildeo-somente e abstrai do fato de que esse nada eacute determinadamente o nada daquilo do qual ele procede Mas o nada considerado apenas como o nada daquilo do qual procede eacute na realidade o resultado verdadeiro Eacute pois um nada determinado e possui um conteuacutedo O ceticismo que termina com a abstraccedilatildeo do nada e da vacuidade natildeo pode avanccedilar aleacutem dessa abstraccedilatildeo mas deve esperar que algo de novo se lhe ofereccedila para lanccedilaacute-lo no mesmo abismo vaziordquo No original ldquoSie ist nemlich der Skepticismus der in dem Resultate nur immer das reine Nichts sieht und davon abstrahirt daszlig diszlig Nichts bestimmt das Nichts dessen ist woraus es resultirt Das Nichts ist aber nur genommen als das Nichts dessen woraus es herkoumlmmt in der That das wahrhafte Resultat es ist hiemit selbst ein bestimmtes und hat einen Inhalt Der Skepticismus der mit der Abstraction des Nichts oder der Leerheit endigt kann von dieser nicht weiter fortgehen sondern muszlig es erwarten ob und was ihm etwa neues sich darbietet um es in denselben leeren Abgrund zu werfenrdquo In GW 9 p 57 trad Vaz p 51
393 Cf GW 12 p 245 trad p 572
394 Cf Ibidem p 245 trad p 572
395 Cf Ibidem p 245 trad p 572
149
relacionamento umbilical dos opostos eacute segundo Hegel ldquoa contradiccedilatildeo a dialeacutetica posta de si
proacutepria (da determinaccedilatildeo)rdquo396
Logo a seguir Hegel trata do significado que essa dialeacutetica assume tanto considerada
pelo lado do universal quanto considerada pelo lado do particular Conveacutem de passagem
notar que o que preside esse processo mas ainda sem ser citada eacute a negatividade absoluta
Assim o que temos no universal imediato ou como tambeacutem a ele se refere Hegel no
conceito em si Temos nesse momento inicial em geacutermen o negativo e o momento dialeacutetico
presente nesse iniacutecio consiste nisto ldquoque a diferenccedila (Unterschied) que ele (o conceito)
conteacutem em si nele estaacute postardquo397
Com respeito ao outro o efetivamente determinado a diferenccedila o momento dialeacutetico
consiste na posiccedilatildeo da unidade que nele estaacute contida mas que ainda natildeo estaacute posta398 Ela a
unidade se potildee com a negaccedilatildeo do primeiro negativo o particular A negaccedilatildeo da negaccedilatildeo eacute a
suspensatildeo da contradiccedilatildeo399 Na terminologia do conceito poderiacuteamos dizer que a suspensatildeo
da contradiccedilatildeo consiste na posiccedilatildeo da singularidade por meio da reflexatildeo do conceito em si
mesmo a partir de sua determinidade400 Essa atividade do conceito eacute conduzida pela
negatividade absoluta401 que faz com que tenhamos na singularidade o retorno ao universal
soacute que agora um universal superior natildeo mais imediato e vazio mas agora efetivamente
concreto
Na consideraccedilatildeo desse silogismo que eacute o movimento do conceito observa Hegel a
primeira premissa corresponde ao momento da universalidade e agrave segunda premissa ao
momento da singularidade Ditas as coisas desse modo torna-se um tanto vaga a compreensatildeo
do que sejam essa universalidade e singularidade da primeira e da segunda premissas de todo
o silogismo Aleacutem disso Hegel se refere agrave primeira premissa como analiacutetica e a segunda
396 Cf Ibidem p 245 trad p 572 (ldquo[hellip] der Widerspruch die gesetzte Dialektik ihrer selbst rdquo) Ver tambeacutem a propoacutesito da contradiccedilatildeo pp 84-88
397 Cf Ibidem pp 245-246 trad p 572 (ldquodaszlig die Unterschied den es an sich enthaumllt in ihm gesetzt wirdrdquo)
398 Cf Ibidem p 246 trad p 572
399 Cf Ibidem p 246 trad p 573
400 Cf Ibidem p 49 trad p 300
401 Ou como ainda a denomina Hegel o ponto de virada (der Wendungspunkt) do movimento do conceito Cf Ibidem p 246 trad p 573
150
como sinteacutetica Mas eacute justamente com base nessa dupla denominaccedilatildeo das premissas
denominaccedilatildeo que tambeacutem eacute utilizada para o meacutetodo em si mesmo que talvez fique mais claro
o significado de universalidade e singularidade quando referidas agraves premissas do silogismo
Com efeito o meacutetodo por um lado eacute analiacutetico pois ldquoa ulterior determinaccedilatildeo de seu
universal inicial se encontra somente nele eacute a absoluta objetividade do conceito da qual ele
(o meacutetodo) eacute a certezardquo402 por outro lado o meacutetodo eacute sinteacutetico ldquona medida em que seu
objeto determinado imediatamente como universal simples mediante a determinidade que ele
proacuteprio tem na sua imediatez e universalidade mostra-se como um outrordquo403
Detenhamo-nos primeiro no aspecto analiacutetico do meacutetodo Por ele nossa atenccedilatildeo natildeo
estaacute voltada como no caso do aspecto sinteacutetico para a determinaccedilatildeo efetiva do universal esse
mostrar-se como um outro do mesmo Importa antes aqui salientar que o meacutetodo eacute
absolutamente objetivo em virtude dessa sua capacidade inerente de a partir de si gerar seu
proacuteprio progredir e desenvolvimento Na sua relaccedilatildeo negativa a si o meacutetodo daacute andamento a
esse processo de determinar-se que ao final faz com que se torne novamente idecircntico e igual
a si Dessa maneira ele eacute universal404 Numa outra passagem Hegel indica com respeito ao
caraacuteter analiacutetico do meacutetodo que ele representa a proacutepria relaccedilatildeo no conceito O que isto pode
significar Significa que o meacutetodo como a proacutepria relaccedilatildeo estaacute pensado na sua unidade ou
melhor dizendo nessa relaccedilatildeo negativa a si que se resolve no universal Ao chamar o meacutetodo
de analiacutetico Hegel eacute o que nos parece pretende pocircr o acento nessa unidade do conceito que
eacute o universal e uma unidade que ao mesmo tempo representa esse autorelacionar-se
(Selbstbezuumlglichkeit) do conceito todavia num acircmbito global
Com respeito agora ao outro aspecto o acento recai natildeo nessa unidade e identidade a
si do conceito que conteacutem em si como virtualidade a determinaccedilatildeo mas sim no proacuteprio
determinar-se do universal e com isso nesse seu fazer-se outro por meio da negaccedilatildeo ateacute
constituir-se numa singularidade Aqui importa fundamentalmente aponta para a efetiva
402 Cf Ibidem p 242 trad p 567 (ldquodie weitere Bestimmung ihres anfaumlnglichen Allgemein ganz allein in ihm findet ist die absolute Objectivitaumlt des Begriffes deren Gewiszligheit sie istrdquo)
403 Cf Ibidem p 242 trad p 567 (ldquoindem ihr Gegenstand unmittelbar als einfaches allgemeines bestimmt durch die Bestimmtheit die er in seiner Unmittelbarkeit und Allgemeinheit selbst hat als ein Anderes sich zeigtrdquo)
404 Cf Ibidem p 16 trad p 255
151
atividade de determinaccedilatildeo a partir da qual um outro concretamente surge e se singulariza no
movimento da dupla negaccedilatildeo
O procedimento dialeacutetico do meacutetodo consiste nisso a saber nessa implicaccedilatildeo muacutetua
das determinaccedilotildees do analiacutetico e do sinteacutetico nele presentes Haacute portanto tanto esse
movimento de sair de si do universal inicial e pelo qual se determina como o outro de si
mesmo (o momento sinteacutetico) quanto o retorno ao universal ou agrave unidade de si a partir do
processo de determinaccedilatildeo (momento analiacutetico)405
Dentro do contexto das anaacutelises precedentes talvez fique mais faacutecil entender porque
1) a primeira premissa do silogismo eacute considerada analiacutetica e corresponde ao momento da
universalidade 2) a segunda premissa eacute considerada sinteacutetica e corresponde ao momento da
singularidade
Com relaccedilatildeo agrave primeira premissa Hegel sublinha a universalidade objetiva da mesma
ao notar que o imediato inicial se relaciona imediatamente ao seu outro no qual passou e com
o qual estaacute assim identificado Na universalidade da primeira premissa sabe-se que haacute uma
relaccedilatildeo de um para com seu outro pois a unidade adveacutem dessa relaccedilatildeo e como diz Hegel
dessa comunicaccedilatildeo (Mittheilung)406 E o momento dialeacutetico desse universal consiste
justamente em pocircr essa diferenccedila que aiacute estaacute contida mas de modo latente407
Eacute na segunda premissa que essa diferenccedila estaacute posta a partir dessa relaccedilatildeo do negativo
consigo mesmo a relaccedilatildeo constitutiva dessa mesma premissa Determinada como
singularidade originada portanto da negaccedilatildeo do particular (a segunda negaccedilatildeo) essa
premissa como singularidade aparece inicialmente como se na relaccedilatildeo com o outro ela fosse
apenas por si e diversa408 excludente da outra determinaccedilatildeo a ela relacionada Como sinteacutetica
405 Eacute uacutetil citar neste momento o comentaacuterio de Rainer Schaumlfer a respeito desse vai-e-veacutem entre o sinteacutetico e o analiacutetico no desenvolvimento dialeacutetico do meacutetodo ldquo Dialeacutetica eacute o duplo conhecimento que algo eacute igual a si (momento analiacutetico) na medida em que se altera (sich veraumlndert) (momento sinteacutetico) e que algo ao se alterar eacute consigo mesmo igual isto eacute consigo mesmo torna-se igual Essa constituiccedilatildeo simultacircnea da mesmidade (Selbigkeit) na outridade (Andersheit) e da outridade na mesmidade mostra que o processo analiacutetico natildeo eacute pensaacutevel sem o sinteacutetico e o sinteacutetico natildeo eacute pensaacutevel sem o analiacuteticordquo In Schaumlfer R Die Dialektik und ihrehellip p 259
406 Cf GW 12 p 246 trad p 574
407 Cf Ibidem p 245-246 trad p 572
408 A singularidade como diversa aqui deve ser entendida de acordo com a determinaccedilatildeo reflexiva da diversidade exposta agraves pp 108-113
152
a segunda premissa traz ao primeiro plano esse passar de um no outro a realizaccedilatildeo da divisatildeo
de si do imediato com a posiccedilatildeo do outro409 Esse outro posto pela atividade do conceito
aparece como por si diverso e excludente pois antes de tornar-se singularidade ele antes eacute
particular O particular surge portanto como um diverso com respeito ao universal imediato
contudo no processo da dupla negaccedilatildeo esse particular se determina como singular e como
suspensatildeo da contradiccedilatildeo entre universal imediato e particular retorna agrave unidade
A volta agrave unidade corresponde a um retorno agrave imediatez a partir da mediaccedilatildeo ldquoo
imediato poreacutem mediante a suspensatildeo da mediaccedilatildeo o simples por meio do suspender da
diferenccedila o positivo mediante o suspender do negativo o conceito que se realiza mediante o
ser-outro e mediante o suspender dessa realidade se reuniu consigo e produziu sua realidade
absoluta sua relaccedilatildeo simplesrdquo410
A divisatildeo formal do meacutetodo desde o primeiro imediato ateacute o novo retorno ao
imediato compotildee-se segundo Hegel de quatro partes o primeiro termo eacute o universal
imediato inicial o segundo corresponde ao primeiro negativo ou o particular que se
determina pela negaccedilatildeo do universal o terceiro termo corresponde ao segundo negativo ou a
negaccedilatildeo da negaccedilatildeo por fim temos o quarto termo que natildeo eacute nada mais do que o terceiro
409 ldquo[hellip] porque ela eacute a relaccedilatildeo do diverso como tal ao seu diversordquo (ldquo[] weil sie die Beziehung des Unterschiedenen als solchen auf sein Unterschiedenes istrdquo) Cf GW 12 p 246 trad p 574
410 Cf Ibidem p 248 trad p 575 (ldquodas Unmittelbare aber durch Aufhebung der Vermittlung das Einfache durch Aufheben des Unterschiedes das Positive durch Aufheben des Negativen der Begriff der sich durch das Andersseyn realisirt und durch Aufheben dieser Realitaumlt mit sich zusammengegangen und seine absolute Realitaumlt seine einfache Beziehung auf sich hergestellt hatrdquo) Ou ainda ldquoComo o inicial eacute o universal o resultado eacute entatildeo o singular concreto sujeito o que aquele eacute em si este eacute agora do mesmo modo o para si o universal estaacute posto no sujeito Os dois primeiros momentos da triplicidade satildeo os momentos abstratos natildeo-verdadeiros que por isso mesmo satildeo dialeacuteticos e por meio dessa sua negatividade se fazem sujeito O conceito eacute para noacutes inicialmente natildeo soacute o universal sendo em si como o negativo sendo para si e como tambeacutem o terceiro sendo em si e para si o universal que atravessa todos os momentos do silogismo mas o terceiro [termo] eacute a conclusatildeo na qual ele se mediatiza consigo mesmo mediante sua negatividadedeste modo eacute posto para si como o universal e idecircntico de seus momentosrdquo (ldquoWie das Anfangende das Allgemeine so ist das Resultat das Einzelne Concrete Subject was jenes an sich ist dieses nun ebensosehr fuumlr sich das Allgemeine ist im Subjecte gesetzt Die beyden ersten Momente der Triplicitaumlt sind die abstracten unwahren Momente die eben darum dialektisch sind und durch diese ihre Negativitaumlt sich zum Subjecte machen Der Begriff selbst ist fuumlr uns zunaumlchst sowohl das An sich seyende Allgemeine als dar Fuumlr sich seyende Negative als auch das Dritte an und fuumlr sich seyende das Allgemeine welches durch alle Momente des Schlusses hindurchgeht aber das Dritte ist der Schluszligsatz in welchen er durch seine Negativitaumlt mit sich selbst vermittelt hiemit fuumlr sich als das Allgemeine und Identische seiner Momente gesetzt ist rdquo) In Ibidem p 248 trad p 575
153
apenas que no seu retorno agrave imediatez portanto como segundo imediato ele pode aparecer de
um ponto de vista meramente didaacutetico como quarto nesse processo de determinaccedilatildeo411
O meacutetodo e sua determinaccedilatildeo como sistema
Uma vez feita a anaacutelise do modus operandi do meacutetodo na Ideacuteia Absoluta Hegel toca
entatildeo num tema de fundamental importacircncia a saber a constituiccedilatildeo do sistema Mais uma vez
ele retoma o diaacutelogo com os ceacuteticos pois uma de suas principais preocupaccedilotildees agora talvez a
principal eacute mostrar como na constituiccedilatildeo do sistema a partir do procedimento dialeacutetico
inscrito no meacutetodo a filosofia especulativa natildeo daacute nenhum passo atraacutes de modo que
permitisse ainda novamente abrir a guarda perante o ceacutetico
Assim do percurso de determinaccedilatildeo do conceito observado no meacutetodo a que
chegamos no final Como pudemos ver a um novo universal e no qual todo o processo se
condensa numa nova identidade que ao mesmo tempo eacute uma nova imediatez412 Seraacute a partir
desse novo imediato que justamente pela suspensatildeo da contradiccedilatildeo daacute origem a essa
determinidade simples que teremos um novo comeccedilo e daiacute entatildeo o meacutetodo se amplia na
forma de um sistema413
Isto posto a questatildeo que a nosso ver Hegel potildee e procura responder diz respeito ao
seguinte esse novo comeccedilo a que se chega adveacutem do processo de autodeterminaccedilatildeo do
meacutetodo e em virtude dessa mesma determinaccedilatildeo eacute um comeccedilo determinado Perante essa
determinidade do resultado o proacuteprio comeccedilo inicial que eacute indeterminado tambeacutem eacute um
determinado logo ldquonatildeo deve ser tomado como um imediato mas antes como mediado e
deduzidordquo414 Ora o comeccedilo como mediado e deduzido natildeo seria um comeccedilo destituiacutedo de
pressupostos e seria assim tatildeo arbitraacuterio quanto qualquer outro comeccedilo que a ele se
411 Ibidem p 247 trad p 574
412 Ibidem p 248 trad p 576
413 Ibidem p 248 trad p 576
414 Ibidem p 249 trad p 577
154
contrapusesse com o mesmo direito Hegel se refere especificamente agrave possiacutevel ocorrecircncia de
uma regressatildeo ao infinito em virtude desse caraacuteter mediado do comeccedilo415
Como combater essa possiacutevel criacutetica Abrindo um parecircnteses uma criacutetica sim
possiacutevel mas que natildeo deixa de ser mesmo assim resultado de uma maacute compreensatildeo da
filosofia especulativa Pelo menos da perspectiva hegeliana O fato eacute que Hegel se adianta em
relaccedilatildeo a seus possiacuteveis criacuteticos a nossos olhos fundamentalmente aqui o ceacutetico na tentativa
de natildeo deixar duacutevidas ou perplexidades quanto aos seus propoacutesitos Mas de volta agrave pergunta
acima feita a resposta de Hegel vai no sentido de mostrar que estamos num outro acircmbito que
aquele da filosofia do entendimento ldquoJaacute foi mostrado repetidas vezes que o progresso
infinito em geral pertence agrave reflexatildeo carente de conceito o meacutetodo absoluto que tem o
conceito como sua alma e conteuacutedo natildeo pode levar ao mesmordquo416
O ponto principal da resposta de Hegel agrave criacutetica referente ao caraacuteter determinado do
comeccedilo seja ele o comeccedilo inicial ou o comeccedilo que resulta da dialeacutetica do conceito baseia-se
na jaacute mencionada417 indeterminaccedilatildeo do conceito e sua consequumlente imediaccedilatildeo A
determinaccedilatildeo do comeccedilo e que impede ao mesmo ser considerado um mediado apresenta-se
por meio de sua indeterminaccedilatildeo Nele natildeo haacute nenhum conteuacutedo E natildeo haver conteuacutedo ou ndash o
que eacute o mesmo ndash ser indeterminado significa que natildeo seja admissiacutevel nenhuma regressatildeo
Aleacutem disso o conteuacutedo somente se origina da proacutepria determinaccedilatildeo da forma absoluta que eacute o
meacutetodo O indeterminado passa para o determinado mas o indeterminado apesar de ser um
determinado perante o outro a saber o determinado que dele resulta natildeo eacute contudo ainda a
mediaccedilatildeo no sentido de que fosse um determinado ao qual um outro pudesse ser contraposto
E no caso do comeccedilo que surge da dialeacutetica do conceito Como veremos a mesma
coisa se passa O comeccedilo imediato se determina como um outro e na negatividade absoluta
da relaccedilatildeo a si a contradiccedilatildeo posta eacute suspensa e assim se restabelece a primeira
indeterminidade418 O novo comeccedilo eacute sim um comeccedilo mediado e determinado mas ele eacute tal
somente no que se refere a ser resultado desse processo que ele traz conservado dentro dele
Esse novo comeccedilo eacute uma nova unidade que por isso mesmo constitui uma nova imediaccedilatildeo e
415 Ver de modo geral ibidem p 249 trad pp 577-578
416 Ibidem p 249 trad pp 577-578
417 Ver a respeito pp 143-147
418 Cf GW 12 p 250 trad p 579
155
dessa maneira estatildeo dadas as condiccedilotildees para que o processo siga adiante ldquoA determinidade
que era resultado eacute como se mostrou por causa da forma da simplicidade na qual ela
convergiu um novo comeccedilo na medida em que ele eacute diferente de seu [comeccedilo] precedente
justamente mediante essa determinidade o conhecer se impele (sich fortwaumllzen) de conteuacutedo
em conteuacutedo adianterdquo419 Desse novo comeccedilo vai portanto repetir-se o mesmo processo
dialeacutetico e que levaraacute ao surgimento de uma outra determinaccedilatildeo mais rica do que a anterior
ldquoO conceito no meacutetodo absoluto manteacutem-se no seu ser-outro o universal na sua
particularizaccedilatildeo no juiacutezo e na realidade ele eleva a massa inteira do seu conteuacutedo precedente
a cada degrau da sua determinaccedilatildeo ulterior e natildeo somente natildeo perde nada atraveacutes do seu
progredir dialeacutetico nem deixa nada para traacutes senatildeo que carrega tudo consigo e se enriquece e
se condensa dentro de sirdquo420
Eacute por meio desse processo que partindo do comeccedilo indeterminado se chega ao
fundamento de todo o processo Ao mesmo tempo que nos afastamos do comeccedilo estamos
novamente retornando a ele Hegel chama esse procedimento de fundamentaccedilatildeo regressiva do
comeccedilo421 Fundamento que somente eacute alcanccedilado no seu processo de justificaccedilatildeo a partir da
determinaccedilatildeo progressiva do comeccedilo indeterminado Nesse processo progressivo e ao mesmo
tempo regressivo de fundamentaccedilatildeo o meacutetodo se entrelaccedila (sich schlingt) num ciacuterculo422 E
419 Cf Ibidem p 250 trad p 579 (ldquoDie Bestimmheit welche Resultat war ist wie gezeigt worden um der Form der Einfachheit willen in welche sie zusammengegangen selbst ein neuer Anfang indem er von seinem vorhergehenden durch eben diese Bestimmtheit unterschieden ist so waumllzt sich das Erkennen von Inhalt zu Inhalt fortrdquo)
420 Cf Ibidem p 250 trad p 579 (ldquoDer Begriff in der absoluten Methode erhaumllt sich in seinem Andersseyn das Allgemeine in seiner Besonderung in dem Urtheile und der Realitaumlt es erhebt auf jede Stuffe weiterer Bestimmung die ganze Masse seines vorhergehenden Inhalts und verliert durch sein dialektisches Fortgehen nicht nur nichts noch laumlszligt etwas dahinten sondern traumlgt alles Erworbene mit sich und bereichert und verdichtet sich in sichrdquo)
421 Cf Ibidem p 251 trad p 580
422 Ibidem p 251 trad p 580 E tambeacutem a ciecircncia (Wissenschaft) desenvolvida a partir desse meacutetodo imanente circular seraacute do mesmo modo circular ldquoEm virtude da natureza do meacutetodo [que foi] indicada a ciecircncia se apresenta como um ciacuterculo entrelaccedilado em si em cujo comeccedilo o fundamento simples a mediaccedilatildeo entrelaccedila o fim do mesmo modo esse ciacuterculo eacute um ciacuterculo dos ciacuterculos pois cada membro singular como [algo] animado pelo meacutetodo eacute a reflexatildeo-em-si que na medida em que ela retorna ao comeccedilo eacute ao mesmo tempo o comeccedilo de um novo membro Fragmentos dessa cadeia satildeo as ciecircncias singulares e cada uma delas tem um antes e um depois ou para falar com mais exatidatildeo somente tem o antes e no seu silogismo mostra seu depoisrdquo No original ldquoVermoumlge der aufgezeigten Natur der Methode stellt sich die Wissenschaft als einen in sich geschlungenen Kreis dar in dessen Anfang den einfachen Grund die Vermittlung das Ende zuruumlckschlingt dabey ist dieser Kreis ein Kreis von Kreisen denn jedes einzelne Glied als Beseeltes der Methode ist die Reflexion-in-sich die indem si in den Anfang zuruumlckkehrt zugleich der Anfang eines neuen Gliedes ist
156
contra aqueles que por impaciecircncia (Ungeduld) pretendem de antematildeo encontrar-se para
aleacutem do determinado portanto desde o iniacutecio se encontrarem imediatamente no absoluto
Hegel mais uma vez nos alerta para o fracasso que estaacute agrave vista dos que querem seguir essa
via423 pois o absoluto ldquosomente se deixa apreender pela mediaccedilatildeo do conhecer do qual o
universal e imediato eacute um momento a verdade poreacutem somente eacute no percurso desenvolvido e
no finalrdquo424 O absoluto que se pusesse independente desse processo de determinaccedilatildeo que
tambeacutem eacute um processo de justificaccedilatildeo do fundamento seria um absoluto suposto (ein
gemeyntes Absolutes) um absoluto que teria tanta validade e creacutedito quanto qualquer outro
que a ele se pusesse em sentido contraacuterio Essa espeacutecie de criacutetica ceacutetica Hegel quer evitar
Uma criacutetica que dificilmente se deixa evitar quando se parte de um absoluto que natildeo foi posto
a partir do processo de fundamentaccedilatildeo que observamos no meacutetodo Mas natildeo apenas isso
Cabe ainda assinalar que quando Hegel fala em absoluto eacute o que nos parece natildeo
esteja ele se referindo a um ponto que se chegasse sem que daiacute natildeo mais se pudesse avanccedilar
adiante O absoluto eacute o proacuteprio meacutetodo ndash a ideacuteia absoluta ndash ao qual se chega por esse
processo de justificaccedilatildeo que constitui a Ciecircncia da Loacutegica Ele eacute essa atividade inerente ao
meacutetodo e pela qual o conceito se autodetermina e forma (ausbildet) o sistema da ciecircncia (Cf
GW 12 pp 252-3 trad p 582) O caraacuteter absoluto do meacutetodo eacute o que faz com que por meio
dele os resultados obtidos pelo menos eacute o que almeja Hegel natildeo sejam passiacuteveis de serem
criticados pelo ceacutetico Esse absoluto eacute fruto de um modo de proceder que considera o posto e
seu contraposto e mediante a negatividade absoluta inscrita no meacutetodo a contradiccedilatildeo posta
pode ser resolvida425 Chega-se ao absoluto no final da Loacutegica mas esse absoluto eacute como jaacute
dissemos o proacuteprio meacutetodo que incorpora a si um procedimento ceacutetico a saber esse
procedimento consistente na oposiccedilatildeo de argumentos Eacute somente pela contradiccedilatildeo dos
Bruchstuumlcke dieser Kette sind die einzelnen Wissenschaften deren jede ein Vor und ein Nach hat - oder genauer gesprochen nur das Vor hat und in ihrem Schlusse selbst ihr Nach zeigt rdquo In Ibidem p 252 trad pp 581-2
423 Ibidem p 252 trad p 581
424 Ibidem p 252 trad p 581 (ldquo[hellip] erfassen laumlszligt es sich nur durch die Vermittlung des Erkennens von der das Allgemeine und Unmittelbare ein Moment die Wahrheit selbst aber nur im ausgebreiteten Verlauf und im Ende istrdquo)
425 Tanto na Ciecircncia da Loacutegica (Cf GW 12 p 46 trad p 296) quanto na Enciclopeacutedia (sect164) Hegel natildeo deixa de apontar para o fato de que o mesmo processo dialeacutetico ocorrido com as determinaccedilotildees de reflexatildeo vai se repetir na Doutrina do Conceito com as determinaccedilotildees da universalidade particularidade e singularidade Quanto a isso citemos o referido sect 164 ldquoUniversalidade particularidade e singularidade tomadas abstratamente satildeo o mesmo que identidade diferenccedila e fundamentordquo (ldquoAllgemeinheit Besonderheit und Einzelheit sind abstract genommen dasselbe was Identitaumlt Unterschied und Grundrdquo In GW 20 p 180 trad p 299
157
opostos resolvida de acordo com o meacutetodo dialeacutetico imanente apresentado na Ideacuteia Absoluta
que eacute possiacutevel agrave ciecircncia avanccedilar e a verdade que ela alcanccedila como resultado ldquotorna-se o
comeccedilo de uma outra esfera e ciecircnciardquo426 Dessa maneira eacute a que somos levados a concluir o
processo natildeo tem de se deter necessariamente num ponto determinado ao contraacuterio o saber
alcanccedilado estaraacute sempre sujeito a ser suspenso (aufgehoben)427
Hans Friedrich Fulda dedica um ensaio a mostrar como Hegel na formulaccedilatildeo do
meacutetodo especulativo diretamente se preocupa em se sobrepor agrave criacutetica ceacutetica por meio da
integraccedilatildeo de sua dialeacutetica antinocircmica ao mesmo meacutetodo428 A possibilidade de uma filosofia
especulativa estaria assim segundo o autor assentada em um meacutetodo que na sua instacircncia
negativa tivesse em si operando a contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos e uma vez cumprido
seu papel criacutetico com relaccedilatildeo ao pensar enquanto entendimento seu trabalho seria rematado
na instacircncia especulativa do meacutetodo com a modificaccedilatildeo dos conceitos que foram ceticamente
examinados anteriormente Fulda natildeo se cansa de afirmar que a possibilidade do pensamento
absoluto pressupotildee o exerciacutecio da agogeacute ceacutetica na instacircncia dialeacutetica do meacutetodo Eacute somente
por meio desse exerciacutecio que a filosofia conseguiraacute eacute o que acredita Hegel se desvencilhar do
ceticismo stricto sensu
No comeccedilo do capiacutetulo que trata do meacutetodo ndash a ideacuteia absoluta ndash Hegel faz uma
afirmaccedilatildeo importante no que se refere agrave proacutepria ideacuteia absoluta que ldquoela eacute o uacutenico objeto e
conteuacutedo da filosofiardquo429 Aleacutem disso que a tarefa da filosofia eacute reconhececirc-la nas diversas
426 GW 12 p 253 trad pp 582-3 (ldquo[hellip] wird als letztes Resultat auch den Anfang einer andern Sphaumlre und Wissenschaftrdquo)
427 Nesse sentido eacute entatildeo pertinente aqui recordar Geacuterard Lebrun ldquoQuando interpretam o saber absoluto como o coroamento da metafiacutesica e lhe reprovam deixar fora de si uma zona de natildeo-sentido um negativo irredutiacutevel que ignoraria soberbamente ainda tecircm certeza de natildeo conceder a certas significaccedilotildees um lsquovalor isoladorsquo Assim compreendem a dialeacutetica como uma outra ontologia outra experiecircncia do ser ndash e a negatividade se torna gradualmente uma reapropriaccedilatildeo laboriosa mas sempre exitosa Mas afinal onde eacute o lugar desse ecircxito Em que lugar do percurso nos datildeo o direito de parar em uma significaccedilatildeo isolada que o totalizariardquo E veja-se ainda tambeacutem o seguinte trecho ldquoO jogo portanto natildeo paacutera nenhuma descriccedilatildeo eacute privilegiada nenhum movimento termina em um nome que resumiria seu percurso Incessante vitoacuteria do sentido tanto quanto se quiser mas tambeacutem advento da mais desconcertante noccedilatildeo de lsquosentidorsquo Estranho lsquocoroamento da metafiacutesicarsquo com efeito um discurso que natildeo paacutera de denunciar como parcial a tese que ao que parece ele vem formular ndash discurso que ao ponto final prefere o corretivo que torna a questionar a frase inteira Estranho lsquodogmatismorsquo esse interditando ao leitor jamais se repousar em um ponto fixo e sempre o deportando mais longerdquo (Lebrun G A paciecircncia do Conceito respectivamente p 307 e p 308)
428 Ver Fulda H F Philosophisches Denken in einer spekulativen Metaphysik in Paumltzold DVandejagt A (eds) Hegels Transformation der Metaphysik Koumlln Dinter 1991 pp 62-82
429 GW 12 p 236 trad p 559 (ldquoSie ist der einzige Gegenstand und Inhalt der Philosophierdquo)
158
configuraccedilotildees (Gestaltungen) que ela assume no seu processo de autodeterminaccedilatildeo430 Esse
reconhecimento se daacute portanto conforme ao meacutetodo ndash que eacute a proacutepria ideacuteia absoluta como
forma ndash e o qual foi objeto de nossa anaacutelise neste capiacutetulo O processo dialeacutetico que ocorre no
meacutetodo compotildee segundo a descriccedilatildeo hegeliana nos sectsect79-82 da Enciclopeacutedia431 de trecircs
aspectos (Seiten) atuantes em ldquotodo loacutegico-realrdquo432 Isto significa que no processo de
autodeterminaccedilatildeo da ideacuteia absoluta esses trecircs aspectos satildeo trecircs momentos que se realizam
naquilo que a cada caso se determina Assim temos em cada loacutegico-real o momento do
entendimento o dialeacutetico ou negativamente-racional e por fim o especulativo ou
positivamente-racional433
O momento do entendimento eacute aquele em que se permanece na determinidade finita e
limitada O combate a essa a essa unilateralidade do que eacute posto pelo entendimento eacute efetuado
pelo ceticismo434 operante no momento negativo-dialeacutetico do meacutetodo Eacute esse ceticismo que
atua no sentido de mostrar como jaacute observara Fulda que as determinidades postas pelo
entendimento natildeo apenas natildeo satildeo fixas como tambeacutem satildeo negadas por suas opostas que as
limitam Cabe por fim ao especulativo apreender ldquoa unidade das determinaccedilotildees em sua
oposiccedilatildeordquo435 na medida em que resolve a contradiccedilatildeo que haacute entre elas com a negaccedilatildeo das
mesmas no passar (Uebergehen) a outra coisa que nada mais eacute que o resultado Resultado que
conserva em si essas determinaccedilotildees que foram negadas no processo de Aufhebung
Fulda crecirc que esse exame efetuado no lado ceacutetico do meacutetodo eacute o que permite a
modificaccedilatildeo de conteuacutedo dos conceitos pela especulaccedilatildeo436 O exame ceacutetico bem realizado
continua ele torna possiacutevel a sistematizaccedilatildeo do que foi obtido no momento positivo-racional
do meacutetodo437
430 Cf Ibidem p 236 trad pp 559-560
431 Cf GW 20 pp 118-120 trad pp 159-169
432 GW 20 E sect79 p 118 trad p 159
433 Ibidem p 118 trad p 159
434 Hegel no sect78 da Enciclopeacutedia chama esse momento dialeacutetico de ceticismo consumado (vollbrachte Skepticismus) Cf Ibidem p 118 trad p 156
435 Ibidem p 120 trad p 166 (ldquofaszligt die Einheit der Bestimmungen in ihrer Entgegensetzung auf []rdquo)
436 Cf Fulda Philosophisches Denkenhellip p 70
437 Cf Ibidem p 70
159
Parece-nos que para Hegel a saiacuteda para natildeo se cair novamente no ceticismo estaacute
justamente em proceder como o ceacutetico Eacute claro que a partir da integraccedilatildeo de seu procedimento
agrave filosofia especulativa e deixando-se para traacutes o ponto de vista do entendimento que tambeacutem
era o do ceacutetico ao se aceitar que a negaccedilatildeo fosse abstrata E antes que o ceacutetico pudesse
novamente acusar a filosofia especulativa de parcialidade esta dado que natildeo pretende que
seus resultados natildeo possam ser superados estaacute pronta para um outro exame ceacutetico de suas
determinaccedilotildees ateacute que um novo resultado seja alcanccedilado A precipitaccedilatildeo (propeacuteteia)
dogmaacutetica tatildeo combatida pelos ceacuteticos pode entatildeo ser evitada com esse paciente exerciacutecio
dialeacutetico que acabamos de expor Se natildeo haacute porque se deter num ponto determinado de uma
vez por todas como vingar a acusaccedilatildeo de precipitaccedilatildeo Hegel deixa sempre aberta a hipoacutetese
de que a investigaccedilatildeo continue assim como o queriam os ceacuteticos Mas a despeito desse fato
cremos que mesmo assim e nosso filoacutesofo tambeacutem estaacute ciente disso seja difiacutecil que os
advogados da duacutevida terminem por concordar com ele
161
CONCLUSAtildeO
Nesta nossa pesquisa acerca da temaacutetica do ceticismo na filosofia de Hegel
procuramos ressaltar a importacircncia que ele concede ao ceticismo como procedimento criacutetico-
investigativo na constituiccedilatildeo de sua proacutepria filosofia
Nesse trajeto buscamos apontar o interesse de Hegel pela filosofia ceacutetica desde o
iniacutecio de sua carreira filosoacutefica verificaacutevel jaacute nas suas primeiras publicaccedilotildees como o escrito
sobre a Diferenccedila e o artigo sobre o ceticismo
Na apresentaccedilatildeo e anaacutelise da interpretaccedilatildeo hegeliana do ceticismo torna-se patente a
preocupaccedilatildeo do filoacutesofo em uma resposta ao desafio que o ceticismo constitui para a
elaboraccedilatildeo e sustentaccedilatildeo de sua filosofia positiva A intenccedilatildeo ceacutetica de tudo que se lhe
apresenta com valor de verdade submeter a exame visto que sem essa atitude natildeo se vecirc o
ceacutetico em condiccedilotildees de talvez poder assentir a qualquer verdade eacute vista com bons olhos por
Hegel Esse natildeo aceitar nada como dado natildeo aceitar pressupostos natildeo examinados eacute uma
exigecircncia que Hegel adota para a filosofia especulativa A questatildeo eacute que no seu exame o
ceacutetico reiteradamente mostra a limitaccedilatildeo e a falta de universalidade das verdades
pretensamente absolutas que foram objeto da sua investigaccedilatildeo Ele mostra assim que a um
discurso se pode opor um outro discurso de igual forccedila
Hegel se daacute conta dessa forccedila da criacutetica ceacutetica Que a filosofia que natildeo a considera estaacute
fadada a perecer Para responder ao ceacutetico contudo Hegel natildeo se empenhou simplesmente
em refutaacute-lo Isso seria inviaacutevel justamente porque a filosofia precisa valer-se da criacutetica ceacutetica
para se constituir Por outro lado natildeo entrava em pauta para ele adotar a posiccedilatildeo ceacutetica E isto
porque nota que o ceacutetico tambeacutem assume certos pressupostos dos quais natildeo tem consciecircncia
O seu ecircxito no combate ao dogmatismo eacute possiacutevel em virtude de exercer sua criacutetica no
domiacutenio do entendimento logo assumindo como pressuposto as regras que regulam esse
domiacutenio Assim o ceacutetico consegue contrapor discursos ou argumentos porque no acircmbito do
entendimento aquilo que eacute afirmado natildeo leva em consideraccedilatildeo o seu oposto A limitaccedilatildeo das
determinaccedilotildees postas no acircmbito do entendimento faz com que as mesmas sejam aniquiladas
com a posiccedilatildeo daquelas que se lhes contrapotildeem Aleacutem disso nesse domiacutenio vige o princiacutepio
de natildeo-contradiccedilatildeo e uma vez estabelecida a contradiccedilatildeo o resultado eacute um nada a que se
162
chega com a aniquilaccedilatildeo dos contrapostos Diante da contradiccedilatildeo o ceacutetico natildeo tem como
avanccedilar Ele natildeo vecirc que haja uma outra maneira de considerar a oposiccedilatildeo e a contradiccedilatildeo
Independente dessas limitaccedilotildees o que Hegel faz eacute incorporar reformulado o
procedimento ceacutetico de contraposiccedilatildeo de argumentos agrave sua filosofia O que ele denominou de
seu lado negativo Mas aleacutem do domiacutenio do entendimento haacute o especulativo no qual as
oposiccedilotildees e a consequumlente contradiccedilatildeo entre elas satildeo vistas de maneira positiva Natildeo se
termina aqui com a contradiccedilatildeo num nada vazio Ela se resolve positivamente pois a
negaccedilatildeo aqui atuante faz com que o movimento avance nesse sentido A possibilidade de
conseguirmos escapar da criacutetica ceacutetica estaacute vinculada portanto agrave integraccedilatildeo de sua dialeacutetica
antinocircmica agrave filosofia o que tambeacutem envolveraacute a criacutetica dos pressupostos assumidos pelo
ceticismo Assim a soluccedilatildeo que Hegel encontra para que natildeo nos tornemos alvo do ceticismo
e ao mesmo tempo natildeo tenhamos que assumir a posiccedilatildeo ceacutetica implica na incorporaccedilatildeo do
procedimento criacutetico-ceacutetico agrave filosofia
163
OBRAS DE HEGEL
HEGEL G W F Differenz des Fichteschen und Schellingschen Systems der Philosophie
In Jenaer Kritische Schriften ediccedilatildeo de Hartmut Buchner e Otto Poumlggeler Hamburg Felix
Meiner 1968 Gesammelte Werke vol 4
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830)
ediccedilatildeo de U Rameil W Bonsiepen e H-C Lucas Hamburg Felix Meiner 1992
Gesammelte Werke vol 20
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830)
ediccedilatildeo de E Moldenhauer e K M Michel Frankfurt a M Suhrkamp 1993 Werke vol 8
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Phaumlnomenologie des Geistes ediccedilatildeo de W Bonsiepen e R Heede
Hamburg Felix Meiner 1980 Gesammelte Werke vol 9
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Verhaumlltniss des Skepticismus zur Philosophie Darstellung seiner
Verschiedenen Modificationen und Vergleichung des Neuesten mit dem Alten In Jenaer
Kritische Schriften Gesammelte Werke vol 4
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie I ediccedilatildeo de E
Moldehhauer e K M Michel Frankfurt a M Suhrkamp 1986 vol 18
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie II ediccedilatildeo de E
Moldehhauer e K M Michel Frankfurt a M Suhrkamp 2003 vol 19
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Vorlesungen uumlber Logik und Metaphysik Heidelberg 1817
Mitgeschrieben von FAGood ed Karen Gloy In Vorlesungen Ausgewaumlhlte Nachschriften
und Manuskripte Band 11 Hamburg Meiner 1992
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Wissenschaft der Logik Erster Band Erstes Buch Die Lehre vom Sein
(1832) Gesammelte Werke vol 21 Hamburg Meiner 1984
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Wissenschaft der Logik Erster Band Zweites Buch Die Lehre vom Wesen
(1813) Gesammelte Werke vol 11 Hamburg Meiner 1978
164
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Wissenschaft der Logik Zweiter Band Die subjektive Logik oder die
Lehre vom Begriff (1816) Gesammelte Werke vol 12 Hamburg Meiner 1981
Traduccedilotildees
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Ciencia de la Loacutegica Buenos Aires Ediciones Solar 1993
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______________ Fenomenologia do Espiacuterito trad de Henrique C de Lima Vaz coleccedilatildeo Os
Pensadores Satildeo Paulo Abril 1974
______________ Fenomenologia do Espiacuterito trad de Paulo Meneses Petroacutepolis Vozes 2a
ed 1992
______________ Introduccedilatildeo agrave Filosofia do Direito Traduccedilatildeo notas e apresentaccedilatildeo de
Marcos Lutz Muumlller IFCH-UNICAMP 2005
______________ La relation du scepticism avec la philosophie trad de B Fauquet 2ordf ed
Paris Vrin 1986
______________ Leccedilons sur lrsquohistoire de la philosophie La Philosophie Grecque tome 2
trad de Pierre Garniron Paris Vrin 1971
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trad de Pierre Garniron Paris Vrin 1975
165
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radicalizaccedilatildeo dessa modernidaderdquo Revista Eletrocircnica Estudos Hegelianos ano 2ordm Nordm 3
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SCHAumlFER R Die Dialektik und ihre besonderen Formen in Hegels Logik In Hegel-
Studien Beiheft 45 Hamburg Felix Meiner 2001
SCHULZE G E Kritik der theoretischen Philosophie Band 1 Hamburg 1801 (reimpressatildeo por Aetas Kantiana Bruxelas Culture et Civilisation 1973)
SEXTO EMPIacuteRICO Outlines of Pyrrhonism vol I trad de RG Bury Cambridge Harvard
University Press 2000 Grundriszlig der pyrrhonischen Skepsis trad de Malte Hossenfelder
Frankfurt a M Suhrkamp 1985
SEXTO EMPIacuteRICO Adversus Mathematicos trad de RG Bury The Loeb Classical
Library in four volumes Cambridge Harvard University Press 1985
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um 1800 im Kontext neuzeitlicher Wissenskonzeptionen Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp
Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 8 2003
VIEWEG K (org) Gegen das lsquounphilosophische Unwesenrsquo (Das Kritische Journal der
Philosophie von Schelling und Hegel) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches
Jahrbuch der Philosophie Band 7 2002
___________ Die Philosophie des Remis - Der junge Hegel und das ldquoGespenst des
Skepticismusrdquo Muumlnchen Wilhelm Fink 1999
ZIMMERLI W C DIE FRAGE NACH DER PHILOSOPHIE Interpretation zu Hegels
Differenzschrif In Hegel-Studien Beiheft 12 Bonn Bouvier 1974
5
RESUMO
Trata-se inicialmente de neste trabalho analisar a leitura hegeliana da filosofia ceacutetica
especificamente o ceticismo pirrocircnico Dessa maneira seraacute possiacutevel comeccedilar a avaliar em
que medida o ceticismo eacute importante para a filosofia de Hegel em geral e em particular para
a constituiccedilatildeo de seu meacutetodo dialeacutetico especulativo Percorreremos textos de vaacuterias fases da
filosofia de Hegel no qual o ceticismo ou eacute tema central ou aparece dentro de um contexto
que tambeacutem nos interessa a saber a discussatildeo acerca do meacutetodo No que respeita a este
uacuteltimo objeto da segunda parte da tese examinaremos na Ciecircncia da Loacutegica os momentos
onde podemos observar de modo privilegiado a constituiccedilatildeo do meacutetodo dialeacutetico hegeliano a
saber a seccedilatildeo dedicada na Doutrina da Essecircncia agraves determinaccedilotildees de reflexatildeo e a seccedilatildeo
intitulada Ideacuteia Absoluta uacuteltimo capiacutetulo do livro A partir desse estudo da Ciecircncia da
Loacutegica poderemos entatildeo julgar com maior exatidatildeo no que o meacutetodo filosoacutefico hegeliano eacute
devedor da filosofia ceacutetica isto eacute como esse meacutetodo eacute formulado de modo que o ceticismo
seja integrado a ele A ideacuteia central eacute mostrar que natildeo haacute da parte de Hegel uma simples
refutaccedilatildeo do ceticismo mas antes que o ceticismo eacute a filosofia incontornaacutevel da qual se
deve partir para que a filosofia natildeo caia viacutetima das aporias ceacuteticas Essa eacute a via que Hegel
encontra para natildeo se tornar ceacutetico pirrocircnico e ao mesmo tempo natildeo ser alvo da criacutetica ceacutetica
7
ABSTRACT
First it means to analyse Hegelrsquos reading of the skeptical philosophy specifically
pyrrhonian skepticism Thus it will be possible to assess to what extent the skepticism is
important to Hegelrsquos philosophy in general and in particular for the formation of his
speculative dialectical method We will cover texts from many phases of Hegelrsquos philosophy
in which skepticism is focus or appears within a context that also interests us namely the
discussion of the method Regarding this last one subject of the second part of the thesis we
examine in Science of Logic the moments where we can observe in a special way the
formation of hegelian dialectical method the section in Doctrine of Essence that is dedicated
to the determinations of reflection and the section entitled Absolute Idea the last chapter of
the book From this study of Science of Logic we can judge more accurately what the
Hegelian philosophical method is liable to the skeptical philosophy which means how this
method is formulated in a way that skepticism is a part of it The main idea is to show that
Hegel does not try a simple refutation of skepticism more than this he shows that skepticism
is the philosophy unavoiable which preserves the philosophy from fall victim of skepticals
aporias This is the way that Hegel finds to not become skeptical pyrrhonian and also the
subject of skeptical criticism
9
Para a Luciana
11
Eacute poreacutem muito mais difiacutecil conferir fluidez aos
pensamentos fixos do que ao ser-aiacute sensiacutevel
Hegel
A razatildeo captou sua proacutepria fundaccedilatildeo na ausecircncia
de fundamento das limitaccedilotildees e particularidades
Hegel
13
AGRADECIMENTOS
Ao Prof Marcos Lutz Muumlller pela oportunidade de poder jaacute haacute alguns anos conviver
intelectualmente por sua orientaccedilatildeo rigorosa pelas indicaccedilotildees valiosas pela liberdade de
pesquisa que sempre me proporcionou fundamental para a realizaccedilatildeo desta tese e por sua
amizade
Aos Profs Roberto Bolzani e Joseacute Eduardo M Baioni pelas anaacutelises criteriosas no
meu exame de qualificaccedilatildeo que muito contribuiacuteram para o andamento posterior deste
trabalho
Ao prof Oswaldo Porchat que talvez nem se decirc conta de quanto tambeacutem participou
da orientaccedilatildeo desta tese e pela sua amizade
Agrave Capes pela bolsa de doutorado a mim concedida fundamental para a realizaccedilatildeo
deste trabalho
Ao convecircnio Capes-DAAD pela bolsa de doutorado-sanduiacuteche que me permitiu
pesquisar na Freien Universitaumlt Berlin sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Andreas Arndt e
tambeacutem pela bolsa de estudos de alematildeo em Dresden
Ao DAAD pelo auxiacutelio que me permitiu uma nova temporada de pesquisa na Freien
Universitaumlt Berlin sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Andreas Arndt
Aos meus pais Nelson e Doralice e aos meus irmatildeos Carlos Frederico e Viviane
Agrave minha famiacutelia
Ao apoio e incentivo dos amigos do Brasil e da Alemanha
Especialmente agrave Luciana que talvez natildeo tenha a dimensatildeo de o quanto foi importante
em todos os aspectos sua presenccedila e incentivo
A todos do departamento de Filosofia e da Secretaria de Poacutes-Graduaccedilatildeo do IFCH-
UNICAMP que direta ou indiretamente tornaram viaacutevel esta pesquisa
15
SUMAacuteRIO
LISTA DE ABREVIATURAS p 17
INTRODUCcedilAtildeO p 19
I ndash Ceticismo pirrocircnico e ceticismo na perspectiva hegeliana
Capiacutetulo 1 ndash O ceticismo pirrocircnico p 25
Capiacutetulo 2 ndash O ceticismo na filosofia do jovem Hegel p 49
Capiacutetulo 3 ndash O ceticismo nas Liccedilotildees sobre a histoacuteria da filosofia de Hegel p 65
II ndash A dialeacutetica-especulativa de Hegel
Capiacutetulo 1 ndash As determinaccedilotildees de reflexatildeo da identidade agrave contradiccedilatildeo especulativa p 101
Capiacutetulo 2 ndash O meacutetodo dialeacutetico-especulativo p 131
CONCLUSAtildeO p 161
BIBLIOGRAFIA p 163
17
LISTA DE ABREVIATURAS
Georg Wilhelm Friedrich Hegel
GW Gesammelte Werke Ediccedilatildeo histoacuterico-criacutetica editada pela ldquoRheinisch-Westfaumllische
Akademie der Wissenschaftenrdquo e publicada pela editora Felix Meiner Hamburg de 1968 em
diante A indicaccedilatildeo seraacute seguida do nuacutemero do volume e da paacutegina
Vol 4 Jenaer Kritische Schriften (Eds) H Buchner e O Poumlggeler 1968
Vol 9 Phaumlnomenologie des Geistes (Eds) W Bonsiepen e R Heede 1980
Vol 11 Wissenschaft der Logik Erster Band Die objective Logik Zweites Buch Die Lehre
vom Wesen (1813) (Eds) F Hogemann e W Jaeschke 1978
Vol 12 Wissenschaft der Logik Zweiter Band Die subjective Logik oder die Lehre vom
Begriff (1816) (Eds) F Hogemann e W Jaeschke 1981
Vol 20 Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830) (Eds) W
Bosiepen e H -C Lucas 1992
Vol 21 Wissenschaft der Logik Erster Band Die objective Logik Erstes Buch Die Lehre
vom Sein (1832) (Eds) F Hogemann e W Jaeschke 1984
Werke Ediccedilatildeo de Eva Moldenhauer e Karl Markus Michel Frankfurt a M
Suhrkamp em 20 volumes A indicaccedilatildeo seraacute seguida do nuacutemero do volume e da paacutegina
Vol 8 Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenchaften I Frankfurt a M Suhrkamp 1993
Vol 18 Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie I Frankfurt a M Suhrkamp
1986
Vol 19 Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie II Frankfurt a M Suhrkamp
2003
19
Introduccedilatildeo
Talvez natildeo seja demasiado dizer que no iniacutecio do seacuteculo XIX Hegel tenha sido o
filoacutesofo que mais detidamente dedicou sua atenccedilatildeo ao estudo e anaacutelise do ceticismo antigo1
Uma de suas primeiras publicaccedilotildees o artigo ienense ldquoRelacionamento do ceticismo agrave
filosofiardquo2 como o proacuteprio tiacutetulo nos informa era todo voltado para o tema e vale mencionar
que parte importante do ensaio cuidava de uma anaacutelise minuciosa do ceticismo antigo3
O interesse de Hegel pelo ceticismo antigo vem mesmo antes de sua mudanccedila para
Iena em 18014 Aleacutem disso eacute preciso ser ressaltado a presenccedila do ceticismo na filosofia
hegeliana eacute o que nos parece natildeo se restringe apenas ao primeiro periacuteodo de sua carreira
1 Em alentado estudo recente Dietmar Heidemann chega mesmo a afirmar o seguinte ldquoNa histoacuteria da filosofia ningueacutem se ocupou mais aprofundadamente do ceticismo antigo pirrocircnico do que Hegel Na sua discussatildeo com a skepsis pirrocircnica Hegel no que respeita ao problema do ceticismo chegou a juiacutezos a que mesmo um veemente adversaacuterio de sua filosofia natildeo pode em princiacutepio negar um significado filosoacutefico sistemaacutetico Entre os neo-pirrocircnicos atuais estatildeo contudo completamente esquecidas as fundamentais anaacutelises de Hegel do conceito do ceticismo ou melhor dizendo satildeo elas completamente desconhecidas por eles Isso eacute mais do que lamentaacutevel pois em muitos aspectos neo-pirronistas como Fogelin Stroud ou Nagel poderiam obter em Hegel sugestotildees produtivas para suas proacuteprias avaliaccedilotildees de maneiras ceacuteticas de problematizarrdquo Cf Heidemann D H Der Begriff des Skeptizismus (Seine systematischen Formen die pyrrhonische Skepsis und Hegels Herausforderung) BerlinNew York Walter de Gruyter Band 78 2007 p 117 Concordo com Heidemann que Hegel possui uma leitura bastante atenta e profunda do ceticismo antigo mas sem endossar sua afirmaccedilatildeo referente a ser Hegel o filoacutesofo que mais se ocupou na histoacuteria da filosofia do ceticismo antigo De fato poderiacuteamos acrescentar o desconhecimento da leitura hegeliana do ceticismo antigo por parte dos estudiosos desta filosofia chama atenccedilatildeo Pensemos por exemplo no caso de Jonathan Barnes e de Julia Annas no livro conjunto The modes of scepticism neste livro ao citarem vaacuterios filoacutesofos importantes que se ocuparam do ceticismo ndash como Montaigne Descartes Hume e Kant ndash natildeo haacute nenhuma menccedilatildeo a Hegel (Cf The modes of scepticism Cambridge Cambridge UP 1985 pp 6-7)
2 Cf GW 4 pp 197-238
3 Apesar de nesse artigo tambeacutem ser feita referecircncia ao ceticismo acadecircmico o interesse principal de Hegel eacute pelo ceticismo pirrocircnico e mais precisamente o ceticismo pirrocircnico exposto por Sexto Empiacuterico nas suas Hipotiposes Pirronianas Dessa maneira sempre que daqui em diante se falar em ceticismo antigo estaremos nos referindo ao ceticismo pirrocircnico A respeito da referecircncia ao ceticismo acadecircmico no artigo especificamente na disputa entre pirrocircnicos e acadecircmicos acerca de qual deles poderia ser o legiacutetimo representante do ceticismo ver nosso artigo ldquoAlguns aspectos da compreensatildeo hegeliana do ceticismo antigo a partir da criacutetica ao ceticismo de Gottlob Ernst Schulzerdquo pp 237-240 In Revista Dois Pontos UFSCARUFPR vol 4 nuacutemero 2 2007
4 A propoacutesito do interesse de Hegel pelo ceticismo no periacuteodo anterior agrave sua ida para Iena ver de Klaus Vieweg Philosophie des Remis (Der junge Hegel und das lsquogespenst des Skeptizismusrsquo) Muumlnchen Wilhelm Fink 1999
20
filosoacutefica que vai justamente ateacute 1807 com a publicaccedilatildeo da Fenomenologia do Espiacuterito5 O
diaacutelogo hegeliano com o ceticismo pode ser observado natildeo apenas nesse periacuteodo inicial de
sua atividade intelectual filosoacutefica visto que ele se espraia por toda sua obra
No acircmbito de um estudo a respeito das relaccedilotildees da filosofia de Hegel com o ceticismo
nossas pretensotildees satildeo modestas Isto quer dizer que natildeo eacute nosso intento neste trabalho
explorar em todos os seus aspectos a minuciosa ocupaccedilatildeo de Hegel com o ceticismo Hans
Friedrich Fulda vem no que a isso se refere inclusive a declarar que ldquocomo poucos outros o
tema lsquoceticismo e pensamento especulativorsquo eacute adequado para se discutir o conjunto do
conceito filosoacutefico hegeliano e suas conexotildees exteriores que com isso natildeo se eacute meramente
escravo de curiosidade doxograacutefica mas antes que se pode notar o mais nobre interesse por
uma ocupaccedilatildeo filosoacutefica com a histoacuteria da filosofia descobrir o que era significativo numa
filosofia passada e eacute uma demanda natildeo-satisfeitardquo6
De um ponto de vista mais amplo nos importa com efeito mostrar que o ceticismo
antigo se faz um interlocutor fundamental de Hegel no que toca agrave possibilidade de
constituiccedilatildeo e sustentaccedilatildeo de sua filosofia especulativa Nesse contexto natildeo eacute porque a
filosofia hegeliana natildeo possa obviamente ser considerada ceacutetica que isto signifique como
algueacutem poderia pensar que o filoacutesofo tenha uma visatildeo essencialmente negativa do ceticismo
pirrocircnico Muito ao contraacuterio E se Hegel tece criacuteticas ao ceacutetico elas se devem por exemplo
natildeo ao seu modo de proceder no combate ao dogmatismo mas ao resultado a que ele chega
em virtude da incapacidade de se decidir agrave maneira dogmaacutetica a suspensatildeo do juiacutezo (epokheacute)
A criacutetica ceacutetica ao dogmatismo na sua prolificidade necessita ser tomada tatildeo a seacuterio que
Hegel acaba por propor a incorporaccedilatildeo do ceticismo agrave filosofia Uma estrateacutegia poderiacuteamos
dizer de imunizaccedilatildeo De fato a integraccedilatildeo do ceticismo agrave filosofia constitui-se numa maneira
de se defender da posiccedilatildeo ceacutetica levada agraves suas uacuteltimas consequumlecircncias Hegel natildeo pretende se
tornar ceacutetico pirrocircnico Ocorre que a filosofia que almeje continuar de peacute natildeo importa em que
novos termos natildeo pode fingir que o ceticismo natildeo existe Eacute preciso como veremos estar
atento ao que ele nos pede O que significaraacute afastar duas espeacutecies de atitudes que
5 Obra na qual o ceticismo aparece como o motor do exame a que a consciecircncia submete a si mesma e cujo progredir se daacute por meio de figuras que essa consciecircncia assume Eacute necessaacuterio frisar que natildeo faraacute parte de nossa pesquisa a abordagem do ceticismo na Fenomenologia do Espiacuterito salvo alguns raacutepidos comentaacuterios a respeito do tema em notas de rodapeacute Cremos que o estudo desse texto mereceria um trabalho apenas a ele dedicado
6 Cf Fulda H F e Horstmann R P (eds) Skeptizismus und spekulatives Denken in der Philosophie Hegels Stuttgart Klett-Cotta 1996 p 26 Vale notar que este livro eacute formado por um conjunto de artigos de diversos autores a respeito de distintos aspectos nos quais o tema ceticismo pode ser vinculado agrave filosofia hegeliana
21
comumente os filoacutesofos tomam perante a filosoacutefica ceacutetica ou adoccedilatildeo ou refutaccedilatildeo dessa
postura filosoacutefica Indo aleacutem dessas duas atitudes parece-nos que a questatildeo que Hegel iraacute se
fazer eacute a seguinte Haveria possibilidade de uma filosofia que incorporasse o ceticismo agrave
mesma de modo que ele operasse no seu interior mas sem que ao final se terminasse na
assunccedilatildeo de uma posiccedilatildeo ceacutetico pirrocircnica Seria isso uma mera refutaccedilatildeo do ceticismo
Em linhas gerais Hegel natildeo vecirc desacerto na postura ceacutetica com relaccedilatildeo ao
dogmatismo Pensemos no caso da fundaccedilatildeo de um sistema filosoacutefico seria aos olhos de
Hegel arriscado fazecirc-la deixando de lado a criacutetica que porventura o ceacutetico a ela dirija Uma
vez essa criacutetica desconsiderada as chances de fracasso satildeo iminentes Em outras palavras
seria inoacutecuo tentar se esquivar da posiccedilatildeo ceacutetica Tanto eacute assim que como veremos estaraacute no
cerne da discussatildeo hegeliana acerca da fundamentaccedilatildeo em filosofia a preocupaccedilatildeo em
responder a uma possiacutevel criacutetica ceacutetica por exemplo por meio dos tropos de Agripa
Com efeito a filosofia especulativa seria aquela que a partir do ceticismo terminaria
por encontrar um outro caminho que natildeo fossem aqueles trilhados distintamente por ceacuteticos e
dogmaacuteticos Pelo menos eacute essa cremos a intenccedilatildeo de Hegel Quanto a saber se o objetivo foi
atingido ou natildeo trata-se de uma questatildeo que natildeo assumimos o compromisso de respondecirc-la
A propoacutesito seria possiacutevel ao ceacutetico considerar que a filosofia especulativa natildeo fosse
dogmaacutetica Para tentar responder questotildees desse teor talvez fosse necessaacuterio levar em conta
outros elementos implicados nessa discussatildeo Nesse sentido poderiacuteamos aqui por um lado
nos fazermos de advogado do ceacutetico contra Hegel e sustentar em seu favor como um ceacutetico
poderia acreditar na sinceridade de Hegel quando este avalia positivamente sua filosofia De
fato a linguagem de Hegel seu vocabulaacuterio a complexidade de sua filosofia e a pretensatildeo em
ir aleacutem da diaphoniacutea filosoacutefica datildeo razatildeo para o ceacutetico se afastar dessa filosofia como se esta
representasse mais uma forma de dogmatismo Por outro lado em favor de Hegel e contra o
ceacutetico poder-se-ia entre outras coisas afirmar como ele poderia bom conhecedor que era da
filosofia ceacutetica pretender elaborar um sistema filosoacutefico assentado nas mesmas balizas que o
fizeram as filosofias anteriores Estaria ele na hora de elaborar sua filosofia simplesmente se
esquecendo como que acometido de uma amneacutesia momentacircnea daquilo que positivamente
avaliara no ceticismo 7
7 Parece-nos talvez que Geacuterard Lebrun procurou avanccedilar uma resposta no sentido de mostrar que Hegel continua de onde o ceacutetico paacutera Natildeo haveria assim conflito entre os ceacuteticos e Hegel apenas que ele teria levado mais adiante a investigaccedilatildeo que os ceacuteticos por precipitaccedilatildeo deixaram ainda por fazer Vaacuterias satildeo as passagens em que Lebrun nos daacute a impressatildeo de considerar a filosofia hegeliana como uma espeacutecie de terapecircutica filosoacutefica da
22
Para aleacutem da disputa entre Hegel e o ceticismo talvez a questatildeo a ser feita devesse ser
formulada nos seguintes termos o que distinguiria essa filosofia que ao mesmo tempo
acolhe e afasta de si o ceticismo das outras filosofias O que significa essa filosofia que
almeja nem ser dogmatismo nem ceticismo
Neste estudo nossa proposta eacute a de perscrutar tendo a questatildeo do meacutetodo filosoacutefico
como ponto de fuga a respeito da singularidade dessa filosofia que se quer localizar fora dos
limites dessa arena onde se confrontam dogmaacuteticos e ceacuteticos Assim articulamos este
trabalho em duas partes na primeira trataremos especificamente do ceticismo isto eacute tanto do
ceticismo antigo (cap 1) quanto do ceticismo de acordo com a leitura que dele Hegel faz
(caps 2 e 3) A retomada do ceticismo pirrocircnico serve principalmente para que
comparativamente tenhamos elementos suficientes para avaliar a leitura hegeliana do
pirronismo e tentar melhor compreender o que levou o filoacutesofo a integrar o ceticismo em seu
sistema A seguir com a abordagem de textos de Hegel ndash de vaacuterias fases de sua obra ndash nos
quais o ceticismo ou eacute o tema principal ou esteja fundamentalmente implicado na discussatildeo
desenvolvida poderemos assim tomar aprofundadamente contato com sua interpretaccedilatildeo e
anaacutelise do ceticismo Dessa maneira teremos condiccedilotildees de compreender em que aspectos o
ceticismo positivamente avaliado torna-se importante para a concepccedilatildeo filosoacutefica hegeliana
e faz entatildeo com que ele mereccedila ser integrado agrave filosofia especulativa Aleacutem disso poderemos
observar por que ele ao mesmo tempo eacute limitado Por que por exemplo a espeacutecie de
negaccedilatildeo envolvida na investigaccedilatildeo ceacutetica significa para Hegel a admissatildeo de pressupostos que
mereceriam ser examinados Fundamentalmente a filosofia ceacutetica para Hegel tambeacutem natildeo eacute
isenta de pressupostos que mereceriam ser examinados e satildeo esses pressupostos que
impedem a ela de estender sua criacutetica ao pensamento especulativo
Na segunda parte de nosso trabalho tratamos particularmente da reformulaccedilatildeo
hegeliana do conceito de contradiccedilatildeo (cap 4) a partir da anaacutelise das determinaccedilotildees de
reflexatildeo na Loacutegica da Essecircncia Aleacutem disso no capiacutetulo 5 veremos como os resultados
obtidos no capiacutetulo anterior se refletem na constituiccedilatildeo de seu meacutetodo dialeacutetico-especulativo
tal como desenvolvido no capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica a Ideacuteia Absoluta Seraacute somente
assim a partir dessa ocupaccedilatildeo com a temaacutetica do meacutetodo que poderemos observar como a
linguagem Hegel assim natildeo seria um dogmaacutetico mas em certa medida seria antes o continuador da tarefa investigativa ceacutetica Ver a propoacutesito A paciecircncia do conceito cap 5 ldquoA dialeacutetica nos limites da simples razatildeordquo
23
filosofia especulativa procura ao mesmo tempo vencer as limitaccedilotildees do ceticismo e integraacute-
lo reformulado a si proacutepria
Em todo nosso percurso portanto a preocupaccedilatildeo principal eacute conduzir a pesquisa de
acordo com a tentativa de se compreender na elaboraccedilatildeo da dialeacutetica hegeliana como o
ceticismo pode ser superado e ao mesmo tempo conservado na filosofia hegeliana como o
lado negativo de seu meacutetodo dialeacutetico-especulativo Que natildeo haacute como se esquivar do
ceticismo pelo contraacuterio deve-se dele partir para que a filosofia natildeo seja viacutetima das suas
aporias Essa eacute a via que Hegel encontra para natildeo se tornar um pirrocircnico e simultaneamente
natildeo poder ser alvo da criacutetica ceacutetica
25
I ndash Ceticismo pirrocircnico e ceticismo na perspectiva hegeliana
Capiacutetulo 1 ndash O ceticismo pirrocircnico
Na histoacuteria da filosofia ocupa o ceticismo uma posiccedilatildeo singular Isto se deve ao fato
dele pretender ser uma forma de filosofar que natildeo possui e nem sustenta doutrinas e dogmas
E por doutrina filosoacutefica entendamos o conjunto de teses que uma filosofia procura apresentar
por meio de argumentos concatenados que por fim pretendam nos fazer crer que atingimos
por exemplo algo de verdadeiro a respeito do que eacute investigado Natildeo importa que uma
filosofia seja construiacuteda ou natildeo na forma de um sistema de teses concatenadas e desdobradas
por argumentos ou numa forma natildeo-sistemaacutetica isto eacute por exemplo na forma de aforismos O
que importa eacute que se pretenda afirmar algo de absoluto e verdadeiro a respeito do tema
filosoacutefico exposto8
Como veremos mais adiante o ceacutetico natildeo procura apresentar teses que afirmem com
verdade absoluta e aqui tanto faz se positiva ou negativamente a respeito de um tema
qualquer Ele de fato natildeo sustenta teses pelo contraacuterio procura se manter afastado de
qualquer espeacutecie de enunciaccedilatildeo que remotamente lembre o discurso teacutetico Mas se sua
filosofia natildeo pode ser considerada doutrinal da maneira acima exposta se ela natildeo pretende
dizer o verdadeiro ou como algo seria em sua verdadeira realidade entatildeo o que poderia ser
essa filosofia que vai na contramatildeo do que comumente nos acostumamos a entender por
filosofia Se o ceticismo natildeo possui uma doutrina entatildeo o que sobraria dessa filosofia
Poderia parecer agrave primeira vista que francamente pouca coisa Se uma filosofia natildeo possui
doutrina entatildeo o que seria e teria a oferecer Qual deveria ser para finalmente entrarmos no
nosso assunto o interesse que Hegel teria tido nessa filosofia sui generis
Antes de prosseguir conveacutem notar que quando nos referimos a ceticismo estamos nos
referindo ao ceticismo antigo Mais especificamente ao ceticismo tal como apresentado por
8 Cf Sexto Empiacuterico Outlines of Pyrrhonism (Hipotiposes Pirronianas) vol 1 Ed Por RG Bury Cambridge Harvard University Press 2000 livro I paraacutegrafos 13-15 [doravante citado como HP seguido da indicaccedilatildeo do livro e do paraacutegrafo]
26
Sexto Empiacuterico nas suas Hipotiposes Pirronianas e que tambeacutem poderiacuteamos denominar de
ceticismo pirrocircnico em virtude da filiaccedilatildeo que Sexto estabelece entre esse ceticismo e Pirro9
Voltando a Hegel a forma de ceticismo que lhe interessa eacute a antiga Aleacutem disso o
ponto interessante dessa filosofia seria para ele justamente essa sua falta de conteuacutedo
doutrinal Seratildeo justamente algumas caracteriacutesticas definidoras do ceticismo pirrocircnico e que o
tornam diferente das demais filosofias que faratildeo Hegel se aproximar dessa filosofia Mas o
que poder-se-ia perguntar numa filosofia natildeo-doutrinal pode haver de atrativo
filosoficamente falando Ainda mais quando se sabe que na longa histoacuteria da filosofia o
ceticismo foi em larga medida mal visto foi considerado de modo predominante uma forma
menor de pensamento Eacute certo que houve muitas vozes discordantes e algumas de peso
Hegel eacute uma delas o que todavia natildeo impede que o juiacutezo negativo tenha sido preponderante
Mas graccedilas a que a quais motivos o ceticismo foi sempre atacado O que para a
filosofia que natildeo se quer ceacutetica haveria de tatildeo perigoso nele
Podemos desde jaacute adiantar que na apreciaccedilatildeo positiva do ceticismo antigo por parte de
Hegel haacute espaccedilo para criacuteticas a essa filosofia A posiccedilatildeo de Hegel em relaccedilatildeo ao ceticismo
natildeo consiste eacute o que nos parece nem em uma mera adesatildeo integral e nem em uma simples
tentativa de refutaccedilatildeo do mesmo Cremos que a questatildeo vaacute aleacutem disso Mas que espeacutecie de
relacionamento portanto se estabelece entre a filosofia de Hegel e o ceticismo Se natildeo haacute
nem adesatildeo e nem recusa a essa filosofia o que haveria entatildeo
Mas antes de tentar responder agraves questotildees haacute pouco esboccediladas comecemos por uma
breve exposiccedilatildeo do ceticismo pirrocircnico a partir das Hipotiposes Pirronianas de Sexto
Empiacuterico Uma exposiccedilatildeo que vai se ater ao delineamento dos traccedilos principais dessa
filosofia Talvez assim fique mais faacutecil e claro compreender natildeo soacute a leitura a nosso ver
9 Acerca da filiaccedilatildeo do ceticismo a Pirro eacute uacutetil citar a seguinte observaccedilatildeo de Oswaldo Porchat ldquoTambeacutem o termo lsquoceticismorsquo se usa no vocabulaacuterio filosoacutefico em diferentes sentidos Vou considerar o termo aqui somente com referecircncia ao pirronismo grego doutrina que se desenvolveu no seacuteculo I antes de Cristo e nos primeiros seacuteculos de nossa era Nossa principal fonte para o estudo do pirronismo eacute a obra de Sexto Empiacuterico que provavelmente viveu na uacuteltima metade do seacuteculo II Os pirrocircnicos se chamaram a si mesmos de lsquoceacuteticosrsquo (skeptikoiacute em grego) e esse termo aparentado ao verbo skeacuteptomai tatildeo-somente significava lsquoaqueles que observamrsquo isto eacute lsquoaqueles que examinam consideram com atenccedilatildeorsquo O nome lsquopirrocircnicosrsquo lhes foi dado porque invocavam o nome do lendaacuterio filoacutesofo Pirro contemporacircneo e companheiro das expediccedilotildees de Alexandre como inspirador de sua doutrinardquo (Cf Porchat O ldquoEmpirismo e ceticismordquo In Rumo ao ceticismo Satildeo Paulo Ed Unesp 2006 p 296) E para uma discussatildeo em torno da filiaccedilatildeo do ceticismo a Pirro ou de sua natildeo-filiaccedilatildeo como no caso do ceticismo chamado de acadecircmico cf Bolzani F R Acadecircmicos versus Pirrocircnicos Tese de Doutorado FFLCH-USP 2003 p2 e ss
27
rigorosa e atenta que Hegel faz do ceticismo como tambeacutem em que medida essa filosofia se
incorpora agrave filosofia hegeliana
Que a filosofia ceacutetica possui um caraacuteter singular que ela como veremos pela
descriccedilatildeo de Sexto Empiacuterico natildeo corresponde agrave maneira ldquotradicionalrdquo de filosofar eacute
declarado de modo bastante niacutetido desde as primeiras linhas das Hipotiposes Pirronianas
Sexto inicia o livro distinguindo as trecircs espeacutecies de filoacutesofos que pode haver de acordo
com o resultado que cada um alcanccedila na sua investigaccedilatildeo10 Assim existem aqueles que em
virtude do resultado de suas investigaccedilotildees declaram ter descoberto a verdade outros
declaram natildeo poder ser apreendida a verdade e por fim haacute aqueles que continuam a
investigar E por que continuam a investigar Porque provavelmente natildeo chegaram a nenhum
resultado conclusivo como no caso das duas outras espeacutecies de filosofia natildeo se consideram
capazes de emitir nenhuma declaraccedilatildeo positiva ou negativa a respeito da existecircncia de uma
suposta verdade filosoacutefica
Sexto denomina entatildeo aqueles filoacutesofos que declaram ter obtido a verdade como
resultado de suas investigaccedilotildees de ldquodogmaacuteticosrdquo aqueles que afirmam ser a verdade
inapreensiacutevel de acadecircmicos e aqueles que continuam a investigar de ceacuteticos As filosofias se
dividem portanto em dogmaacutetica acadecircmica e ceacutetica
Desse iniacutecio das Hipotiposes jaacute se pode depreender que o que vai distanciando o
ceticismo das outras duas espeacutecies de filosofia eacute o fato dele natildeo chegar a uma verdade que
ponha termo agrave investigaccedilatildeo Mas devido a que motivo ou motivos o ceacutetico continua a
investigar E se ele continua a investigar eacute porque talvez ainda pretende chegar a algum
resultado parecido com aqueles que as filosofias dogmaacutetica e acadecircmica chegaram Mas o
uacutenico resultado a que chegou apoacutes ter investigado foi diferente do que ocorreu aos outros
filoacutesofos natildeo chegar a nenhuma verdade Mas natildeo chegar a nenhum verdade numa
10 A esse respeito veja-se HP I 1-4
28
investigaccedilatildeo filosoacutefica natildeo eacute algo pelo menos agrave eacutepoca de Sexto que ocorresse com
frequumlecircncia Ainda mais caracterizar uma filosofia apenas como investigaccedilatildeo permanente
Tambeacutem soa estranho dizer que a descriccedilatildeo a ser feita da filosofia ceacutetica natildeo significa
que o que foi afirmado pretenda ser a expressatildeo de como as coisas satildeo mas antes como diz
Sexto Empiacuterico ldquocomo um cronista noacutes simplesmente relatamos cada fato como ele aparece
a noacutes no momentordquo11
Agrave primeira vista parece contraditoacuterio dizer que algo seraacute afirmado mas que o
afirmado natildeo seja exatamente ldquocomo noacutes o declaramosrdquo Parece assim que se afirma algo
mas que o peso dessa afirmaccedilatildeo ndash e aqui precisamente a respeito da proacutepria descriccedilatildeo da
filosofia ceacutetica ndash natildeo eacute relevante Ora a tomar as coisas dessa maneira ficamos com a
impressatildeo de que natildeo deveriacuteamos entatildeo considerar digno de creacutedito o que se declara da
filosofia ceacutetica A continuaccedilatildeo da frase causa ainda mais estranheza ao se dizer que o relato
concernente agrave filosofia ceacutetica se faz de acordo com o que aparece ao ceacutetico no momento da
descriccedilatildeo ou seja podemos talvez concluir que aquilo que eacute dito do ceticismo poderia variar
de acordo com o momento Hoje seria de um modo e amanhatilde seria de outro
Como veremos no curso desta exposiccedilatildeo a respeito do ceticismo pirrocircnico se
inicialmente a partir do que o proacuteprio Sexto afirma podemos ser levados a enxergar com
receio e a vislumbrar contradiccedilotildees nessa filosofia veremos entatildeo depois que haacute coerecircncia e
sentido nas formulaccedilotildees de Sexto por mais diferentes e estranhas que num primeiro
momento pareccedilam Afinal uma filosofia que se caracteriza pela persistecircncia na investigaccedilatildeo
e que parte da ideacuteia de que o dito a seu respeito natildeo deve ser considerado como as coisas satildeo
mas antes de acordo com o que nos aparece no momento natildeo representa a forma canocircnica de
se fazer filosofia no decorrer de sua histoacuteria
Assim como no caso das outras formas de filosofar a origem do ceticismo foi a
esperanccedila de obter tranquumlilidade (ataraxiacutea)12 Como o ceacutetico atinge a ataraxia isto eacute uma
questatildeo que vai depender para ser respondida de como ele se posiciona perante a
possibilidade de encontrar verdade ou falsidade naquilo que investiga pois inicialmente se
trata tambeacutem para ele de tentar encontrar algo de certo definitivo verdadeiro ndash positiva ou
negativamente ndash naquilo que investiga
11 Cf HP I 4
12 Cf HP I 12
29
Segundo o relato de Sexto tambeacutem o ceacutetico perturbado com as anomalias que
encontrava nas coisas desejava chegar a algo de certo por meio da investigaccedilatildeo a respeito do
que poderia ser verdadeiro ou falso no objeto da pesquisa13 Nesse aspecto o ceacutetico natildeo se
distingue dos chamados dogmaacuteticos e acadecircmicos Tambeacutem ele almejou obter a tranquumlilidade
a partir de uma investigaccedilatildeo filosoacutefica que tivesse seu teacutermino com a descoberta da verdade
ou falsidade nas coisas Em princiacutepio portanto estatildeo os filoacutesofos unidos pela busca do
mesmo fim a saber a ataraxiacutea
Mas se contudo os outros filoacutesofos ou descobriram a verdade ou descobriram que ela eacute
inapreensiacutevel dando por conseguinte um teacutermino agraves suas investigaccedilotildees o ceacutetico natildeo teve ndash se
eacute que podemos dizer isso a seu respeito ndash a mesma sorte
Da sua pesquisa natildeo chegou ao encontro da verdade ou falsidade nas coisas de modo
que ao final se tornasse livre de perturbaccedilotildees Ao contraacuterio o que conseguiu mesmo foi se
tornar mais perturbado Nas coisas investigadas encontrou apenas discordacircncia (diaphoniacutea)
anomalias contradiccedilotildees Natildeo se sentia capaz de assentir que isto era verdadeiro em
detrimento de outra ou outra hipoacutetese que seriam falsas Nenhuma alternativa mostrava-se
mais digna de creacutedito que a outra Dessa maneira a almejada tranquumlilidade fazia-se um
objetivo difiacutecil de ser realizado Pela via da busca do verdadeiro ou do falso do que as coisas
satildeo ou natildeo satildeo real e absolutamente um objetivo cada vez mais distante
E por que com relaccedilatildeo a essa busca as coisas se passariam desse modo A resposta se
encontra no acontecimento de um fato que acabaraacute por se tornar a caracteriacutestica definidora do
que eacute o ceticismo Mais precisamente no curso de sua investigaccedilatildeo filosoacutefica o ceacutetico
terminava sempre encontrando para cada possiacutevel argumento em favor da verdade ou
falsidade de qualquer tema um argumento contraacuterio de igual forccedila (isostheacuteneia) tornando-se
portanto difiacutecil decidir-se por um ou por outro lado14
A repeticcedilatildeo dessa experiecircncia leva o ceacutetico a descrer da possibilidade de que enfim
chegue aos mesmos resultados que as outras filosofias Ele natildeo se sente capaz de decidir entre
as alternativas opostas e igualmente persuasivas A saiacuteda desse impasse natildeo consistiraacute na
opccedilatildeo por um lado ou por outro mas antes natildeo haveraacute decisatildeo nenhuma nesse sentido o que
13 Cf HP I 12
14 Cf HP I 10 tambeacutem 202-5
30
acontece sim eacute ele ser levado agrave suspensatildeo de juiacutezo (epokheacute)15 isto eacute a um estado do intelecto
(staacutesis dianoiacuteas) devido ao qual natildeo se sente capaz de nem afirmar nem negar algo16
Na suspensatildeo do juiacutezo se cristaliza essa incapacidade do ceacutetico se decidir agrave maneira
dogmaacutetica Eacute importante frisar que para a efetivaccedilatildeo da suspensatildeo de juiacutezo natildeo haacute uma atitude
deliberada e positiva do ceacutetico para que tenha o juiacutezo suspenso Ele natildeo decide que iraacute
suspender seu juiacutezo Como Sexto assinala ldquonoacutes somos levados em primeiro lugar a um estado
de intelecto suspensivordquo17
Como vemos a epokheacute eacute um estado do intelecto a que o ceacutetico eacute levado por fruto do
conflito indecidiacutevel que encontra nas coisas que investiga Reiteradamente encontra-se
diante de alternativas opostas uma tatildeo persuasiva quanto a outra Como decidir A partir de
qual criteacuterio tomar essa decisatildeo A precipitaccedilatildeo a imoderaccedilatildeo e porque natildeo dizer o capricho
e vaidade do ldquodogmaacuteticordquo contribuem para sua decisatildeo excludente de uma das alternativas
Caso fosse mais ponderado menos afoito talvez natildeo decidisse tatildeo raacutepido Do ponto de vista
do ceacutetico o problema do dogmatismo reside nisso sua precipitaccedilatildeo (propeacuteteia)
Mas voltando agrave questatildeo da incapacidade de decisatildeo devido agrave equumlipolecircncia
(isostheacuteneia) dos opostos isto eacute por forccedila da igualdade quanto agrave credibilidade e natildeo-
credibilidade dos contrapostos natildeo haacute meio de se fazer uma opccedilatildeo Soacute resta enfim suspender
o juiacutezo E como consequumlecircncia da suspensatildeo adveacutem casualmente a tranquumlilidade (ataraxiacutea)
Natildeo pretendemos adentrar neste momento no tema referente ao significado da
tranquumlilidade no ceticismo pirrocircnico conveacutem antes explicitar porque a oposiccedilatildeo de
argumentos se torna a caracteriacutestica definidora da atitude (agogeacute) filosoacutefica ceacutetica
A agogeacute ceacutetica
A certa altura do iniacutecio das Hipotiposes Sexto apresenta uma definiccedilatildeo do que eacute o
ceticismo ldquoeacute uma habilidade ou atitude intelectual que opotildee fenocircmenos a nuacutemenos de todas
15 Cf HP I 7 10 26 165
16 Cf HP I 10
17 Cf HP I 8
31
as maneiras tendo como resultado que devido agrave equipotecircncia dos objetos e discursos (loacutegois)
assim opostos somos noacutes levados primeiro a um estado suspensivo do intelecto e em seguida
a um estado de tranquumlilidade (ataraxiacutea)rdquo18
Da descriccedilatildeo acima podemos perceber que eacute fundamental para a caracterizaccedilatildeo da
filosofia ceacutetica a oposiccedilatildeo de um discurso a outro Natildeo eacute por outro motivo que Sexto
apresenta como princiacutepio baacutesico do ceticismo a oposiccedilatildeo de todo discurso a um discurso de
igual forccedila (pantiacute loacutegoi loacutegon ison antikeiacutesthai)19
Devido a que poderiacuteamos agora perguntar o ceticismo se caracteriza como uma tal
atitude (agogeacute) um tal modo de proceder
Eacute a renovada experiecircncia do conflito (diaphoniacutea) das posiccedilotildees contraacuterias que o leva a
adotar essa postura como caracterizadora da filosofia ceacutetica Diferente dos ldquodogmaacuteticosrdquo o
ceacutetico natildeo vecirc como adotar outra postura Natildeo eacute nem uma nem satildeo duas vezes que ele se vecirc
diante de discursos opostos de igual persuasividade A cada nova investigaccedilatildeo depara-se ele
com a isostheacuteneia e por consequumlecircncia eacute levado agrave suspensatildeo de juiacutezo Dessa maneira
podemos supor diante dessa frequumlente experiecircncia resolve mudar de atitude a ponto de
caracterizar sua postura filosoacutefica desse modo ineacutedito
A preocupaccedilatildeo central agora eacute tentar opor a cada discurso aquele outro que se lhe
contrapotildee tornando-se assim difiacutecil dar assentimento a um dos lados opostos em virtude da
igualdade de ambos os lados quanto agrave credibilidade ou natildeo-credibilidade do que por ele eacute
declarado Se o ldquodogmaacuteticordquo tem como meta primeira tentar apreender aquilo que eacute real
verdadeiro e nessa busca podendo chegar agrave conclusatildeo de que a apreensatildeo do real do
verdadeiro comporta duas hipoacuteteses a saber ser possiacutevel ou natildeo ser possiacutevel a apreensatildeo jaacute
o ceacutetico teraacute essa meta apenas em um horizonte distante isto eacute caberaacute primeiro exercitar a
atitude opositiva Essa espeacutecie de decepccedilatildeo a que eacute acometido toda vez que encontra conflito
nas posiccedilotildees dogmaacuteticas leva-o a adotar essa atitude com relaccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo filosoacutefica
Eacute preciso sublinhar que a atitude opositiva ceacutetica natildeo se realiza apenas com relaccedilatildeo a
temas filosoacuteficos Como estaacute descrito naquela definiccedilatildeo haacute pouco citada20 a oposiccedilatildeo se faz
18 Cf HP I 8
19 Cf HP I 12 tambeacutem HP I 8
20 Cf HP I 8
32
entre fenocircmenos e nuacutemenos de todas as maneiras Isto quer dizer que a oposiccedilatildeo natildeo segue
um certo protocolo que regule sua realizaccedilatildeo Ela se faz de variadas maneiras21 fenocircmenos a
fenocircmenos nuacutemenos a nuacutemenos fenocircmenos a nuacutemenos e por aiacute adiante Com efeito o que
Sexto pretende mostrar eacute que o conflito se pode estabelecer de muitos modos possiacuteveis Um
argumento pode se opor a uma suposta evidecircncia fenomenal Exemplo disso temos na
contestaccedilatildeo feita por Anaxaacutegoras contra o fato da neve ser branca com base no argumento de
que se a neve eacute aacutegua congelada e a aacutegua eacute preta por conseguinte a neve tambeacutem eacute preta22 O
que importa aqui portanto eacute mostrar que a oposiccedilatildeo natildeo estaacute sujeita a regras estritas ao
contraacuterio ela se efetua das mais variadas maneiras e com vistas a produzir discursos
conflitantes equumlipotentes ou seja discursos que natildeo podem ter precedecircncia um em relaccedilatildeo ao
outro quanto a ser mais digno de creacutedito23
Se o ceacutetico natildeo consegue tomar uma decisatildeo entre duas alternativas equumlipotentes
entatildeo ele eacute levado a suspender seu juiacutezo Isto significa que ele se vecirc incapacitado de decidir agrave
maneira dogmaacutetica ou seja ele natildeo correraacute o risco de dogmatizar Eacute nesse espiacuterito que eacute dito
nas Hipotiposes que em virtude da oposiccedilatildeo de argumentos ter-se-aacute como consequumlecircncia o
ceacutetico cessar de dogmatizar24 E o que quereria dizer de um modo um pouco mais preciso
cessar de dogmatizar Sexto de antematildeo esclarece que dogma natildeo deve ser aqui entendido
como o simples fato de aceitar algo determinado isto eacute o ceacutetico daria seu assentimento agraves
afecccedilotildees que a ele se impotildeem atraveacutes de uma impressatildeo Ele assim natildeo diria que natildeo lhe
parece que tenha calor ou frio ao ter a sensaccedilatildeo de calor ou frio25 Noutras palavras se ele
sente frio ele natildeo diraacute que natildeo sente frio Se dogma for entatildeo pensado no sentido do exemplo
exposto agora natildeo teria o ceacutetico nada que a ele se opor visto natildeo estar assim dogmatizando
21 Cf HP I 9
22 Cf HP I 33
23 Cf HP I 10
24 Cf HP I 12
25 Cf HP I 13
33
De fato dogma no sentido acima estaacute muito mais proacuteximo daquilo que o ceacutetico entende por
fenocircmeno Posto isso voltemos agrave questatildeo referente ao significado do ceacutetico ldquocessar de
dogmatizarrdquo
Se nos ativermos apenas agrave passagem do texto na qual Sexto expotildee a questatildeo de modo
expliacutecito poderiacuteamos ficar com a impressatildeo de que o ceacutetico esboccedila uma restriccedilatildeo ao alcance
de sua investigaccedilatildeo Tal impressatildeo poder-se-ia assim confirmar porque laacute se declara que o
ceacutetico natildeo dogmatiza caso tomemos o termo doacutegma como ldquoassentimento a qualquer das
coisas natildeo-evidentes investigadas nas ciecircnciasrdquo26 Desse modo parece que a investigaccedilatildeo
restringe-se apenas aos produtos de elaboraccedilotildees conceituais mais sofisticadas o que seria o
caso correspondente agraves ciecircncias Todavia natildeo eacute essa a intenccedilatildeo uacutenica do ceacutetico Seu escopo eacute
mais geral pois ele natildeo pretende dogmatizar natildeo apenas em relaccedilatildeo agraves ciecircncias mas tambeacutem
em relaccedilatildeo a qualquer coisa que seja natildeo-evidente
ldquoCom efeito o pirrocircnico natildeo daacute seu assentimento a nenhum dos natildeo-evidentesrdquo27
Em outra passagem das Hipotiposes veremos que a intenccedilatildeo do ceacutetico ao natildeo
dogmatizar eacute de caraacuteter mais geral pois a natildeo-evidecircncia abrange qualquer coisa objeto de
controveacutersia ldquoAliaacutes as coisas controvertidas na medida mesma em que satildeo controvertidas
exibem sua natildeo-evidecircnciardquo28 Aqui natildeo haacute mais referecircncia a objetos de uma determinada
espeacutecie visto que satildeo consideradas natildeo-evidentes simplesmente as coisas controvertidas
Devemos lembrar tambeacutem a discussatildeo haacute pouco feita a respeito da definiccedilatildeo do
ceticismo29 especificamente no que se refere agrave oposiccedilatildeo ceacutetica se realizar das mais variadas
maneiras possiacuteveis ou seja que natildeo haacute restriccedilatildeo quanto ao que vai se contrapor nuacutemenos a
fenocircmenos fenocircmenos a fenocircmenos nuacutemenos a nuacutemenos e assim por diante
26 Cf HP I 13
27 Cf HP I 13
28 Cf HP I 182
29 Ver a respeito pp 30-32 deste estudo
34
Se eacute assim entatildeo que as coisas procedem eacute porque a controveacutersia se estabelece
indiscriminadamente onde houver conflito e discrepacircncia de opiniotildees natildeo importa quanto a
quecirc existiraacute controveacutersia a respeito do que eacute natildeo-evidente30 Por aiacute jaacute podemos ter uma
amostra da radicalidade da criacutetica ceacutetica Natildeo haacute nada que fique a salvo de suas investidas31
Tal radicalidade do ceticismo trouxe por outro lado problemas ao ceacutetico pois a sua criacutetica
foi alvo de muita incompreensatildeo
A partir de agora e ainda no acircmbito dessa discussatildeo acerca do ceacutetico evitar
dogmatizar conveacutem analisar a questatildeo concernente ao estatuto natildeo-dogmaacutetico da linguagem
ceacutetica
Quando no iniacutecio das Hipotiposes Sexto nos alerta para o fato de que suas afirmaccedilotildees
natildeo podem ser tomadas exatamente tal como proferidas e que o alegado a respeito do
ceticismo tem de ser encarado como o relato de um cronista32 Sexto estaacute apenas se
expressando eacute o que nos parece de acordo com uma concepccedilatildeo natildeo-dogmaacutetica da linguagem
ou tambeacutem poderiacuteamos dizer uma concepccedilatildeo ldquomais frouxardquo da mesma
A ideacuteia central para que possamos compreender o caraacuteter das foacutermulas ceacuteticas eacute a de
instrumentalidade O ceacutetico natildeo busca como o dogmaacutetico dizer o real o verdadeiro como as
30 No mesmo sentido Roberto Bolzani sustenta que a contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos natildeo se restringe a determinada classe de objetos isto eacute natildeo se restringe apenas a discursos filosoacuteficos ou cientiacuteficos mas que abrange tambeacutem opiniotildees de caraacuteter mais ruacutestico como por exemplo a suposta lsquoevidecircncia sensiacutevelrsquo de que lsquoagora eacute diarsquo ldquo[] a contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos diz respeito a lsquofenocircmenosrsquo e lsquonuacutemenosrsquo o que significa que a mais simples ndash e na verdade problemaacutetica ndash lsquoevidecircncia sensiacutevelrsquo natildeo escapa de seu caminho A isostheacuteneia natildeo ocorre apenas entre discursos filosoacuteficos que respectivamente afirmem ou neguem por exemplo a existecircncia de uma providecircncia no mundo encontra-se tambeacutem entre duas diferentes visotildees de uma torre ndash uma proacutexima mostrando-a redonda outra distante revelando-a quadrada (cf HP I 32) E natildeo haacute diferenccedila de intensidade persuasiva entre pretensas evidecircncias oriundas de diferentes fontes argumentos e dados sensoriais imediatos todos se misturam em isostheacuteneia como se vecirc por exemplo na anaacutelise do tempo lsquoa julgar pelos fenocircmenos o tempo parece ser algo mas a julgar pelos fenocircmenos o movimento eacute algo mas a julgar pelo discurso filosoacutefico natildeo existersquo(AM X 49)rdquo Cf Bolzani R O ceticismo pirrocircnico na obra de Sexto Empiacuterico Dissertaccedilatildeo de Mestrado FFLCH-USP 1992 pp 36-37
31 Essa criacutetica radical que chamaraacute a atenccedilatildeo de Hegel para a filosofia ceacutetica
32 Cf HP I 4
35
coisas (praacutegmata)33 satildeo em si mesmas Natildeo tenciona que suas asserccedilotildees suas foacutermulas sejam
a expressatildeo de qualquer sentido absoluto O ldquodogmaacuteticordquo sim ele tenciona fornecer um
caraacuteter absoluto verdadeiro ao que afirma Tambeacutem o homem comum muitas vezes intenta se
expressar a respeito de qualquer aspecto de sua vida num sentido amplo de uma maneira
dogmaacutetica isto eacute que possa dizer algo absoluta e verdadeiramente Apenas conveacutem notar
que ele o faz sem a sofisticaccedilatildeo e a elaboraccedilatildeo do discurso filosoacutefico
Diferente dos filoacutesofos e do homem comum ldquoo ceacutetico natildeo potildee suas foacutermulas em
nenhum sentido absolutordquo34 Fundamentalmente o que ele diz natildeo possui a intenccedilatildeo de
expressar o real o verdadeiro o absoluto Em outras palavras natildeo pretende por meio de seu
discurso dogmatizar Tanto na sua vida quanto no combate ao dogmatismo procura ele
sempre evitar dogmatizar
Tomemos entatildeo como objeto de anaacutelise o combate ao dogmatismo e tentemos ver
nesse caso em que sentido ele se expressa mas sem dogmatizar
Quando o ceacutetico natildeo se sente capaz de declarar algo dogmaticamente a respeito das
coisas natildeo-evidentes que investiga simplesmente enuncia ele uma certa afecccedilatildeo Isto quer
dizer que ele apenas estaacute enunciando algo que a ele se impotildee e natildeo pode evitar a saber que
natildeo se vecirc em condiccedilotildees de dizer que isto eacute mais verdadeiro do que aquilo que esta tese
filosoacutefica seja mais plausiacutevel do que aquela outra em suma natildeo eacute capaz de asserir algo
dogmaticamente Neste sentido parece-nos que tecircm de ser compreendidas as ldquofoacutermulasrdquo dos
ceacuteticos anuacutencio de suas humanas afecccedilotildees35 daquilo que lhe aparece
Por natildeo conseguirem nem afirmar nem negar nada a respeito de qualquer tema natildeo-
evidente investigado acabam eles referindo-se a essa situaccedilatildeo pela qual passam por meio de
foacutermulas que expressam essa incapacidade
33 Coisas aqui devendo ser entendidas num sentido amplo ou seja com referecircncia tanto ao que chamamos de fenocircmeno quanto ao que chamamos de nuacutemenos A distinccedilatildeo entre fenocircmenos ou coisas sensiacuteveis e entre nuacutemenos ou coisas inteligiacuteveis eacute elaborada pelo assim chamado pensamento dogmaacutetico Vale antecipar que se o ceacutetico fala por exemplo em fenocircmenos natildeo estaacute ele se expressando dentro do quadro dessa distinccedilatildeo Na continuaccedilatildeo do nosso tratamento do tema da linguagem no ceticismo tentaremos esclarecer o motivo pelo qual o ceacutetico pode ainda se utilizar de termos carregados de significado dogmaacutetico sem no entanto incorrer em dogmatismo
34 Cf HP I 14
35 Cf HP I 203
36
Se essas foacutermulas podem transmitir a impressatildeo de que expressam como as coisas satildeo
absolutamente que o ceacutetico esteja afirmando ou negando algo eacute preciso atentar para o fato de
que essas foacutermulas satildeo expressotildees de algo que ao ceacutetico se impotildee que lhe aparece Tratam-se
de meras afecccedilotildees Ao dedicar algumas seccedilotildees das Hipotiposes36 ao comentaacuterio das foacutermulas
ceacuteticas natildeo eacute outra sua intenccedilatildeo que natildeo a de esclarecer de que maneira natildeo-dogmaacutetica elas
satildeo enunciadas e o que se pretende expressar por meio delas
Quando o ceacutetico diz por exemplo ldquoque todas as coisas satildeo indeterminadasrdquo natildeo
existe a tentativa de afirmar definitivamente que das coisas nada em nenhuma hipoacutetese possa
ser determinado Mas antes que a indeterminaccedilatildeo significa um estado de intelecto (paacutethos
dianoiacuteas) no qual o ceacutetico natildeo se sente capaz de negar ou afirmar algo e mais precisamente a
respeito de temas propostos pela investigaccedilatildeo dogmaacutetica isto eacute daquilo que eacute natildeo-evidente37
Assim38 quando diz que ldquotodas as coisas satildeo indeterminadasrdquo a palavra lsquosatildeorsquo apenas
quer significar lsquoaparece a elersquo e por lsquotodas as coisasrsquo ele somente se refere agraves coisas natildeo-
evidentes investigadas pelos dogmaacuteticos e que foram apenas essas objetos do seu exame
finalmente por lsquoindeterminadasrsquo quer ele dizer que agraves coisas opostas ou em relaccedilatildeo agraves quais
conflitam natildeo sejam [essas coisas natildeo-evidentes] superiores no que respeita agrave credibilidade
ou incredibilidade Sexto repete o mesmo procedimento de anaacutelise em relaccedilatildeo agraves outras
foacutermulas ceacuteticas apresentadas nas Hipotiposes e sempre com o intuito de apontar o caraacuteter
natildeo-dogmaacutetico das mesmas
Nesse contexto se pode compreender segundo o relato de Sexto porque essas
foacutermulas se cancelam juntamente com aquilo a que se aplica a duacutevida ceacutetica39 Cancelam-se
no sentido de que natildeo podem ser tomadas como testemunho de um dogma Nem poderia ser
de outra maneira pois se o ceacutetico natildeo pretende dogmatizar nem suas proacuteprias declaraccedilotildees a
respeito do seu estado de incapacidade em tomar uma decisatildeo podem contrariar a sua atitude
filosoacutefica
A propoacutesito de suas foacutermulas eacute bem conveniente a imagem que ele se utiliza para
esclarecer em que sentido suas foacutermulas satildeo anuladas por elas mesmas
36 Ver a respeito HP I 187-209
37 Cf HP I 198
38 Sobre o que se diraacute a seguir veja-se HP I 198
37
ldquoAliaacutes no que respeita agraves expressotildees ceacuteticas eacute preciso primeiro compreender que noacutes
natildeo fazemos nenhuma asserccedilatildeo positiva no que se refere a elas serem absolutamente
verdadeiras visto que noacutes dizemos que elas podem ser anuladas por si proacuteprias suprimindo-se
ao mesmo tempo que as coisas a propoacutesito das quais elas satildeo ditas assim como aquelas drogas
purificadoras que natildeo somente eliminam os humores do corpo mas tambeacutem a si mesmas com
os humores se expelemrdquo40
Uma vez cumprida sua funccedilatildeo essas foacutermulas podem ser descartadas O ceacutetico apenas
expressou por meio delas aquilo que lhe apareceu a saber que ele se encontra num estado no
qual natildeo se sente capaz de afirmar nem de negar algo e por isso eacute levado a suspender seu
juiacutezo
Sua relaccedilatildeo com a linguagem eacute de outra ordem que aquela que o dogmaacutetico
estabeleceu Este tem a preocupaccedilatildeo com a verdade das coisas com o possiacutevel caraacuteter
absoluto do que assere O ceacutetico natildeo sua preocupaccedilatildeo eacute por meio da linguagem exercer uma
atitude filosoacutefica singular que ao fim ao cabo e por um caminho diferente do trilhado pelo
dogmaacutetico trar-lhe-aacute a ataraxiacutea
O mesmo caraacuteter instrumental que apresentam as foacutermulas ceacuteticas tambeacutem
apresentam os argumentos de que utiliza tanto os criados por ele proacuteprio quanto os que toma
de empreacutestimo para produzir antinomias e assim combater o dogmatismo
A finalidade desses argumentos consiste em como acabou de ser assinalado produzir
antinomias isto eacute contrapor a um argumento posto pelos dogmaacuteticos um outro argumento
que devido agrave equipotecircncia (isostheacuteneia) impeccedila ao ceacutetico de se decidir por um ou por outro
visto que ambos os argumentos parecem ser igualmente persuasivos E uma vez dada a
isostheacuteneia essa posiccedilatildeo de equiliacutebrio das forccedilas em disputa o ceacutetico eacute conduzido agrave
suspensatildeo do juiacutezo
Os ldquoargumentos ceacuteticosrdquo natildeo tecircm portanto outra funccedilatildeo que haacute de levar o ceacutetico a
concretizar seu propoacutesito filosoacutefico natildeo-dogmaacutetico Eles servem como instrumentos que o
39 Cf HP I 14-15 206
40 Cf HP I 206
38
conduzem a isso Quando argumenta contra o dogmaacutetico natildeo procura ldquopocircrrdquo outras tantas
teses no lugar das que foram avanccediladas pelo dogmaacutetico41 A metaacutefora da escada presente no
uacuteltimo capiacutetulo do segundo livro de Contra os Loacutegicos refere-se explicitamente a essa
instrumentalidade dos argumentos utilizados
ldquoAssim como um homem pode apoacutes ter subido a um lugar alto por meio de uma
escada desfazer-se dela assim tambeacutem o ceacutetico ao atingir por via da argumentaccedilatildeo sua
lsquotesersquo que contradiz e portanto suprime uma formulaccedilatildeo lsquodogmaacuteticarsquo tambeacutem suprime no
mesmo movimento sua proacutepria argumentaccedilatildeordquo42
Uma vez chegado ao seu objetivo qual seja estabelecer uma posiccedilatildeo de equiliacutebrio
entre os argumentos opostos (isostheacuteneia) fazendo assim com que se torne um ato precipitado
decidir-se por um dos lados o ceacutetico pode abandonar seu argumento Como instrumento a
serviccedilo de sua atitude anti-dogmaacutetica cumpriu ele sua funccedilatildeo Esses argumentos natildeo
poderiam permanecer como se fossem a demonstraccedilatildeo de teses ceacuteticas opostas agraves teses
adversas levantadas pelos dogmaacuteticos Se pela sua forccedila eles podem fornecer a impressatildeo de
que expressam teses dogmaacuteticas afinal por meio deles o ceacutetico chega agrave epokheacute a
persuasividade desses argumentos eacute aparente43
41 Com respeito ao caraacuteter instrumental dos argumentos de que se utiliza o ceacutetico para construir antinomias cabe recorrer ao comentaacuterio de Oswaldo Porchat ldquoOs argumentos lsquodestrutivosrsquo satildeo construiacutedos no melhor estilo dogmaacutetico seguem os padrotildees da loacutegica e da demonstraccedilatildeo dogmaacutetica satildeo argumentos dogmaacuteticos sob esse prisma em nada se distinguem em natureza dos argumentos dogmaacuteticos lsquoconstrutivosrsquo com os quais se fazem conflitar Porque o que importa aos pirrocircnicos mostrar eacute precisamente esta ambivalecircncia fundamental e constitutiva da argumentaccedilatildeo dogmaacutetica que implica sua autodestruiccedilatildeo graccedilas agrave manifestaccedilatildeo da isostheacuteneia e agrave subsequumlente inevitabilidade da epokheacute O pirronismo faz o dogmatismo assim servir agrave denuacutencia do dogmatismo ele usa o dogmatismo instrumentalmenterdquo Cf Porchat O Rumo ao ceticismo pp 158-159
42 Cf AM VIII 481 In Contra os loacutegicos segundo livro ediccedilatildeo da Loeb Classical Library Willian Heinemann Londres trad de R G Bury 1983 vol 2
43 A propoacutesito da instrumentalidade dos argumentos proferidos pelos ceacuteticos veja-se tambeacutem a seguinte passagem das Hipotiposes ldquoMas eacute preciso saber que natildeo eacute nosso desiacutegnio asserir que eacute irreal o criteacuterio da verdade (isso seria dogmaacutetico) poreacutem jaacute que os dogmaacuteticos parecem ter estabelecido de modo persuasivo que haacute um criteacuterio da verdade noacutes lhe opusemos argumentos que parecem ser persuasivos nem sustentando que satildeo verdadeiros nem que satildeo mais persuasivos que seus contraacuterios mas inferindo a suspensatildeo de juiacutezo em virtude da aparente igual persuasividade desses argumentos e dos que foram expostos pelos dogmaacuteticosrdquo (Cf HP II 79 tambeacutem AM VII 443-4)
39
Tambeacutem aqui em relaccedilatildeo aos argumentos que os ceacuteticos apresentam contra os
argumentos dogmaacuteticos vale ser feita a comparaccedilatildeo dos mesmos com os remeacutedios purgativos
ndash e o ceacutetico a faz ndash pois esses argumentos de algum modo se suprimem a si proacuteprios
juntamente com aqueles outros que se pretendem probativos44
Em suma a linguagem para o ceacutetico eacute considerada de um ponto de vista bem diferente
do que ela o eacute para o dogmaacutetico Para este a linguagem deve ser veiacuteculo de transmissatildeo do
verdadeiro do que eacute absoluto daquilo que eacute natildeo-evidente Dessa perspectiva cada palavra
tem um peso precisa ser empregada de uma maneira muito especiacutefica a fim de que
determinada tese dogmaacutetica seja posta
Outra eacute todavia a perspectiva do ceacutetico as palavras expressotildees argumentos natildeo
possuem para ele essa capacidade de dizer o conhecimento a verdade o absoluto Elas apenas
satildeo o meio pelo qual declara aquilo que lhe aparece em determinado momento Como ele
mesmo diz seu uso da linguagem eacute frouxo natildeo pretende se expressar de modo preciso Assim
como agora se valeu deste termo pode substituiacute-lo por um outro com vistas a evitar que o
compreendam dogmaticamente45 Eacute-lhe indiferente que termos utilize na sua vida cotidiana
ou no seu ataque ao dogmatismo ldquonatildeo conveacutem ao ceacutetico disputar a respeito de palavras
(expressotildees)rdquo46
E aqui entra em cena um outro aspecto do ceticismo e que se vincula a essa forma natildeo-
dogmaacutetica de encarar a linguagem o ldquofenomenismordquo ceacutetico
A linguagem eacute apenas o meio pelo qual o ceacutetico expressa como foi dito em algumas
ocasiotildees neste estudo aquilo que lhe aparece E o que lhe aparece eacute tatildeo sujeito a variaccedilotildees
quanto a linguagem de que ele se utiliza Como veremos a noccedilatildeo de fenocircmeno vai
desempenhar um papel central na economia da filosofia ceacutetica Eacute por meio dela que o ceacutetico
passa a se orientar na sua vida comum e tambeacutem no exerciacutecio de sua atitude filosoacutefica natildeo-
44 Cf HP I 188 Ou ainda ldquoPois haacute muitas coisas que produzem em si proacuteprias o mesmo efeito que produzem em outras coisas Por exemplo assim como o fogo apoacutes consumir a madeira se destroacutei tambeacutem a si proacuteprio e da mesma maneira como os purgativos apoacutes expulsarem dos corpos os fluidos tambeacutem a si mesmos se expelem assim tambeacutem pode o argumento contra a prova ao ter destruiacutedo toda prova tambeacutem a si mesmo suprimir-serdquo (Cf AM VIII 480)
45 Cf HP I 207
46 Ibidem I 207
40
dogmaacutetica Mas o que propriamente significa o fenocircmeno para ele Por que ele seraacute o criteacuterio
segundo o qual ele se conduz
Uma vez que seja estabelecida a equumlipolecircncia isto eacute essa posiccedilatildeo de equiliacutebrio das
forccedilas em disputa o ceacutetico natildeo tendo como decidir por uma ou por outra alternativa dado
que ambas satildeo aparentemente uma tatildeo persuasiva quanto a outra eacute levado agrave epokheacute A
respeito de todas as formas de dogmatismo que investiga tanto os filosoacuteficos quanto os natildeo-
filosoacuteficos acaba sendo ele levado casualmente agrave suspensatildeo de seu juiacutezo
Se for incapaz de decidir fica a impressatildeo de que uma vez adotado o seu ponto de
vista estariacuteamos condenados agrave paralisia Fazer opccedilotildees tomar decisotildees tanto no plano praacutetico
quanto no plano discursivo de alguma forma envolve que se considere que isto eacute preferiacutevel a
aquilo outro que um seja melhor que o outro em determinada situaccedilatildeo Se um ceacutetico se vecirc na
incapacidade de preferir isto a aquilo outro se natildeo consegue decidir visto que encontra
reiteradamente um conflito indecidiacutevel nas coisas que na sua investigaccedilatildeo dos natildeo-evidentes
um equiliacutebrio das posiccedilotildees opostas se estabelece como algueacutem poderia continuar a viver caso
pautasse sua vida pelo ceticismo O resultado da empresa ceacutetica soacute poderia ser mesmo a
paralisia a impossibilidade do agir no seu sentido mais geral
Um dogmaacutetico entatildeo poderia dizer que o ceacutetico assim como ele para agir precisa
decidir E se decidiu teve de considerar que esta decisatildeo eacute melhor que a outra segundo algum
criteacuterio que ele todavia outrora criticou como dogmaacutetico E natildeo haveria como acontecer de
outra forma afinal como poderiacuteamos prosseguir com nossa vida sem que tomaacutessemos
qualquer forma de decisatildeo
De fato o ceacutetico natildeo permaneceraacute inativo em virtude da sua incapacidade de decidir e
que o leva agrave suspensatildeo de juiacutezo Ele como qualquer outro homem continuaraacute tomando
decisotildees e levando adiante sua vida Mas como eacute possiacutevel que apoacutes a epokheacute deixe de ser
inativo sem que ao mesmo tempo acabe por contradizer a sua proacutepria postura filosoacutefica
A resposta estaacute no criteacuterio que vai guiar sua conduta o fenocircmeno Como sabemos o
ceacutetico natildeo tem instrumentos suficientes que lhe permitam decidir a respeito da verdade ou da
41
falsidade de uma teoria que porventura pretenda apresentar a verdade Ele natildeo tem mesmo
como decidir se no acircmbito da experiecircncia sensiacutevel mais comezinha se o mel eacute realmente
doce ou natildeo Enfim tanto no acircmbito dos discursos mais sofisticados da filosofia ou da ciecircncia
quanto no acircmbito de tudo que diga respeito agrave sua vida de homem comum natildeo tem como
proferir um juiacutezo de caraacuteter dogmaacutetico Com o apoio de qual criteacuterio poderaacute decidir que isto eacute
verdadeiro e aquilo falso Naquilo que investiga em relaccedilatildeo ao que se diz dogmaticamente
natildeo consegue encontrar um criteacuterio que lhe permita ter ecircxito na busca pela verdade realidade
das coisas assim como o faz o dogmaacutetico Por toda a parte encontra conflito e desacordo
Para alguns o criteacuterio da verdade possui tais e tais caracteriacutesticas para outros ele possui
caracteriacutesticas diferentes Para outros ainda nem haveria um criteacuterio de verdade47 A noccedilatildeo de
criteacuterio proposta pelos dogmaacuteticos qualquer que ela seja ndash filosoacutefica ou natildeo mais ou menos
elaborada ndash acaba sempre natildeo passando ilesa pelo exame ceacutetico Nos termos pretendidos
pelos dogmaacuteticos natildeo haacute como o ceacutetico natildeo ser levado a suspender seu juiacutezo em relaccedilatildeo a
essa noccedilatildeo Guiar-se por um criteacuterio de maneira anaacuteloga a que os dogmaacuteticos o fazem
significa para o ceacutetico ir portanto contra a orientaccedilatildeo central de sua atitude filosoacutefica Como
obter um criteacuterio que permita concluir pela verdade de que as coisas sejam realmente desta ou
daquela maneira Toda vez que investigou se este ou aquele criteacuterio eacute o verdadeiro o ceacutetico
em acordo com sua atitude investigativa apenas foi trazido agravequele estado de incapacidade de
se decidir agrave maneira dogmaacutetica que assim fez com que suspendesse seu juiacutezo
Eacute em virtude do que acima dissemos que criteacuterio para ele natildeo pode ser entendido
como ldquoaquele a que recorremos para nos convencer da realidade ou da natildeo-realidade de
qualquer coisardquo48
Em que sentido poderiacuteamos entatildeo falar ainda em criteacuterio Para o ceacutetico o criteacuterio seraacute
como jaacute foi mencionado o ldquofenocircmenordquo o que aparece (tograve phainoacutemenon) aquilo que lhe
permite natildeo permanecer inativo em virtude da epokheacute e ldquoconforme ao qual na conduta da
vida praticamos certas accedilotildees e nos abstemos de outrasrdquo49
Se o ceacutetico assim como qualquer outro natildeo estaacute impossibilitado de agir visto que age
de acordo com o que lhe aparece isto que lhe aparece e o faz agir natildeo envolve alguma espeacutecie
47 Para uma discussatildeo geral da problemaacutetica do criteacuterio cf HP II 14-79
48 Cf HP I 21
49 Cf HP I 21
42
de decisatildeo baseada em algum criteacuterio dogmaacutetico a respeito do que quer que seja O que lhe
aparece eacute fruto de um assentimento e de uma afecccedilatildeo involuntaacuteria (Cf HP I 22) Ele eacute
constrangido por uma afecccedilatildeo que a ele se impotildee a agir dessa ou daquela maneira Assim se
ele sente calor ou frio ele natildeo iraacute dizer que acredita natildeo sentir nem calor nem frio (Cf HP I
13) Ele daraacute seu assentimento a esse fenocircmeno que a ele se impotildee ou o calor ou o frio As
decisotildees a serem tomadas seratildeo todas feitas a partir do que aparece Natildeo estaacute no poder dele
por conseguinte decidir-se a respeito do que lhe aparece mas sim decidir-se a partir do que
lhe apareceu Nem poderia ser de outro modo afinal como poderia questionar o proacuteprio
aparecer Quais criteacuterios poderiam guiaacute-lo A mera tentativa que se encaminhasse nessa
direccedilatildeo envolveria um retorno agrave perspectiva dos dogmaacuteticos O fenocircmeno eacute inquestionaacutevel
(azeacutetetoacutes)50 Natildeo haacute o que teorizar a respeito dele Se o ceacutetico tem algo a questionar do
fenocircmeno ele o faz com relaccedilatildeo agraves discussotildees que os dogmaacuteticos dele fazem Qualquer
asserccedilatildeo proferida com a intenccedilatildeo de demonstrar como o fenocircmeno seja realmente e por meio
da qual pretenda-se afirmar uma verdade a seu respeito eacute posta sob investigaccedilatildeo
A partir do que acaba de ser dito talvez fique mais faacutecil entender porque Sexto se
refira no capiacutetulo 10 das Hipotiposes agravequeles que dizem que os ceacuteticos suprimem as
aparecircncias51 Com efeito se for levado em conta os discursos que dogmaticamente pretendem
estabelecer algo em relaccedilatildeo agraves aparecircncias poderiacuteamos entatildeo dizer que os ceacuteticos ldquosuprimemrdquo
as aparecircncias Natildeo eacute o que de fato acontece Os ceacuteticos ndash diante da existecircncia de diversos
discursos conflitantes que tentam cada um de maneira diferente com um grau maior ou
menor de sofisticaccedilatildeo dogmatizar a respeito do que aparece discursos que podem ter contra
eles outros discursos opostos e aparentemente tatildeo dignos de aceitaccedilatildeo ndash satildeo levados agrave
suspensatildeo de juiacutezo Do que se diz a respeito dos fenocircmenos nada pode ele afirmar ou negar
Qualquer juiacutezo que emitisse acerca dos fenocircmenos envolveria a assunccedilatildeo de dogmas E se haacute
supressatildeo das aparecircncias essa supressatildeo se faz a respeito das aparecircncias vistas sob a oacutetica do
discurso dogmaacutetico Natildeo haacute supressatildeo portanto daquilo que lhe aparece e natildeo pode evitar
ldquoPois como noacutes dissemos acima noacutes natildeo derrubamos a representaccedilatildeo passiva (φαντασίαν
παθητικήν) que induz nosso assentimento involuntariamente e essas impressotildees satildeo os
fenocircmenosrdquo52
50 Cf HP I 22
51 Cf HP I 19
52 Cf HP I 19-20
43
Mas tatildeo longe da perspectiva ceacutetica seria tambeacutem todavia afirmar que o dogmatismo
se pode encontrar no coraccedilatildeo do ceticismo em virtude de se considerar o fenocircmeno
inquestionaacutevel
Quando se afirma que o fenocircmeno eacute inquestionaacutevel natildeo se procura dessa maneira
afirmar que ele seja representaccedilatildeo fiel da realidade A aceitaccedilatildeo do fenocircmeno por parte do
ceacutetico se faz isenta de opiniatildeo (adoxaacutestos) Constato diria ele que algo me aparece e guia
minha accedilatildeo natildeo sou capaz contudo de afirmar nada dogmaticamente a respeito desse
aparecer O que natildeo posso eacute questionar que ele a mim se impotildee Dizer o que ele eacute realmente
natildeo eacute algo que esteja em meu poder afirmar Para aleacutem dessa constataccedilatildeo isenta de opiniatildeo
isto eacute natildeo acompanhada de nenhum discurso que procure por exemplo fundamentar esse
caraacuteter inquestionaacutevel daquilo que me aparece natildeo tenho nada a dizer meu juiacutezo estaacute quanto
a este ponto suspenso O que a mim me aparece aparece de modo irrecusaacutevel independente
de minha vontade
Natildeo eacute agrave toa que comumente qualifica de involuntaacuteria a afecccedilatildeo que determinaraacute o seu
agir O fenocircmeno eacute uma afecccedilatildeo isto eacute um paacutethos algo que afeta o ceacutetico e natildeo depende
dele Ele sofre a accedilatildeo de algo que o leva ao assentimento53
O proacuteprio assentimento ao fenocircmeno eacute fruto de um reconhecimento O assentimento
que ele daacute agravequilo que lhe aparece seria apenas a concessatildeo agravequilo que ele natildeo pode evitar e
determina seu agir54
Nessa nossa tentativa de explicitar o ldquofenomenismordquo ceacutetico talvez seja vaacutelido ainda
acrescentar que quando se trata de fenocircmeno no ceticismo eacute necessaacuterio que deixemos de
pensar em termos de uma distinccedilatildeo que poderia existir entre ser e aparecer Natildeo estamos mais
aqui nos movendo no quadro da distinccedilatildeo que muitos filoacutesofos ldquodogmaacuteticosrdquo fizeram entre o
domiacutenio do sensiacutevel das coisas que nos aparecem e o domiacutenio do inteligiacutevel no qual
poderiacuteamos ter acesso ao que as coisas sejam realmente para aleacutem das variaccedilotildees que podem
ser observadas no domiacutenio sensiacutevel
53 ldquo() mas nos dizemos que o ceacutetico eacute perturbado pelas coisas que natildeo consegue evitar Assim noacutes concedemos que ele agraves vezes sente frio e tem sede e sofre vaacuterias afecccedilotildees semelhantesrdquo (Cf HP I 29)
54 A mesma passividade jaacute se observava com relaccedilatildeo agrave suspensatildeo de juiacutezo O que temos agora no que concerne agrave atitude ceacutetica para com o ldquofenocircmenordquo eacute apenas um desdobramento de como um ceacutetico pode exercer sua conduta filosoacutefica uma vez afastado do dogmatismo
44
O fenocircmeno ou aquilo que aparece natildeo abrange para o ceacutetico um domiacutenio separado e
que remeta a um outro domiacutenio que lhe daria seu fundamento No ceticismo fenocircmeno tem
de ser compreendido no sentido mais amplo possiacutevel Nenhum estatuto ontoloacutegico ou
epistemoloacutegico deve lhe ser acrescentado Tudo que aparece ao ceacutetico e lhe determina o agir
apoacutes a epokheacute eacute fenocircmeno Aderindo entatildeo aos ldquofenocircmenosrdquo na observacircncia da vida vive ele
sem opinar (adoxaacutestos)55
Aparece entatildeo a ele que ele tem de se guiar por suas faculdades naturais pelas
afecccedilotildees compulsoacuterias pela tradiccedilatildeo das leis e costumes e pelos ensinamentos das artes56
Com essa divisatildeo do que pode aparecer ao ceacutetico e o permite se conduzir em sua vida mostra-
se assim que do mesmo modo que com os outros homens filoacutesofos ou natildeo seu agir em
princiacutepio natildeo diferiraacute em nada do deles Apoacutes a epokheacute continuaraacute a realizar as mesmas
accedilotildees a viver a mesma vida que todos os outros vivem mas apenas com uma diferenccedila ele
viveraacute mas sem opinar O ceacutetico estaacute consciente de que ele sente fome sede que pensa que
ouve que haacute uma mesa agrave sua frente que algueacutem passa andando agrave sua frente que esta pessoa
se movimenta Ele natildeo nega esses fatos Apenas que natildeo profere nenhuma asserccedilatildeo natildeo
elabora nenhuma teoria que pretendesse dizer o que significariam em si mesmos em sua
realidade esses fenocircmenos Isso quer dizer que ele na sua vida age mas sem pretender fazer
algo fundado nalguma teoria segundo algum criteacuterio que o indique ser melhor isto do que
aquilo este preferiacutevel agravequele dado que soubesse estar agindo de acordo com a verdade
O ceacutetico assente ao que lhe aparece entretanto isto que lhe aparece pode hoje aparecer
de um modo e amanhatilde pode aparecer de outro Aquilo que lhe aparece natildeo eacute aceito porque
estaria de acordo com alguma verdade seria a expressatildeo da realidade mesma em suma essa
afecccedilatildeo (paacutethos) que se lhe impotildee natildeo deve sua aceitaccedilatildeo a um possiacutevel teor dogmaacutetico da
mesma As aparecircncias estatildeo sujeitas a mudanccedilas tanto quanto aquele para quem elas
aparecem Fundado em que posso dizer que aquilo que a mim me aparece tambeacutem iraacute
aparecer da mesma maneira para todos os outros homens Uma vez afastada a perspectiva
dogmaacutetica soacute resta ao ceacutetico comunicar individualmente como fruto de uma experiecircncia
pessoal aquilo que lhe aparece Se a perspectiva dogmaacutetica estaacute afastada eacute perfeitamente
coerente com o ceticismo que o que conduz o ceacutetico na sua vida possa variar Natildeo haacute nada
que o prenda a determinada linha de conduta Se ele age sempre da mesma maneira tal
55 Cf HP I 23
56 Cf HP I 23
45
comportamento natildeo eacute obstaacuteculo a uma mudanccedila de conduta Como jaacute foi salientado o que
hoje lhe aparece de um modo amanhatilde pode aparecer diferente
Na conduccedilatildeo natildeo-dogmaacutetica de sua vida de acordo com o fenocircmeno o ceacutetico procura
agir em conformidade com a finalidade do ceticismo a saber tranquumlilidade (ataraxiacutea) com
respeito a mateacuteria de opiniatildeo e moderaccedilatildeo nos sentimentos (metriopateacuteia) com respeito a
coisas inevitaacuteveis57
Com efeito a busca dogmaacutetica pela tranquumlilidade soacute trouxe dissabores ao ceacutetico Por
essa via natildeo foi capaz de distinguir o verdadeiro do falso nas coisas que investigou natildeo
conseguiu chegar a nenhuma verdade absoluta A uacutenica coisa a que chegou foi encontrar
contradiccedilotildees naquilo que investigava Dessa maneira diante do conflito de igual forccedila entre
argumentos discursos opostos sem poder se decidir por um dos lados em disputa a
tranquumlilidade lhe adveio casualmente com a suspensatildeo do juiacutezo58
Aleacutem disso a moderaccedilatildeo nos sentimentos adveacutem de sua postura natildeo-dogmaacutetica e que
o leva a conduzir-se na vida de acordo com os fenocircmenos Se natildeo haacute dogmas a serem aceitos
entatildeo os ceacuteticos natildeo sofreratildeo como no caso dos dogmaacuteticos por considerarem que possa
haver coisas boas ou maacutes por natureza59 Se o ceacutetico sofre e como assinala Sexto ele de fato
natildeo estaacute assim como natildeo estatildeo os outros homens isento de perturbaccedilotildees em sua vida60 o
sofrimento causado por qualquer forma de perturbaccedilatildeo poderaacute ser minimizado em virtude
dessa atitude consistente no viver conforme o fenocircmeno Natildeo que ele efetivamente natildeo possa
em nenhuma hipoacutetese vir a ter uma qualquer perturbaccedilatildeo Nada mais distante do ceticismo
Apenas que a sua postura filosoacutefica talvez seja mais capaz de realizar a finalidade que ele se
propotildee alcanccedilar De acordo com o que me aparece poderia ele dizer vejo que agindo como
ajo estou menos propenso a ficar perturbado e intranquumlilo do que aqueles que procuram viver
de acordo com dogmas
57 Cf HP I 25
58 Cf Ibidem I 26
59 Cf Ibidem I 27
60 Cf Ibidem I 29
46
Os tropos ceacuteticos
Com o intuito de chegar agrave suspensatildeo de juiacutezo o procedimento de que se serve o ceacutetico
consiste como jaacute mencionado61 em produzir oposiccedilotildees entre as coisas Essas oposiccedilotildees natildeo
seguem regras especiacuteficas Das mais variadas maneiras portanto satildeo elas produzidas Desse
modo opotildeem-se aparecircncias a aparecircncias juiacutezos a juiacutezos aparecircncias a juiacutezos e assim por
diante62
Os tropos satildeo diversos modos pelos quais os ceacuteticos produzem essas antinomias e
assim ele pode ser levado agrave suspensatildeo do juiacutezo Entre os modos mais antigos contam dez63
Satildeo eles o primeiro baseado na variedade dos animais o segundo nas diferenccedilas entre os
homens o terceiro nas diferentes estruturas dos oacutergatildeos dos sentidos o quarto nas
circunstacircncias o quinto nas posiccedilotildees distacircncias e lugares o sexto nas misturas o seacutetimo
nas quantidades e constituiccedilatildeo dos objetos o oitavo na relaccedilatildeo o nono na frequumlecircncia ou
raridade de ocorrecircncia o deacutecimo nos costumes e leis nas crenccedilas miacuteticas e convicccedilotildees
dogmaacuteticas
Podemos dizer de modo sucinto que esses tropos nos mostram o caraacuteter relativo de
todas as coisas A partir de cada um deles considerando-se um aspecto especiacutefico podemos
apontar a relatividade das coisas Tanto eacute assim que o tropo da relaccedilatildeo eacute visto como aquele ao
qual todos os outros nove podem se referir64
Aleacutem desse tropos existem outros cinco posteriores que igualmente satildeo meios de que
se vale o ceacutetico para ser trazido agrave epokheacute o primeiro baseado na diaphoniacutea (discrepacircncia
controveacutersia) o segundo na regressatildeo ao infinito o terceiro na relatividade o quarto na
61 Ver a respeito pp 30-32
62 Cf HP I 31
63 Na sua exposiccedilatildeo do ceticismo de Enesidemo Brochard nos lembra que se os dez tropos foram argumentos que os ceacuteticos mais antigos nos legaram foi justamente Enesidemo que os ordenou e numerou na forma que noacutes os conhecemos O proacuteprio Sexto continua ele assim como Aristocleacutes e Dioacutegenes atribuem os dez tropos a Enesidemo Assim para os estudiosos do ceticismo esses tropos satildeo conhecidos como os tropos de Enesidemo A respeito do que agora foi dito e para uma apresentaccedilatildeo sumaacuteria desses tropos cf Brochard V Les sceptiques grecs Paris Vrin 1969 pp 253-259
64 Cf HP I 39
47
hipoacutetese o quinto no raciociacutenio circular Esses cinco tropos ficaram conhecidos como os
tropos de Agripa65
Com efeito pelo tropo da diaphoniacutea somos postos de frente ao conflito interminaacutevel
de opiniotildees a respeito de todos os assuntos conflito que pode ter surgido tanto entre pessoas
comuns e entre filoacutesofos A dificuldade em decidir do ceacutetico dada essa imensa variedade de
opiniotildees a sua incapacidade em acolher ou rejeitar esta ou aquela opiniatildeo acaba por levaacute-lo agrave
suspensatildeo do juiacutezo66
Pelo tropo da regressatildeo ao infinito o ceacutetico pede ao dogmaacutetico que forneccedila uma nova
prova para o tema pesquisado pois a prova que fora aduzida natildeo lhe pareceu suficiente E
essa nova prova tambeacutem natildeo eacute suficiente e assim pede uma nova prova o que leva a uma
regressatildeo que natildeo tem fim67
O tropo da relatividade nos mostra que o assunto investigado aparece recorrentemente
numa determinada relaccedilatildeo isto eacute estaacute sujeito a uma determinada condiccedilatildeo o que impede que
o que se diga dele seja posto de modo absoluto Assim o assunto estaacute por exemplo
relacionado ao sujeito que julga esse sujeito constitui-se num determinado ponto de vista
natildeo-universalizaacutevel Desse modo diante da relatividade das coisas o ceacutetico eacute induzido agrave
suspensatildeo do juiacutezo68
O tropo da hipoacutetese nos impede de aceitar algo como ponto de partida sem nenhuma
demonstraccedilatildeo Isto acontece porque podemos da mesma maneira que aquele que avanccedilou
essa hipoacutetese tambeacutem levantar uma outra hipoacutetese contraacuteria e sem para tanto aduzir nenhuma
demonstraccedilatildeo para a mesma Tanto uma quanto a outra seratildeo dignas do mesmo creacutedito Natildeo
haacute assim motivo para que uma seja mais aceitaacutevel que sua contraacuteria69
65 De acordo com Brochard a referecircncia desses tropos a Agripa se faz com base na menccedilatildeo de Dioacutegenes a esse filoacutesofo no momento em que cita esses cinco tropos na mesma ordem e termos que o faz Sexto Empiacuterico que no entanto natildeo faz menccedilatildeo a Agripa Acerca da exposiccedilatildeo desses tropos por Brochard cf Les sceptiques grecs pp 300-303
66 Cf HP I 165
67 Cf HP I 166
68 Cf Ibidem I 167
69 Cf Ibidem I 168
48
Por fim pelo tropo do raciociacutenio circular eacute absurdo imaginar que aquilo que seraacute
objeto de prova seja provado a partir daquilo mesmo que aguarda prova e desse modo
acabamos sendo levados novamente agrave epokheacute70
Como poderemos acompanhar neste estudo Hegel estaraacute sempre convencido que a
filosofia precisa tomar a seacuterio essa radicalidade da criacutetica ceacutetica pois de outra maneira a
filosofia corre o risco de perecer diante dessa mesma criacutetica Hegel estaacute atento a esse aspecto
diriacuteamos negativo do ceticismo Tanto eacute assim que ele por exemplo na discussatildeo que
empreende na Ciecircncia da Loacutegica71 acerca do comeccedilo da filosofia tem em vista sempre uma
possiacutevel criacutetica ceacutetica e mais precisamente por meio dos tropos Aleacutem disso esta exposiccedilatildeo
da filosofia ceacutetica permite que se possa eacute o que nos parece avaliar a compreensatildeo hegeliana
do ceticismo e o aproveitamento do mesmo em sua filosofia
70 Cf Ibidem I 169
71 Com relaccedilatildeo ao mesmo tema tambeacutem haacute essa preocupaccedilatildeo na Enciclopeacutedia quando trata da Loacutegica
49
Capiacutetulo 2 ndash O ceticismo na filosofia do jovem Hegel
No seu artigo ldquoRelacionamento do ceticismo agrave filosofiardquo72 Hegel dentre outros
objetivos apresenta sua concepccedilatildeo do papel do ceticismo na filosofia A esse respeito natildeo
nos parece insensato dizer que para o filoacutesofo a possibilidade da filosofia estaacute em larga
medida atrelada agrave consideraccedilatildeo do desafio imposto pela criacutetica ceacutetica do caraacuteter dogmaacutetico
das filosofias73 Natildeo que para que haja filosofia o ceticismo precise ser afastado por meio de
uma refutaccedilatildeo que aponte a falta de propoacutesito de sua atitude filosoacutefica Eacute legiacutetima para Hegel
a criacutetica ceacutetica das filosofias O que natildeo implica para ele que devamos nos tornar ceacuteticos Natildeo
teremos aqui portanto nem adesatildeo ao ceticismo e nem uma mera refutaccedilatildeo do mesmo
Teremos o quecirc entatildeo
No mesmo artigo sobre o Ceticismo veremos que a soluccedilatildeo apresentada por Hegel
para esse impasse envolve a incorporaccedilatildeo do ceticismo agrave sua filosofia Nesta o ceticismo seraacute
um momento fundamental O que ele chama de seu lado negativo e que prepara o surgimento
de seu momento positivo ou o lado positivo da filosofia Por traacutes dessa incorporaccedilatildeo do
ceticismo agrave filosofia opera uma distinccedilatildeo feita por Hegel entre o que seja o entendimento e o
que seja a razatildeo Neste escrito que trata da filosofia ceacutetica natildeo temos todavia uma exposiccedilatildeo
mais minuciosa do significado desses termos
Interessa-nos aqui retomar um outro texto de Hegel a saber Diferenccedila entre o sistema
filosoacutefico de Fichte e de Schelling74o assim chamado Escrito sobre a Diferenccedila pois eacute nele
72 GW 4 pp 197-238
73 No tocante ainda agrave importacircncia decisiva da filosofia ceacutetica para Hegel e levando-se em conta nossa interpretaccedilatildeo que busca entre outras coisas apontar para a relaccedilatildeo natildeo-defensiva do autor para com o ceticismo cremos natildeo estar sozinhos e por isso talvez natildeo seja exagerado mencionar a seguinte declaraccedilatildeo de Michael Forster ldquoEm primeiro lugar a interpretaccedilatildeo hegeliana da tradiccedilatildeo ceacutetica na filosofia e sua reaccedilatildeo a essa tradiccedilatildeo satildeo absolutamente fundamentais para a sua perspectiva filosoacutefica de modo que regiotildees extensas de seu pensamento permanecem obscuras ateacute que essa interpretaccedilatildeo e reaccedilatildeo sejam apropriadamente compreendidas Em segundo lugar as reflexotildees hegelianas a respeito da natureza da tradiccedilatildeo ceacutetica possuem meacuterito intriacutenseco consideraacutevel contendo lsquoinsightsrsquo originais e que podem ser aproveitados por historiadores contemporacircneos da filosofia e filoacutesofos interessados pelo ceticismordquo In Forster M Hegel and Skepticism CambridgeMassachusetts Harvard University Press 1989 p 1 E com respeito precisamente agrave interpretaccedilatildeo hegeliana do ceticismo antigo no livro de Forster ver os capiacutetulos 1 e 2
74 GW 4 pp 5-92
50
que encontraremos uma exposiccedilatildeo detalhada do significado de entendimento e razatildeo e que
nos permitiraacute melhor compreender na visatildeo do jovem Hegel o papel do ceticismo na
filosofia75
Eacute no capiacutetulo inicial do Escrito sobre a Diferenccedila que tem como tiacutetulo ldquo[Das] vaacuterias
formas que se encontram no filosofar atualrdquo que encontramos um tratamento mais detalhado
do significado de entendimento e razatildeo
Tendo como pano de fundo um diagnoacutestico e uma criacutetica da cultura (Bildung) de sua
eacutepoca todavia com o foco aiacute voltado para a filosofia que satildeo efetuadas as consideraccedilotildees
hegelianas a respeito de entendimento e razatildeo Esta criacutetica estaacute alicerccedilada na reflexatildeo criacutetica
da razatildeo sobre si mesma empreendida por Kant mas que Hegel por considerar a mesma
insuficiente procura prolongar e tornaacute-la mais radical76 Nesse sentido a radicalidade da
criacutetica ceacutetica a toda forma de pensamento finito eacute um elemento importante a contribuir nessa
tarefa criacutetica hegeliana
Com efeito Hegel afirma que a razatildeo como manifestaccedilatildeo do absoluto que eacute busca na
sua auto-produccedilatildeo modelar o absoluto numa totalidade objetiva77 O ecircxito da atividade
especulativa da razatildeo depende de se alcanccedilar a identidade a mais completa a identidade
absoluta quando a filosofia do sistema coincide com o proacuteprio sistema Todavia nem sempre
essa identidade eacute alcanccedilada Ainda mais numa eacutepoca em que ldquoa potecircncia de unificaccedilatildeo
desaparece da vida dos homens e as oposiccedilotildees tendo perdido seu relacionamento vivo e sua
75 Vale mencionar ainda apenas a tiacutetulo ilustrativo que o Escrito sobre a Diferenccedila fora publicado em 1801 e o artigo sobre o Ceticismo em 1802 e apenas com poucos meses de diferenccedila
76 ldquoO princiacutepio da independecircncia da razatildeo de sua absoluta autonomia em si mesma deve ser considerado de agora em diante como princiacutepio universal da filosofia e tambeacutem como um dos preconceitos da eacutepocardquo In GW 20 p 99 trad brasileira por Paulo Meneses Enciclopeacutedia das Ciecircncias Filosoacuteficas Satildeo Paulo Loyola 1992 p 136
77 Cf GW 4 p 10 e p 30 trad p 84 e p 104
51
accedilatildeo reciacuteproca ganham subsistecircncia por sirdquo78 Vive-se portanto numa eacutepoca em que a
fragmentaccedilatildeo e o isolamento passaram a ser dominantes em todos os aspectos da vida Uma
cultura fundada no entendimento prosperou e passou a ser dominante79 Mas por mais que seja
um dado da vida esse seu cultivar-se a partir da eterna produccedilatildeo de oposiccedilotildees esta atividade
natildeo pode levar agrave perda de qualquer possibilidade de unificaccedilatildeo Por isso eacute preciso a partir do
combate a essa Bildung limitadora tentar restaurar a harmonia perdida
No aspecto filosoacutefico esse desaparecimento da unificaccedilatildeo que pode ser observado
pelo predomiacutenio dessa cultura regida pela potecircncia da cisatildeo (Entzweiung)80 na qual as
oposiccedilotildees como jaacute foi dito tornaram-se autocircnomas configura-se em uma cultura filosoacutefica
fundada tambeacutem no entendimento uma cultura filosoacutefica na qual a razatildeo renuncia a si mesma
em prol do entendimento (Cf GW 4 p 15)
E o que pode significar para a filosofia estar sob a eacutegide do entendimento Significa
como veremos estar vulneraacutevel aos ataques do ceticismo Cremos que Hegel jaacute neste
momento mesmo sem haver referecircncia direta estaacute preocupado com a defesa da filosofia
perante a criacutetica ceacutetica Em vista da situaccedilatildeo da filosofia naquele momento o diagnoacutestico
hegeliano aponta para o fracasso de qualquer tentativa filosoacutefica de se sustentar perante uma
possiacutevel criacutetica de teor ceacutetico
Com efeito Hegel constatou ser a sua eacutepoca aquela em que a cultura fruto da cisatildeo do
absoluto isolou-se do mesmo e tornou-se autocircnoma81 Mas o fenocircmeno justamente por advir
do absoluto quer se constituir numa totalidade Se o fenocircmeno se constituir num todo a partir
dessa forccedila que limita ndash o entendimento e apoiado em todas as potecircncias da natureza e dos
talentos82 ao final desse processo teraacute apenas uma totalidade composta de limitaccedilotildees um
conjunto de partes justapostas mas natildeo o absoluto E quanto maior o esforccedilo em direccedilatildeo ao
absoluto mais e mais o entendimento produz a si mesmo numa totalidade composta de
finitos que natildeo teraacute fim O entendimento aiacute soacute faz zombar de si mesmo (seiner selbst
78 Ibidem p 14 trad p 88
79 Cf Ibidem pp 12-16 trad pp 86-90
80 Cf Ibidem p 14 trad p 88
81 Ibid p 12 trad p 86
82 Ibid pp 12-13 trad pp 86-87
52
spottet)83 Por outro lado o entendimento ao inveacutes de justapor os limitados por ele mesmo
postos num todo pode suprimindo todo finito fixar ldquoem um produto o negar racionalrdquo (ibid
p 13 trad p 87) Se a reflexatildeo pretendia elevar-se agrave razatildeo com a oposiccedilatildeo do infinito a todo
finito que nega fracassa nesse intento pois ldquoela se rebaixa novamente a entendimento ao
fixar o fazer da razatildeo na oposiccedilatildeordquo84 O infinito enquanto ato racional de negar opotildee-se a
todo finito por ele negado ldquoo entendimento ao fixar o negar do finito opotildee o mesmo
absolutamente ao finitordquo85 Nos dois casos acima descritos por mais que se tente natildeo se
consegue deixar a esfera das oposiccedilotildees Ou porque os opostos permanecem justapostos numa
totalidade finita que sempre pode se ampliar sem nunca tornar-se absoluta ou porque o negar
que se pretende racional natildeo atinge sua meta por manter-se em oposiccedilatildeo a todo finito
A cultura (Bildung) de diferentes eacutepocas observa Hegel mediante o trabalho do
entendimento produziu variadas formas de oposiccedilatildeo e pretendeu que elas valessem como
expressotildees do racional e do absoluto (Cf ibid p 13 trad p 87) Todavia o entendimento
arvorava-se em vatildeo realizar uma tarefa para a qual natildeo fora destinado A razatildeo tem como
uacutenico interesse suspender86 (aufheben) as oposiccedilotildees fixadas pelo entendimento pois essa eacute a
maneira de se tentar restabelecer a harmonia perdida com a dilaceraccedilatildeo do absoluto A tarefa
da razatildeo eacute ainda mais urgente numa eacutepoca que conforme o cenaacuterio descrito por Hegel a
formaccedilatildeo cultural cada vez mais se estende na forma de uma exteriorizaccedilatildeo da vida mediante
a potecircncia da cisatildeo num processo vertiginoso em que tornam-se os esforccedilos da vida mais e
mais alheios ao todo da formaccedilatildeo cultural e insignificantes na sua tentativa de parir
novamente a harmonia (Cf ibid p 14 trad p 88)
Este cenaacuterio eacute a descriccedilatildeo que Hegel faz de uma eacutepoca a sua na qual a filosofia que
natildeo seja mera expressatildeo do pensar limitado de entendimento faz falta Somente com a
realizaccedilatildeo da filosofia pode a cisatildeo absoluta posta pelo entendimento ser posta na sua
condiccedilatildeo verdadeira subalterna de cisatildeo relativa (Cf ibid p 14 trad p 88) Vive-se
83 Cf Ibid p 13 trad p 87
84 Ibid p 13 trad p 87 (ldquohat sich wieder zum Verstand erniedrigt indem sie das Thun der Vernunft in Entgegensetzung fixirterdquo)
85 Ibid p 13 trad p 87 (ldquoindem der Verstand es fixirt setzt er es dem Endlichen absolut entgegen rdquo)
86 Com efeito ao dizer que a razatildeo tem como uacutenico interesse suspender as oposiccedilotildees fixadas pelo entendimento isto se deve ao fato de que a razatildeo natildeo eacute contraacuteria agrave oposiccedilatildeo e agrave limitaccedilatildeo elas precisam existir mas que as oposiccedilotildees absolutamente fixadas impedem a restauraccedilatildeo da totalidade da harmonia absoluta (Cf GW 4 pp 13-14 trad pp 87-88)
53
segundo ele num periacuteodo carente de uma filosofia que cumpra sua tarefa isto eacute que ponha o
ser no natildeo-ser ndash como vir-a-ser a cisatildeo no absoluto ndash como seu fenocircmeno o finito no infinito
ndash como vida (GW 4 16) Sua concepccedilatildeo de razatildeo e de entendimento aleacutem do relacionamento
que entre ambos se estabelece indicam a direccedilatildeo pela qual poderaacute ocorrer o suprimento dessa
carecircncia e ao mesmo tempo tornar a filosofia imune ao ceticismo
Mas de volta agraves paacuteginas iniciais do Escrito sobre a Diferenccedila Hegel laacute notava que o
entendimento constitui-se num domiacutenio onde predomina o limitado Ele eacute ldquoa forccedila da
limitaccedilatildeordquo (GW 4 p 12) Toda determinaccedilatildeo que produz adveacutem de uma atividade reflexiva
apartada da razatildeo Hegel a chama de reflexatildeo isolada (GW 4 p 16) A reflexatildeo soacute pode dar
origem ao o limitado Isto significa que todo ser que ela produz estaraacute sempre numa relaccedilatildeo
com um outro ldquotodo ser porque ele eacute posto eacute um contraposto condicionado e
condicionanterdquo (GW 4 p 17) Sempre haveraacute um outro perante um posto A construccedilatildeo de
uma totalidade no plano do entendimento a formaccedilatildeo de um sistema filosoacutefico segundo suas
regras eacute uma tarefa que nunca se completaraacute uma tarefa fadada ao fracasso o entendimento
completa suas limitaccedilotildees que lhe satildeo proacuteprias mediante o pocircr das limitaccedilotildees contrapostas na
qualidade de condiccedilotildees essas carecem do mesmo completamento (Vervollstaumlndigung) e o
trabalho do entendimento se estende ao infinitordquo (GW 4 p 17) Todo ser posto pela atividade
reflexiva do entendimento natildeo subsiste por si soacute A sua limitaccedilatildeo torna-o dependente de um
outro que a ele se relaciona O entendimento contudo natildeo quer enxergar essa relaccedilatildeo de
dependecircncia existente entre os contrapostos Hegel chama isso de teimosia (Eigensinn) do
entendimento que ldquodeixa subsistir um ao lado do outro numa contraposiccedilatildeo natildeo unificada o
determinado e o indeterminado a finitude e a infinitude dadardquo (GW 4 p 17)
Na criacutetica de Hegel agrave limitaccedilatildeo do entendimento Klaus Vieweg vecirc e julgamos que de
modo acertado a aplicaccedilatildeo do 2ordm e 3ordm tropos de Agripa a essa faculdade do conhecer finito o
entendimento87
87 Vieweg K Philosophie des Remis Der junge Hegel und das ldquoGespenst des Skepticismusrdquo Muumlnchen Wilhelm Fink 1999 p 129 Cabe notar que este livro de Vieweg constitui uma minuciosa investigaccedilatildeo acerca da presenccedila do ceticismo na filosofia do jovem Hegel e em larga medida da discussatildeo em torno do ceticismo no mesmo periacuteodo na Alemanha Ver tambeacutem a respeito ndash e sob um ponto de vista mais amplo ndash da compreensatildeo hegeliana do ceticismo Vieweg K e Bowman B (orgs) Die freie Seite der Philosophie (Skeptizismus in hegelscher Perspektive) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 10 2006 O volume conteacutem uma seacuterie de artigos de diversos autores acerca do tema Tambeacutem no volume que organizou em torno do Jornal criacutetico da filosofia de Schelling e Hegel onde foi publicado o artigo ienense de Hegel sobre o ceticismo haacute alguns artigos tratando do tema ceticismo na filosofia do jovem Hegel Para tanto cf Vieweg K (org) Gegen das lsquounphilosophische Unwesenrsquo (Das Kritische Journal der Philosophie von
54
Se tudo que eacute posto pelo entendimento eacute limitado e finito ou seja em virtude dessas
caracteriacutesticas estaacute sempre na dependecircncia dado seu caraacuteter condicionado de um outro que o
complete na medida que a ele se relacione entatildeo natildeo seria descabido pensar aqui na criacutetica
por meio do 3ordm modo de Agripa ao caraacuteter relativo de todas as coisas (Cf HP I 167 tambeacutem
I 175-7)
Essa relatividade adveacutem para Hegel do fato de que o entendimento eacute regido pelo
princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo algo natildeo pode ser A e natildeo-A ao mesmo tempo Ao se aceitar o
princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo aceita-se concomitantemente o princiacutepio de identidade que A eacute
igual a A Segundo Hegel eacute por estar comandado por esses princiacutepios que o entendimento
estaraacute sempre sujeito a que as determinaccedilotildees por ele postas sejam sempre condicionadas e
possam a elas outras serem contrapostas Ele chama a identidade que rege o entendimento de
relativa e abstrata uma identidade limitada pois as determinaccedilotildees produzidas de acordo com
ela tem como caracteriacutestica proacutepria estarem abstraiacutedas de suas opostas (GW 4 p 25)
As proposiccedilotildees de entendimento satildeo constituiacutedas a partir de uma igualdade que exclui
de si a desigualdade Isto ocorre porque tais proposiccedilotildees satildeo regidas por uma identidade
formal Para o entendimento prossegue Hegel em A=A como princiacutepio de identidade estaacute
contida apenas uma igualdade e na qual se faz abstraccedilatildeo de toda desigualdade (GW 4 pp 24-
25)
Podemos adiantar entretanto que do ponto de vista da razatildeo postula-se tambeacutem ldquoa
posiccedilatildeo daquilo que foi abstraiacutedo na igualdade pura o pocircr do contraposto o pocircr da
desigualdaderdquo (GW 4 p 25) Assim A=A natildeo consiste numa igualdade pura Tal igualdade
se sustenta na medida em que o entendimento abstrai da posiccedilatildeo do contraposto da
desigualdade
Schelling und Hegel) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 7 2002 Cabe ainda mencionar a respeito do tema ceticismo e dos debates no qual ele aparece na filosofia alematilde em 1800 o volume organizado por Vieweg e Bowman Wissen und Begruumlndung (Die Skeptizismus-Debatte um 1800 im Kontext neuzeitlicher Wissenskonzeptionen Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 8 2003 Para uma anaacutelise do ceticismo na filosofia do jovem Hegel ver tambeacutem Hofweber G Skeptizismus als bdquodie erste Stuffe zur Philosophieldquo beim Jenaer Hegel Heidelberg Winter 2006 Dentro ainda do mesmo tema o artigo de Paulo Eduardo Arantes Nihilismusstreit in Ressentimento da Dialeacutetica Satildeo Paulo Paz e Terra 1996
55
Segundo Hegel em A=A o primeiro A eacute um sujeito e o outro A eacute um objeto O A que
estaacute posto do lado do sujeito natildeo eacute o mesmo A que estaacute posto do lado do objeto Eles satildeo
diferentes E a expressatildeo dessa diferenccedila eacute A natildeo eacute = A ou A eacute = B
Uma proposiccedilatildeo formal natildeo pode ser contraditoacuteria em si mesma No domiacutenio do
entendimento se expressa a igualdade numa proposiccedilatildeo e a cisatildeo ou desigualdade em outra
Mas quando entra em cena a razatildeo a identidade formal eacute deixada de lado Em A=A o A
posto do lado do sujeito soacute afirma sua identidade ao se relacionar com seu oposto o A posto
do lado do objeto negando-o Como jaacute foi dito haacute uma diferenccedila entre o A (sujeito) e o A
(objeto)
ldquoA=A conteacutem a diferenccedila de A como sujeito e de A como objeto ao mesmo tempo
que sua identidaderdquo(GW 4 p 26)
O mesmo se passa em A=B --- e por isso eacute indiferente pocircr A=A ou A=B o A sujeito eacute
diferente do B objeto ao mesmo tempo que haacute uma identidade aiacute contida Como conclusatildeo
podemos dizer que a identidade no acircmbito da razatildeo somente eacute possiacutevel com a diferenccedila
Se o entendimento no entanto manteacutem-se de acordo com o princiacutepio de natildeo-
contradiccedilatildeo estaacute condenado a perecer devido a estar sob a legislaccedilatildeo desse mesmo princiacutepio
Conforme Hegel a lei da contradiccedilatildeo eacute o que possibilita ao entendimento constituir-se como
absoluto e dessa maneira fazer com que seu ser-posto (Gesetzsein) seja e permaneccedila (GW 4
p 18) Mas em virtude de se reger por essa lei os produtos do entendimento natildeo podem se
manter jaacute que a limitaccedilatildeo dos mesmos eacute mostrada pelo seu contraposto
O que isso significa Significa que de acordo com o que foi dito haacute pouco a
contradiccedilatildeo precisa ser afastada As proposiccedilotildees produzidas no acircmbito do entendimento natildeo
admitem a contradiccedilatildeo Natildeo podem admitir que se diga que algo seja e natildeo seja ao mesmo
tempo No que nos interessa mais de perto a filosofia Hegel procura a todo momento neste
no iniacutecio do Escrito sobre a Diferenccedila mostrar que os sistemas filosoacuteficos de sua eacutepoca se
articulam na forma de proposiccedilotildees de acordo com a lei do entendimento (Cf GW 4 p 24) O
que traz por consequumlecircncia a impossibilidade de manutenccedilatildeo desses sistemas ldquopois algo
posto por meio da reflexatildeo uma proposiccedilatildeo eacute por si um limitado e condicionado e carece de
um outro para sua fundamentaccedilatildeo e assim ao infinitordquo (GW 4 p 23) Natildeo haacute como natildeo
pensar aqui assim como jaacute fora notado por Vieweg no 2ordm tropo de Agripa o da regressatildeo ao
infinito Por meio desse tropo o ceacutetico pretende mostrar a inexistecircncia de demonstraccedilotildees pois
56
se pode questionar as premissas de uma argumentaccedilatildeo proposta dogmaticamente e tambeacutem as
premissas dessas premissas de modo que esse processo de justificaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo
possa sempre se renovar numa regressatildeo ao infinito (Cf HP I 166)
Qualquer proposiccedilatildeo posta como fundamento absoluto de um sistema baseado no
entendimento natildeo teraacute como se sustentar ldquopois de um algo pensado que a proposiccedilatildeo
exprime se pode facilmente demonstrar que ele eacute condicionado por um contraposto e
portanto natildeo eacute absoluto e se pode demonstrar por esse contraposto agrave proposiccedilatildeo que ela
precisa ser posta e que portanto aquele algo pensado que a proposiccedilatildeo exprime eacute nadardquo
(GW 4 p 24) Uma tal proposiccedilatildeo natildeo tem condiccedilotildees de cumprir seu propoacutesito de fundaccedilatildeo
do sistema A ela uma outra pode ser posta em sentido contraacuterio de maneira que sua pretensatildeo
ao absoluto fique prejudicada Parece-nos que natildeo seja por outro motivo que Hegel afirme que
uma proposiccedilatildeo dessa natureza seja no fundo uma antinomia e por isso fadada a ser
suprimida (Cf GW 4 p 24)88 Do ponto de vista do que ele chama de mera reflexatildeo (die
blosse Reflexion) natildeo eacute entatildeo possiacutevel que um sistema construiacutedo a partir da ldquoloacutegicardquo do
entendimento possa pretender tornar-se incondicionado Essa conclusatildeo a nosso ver estaacute
dentro do espiacuterito da filosofia ceacutetica Diante do conflito entre proposiccedilotildees ou argumentos
contraditoacuterios o ceacutetico natildeo tendo como se decidir por um dos lados afinal ambos parecem
igualmente persuasivos eacute levado a suspender seu juiacutezo (Cf HP I 8) No caso de Hegel a
antinomia estabelecida tambeacutem impede que se aceite que um sistema qualquer tenha sido bem
sucedido na sua pretensatildeo ao absoluto Do ponto de vista do entendimento a contradiccedilatildeo eacute
um mal a ser evitado Mas como mostrou o ceacutetico ela natildeo pode ser evitada e Hegel leitor
atento de Sexto Empiacuterico concorda com ele
A filosofia numa eacutepoca dominada pela potecircncia da cisatildeo torna-se um alvo faacutecil do
ceticismo Natildeo haacute como evitar que o ceacutetico possa sempre mostrar o oposto daquilo que foi
posto A constataccedilatildeo desse difiacutecil e improvaacutevel ecircxito das filosofias perante o ceticismo faz
com que sua eacutepoca esteja como jaacute foi dito anteriormente carente de uma filosofia que
cumpra sua tarefa Como entatildeo suprir essa carecircncia Como a filosofia pode configurar-se
88 O aspecto negativo que assume a antinomia no domiacutenio do entendimento se deve a que como jaacute dissemos a contradiccedilatildeo aiacute precisa ser evitada Diferente seraacute a situaccedilatildeo como veremos na sequumlecircncia do texto quando entrar em cena o racional A antinomia adquire entatildeo outro aspecto precisamente um aspecto positivo Tanto seraacute assim que Hegel elogia Espinosa por comeccedilar a filosofia com a proacutepria filosofia isto eacute inicia o sistema com uma antinomia (Cf GW4 p 24)
57
sistematicamente ainda mais se se considerar pertinente a atitude investigativa ceacutetica Como
escapar da antinomia estabelecida entre proposiccedilotildees ou argumentos que se contrapotildeem
Aqui entra em cena a razatildeo o momento positivo do saber Como veremos eacute nesse
domiacutenio que seraacute possiacutevel conforme Hegel agrave filosofia se constituir de modo que as aporias
surgidas no domiacutenio do entendimento entregue a si mesmo sejam resolvidas
Seraacute por meio da razatildeo que na sua atividade especulativa a filosofia poderaacute se
realizar Mas como especificamente esse objetivo poderaacute ser alcanccedilado Segundo Hegel natildeo
seraacute possiacutevel atingir a filosofia sem que tenham sido resolvidas as cisotildees produzidas pelo
entendimento Desde este momento jaacute estaacute ele convencido que a filosofia e o que ele
compreende por saber absoluto soacute poderatildeo advir como o resultado de um processo
Esse processo ocorreraacute em momento anterior e exterior ao surgimento da filosofia (vor
und ausser der Philosophie) [GW 4 p 16] Seraacute comandado pela razatildeo e esse momento
anterior consiste na esfera do entendimento aquela que se constitui por meio de uma
atividade reflexiva que potildee seus produtos como independentes absolutamente quer dizer
como se estivessem livres da possibilidade de que a eles pudesse algo ser contraposto o que
resultaria numa antinomia
A filosofia aos olhos de Hegel pressupotildee esse momento em que as determinaccedilotildees
postas pela atividade reflexiva do entendimento se desenvolvem Mas o que significa essa
pressuposiccedilatildeo Significa que natildeo haacute como desconsiderar essa esfera das cisotildees postas pelo
entendimento ldquoeacute um fator da vida que se cultiva mediante um eterno contrapor-serdquo (GW 4
p 13) Deixar entretanto entregue a si mesma essa dimensatildeo onde predomina a finitude eacute
deixar prosseguir a esmo seu processo de determinaccedilatildeo que jamais chegaraacute a um termo E
assim em virtude do caraacuteter limitado das proposiccedilotildees resultantes da atividade do
entendimento natildeo se pode impedir que novas antinomias se constituam Eacute preciso que se decirc
conta dessas oposiccedilotildees que continuamente surgem Sem isso torna-se a filosofia apenas uma
promessa natildeo passiacutevel de se cumprir
58
Hegel de maneira bastante sucinta refere-se agrave necessidade de justificaccedilatildeo dessas
determinaccedilotildees limitadas produzidas pelo entendimento Soacute ao teacutermino desse procedimento de
justificaccedilatildeo que a filosofia poderaacute aparecer89 Esse procedimento seraacute efetuado pelo que ele
chama de ldquoinstrumento do filosofarrdquo ou a reflexatildeo como razatildeo90
Para se ultrapassar esse domiacutenio da finitude a razatildeo precisa aniquilar as oposiccedilotildees
(Gegensaumltze) fixas do entendimento Para que entatildeo alcancemos o plano filosoacutefico eacute preciso
ir aleacutem dessa esfera onde predomina o limitado A razatildeo somente produz o absoluto ao
libertar a consciecircncia das limitaccedilotildees (GW 4 p 15)
A filosofia expressa de acordo com as regras do entendimento soacute pode se dar numa
forma reflexiva Esta por sua vez pode ou natildeo pode apoderar-se (zu fassen) do absoluto A
rigor a reflexatildeo e seus produtos satildeo apenas limitaccedilotildees (Beschraumlnkungen) Assim o absoluto
refletido por ser posto pela reflexatildeo seraacute um limitado Como entatildeo seraacute possiacutevel que a
reflexatildeo seja capaz de apoderar-se do absoluto A este respeito e a partir de uma distinccedilatildeo
entre a reflexatildeo apartada do absoluto e a reflexatildeo vinculada ao absoluto Hegel diraacute A
reflexatildeo isolada como pocircr dos contrapostos seria um suprimir (Aufheben) do absoluto ela eacute a
faculdade do ser e da limitaccedilatildeo mas a reflexatildeo como razatildeo tem relaccedilatildeo com o absoluto e ela
somente eacute razatildeo mediante essa relaccedilatildeo a reflexatildeo nesta medida aniquila a si mesma e a todo
ser e limitado enquanto se refere ao absoluto mas ao mesmo tempo por sua referecircncia ao
absoluto tem o limitado uma consistecircncia (ein Bestehen) (GW 4 pp 16-17)91
89 ldquoQuando poreacutem a razatildeo se reconhece como absoluta entatildeo com isso comeccedila a filosofia ao cessar esse modo de proceder proacuteprio da reflexatildeordquo (GW 4 p 29) Na Fenomenologia do Espiacuterito tambeacutem o saber absoluto soacute poderaacute aparecer ao teacutermino de um processo de exame da consciecircncia no qual esta se liberta de sua forma natildeo-verdadeira ldquoImpelindo-se a si mesma em direccedilatildeo agrave sua verdadeira existecircncia a consciecircncia alcanccedilaraacute aquele ponto no qual depotildee a sua aparecircncia qual seja a de estar presa a algo estranho que eacute somente para ela e como um outro ou no qual o fenocircmeno se torna igual agrave essecircncia A apresentaccedilatildeo da consciecircncia coincide aqui justamente com esse ponto da ciecircncia do espiacuterito propriamente dita e finalmente apreendendo ela mesma a sua essecircncia a consciecircncia designaraacute a natureza do proacuteprio saber absolutordquo (Hegel Fenomenologia do Espiacuterito Col Os Pensadores trad Henrique Vaz Satildeo Paulo Ed Abril 1974 p 56)
90 Parece-nos que o procedimento de justificaccedilatildeo dos produtos do entendimento a ser efetuado por esse instrumento da atividade filosoacutefica que eacute a reflexatildeo como razatildeo seja uma antecipaccedilatildeo do processo de exame pelo qual a consciecircncia na Fenomenologia do Espiacuterito eacute submetida ateacute que por fim possa chegar ao saber absoluto Talvez seja por isso que Klaus Vieweg considere no que concordamos com ele haver nesse capiacutetulo inicial do Escrito da Diferenccedila um procedimento ceacutetico de exame de diversos tipos de pensamento finito Os rudimentos do que seraacute na Fenomenologia o ldquoceticismo que se consumardquo (der sich vollbringende Skeptizismus) (Cf Vieweg Philosophie des p 129)
91 Com respeito agrave distinccedilatildeo hegeliana entre reflexatildeo isolada e reflexatildeo relacionada ao absoluto eacute com proveito que podemos nos remeter ao que diz Rainer Schaumlfer A reflexatildeo finita persiste nas suas determinaccedilotildees
59
A reflexatildeo isolada se constitui de acordo com o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Eacute
segundo este princiacutepio que ela potildee seus produtos e lhes daacute subsistecircncia A reflexatildeo ao mesmo
tempo que suprime o absoluto potildee-se como um absoluto ela fixa seus produtos como
absolutamente opostos ao absoluto daacute para si como lei eterna permanecer entendimento e
natildeo se tornar razatildeo e mantendo-se na sua obra em oposiccedilatildeo ao absoluto nada eacute ndashndash e como
limitada eacute ao absoluto oposta (GW 4 p 18)92 Todavia o subsistir daquilo que por ela eacute
posto eacute um condicionado e estaacute fadado a ser contraditado por seu oposto
Jaacute no caso da reflexatildeo como instrumento do filosofar sua vinculaccedilatildeo agrave razatildeo natildeo
permitiraacute que o limitado permaneccedila e seja esse absoluto capenga tal como acontecia na
reflexatildeo isolada A reflexatildeo aqui tambeacutem chamada por Hegel de reflexatildeo filosoacutefica aniquila
todo ser posto pelo entendimento A emergecircncia do absoluto depende dessa aniquilaccedilatildeo de
todo condicionado Na medida em que a reflexatildeo se potildee sob a lei da razatildeo ela daacute iniacutecio a esse
processo de auto-aniquilaccedilatildeo que permitiraacute que ela se torne razatildeo93 Na medida em que a
reflexatildeo se faz objeto de si mesma sua aniquilaccedilatildeo (Vernichtung) eacute sua lei suprema que a
razatildeo lhe daacute e pela qual ela se torna razatildeo (GW 4 p 18) A reflexatildeo relacionada ao absoluto
eacute a razatildeo como negaccedilatildeo absoluta que aniquila o ser limitado e condicionado posto pelo
entendimento Eacute dessa maneira que seraacute possiacutevel ir aleacutem da esfera limitada do entendimento
unilaterais natildeo chega de nenhum modo ao conhecimento de sua nulidade suas siacutenteses satildeo mesmo as de niacutevel mais complexo sempre unilaterais e abstratas pois aqui tambeacutem ainda vigoram os pontos de vista distintos Nas siacutenteses finitas vale por conseguinte ainda o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Nas siacutenteses reflexivas finitas natildeo estatildeo efetivadas (vollzogen) as destruiccedilotildees dialeacuteticas dos pontos de vista distintos A reflexatildeo em contrapartida que reconhece a nulidade dos pontos de vista distintos vai aleacutem da reflexatildeo finita e torna-se deste modo ldquoinstrumento do filosofarldquo (Schaumlfer R Die Dialektik und ihre besonderen Formen in Hegels Logik Hegel-Studien Beiheft 45 Hamburg Meiner 2001 p 41) Ver tambeacutem a esse respeito o comentaacuterio de Gilbert Geacuterard ldquoDe maneira geral a reflexatildeo designa nos Escritos Criacuteticos a atividade proacutepria do entendimento ou a subjetividade pensante na medida em que separada isto eacute cortada da objetividade real do ser ela soacute tem que ver com suas proacuteprias representaccedilotildees e portanto apenas com ela mesma Se Hegel fala aqui de reflexatildeo isolada isto se deve por um lado para sublinhar de um modo talvez redundante seu caraacuteter abstrato mas eacute contudo tambeacutem para distingui-la daquilo que ele chama de ldquoa reflexatildeo como razatildeordquo ou ldquoreflexatildeo filosoacuteficardquo Natildeo se deve deixar induzir em erro por essas uacuteltimas expressotildees elas natildeo significam de nenhum modo que a reflexatildeo como tal seja racional ou filosoacutefica Pelo contraacuterio noacutes veremos que a reflexatildeo soacute chega agrave filosofia ao se suprimir como reflexatildeo Ela se torna entatildeo na terminologia hegeliana especulaccedilatildeo (Geacuterard G Critique et dialectique Bruxelas Saint-Louis 1982 nota 54 p 37)
92 Eacute por esse processo de absolutizaccedilatildeo do limitado que se forma o entendimento Nesse sentido ver Geacuterard 1982 nota 4 p 66
93 Ver tambeacutem a esse respeito Zimmerli W C Die Frage nach der Philosophie Interpretation zu Hegels Differenzschrift Hegel-Studien Beiheft 12 Bonn Bouvier Verlag Herbert Grundmann 1974 p 99
60
Ao mesmo tempo que todo limitado mostra sua nulidade94 visto que eacute um oposto a um outro
que o nega esse limitado adquiriraacute uma consistecircncia ao ser integrado ao absoluto Mas o
absoluto porque eacute produzido para a consciecircncia mediante o filosofar da reflexatildeo torna-se
deste modo uma totalidade objetiva um todo de saber (Wissen) uma organizaccedilatildeo de
conhecimentos nessa organizaccedilatildeo cada parte eacute o todo pois ela consiste numa relaccedilatildeo com o
absoluto como parte que tem outra fora de si ela eacute um limitado e somente eacute mediante as
outros isolada como limitaccedilatildeo ela eacute deficiente somente tem sentido e significaccedilatildeo mediante
sua conexatildeo com o todo (GW 4 p 19)
Vemos assim que a reflexatildeo filosoacutefica eacute o meio pelo qual eacute possiacutevel o retorno ao
absoluto Relacionada ao absoluto a reflexatildeo eacute esse negar absoluto que suspende ( aufhebt )95
as oposiccedilotildees produzidas pelo entendimento Assim essa reflexatildeo que por ser relacionada ao
absoluto eacute razatildeo tem como tarefa suprimir a oposiccedilatildeo absoluta ela denuncia o caraacuteter
abstrato do entendimento ao mostrar que cada uma de suas posiccedilotildees eacute em verdade uma
antinomia quer dizer desvelando o viacutenculo que une cada uma delas agrave tese imediatamente
adversa (Geacuterard p 83) A pretensatildeo ao absoluto do entendimento natildeo passa de um malogro
afinal todo o posto pelo entendimento com sua suposta absolutez natildeo resiste ao encontro
com seu oposto quando este se apresenta e o contradiz formando uma antinomia A reflexatildeo
eacute o lado negativo do saber ou seja aquele que regido pela razatildeo faraacute com que todo limitado
destrua a si mesmo Mas para que surja a filosofia natildeo podemos permanecer nessa esfera
dominada pela negatividade produtora de antinomias A permanecermos aqui natildeo vamos
aleacutem do aspecto formal da especulaccedilatildeo Se se reflete apenas sobre o aspecto formal da
especulaccedilatildeo e se manteacutem firmemente a siacutentese do saber em forma analiacutetica assim eacute a
antinomia a contradiccedilatildeo que a si mesma se suspende (der sich selbst aufhebende
Widerspruch) a suprema expressatildeo formal do saber e da verdade (GW 4 p 26) O
reconhecimento da antinomia como expressatildeo formal da verdade significa para Hegel dar-se
conta por meio da razatildeo da essecircncia formal da reflexatildeo (GW 4 p 26) Eacute preciso entatildeo ir
aleacutem desse lado negativo
94 Natildeo haacute por isso nenhuma verdade da reflexatildeo isolada do pensar puro a natildeo ser aquela de sua aniquilaccedilatildeo (GW 4 p 19)
95 O termo alematildeo aufheben pode significar suprimir elevar e conservar Para o propoacutesito especulativo de Hegel a polissemia do termo vem bem a calhar pois as determinaccedilotildees de entendimento satildeo suprimidas pela reflexatildeo como razatildeo e ao mesmo tempo conservadas na sua elevaccedilatildeo ao plano especulativo da razatildeo Isto posto traduzimos aufheben por suspender em virtude do termo em portuguecircs tambeacutem poder significar suprimir elevar e conservar Apenas quando o uso do termo eacute exclusivamente negativo traduzimos entatildeo por suprimir
61
O completamento (Vervollstaumlndigung) da unilateralidade da obra da reflexatildeo dar-se-
aacute na intuiccedilatildeo (Anschauung) A intuiccedilatildeo diz Hegel eacute o que postula a razatildeo para que a obra da
reflexatildeo seja completada (GW 4 p 29) Daacute-se com essa siacutentese dos opostos que se
contradizem a possibilidade que possa surgir o lado positivo do saber qual seja a intuiccedilatildeo o
racional precisa ser deduzido de acordo com seu conteuacutedo determinado isto eacute a partir da
contradiccedilatildeo dos opostos determinados cuja siacutentese eacute o racional o postulaacutevel eacute a intuiccedilatildeo que
preenche e manteacutem esse lado antinocircmico (GW 4 p 29)96 Eacute na intuiccedilatildeo que a siacutentese dos
opostos teraacute sua subsistecircncia (ihr Bestehen) Nessa identidade de reflexatildeo e intuiccedilatildeo teremos
portanto o saber especulativo (Cf GW 4 p 29) Em resumo podemos dizer que uma vez
realizada a tarefa (negativa) da reflexatildeo filosoacutefica torna-se possiacutevel a siacutentese da mesma com a
intuiccedilatildeo absoluta de modo que possa ocorrer o desdobramento do lado positivo do saber
Neste momento a filosofia deixaraacute de ser algo a ser buscado deixaraacute de ser uma carecircncia
pois a filosofia comeccedila onde termina essa maneira que procede da reflexatildeo com a
identidade da ideacuteia e do ser (GW 4 p 29-30)97
No artigo sobre o Ceticismo essa atividade de aniquilaccedilatildeo daquilo que eacute posto pelo
entendimento conforme ao princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo eacute exercida pelo ceticismo ou como a
ele se refere Hegel o lado negativo do conhecimento do absoluto (Cf GW 4 p 207)98 Eacute por
meio dele que com a produccedilatildeo de antinomias mostra-se o caraacuteter limitado e condicionado
das determinaccedilotildees produzidas pelo entendimento e se permite a passagem para a razatildeo que eacute
96 Tambeacutem a este respeito mas a razatildeo unifica os contraditoacuterios potildee a ambos ao mesmo tempo e os suspende (GW 4 p 23)
97 Com relaccedilatildeo ao escrito sobre a Diferenccedila jaacute apresentar-se como um primeiro esboccedilo de certos desenvolvimentos posteriores da filosofia de Hegel eacute oportuno lembrar o comentaacuterio de Marcos Lutz Muumlller a respeito dessa articulaccedilatildeo do relacionamento entre entendimento e razatildeo nesse mesmo escrito sobre a Diferenccedila como sendo o motivo inspirador da constituiccedilatildeo da relaccedilatildeo dos trecircs ldquomomentosrdquo da estrutura loacutegico-especulativa do pensamento e da realidade efetiva conforme exposta condensadamente nos sectsect 79-82 da Enciclopeacutedia e no seu desdobramento quaternaacuterio no capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica A ideacuteia absoluta (Cf Muumlller M L ldquoO idealismo especulativo de Hegel e a modernidade filosoacutefica criacutetica ou radicalizaccedilatildeo dessa modernidaderdquo Revista Eletrocircnica Estudos Hegelianos ano 2ordm Nordm 3 2005 p 3)
98 Para Hegel o ceticismo se encontra implicitamente em todo autecircntico sistema filosoacutefico e como seu lado negativo (Cf GW 4 p 208) De modo expliacutecito apenas no Parmecircnides de Platatildeo sendo que deve ser notado haja no mesmo somente o lado negativo da filosofia (Cf GW 4 pp 207-208) Quanto ao ceticismo pirrocircnico Hegel o chama de ceticismo separado da filosofia Um ceticismo que assim como aquele presente no diaacutelogo platocircnico Parmecircnides tambeacutem natildeo possui um lado positivo e com relaccedilatildeo ao saber declara apenas uma pura negatividade O ceacutetico sentido-se incapaz de decidir por entre argumentos ou proposiccedilotildees aparentemente igualmente persuasivos suspende seu juiacutezo e assim nem afirma nem nega a respeito de algo dito com pretensatildeo agrave verdade Para Hegel eacute o que nos parece agir assim eacute afirmar uma pura negatividade (A respeito do ceticismo pirrocircnico ver de modo geral GW 4 pp 213-222)
62
o lado positivo do conhecimento do absoluto99 O grande valor do ceticismo para Hegel reside
nessa sua perseverante luta contra o dogmatismo realizada por meio do que poderiacuteamos
chamar de seu princiacutepio programaacutetico opor a todo argumento ou proposiccedilatildeo uma proposiccedilatildeo
ou o argumento de igual forccedila (Cf HP I 12 tb I 8)
Como o domiacutenio do entendimento eacute aquele no qual apenas lidamos com proposiccedilotildees
passiacuteveis de serem contraditadas por suas opostas isto eacute proposiccedilotildees que em virtude de
serem postas de acordo com a identidade abstrata de entendimento natildeo resistem ao
estabelecimento da antinomia o ceacutetico natildeo tem dificuldade em exercitar sua atitude filosoacutefica
Atitude que para Hegel eacute totalmente pertinente e justificaacutevel quanto agrave sua realizaccedilatildeo
Mas eacute preciso lembrar que o ecircxito do ceticismo no combate ao dogmatismo soacute poderaacute
ocorrer no acircmbito do entendimento No acircmbito da razatildeo como pudemos observar a finitude
do entendimento foi deixada para traacutes Nela a contradiccedilatildeo natildeo leva a filosofia ao seu limite
As proposiccedilotildees que se contradizem satildeo consideradas de uma outra perspectiva Elas
permanecem relacionadas numa siacutentese efetuada pela razatildeo o lado positivo da filosofia A
contradiccedilatildeo natildeo eacute mais aqui um mal a ser evitado pelo contraacuterio ela foi incorporada agrave
filosofia Uma proposiccedilatildeo que exprime um conhecimento racional teraacute como caracteriacutestica
baacutesica ser constituiacuteda por conceitos que do ponto de vista do entendimento se contradizem
(Cf GW 4 p 208) Mas para a razatildeo natildeo haacute nada de aberrante nisso100
Quando a perspectiva racional toma a frente as proposiccedilotildees que se contradizem satildeo
unificadas de modo que se suspende (aufhebt) a antinomia Como diz Hegel ldquoquando em
qualquer proposiccedilatildeo que expressa um conhecimento racional se o aspecto refletido da
mesma ndash os conceitos que nela estatildeo contidos ndash eacute isolado e o modo como eles (os conceitos)
estatildeo ligados eacute considerado entatildeo precisa mostrar-se que esses conceitos estatildeo suspensos
(aufgehoben) ou de tal modo unificados que eles se contradizem caso contraacuterio natildeo teriacuteamos
99 Cf GW 4 p 207 trad cit p 36
100 Tambeacutem no artigo sobre o Ceticismo Hegel se vale de Espinosa como exemplo de filoacutesofo que constroacutei seu sistema a partir de proposiccedilotildees que como diraacute Hegel cometem uma infraccedilatildeo (Verstoszlig) ao princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Proposiccedilotildees de caraacuteter antinocircmico como a que se encontra no iniacutecio da Eacutetica a saber a do conceito de causa sui ou seja aquela causa cuja essecircncia implica sua existecircncia Um tal conceito segundo Hegel foge completamente ao que normalmente se compreende pelo conceito de essecircncia visto que este eacute possiacutevel na medida em que se faz abstraccedilatildeo da existecircncia Da perspectiva racional natildeo haveria contradiccedilatildeo nessa uniatildeo da essecircncia com a existecircncia (Cf GW 4 p 208)
63
uma proposiccedilatildeo racional mas sim uma proposiccedilatildeo de entendimentordquo101 A identidade de
entendimento eacute uma identidade relativa que quando entra em cena a razatildeo daacute lugar a uma
identidade absoluta Essa identidade absoluta eacute uma siacutentese desses contrapostos que formam a
antinomia102 A siacutentese desses postos contrapostos de modo que por ela a antinomia seja
suspensa faz surgir o racional Os contrapostos continuam laacute entretanto eles estatildeo suspensos
(aufgehoben)103 na unidade do racional
Toda proposiccedilatildeo de razatildeo observa Hegel na medida em que ela pode se dissolver em
duas proposiccedilotildees que se contradizem (sich in zwey sich schlechthin widerstreitende aufloumlsen
laumlszligt) ndash por exemplo Deus eacute causa e Deus natildeo eacute causa ele eacute uno e natildeo eacute uno ndash faz entrar em
cena com toda a forccedila o princiacutepio do ceticismo ldquoopor a todo discurso um discurso de forccedila
igualrdquo104
A concepccedilatildeo hegeliana de filosofia reconhece a importacircncia do ceticismo para a
filosofia Entretanto eacute necessaacuterio ir aleacutem desse momento negativo no qual satildeo produzidas
antinomias O ldquoprinciacutepiordquo ceacutetico de ldquoopor a cada discurso um discurso de forccedila igualrdquo (panti
logoi logos isos antikeitai) eacute pertinente apenas no momento negativo da filosofia pois ao
levar agrave produccedilatildeo de antinomias natildeo permite que uma proposiccedilatildeo finita se determine sem
levar em conta a proposiccedilatildeo contraposta e a ela relacionada
A possibilidade de construccedilatildeo do sistema ou a auto-produccedilatildeo da razatildeo estaraacute fundada
na siacutentese de opostos que a cada nova identidade obtida reclama a produccedilatildeo de uma nova
siacutentese de modo que assim o sistema progride e se modela numa totalidade objetiva (Cf GW
4 p 31)105
101 GW 4 p 208 trad p 38 (ldquowenn in irgend einem Satze der eine Vernunfterkenntniszlig ausdruumlckt das Reflectirte desselben die Begriffe die in ihm enthalten sind isolirt und die Art wie sie verbunden sind betrachtet wird so muszlig es sich zeigen daszlig diese Begriffe zugleich aufgehoben oder auf eine solche Art vereinigt sind daszlig sie sich widersprechen sonst waumlre es kein vernuumlnftiger sondern ein verstaumlndiger Satzldquo)
102 Ibidem p 27 trad p 101
103 Suspender com o sentido de suprimir elevar e conservar
104 Hegel cita a famosa foacutermula do ldquoprinciacutepiordquo ceacutetico ndash ldquoopor a cada discurso um discurso de forccedila igualrdquo ndash no original grego Cf GW 4 p 208 e HP I 12
64
105 ldquoA razatildeo a saber a faculdade (neste caso da objetiva) totalidade completa a identidade relativa mediante sua contraposta e produz por meio da siacutentese de ambas uma nova identidade que ela mesma novamente perante a razatildeo eacute uma identidade deficiente e que de novo se completa do mesmo modordquo (GW 4 p 31)
65
Capiacutetulo 3 - O ceticismo nas Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia de Hegel
Segundo nos informa Walter Jaeschke106 com exceccedilatildeo de ldquoLoacutegica e Metafiacutesicardquo
nenhum tema foi tatildeo regular e minuciosamente objeto das preleccedilotildees de Hegel quanto a
ldquoHistoacuteria da filosofiardquo A primeira vez em Iena (18051806) depois Heidelberg (18161817 e
18171818) Nada ainda conforme Jaeschke nos restou como testemunho dessa primeira
ocupaccedilatildeo hegeliana com o tema em suas aulas Como fonte que nos chegou de suas Liccedilotildees
sobre a Histoacuteria da Filosofia temos as que Hegel ministrou em Berlim por seis vezes no
veratildeo de 1819 no inverno de 18201821 e nos invernos de 182324 182526 182728 e
182930 No inverno de 183132 Hegel tambeacutem tinha como tema de suas aulas a histoacuteria da
filosofia mas as mesmas logo foram interrompidas devido agrave morte do filoacutesofo em 14 de
Novembro Hegel havia aqui apenas iniciado a introduccedilatildeo das aulas e sem ao menos poder
concluiacute-la
Com relaccedilatildeo ao nosso interesse a saber as preleccedilotildees que tratavam do tema ceticismo
antigo Jaeschke nota que o estudo intenso do ceticismo jaacute era feito por Hegel desde seus anos
em Frankfurt antes portanto de sua ida em 1801 para Iena Aleacutem disso como jaacute pudemos
observar o ceticismo havia sido objeto de um artigo em Iena e neste artigo consideraccedilotildees de
caraacuteter historiograacutefico a respeito da filosofia ceacutetica se faziam presentes
Nossa intenccedilatildeo agora eacute observar nessas Liccedilotildees a respeito da histoacuteria da filosofia107
que leitura e interpretaccedilatildeo Hegel faz do ceticismo justamente no momento em que jaacute era um
filoacutesofo renomado e com suas principais obras publicadas
106 Cf Jaeschke W Hegel Handbuch Leben- Werk- Schule Stuttgart Metzleer 2003 XIV pp 477 ndash 478
107 Werke 19 pp 358-403 trad pp 759-809
66
No iniacutecio de sua exposiccedilatildeo a respeito do ceticismo pirrocircnico Hegel faz a seguinte
afirmaccedilatildeo ldquoO ceticismo levou a seu acabamento (vollendete) a maneira de ver da
subjetividade de todo saber e potildee de modo geral no lugar do ser a expressatildeo do parecer no
saber O ponto culminante [dessa maneira de ver] eacute o ceticismo a forma do ente e do saber
sobre o ente eacute inteiramente aniquiladardquo 108
E a partir dessa afirmaccedilatildeo fica entatildeo a pergunta o que pode significar o ceticismo ser
o acabamento da maneira de ver subjetivista
Se nos voltarmos para sua Histoacuteria da Filosofia veremos que na filosofia anterior ao
ceticismo os sofistas segundo Hegel podiam ser considerados representantes de uma
filosofia que expressava uma ldquomaneira de ver subjetivardquo109 Foram eles os primeiros a
mostrar assim como depois os ceacuteticos o caraacuteter relativo daquilo que era posto como
verdadeiro ou vaacutelido universalmente Hegel inclusive se refere aos sofistas como ceacuteticos110
Protaacutegoras por exemplo declarava que o homem eacute a medida de todas as coisas daquela que
eacute que ela eacute daquela que natildeo eacute que ela natildeo eacute111 Depende de cada homem em particular o
estabelecimento de qualquer verdade Estaacute relacionado a cada um a verdade a medida a ser
instaurada Assim como o ceacutetico posteriormente jaacute Protaacutegoras procurava nos mostrar que
dada a diversidade dos homens seria muito difiacutecil tentar obter uma verdade que a todos
aparecesse como a uacutenica ldquoa verdade (a medida) eacute fenocircmeno para a consciecircnciardquo112 Aquilo
que a mim me aparece natildeo pode valer para todos os outros dada essa diversidade dos homens
e do caraacuteter relativo daquilo que julgam a respeito das coisas Subjetividade aqui indica aquilo
que natildeo pode obter generalidade que natildeo pode deixar de ser particular e relacionado a
108 Werke 19 p 358 trad cit p 759 (ldquoDer Skeptizismus vollendete die Ansicht der Subjektivitaumlt alles Wissens ud setzte allgemein an die Stelle des Seins im Wissen den Ausdruck des Scheinens Die letzte Spitze ist der Skeptizismus die Form des Seienden und des Wissens des Seienden wird ganz zunichte gemachtrdquo)
109 Cf Werke 18 pp 406-441 trad pp 241-272
110 Hegel denomina de modo claro Protaacutegoras e Goacutergias como representantes do ceticismo isto eacute como aqueles que se expressam em relaccedilatildeo agrave verdade agrave maneira dos ceacuteticos Apoacutes fazer uma exposiccedilatildeo a respeito de Protaacutegoras Hegel comeccedila a tratar de Goacutergias nos seguintes termos ldquoEsse ceticismo chegou a uma profundidade bem maior por meio de Goacutergiasrdquo (ldquoZu einer weit groumlszligeren Tiefe gelangte dieser Skeptizismus durch Gorgiasrdquo) In Werke 18 p 434 trad cit p 266
111 Nessa breve apresentaccedilatildeo de Protaacutegoras guiamo-nos por Hegel na seccedilatildeo que ele dedica ao filoacutesofo Cf Ibidem 18 pp 428-434 trad pp 260-266
112 Citaccedilatildeo de Protaacutegoras que Hegel faz a partir de Sexto Empiacuterico Adversus mathematicos VII 388 In Ibidem 18 p 431 trad p 263 (ldquoDie Wahrheit (das Maszlig) ist die Erscheinung fuumlr das Bewuszligtseinrdquo)
67
determinadas condiccedilotildees Eacute nesse sentido que Hegel chama de maneira de ver da subjetividade
a filosofia ceacutetica
Nessa aproximaccedilatildeo da sofiacutestica ao ceticismo Hegel estaacute em certa medida de acordo
com um comentaacuterio do proacuteprio Sexto Empiacuterico quando este se refere agrave semelhanccedila que possa
haver entre a filosofia ceacutetica e a filosofia de Protaacutegoras113 Mesmo que haja semelhanccedilas entre
os ceacuteticos e Protaacutegoras Sexto adverte que ambos natildeo podem ser confundidos pois o sofista
acaba por fazer afirmaccedilotildees de teor dogmaacutetico algo que para um ceacutetico eacute inadmissiacutevel114
De fato o comentaacuterio de Hegel a respeito da maneira de ver subjetiva ter seu
acabamento no ceticismo quer justamente mostrar essa radicalidade do ceticismo Se antes
houve aqueles que poderiam ser aproximados dos ceacuteticos por forccedila das suas ldquoconclusotildeesrdquo de
teor natildeo-dogmaacutetico natildeo conseguiram eles entretanto se libertar por completo do
dogmatismo
Como jaacute foi dito115 o ceacutetico foi aquele filoacutesofo que natildeo conseguiu afirmar nem
positiva nem negativamente coisa alguma a respeito da verdade Da sua investigaccedilatildeo natildeo
chegou ao mesmo resultado que chegaram os filoacutesofos por ele chamados de dogmaacuteticos O
113 Essa aproximaccedilatildeo entre Protaacutegoras e os ceacuteticos feita por Hegel tambeacutem aparece como pertinente para os estudiosos do ceticismo Oswaldo Porchat refere-se aos sofistas e em especial a Protaacutegoras como algueacutem que antecipava a postura ceacutetica ldquoE eacute verdade entretanto que ao constatar o conflito das opiniotildees e das verdades dos homens umas com as outras ao procurar mostrar que o verdadeiro eacute sempre para cada homem o que tal lhe parece e o que como tal portanto assume e propotildee aos outros Protaacutegoras natildeo visava especificamente as oposiccedilotildees e divergecircncias que dividiam o pensamento filosoacutefico anterior ou contemporacircneo conforme a sua doutrina ao contraacuterio tal diferenccedila de perspectivas sobre a verdade e o saber natildeo configuraria mais do que um caso particular da infinda e irredutiacutevel diversidade das opiniotildees humanas() Ignorando se os deuses satildeo ou natildeo dos homens filoacutesofos ou natildeo Protaacutegoras verificava apenas que as opiniotildees sempre divergem e que eles natildeo se potildeem de acordo Mas tambeacutem descobria mestre de retoacuterica e de eloquumlecircncia que os homens se deixam persuadir com frequumlecircncia pelo discurso e que eacute sempre possiacutevel opor persuasivamente a um argumento um argumento contraacuterio ou tornar mais forte a razatildeo anteriormente mais fraca Uma primeira formulaccedilatildeo assim se propunha do que seria a contribuiccedilatildeo fundamental da sofiacutestica para a filosofia a saber a descoberta de que se pode provar tudo que se quer de que todas as teses se podem demonstrar se se domina de modo adequado e conveniente a teacutecnica de argumentaccedilatildeo Goacutergias natildeo pretenderaacute dizer outra coisa ao proclamar no famoso Elogio de Helena que lsquoo Loacutegos eacute um grande senhorrsquordquo(Porchat O ldquoO conflito das filosofiasrdquo Vida comum e ceticismo Satildeo Paulo Brasiliense 1993 pp 5-7) Ou ainda ldquoEm sua polecircmica antidogmaacutetica os ceacuteticos mostraram retomando o ensinamento de Protaacutegoras que a todo discurso se pode sempre opor um discurso igual isto eacute um discurso de igual forccedila persuasivardquo (Porchat O Rumo ao ceticismo p 297)
114 A respeito de Protaacutegoras diz Sexto Empiacuterico ldquoNoacutes vemos entatildeo que ele dogmatiza natildeo somente a respeito da fluidez da mateacuteria como tambeacutem a respeito disso que os fundamentos de todos os fenocircmenos nela existiam estes assuntos poreacutem satildeo natildeo-evidentes e a respeito dos quais noacutes suspendemos o julgamentordquo (HP I 219)
115 Ver de modo geral o capiacutetulo 1
68
que terminava por acontecer era sempre encontrar uma diversidade de pontos de vista
conflitantes uns aparentemente tatildeo persuasivos quanto os outros Em vista de tal situaccedilatildeo
como interromper a investigaccedilatildeo e poder entatildeo aceitar que um desses pontos de vista seja a
expressatildeo de uma verdade absoluta qualquer Ante a precipitaccedilatildeo no julgar caracteriacutestica por
ele comumente encontrada entre os dogmaacuteticos prefere contudo continuar a investigar E
esta investigaccedilatildeo far-se-aacute por meio da contraposiccedilatildeo de argumentos O ceacutetico entatildeo vai se
esforccedilar em de variadas formas examinar se os argumentos postos pelos dogmaacuteticos resistem
a outros argumentos aparentemente tatildeo persuasivos quanto os primeiros Em resumo o ceacutetico
substitui a busca pela verdade por uma criacutetica do dogmatismo assentada no exerciacutecio dessa
atitude produtora de contraposiccedilotildees ou antinomias Podemos supor que a dificuldade imensa
em encontrar a verdade levou-o a essa mudanccedila de atitude No limite natildeo tem ele mais no
horizonte a esperanccedila de encontrar alguma verdade116 Tanto eacute assim que sua filosofia teraacute
desdobramentos que em nenhum aspecto se assemelham ao que tradicionalmente se podia
encontrar em outras filosofias Referimo-nos aqui agrave suspensatildeo do juiacutezo e a conduta ceacutetica de
se guiar na vida de acordo com os fenocircmenos117
Mas a que nos interessa chamar a atenccedilatildeo neste momento eacute para esse ecircxito dos ceacuteticos
em produzir antinomias em reiteradamente mostrar que eacute possiacutevel a um determinado ponto
de vista um outro ser contraposto ficando difiacutecil portanto decidir em favor de um lado ou de
outro Cremos que natildeo seja por outro motivo que Hegel reconheccedila a forccedila do ceticismo
Como combatecirc-lo Seria mesmo possiacutevel combatecirc-lo Uma filosofia reconhece Hegel que
sempre foi muito temida ldquoNa medida em que eacute a arte de dissolver todo determinado de
mostraacute-lo em sua nulidade o ceticismo passou em todos os tempos e ainda hoje pelo mais
terriacutevel adversaacuterio da filosofia e tambeacutem passou por invenciacutevelrdquo118
Para Hegel qualquer tentativa de refutaccedilatildeo direta do ceticismo estaacute condenada ao
fracasso Natildeo diga-se de passagem que ele pretendesse ser mais um na lista dos que tentaram
116
Com efeito trata-se de uma questatildeo bastante controversa entre os estudiosos do ceticismo ndash uma vexata quaestio ndash se efetivamente o ceacutetico teria desistido da busca da verdade por decorrecircncia dessa dificuldade em encontrar alguma que porventura pudesse passar ilesa perante o exame ceacutetico Daiacute entatildeo com o reiterado fracasso na tentativa de executar a tarefa substituiria a busca pela verdade pelo exerciacutecio da praacutetica dialeacutetica antinocircmica
117 Ver a respeito no cap 1 pp 40-45
118 Werke 19 p 358 (ldquoDer Skeptizismus hat zu Allen Zeiten und noch jetzt fuumlr den furchtbarsten Gegner der Philosophie gegolten und fuumlr unbezwinglich indem er die Kunst sei alles Bestimmte aufzuloumlsen es in seiner Nichtigkeit zu zeigenrdquo)
69
essa faccedilanha Segundo ele natildeo haacute como lutar contra o ceticismo Ele sempre encontraraacute uma
maneira de se sobrepocircr ldquoSe (algueacutem) de fato lhe tivesse escapado natildeo seria ele assim
subjugado mas antes ele por seu lado permaneceria subsistindo e prevaleceriardquo119
No seu juiacutezo a respeito dos ceacuteticos Hegel ao mesmo tempo que louva a atitude ceacutetica
de dissoluccedilatildeo de todo determinado por meio da produccedilatildeo de antinomias recrimina o que
poderiacuteamos chamar de uma certa desmesura presente nessa postura filosoacutefica Uma
desmesura que acaba na incapacidade ceacutetica em chegar a alguma verdade e advinda desse
reiterado ecircxito em conseguir mostrar a todo argumento o argumento que o contrapotildee
Todavia a pertinecircncia da criacutetica ceacutetica eacute tal que ele o ceticismo ldquoparece ser algo a que
devamos nos entregar e que faz imaginar que natildeo se possa vencer aquele que se entregou a
elerdquo120
O ceticismo aos olhos de Hegel apresenta esse caraacuteter ambivalente O que o torna
forte e pertinente leva-o nesse mesmo movimento agrave sua derrocada Derrocada da perspectiva
de Hegel porque da perspectiva dos ceacuteticos a incapacidade de chegar a uma verdade natildeo traz
junto de si nada de problemaacutetico Hegel sabe disso e tambeacutem natildeo se cansa de lembrar que
natildeo haacute como se sobrepor ao ceacutetico que este consegue sempre ao fim ao cabo prevalecer
perante as filosofias ldquodogmaacuteticasrdquo Chega mesmo a dizer que aquele que decidiu tornar-se
ceacutetico natildeo poderaacute com efeito ser dominado e nem ser reconduzido aos braccedilos de uma
filosofia positiva121 Mas que intenccedilatildeo teria ele em insistentemente mostrar a impossibilidade
de se conseguir vencer ao ceacutetico
Parece-nos que a intenccedilatildeo de Hegel eacute de fato mostrar que o ceacutetico eacute um adversaacuterio
extremamente difiacutecil de ser vencido ou que natildeo pode mesmo ser vencido Que contra ele
nada podemos Ele sempre encontraraacute um meio para nos vencer Mas a despeito desse fato
Hegel tem como veremos plena consciecircncia da forccedila do ceticismo A questatildeo eacute que
independente da pertinecircncia da postura filosoacutefica do ceticismo natildeo teria ele ainda a uacuteltima
palavra Sua forccedila eacute a outra face de sua cegueira como tambeacutem veremos Eacute como se ele
realmente estivesse cego perante suas proacuteprias deficiecircncias Natildeo supotildee portanto que possa
119 Ibidem p 359 trad cit p 760 (ldquoWenn in der Tat ihm nur entgangen wuumlrde so waumlre er nicht bezwungen sondern er bliebe seinerseits bestehen und er haumltte die Oberhandrdquo)
120 Ibidem p 358 trad cit p 760 (ldquo[hellip] scheint so etwas zu sein dem man sich ergebe und man hat die Vorstellung daszlig man einem der sich ihm so in die Arme werfe gar nicht beikommen koumlnnerdquo)
121 Cf Ibidem p 359 trad cit p 760
70
ser tatildeo limitado quanto as filosofias que critica Essa eacute ao que parece a posiccedilatildeo de Hegel a
seu respeito Mas dizer que ele eacute limitado natildeo nos pode levar a concluir que Hegel seja
favoraacutevel a que o ceticismo mereccedila ser descartado
Desde o iniacutecio do periacuteodo de Iena quando comeccedila a publicar Hegel afirma que a
filosofia precisa ter um lado ceacutetico que por conseguinte eacute o seu lado negativo122 Mas por
que haveria ela de ter um lado ceacutetico Se partimos do pressuposto como o faz Hegel que a
criacutetica ceacutetica das filosofias dogmaacuteticas eacute dotada de tal forccedila e pertinecircncia que tentar escapar a
ela torna-se uma tarefa dificilmente realizaacutevel vemos que realmente a filosofia precisa
estabelecer uma relaccedilatildeo com o ceticismo que natildeo a de uma mera tentativa de desqualificaccedilatildeo
do mesmo Eacute tatildeo necessaacuterio agrave filosofia tomar a seacuterio o ceticismo que no caso hegeliano
incorpora-se o mesmo a ela
Na anaacutelise do ceticismo antigo nas suas Liccedilotildees o que faz segundo Hegel o ceacutetico na
sua investigaccedilatildeo Ele eacute capaz de mostrar que eacute possiacutevel produzir antinomias a respeito de
qualquer verdade seja de caraacuteter sensiacutevel seja de caraacuteter inteligiacutevel123 Ele aponta uma
contradiccedilatildeo entre aquilo que almejou representar a verdade e aquilo que foi contraposto a essa
suposta verdade ou ainda mostra que cada um dos contrapostos tem tanto valor quanto o
outro ou seja que um natildeo eacute mais capaz que o outro de ser verdadeiro A igual forccedila entre os
contrapostos natildeo nos permite tender para o assentimento a um ou a outro Diante disso soacute
pode o ceacutetico entatildeo suspender seu juiacutezo
Eacute relevante notar que a contradiccedilatildeo que se estabelece entre os contrapostos atesta
apenas que existem argumentos ou discursos de igual forccedila que conflitam o que por si soacute
basta para que natildeo sejamos capazes de nos decidirmos por um dos lados opostos124 Natildeo se
encontra na base da contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos nenhuma teoria que pudesse afirmar
122 Ver cap 2
123 Hegel nesse seu comentaacuterio a respeito da possibilidade do ceacutetico produzir antinomias a respeito de qualquer verdade dogmaacutetica ndash mais ou menos elaborada refere-se explicitamente agraves Hipotiposes I 8-10
124 Cf HP I 10
71
que a contradiccedilatildeo surgiu dadas certas premissas dessa teoria e que apenas de acordo com as
mesmas teriacuteamos entatildeo uma contradiccedilatildeo Temos de consideraacute-la portanto em sentido lato
Hegel tambeacutem estaacute ciente desse sentido amplo ou pouco preciso da contradiccedilatildeo Tanto eacute
assim que reconhece ser a contradiccedilatildeo apenas o resultado de uma oposiccedilatildeo que se faz a partir
do conflito estabelecido entre dois conteuacutedos devendo ser lembrado que essa oposiccedilatildeo natildeo se
restringe a determinados conteuacutedos pelo contraacuterio ela abrange qualquer conteuacutedo125 Essa
possibilidade de que possa ocorrer uma oposiccedilatildeo ou como prefere dizer Hegel uma
contraposiccedilatildeo irrestrita torna o ceticismo antigo mais radical que o puro idealismo formal
moderno a saber Kant ldquoMas os ceacuteticos vatildeo mais aleacutem do que os membros do puro idealismo
formal moderno eles tecircm de se haver com o conteuacutedo e em todo conteuacutedo mostram seja ele
sentido ou pensado que ele tem um contraposto a ele Eles indicam no mesmo portanto a
contradiccedilatildeo que de tudo que eacute posto o contraposto tambeacutem eacute vaacutelidordquo126
Se por um lado para os ceacuteticos antigos a contradiccedilatildeo ou a antinomia natildeo estava
restrita a determinada classe de objetos afinal a mesma podia ser obtida nas mais variadas
formas de oposiccedilatildeo para Kant por outro lado a antinomia se encontrava apenas nos quatro
objetos particulares tomados da Cosmologia127 O que Kant natildeo viu lembra-nos Hegel eacute o
fato de que a antinomia pode ser encontrada ldquoem todos os objetos de todos os gecircneros em
todas as representaccedilotildees conceitos e ideacuteiasrdquo128
Dessa contradiccedilatildeo na qual natildeo tem o ceacutetico como se decidir por um dos contrapostos
adveacutem como jaacute foi dito anteriormente129 a suspensatildeo de juiacutezo Independente do fato de que
Hegel natildeo considere que da incapacidade de decisatildeo entre as opccedilotildees opostas reste como uacutenica
soluccedilatildeo para o impasse a suspensatildeo do juiacutezo natildeo eacute ele avaro em declarar sua admiraccedilatildeo pela
125 Cf Werke 19 p 372 trad cit p 776
126 HEGEL Ibidem p 373 trad p 777 (ldquoAber die Skeptiker gehen weiter als die Anhaumlnger des neueren rein formellen Idealismus sie haben es mit dem Inhalt zu tun und zeigen von allem Inhalt er sei ein empfundener oder gedachter dass er ein ihm Entgegengesetztes habe Sie zeigen also in demselben den Widerspruch auf daszlig von allem was aufgestellt wird auch das Entgegengesetzte giltrdquo)
127 ldquoPode-se notar aleacutem disso que a falta de uma consideraccedilatildeo mais profunda da antinomia ainda levou inicialmente Kant a soacute citar quatro antinomiasrdquo (ldquoEs kann ferner bemerkt werden daszlig die Ermangelung einer tiefern Betrachtung der Antinomie zunaumlchst noch veranlaszligte daszlig Kant nur vier Antinomien auffuumlhrtrdquo) In GW 20 E sect 48 p 85 trad bras p 120
128 HEGEL GW 20 E sect 48 p 85 trad bras p 121 (ldquoin allen Gegenstaumlnden aller Gattungen in allen Vorstellungen Begriffen und Ideenrdquo)
129 Ver o cap 1
72
postura corajosa do ceacutetico que termina na epocheacute seguindo-se agrave mesma casualmente a
ataraxia Natildeo haacute aos olhos de Hegel incerteza para o ceacutetico A incapacidade dele em tomar
uma decisatildeo natildeo lhe traz intranquumlilidade Pelo contraacuterio Para Hegel esse natildeo tomar uma
decisatildeo em favor de um dos lados que se contrapotildeem seria paradoxalmente uma ldquodecisatildeordquo
que se realiza com a suspensatildeo do juiacutezo
Eacute preciso com efeito natildeo deixar de assinalar que Hegel tem consciecircncia de que a
suspensatildeo do juiacutezo e a ataraxia natildeo satildeo frutos de uma atitude deliberada do ceacutetico em favor
delas Ele cita inclusive o exemplo que Sexto nas Hipotiposes nos fornece a respeito do pintor
Apeles que somente consegue seu intento qual seja pintar a espuma na boca do cavalo no
momento que desiste de encontrar a melhor maneira de efetuar tal pintura e entatildeo consegue o
efeito desejado casualmente apenas lanccedilando o pincel em direccedilatildeo agrave tela Hegel tem portanto
plena consciecircncia de que natildeo haacute decisatildeo por parte do ceacutetico com relaccedilatildeo agrave suspensatildeo do juiacutezo
O que contudo quer ele mostrar eacute que o ceacutetico por se sentir incapaz de dar assentimento a
uma suposta verdade que em face dela haja uma outra aparentemente tatildeo persuasiva quanto a
primeira eacute levado a suspender seu juiacutezo Entre natildeo ficar com nada e ficar com uma verdade
qualquer isto eacute ficar com uma verdade a partir de uma decisatildeo puramente arbitraacuteria posto
que infundada o ceacutetico natildeo se ressente de ser levado a ficar de matildeos vazias Pior do que isso
seria ficar oscilando entre verdades contrapostas que natildeo se sustentam agrave luz da investigaccedilatildeo a
que satildeo submetidas Esse oscilar entre poacutelos opostos e que poderia ser interrompido com o
assentimento a um deles natildeo passa para o ceacutetico de uma ilusatildeo a que o dogmaacutetico a si proacuteprio
se condena Fiar-se naquilo que natildeo pode se sustentar somente pode aos olhos do ceacutetico
gerar intranquumlilidade E Hegel na sua concordacircncia com o ceacutetico de que natildeo podemos nos
ater ao que eacute passiacutevel de ter sua verdade contestada procura ainda mostrar a incapacidade do
uso do termo duacutevida para caracterizar o ceticismo
Duvidar segundo Hegel natildeo condiz com a postura ceacutetica ldquoA empresa ceacutetica eacute
caracterizada injustamente como uma doutrina da duacutevidardquo130 Duvidar diz Hegel seria uma
atitude que apenas intranquumlilidade poderia trazer Duvidar significa que fiquemos entre duas
coisas entre duas alternativas e a respeito das quais teriacuteamos que nos decidir por uma ou por
outra Com a tomada dessa decisatildeo obteriacuteamos por conseguinte a tranquumlilidade Mas natildeo eacute
isso que acontece ao ceacutetico ldquoDuacutevida eacute justamente o contraacuterio da tranquumlilidade que eacute o
130 HEGEL Werke 19 p 362 trad cit p 763 (ldquoDas Geschaumlft des Skeptizismus ist unrecht als eine Lehre vom Zweifel ausgedruumlcktrdquo)
73
resultado do ceticismo Duacutevida vem de dois eacute um oscilar entre dois ou mais natildeo sossegamos
nem em um nem no outro e contudo devemos obter sossego em um ou no outrordquo131
O ceacutetico portanto natildeo duvida pois dessa maneira natildeo teria ainda se afastado da
perspectiva dos dogmaacuteticos Quem fica entre dois ou mais e procura por fim obter a
tranquumlilidade se decidindo por entre um dentre esses dois ou mais eacute o dogmaacutetico132 O ceacutetico
ao contraacuterio natildeo adere a nenhuma verdade que possa ter uma outra a ela oposta e
aparentemente de igual forccedila Como obter tranquumlilidade poderia ele pensar sabendo que sua
decisatildeo por uma ou por outra verdade natildeo teria como se sustentar Dada a equumlipolecircncia natildeo
haacute como se decidir por uma ou por outra alternativa sem ao mesmo tempo ter consciecircncia de
que essa decisatildeo natildeo eacute menos arbitraacuteria que a decisatildeo pela outra alternativa e portanto uma
decisatildeo de caraacuteter meramente subjetivo destituiacuteda de qualquer fundamento Quando Hegel se
refere agrave impossibilidade de se obter tranquumlilidade (Ruhe) ao se fazer opccedilatildeo por uma entre duas
ou mais verdades conflitantes assume ele a posiccedilatildeo ceacutetica a respeito da incapacidade de se
131 Ibidem p 371 trad cit p 775 (ldquoZweifel ist gerade das Gegenteil der Ruhe die das Resultat desselben ist Zweifel kommt von Zwei her ist ein Hin- und Herwerfen zwischen zweien und mehreren man beruhigt sich weder bei dem einen noch bei dem anderen - und doch soll man sich bei dem einen oder bei dem anderen beruhigenrdquo)
132 Assim como natildeo considera apropriado caracterizar o ceticismo como uma doutrina da duacutevida dado que aquele que duvida natildeo consegue transpor a perspectiva dogmaacutetica Hegel tambeacutem faz questatildeo de frisar que na Fenomenologia do Espiacuterito o exame efetuado pelo ceticismo que se consuma (der sich vollbringende Skepticismus) em todo acircmbito da consciecircncia fenomenal natildeo pode ser considerado um caminho da duacutevida pois se assim o fosse natildeo seria possiacutevel ir aleacutem da ldquonatildeo-verdade do saber como fenocircmenordquo ldquoTrata-se portanto de um caminho que pode ser considerado caminho da duacutevida ou mais propriamente caminho do desespero Nele com efeito natildeo tem lugar o que geralmente se entende por duacutevida vem a ser o abalo desta ou daquela pretensa verdade ao qual sucede de novo o conveniente desaparecimento da duacutevida e um retorno agrave mesma verdade de sorte que no fim tudo volta a ser como no princiacutepio Ao contraacuterio a duacutevida de que tratamos eacute a vista penetrante e consciente lanccedilada na natildeo-verdade do saber como fenocircmeno []rdquo No original ldquoEr kann deszligwegen als der Weg des Zweifels angesehen werden oder eigentlicher als Weg der Verzweiflung auf ihm geschieht nemlich nicht das was unter zweifeln verstanden zu werden pflegt ein Ruumltteln an dieser oder jener vermeynten Wahrheit auf welches ein gehoumlriges wiederverschwinden des Zweifels und eine Ruumlckkehr zu jener Wahrheit erfolgt so daszlig am Ende die Sache genommen wird wie vorher Sondern er ist die bewusste Einsicht in die Unwahrheit des erscheinenden Wissens [hellip]rdquo In GW 9 p 56 trad Vaz p 50 A respeito de se caracterizar o caminho da duacutevida na Fenomenologia mais propriamente como caminho do desespero eacute bastante esclarecedor citar a seguinte declaraccedilatildeo hegeliana acerca da afinidade do desespero (Verzweiflung) com o ceticismo ldquoO ceticismo poreacutem natildeo eacute um mero duvidar mas antes tambeacutem um desesperar No duvidar ainda existe a esperanccedila ou a expectativa que a duacutevida aiacute-presente possa ser resolvida Uma vez tendo o sujeito perdido essa esperanccedila ou expectativa entatildeo surge um desesperordquo (ldquoDer Skeptizismus ist aber nicht ein bloszliges Zweifeln sondern auch ein Verzweifeln Beim Zweifeln ist noch die Hoffnung oder Erwartung daszlig der Zweifel noch geloumlst werden koumlnne vorhanden ndash Verliert das Subjekt auch diese Hoffnung und Erwartung so entsteht eine Verzweiflungrdquo) Cf Hegel GW Vorlesungen uumlber Logik und Metaphysik Heidelberg 1817 Mitgeschrieben von FAGood ed Karen Gloy In Vorlesungen Ausgewaumlhlte Nachschriften und Manuskripte Band 11 Hamburg Meiner 1992 p 14
74
decidir agrave maneira dogmaacutetica e desse modo chegar agrave ataraxia Como sabemos por Sexto
Empiacuterico o ceacutetico natildeo encontrou tranquumlilidade ao tentar assim como os outros filoacutesofos
descobrir o que eacute verdadeiro e o que eacute falso nas coisas A uacutenica coisa que descobriu foi uma
discordacircncia um conflito ou anomalia nas coisas extremamente difiacutecil de ser solucionado
tanto que termina por adotar como princiacutepio baacutesico de sua filosofia a atitude consistente no
opor a cada argumento o argumento oposto de igual forccedila133
Como vemos o duvidar na visatildeo de Hegel natildeo pode ser um termo apropriado para se
caracterizar a atitude exercida pelo ceacutetico134 Este natildeo duvida pois ele natildeo se resolve por entre
um dos dois ou mais que se opotildeem O ceacutetico ante a falta de meios para fazer uma opccedilatildeo eacute
levado a suspender seu juiacutezo Tentar ao inveacutes disso se decidir por uma das alternativas eacute o
que lhe traraacute intranquumlilidade Duvidar eacute permanecer naquela busca pela verdade assim como o
fizeram os dogmaacuteticos e da mesma maneira fizeram os ceacuteticos inicialmente perturbados
com a anomalia nas coisas passaram entatildeo a investigar o que poderia ser verdadeiro ou falso
nas coisas E o que conseguiram foi ficarem mais perturbados Por isso a mudanccedila de atitude
com relaccedilatildeo agrave busca da verdade e a possibilidade de se encontrar a tranquumlilidade em termos
completamente outros que aqueles dos dogmaacuteticos135 A ataraxia adveacutem dessa indiferenccedila
perante os opostos
133 Cf HP I 12
134 Ainda com referecircncia agrave impropriedade do termo duacutevida para caracterizar o ceticismo diz Hegel a partir de HP I 7 ldquoO ceticismo se chamou tambeacutem de filosofia pirrocircnica e skeacutepsis ldquoefeacuteticardquo de σχέπτειν pesquisar investigar Natildeo devemos traduzir σχέψις por doutrina da duacutevida ou mania da duacutevida O ceticismo natildeo eacute uma duacutevidardquo (ldquoDer Skeptizismus hieszlig auch pyrrhonische Philosophie und ephektische Skepsis von σχέπτειν suchen forschen Man muszlig σχέψις nicht uumlbersetzen Lehre des Zweifels oder Zweifelsucht Skeptizismus ist nicht ein Zweifelrdquo)
135 Cf HP I 12 Com relaccedilatildeo a essa mudanccedila de atitude do ceacutetico para que possa obter a tranquumlilidade declara no mesmo sentido que o fazemos Roberto Bolzani ldquoA constataccedilatildeo dessa incapacidade de resolver o conflito de dar assentimento a uma doutrina em detrimento das outras todas esse estado de equiliacutebrio (άρρεψία HP I 190) e repouso do intelecto (στάσις διανοίας HP I 10) no qual se encontra entatildeo essa impressatildeo ou afecccedilatildeo (πάτος HP I 7187190192 198) nada mais satildeo do que a epokheacute E eacute nessa situaccedilatildeo de suspensatildeo que inesperadamente o filosoacutefo ndash agora ceacutetico ndash se descobre em ataraxiacutea (Cf HP I 29) A meta de todo filosofar agora se obteacutem natildeo mais com a posse da verdade ndash a partir daiacute problemaacutetica ndash mas sim com a produccedilatildeo sempre renovada desse estado intelectual que se impocircs a uma anaacutelise acurada e isenta dos argumentos que os filoacutesofos tecircm proposto para justificar suas doutrinas dogmaacuteticasrdquo (In Bolzani R Acadecircmicos versus Pirrocircnicos Tese de Doutorado em Filosofia Satildeo Paulo FFLCH-USP 2003 p 15)
75
Um outro aspecto a ser considerado nessa leitura hegeliana do ceticismo antigo
refere-se ao motivo que permite ao ceacutetico obter ecircxito na sua criacutetica do dogmatismo seja este
filosoacutefico ou natildeo Por que estaacute a seu alcance mostrar a contradiccedilatildeo naquilo que a ele se
apresenta com valor de verdade
Como vimos anteriormente136 Hegel faz uma distinccedilatildeo entre o domiacutenio do
entendimento e o domiacutenio da razatildeo O primeiro constitui-se em um domiacutenio no qual somente
eacute possiacutevel produzir o limitado e finito137 Qualquer determinaccedilatildeo aiacute posta natildeo estaacute livre de ter
uma outra a ela contraposta A ocorrecircncia desse fato se deve como jaacute mencionado ao caraacuteter
limitado das determinaccedilotildees de entendimento138 Tais determinaccedilotildees satildeo limitadas porque
estatildeo reguladas pelo princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo ou seja que algo natildeo pode ser por
exemplo A e natildeo-A ao mesmo tempo Ou eacute uma coisa ou outra Jaacute o domiacutenio da razatildeo eacute
aquele em que essas determinaccedilotildees finitas produzidas pelo entendimento natildeo satildeo
consideradas isoladamente Se para o entendimento natildeo eacute possiacutevel que algo seja e natildeo seja ao
mesmo tempo que uma determinaccedilatildeo de entendimento desse modo somente valha na sua
unilateralidade e com desconsideraccedilatildeo da outra determinaccedilatildeo que a ela se contraponha e a
limite no domiacutenio racional as duas determinaccedilotildees contrapostas satildeo unificadas A contradiccedilatildeo
aqui natildeo eacute um mal a ser evitado
O que nos interessa com essa pequena retomada da distinccedilatildeo hegeliana entre
entendimento e razatildeo eacute fornecer elementos para que possamos elucidar o significado da
afirmaccedilatildeo do filoacutesofo com relaccedilatildeo ao ecircxito do ceacutetico no seu combate ao dogmatismo Com
efeito o ceacutetico consegue mostrar a fraqueza a limitaccedilatildeo das asserccedilotildees dos dogmaacuteticos devido
a estas estarem estruturadas a partir da loacutegica do entendimento Assim natildeo fica difiacutecil para ele
exercer sua atitude (agogeacute) consistente em mostrar que a cada argumento ou proposiccedilatildeo eacute
136 Ver o cap 2
137 ldquoFinito significa ndash expresso formalmente ndash aquilo que tem um fim o que eacute mas que deixa de ser onde estaacute em conexatildeo com seu outro e por conseguinte eacute limitado por ele Assim o finito consiste em uma relaccedilatildeo ao seu outro que eacute sua negaccedilatildeo e se apresenta como seu limiterdquo (ldquoEndlich heiszligt formell ausgedruumlckt dasjenige was ein Ende hat was ist aber da aufhoumlrt wo es mit seinem Anderen zusammenhaumlngt und somit durch dieses beschraumlnkt wird Das Endliche besteht also in Beziehung auf sein Anderes welches seine Negation ist und sich als dessen Grenze darstellt rdquo In Werke 8 E sect28 Adendo p 94 trad bras p 91
138 ldquoO pensar que soacute produz determinaccedilotildees finitas e nelas se move chama-se entendimento no sentido estrito do termordquo (ldquoDas Denken nur endliche Bestimmungen hervorbringend und in solchen sich bewegend heiszligt Verstand (im genauern Sinne des Wortesrdquo) In GW 20 E sect25 p 68 trad bras p 87
76
possiacutevel contrapor um argumento ou proposiccedilatildeo de igual forccedila No acircmbito do entendimento
natildeo eacute portanto possiacutevel se esquivar dos ataques do ceacutetico Ocorre entretanto que num outro
domiacutenio o da razatildeo a situaccedilatildeo natildeo seja tatildeo favoraacutevel ao ceacutetico Se no acircmbito do racional a
contradiccedilatildeo natildeo precisa ser evitada isso significa que teriacuteamos entatildeo um domiacutenio no qual a
agogeacute ceacutetica seria ineficaz Para aleacutem do acircmbito do dogmatismo produzido pelo
entendimento como poderia o ceacutetico ainda ser uma ameaccedila
Eacute apenas tendo em vista as consideraccedilotildees acima feitas que podemos entender Hegel
quando declara que se trata de um equiacutevoco pensar que toda filosofia que natildeo eacute ceticismo seja
dogmatismo139 As filosofias constituiacutedas segundo a loacutegica do entendimento satildeo para Hegel
filosofias dogmaacuteticas E satildeo essas filosofias que natildeo resistem ao combate empreendido pelo
ceticismo contra elas A filosofia especulativa estaria segundo o filoacutesofo a salvo desse
ataque Ela diferente das filosofias de entendimento (ou dogmaacuteticas) natildeo ldquoafirma algo
determinado como o absolutordquo140
Na Enciclopeacutedia141 Hegel nos fornece uma amostra desse dogmatismo expresso
filosoficamente ao se referir ao que chama de antiga metafiacutesica isto eacute a metafiacutesica que havia
se constituiacutedo anteriormente agrave filosofia kantiana142
Segundo Hegel essa metafiacutesica se articulava por meio de determinaccedilotildees de
pensamento finitas ou seja determinaccedilotildees de entendimento Procurava-se por meio delas
determinar o absoluto pela atribuiccedilatildeo de predicados Elas constituiacuteam os predicados mediante
os quais poderiacuteamos conhecer o objeto a que eram atribuiacutedas Assim dizia-se por exemplo
que o mundo eacute finito ou infinito Temos aqui um sujeito mundo ao qual um dos predicados
finito ou infinito a ele deve ser atribuiacutedo de maneira que possamos conhecer o que ele seja
De fato o que conseguimos ao proceder desse modo natildeo eacute o absoluto Finito eacute uma
determinaccedilatildeo de pensamento que tem diante de si uma outra infinito a ela contraposta Se o
mundo portanto eacute considerado finito podemos por outro lado nos contrapor a essa
afirmaccedilatildeo ao declarar com a mesma intenccedilatildeo de verdade que o mundo eacute infinito Como
impedir entatildeo que se instaure a oposiccedilatildeo Eacute com base nesse tipo de dificuldade oriunda desse
139 Cf Werke 19 p 393 trad cit p 798
140 Ibidem p 393 trad cit p 798 (ldquo etwas Bestimmtes als das Absolute behauptetrdquo)
141 Ver GW 20 E sect26 e ss trad bras p 89 e ss
142 Cf Ibidem E sect27 pp 70-71 trad bras p 90
77
modo de proceder da assim chamada antiga metafiacutesica que podemos compreender Hegel
quando se refere agraves determinaccedilotildees de pensamento finitas como as ldquooposiccedilotildees ainda natildeo
resolvidasrdquo143 A resoluccedilatildeo da oposiccedilatildeo como veremos mais tarde somente poderaacute ocorrer na
filosofia que natildeo mais se articula pela atribuiccedilatildeo de predicados a um sujeito fixo Esta
filosofia eacute a filosofia especulativa
Hegel assinala ainda que em virtude dessa possibilidade de que uma determinaccedilatildeo de
pensamento finita possa ter a ela uma outra determinaccedilatildeo de pensamento finita contraposta
esse procedimento da filosofia calcada no entendimento e consistente em se formular
proposiccedilotildees que possam dar-nos a conhecer o que eacute o objeto por meio da atribuiccedilatildeo de
predicados a um sujeito fixo padece de unilateralidade Em outras palavras para Hegel a
forma proposicional eacute incapaz de exprimir o especulativo ldquoo juiacutezo eacute por sua forma
unilateral e nessa medida eacute falsordquo144 Natildeo haacute como escapar do dogmatismo quando se
pretende portanto que o absoluto seja expresso em forma proposicional A parcialidade desse
absoluto eacute mostrada na medida em que eacute possiacutevel a formulaccedilatildeo de duas proposiccedilotildees opostas
que procurem nos dar a conhecer o que ele seja e como nos adverte Hegel uma delas deve
ser verdadeira e a outra deve ser falsa145 Para o pensar de entendimento natildeo cabe a hipoacutetese
de que essas proposiccedilotildees contrapostas possam coexistir Como admitir a coexistecircncia dos
opostos Se o mundo eacute finito eacute porque ele natildeo eacute infinito e vice-versa Do ponto de vista do
entendimento seria absurdo pensar que determinaccedilotildees opostas pudessem ter contato146 que o
mundo fosse por exemplo finito e infinito ao mesmo tempo sem que isso fosse
contraditoacuterio E uma vez instaurada a contradiccedilatildeo potildee-se a claro o limite do pensamento
dogmaacutetico O que o ceticismo faraacute aos olhos de Hegel eacute justamente atacar esse ponto fraco
do pensamento dogmaacutetico por meio da produccedilatildeo de antinomias
143 Cf Ibidem E sect 27 trad bras p 90 (ldquonoch unaufgeloumlsten Gegensatzerdquo)
144 Ibidem E sect31 p 72 trad bras p 94 (ldquodas Urtheil ist durch seine Form einseitig und in sofern falschrdquo)
145 ldquoEssa metafiacutesica tornou-se dogmatismo porque ela conforme a natureza das determinaccedilotildees finitas devia admitir que de duas afirmaccedilotildees contrapostas tais como eram aquelas proposiccedilotildees uma devia ser verdadeira mas a outra falsardquo (ldquoDiese Metaphysik wurde Dogmatismus weil sie nach der Natur der endlichen Bestimmungen annehmen muszligte daszlig von zwei entgegengesetzten Behauptungen dergleichen jene Saumltze waren die eine wahr die andere aber falsch seyn muumlsserdquo) In Ibidem E sect 32 p 72 trad bras p 94
146 O dogmatismo da metafiacutesica de entendimento natildeo pode imaginar que haja qualquer ponto de contato entre determinaccedilotildees opostas ldquoNoacutes as consideramos como separadas uma da outra por um abismo infinito de modo que as determinaccedilotildees que se contrapotildeem natildeo possam nunca tocar-serdquo (ldquoWir betrachten dieselben als durch einen unendlichen Abgrund voneinander getrennt so daszlig die einander gegenuumlberstehenden Bestimmungen sich nie zu erreichen vermoumlgenrdquo) In Werke 8 E sect32 Adendo p 98 trad bras modificada p 95
78
Mas de volta ao nosso ponto de partida referiacuteamo-nos agrave questatildeo do motivo que levaria
o ceacutetico a ter ecircxito na sua criacutetica ao dogmatismo Vimos entatildeo que na perspectiva hegeliana
esse ecircxito estava vinculado a certas caracteriacutesticas definidoras do dogmatismo ou pensar de
entendimento Eacute preciso contudo abrir aqui um parecircntese para lembrar que o ceacutetico natildeo
admite que haja uma terceira hipoacutetese que natildeo ceticismo ou dogmatismo Ou se eacute ceacutetico ou se
eacute dogmaacutetico147 Natildeo haacute para o ceticismo uma filosofia que natildeo fosse ceacutetica e ao mesmo
tempo tambeacutem natildeo fosse dogmaacutetica Qualquer filosofia que de uma maneira ou de outra
procure afirmar algo sobre a realidade o que seriam as coisas em si mesmas a verdade ou o
absoluto eacute aos olhos do ceticismo dogmaacutetica Qualquer filosofia que enfim avance teses
determinadas Hegel estaacute consciente desse aspecto do ceticismo Ele sabe que da perspectiva
ceacutetica tambeacutem o pensamento especulativo seria considerado dogmaacutetico148 Isto posto
podemos afirmar que para ele o dogmatismo eacute um ldquoconceitordquo que natildeo possui a mesma
abrangecircncia que possuiacutea para os ceacuteticos antigos A filosofia especulativa por exemplo natildeo
poderia ser considerada dogmaacutetica Ela natildeo se constitui na forma de proposiccedilotildees que possam
ser contraditadas por outras a elas contrapostas assim como ocorre no caso do pensar limitado
do entendimento Dessa maneira aos olhos de Hegel ela a filosofia especulativa natildeo eacute
dogmaacutetica Somente as filosofias assentadas no pensar de entendimento poderiam receber tal
denominaccedilatildeo Algo impensaacutevel para o ceacutetico fazer uma tal espeacutecie de distinccedilatildeo
A anaacutelise hegeliana dos tropos utilizados pelos ceacuteticos para combater o dogmatismo
tambeacutem estaacute assentada na distinccedilatildeo que ele faz e acima exposta entre dogmatismo ceticismo
e filosofia especulativa Assim veremos a seguir como Hegel caracteriza os tropos e avalia
em que medida podem ser uacuteteis agrave filosofia especulativa
147 Mesmo a divisatildeo tripartite da filosofia no iniacutecio das Hipotiposes natildeo parece a nosso ver desautorizar a hipoacutetese de que para o ceacutetico apenas haja ou dogmatismo ou ceticismo Cremos que a divisatildeo laacute efetuada apenas pretenda tornar mais precisa a distinccedilatildeo entre um dogmatismo positivo e um dogmatismo negativo Por isso quando declaramos acima que para o ceacutetico apenas haja ou filosofia dogmaacutetica ou filosofia ceacutetica utilizamos o termo dogmatismo em sentido lato isto eacute que o dogmatismo possa ser tanto positivo quanto negativo A respeito da divisatildeo tripartite da filosofia pelo ceticismo cf HP I 1-4 Ver ainda no capiacutetulo inicial deste trabalho p 27 e ss
148 ldquoOs ceacuteticos da Antiguumlidade chamavam em geral dogmatismo toda e qualquer filosofia enquanto ela estabelecia teses determinadas Nesse sentido amplo tambeacutem a filosofia propriamente especulativa conta como dogmaacutetica para o ceticismordquo (ldquoDie alten Skeptiker nannten uumlberhaupt eine jede Philosophie dogmatisch insofern dieselbe bestimmte Lehrsaumltze aufstellt In diesem weiteren Sinne gilt auch die eigentlich spekulative Philosophie dem Skeptizismus fuumlr dogmatischrdquo) In Werke 8 E sect 32 Adendo p 97 trad bras p 94
79
Como jaacute foi observado no iniacutecio deste estudo149 e Hegel faz questatildeo de assinalar150 os
tropos satildeo modos maneiras151 que o ceacutetico se utiliza para por meio da produccedilatildeo de antiacuteteses
chegar agrave suspensatildeo do juiacutezo152 Tambeacutem para Hegel assim como jaacute o eram para os ceacuteticos
antigos os tropos satildeo armas valiosas e eficazes para a criacutetica do dogmatismo
Diferentemente dos ceacuteticos que natildeo procuram efetuar nenhuma distinccedilatildeo entre os dez
tropos de Enesidemo e os cinco tropos de Agripa153 Hegel na sua exposiccedilatildeo dos mesmos
empenha-se em delinear as caracteriacutesticas peculiares de ambos os grupos de tropos Assim os
tropos de Enesidemo satildeo eficazes no combate a uma forma de dogmatismo diferente daquele
que eacute alvo dos cinco tropos de Agripa Os dez tropos tecircm segundo o filoacutesofo como alvo uma
forma mais rudimentar de dogmatismo Uma forma de dogmatismo produzida por uma
consciecircncia vulgar (gemeine Bewuszligtsein) e que tem como crenccedila uma verdade imediata154
Mas a que se deve essa ponderaccedilatildeo de Hegel com relaccedilatildeo ao caraacuteter rudimentar do
dogmatismo que estaacute na mira dos dez tropos Ela se deve com efeito a uma falta de
elaboraccedilatildeo conceitual desses tropos Natildeo haacute neles de acordo com a perspectiva hegeliana a
intenccedilatildeo de se procurar fazer frente a teorias sejam elas filosoacuteficas ou natildeo Eles se dirigem
imediatamente contra o empiacuterico155 A oposiccedilatildeo por meio deles advinda se faz da maneira a
mais simples Tomemos a tiacutetulo de exemplo o primeiro tropo156 baseado nas diferenccedilas dos
animais de acordo com ele dados os caracteres proacuteprios de cada animal diferentes
149 Ver Cap 1 pp 46-48
150 Cf Hegel Werke 19 p 37 trad cit p 778
151 Com respeito ao significado do termo grego tropos no ceticismo antigo cf Barnes J e Annas J The modes of scepticism Cambridge Cambridge University Press 1985 p 21 e ss
152 Cf HP I 3135 e 36
153 No que toca agrave atribuiccedilatildeo dos tropos a Enesidemo e a Agripa veja-se respectivamente em Brochard Les Sceptiques Grecs Paris Vrin 1969 p 253 e ss e p301 e ss
154 Cf Werke pp 374-375 trad cit pp 778-779
155 No mesmo sentido a seguinte observaccedilatildeo de Victor Brochard ldquoLimitemo-nos a notar que os dez tropos de Enesidemo exceto o uacuteltimo (trata-se ainda poreacutem de opiniotildees comumente admitidas sem nenhum caraacuteter cientiacutefico) tecircm por objeto mostrar a insuficiecircncia da percepccedilatildeo sensiacutevel (Cf Brochard p 261)
156 Cf HP I 40-78
80
representaccedilotildees seratildeo produzidas a respeito dos mesmos objetos Desse modo em vista das
diferenccedilas especiacuteficas dos olhos de diversos animais produzir-se-atildeo diferentes representaccedilotildees
visuais a respeito de um mesmo objeto Ou ainda conforme o terceiro tropo157 as diferenccedilas
nos oacutergatildeos sensoriais de um homem para outro natildeo permitem que possamos afirmar nada de
certo no que se refere agrave real natureza daquilo que sentimos Assim natildeo podemos nada dizer
por exemplo quanto ao mel ser em si mesmo doce visto que a um pode parecer doce e a
outro natildeo
Por essa maneira ruacutestica de engendrar oposiccedilotildees apenas apontando a relatividade
daquilo que eacute imediatamente posto como um saber verdadeiro Hegel considera haver uma
falta de abstraccedilatildeo (Mangel der Abstraktion) um caraacuteter a-conceitual (Begriffslosigkeit) desses
dez primeiros tropos que eles expressam um pensamento inabilidoso (ein ungeuumlbtes Denken)
Eacute fato que Sexto nos advirta que o tropo da relatividade eacute o mais geral isto eacute que no fundo
todos os dez tropos satildeo variadas formas de expressar a relatividade de todas as coisas158
Mesmo assim nota Hegel o tropo da relatividade aparece exposto ao lado dos outros nove
como apenas mais um deles159 Natildeo importa portanto que natildeo passem de variaccedilotildees do tropo
da relatividade os outros nove tropos160 Parece-nos que o objetivo do ceacutetico ao apresentar por
meio dos dez tropos diversas maneiras de se poder suspender o juiacutezo eacute ilustrar
extensivamente como fica difiacutecil de se escapar da epokheacute Natildeo eacute suficiente apenas assinalar
que pode ser mostrado o caraacuteter relativo de todas as coisas Eacute necessaacuterio exemplificar
abundantemente essa relatividade A produccedilatildeo de antiacuteteses se daacute portanto dos mais variados
modos tornando a tarefa de se encontrar alguma verdade absoluta um objetivo cada vez mais
distante e irrealizaacutevel
Se o ceticismo assinala Hegel eacute uma filosofia que nos mostra natildeo haver constacircncia
nas coisas que elas satildeo variaacuteveis que nada permanece sempre da mesma maneira no caso
dos dez tropos insiste ele essa inconstacircncia pode ser observada no plano do saber imediato
Por meio deste saber apenas se diz que algo eacute imediatamente de determinado modo E por que
157 Cf HP I 79-91
158 Cf HP I 39
159 Cf Werke 19 p 385 trad cit p 790
160 A respeito da sistematizaccedilatildeo precaacuteria desses tropos ou mesmo falta dela diz Brochard ldquoEsses dez tropos noacutes os vemos se suceder com exceccedilatildeo dos quatro primeiros sem grande ordem Natildeo haacute por que se espantar com isso natildeo eacute metodicamente e nem a priori mas empiricamente e acumulando observaccedilotildees que eles foram determinadosrdquo (Cf Brochard p 259)
81
eacute assim Eacute apenas porque eacute Tenho a experiecircncia imediata de que por exemplo o mel eacute doce
Um outro experimenta do mesmo mel e afirma de igual modo que o mel eacute amargo Diante
portanto de duas percepccedilotildees opostas natildeo eacute possiacutevel saber se o mel eacute doce ou amargo e
assim somos levados agrave suspensatildeo de juiacutezo Segundo Hegel a verdade imediata das coisas eacute
refutada apenas com a posiccedilatildeo do contraacuterio ao que eacute afirmado como o verdadeiro por meio
do ldquoser contrapostordquo (das entgegengesetzte Sein)161 Algueacutem afirma que algo eacute assim mas
outro afirma que natildeo eacute assim que eacute de outro modo
Por mais triviais e vulgares que sejam esses tropos Hegel os considera bastante
apropriados (ganz treffend) contra o dogmatismo do senso comum (den Dogmatismus des
gemeinen Menschenverstandes)162 Exemplo desse dogmatismo grosseiro poderia ser o
ceticismo de Schulze163 Para este autor aquilo que se daacute agrave nossa consciecircncia imediata eacute
verdadeiro164 Natildeo haacute porque de acordo com ele negarmos que seja verdadeiro aquilo que
imediatamente experienciamos Se existe algo verdadeiro este consiste apenas naquilo de que
possamos imediatamente ter certeza165 E Schulze ainda pretende que os ceacuteticos antigos
161 Cf Ibidem p 375 trad cit p 779
162 Cf Hegel Ibidem p 385 trad cit p 790
163 Para a criacutetica detalhada de Hegel ao ceticismo de Schulze ver seu artigo ldquoRelacionamento do ceticismo agrave filosofiardquo In GW 4 pp 197-238 Seja-nos permitido citar tambeacutem a respeito nosso artigo ldquoAlguns aspectos da compreensatildeo hegeliana do ceticismo antigo a partir da criacutetica ao ceticismo de Gottlob Ernst Schulzerdquo In Dois Pontos Ceticismo UFPRUFSCAR vol 4 no 2 2007 pp 221-246 Cf tambeacutem Vieweg Philosophie des Remis especialmente pp 207-221 Por fim cf Forster M N Hegel and Skepticism cap 1
164 Cf Werke 19 p 360 trad cit p 375
165 Ver a propoacutesito a exposiccedilatildeo hegeliana desse lado positivo do ceticismo de Schulze no artigo sobre o ceticismo In GW 4 p 202 Hegel notemos laacute se refere quase textualmente ao seguinte trecho da obra de Schulze Criacutetica da Filosofia Teoacuterica a saber ldquoTem entatildeo certeza completamente incontestaacutevel a existecircncia daquilo que eacute dado presente no acircmbito de nossa consciecircncia Pois o que aiacute estaacute presente na consciecircncia natildeo podemos noacutes de sua existecircncia tampouco duvidar assim como duvidar da proacutepria consciecircncia Querer poreacutem duvidar da consciecircncia eacute absolutamente impossiacutevel porque uma tal duacutevida visto que ela natildeo pode realizar-se sem [que haja] consciecircncia a si mesma se aniquila natildeo seria portanto nada Chamamos entatildeo um fato da consciecircncia aquilo que na e com a consciecircncia eacute dadordquo (ldquoNun hat die Existenz desjenigen was im Umfange unsers Bewuszligtseins als vorhanden gegeben ist ganz unlaumlugbare Gewiszligheit Denn da es im Bewuszligtsein gegenwaumlrtig ist so koumlnnen wir dessen Existenz eben so wenig bezweifeln als das Bewuszligtsein selbst das Bewuszligtsein aber bezweifeln zu wollen ist absolut unmoumlglich weil ein solcher Zweifel da er ohne Bewuszligtsein nicht statt finden kann sich selbst vernichten mithin Nichts seyn wuumlrde Nun nennt man dasjenige was in und mit dem Bewuszligtsein gegeben ist eine Tatsache des Bewuszligtseinsrdquo In Schulze G E Kritik der theoretischen Philosophie Band 1 Hamburg 1801 p 51 (reimpressatildeo por Aetas Kantiana Bruxelas Culture et Civilisation 1973)
82
tambeacutem tenham considerado verdadeiro esse saber imediato e natildeo-filosoacutefico166 Ora natildeo haacute
nada mais distante da filosofia ceacutetica do que esse assentimento a verdades imediatas Os dez
tropos de Enesidemo satildeo prova disso natildeo apenas da perspectiva hegeliana como tambeacutem da
perspectiva ceacutetica Hegel sabe que os ceacuteticos estatildeo longe de afirmar que aquilo que lhes
aparece seja expressatildeo de qualquer verdade Como ele bem nota aquilo que lhes aparece
serve apenas de guia para que o ceacutetico se conduza na sua vida praacutetica167 O ldquofenocircmenordquo natildeo
possui nenhum estatuto epistemoloacutegico e nem ontoloacutegico no sentido dogmaacutetico Se os dez
tropos de Enesidemo servem muito bem aos olhos de Hegel para combater qualquer forma
rudimentar de dogmatismo jaacute o ceticismo de Schulze que tambeacutem poderia ser considerado
uma forma de dogmatismo canhestro natildeo pode ficar fora da mira dos ceacuteticos apontada para
ele por meio dos dez tropos
Na primeira seccedilatildeo da Fenomenologia do Espiacuterito ldquoA certeza sensiacutevel ou o isto ou o
visarrdquo Hegel nos apresenta uma criacutetica de toda forma de saber imediato Assim como no caso
dos dez tropos aqui tambeacutem se aponta para a instabilidade desse saber imediato E para
mostrar que a certeza sensiacutevel que esse saber do imediato nos proporciona natildeo eacute nenhuma
verdade sustentaacutevel que quando procuramos ter acesso agrave coisa que eacute imediatamente para noacutes
de fato natildeo temos acesso a ela Hegel eacute o que nos parece apoacuteia-se tambeacutem no ceticismo
antigo Cremos ser possiacutevel fazer semelhante afirmaccedilatildeo porque em certos momentos do
texto seu modo de proceder com vistas a atacar o saber imediato estaacute em consonacircncia com o
procedimento dos ceacuteticos antigos por meio dos dez tropos168 Essa forma de oposiccedilatildeo que
Hegel vecirc como caracteriacutestica do modo de proceder que opera nos dez tropos a saber que a
uma verdade posta imediatamente uma outra verdade eacute imediatamente contraposta agrave
primeira de maneira que uma anule a outra tambeacutem se encontra presente na seccedilatildeo inicial da
166 Cf GW 4 p 204
167 ldquoO que como ente ou inteligiacutevel valia vale por conseguinte a eles somente por algo que aparece ou uma pura representaccedilatildeo poreacutem lhes vale apenas como algo conforme o qual os ceacuteticos se guiam na sua conduta seu agir e deixar-se submeterrdquo (ldquoWas als Seiendes und Gedachtes galt galt ihnen daher nur fuumlr ein Erscheinendes ode reine Vorstellung aber es galt ihnen als eine solche nach der der Skeptiker sich in seinem Betragen Tun und Lassen richteterdquo) In Werke 19 p 371 trad cit p 775
168 Em sucinto poreacutem bastante elucidativo estudo Klaus Duumlsing relaciona a criacutetica hegeliana da certeza sensiacutevel na Fenomenologia do Espiacuterito ao ceticismo antigo Mais especificamente Duumlsing procura mostrar como estaacute nela presente a criacutetica ceacutetica a toda forma de saber imediato por meio da contraposiccedilatildeo de argumentos com ecircnfase na efetivaccedilatildeo dessa tarefa mediante os tropos de Enesidemo (Cf Duumlsing K ldquoDie Bedeutung des antiken Skeptizismus fuumlr Hegels Kritik der Sinnlichen Gewissheitrdquo Hegel-Studien 8 1973 pp 119-130) Tambeacutem Dietmar Heidemann remete a anaacutelise da certeza sensiacutevel ao ceticismo antigo Em particular ele se refere ao que chama de criacutetica ceacutetica ao realismo imediato (Cf Heidemann D Der Begriff des Skeptizismus pp 280-290)
83
Fenomenologia do Espiacuterito quando do exame que se faz do saber imediato que daiacute se parte
Assim eacute faacutecil mostrar que a certeza sensiacutevel imediata de que agora eacute noite natildeo resiste perante
a certeza oposta a ela e pela qual se declara que agora eacute dia Tanto a certeza de que agora eacute
noite quanto aquela outra de que agora eacute dia satildeo certezas portadoras de verdades
insustentaacuteveis em vista da mais simples oposiccedilatildeo a que sejam submetidas169
O mesmo se passa com a verdade ldquoo aqui eacute a aacutervorerdquo 170 quando me viro prossegue
Hegel essa verdade desvaneceu (ist verschwunden) e mudou na oposta o aqui natildeo eacute uma
aacutervore mas antes uma casa
Sem pretender seguir aqui todos os passos dessa dialeacutetica que aniquila a possibilidade
de que haja um saber imediato vale chamar agora a atenccedilatildeo para a conclusatildeo mais geral a que
se pode chegar qual seja de que o ser que a certeza sensiacutevel quer conhecer imediatamente
natildeo pode ser apreendido Mas por que natildeo podemos ter acesso a essa verdade imediata Seu
acesso nos eacute vedado porque quando pretendemos dizer o imediato apenas conseguimos dizer
o universal Na dialeacutetica do agora natildeo conseguimos de fato dizer verdadeiramente que agora
eacute por exemplo dia Agora pode ser dia ou noite Contra o agora que eacute dia pode ser
contraposto o agora que eacute noite A uacutenica coisa que se manteacutem aqui eacute o agora indiferente a ser
dia ou noite ldquoComo o dia e a noite natildeo satildeo o seu ser assim tambeacutem ele natildeo eacute o dia e a noite
natildeo eacute afetado por esse seu ser-outrordquo171 O agora eacute por meio dessa negaccedilatildeo daquilo que ele
natildeo eacute Quando se pretende dizer verdadeiramente que agora eacute dia somente se consegue dizer
o universal isto eacute o agora que se manteacutem a salvo da oposiccedilatildeo que possa surgir entre o ser
que ele pretende enunciar e o ser que se opotildee a ele
A impossibilidade de dizermos o imediato se deve ao fato de sermos traiacutedos pela
linguagem Ela proacutepria nos mostra que ao tentarmos dizer o ser sensiacutevel apenas estaacute ao nosso
alcance dizer o universal172 Se pretendemos dizer este pedaccedilo de papel segundo o que se nos
169 Cf GW 9 pp 64-65 trad Paulo Meneses p 76
170 Cf Ibidem p 65 trad cit p 77
171 (ldquoso wenig die Nacht und der Tag sein Seyn ist ebensowohl ist es auch Tag und Nacht es ist durch diszlig sein andersseyn nicht afficirtrdquo) In GW 9 p 64 trad cit p 76
172 Cf GW 9 pp 64-65 trad Vaz p 63 Hegel natildeo perde aleacutem disso a oportunidade tambeacutem aqui na Fenomenologia do Espiacuterito de criticar e de modo incisivo Schulze Mesmo que natildeo seja citado nominalmente a referecircncia de Hegel soacute pode ser a ele Vale a pena citar todo o trecho ldquoEacute pois de se admirar quando contra essa experiecircncia se sustenta como experiecircncia universal e tambeacutem como afirmaccedilatildeo filosoacutefica e mesmo como resultado do ceticismo que a realidade ou o ser das coisas exteriores como estas ou como sensiacuteveis tem uma
84
apresenta pelo exame da certeza sensiacutevel natildeo conseguiriacuteamos dizer este pedaccedilo de papel
singular e individual Pela linguagem o ser-aiacute desse objeto exterior a noacutes eacute inatingiacutevel173 Este
pedaccedilo de papel que digo eacute um pedaccedilo de papel como qualquer outro ldquo() como esse pedaco
de papel todo e cada papel eacute um este pedaccedilo de papel e o que eu disse foi sempre e somente
o universalrdquo174
Trazendo novamente o eixo da discussatildeo para o debate entre Hegel e o ceticismo natildeo
conveacutem aqui discutir a respeito do alcance daquilo que aparece para o ceacutetico apoacutes a suspensatildeo
de juiacutezo mas no que nos interessa a saber a possibilidade ou natildeo de se poder afirmar a
verdade simploacuteria do imediato parece-nos oportuno ainda articular a discussatildeo acerca do
saber imediato agrave temaacutetica ceacutetica referente ao ldquoaparecer apoacutes a epokheacuterdquo
Assim quando nas Hipotiposes se discute a respeito dos ceacuteticos abolirem os
fenocircmenos175 parece-nos que a questatildeo em torno da possibilidade de haver ou natildeo saber
imediato esteja presente O ceacutetico procura aiacute justamente desfazer um mal-entendido
concernente agrave sua ldquoposiccedilatildeo filosoacuteficardquo Se natildeo podemos ter acesso agrave verdade no sentido
dogmaacutetico se as coisas se nos apresentam dotadas de um conflito indecidiacutevel somos levados
agrave epokheacute Diante dessa incapacidade do ceacutetico se decidir (dogmaticamente) em nada poder
afirmar absolutamente o que restaria a ele fazer daiacute por diante Esse eacute a espeacutecie de
verdade absoluta para a consciecircncia Semelhante afirmaccedilatildeo natildeo sabe o que diz ou natildeo sabe que diz o contraacuterio do que pretende dizer A verdade do isto sensiacutevel para a consciecircncia deve ser uma experiecircncia universal Aquela consciecircncia suprime uma verdade desse tipo como por exemplo o aqui eacute uma aacutervore ou o agora eacute meio-dia sempre de novo e enuncia o contraacuterio o aqui natildeo eacute uma aacutervore mas uma casa E do mesmo modo a consciecircncia suprime o que nessa afirmaccedilatildeo que suprime a primeira eacute igualmente afirmaccedilatildeo de um isto sensiacutevel Desta sorte em toda certeza sensiacutevel somente eacute experimentado em verdade o que vimos ou seja o isto como um universal o contraacuterio do que aquela afirmaccedilatildeo assegura ser a experiecircncia universal A propoacutesito dessa menccedilatildeo da experiecircncia seja permitido antecipar uma consideraccedilatildeo que pertence ao domiacutenio da praacutetica Na linha dessa consideraccedilatildeo pode-se dizer agravequeles que afirmam a tal verdade e certeza dos objetos sensiacuteveis que eles devem ser reenviados agrave escola mais baixa da sabedoria ou seja aos velhos misteacuterios eleusiacutenicos de Ceres e Baco e que devem aprender pela primeira vez os misteacuterios de comer o patildeo e beber o vinho Com efeito o iniciado nesses misteacuterios natildeo somente chega a duvidar do ser das coisas sensiacuteveis mas a desesperar dele e ele mesmo de uma parte leva a cabo o seu nada de outra o vecirc levar a cabo Tambeacutem os animais natildeo estatildeo excluiacutedos dessa sabedoria mas ao contraacuterio mostram-se profundamente iniciados nela De fato eles natildeo permanecem diante das coisas sensiacuteveis como se elas possuiacutessem um ser em si mas desesperando da sua realidade e na certeza total de seu nada eles as tomam sem mais e as devoram Como eles toda a natureza celebra assim esses misteacuterios revelados que ensinam qual seja a verdade das coisas sensiacuteveisrdquo In GW 9 p 69 trad Vaz p 66-67
173 Cf Ibid pp 69-70 trad Vaz pp 67-68
174 (ldquoals dieses Stuumlck Papier so ist alles und jedes Papier ein dieses Stuumlck Papier und ich habe nur immer das Allgemeine gesagtrdquo) Cf GW 9 p 70 trad de Paulo Meneses p 82
175 Cf HP I 19-20
85
pensamento que poderia surgir para aqueles que natildeo satildeo suficientemente versados no
ceticismo Mais estranho ainda para o natildeo-ceacutetico eacute essa aceitaccedilatildeo adoxaacutestica daquilo que
aparece sem contudo que este aparecer natildeo seja dotado de verdade A partir deste ponto
estamos a um passo de natildeo compreender que o fenocircmeno da perspectiva do ceticismo possa
ter nossa aceitaccedilatildeo isto eacute que possamos dar nosso assentimento ao que nos aparece e se nos
impotildee independente de nossa vontade mas que isto que nos aparece natildeo tem nenhum valor de
verdade
O pensar natildeo-filosoacutefico podemos conjecturar aceita com dificuldade essa hipoacutetese de
um aparecer do qual natildeo possamos ter certeza verdadeira Afinal como natildeo ter certeza de que
vejo que agora eacute dia A ingenuidade do pensar natildeo-filosoacutefico natildeo se daacute conta de que o ceacutetico
tambeacutem talvez concordasse com essa certeza de que agora eacute dia contudo se ele concorda o
faz de uma outra perspectiva
Talvez seja nesse tipo de confusatildeo com respeito agrave sua posiccedilatildeo que o ceacutetico seja
obrigado a tentar esclarecer porque ele natildeo pretende abolir as aparecircncias Parece-nos
portanto que a explicaccedilatildeo fornecida para esse tema pretenda justamente tornar claro que essa
discussatildeo acerca do caraacuteter do aparecer se faccedila ao niacutevel da linguagem e que nesse niacutevel natildeo
podemos obter certezas vinculadas ao que se noacutes daacute imediatamente Natildeo haacute como decidir
entre afirmaccedilotildees opostas a respeito do ldquorealrdquo O ceacutetico portanto constata que no uacutenico plano
ndash a linguagem ndash em que podemos discutir o fenocircmeno natildeo podemos concluir
dogmaticamente nada a seu propoacutesito Mesma conclusatildeo a que chega Hegel exceto que na
dialeacutetica da certeza sensiacutevel se chega a um resultado positivo176 que acerca daquilo que eacute
visado imediatamente apenas podemos ter acesso ao universal
Dessa discussatildeo importa com efeito reter que tanto para os ceacuteticos quanto para
Hegel natildeo podemos por meio da linguagem exprimir o sensiacutevel Mas nada poder dizer a
respeito do sensiacutevel com valor de verdade natildeo impede o ceacutetico de continuar a falar dele Ele
continua a ver uma aacutervore a perceber que agora eacute dia e que este dia se torna noite O que
acontece agora eacute que em virtude da sua incapacidade em poder dizer algo com valor de
verdade ele apenas pode relatar acerca do que lhe aparece deixando de lado qualquer juiacutezo
teacutetico concernente a esse aparecer
176 O ceacutetico chega apenas agrave suspensatildeo do juiacutezo
86
Os tropos nos mostraram o caminho dessa dificuldade em se afirmar algo
dogmaticamente Apoacutes a suspensatildeo do juiacutezo natildeo estamos de acordo com a visatildeo ceacutetica
impedidos de viver como antes o faziacuteamos mas estamos impedidos todavia de tentar nos
referirmos a essa experiecircncia pela qual todos ndash filoacutesofos ou natildeo ndash passamos de modo
dogmaacutetico
O ceacutetico antigo foi obrigado como haacute pouco vimos a ter de se haver com essa falta de
compreensatildeo relacionada agrave sua filosofia E se essa dificuldade de compreensatildeo do
ldquofenomenismordquo ceacutetico jaacute era notaacutevel agrave eacutepoca de Sexto outro exemplo da mesma
incompreensatildeo novamente se verifica agrave eacutepoca de Hegel o ceticismo de Schulze e este eacute o
exemplo mais gritante da mesma
Se na seccedilatildeo Ceticismo das suas Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia a fraqueza do
ceticismo de Schulze era apontada dentro da criacutetica que por meio dos tropos se fazia agrave falta de
solidez do saber imediato das coisas exteriores sensiacuteveis na Fenomenologia do Espiacuterito a
criacutetica a Schulze se desenvolve no mesmo sentido todavia que agora ela vai como haacute pouco
vimos aleacutem da mera criacutetica negativa e aponta para o resultado positivo dessa dialeacutetica
presente na certeza sensiacutevel
De volta aos tropos conveacutem reparar que nas Hipotiposes Sexto natildeo se refere aos
tropos a partir da dupla denominaccedilatildeo tropos de Enesidemo e tropos de Agripa Ele apenas
nota que os modos de Enesidemo surgem em um periacuteodo mais antigo da histoacuteria do
ceticismo177 Jaacute os tropos de Agripa satildeo de um periacuteodo bem posterior da histoacuteria do
ceticismo178 A diferenccedila entre a eacutepoca de surgimento eacute a uacutenica que Sexto menciona A uacutenica
observaccedilatildeo que Sexto faz nas Hipotiposes quanto agrave relaccedilatildeo entre os dois grupos de tropos
refere-se a notar que os cinco posteriores servem para proporcionar maior variedade e
completude agrave exposiccedilatildeo da precipitaccedilatildeo (propeacuteteia) dos dogmaacuteticos179 Mas apesar contudo
177 Cf HP I 36
178 Cf HP I 164
179 Cf HP I 177
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de natildeo ser feita nenhuma distinccedilatildeo entre eles com relaccedilatildeo a isso Sexto faz uma declaraccedilatildeo
que merece nossa atenccedilatildeo a saber que os cinco tropos de Agripa natildeo pretendem anular os
dez tropos anteriores Ora por que razatildeo eacute declarado que natildeo se pretende por meio dos tropos
de Agripa repelir os anteriores No contexto dessa discussatildeo poderiacuteamos supor subjaz a
ideacuteia de que os tropos posteriores dariam conta da tarefa a ser executada pelos outros dez
tropos Haveria entatildeo uma superioridade dos tropos de Agripa o que por consequumlecircncia
forccedilaria o afastamento dos dez primeiros tropos em prol dos cinco de Agripa Da perspectiva
ceacutetica tal discussatildeo em torno da superioridade tem de ser evitada afinal por qual criteacuterio
julgar a superioridade de uns em relaccedilatildeo aos outros
Com efeito parece-nos que os cinco tropos de Agripa poderiam tomar o lugar dos dez
tropos de Enesidemo Satildeo de caraacuteter mais geral Dentre eles temos inclusive o tropo da
relatividade aquele ao qual poderiam todos os outros nove tropos de Enesidemo serem
reduzidos
Quando Hegel efetua a distinccedilatildeo entre os dois grupos de tropos eacute cabiacutevel que ele natildeo
esteja cometendo nenhum exagero com respeito ao que de fato nos eacute mostrado pelo ceticismo
antigo
Para Hegel a diferenccedila fundamental entre os tropos de Enesidemo e os tropos de
Agripa reside no grau de elaboraccedilatildeo que eles atingem e atrelado a essa marca distintiva o
alvo a ser atacado por meio deles tambeacutem seraacute diferente180 Assim para ele os tropos de
Agripa ldquopertencem mais agrave reflexatildeo pensante e contecircm a dialeacutetica que o conceito determinado
tem nele Esses parecem melhores satildeo manifestamente de uma origem posterior
imediatamente se vecirc que eles designam um ponto de vista e uma cultura inteiramente
180 Jaacute Brochard na sua apresentaccedilatildeo dos tropos de Enesidemo e Agripa empenhava-se em sublinhar a diferenccedila de grau que havia entre os dois grupos de tropos Dessa maneira procurava mostrar que os tropos de Agripa eram dotados de maior generalidade e abstraccedilatildeo sendo portanto mais eficazes que os tropos de Enesidemo no que toca agrave criacutetica ceacutetica por meio deles efetuada ldquoPor mais gerais que sejam as concepccedilotildees criticadas por Enesidemo elas possuem ainda um conteuacutedo determinado os argumentos de Agripa atingem natildeo somente tal ou tal proposiccedilatildeo mas antes toda proposiccedilatildeo de qualquer espeacutecie que ela seja natildeo apenas determinadas verdades mas toda verdade consideradas segundo as condiccedilotildees as mais imediatas e as mais essenciais do conhecimentordquo (Brochard p 305) Ou ainda ldquoOs cinco tropos podem ser considerados como a foacutermula a mais radical e a mais precisa que jamais fora dada a respeito do ceticismo Numa palavra ainda hoje eles satildeo irresitiacuteveis Quem quer que aceite a discussatildeo acerca dos princiacutepios que natildeo os declare superiores ao raciociacutenio e ao conhecido por uma intuiccedilatildeo imediata do espiacuterito admitido por um ato de feacute primitivo do qual natildeo prestamos contas e nem necessitamos justificar natildeo poderia escapar a essa sutil dialeacuteticardquo (Brochard p 306) Natildeo eacute agrave toa que cabe notar Hegel dedique tanta atenccedilatildeo agrave filosofia ceacutetica
88
diferentes do pensamento filosoacutefico Eles se dirigem com efeito especialmente contra as
formas de pensamento e as determinidades do conceitordquo181
O que chama a atenccedilatildeo de Hegel nos cinco tropos de Agripa eacute o caraacuteter geral dos
mesmos que implica na possibilidade de que eles natildeo fiquem restritos ao ataque a um
dogmatismo de aspecto mais rudimentar182 Os tropos de Agripa por sua proacutepria estrutura
nos permitem eacute o que nota Hegel combater o dogmatismo num outro acircmbito Este acircmbito eacute o
da forma do que eacute dito Natildeo existe aqui a preocupaccedilatildeo em exibir a falta de fundamento de
uma premissa por exemplo com relaccedilatildeo a determinado conteuacutedo Eacute indiferente o assunto de
que se trata
Interessa primordialmente a Hegel que por meio desses tropos possamos combater
natildeo apenas o dogmatismo natildeo-filosoacutefico mas tambeacutem o dogmatismo criado pelos filoacutesofos E
por dogmatismo filosoacutefico deve ser entendido aquele dogmatismo denominado por Hegel de
filosofia do entendimento (Verstandesphilosophie)
Como jaacute foi visto anteriormente183 o ecircxito do ceacutetico no combate ao dogmatismo estaacute
na visatildeo hegeliana relacionado agrave limitaccedilatildeo intriacutenseca da esfera do entendimento Assim a
aplicaccedilatildeo do ldquoprinciacutepio programaacutetico do pirronismordquo qual seja opor a todo argumento ou
proposiccedilatildeo a proposiccedilatildeo ou argumento de igual forccedila184 ao saber de entendimento fazia com
que esse saber sempre desmoronasse em vista das antinomias estabelecidas pelo ceacutetico
Contra o limitado posto pelo entendimento o ceacutetico punha um outro que contrapusesse o
primeiro mostrando assim a falta de consistecircncia desse185
Os tropos de Agripa natildeo satildeo nada mais do que variadas formas de apontar o caraacuteter
determinado do pensar filosoacutefico de entendimento ldquoEsses tropos satildeo armas fundamentais
181 (ldquosie gehoumlren mehr der denkenden Refelxion an und enthalten die Dialektik welche der bestimmte Begriff an ihm hat Diese sehen besser aus sie sind offenbar spaumlteren Ursprungs es erhellt sogleich dass sie einen ganz anderen Standpunkt und Bildung des philosophischen Denkens bezeichnen Sie gehen naumlmlich besonders gegen die Gedankenformen und Bestimmtheiten des Begriffsrdquo) In Werke 19 p 386 trad cit p 790
182 ldquoOs dez tropos de Enesidemo tendem a provar que a certeza de fato natildeo existe os cinco tropos de Agripa querem estabelecer que logicamente natildeo poderia haver certeza Por aiacute podemos medir a superioridade dos uacuteltimos por sobre os primeirosrdquo (Brochard p 304)
183 No que se refere agrave relaccedilatildeo entre dogmatismo e entendimento e agrave criacutetica ao dogmatismo produzido pelo entendimento ver de modo geral cap 2
184 Cf HP I 12
185 A respeito da limitaccedilatildeo do entendimento ver neste estudo o capiacutetulo 2
89
contra a filosofia de entendimentordquo186 Hegel natildeo perde a oportunidade de por diversas vezes
elogiar os tropos de Agripa como armas eficazes contra a limitaccedilatildeo da filosofia de
entendimento187
Tomemos um exemplo de como pode ser combatida a limitaccedilatildeo de uma filosofia do
entendimento segundo Hegel a filosofia dogmaacutetica comumente apresenta um princiacutepio em
uma proposiccedilatildeo determinada Ora eacute faacutecil apontar a condicionalidade desse princiacutepio ao se
simplesmente contrapor a ele de acordo com o tropo da hipoacutetese um outro princiacutepio que o
negue Diante dessa oposiccedilatildeo o ceacutetico suspende seu juiacutezo pois natildeo se vecirc em condiccedilotildees de
acolher um ou outro princiacutepio como vaacutelido A posiccedilatildeo do princiacutepio dessa filosofia eacute tatildeo
arbitraacuteria quanto a posiccedilatildeo do princiacutepio que o contrapotildee e posto pelo ceacutetico Contra um tal
princiacutepio determinado tambeacutem poder-se-ia arguumlir qual eacute seu fundamento e assim um outro
princiacutepio seria posto como fundamento do primeiro mas este novo princiacutepio padeceria da
mesma falta de fundamento e entatildeo seria necessaacuterio um outro princiacutepio a fundaacute-lo e assim por
diante Com esse processo de fundamentaccedilatildeo que nunca se basta teriacuteamos entatildeo uma
regressatildeo ao infinito (2ordm tropo de Agripa)
Como podemos observar natildeo eacute difiacutecil para o ceacutetico apontar mediante os tropos a
falta de solidez do que eacute posto pelas filosofias do entendimento ldquoEsses tropos satildeo as
oposiccedilotildees necessaacuterias nas quais o entendimento cai Nesses tropos estaacute contida a deficiecircncia
(das Mangelhafte) de toda metafiacutesica do entendimentordquo188 A proacutepria estrutura da proposiccedilatildeo
favorece a criacutetica ceacutetica Lembremos189 que uma proposiccedilatildeo de entendimento se constitui de
acordo com o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo190 Desse modo natildeo podemos dizer que algo seja
e natildeo seja ao mesmo tempo O ceacutetico apoiado em sua dialeacutetica potildee ao que se diz numa
proposiccedilatildeo de entendimento o seu contraposto tornando assim patente a limitaccedilatildeo do que era
enunciado por meio dessa proposiccedilatildeo
186 (ldquoDiese Tropen sind gruumlndliche Waffe gegen Verstandesphilosophierdquo) Werke 19 p 395 trad cit p 799
187 ldquoEsses tropos demonstram a alta consciecircncia dos ceacuteticos no progredir da argumentaccedilatildeo superior agravequela da loacutegica comum da loacutegica dos estoacuteicos e da canocircnica de Epicurordquo (ldquoDiese Tropen beweisen das hohe Bewuszligtsein der Skeptiker in dem Fortgehen der Argumentation -- ein houmlheres als in der gewoumlhnliche Logik der Logik der Stoiker und der Kanonik des Epikur vorhanden istrdquo) In Ibidem p394 trad cit p 799
188 (ldquoDiese Tropen sind notwendige Gegensaumltze in welche der Verstand faumlllt In diesen Tropen ist das Mangelhafte aller Verstandesmetaphysik enthaltenrdquo) In Ibidem p 394 trad cit p 799
189 Veja-se a respeito o capiacutetulo 2
190 Hegel a ele se refere como princiacutepio de contradiccedilatildeo
90
Ainda sobre os tropos de Agripa atacarem a forma do que eacute dito dogmaticamente por
essas filosofias limitadas Hegel se refere a essa operaccedilatildeo como ldquodesse determinado
encontrar o que eacute sua determinidaderdquo191 Encontrar nesse determinado produzido pelo
entendimento aquilo que o faz limitado e que dessa maneira torna-o vulneraacutevel agrave criacutetica
ceacutetica
A fim ainda de esclarecer o que eacute o ceticismo Hegel distingue dois momentos formais
do que ele chama de cultura (Bildung) ceacutetica Esses dois momentos constituem uma espeacutecie
de descriccedilatildeo hegeliana da estrutura fundamental do modo de operar dessa filosofia
Assim no primeiro momento Hegel salienta essa forccedila da consciecircncia (ceacutetica) de se
retirar de si mesma e tomar a totalidade do que existe incluiacuteda aiacute ela mesma ndash sua operaccedilatildeo ndash
como seu objeto192 Talvez com essa espeacutecie de caracterizaccedilatildeo Hegel se refira agrave neutralidade
que haacute nessa postura filosoacutefica quando do exame daquilo que a ela se apresenta
dogmaticamente
Natildeo haveria como ser diferente pois se o ceacutetico em virtude de sua proacutepria atitude
filosoacutefica natildeo possui dogmas a defender natildeo parte portanto de nenhuma verdade seja ela
qual for ou diga respeito ao que quer que seja o seu exame do que eacute afirmado
dogmaticamente seraacute isento e neutro O exame dos enunciados dos dogmaacuteticos se efetua
levando apenas em conta aquilo que eles mesmos propuseram e os argumentos utilizados
pelos ceacuteticos para combater tais enunciados expressam somente a forma por eles encontrada
para verificar a sustentabilidade do que foi dogmaticamente posto193
191 (ldquovon diesem Bestimmten zu finden was seine Bestimmtheit istrdquo) In Werke 19 p 395 trad cit pp 799-800
192 Cf Ibidem p 395 trad cit p 800
193 Nada fica por conseguinte excluiacutedo do acircmbito do exame do dogmatismo filosoacutefico Natildeo se parte de premissas que sirvam como criteacuterio a ser seguido com relaccedilatildeo ao que seraacute analisado Eacute de acordo com essa forma de proceder do ceacutetico que na Fenomenologia do Espiacuterito eacute o que nos parece dir-se-aacute que o exame ceacutetico da consciecircncia aconteceraacute a partir daquilo mesmo que se apresenta nesta ou naquela figura da consciecircncia de maneira que ldquonatildeo temos portanto necessidade de trazer outras medidas e aplicar na investigaccedilatildeo nossas descobertas e nossos pensamentos Deixando-os de lado conseguiremos tratar o objeto de nossa inquisiccedilatildeo tal como ele eacute em-si e para-si Torna-se supeacuterflua por conseguinte uma intervenccedilatildeo de nossa parte desde que o
91
O segundo momento da Bildung ceacutetica consiste na operaccedilatildeo efetivamente realizada
quando do exame do que eacute dito dogmaticamente Pensemos por exemplo numa proposiccedilatildeo
qualquer o interesse do ceacutetico natildeo estaacute voltado primordialmente para o conteuacutedo enunciado
por meio dessa proposiccedilatildeo mas antes na forma do que eacute dito194 Desse modo no juiacutezo ldquoa
coisa eacute unardquo sua preocupaccedilatildeo natildeo eacute com a coisa que eacute dita e com o fato dela ser uma
preocupa-se ele antes que nessa proposiccedilatildeo haacute um algo um determinado relacionado ao uno
O essencial consiste nessa relaccedilatildeo entre esse singular que se potildee como um com o universal
que por sua vez eacute diverso (verschieden) dele195 O essencial prossegue Hegel eacute o elemento
loacutegico trazido ao primeiro plano pelo ceticismo196
Os tropos de Agripa exemplificam essa mudanccedila de foco do conteuacutedo para a forma do
que eacute enunciado A criacutetica ao dogmatismo independe do conteuacutedo que estaacute presente num
argumento ou proposiccedilatildeo pois esses tropos satildeo eficazes no combate ao dogmatismo apenas
ao apontar em seu aspecto formal a falta de solidez do que eacute afirmado
Outro aspecto que adveacutem como consequumlecircncia desse desinteresse pelo conteuacutedo do que
eacute dito refere-se ao fato de que a investigaccedilatildeo ceacutetica por natildeo poder ndash em virtude de sua
conceito e o objeto a medida e a coisa a ser examinada estatildeo presentes na consciecircncia mesmardquo (ldquo[]und hiemit wir nicht noumlthig haben Masszligstaumlbe mitzubringen und unsere Einfaumllle und Gedanken bey der Untersuchung zu appliciren dadurch daszlig wir diese weglassen erreichen wir es die Sache wie sie an und fuumlr sich selbst ist zu betrachten Aber nicht nur nach dieser Seite daszlig Begriff und Gegenstand der Maszligstab und das zu Pruumlffende in dem Bewuszligtsein selbst vorhanden sind [hellip] rdquo In GW 9 p 59 trad Vaz p 54
194 Cf Werke 19 p 395 trad cit p 800
195 Cf Ibidem p 395 trad cit p 800
196 Poderiacuteamos aproximar essa discussatildeo a respeito da mudanccedila de foco realizada pelo ceacutetico do conteuacutedo para a forma do que seraacute examinado agrave discussatildeo no iniacutecio da Enciclopeacutedia precisamente no sect3 acerca da necessidade de se passar para o plano dos pensamentos puros quando se pretende pensar filosoficamente Nesse sentido eacute interessante o comentaacuterio hegeliano acerca da dificuldade da consciecircncia ordinaacuteria compreender o ponto de vista da filosofia Dessa ldquofalta de costume de pensar abstratamenterdquo deriva a acusaccedilatildeo de ininteligibilidade (Unverstaumlndlichkeit) da filosofia (cf GW 20 p42 trad cit p 42) O pensar que natildeo consegue se libertar de suas representaccedilotildees sentimentos intuiccedilotildees tem dificuldade em se elevar ao plano de uma discussatildeo na qual lhe sejam retirados os conteuacutedos familiares a que estaacute acostumado a lidar O que o ceacutetico faz eacute passar desse plano mais terra-a-terra da consciecircncia ordinaacuteria e como quer Hegel transpor-se para o plano dos pensamentos puros ldquoEm qualquer proposiccedilatildeo de conteuacutedo inteiramente sensiacutevel como lsquoessa folha eacute verdersquo jaacute estatildeo inseridas categorias ser singularidaderdquo (GW 20 p 42 trad p 42) Quando se faz essa passagem para esse plano mais abstrato o exame se aprofunda As proacuteprias coordenadas que regulam a constituiccedilatildeo de nosso pensamento acerca das coisas satildeo postas em questatildeo Por isso a consciecircncia ordinaacuteria diraacute Hegel se sente aturdida pois perde seu ponto fixo e domiciacutelio ldquoQuando se encontra deslocada para a regiatildeo pura dos conceitos natildeo sabe onde estaacute no mundordquo (Cf GW 20 p 43 trad p 43) A ldquoresoluccedilatildeo de querer pensar puramenterdquo (rein denken zu wollen) cumpre essa exigecircncia ceacutetica de submeter tudo a exame o que envolve a ldquoausecircncia de pressuposiccedilatildeo a respeito de tudordquo (Cf GW 20 E sect 78 p 118 trad p 156)
92
proacutepria atitude filosoacutefica ndash nada pressupor natildeo considera nada como dado isto eacute daquilo que
eacute afirmado dogmaticamente nenhum dos elementos componentes dessa afirmaccedilatildeo ficaria
excluiacutedo da investigaccedilatildeo
Talvez pudeacutessemos compreender a partir do que se disse agora a declaraccedilatildeo de Hegel
referente aos ceacuteticos natildeo estarem preocupados em disputar se a coisa eacute deste ou daquele
modo mas que eles se preocupam antes se a coisa eacute mesmo algo197
O exemplo extraiacutedo das Hipotiposes198 que Hegel nos daacute a esse respeito eacute o seguinte
na discussatildeo acerca das propriedades que porventura Deus possua eacute preciso primeiro que
saibamos se ele tem realidade (Realitaumlt)199 Antes de conceber quais propriedades Deus
possui primeiro se faz necessaacuterio saber se Deus mesmo eacute algo ldquonatildeo fornecer a coisa se a
coisa eacute assim ou assado mas antes se coisa mesma eacute algordquo200 A postura filosoacutefica ceacutetica
implica essa mudanccedila de atitude perante o discurso filosoacutefico ou natildeo Antes de empregar a
linguagem ldquodoacutexicardquo eacute preciso examinar se as ldquoessecircnciasrdquo que essa linguagem nos fornece satildeo
algo de soacutelido e estaacutevel Via de regra o pensamento dogmaacutetico natildeo se questiona a respeito do
que diz Eacute como se desde sempre os conceitos dos quais se vale tivessem os significados que
num determinado contexto prevaleceram O ceacutetico recua ante esse emprego ingecircnuo das
palavras e examina se as ldquoessecircnciasrdquo que nelas habitam satildeo efetivamente ldquoessecircnciasrdquo estaacuteveis
Nesse exame da ldquoessecircncia do expressordquo para falar em linguagem hegeliana se atinge o
caraacuteter limitado e instaacutevel dessas ldquoessecircnciasrdquo E ao se atingir a limitaccedilatildeo das mesmas
descobre-se tambeacutem que como veremos natildeo podem ser visadas apenas na sua
unilateralidade Em suma para que possamos pretender aceitar determinada posiccedilatildeo
dogmaacutetica filosoacutefica ou natildeo eacute necessaacuterio que nada deixe de ser investigado Eacute por essa
amplitude e falta de restriccedilotildees embutidas na investigaccedilatildeo ceacutetica que Hegel se referiu agrave forccedila
da consciecircncia ceacutetica em fazer seu objeto tudo que eacute existente inclusive a si mesma e sua
proacutepria operaccedilatildeo
197 Cf Ibidem p 396 trad cit p 800
198 Cf HP III 4
199 Nas Hipotiposes III 4 no trecho que certamente Hegel tem em mente trata-se de saber o que eacute a essecircncia (οὐσίαν) de Deus antes de se aprender e conceber suas propriedades
200 (ldquonicht die Sache zu geben ob die Sache so oder so ist sondern ob die Sache selbst etwas istrdquo) Ibidem p 396 trad cit p 800
93
No que respeita propriamente ao seu exame Hegel vislumbra jaacute no ceticismo antigo
um procedimento operatoacuterio caracteriacutestico do pensamento especulativo201 Eacute o que ele nos
diraacute logo apoacutes ter feito a exposiccedilatildeo da anaacutelise de Sexto Empiacuterico sobre as noccedilotildees geomeacutetricas
Natildeo apenas com relaccedilatildeo agraves noccedilotildees geomeacutetricas mas tambeacutem em todas as
determinaccedilotildees das ciecircncias o ceacutetico apresenta a determinidade delas ao indicar nas mesmas o
seu outro202 No caso especiacutefico das determinaccedilotildees da geometria Sexto prossegue Hegel
critica a matemaacutetica por nela se dizer que haacute um ponto um espaccedilo uma linha uma superfiacutecie
uma unidade e assim por diante Com efeito o que para Hegel se encontra na criacutetica ceacutetica agraves
determinaccedilotildees matemaacuteticas eacute o fato dessas determinaccedilotildees padecerem de unilateralidade quer
dizer que nelas natildeo se consideram as determinaccedilotildees agraves mesmas opostas e unidas
Hegel cita um exemplo dessa criacutetica agrave matemaacutetica a saber o exemplo do
relacionamento dialeacutetico entre o ponto e o espaccedilo
ldquoO ponto eacute um espaccedilo e eacute um simples no espaccedilo ele natildeo tem nenhuma dimensatildeo
(mas se) ele natildeo tem nenhuma dimensatildeo entatildeo ele natildeo estaacute no espaccedilo Na medida em que o
um eacute espacial noacutes o denominamos um ponto mas se isso deve ter um sentido ele precisa ser
espacial e enquanto espacial ter uma dimensatildeo ndash mas entatildeo natildeo eacute mais um ponto O ponto eacute a
negaccedilatildeo do espaccedilo na medida em que eacute o seu limite e como tal ele toca o espaccedilo essa
negaccedilatildeo participa portanto do espaccedilo ela proacutepria eacute espacial eacute assim um nulo (Nichtiges) em
si mas com isso eacute tambeacutem um dialeacutetico em sirdquo203
Como acabamos de observar nessa dialeacutetica do ponto e do espaccedilo o ponto somente se
determina como ponto na medida em que estaacute intrinsecamente relacionado ao outro elemento
201 ldquoO ceticismo tratou portanto tambeacutem propriamente de ideacuteias especulativas e apontou a importacircncia delasrdquo (ldquoDer Skeptizismus hat also auch eigentlich spekulative Ideen behandelt und ihre Wichtigkeit aufgezeigtrdquo) Cf Ibidem p 396 trad cit p 802
202 Cf Ibidem p 396 trad cit p 802
203 Ibidem p 396 trad cit p 802 (ldquoPunkt ist ein Raum und ein Einfaches im Raum er hat keine Dimension hat er keine Dimension so ist er nicht im Raume Insofern das Eins raumlumlich ist nennen wir es einen Punkt wenn dies aber einen Sinn haben soll so muszlig es raumlumlich sein und als Raumlumliches Dimension haben ndash so ist es aber kein Punkt mehr Er ist die Negation des Raums insofern er die Grenze des Raums ist als solche beruumlhrt er den Raum diese Negation hat also einen Anteil an dem Raum ist selbst raumlumlich ndash ist so ein Nichtiges in sich ist aber damit auch ein Dialektisches in sichrdquo)
94
que nega o espaccedilo mas sem o qual o ponto natildeo se constitui como ponto O limite do ponto eacute
o espaccedilo e o limite do espaccedilo eacute o ponto Um somente eacute o que eacute na medida em que o outro natildeo
eacute todavia esse relacionamento dos opostos eacute o que permite que ambos sejam ponto e espaccedilo
A limitaccedilatildeo de um pelo outro eacute a condiccedilatildeo para que cada um se determine ou como ponto ou
como espaccedilo Para o pensamento finito de entendimento o ponto eacute um simples no espaccedilo que
natildeo possui dimensatildeo Ora o ceacutetico mostra que natildeo eacute possiacutevel pensar o ponto desvinculado da
dimensatildeo Como estar no espaccedilo e natildeo ter dimensatildeo Aqui temos o ldquolimiterdquo do entendimento
natildeo eacute capaz de conceber que o ponto seja no espaccedilo e dependa da dimensatildeo espacial para se
determinar como ponto Para o entendimento essa convivecircncia muacutetua de ponto e espaccedilo eacute
uma contradiccedilatildeo e por ser uma contradiccedilatildeo natildeo eacute nada O que o ceacutetico faz eacute mostrar que
ponto e espaccedilo efetivamente contradizem um ao outro entretanto essa contradiccedilatildeo entre
ambos os elementos eacute o que permite aos olhos do pensamento especulativo que sejam como
jaacute dissemos ponto e espaccedilo Cremos que a partir dessas consideraccedilotildees possamos compreender
porque Hegel se refira ao fato do ceticismo ter tratado de ideacuteias especulativas204 Esse na
liacutengua hegeliana indicar da contradiccedilatildeo no finito aqui especificamente pelo exemplo do
ponto e do espaccedilo eacute segundo o filoacutesofo ldquoum ponto essencial do meacutetodo filosoacutefico
especulativordquo205
Mas o ceacutetico natildeo se restringe como gostaria Hegel a combater apenas o finito Ele
natildeo reconhece que o especulativo seja um domiacutenio a salvo de suas investidas Se o ponto e o
204 Em Ordem do tempo Paulo Eduardo Arantes ao refazer todos os passos da argumentaccedilatildeo hegeliana a respeito da passagem especulativa do espaccedilo ao tempo explicita a articulaccedilatildeo dialeacutetica presente nessa passagem entre ponto e espaccedilo ldquoGraccedilas agrave ideacuteia de limite ndash primeira negaccedilatildeo ou negaccedilatildeo simples ndash eacute a armaccedilatildeo dialeacutetica inteira que estaacute montada na exposiccedilatildeo do conceito de espaccedilo O ponto eacute a negaccedilatildeo do espaccedilo uma vez que este se mostra inicialmente como o ser-fora-de-si indiferenciado ou imediato Certo natildeo haacute como falar de pontos espaciais como constituindo o elemento positivo do espaccedilo (agregado obtido por soma de pontos) A continuidade abstrata do espaccedilo eacute apenas a possibilidade mas natildeo o estar-posto do ser-um-fora-do-outro e do negativo Vale dizer que a desarticulaccedilatildeo do contiacutenuo pela limitaccedilatildeo equivale a uma posiccedilatildeo do negativo por isso lsquoo ponto o ser-para-si eacute antes a negaccedilatildeo do espaccedilo e essa negaccedilatildeo posta nelersquo (ibid sect 254 p 207 trad p 245) Vale dizer tambeacutem que a negatividade de que o ponto eacute portador eacute da ordem da negaccedilatildeo determinada Em suma o ponto eacute a negaccedilatildeo do espaccedilo portanto essa negaccedilatildeo mesma eacute espacial e a linha que natildeo eacute mais que o ponto suprimido eacute assim o ser espacial do ponto (cf ibid sect 256)rdquo In Arantes P E A ordem do tempo Satildeo Paulo Ed Polis 1981 p 37
205 Ibidem p 396 trad 802 (ldquoein wesentlicher Punkt der spekulativ philosophischen Methoderdquo) Nesse sentido podemos compreender que o conceito absoluto seja uma arma da qual se vale o ceacutetico ldquoContra o conceito como conceito conceito absoluto nada pode o ceticismo o conceito absoluto eacute antes sua arma apenas que ele natildeo tem nenhuma consciecircncia a respeito dissordquo (ldquoGegen den Begriff als Begriff absoluten Begriff geht der Skeptizismus nicht der absolute Begriff ist vielmehr seine Waffe nur daszlig er kein Bewuszligtsein daruumlber hatrdquo) In Ibidem p 372 trad cit p 776
95
espaccedilo se contradizem natildeo haacute conciliaccedilatildeo possiacutevel A incapacidade de decidir soacute o leva agrave
suspensatildeo do juiacutezo Da contradiccedilatildeo natildeo se pode esperar nada
Se o ceacutetico segundo Hegel acertadamente eacute capaz de apontar (aufzeigen) a
limitaccedilatildeo do pensar de entendimento que seu saber por natureza unilateral estaacute condenado a
ser sempre contraditado por um outro ele natildeo eacute entretanto capaz de enxergar nessa
contradiccedilatildeo a possibilidade de que haja nela um aspecto afirmativo ldquoos ceacuteticos permanecem
no resultado como perante um negativo tal coisa tem uma contradiccedilatildeo em si portanto se
dissolve (loumlst es sich auf) portanto natildeo eacuterdquo206 O termo da investigaccedilatildeo ceacutetica se consuma
nessa aporia Mas o negativo a que se chega ldquoeacute novamente uma determinidade unilateral em
face do positivo isto significa que o ceticismo se comporta somente como entendimentordquo207
O que Hegel pretende com essa criacutetica eacute mostrar que o ceacutetico por mais que se
empenhe em efetuar sua investigaccedilatildeo da maneira a mais abrangente mesmo ele natildeo se daacute
conta de que assume certos pressupostos tambeacutem passiacuteveis de exame Aqui especificamente
falta a ele atentar para o fato de que o negativo a que chega eacute tatildeo limitado quanto o positivo
que aboliu que a negaccedilatildeo comporta um lado afirmativo208 que o nada que adveacutem da
contradiccedilatildeo natildeo eacute um puro nada
ldquoEssa dialeacutetica permanece assim simplesmente no lado negativo do resultado e abstrai
daquilo que ao mesmo tempo estaacute aiacute-presente um resultado determinado aqui um puro nada
mas um nada que em si inclui o ser e igualmente um ser que nele inclui o nadardquo209
206 (ldquo[] die Skeptiker bei dem Resultat als einem Negativen stehenbleiben dies und dies hat einen Widerspruch in sich also loumlst es sich auf also ist es nichtrdquo) Werke 19 p 360 trad cit p 761
207 (ldquo [hellip]ist wieder eine einseitige Bestimmtheit gegen das Positive dh der Skeptizismus verhaumllt sich nur als
Verstand rdquo) Ibidem p 360 trad cit p 761
208 Ibidem p 360 trad cit p 761
209 GW 20 E sect89 p 129 trad cit p 185 No original ldquoDiese Dialektik bleib so blos bei der Negativen Seite des Resultates stehen und abstrahirt von dem was zugleich wirklich vorhanden ist ein bestimmtes Resultat hier ein reines Nichts aber Nichts welches das Seyn und eben so ein Seyn welches das Nichts in sich schlieszligtrdquo
96
O pressuposto natildeo assumido pelo ceacutetico eacute portanto que o nada eacute uma determinaccedilatildeo
unilateral que se relaciona apenas exteriormente ao ser Com efeito vemos nos paraacutegrafos
iniciais da Doutrina do Ser na Enciclopeacutedia que o ser e o nada estatildeo unidos que eles se
determinam mutuamente210 Sem pretender adentrar na anaacutelise desses paraacutegrafos da
Enciclopeacutedia importa agora reparar que o ponto de vista do ceacutetico tambeacutem eacute passiacutevel de
criacutetica que por mais que ele deseje o contraacuterio aos olhos de Hegel natildeo conseguiu ele se
desvencilhar do horizonte do dogmatismo211 Seu exame natildeo fora tatildeo radical quanto ele o
quereria212 O ceacutetico natildeo deixa por conseguinte de ser tributaacuterio da ontologia que critica
Mas mesmo que natildeo vaacute aleacutem da contradiccedilatildeo soacute por chegar ateacute ela o ceticismo aos olhos de
Hegel honra a filosofia especulativa Natildeo eacute por outro motivo que Hegel considera o ceticismo
como parte da filosofia positiva que esta tem incorporado a ela o negativo do ceticismo como
seu momento Eacute claro deve ser ressalvado que o negativo devidamente tingido pela filosofia
especulativa ldquoA filosofia positiva [] ela tem o negativo do ceticismo nela mesma ele natildeo eacute
contraposto a ela natildeo eacute fora dela mas antes eacute um momento da mesma poreacutem o negativo em
sua verdade tal como o ceticismo natildeo o temrdquo213
Fica bastante expliacutecito por meio dessas Liccedilotildees de Hegel eacute o que natildeo podemos deixar
de notar a enorme influecircncia exercida pela filosofia ceacutetica na especulaccedilatildeo hegeliana
Na filosofia isto eacute na filosofia especulativa que por sua vez estaacute para aleacutem da
alternativa ou dogmatismo ou ceticismo ndash afinal a especulaccedilatildeo para Hegel conteacutem em si
210 Cf E sect86 e ss
211 Uma espeacutecie de criacutetica que diga-se de passagem mesmo que recebesse aceitaccedilatildeo unacircnime ainda assim natildeo faria com que ele se desse por vencido Provavelmente seria a seguinte sua resposta ldquo[] quando algueacutem nos propotildee um argumento que natildeo podemos refutar dizemos-lhe que assim como antes de surgir o introdutor da doutrina de que ele participa o argumento dela natildeo aparecia ainda como vaacutelido embora jaacute existisse por natureza assim tambeacutem eacute possiacutevel que o argumento oposto agravequele agora proposto exista por natureza mas ainda natildeo nos apareccedila de modo que natildeo devemos ainda dar assentimento ao argumento que agora parece ser mais forterdquo In HP I 33-34
212 Nesse sentido diz Geacuterard Lebrun ldquoBasta mostrar que seu uacutenico erro foi natildeo o de ir tatildeo longe que fosse impossiacutevel acreditar em sua sinceridade mas de natildeo ter ido longe o bastanterdquo In A paciecircncia do conceito Satildeo Paulo Unesp 2000 p 243
213 (ldquoDie positive Philosophie [] sie hat das Negative des Skeptizismus in ihr selbst er ist nicht ihr entgegengesetzt nicht auszliger ihr sondern ein Moment derselben aber das Negative in seiner Wahrheit wie es der Skeptizismus nicht hatrdquo) Werke 19 p 359 trad cit p 760 Tambeacutem a esse respeito ldquoContudo essa (a ideacuteia especulativa) tem o ceticismo nela como seu momento e vai ainda para aleacutem delerdquo No original ldquoAllein diese hat den Skeptizismus selbst als Moment in ihr und ist wieder uumlber ihn hinausrdquo Ibidem p 372 trad cit p 776
97
mesma a oposiccedilatildeo do determinado e de seu contraposto214 ndash encontra-se poderiacuteamos dizer
um lado ceacutetico presente Esse ceticismo presente na filosofia especulativa Hegel o chama de
dialeacutetica de todo determinado215 Por meio dessa dialeacutetica podemos indicar que o finito dada
sua limitaccedilatildeo comporta uma negaccedilatildeo ou seja eacute determinado por um outro que o nega o que
por consequumlecircncia envolve uma contradiccedilatildeo Quando Hegel declara ldquoO conceito loacutegico eacute
igualmente essa dialeacutetica pois o conhecimento verdadeiro da ideacuteia eacute essa negatividade que
no ceticismo do mesmo modo estaacute na sua terra natalrdquo 216 torna-se patente a importacircncia
dessa incorporaccedilatildeo de um procedimento ceacutetico agrave filosofia especulativa Mesmo que seja
necessaacuterio obviamente natildeo deixar de lado o que haacute de especiacutefico nessa incorporaccedilatildeo do
ceticismo agrave filosofia especulativa se faz necessaacuterio sublinhar que eacute ele o ceticismo que
transfigurado constitui esse lado negativo da especulaccedilatildeo hegeliana217 Natildeo haveria portanto
diferenccedila de intenccedilatildeo entre o ceticismo pensante e o ceticismo antigo na medida em que
ambos se empenham como quer Hegel no combate ao pensamento finito do entendimento
Todavia o ceticismo puro218 natildeo distingue entre um domiacutenio no qual se daria a finitude e um
outro que estivesse para aleacutem dela Para esse ceticismo fazer uma tal espeacutecie de demarcaccedilatildeo
jaacute pressuporia algum criteacuterio Em outras palavras estariacuteamos partindo de alguma verdade que
nos permitisse investigar dentro de certos paracircmetros Estariacuteamos portanto em territoacuterio
dogmaacutetico O ceacutetico ao natildeo demarcar o terreno da finitude estaacute apenas sendo coerente com
as coordenadas que balizam sua proacutepria postura E Hegel sabe disso Mas em virtude dessa
sua natildeo-distinccedilatildeo entre o domiacutenio do entendimento e o domiacutenio do racional o ceticismo
214 Cf Werke 19 p 397 trad pp 802-803
215 Cf Ibidem p 359 trad cit p 760
216 (ldquoDer logische Begriff ist ebenso selbst diese Dialektik denn die wahrhafte Kenntnis der Idee ist diese Negativitaumlt die im Skeptizismus ebenso einheimisch istrdquo) Ibidem p 360 trad cit pp 760-761
217 No iniacutecio de suas Liccedilotildees sobre o ceticismo Hegel se refere ao ceticismo que faz parte da filosofia especulativa como ceticismo pensante (denkende Skeptizismus) Um ceticismo que natildeo terminaraacute numa negaccedilatildeo unilateral isto eacute um negativo que natildeo desaacutegua nos termos da Fenomenologia do Espiacuterito num puro nada Na Fenomenologia Hegel se refere a esse ceticismo que impulsiona o percurso fenomenoloacutegico como ceticismo que se consuma (sich vollbringenden Skeptizismus) Com efeito dentro do contexto das anaacutelises precedentes tambeacutem poderiacuteamos considerar esse ceticismo pensante agrave luz dessa denominaccedilatildeo feita na Fenomenologia do Espiacuterito O ceticismo que faz parte da filosofia especulativa natildeo peca por insuficiecircncia pois seu exame traz um resultado que a partir do mesmo a investigaccedilatildeo continua Seu caraacuteter consumado eacute o que permite dar impulso ao processo
218 Denominaccedilatildeo que Hegel fornece na Fenomenologia ao ceticismo natildeo incorporado ao pensamento especulativo E cremos certamente que ele esteja aiacute se referindo ao ceticismo antigo
98
como jaacute observamos anteriormente tambeacutem critica a especulaccedilatildeo filosoacutefica todavia nessa
sua criacutetica contra o especulativo ele eacute impotente (unkraumlftig)219
Segundo Hegel os ataques do ceacutetico ao especulativo satildeo ineficazes porque neste
domiacutenio natildeo lidamos com determinaccedilotildees finitas como ocorre no caso do entendimento O
que isso significa Significa que o ceacutetico natildeo poderaacute mostrar que a um posto um outro se
contrapotildee ldquono que concerne agrave ideacuteia especulativa natildeo eacute esta precisamente um determinado
natildeo tem a unilateralidade que existe na proposiccedilatildeo natildeo eacute finita ela tem antes o absolutamente
negativo (das absolut Negativ) nela mesma tem a oposiccedilatildeo dentro dela mesma ela eacute em si
mesma circular conteacutem nela esse determinado e seu contraposto essa idealidade dentro dela
mesmardquo220
Como acabamos de ver a proacutepria ideacuteia especulativa daacute conta daquilo que seria tarefa
do ceacutetico mostrar o argumento contraposto agravequele que se punha isoladamente na sua
unilateralidade Ela abarca nela mesma o determinado e aquele outro determinado que o nega
Eacute por esse motivo que a ideacuteia especulativa natildeo pode ser atacada pelo ceticismo Aquilo que
por ela eacute afirmado natildeo se faz do mesmo modo que numa proposiccedilatildeo221 Jaacute foi notado neste
estudo222 que a proposiccedilatildeo por sua proacutepria estrutura natildeo admite a contradiccedilatildeo ou se diz que
algo eacute ou que ele natildeo eacute nunca as duas coisas A ideacuteia especulativa natildeo tem a unilateralidade
que existe na proposiccedilatildeo porque nela satildeo admitidas ambas as determinaccedilotildees que se
contradizem O princiacutepio de contradiccedilatildeo natildeo possui aqui validade
A contradiccedilatildeo existente na ideacuteia especulativa resolve-se numa nova unidade que da
mesma maneira ldquoestaacute aberta agrave potecircncia do negativordquo223 Isto quer dizer que estaacute sujeita a ser
219 Cf Werke 19 p 397 trad cit p 802
220 Cf Ibidem p 397 trad cit pp 802-803 (ldquoDenn was die spekulative Idee selbst anbetrifft so ist diese eben nicht ein Bestimmtes hat nicht die Einseitigkeit welche im Satze liegt ist nicht endlich sondern sie hat das absolut Negative an ihr selbst den Gegensatz in ihr selbst sie ist in sich rund enthaumllt dies Bestimmte und sein Entgegengesetztes an ihr diese Idealitaumlt in ihr selbst rdquo
221 ldquoMas a filosofia a filosofia especulativa afirma sem duacutevida mas natildeo um determinado ela natildeo expressa sua verdade na forma de uma proposiccedilatildeo ela natildeo tem proposiccedilatildeo fundamentalrdquo (ldquoAber die Philosophie spekulative Philosophie behauptet wohl aber nicht so ein Bestimmtes oder sie spricht ihr Wahres nicht in der Form eines Satzes aus sie hat keinen Grundsatzrdquo) Cf Ibidem p 393 trad cit p 798
222 Veja-se o cap 2 e tambeacutem o que se diraacute no cap 4
223 Werke 19 p 397 trad cit p 803 (ldquo [hellip] steht sie der Macht des Negativen offenrdquo)
99
contraposta por uma nova determinaccedilatildeo agrave qual se uniraacute e assim indefinidamente224 A
natureza dialeacutetica da ideacuteia implica essa continuaccedilatildeo do movimento225
A partir do que foi exposto vemos por que Hegel julga que o ceticismo seja impotente
(unkraumlftig) quando pretende atacar a filosofia especulativa Esta procura se defender do
ceticismo adotando seu modo de proceder Aleacutem disso mesmo que considere correta a atitude
filosoacutefica ceacutetica natildeo deixa entretanto de assinalar a limitaccedilatildeo de seu alcance o que faz
assim que o ceticismo stricto sensu fique restrito a atuar apenas no acircmbito do entendimento
224 ldquoNo especulativo o outro jaacute estaacute contido Eacute uma outra identidade que aquela do entendimento O objeto eacute em si concreto contraposto a si mesmo Estaacute poreacutem do mesmo modo aiacute-presente a resoluccedilatildeo dessa oposiccedilatildeo O especulativo natildeo pode ser expresso como proposiccedilatildeordquo No original ldquoIm Spekulativen ist das Andere schon selbst enthalten Das ist andere Identitaumlt als die des Verstandes Der Gegenstand ist konkret in sich sich selbst entgegengestzt Ebenso ist aber Aufloumlsung dieses Gegensatzes selbst vorhanden Das Spekulative kann so nicht als Satz ausgedruumlckt werdenrdquo Ibidem p 397 trad cit p 803 Ver ainda a propoacutesito o capiacutetulo 5
225 Cf Ibidem p 397 trad cit p 803 Ver tambeacutem Ibidem p 360 trad cit p 761
101
II ndash A dialeacutetica especulativa de Hegel
Capiacutetulo 1 ndash As determinaccedilotildees de reflexatildeo da identidade agrave contradiccedilatildeo especulativa
Natildeo eacute muito bom para a filosofia
ter uma proposiccedilatildeo e entatildeo
apenas poder dizer isto eacute ou isto
natildeo eacute
Hegel226
Eacute na Loacutegica da Essecircncia227 especificamente no capiacutetulo que trata das determinaccedilotildees
de reflexatildeo que podemos comeccedilar a compreender como a criacutetica hegeliana ao aspecto
limitado do ceticismo pode ser efetuada a partir da Loacutegica o motivo da suposta falta de
eficaacutecia do ceticismo quando pretende atacar a filosofia especulativa Neste capiacutetulo que
comeccedila com a anaacutelise da determinaccedilatildeo da identidade e termina na exposiccedilatildeo da sua
concepccedilatildeo de contradiccedilatildeo que se resolve no fundamento nos satildeo fornecidos elementos
importantes e necessaacuterios tanto para a jaacute mencionada criacutetica do ceticismo quanto para o
entendimento de seu meacutetodo dialeacutetico-especulativo228 que permite segundo ele agrave filosofia
natildeo ficar refeacutem da criacutetica ceacutetica229
226
Aforisma no 68 da eacutepoca de docecircncia em Iena In Hoffmeister J Dokumente zu Hegels Entwicklung Stuttgart Frommann-Holzboog 1974
227 GW 11 pp258-290
228 A ser tratado no capiacutetulo 5
229 Para uma anaacutelise precisa das determinaccedilotildees de reflexatildeo veja-se tambeacutem o estudo de Andreas Arndt Dialektik und Reflexion zur Rekonstruktion des Vernunftbegriffs Hamburg Meiner 1994 pp 203-216
102
A identidade
Hegel comeccedila a tratar da unilateralidade da identidade que eacute caracteriacutestica do
entendimento ao considerar as determinaccedilotildees reflexivas num percurso que teraacute o seu teacutermino
quando expotildee o significado da contradiccedilatildeo especulativa
Segundo Hegel as determinaccedilotildees de reflexatildeo eram antigamente acolhidas na forma de
proposiccedilotildees (Saumltzen) e declarava-se que as mesmas valiam como leis universais do
pensamento isto eacute leis que estariam na base de todo pensamento nelas mesmas absolutas e
indemonstraacuteveis aceitas por todo pensamento como imediatas e natildeo-contraditoacuterias (GW 11
p 258 trad pp 33-34) O princiacutepio de identidade eacute uma das dessas proposiccedilotildees que valem
como leis universais do pensamento Tudo eacute igual a si mesmo A=A E dito de forma
negativa A natildeo pode ao mesmo tempo ser A e natildeo-A230
Com efeito natildeo se deve desconsiderar prossegue Hegel qual seria o motivo pelo qual
apenas tais simples determinaccedilotildees de reflexatildeo sejam apreendidas nessa forma particular isto
eacute como proposiccedilotildees imediatas indemonstraacuteveis e natildeo-contraditoacuterias e natildeo tambeacutem outras
categorias e todas as determinidades da esfera do ser231 Uma proposiccedilatildeo eacute o meio pelo qual
se pode dizer por exemplo que tudo eacute ou tudo tem um ser-aiacute tem uma qualidade tem uma
quantidade etc232 Ocorre que eacute disso que Hegel parece querer nos advertir categorias e
determinidades satildeo componentes de proposiccedilotildees e nas quais figuram como predicados
(Praumldicate) E para ressaltar essa vinculaccedilatildeo estreita entre proposiccedilotildees e categorias Hegel
chega inclusive a nos lembrar que ldquosegundo a etimologia e segundo Aristoacuteteles categoria eacute
aquilo que eacute dito do que eacute (von dem Seyenden)233
E agora antes de prosseguirmos cabe a pergunta As determinidades de ser que
fazem parte das proposiccedilotildees como predicados isto eacute como aquilo que eacute dito de algo seriam
tambeacutem assim como as proposiccedilotildees imediatas indemonstraacuteveis e natildeo-contraditoacuterias
230 GW 11 p 258 trad p 34
231 Cf Ibidem p 259 trad p 34
232 Cf Ibidem p 259 trad p 34
233 Ibidem p 259 trad p 34
103
A resposta de Hegel eacute a seguinte
Uma determinidade de ser eacute essencialmente um passar no seu oposto a
negativa de qualquer determinidade eacute tatildeo necessaacuteria como ela proacutepria como
determinidades imediatas frente a cada uma delas se encontra imediatamente a outra
Quando por conseguinte essas categorias satildeo formuladas em tais proposiccedilotildees entatildeo
aparecem do mesmo modo as proposiccedilotildees contrapostas ambas se apresentam com a
mesma necessidade e possuem como afirmaccedilotildees imediatas iguais direitos234
Como teremos oportunidade de mais detidamente a seguir observar mas que desde jaacute
Hegel faz questatildeo de frisar eacute que as determinidades de ser ou as categorias por sua proacutepria
estrutura interna natildeo podem ser afastadas da contradiccedilatildeo isto eacute mediante o pocircr das
determinidades a elas contrapostas Aleacutem disso na medida em que satildeo partes constituintes de
proposiccedilotildees tambeacutem estas natildeo podem escapar agrave posiccedilatildeo de proposiccedilotildees a elas contrapostas
Um pequeno parecircnteses aqui merece ser aberto para que natildeo se deixe de sublinhar a
influecircncia do ceticismo antigo nessa discussatildeo acerca da inevitabilidade235 da contradiccedilatildeo em
decorrecircncia de proposiccedilotildees estarem submetidas ao princiacutepio de identidade Assim Hegel
apenas nos faz ver que natildeo haacute como escapar da criacutetica ceacutetica quando lidamos com tais
proposiccedilotildees Dessa maneira natildeo haacute como escapar do ataque ceacutetico mediante o uso que este
pode fazer de seu ldquoprinciacutepio baacutesicordquo a saber opor a cada proposiccedilatildeo uma proposiccedilatildeo de igual
valor236 Eacute por essa limitaccedilatildeo constitutiva dessas proposiccedilotildees regidas pelo princiacutepio de
identidade que o ceacutetico conclui Hegel eacute capaz de produzir antinomias
234 Ibidem p259 trad p 34 (ldquoAllein eine Bestimmtheit des Seyns ist wesentlich ein Uebergehen ins Entgegengesetzte die negative einer jeden Bestimmtheit ist so nothwendig als sie selbst als unmittelbaren Bestimmtheiten steht jeder die andere unmittelbar gegenuumlber Wenn diese Kategorien daher in solche Saumltze gefaszligt werden so kommen eben so sehr die entgegengesetzten Saumltze zum Vorschein beyde bieten sich mit gleicher Nothwendigkeit dar und haben als unmittelbare Behauptungen wenigstens gleiches Rechtrdquo)
235 A propoacutesito o ceacutetico natildeo diria que a contradiccedilatildeo eacute inevitaacutevel Isto seria ir contra sua proacutepria postura filosoacutefica A esse respeito veja-se de modo geral o capiacutetulo 1
236 Cf HP I 12
104
Tomadas apenas como relacionadas a si as determinaccedilotildees reflexivas uma vez de
acordo com o princiacutepio de identidade natildeo tecircm postas perante as mesmas as suas contrapostas
que por direito a elas se relacionam
Se fossem consideradas em si e para si ver-se-ia entatildeo que as determinaccedilotildees
reflexivas ldquosatildeo determinadas umas contra as outras natildeo estatildeo portanto mediante sua forma de
reflexatildeo retiradas do passar e da contradiccedilatildeordquo237 Toda proposiccedilatildeo estaacute sujeita a ser
contraditada por uma outra de modo que ambas se suprimam mutuamente (heben sich
gegenseitig auf)238
Mas por que eacute possiacutevel que toda proposiccedilatildeo estabelecida de acordo com o princiacutepio de
identidade possa ser contraditada por uma outra Qual o mecanismo impliacutecito a reger tais
proposiccedilotildees e que leva as mesmas inelutavelmente agrave contradiccedilatildeo
A resposta de Hegel a essas questotildees pode comeccedilar a ser entrevista a partir de um
exame da proacutepria articulaccedilatildeo do princiacutepio de identidade isto eacute daquilo que constitui esse
princiacutepio enquanto tal
Fundamentalmente Hegel quer mostrar que a admissatildeo do princiacutepio de identidade
implica afirmar que aquilo que eacute diferente estaacute fora e ao lado da identidade (GW 11 p 261
trad p 37) Aquilo que eacute igual a si mesmo de acordo com esse princiacutepio tem necessariamente
a diferenccedila fora dele afinal A natildeo pode ser ao mesmo tempo A e natildeo-A Numa proposiccedilatildeo eacute
expressa a identidade e na outra a diferenccedila Hegel chama de negar relativo essa negaccedilatildeo que
agravequilo posto pela identidade abstrata potildee-se ao seu lado e fora dela como aquilo que ela natildeo
eacute239 De um lado temos portanto a identidade e de outro lado temos a diferenccedila Algo eacute
aquilo que eacute sem que para isso seja necessaacuterio que ele esteja em relaccedilatildeo com aquilo que ele
nega a sua diferenccedila Considerar as coisas desse modo eacute proacuteprio assinala Hegel de uma
reflexatildeo extriacutenseca A diferenccedila que aiacute existe entre algo e aquilo que natildeo eacute esse algo eacute apenas
uma diversidade indiferente (gleichguumlltige Verschiedenheit)240
237 Ibidem p260 trad p 35 (ldquosind sie bestimmt gegen einander sie sind also durch ihre Form der Reflexion dem Uebergehen und dem Widerspruche nicht entnommenrdquo)
238 Ibidem p 260 trad p 36
239 Cf Ibidem p 260 trad p 36
240 Cf Ibidem p 261 trad pp 37-38
105
Segundo Hegel aqueles que se submetem ao princiacutepio de identidade natildeo se datildeo conta
que de acordo com o mesmo a identidade e a diferenccedila satildeo diversos ldquoque a identidade eacute um
diversordquo (GW 11 p 262 trad p 39) A identidade eacute assim distinta com relaccedilatildeo ao diverso
dela mesma e que todavia natildeo eacute exterior a ela ldquoque a identidade nela mesma em sua
natureza eacute isso ser distinta e natildeo de modo exteriorrdquo241
A identidade somente vai se constituir efetivamente como identidade caso se abandone
o ponto de vista unilateral e incompleto que parte do pressuposto de que a identidade exclui
de si o natildeo-idecircntico Eacute esse o ponto de vista que uma vez aceito viabiliza a criacutetica ceacutetica
Poderiacuteamos dizer que o ceacutetico aproveitando-se dessa limitaccedilatildeo do pensar de entendimento
que aceita o princiacutepio de identidade como lei de pensamento acaba por conseguir sempre
mostrar o natildeo-idecircntico a diferenccedila que se contrapotildee ao idecircntico E dentro desse quadro vale
insistir a contradiccedilatildeo eacute sempre um mal a ser evitado Todavia a identidade que natildeo eacute abstrata
estaacute unida com a diferenccedila Ela se sustenta como identidade ao ter nela mesma aquilo que a
contradiz
Mas antes de tentar responder agraves questotildees que acima foram postas talvez seja
interessante continuar a examinar o princiacutepio de identidade e tentar compreender porque ele
natildeo passa aos olhos de Hegel de uma tautologia vazia sem conteuacutedo e que natildeo leva a lugar
nenhum (GW 11 p 262 trad p 39)
Se pensarmos242 diz Hegel na pergunta O que eacute uma planta E se responde uma
planta eacute -- uma planta todos admitem a verdade de tal proposiccedilatildeo e ao mesmo tempo de
maneira tambeacutem unacircnime eacute dito que com isso nada eacute dito A mesma situaccedilatildeo poderia ocorrer
com algueacutem que pretende declarar o que eacute Deus e apenas diz que Deus eacute ndash Deus Com essa
declaraccedilatildeo temos nossa expectativa frustrada pois esperaacutevamos uma determinaccedilatildeo diferente
ou em outras palavras uma declaraccedilatildeo que pudesse efetivamente nos informar a respeito do
que seja Deus E se essa proposiccedilatildeo eacute verdade absoluta continua Hegel eacute pouco apreciado
essa espeacutecie de palavroacuterio (Rednerei) afinal nada mais aborrecido e maccedilante do que uma
conversa que segue ruminando sempre a mesma coisa Espera-se que se diga algo a respeito
da planta e quando se tem como resposta somente a repeticcedilatildeo do mesmo tem-se o contraacuterio
do que era esperado a saber nada
241 Ibidem p 262 trad p 39 (ldquodaszlig die Identitaumlt nicht aumlusserlich sondern an ihr selbst in ihrer Natur diszlig sey verschieden zu seynrdquo)
106
Se tomarmos agora a forma da proposiccedilatildeo que expressa a identidade qual seja A eacute ndash
A ao se dizer que A eacute espera-se chegar a algo diferente mas esse outro entra em cena
apenas como um imediato desvanecer (als unmittelbares Verschwinden) A diferenccedila eacute apenas
um desvanecer De A se vai a A novamente ldquoo movimento retorna a si mesmordquo (GW 11 p
264 trad p 42) todavia mesmo que o diferente seja apenas vislumbrado para entatildeo em
seguida imediatamente desaparecer ele eacute algo ou nas palavras de Hegel o excedente daquele
movimento (das Mehr jener Bewegung) Esse excedente eacute o nada a que se chega quando se
sai de A e se chega novamente a A eacute o diferente que se apresenta quando se quer apenas
afirmar a identidade ldquoque na expressatildeo da identidade tambeacutem aparece imediatamente a
diferenccedilardquo243
Com a outra expressatildeo do princiacutepio de identidade o chamado princiacutepio de
contradiccedilatildeo a saber ldquoA natildeo pode ser ao mesmo tempo A e natildeo-A ocorre o mesmo que
havia ocorrido com a primeira isto eacute tambeacutem se apresenta uma negaccedilatildeo que imediatamente
se desvanece Mais precisamente A eacute A porque ele natildeo eacute natildeo-A Este eacute o puro outro de A que
aparece para em seguida desaparecer ldquoa identidade eacute portanto nessa proposiccedilatildeo expressa
como negaccedilatildeo da negaccedilatildeordquo244
Dessa discussatildeo em torno ao que se pode pretender afirmar por meio do princiacutepio de
identidade e do princiacutepio de contradiccedilatildeo o mais importante para Hegel eacute mostrar que tais
princiacutepios pecam por incompletude A verdade que eles pretendem exprimir eacute abstrata e
como jaacute foi dito incompleta Como bem adverte Hegel ldquoo que resulta dessa consideraccedilatildeo eacute
que em primeiro lugar o princiacutepio de identidade ou de contradiccedilatildeo como ele apenas deve
expressar como o verdadeiro a identidade abstrata em oposiccedilatildeo agrave diferenccedila natildeo eacute nenhuma lei
do pensamento mas antes o contraacuterio disso em segundo lugar que esses princiacutepios contecircm
242 Do que seraacute dito a seguir veja-se Ibidem pp 264-265 trad pp 41-43
243 Ibidem p 264-5 trad p 42 (ldquo[] daszlig in dem Ausdrucke der Identitaumlt auch unmittelbar die Verschiedenheit vorkommtrdquo) Ou ainda ldquoEssa proposiccedilatildeo em lugar de ser uma verdadeira lei-do-pensamento natildeo eacute outra coisa que a lei do entendimento abstrato A forma da proposiccedilatildeo jaacute a contradiz ela mesma porque uma proposiccedilatildeo tambeacutem promete uma diferenccedila entre sujeito e predicado enquanto esta natildeo fornece o que sua forma exigerdquo (ldquoDieser Satz statt ein wahres Denkgesetz zu seyn ist nichts als das Gesetz des abstracten Verstandes Die Form des Satzes widerspricht ihm schon selbst da ein Satz auch einen Unterschied zwischen Subject und Praumldicat verspricht dieser aber das nicht leistet was seine Form fodert rdquo) In GW 20 E sect115 p 147 trad p 228
244 GW 11 p 265 trad p 43 (ldquoDie Identitaumlt ist also in diesem Satze ausgedruumlckt ndash als Negation der Negationrdquo)
107
mais do que se visa com eles precisamente esse contraacuterio a proacutepria diferenccedila absolutardquo245
Esses princiacutepios por apresentarem mais do que efetivamente pretendem apresentar natildeo satildeo de
natureza meramente analiacutetica mas sim tambeacutem de natureza sinteacutetica Ao se pretender
apresentar a identidade apenas abstrata aponta-se para algo que contradiz essa suposta
identidade afastada de seu negativo e mesmo que o diferente surja como um imediato
desvanecer esse diferente natildeo pode ser afastado Como veremos a seguir a diferenccedila eacute
ldquomomento essencial da identidade mesmardquo246
A diferenccedila
Quando Hegel expotildee o que eacute a diferenccedila eacute preciso que esta seja considerada sob um
duplo ponto-de-vista como diferenccedila em si e por si e como diferenccedila em si
Hegel chama tambeacutem essa diferenccedila que eacute em si e por si de diferenccedila absoluta ou de
diferenccedila simples247 Mas o que entatildeo pretende ele quando considera a diferenccedila em si e por
si Basicamente a diferenccedila em si e por si eacute aquela que natildeo eacute por meio de algo exterior248
Esta diferenccedila natildeo se constitui como antes se fazia na esfera do ser Laacute um ser-aiacute e um outro
ser-aiacute eram postos separados um do outro Um ser-aiacute se encontrava perante o outro ser-aiacute mas
apenas exteriormente O que Hegel pretende frisar eacute que na diferenccedila em si e por si uma
diferenccedila que se daacute no acircmbito loacutegico da essecircncia portanto uma diferenccedila reflexiva os
diferentes satildeo diferentes sob um uacutenico e mesmo aspecto uma diferenccedila numa uacutenica relaccedilatildeo
O caraacuteter simples dessa diferenccedila adveacutem dessa relaccedilatildeo (Beziehung) dos diferentes ocorrer no
acircmbito de um movimento uacutenico ldquona diferenccedila absoluta de A e natildeo-A de um a outro eacute o
245 Ibidem p 265 trad p 43 (ldquoWas sich also aus dieser Betrachtung ergibt ist daszlig erstens der Satz der Identitaumlt oder des Widerspruchs wie er nur die abstracte Identitaumlt im Gegensatz gegen den Unterschied als Wahres ausdruumlcken soll kein Denkgesetz sondern vielmehr das Gegentheil davon ist zweytens daszlig diese Saumltze mehr als mit ihnen gemeynt wird nemlich dieses Gegentheil den absoluten Unterschied selbst enthaltenrdquo)
246 Ibidem p 265 trad p 43 (ldquowesentlich Moment der Identitaumlt selbstrdquo)
247 Cf GW 11 p 266-267 trad p 44-45
248 Ibidem p 266 trad p 44
108
simples natildeo que constitui a mesmardquo249 Se a diferenccedila se desse entre diferentes exteriores um
ao outro natildeo seria possiacutevel que ela fosse completa em si mesma em outras palavras absoluta
Considerar a diferenccedila apenas como em si significa tomaacute-la no seu relacionamento a
si uma diferenccedila de si por si mesma (seiner von sich selbst)250 Perante a mesma temos a
identidade Somente com a consideraccedilatildeo de ambos isto eacute na relaccedilatildeo que natildeo eacute exterior da
diferenccedila com a identidade que se constitui a diferenccedila (natildeo-unilateral) A diferenccedila apenas
relacionada a si mesma eacute um momento que exige o outro a saber a identidade para que se
possa ter o todo da diferenccedila
Nessa relaccedilatildeo da diferenccedila com a identidade tem-se portanto uma unidade de dois
momentos que natildeo obstante o fato mesmo da relaccedilatildeo de ambos cada um natildeo deixa de ser
uma relaccedilatildeo (Beziehung) a si proacuteprio ou seja continuam a ser refletidos em si mesmos Hegel
chama cada um desses momentos que constituem a diferenccedila de ser-posto (Gesetzsein) Cada
um deles em virtude do seu caraacuteter auto-reflexivo que faz com que se coloquem
distintamente como diferenccedila e identidade seraacute poder-se-ia dizer impermeaacutevel um ao outro
A diversidade
Quais as consequumlecircncias que advecircm para a constituiccedilatildeo da diferenccedila terem os dois
momentos constituintes da diferenccedila precisamente identidade e diferenccedila a caracteriacutestica de
serem refletidos em si mesmos Por que ao inveacutes de uma diferenccedila temos apenas uma
diversidade (Verschiedenheit)
Em primeiro lugar identidade e diferenccedila natildeo satildeo tatildeo distintas assim Tanto uma
quanta a outra por meio da auto-reflexatildeo de cada uma satildeo idecircnticas a si mesmas A
identidade se afirma como identidade ao suprimir imediatamente o seu negar Como jaacute foi
dito a identidade somente se manteacutem como identidade porque eacute uma tautologia A confirma
sua identidade ao se refletir em si mesmo Esse refletir-se em si mesmo e que fornece a A a
249 Ibidem p 266 trad p 44 (ldquoIm absoluten Unterschiede des A und Nicht-A von einander ist es das einfache
Nicht was als solches denselben ausmachtrdquo)
250 Ibidem p 266 trad p 44
109
identidade eacute o que Hegel chama de a sua determinaccedilatildeo (Bestimmung)251 Tambeacutem no caso do
diferente ele eacute o que eacute na identidade que estabelece consigo mesmo Eacute como se um e outro o
idecircntico e o diferente natildeo fossem nada de diferentes afinal ambos satildeo o que satildeo por meio da
identidade que cada um tem consigo mesmo e que lhes daacute independecircncia reciacuteproca
Eles satildeo diversos como refletidos em si mesmos como relacionando-se a si eles satildeo
assim na determinaccedilatildeo da identidade apenas relacionamentos a si a identidade natildeo estaacute
relacionada com a diferenccedila nem a diferenccedila estaacute relacionada com a identidade posto entatildeo
que cada um desses momentos estaacute relacionado somente a si natildeo satildeo eles determinados um
em face do outro252
Nesses termos como se pode estabelecer a diferenccedila entre eles De acordo com Hegel
apenas uma diversidade indiferente (gleichguumlltig verschiedenes) reciacuteproca Natildeo haacute ponto
algum de contato que permita-nos entrever aquilo que torna um diferente do outro ldquoa
diferenccedila lhes eacute exteriorrdquo253
Para que surja essa indiferenccedila dos diferentes o que Hegel chama de diversidade
(Verschiedenheit) a diferenccedila que de fato somente se constitui com a unidade de identidade e
diferenccedila precisa ser enxergada como apenas um dos lados da ldquooposiccedilatildeordquo A diferenccedila seraacute
apenas uma determinaccedilatildeo que teraacute perante si uma outra determinaccedilatildeo a saber a identidade
Essa determinaccedilatildeo ou ser-posto que eacute a diferenccedila constitui o lado negativo da relaccedilatildeo o que
Hegel chama de negaccedilatildeo como negaccedilatildeo254 A diferenccedila seraacute portanto exterior agrave identidade
oposta de modo indiferente a ela Da mesma maneira teremos a identidade tambeacutem oposta
de modo indiferente agrave negaccedilatildeo Se a diferenccedila eacute o ser-posto como negaccedilatildeo a identidade seraacute o
251 Ibidem p 267 trad p 45
252 Ibidem p 267 trad p 46 (ldquoVerschiedene sind sie als in sich selbst reflectirte sich auf sich beziehende so sind sie in der Bestimmung der Identitaumlt Beziehungen nur auf sich die Identitaumlt ist nicht bezogen auf den Unterschied noch ist der Unterschied bezogen auf die Identitaumlt indem so jedes dieser Momente nur auf sich bezogen ist sind sie nicht bestimmt gegen einanderrdquo)
253 Ibidem p 267 trad p 46(ldquo ist der Unterschied ihnen aumlusserlicherdquo)
254 Ibidem p 268 trad p46 Eacute uacutetil aqui alertar para que natildeo se confunda negaccedilatildeo como negaccedilatildeo com negaccedilatildeo da negaccedilatildeo A primeira se refere apenas a essa negaccedilatildeo somente relacionada a si e assim diversa da identidade Jaacute a segunda a negaccedilatildeo da negaccedilatildeo constitui-se como adiante veremos na negaccedilatildeo especulativa negaccedilatildeo que envolve em si a identidade e a diferenccedila
110
ser-posto como reflexatildeo em si isto eacute como reflexatildeo que se relaciona a si e forma a
identidade
De fato identidade e diferenccedila natildeo poderiam ser consideradas como completamente
exteriores uma agrave outra pois justamente ldquocada uma eacute unidade de si mesma e de seu outro cada
uma eacute o todordquo255 Ambas se refletem internamente uma na outra Se elas se tornam exteriores
isso se daacute devido a uma reflexatildeo que se tornou exterior a si mesma Identidade e diferenccedila natildeo
satildeo qualidades Qualidade aqui deve ser entendida conforme o que diz Hegel na Doutrina do
Ser na Enciclopeacutedia a saber que a qualidade eacute o ser com uma determinidade que como tal
constitui a categoria do ser-aiacute A qualidade eacute o ser-aiacute unido imediatamente a essa
determinidade O ser-aiacute refletido sobre si nessa sua determinidade eacute algo256 A qualidade
assim constituiacuteda faz com que o ser-aiacute seja um algo que tenha afastado de si a negaccedilatildeo Esse
ser-aiacute poderiacuteamos dizer eacute uma pura identidade Vale seguir um pouco mais com a descriccedilatildeo
da qualidade na Doutrina do Ser257 e observar que a qualidade tem a negaccedilatildeo contida nela
mesmo que essa seja diferente dela e enquanto um ser-outro Aleacutem disso esse ser-outro eacute sua
determinaccedilatildeo proacutepria todavia neste momento diferente dela (a qualidade) Quando Hegel
afirma que a identidade e diferenccedila natildeo satildeo qualidades podemos agora avanccedilar a hipoacutetese de
que se elas fossem qualidades identidade e diferenccedila seriam apenas cada uma a determinaccedilatildeo
unilateral refletida sobre si e afastada do negativo O que de fato natildeo se verifica pois a
determinidade tanto da identidade quanto da diferenccedila por meio da reflexatildeo em si eacute ao
mesmo tempo somente como negaccedilatildeo258 Em outras palavras elas satildeo o que satildeo porque
negam a sua oposta e natildeo de modo exterior
Na diversidade poreacutem eacute como se diferenccedila e identidade fossem efetivamente duas
qualidades O que resultaria em considerar a ambas como duas determinaccedilotildees inteiramente
positivas Pelo contraacuterio uma determinaccedilatildeo aos olhos de Hegel natildeo pode ser somente
positiva Nesse sentido o filoacutesofo retoma Espinosa quando este diz que toda determinaccedilatildeo eacute
uma negaccedilatildeo (omnis determinatio est negatio) Para Hegel a base de toda determinaccedilatildeo eacute a
negaccedilatildeo ldquoO opinar carente-de-pensamento considera as coisas determinadas como somente
positivas e as sustenta sob a forma do ser Com o simples ser contudo o opinar natildeo eacute
255 Ibidem p 267 trad p 46 (ldquojedes Einheit seiner selbst und seines Andern jedes ist das Ganzerdquo)
256 Cf GW 20 E sect 90 pp 129-130 trad p 186
257 Ibidem sect 91 p 130 trad p 187
258 GW 11 p 268 trad p 46
111
abolido pois esse como vimos antes eacute o absolutamente vazio e ao mesmo tempo o carente-
de-consistecircnciardquo259
Esses dois positivos ndash a identidade e a diferenccedila ndash que se colocam um frente ao outro
de modo indiferente mediante uma reflexatildeo que se tornou exterior a si mesma seratildeo
denominados por Hegel de reflexatildeo em si e de reflexatildeo exterior respectivamente Reflexatildeo em
si porque nessa determinaccedilatildeo temos o momento da identidade que por sua vez eacute
ldquodeterminada para ser indiferente (gleichguumlltig) com respeito agrave diferenccedilardquo260 Reflexatildeo
exterior porque nessa determinaccedilatildeo temos o momento da diferenccedila ldquoperante agrave qual a reflexatildeo
sendo em si (die an sich seiend Reflexion) eacute indiferenterdquo261
E uma vez entatildeo visto que identidade e diferenccedila natildeo se datildeo numa mesma reflexatildeo
como se produziraacute essa diferenccedila de duas determinaccedilotildees exteriores uma agrave outra O
estabelecimento da diferenccedila segundo Hegel dependeraacute da consideraccedilatildeo de um terceiro que
se coloca fora de ambos identidade e diferenccedila Seraacute esse terceiro que declararaacute o que eacute a
identidade e a diferenccedila e que agora seratildeo denominadas por Hegel respectivamente como
igualdade (a identidade exterior) e desigualdade (a diferenccedila exterior)
Nem a igualdade e nem a desigualdade seratildeo em si e por si E o que isso significa
Significa que se algo eacute igual a um outro algo isso natildeo depende nem de um e nem de outro262
Depende antes da referecircncia a esse terceiro Da comparaccedilatildeo que ele estabelece Essa reflexatildeo
que tornou-se estranha a si mesma ora declara que temos uma igualdade e ora declara que
temos uma desigualdade A igualdade e a desigualdade nunca segundo o ponto-de-vista da
diversidade dependem uma da outra para se efetivarem Natildeo haveria diferenccedila intriacutenseca
entre uma e outra Para Hegel esse natildeo relacionar-se entre o igual e o desigual longe de
afastar delas a contradiccedilatildeo (Widerspruch) e a dissoluccedilatildeo (Aufloumlsung) eacute o que de fato leva agrave
destruiccedilatildeo (Zerstoumlrung) das mesmas Se o igual eacute colocado junto do desigual mas sem que
259 Werke 8 E sect 91 Adendo p 195 trad p 187 (ldquoDas gedankenlose Meinen betrachtet die bestimmten Dinge als nur positiv und haumllt dieselben unter der Form des Seins fest Mit dem bloszligen Sein ist es indes nicht abgetan
denn dieses ist wie wir fruumlher gesehen haben das schlechthin Leere und zugleich Haltloserdquo)
260 GW 11 p 268 trad p 47
261 Ibidem p 268 trad p 47
262 Ibidem p 268 trad p 47
112
haja entre eles o menor contato entatildeo eles se contradizem263 Do ponto-de-vista da loacutegica que
rege o entendimento eacute isto o que ocorre264
Admitir que natildeo haja uma diferenccedila que vincule o igual ao desigual que essa
diferenccedila seja exterior e indiferente eacute proacuteprio segundo Hegel de uma consideraccedilatildeo que natildeo
consegue se dar conta de que ldquoo que compara (das Vergleichende) vai da igualdade agrave
desigualdade e desta para aquela novamente faz portanto uma desvanecer na outra e de fato
eacute a unidade negativa de ambas Ela estaacute em primeiro lugar para aleacutem do comparado assim
como aleacutem dos momentos da comparaccedilatildeo como um subjetivo um operar exterior que incide
fora deles Mas essa unidade negativa em verdade eacute a natureza da igualdade e da
desigualdade mesma tal como resultourdquo265
263 ldquoPara Hegel isso significa que tem de se destruir a si mesma a reflexatildeo que se perdeu na exterioridade As determinaccedilotildees da igualdade e da desigualdade se excluem reciprocamente elas satildeo nas palavras de Hegel lsquodeterminaccedilotildees da diferenccedilarsquo lsquorelaccedilatildeo de uma a outra que uma para ser eacute aquilo que a outra natildeo eacutersquo (GW 11 p 269)rdquo Ou ainda ldquoA reflexatildeo exterior na medida em que poe as determinaccedilotildees da igualdade e da desigualdade relaciona ambas uma a outra Hegel assim expressa isso que a contradiccedilatildeo mantida afastada dos objetos se reitera nessa reflexatildeordquo In Arndt A Dialektik und p 206 e 207 respectivamente
264 Eacute essa contradiccedilatildeo que o ceacutetico natildeo se cansa de apontar segundo Hegel no acircmbito do entendimento
265 Ibidem p 269 trad pp 48-49 (ldquoDas Vergleichende geht von der Gleichheit zur Ungleichheit und von dieser zu jener zuruumlck laumlszligt also das eine im andern verschwinden und ist in der That die negative Einheit beyder Sie ist zunaumlchst jenseits des Verglichenen so wie jenseits der Momente der Vergleichung als ein subjectives ausserhalb ihnen fallendes Thun Aber diese negative Einheit ist in der That die Natur der Gleichheit und Ungleichheit selbst wie sich ergeben hatrdquo) Ou ainda ldquoEnquanto os [termos] simplesmente diversos se mostram como indiferentes entre si ao contraacuterio a igualdade e a desigualdade satildeo um par de determinaccedilotildees que se referem pura e simplesmente uma agrave outra e natildeo se pode pensar uma delas sem a outra Essa progressatildeo da mera diversidade agrave oposiccedilatildeo se encontra jaacute tambeacutem na consciecircncia ordinaacuteria na medida em que admitimos que a comparaccedilatildeo soacute tem um sentido na pressuposiccedilatildeo de uma diferenccedila dada e inversamente tambeacutem a diferenciaccedilatildeo soacute [tem sentido] na pressuposiccedilatildeo de uma igualdade dada Por conseguinte quando se potildee como tarefa indicar uma diferenccedila natildeo se atribui grande perspicaacutecia a quem soacute diferencia um do outro objetos cuja diferenccedila eacute imediatamente visiacutevel (como por exemplo uma caneta e um camelo) De outro lado dir-se-aacute igualmente que natildeo foi longe na comparaccedilatildeo quem soacute sabe comparar coisas que estatildeo proacuteximas umas das outras uma faia com um carvalho um templo com uma igreja Exigimos portanto na diferenccedila a identidade e na identidade a diferenccedilardquo (ldquoWaumlhrend die bloszlig Verschiedenen sich als gleichguumlltig gegeneinander erweisen so sind dagegen die Gleichheit und die Ungleichheit ein Paar Bestimmungen die sich schlechthin aufeinander beziehen und von denen die eine nicht ohne die andere gedacht werden kann Dieser Fortgang von der bloszligen Verschiedenheit zur Entgegensetzung findet sich dann auch insofern schon im gewoumlhnlichen Bewuszligtsein als wir einraumlumen daszlig das Vergleichen nur einen Sinn hat unter der Voraussetzung eines vorhandenen Unterschiedes und ebenso umgekehrt das Unterscheiden nur unter der Voraussetzung vorhandener Gleichheit Man schreibt demgemaumlszlig auch wenn die Aufgabe gestellt wird einen Unterschied anzugeben demjenigen keinen groszligen Scharfsinn zu der nur solche Gegenstaumlnde voneinander unterscheidet deren Unterschied unmittelbar zutage liegt (wie z B eine Schreibfeder und ein Kamel) wie man andererseits sagen wird daszlig es derjenige nicht weit im Vergleichen gebracht hat welcher nur einander Naheliegendes - eine Buche mit einer Eiche einen Tempel mit einer Kirche - zu vergleichen weiszlig Wir verlangen somit beim Unterschied die Identitaumlt und bei der Identitaumlt
den Unterschiedrdquo) In Werke 8 E sect 118 Adendo p 241 trad pp 232-233]
113
Tanto o igual quanto o desigual por terem o caraacuteter de ser-posto natildeo satildeo apenas essa
identidade abstrata consigo mesmos essa relaccedilatildeo a si sem negaccedilatildeo Cada um como um
diverso passa por meio do ser-posto agrave reflexatildeo negativa O que Hegel pretende nos apontar
refere-se ao caraacuteter determinado de cada um dos diversos isto eacute que cada um somente se
determina como o que eacute por meio da relaccedilatildeo com o outro ldquoO igual natildeo eacute portanto o igual de
si mesmo e o desigual como o desigual natildeo de si mesmo mas sim de um desigual a ele eacute ele
mesmo o igualrdquo266
Identidade e diferenccedila natildeo satildeo por meio dessa unidade negativa momentos separados
mas antes uma uacutenica unidade e esta eacute a oposiccedilatildeo267
A oposiccedilatildeo
Hegel inicia sua anaacutelise do que estaacute em jogo na oposiccedilatildeo da seguinte maneira ldquoNa
oposiccedilatildeo a reflexatildeo determinada a diferenccedila estaacute acabada (Im Gegensatze ist die bestimmte
Reflexion der Unterschied vollendet)rdquo268
Como jaacute observamos anteriormente269 a diferenccedila se constitui de dois momentos
precisamente a identidade e a diferenccedila Ela eacute o todo que abrange esses dois momentos no
relacionamento que haacute entre eles Tambeacutem na diversidade havia um relacionamento entre
identidade e diferenccedila ou entre igualdade e desigualdade todavia do ponto-de-vista da
diversidade a diferenccedila que havia entre eles era indiferente (gleichguumlltig) Quer dizer era
como se cada um dos momentos natildeo tivesse a sua determinaccedilatildeo a igualdade e a desigualdade
em virtude de um relacionamento negativo entre ambos Em suma a diferenccedila natildeo estava
acabada (vollendet) A igualdade e a desigualdade eram declaradas a partir de uma reflexatildeo
exterior a si na qual os termos da relaccedilatildeo natildeo se vinculavam internamente um ao outro O
266 GW 11 p 269 trad p 49 (ldquoSo ist das Gleiche nicht das Gleiche seiner selbst und das Ungleiche als das Ungleiche nicht seiner selbst sondern eines ihm ungleichen ist selbst das Gleicherdquo)
267 Ibidem p 270 trad p 50
268 Ibidem p 272 trad p 53
269 Ver a esse respeito as paacuteginas 107 e 108
114
tertius comparationis postulava a igualdade ou a desigualdade dos termos diferentes ou
poderiacuteamos tambeacutem dizer efetuava a ldquomediaccedilatildeordquo entre ambos
Posto tudo isso podemos agora comeccedilar a entrever porque a diferenccedila na oposiccedilatildeo
estaacute acabada Mas do que realmente se trata nesse passo aleacutem
A tiacutetulo meramente introdutoacuterio podemos assinalar que a diferenccedila na oposiccedilatildeo teraacute
seus momentos unidos numa uacutenica identidade E seraacute essa unidade interior que permitiraacute a
Hegel afirmar que na oposiccedilatildeo a diferenccedila estaacute acabada no sentido de que aqui ela teraacute sua
completude
Mesmo assim ainda aqui na oposiccedilatildeo esse relacionamento entre identidade e
diferenccedila estaacute de alguma maneira afetado pela diversidade da qual parte Vejamos entatildeo agora
como se estabelece esse relacionamento de identidade e diferenccedila na oposiccedilatildeo
Originariamente igualdade e desigualdade satildeo a indiferenccedila reciacuteproca Cada uma eacute
apenas idecircntica consigo mesma sem que haja referecircncia ao seu negativo Eacute o que Hegel
chama de imediatez natildeo refletida em si (die nicht in sich reflectirte Unmittelbarkeit)270 Como
ser-posto cada momento deveria ser oposto ao outro entretanto por consequumlecircncia da reflexatildeo
exterior cada um deles eacute um ser e aquele que deveria ser seu contraposto isto eacute seu natildeo-ser-
posto (Nichtgesetztsein) eacute apenas um natildeo-ser (Nichtsein) Quando Hegel declara que cada
momento eacute apenas um ser que tem diante de si um natildeo-ser estamos ainda eacute o que nos parece
no terreno da diversidade no qual ser eacute uma determinaccedilatildeo visada de acordo com esse ponto-
de-vista e que de fato estaacute aqueacutem do que efetivamente se passa nos momentos dessa
diferenccedila A tiacutetulo de esclarecimento Hegel caracterizava o ser na Enciclopeacutedia271 como
apenas o imediato indeterminado Parece-nos que denominar os momentos da igualdade e da
desigualdade como ser se faccedila de acordo com tal caracterizaccedilatildeo do ser na obra acima citada
O ser eacute indeterminado porque ele natildeo possui nenhuma relaccedilatildeo com um outro e a
determinaccedilatildeo natildeo se faz sem uma negaccedilatildeo272 o que implica uma relaccedilatildeo a um outro
270 GW 11 p 272 trad p 53
271 Cf GW 20 E sect 86 p 122 trad p175
272 Leia-se a propoacutesito o que foi dito na paacutegina 97 a respeito da determinaccedilatildeo implicar uma negaccedilatildeo
115
ldquoQuando se comeccedila a pensar natildeo temos outra coisa que o pensamento em sua
carecircncia-de- determinaccedilatildeo pois para a determinaccedilatildeo jaacute se requer um e um outro O carente-de-
determinaccedilatildeo como temos aqui eacute o imediato e natildeo a mediatizada carecircncia-de-determinaccedilatildeo
natildeo a suspensatildeo de toda a determinidade mas a imediatez da carecircncia-de-determinaccedilatildeo a
carecircncia-de-determinaccedilatildeo preacutevia a toda a determinidade o carente-de-determinaccedilatildeo enquanto
o que eacute o primeiro-de-todos Ora [eacute] isso o [que] chamamos o ser O ser natildeo pode ser sentido
nem intuiacutedo e nem representado mas eacute o pensamento puro e como tal constitui o
comeccedilordquo273
Mas como momentos da oposiccedilatildeo a igualdade e a desigualdade satildeo o ser-posto
refletido em si ou a determinaccedilatildeo em geral274 Isto significa que igualdade e desigualdade
como refletidas em si mesmas cada uma eacute a unidade da igualdade e da desigualdade Nessa
unidade cada uma estaacute mediada pela outra no entanto a relaccedilatildeo entre elas ainda se faz de
modo indiferente Frente agrave diversidade pode-se notar um avanccedilo na relaccedilatildeo entre identidade e
diferenccedila cada uma estaacute referida agrave outra Desse modo na oposiccedilatildeo teremos como seus dois
momentos o positivo e o negativo O positivo eacute ldquoessa igualdade consigo mesma refletida em
si que nela mesma conteacutem a relaccedilatildeo com a desigualdaderdquo275 e o negativo eacute ldquoa desigualdade
que conteacutem nela mesma a relaccedilatildeo com seu natildeo-ser a igualdaderdquo276 Eacute devido a essa relaccedilatildeo
que ambos mantecircm com seus respectivos negativos que Hegel denomina cada um de ser-
posto isto eacute aquilo que estaacute em relaccedilatildeo com seu oposto O positivo como ser-posto estaacute
refletido na igualdade consigo mesmo e o refletido eacute a negaccedilatildeo como negaccedilatildeo O negativo
273 Werke 8 E sect 86 Adendo p 183 trad p 176 (ldquoWir haben wenn angefangen wird zu denken nichts als den Gedanken in seiner reinen Bestimmungslosigkeit denn zur Bestimmung gehoumlrt schon Eines und ein Anderes im Anfang aber haben wir noch kein Anderes Das Bestimmungslose wie wir es hier haben ist das Unmittelbare nicht die vermittelte Bestimmungslosigkeit nicht die Aufhebung aller Bestimmtheit sondern die Unmittelbarkeit der Bestimmungslosigkeit die Bestimmungslosigkeit vor aller Bestimmtheit das Bestimmungslose als Allererstes Dies aber nennen wir das Sein Dieses ist nicht zu empfinden nicht anzuschauen und nicht vorzustellen sondern es ist der reine Gedanke und als solcher macht es den Anfangrdquo)
274 Cf GW 11 p 272 trad p 53
275 Ibidem p273 trad p 53 (ldquoDiese in sich reflectirte Gleichheit mit sich die in ihr selbst die Beziehung auf die Ungleichheit enthaumlltrdquo)
276 Ibidem p 273 trad p 54 (ldquodie Ungleichheit die in ihr selbst die Beziehung auf ihr Nichtseyn die Gleichheit enthaumlltrdquo)
116
como ser-posto estaacute refletido na desigualdade e o refletido eacute a desigualdade dele (o
positivo)277
Como consequumlecircncia dessa reflexatildeo do todo neles mesmos o positivo e o negativo se
tornam independentes Mas nessa reflexatildeo na qual estaacute posta uma relaccedilatildeo com seu outro e que
fornece o caraacuteter independente do positivo e do negativo o outro de cada um deles eacute um natildeo-
ser pois o outro apesar de continuar presente na relaccedilatildeo estaacute presente como o que natildeo tem
ldquosubstacircnciardquo como se estivesse suprimido278 Em vista disso ao inveacutes de ser-posto positivo e
negativo voltam a adquirir a feiccedilatildeo do mero ser ou seja de um indeterminado que natildeo tem
relaccedilatildeo com um outro um indiferente subsistir (ein gleichguumlltiges Bestehen)279
Com vistas a uma explicitaccedilatildeo mais detalhada das determinaccedilotildees que constituem o
positivo e o negativo Hegel realiza uma anaacutelise na qual distingue trecircs aspectos que a seguir
retomamos280
Assim cabe notar em primeiro lugar que positivo e negativo subsistem numa uacutenica
reflexatildeo inseparaacutevel na qual cada um eacute mediante o natildeo-ser de seu outro mediante portanto
seu proacuteprio natildeo-ser Mas se existe a oposiccedilatildeo entre eles essa oposiccedilatildeo todavia eacute apenas
exterior Cada um eacute o que eacute na medida em que o outro natildeo eacute Na relaccedilatildeo que haacute entre os
opostos um procura afastar de si o outro como aquele que cada um natildeo eacute dessa maneira ldquoum
natildeo eacute ainda o positivo e o outro natildeo eacute ainda o negativo mas antes satildeo ambos negativos um em
relaccedilatildeo ao outrordquo281
277 Cf Ibidem p 273 trad p 54
278 Hegel utiliza eacute o que nos parece o verbo alematildeo aufheben em um sentido meramente negativo por isso optamos pela traduccedilatildeo do verbo como suprimir Na maioria das vezes no entanto preferimos traduzir aufheben por suspender termo que em portuguecircs cremos estar mais de acordo com a polissemia semacircntica do verbo em alematildeo pois suspender pode significar 1) elevar levantar (-se) erguer (-se) 2) suprimir pocircr fim anular abolir abrogar revogar cancelar 3) guardar conservar
Para essa pequena explicaccedilatildeo dos muacuteltiplos significados do verbo suspender e que estatildeo de acordo com os significados do verbo em alematildeo baseamo-nos aqui na nota 25 da traduccedilatildeo da Introduccedilatildeo agrave Filosofia do Direito elaborada por Marcos Lutz Muumlller e na qual o tradutor discute os motivos de se optar por traduzir aufheben por suspender Ver a esse respeito HEGEL G W Introduccedilatildeo agrave Filosofia do Direito Campinas IFCH UNICAMP Claacutessicos da Filosofia Cadernos de Traduccedilatildeo no 10 pp 87-90
279 Cf GW 11 p 273 trad p 54
280 Ver a propoacutesito GW11 pp 273-274 trad pp 54-56
281 Cf GW 11 p 273 trad p 55 (ldquodas eine ist noch nicht positiv und das andre noch nicht negativ sondern beyde sind negativ gegen einanderrdquo)
117
Em segundo lugar dado que cada um dos opostos natildeo considera como parte de si o
outro que ele natildeo eacute como se de fato o outro ndash o natildeo-ser ndash natildeo fosse necessaacuterio para a
determinaccedilatildeo que estaacute no outro poacutelo da relaccedilatildeo resulta dessa espeacutecie de relaccedilatildeo a completa
indiferenccedila entre ambos Dessa perspectiva cada um estaacute apenas refletido em si mesmo Que
consequumlecircncias adveacutem entatildeo para a oposiccedilatildeo uma vez que essa relaccedilatildeo se faz a partir de uma
indiferenccedila dos opostos
Para Hegel a relaccedilatildeo pautada pela indiferenccedila relaccedilatildeo que cada um estabelece com
seu outro como natildeo-ser faz com que ldquoa cada lado caiba por conseguinte uma das
determinidades do positivo e do negativo mas elas podem ser trocadas e cada lado eacute de tal
espeacutecie que eles podem mesmo ser tomados tanto como o positivo quanto como o
negativordquo282
De fato caberia afirmar que natildeo existe oposiccedilatildeo Soacute haacute como diz Hegel oposiccedilatildeo em
geral283 Tanto do lado do positivo quanto do lado do negativo procura-se manter somente
numa relaccedilatildeo idecircntica consigo Nega-se o outro da relaccedilatildeo como se este natildeo determinasse em
nenhuma hipoacutetese a identidade do positivo ou do negativo Eacute como se o outro fosse apenas
um outro em geral
Na doutrina dos conceitos contraditoacuterios um dos conceitos significa por exemplo
azul ( em tal doutrina algo como representaccedilatildeo sensiacutevel de uma cor se chama tambeacutem
conceito) o outro significa natildeo-azul de modo que este outro natildeo eacute algo afirmativo como
seria digamos o amarelo mas somente como o abstratamente negativo deve afirmar-se284
Natildeo se deve esquecer que nesse relacionamento dos opostos e que natildeo vai aleacutem da
indiferenccedila muacutetua o princiacutepio de contradiccedilatildeo pertencente ao arcabouccedilo da loacutegica claacutessica se
282 Ibidem p 274 trad p 55 (ldquojeder Seite kommt daher zwar eine der Bestimmtheiten von Positivem und Negativem zu aber sie koumlnnen verwechselt werden und jede Seite ist von der Art daszlig sie eben so gut als positiv wie als negativ genommen werden kannrdquo)
283 Ibidem p 273 trad p 55
284 GW 20 E sect 119 p150 trad p 234 (ldquoIn der Lehre von den contradictorischen Begriffen heiszligt der eine Begriff z B Blau (auch so ewas wie die sinnliche Vorstellung einer Farbe wird in solcher Lehre Begriff genannt) der andere Nichtblau so daszlig diszlig Andere nicht ein Affirmatives etwa Gelb waumlre sondern nur [als] das Abstract-Negative festgehalten werden sollrdquo)
118
faz atuante Uma determinaccedilatildeo eacute positiva independente daquilo que ela nega E o que eacute
negado mas que todavia estaacute relacionado ao positivo eacute como se natildeo existisse como se
estivesse completamente ausente285 Se algo eacute ele eacute porque um outro indeterminado natildeo eacute286
Natildeo pode haver algo que seja e natildeo seja ao mesmo tempo a contradiccedilatildeo precisa ser evitada a
todo custo A determinaccedilatildeo do positivo ou do negativo conforme a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo natildeo
estaacute vinculada agrave relaccedilatildeo que de fato eles mantecircm A despeito da relaccedilatildeo que eles estabelecem
entre si o princiacutepio de contradiccedilatildeo eacute respeitado e a contradiccedilatildeo eacute evitada287
Nessa indiferenccedila de cada um perante seu outro tanto faz chamar um de positivo
quanto chamar o outro de negativo Temos aqui apenas nomes diferentes para designar duas
positividades que por consequumlecircncia satildeo intercambiaacuteveis Apenas que um eacute o positivo como o
que eacute e o outro o positivo como o que natildeo eacute Enquanto forem indiferentes um ao outro
enquanto a diferenccedila entre eles natildeo for estabelecida a partir do relacionamento que os une
natildeo deixaratildeo os mesmos de serem duas determinaccedilotildees positivas abstratas288
285 Na precisa formulaccedilatildeo de Geacuterard Lebrun ldquoPode-se constatar um natildeo-ser mas sem lhe dar apoio sem contar de onde ele proveacutem O negativo eacute essa ausecircncia nunca localizaacutevel desprovida de toda espessurardquo in Lebrun G A paciecircncia do conceito Satildeo Paulo Editora da Unesp 2006 p275
286 ldquoEsse vazio da oposiccedilatildeo de conceitos que se dizem contraditoacuterios tinha jaacute sua plena exposiccedilatildeo na por assim dizer grandiosa expressatildeo de uma lei universal pela qual de todos os predicados assim opostos um pertence a cada coisa e o outro natildeo de sorte que o espiacuterito seria branco ou natildeo-branco amarelo ou natildeo-amarelo etc ateacute o infinitordquo (ldquo Die Leerheit des Gegensatzes von sogennanten contradictorischen Begriffen hatte ihre volle Darstellung in dem so zu sagen grandiosen Ausdruck eines allgemeinen Gesetzes daszlig jedem Dinge von Allen so entgegengesetzten Praumldicaten das Eine zukomme und das Andere nicht so daszlig der Geist sey entweder weiszlig oder nicht weiszlig gelb oder nicht gelb usf ins Unendlicherdquo) In GW 20 E sect119 p 150 trad p 234
287 ldquoQuando se esquece que identidade e oposiccedilatildeo satildeo opostas elas mesmas a proposiccedilatildeo da oposiccedilatildeo eacute tambeacutem tomada pela proposiccedilatildeo da identidade na forma da proposiccedilatildeo da contradiccedilatildeo e um conceito ao qual das duas caracteriacutesticas que se contradizem uma agrave outra nenhuma delas conveacutem (ver acima) ou convecircm as duas eacute declarado logicamente falso como por exemplo um ciacuterculo quadradordquo (ldquoIndem vergessen wird daszlig Identitaumlt und Entgegensetzung selbst entgegengesetzt sind wird der Satz der Entgegensetzung auch fuumlr den der Identitaumlt in der Form des Satzes des Widerspruchs genommen und ein Begriff dem von Zwey einander widersprechenden Merkmalen keins (s vorhin) oder alle beyde zukommen fuumlr logisch falsch erklaumlrt wie zB ein viereckiger Cirkelrdquo) In GW 20 E sect119 p 150 trad pp 234-235
288 ldquoO positivo eacute de novo a identidade mas na sua verdade mais alta enquanto relaccedilatildeo idecircntica a si mesma e ao mesmo tempo de modo que natildeo eacute o negativo O negativo para si natildeo eacute outra coisa que a diferenccedila mesma O idecircntico como tal eacute antes de tudo o carente-de-determinaccedilatildeo o positivo ao contraacuterio eacute o idecircntico consigo mesmo mas enquanto determinado frente a um outro e o negativo eacute a diferenccedila como tal na determinaccedilatildeo de natildeo ser identidade Eacute isso a diferenccedila da diferenccedila nela mesma No positivo e negativo acredita-se ter uma diferenccedila absoluta Contudo os dois satildeo em si o mesmo e por isso se poderia chamar tambeacutem o positivo negativo e vice-versa igualmente o negativo positivordquo (ldquo Das Positive ist wieder die Identitaumlt aber in ihrer houmlheren Wahrheit als identische Beziehung auf sich selbst und zugleich so daszlig es nicht das Negative ist Das Negative fuumlr sich ist nichts anderes als der Unterschied selbst Das Identische als solches ist zunaumlchst das
119
Podemos ilustrar a afirmaccedilatildeo acima de que positivo e negativo satildeo ambos positivos e
justamente por isso intercambiaacuteveis com um dos exemplos fornecidos por Hegel na anotaccedilatildeo
agrave seccedilatildeo que trata da oposiccedilatildeo na Ciecircncia da Loacutegica
Assim se pensarmos em uma hora de caminhada para o leste veremos que este natildeo eacute
ao mesmo tempo o positivo em si nem o caminho para o oeste seria o caminho negativo O
trecho percorrido natildeo pode ser considerado o positivo ou o negativo em si Em relaccedilatildeo a ele
tais determinaccedilotildees lhe satildeo indiferentes Apenas por meio de uma consideraccedilatildeo exterior se
determina o positivo ou o negativo289
A mesma coisa eacute vaacutelida para um exemplo tirado da aritmeacutetica290 Se A deve ser +A ou
ndashA com isso jaacute estaacute enunciado um terceiro que eacute A ou a base na qual se tem de modo
indiferente o positivo +A e o negativo ndashA291
Bestimmungslose das Positive dagegen ist das mit sich Identische aber als gegen ein Anderes bestimmt und das Negative ist der Unterschied als solcher in der Bestimmung nicht Identitaumlt zu sein Dies ist der Unterschied des Unterschiedes in ihm selbst - Am Positiven und Negativen meint man einen absoluten Unterschied zu haben Beide sind indes an sich dasselbe und man koumlnnte deshalb das Positive auch das Negative nennen und ebenso umgekehrt das Negative das Positiverdquo) In Werke 8 E sect 119 Adendo p 244 trad p 235
289 GW 11 p 276 trad p 58
290 Ver a propoacutesito GW 20 E sect 119 p 150 trad p 234
291 Todo esse trecho da Ciecircncia da Loacutegica no qual Hegel trata da oposiccedilatildeo envolve uma criacutetica da oposiccedilatildeo real kantiana no seu Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia [In Escritos preacute-criacuteticos Satildeo Paulo Unesp 2005 pp 51-99] Com efeito Kant comeccedila a seccedilatildeo Elucidaccedilatildeo do conceito de grandezas negativas em geral distinguindo entre oposiccedilatildeo loacutegica e oposiccedilatildeo real Segundo o filoacutesofo ldquooposto um ao outro eacute quando um suprime aquilo que eacute posto pelo outrordquo (Kant p 57) E esta oposiccedilatildeo pode se dar de duas maneiras se for oposiccedilatildeo loacutegica pela contradiccedilatildeo se for real sem contradiccedilatildeo
Teremos uma oposiccedilatildeo loacutegica quando a seguinte situaccedilatildeo ocorre ldquode uma uacutenica e mesma coisa afirma-se e nega-se algo ao mesmo tempordquo (Kant p 57) A consequumlecircncia advinda de uma tal espeacutecie de afirmaccedilatildeo eacute segundo Kant absolutamente nada (nihil negativum irrepraesentabile) Devido agrave transgressatildeo ao princiacutepio de contradiccedilatildeo aquilo que se tentou exprimir natildeo pode ser representado Como um corpo poderia ao mesmo tempo e sob a mesma relaccedilatildeo estar e natildeo estar em movimento Do ponto de vista das leis da loacutegica claacutessica eacute impossiacutevel(Kant p 58)
Para Kant ao se considerar a oposiccedilatildeo como real teremos dois predicados opostos de uma coisa relacionados no entanto sem que nessa relaccedilatildeo se infrinja o princiacutepio de contradiccedilatildeo Neste caso temos como consequumlecircncia da oposiccedilatildeo algo (cogitabile) Em um dos exemplos dados por Kant algueacutem que tenha por haver uma diacutevida ativa A= 100 taacuteleres ou seja tem a receber A Ao mesmo tempo essa pessoa possui uma diacutevida passiva B=100 taacuteleres logo tem a pagar a quantia expressa por B Se reunimos as duas diacutevidas a ativa e a passiva entatildeo teremos como consequumlecircncia nada As duas diacutevidas se anulam entretanto esse nada eacute algo pois houve um certo movimento de um certo capital Aqui ocorre efetivamente supressatildeo todavia em virtude de dois predicados atuantes e verdadeiros na mesma coisa Kant nomeia esse nada como zero =0 Diferente do nada a que se chega a partir da oposiccedilatildeo loacutegica esse nada chamado de zero natildeo expressa nenhuma contradiccedilatildeo entre os termos Temos uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo da qual se extrai uma consequumlecircncia compreensiacutevel ainda sob o amparo do princiacutepio de contradiccedilatildeo Os opostos se regem pelo princiacutepio de contradiccedilatildeo e quando relacionados continuam a natildeo se
120
Por fim haacute que se considerar que positivo e negativo natildeo estatildeo de fato relacionados
apenas exteriormente Ambos estatildeo relacionados um ao outro numa unidade na qual cada um
se determina como positivo e como negativo mediante essa reflexatildeo dos contrapostos ldquoCada
um eacute em si mesmo positivo e negativordquo292 O positivo se determina como positivo na sua
relaccedilatildeo com seu outro o negativo e o negativo da mesma maneira na sua relaccedilatildeo com o
positivo Nenhum deles pode ser portanto apenas uma reflexatildeo em si ou seja positivo e
negativo natildeo estatildeo desvinculados um do outro Natildeo se constituem como tais por meio de um
puro refletir-se em si mesmos sem que isso envolva a relaccedilatildeo com seu outro e contraposto
Somente na relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo que positivo e negativo se determinam desse modo como
tais e essa reflexatildeo pode ser considerada em si e para si
contradizer Os opostos aqui satildeo dois positivos E eacute por pura conveniecircncia que um eacute chamado de positivo e o outro de negativo
Pensemos por exemplo neste exemplo fornecido por Kant um navio que navega de Portugal para o Brasil(Kant p 60) Indicaremos com o sinal + os trechos que ele perfaz com o vento matutino e com o sinal ndash indicaremos os trechos que ele retrocede mediante o vento vespertino Os nuacutemeros significam as milhas percorridas Poderia ter ocorrido uma viagem rumo a oeste que somando e subtraindo o efeito do vento no navio seria em milhas a seguinte +12 + 7 ndash 3 ndash 5 + 8= 19 milhas Soacute existe uma subtraccedilatildeo aqui porque haacute grandezas precedidas do sinal + e haacute grandezas precedidas do sinal -- Em ndash 4 ndash 5= -- 9 por exemplo temos uma soma de grandezas natildeo obstante estas estarem precedidas do sinal -- Uma soma tambeacutem se verificaria caso no exemplo citado fosse utilizado o sinal + antes das grandezas A questatildeo eacute que natildeo eacute o sinal que por si soacute pode designar uma subtraccedilatildeo Como acabamos de observar pode haver soma para uma operaccedilatildeo envolvendo grandezas precedidas de sinal -- Eacute somente na reuniatildeo de + e ndash que temos uma subtraccedilatildeo E natildeo importa qual das grandezas por exemplo em + 4 ndash 5= -- 1 seja precedida por + ou por -- que enquanto haja uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo o resultado seraacute sempre uma subtraccedilatildeo
Eacute meramente convencional portanto que se utilize o sinal ndash ou o sinal + para denominar as grandezas Natildeo eacute em virtude de uma propriedade intriacutenseca desses sinais que teremos uma soma ou uma subtraccedilatildeo ldquoos matemaacuteticos decidiram denominar negativas as grandezas precedidas de -- com o que igualmente natildeo se deve perder de vista que essa denominaccedilatildeo natildeo remete a uma espeacutecie particular de coisas em sua qualidade interna mas a esta relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo que as une com certas outras coisas indicadas com + reunidas em uma oposiccedilatildeordquo (Kant pp 61-62)
Numa oposiccedilatildeo real satildeo efetivamente dois positivos que se relacionam e eacute indiferente qual deles possa ser o positivo ou o negativo Para Kant diferente do que pensa Hegel esses positivos relacionados podem produzir como efeito algo e continuarem a ser abstratamente idecircnticos a si mesmos nessa relaccedilatildeo Jaacute para Hegel ldquoo que eacute em si (ansichseiende) positivo ou negativo significa essencialmente ser oposto natildeo meramente ser momento nem pertencente agrave comparaccedilatildeo mas sim que eacute a proacutepria determinaccedilatildeo dos lados da oposiccedilatildeordquo (Cf GW 11 p 275 trad p 57) Eacute na relaccedilatildeo que eles se determinam e poderatildeo constituir uma unidade naquilo que Hegel chama de contradiccedilatildeo resolvida
292 GW 11 p 274 trad p 55 (ldquojedes ist an ihm selbst positiv und negativrdquo)
121
A contradiccedilatildeo
Na oposiccedilatildeo temos dois lados o positivo e o negativo indiferentes um perante o outro
Como jaacute foi visto cada lado eacute toda a oposiccedilatildeo pois apesar da indiferenccedila eles se relacionam
cada um ao seu outro Todavia devido agrave indiferenccedila potildeem-se eles como se natildeo houvesse
relaccedilatildeo com seu outro isto eacute excluem de si o seu outro
Mas eacute na relaccedilatildeo com seu outro que cada lado conteacutem em si que eles satildeo ambos a
oposiccedilatildeo completa e assim satildeo auto-subsistentes A auto-subsistecircncia entatildeo consiste nesse
conter o seu oposto em si mesmo e relacionado a si A relaccedilatildeo com o outro desse modo natildeo eacute
exterior Hegel chama o positivo e o negativo de tal modo constituiacutedos de determinaccedilotildees
reflexivas autocircnomas293 Mas ao mesmo tempo e na mesma relaccedilatildeo uma determinaccedilatildeo
reflexiva autocircnoma exclui de si a outra Como consequumlecircncia dessa exclusatildeo ldquoexclui entatildeo ela
de si na sua autonomia (Selbststaumlndigkeit) a sua proacutepria autonomiardquo294 Uma determinaccedilatildeo
conteacutem portanto em si a outra e na mesma relaccedilatildeo exclui de si essa outra que eacute sua negativa e
assim se auto-exclui de si mesma Desse modo nesse vai-e-vem ndash em um mesmo
relacionamento ndash entre a autonomia e a sua exclusatildeo ela a determinaccedilatildeo eacute a contradiccedilatildeo295
Nesse relacionamento das determinaccedilotildees cada uma ao se pocircr remete agrave outra que a ela
se relaciona Cada uma eacute o que eacute na relaccedilatildeo com a outra sua afirmaccedilatildeo vincula-se agrave outra que
eacute negada mas que ao mesmo tempo estaacute contida na primeira como elemento de sua
autonomia Temos aqui o que Hegel chama de contradiccedilatildeo posta (der gesetzte Widerspruch)
realizada por meio de uma reflexatildeo excludente ao me pocircr ponho ao mesmo tempo o outro
que excluo de mim e assim me suspendo296
Se nos voltarmos por exemplo para a contradiccedilatildeo que haacute no positivo veremos que o
positivo potildee sua identidade ao excluir de si o negativo mas nessa exclusatildeo ele se faz
negativo desse outro (o negativo excluiacutedo) e assim potildee seu outro ao mesmo tempo que o
inclui297 Dessa maneira se auto-exclui de si ao se fazer seu outro Tambeacutem com o negativo
293 Ibidem p 279 trad p 62
294 Ibidem p 279 trad p 62
295 Ibidem p 279 trad p 62
296 Ibidem p 279 trad p 62
297 Cf Ibidem p 280 trad p 63
122
se passa o mesmo a saber o negativo que exclui de si o positivo potildee-se e assim potildee seu
outro (o seu negativo que neste caso eacute o positivo) Eacute numa reflexatildeo uacutenica que se daacute o pocircr de
ambos298 Mas a contradiccedilatildeo do negativo eacute por assim dizer mais completa que a do positivo
O negativo eacute o idecircntico consigo justamente na determinaccedilatildeo do ser natildeo-idecircntico do
determinar-se como negativo ou seja no ser exclusatildeo da identidade
O positivo e o negativo satildeo portanto essa unidade dos que se excluem e
simultaneamente se tornam um o outro ldquoesse incansaacutevel desvanecer dos contrapostos neles
mesmos (Diszlig rastlose Verschwinden der Entgegengesetzten in ihnen selbst)rdquo299
Poder-se-ia pensar que o resultado da contradiccedilatildeo desses opostos seria um resultado
meramente negativo precisamente o zero (Null)300 Contudo o que efetivamente eacute aniquilado
(zu Grund geht) na contradiccedilatildeo eacute o ser-posto da auto-subsistecircncia do positivo e do negativo301
Em outras palavras o que natildeo se manteacutem eacute a auto-subsistecircncia em que cada um se potildee como
se estivessem fora da relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo que eles mantecircm com seu outro Como ser-posto
298 Cf Ibidem p 280 trad p 63
299 Ibidem p280 trad p 64 Ou ainda ldquo[] cada um eacute absolutamente o passar ou antes o transpor-setraduzir-se de si mesmo no seu contrapostordquo (ldquojedes ist schlechthin das Uebergehn oder vielmehr das sich Uebersetzen seiner in sein Gegentheilrdquo) Cf GW 11 p 280 trad p 64
300 ldquoQuando em qualquer objeto ou conceito for mostrada a contradiccedilatildeo --- e por toda a parte natildeo haacute absolutamente nada em que natildeo possa e na deva ser mostrada a contradiccedilatildeo isto eacute determinaccedilotildees opostas o abstrair do entendimento eacute o fixar-se agrave forccedila em uma soacute determinidade eacute um esforccedilo de obscurecer e de afastar a consciecircncia da outra determinidade --- quando pois tal contradiccedilatildeo eacute reconhecida costuma-se fazer a conclusatildeo ldquoLogo este objeto eacute nadardquo [Faz-se] como Zenatildeo que primeiro mostrou [a respeito] do movimento que ele se contradizia e que portanto o movimento natildeo era ou como os antigos que reconheceram o nascer e o perecer --- as duas espeacutecies do vir-a-ser --- como determinaccedilotildees natildeo-verdadeiras com a expressatildeo de que o uno isto eacute o absoluto natildeo nascia nem perecia Essa dialeacutetica fica assim simplesmente no lado negativo do resultado e abstrai do que ao mesmo tempo estaacute efetivamente presente um resultado determinado aqui um puro nada mas um nada que em si inclui um ser e igualmente um ser que nele inclui o nadardquo (ldquoWenn in irgend einem Gegestand oder Begriff der Widerspruch aufgezeigt wird (ndash und es ist uumlberall gar nichts worin nicht der Widerspruch di entgegengesetzte Bestimmungen aufgezeigt werden koumlnnen und muumlssen ndash das Abstrahiren des Verstandes ist das gewaltsame Festhalten an Einer Bestimmtheit eine Anstrengung das Bewuszligtsein der andern die darin liegt zu verdunkeln und zu entfernen) ndash wenn nun solcher Widerspruch erkannt wird so pflegt man den Schluszligsatz zu machen Also ist dieser Gegenstand Nichts wie Zeno zuerst von der Bewegung zeigte daszlig sie sich widerspreche daszlig sie also nicht sey oder wie die Alten das Entstehen und Vergehen die zwei Arten des Werdens fuumlr unwahre Bestimmungen mit dem Ausdrucke erkannten daszlig das Eine di das Absolute nicht entstehe noch vergehe Diese Dialektik bleibt so blos bei der negativen Seite des Resultates stehen und abstrahirt vom dem was zugleich wirklich vorhanden ist ein bestimmtes Resultat hier ein reines Nichts aber Nichts welches das Seyn und eben so ein Seyn welches das Nichts in sich schlieszligtrdquo) In GW 20 E sect 89 p 129 trad p 185
301 GW 11 p 281 trad p 64
123
cada lado da oposiccedilatildeo eacute um contraposto (Entgegengesetzt) mas o positivo eacute a suspensatildeo da
oposiccedilatildeo posta como natildeo-contraposto enquanto um lado ao mesmo tempo que o negativo eacute o
contraposto subsistente por si enquanto todo da oposiccedilatildeo que repousa em si Hegel denomina
de reflexatildeo em si essa relaccedilatildeo de auto-subsistecircncia a si na qual cada lado da oposiccedilatildeo se potildee
como momento distinto do outro302
A reflexatildeo se torna para si somente com a relaccedilatildeo negativa de cada um com seu outro
reflexatildeo excludente (ausschliessende Reflexion) por meio da qual o ser-posto de cada um
como relaccedilatildeo autocircnoma a si eacute suspenso (aufgehoben)303 ldquoElas se levam agrave destruiccedilatildeo (richten
sich zu Grunde) ao se determinarem como o idecircntico consigo poreacutem nisto antes como o
negativo como um idecircntico consigo que eacute relaccedilatildeo com outrordquo304
Nessa reflexatildeo excludente um lado se potildee negando o outro e ao negar seu outro ele se
potildee como negaccedilatildeo e como tal ele retorna a si a partir dessa negaccedilatildeo
ldquoEla (a reflexatildeo excludente da autonomia) eacute relaccedilatildeo a si que se suspende ela nisto
primeiro suspende o negativo e em segundo lugar potildee-se a si como negativo e esse eacute somente
aquele negativo que ela suspende no suspender do negativo ela ao mesmo tempo o potildee e
suspende A determinaccedilatildeo excludente eacute desse modo a si o outro do qual ela eacute a negaccedilatildeo o
suspender desse ser-posto natildeo eacute por conseguinte novamente o ser-posto como o negativo de
um outro mas sim o reunir-se consigo mesmo que eacute a unidade positiva consigo A autonomia
eacute assim a unidade que retorna a si por meio de sua proacutepria negaccedilatildeo visto que ela retorna a si
mediante a negaccedilatildeo de seu ser-postordquo305
302 Ibidem p 281 trad p 64
303 Ibidem p 281 trad p 65 Ou ainda ldquoEla eacute auto-subsistecircncia sendo-em-si e eacute o suspender desse ser-posto e que- eacute-para-si somente mediante esse suspender que eacute para si e de fato unidade auto-subsistente (Sie ist ansichseyende Selbststaumlndigkeit und ist das Aufheben dieses Gesetztseyens und durch diss Aufheben erst fuumlrsichseyende und in der That selbstsaumlndige Einheit) In Ibidem p 281 trad p 65
304 Ibidem p 281 trad p 65 (ldquoSie richten sich zu Grunde indem sie sich bestimmen als das mit sich identische aber darin vielmehr als das Negative als ein mit sich identisches das Beziehung auf anderes istrdquo)
305 Ibidem p 281 trad p 65 (ldquoSie ist aufhebende Beziehung auf sich sie hebt darin erstens das Negative auf und zweytens setzt sie sich als negatives und diszlig ist erst dasjenig Negative das sie aufhebt im Aufheben des Negativen setzt und hebt sie zugleich auf Die ausschliessende Bestimmung selbst ist auf diese Weise sich das Andre dessen Negation sie ist das Aufheben dieses Gesetztseyns ist daher nicht wieder Geseztseyn als das Negative eines Andern sondern ist das Zusammengehen mit sich selbst das positive Einheit mit sich ist Die Selbstaumlndigkeit ist so durch ihre eigene Negation in sich zuruumlckkehrende Einheit indem sie durch die Negation ihres Gesetztseyns in sich zuruumlckkehrtrdquo)
124
Por meio portanto dessa reflexatildeo excludente dos opostos eles se potildeem e
simultaneamente se suspendem Numa uacutenica e mesma relaccedilatildeo se afirmam e se negam
mutuamente Qual o resultado desse processo Com a negaccedilatildeo muacutetua eles certamente se
aniquilam (gehen zu Grunde) entretanto esse aspecto negativo da relaccedilatildeo natildeo seraacute o uacuteltimo e
assim predominante nessa destruiccedilatildeo a oposiccedilatildeo retornou ao mesmo tempo ao seu
fundamento (ist in seinen Grund zuruumlckgegangen)306 O retorno ao fundamento mediante a
suspensatildeo da oposiccedilatildeo natildeo ocorre sem essa relaccedilatildeo da oposiccedilatildeo a um negativo algo que
significa rebaixar (herabsetzen) as determinaccedilotildees autocircnomas positivo e negativo a o que de
fato satildeo meras determinaccedilotildees que na sua suspensatildeo (Aufhebung) reuacutenem-se
(zusammengehen) na unidade da essecircncia como fundamento ldquoMediante o suspender das
determinaccedilotildees da essecircncia que se contradizem nelas mesmas esta (a essecircncia) eacute restaurada
contudo com a determinaccedilatildeo de ser unidade reflexiva excludente unidade simples []rdquo307
O fundamento desse modo somente surge da contradiccedilatildeo apresentada na oposiccedilatildeo
autocircnoma (selbstaumlndige Gegensatz) Esta eacute o imediato o primeiro do qual se parte e na sua
suspensatildeo o fundamento vem a ser ldquoA contradiccedilatildeo resolvida308 (der aufgeloumlste Widerspruch)
eacute portanto o fundamento a essecircncia como unidade do positivo e negativordquo309
Se jaacute ressalta Hegel na oposiccedilatildeo se desenvolve a determinaccedilatildeo ateacute que se atinja a
autonomia (Selbstaumlndigkeit) a mesma contudo somente teraacute seu acabamento (Vollendung)
306 Ibidem pp 281-282 trad pp 65-66
307 Ibidem p 282 trad p 66 (ldquoDurch das Aufheben der sich an sich selbst widersprechenden Bestimmungen des Wesens ist dieses wiederhergestellt jedoch mit der Bestimmung ausschliessende Reflexionseinheit zu seyn einfache Einheit [hellip]rdquo)
308 Um dos significados do verbo aufloumlsen na liacutengua alematilde eacute resolver E resolver com o sentido de se encontrar a soluccedilatildeo de um problema por exemplo uma equaccedilatildeo matemaacutetica O mesmo verbo tambeacutem significa a dissoluccedilatildeo de algo sua desagregaccedilatildeo como no caso de uma substacircncia quiacutemica em outra ou sua anulaccedilatildeoextinccedilatildeo caso de um contrato por exemplo Com referecircncia agrave traduccedilatildeo do verbo por resolver no trecho em questatildeo parece-nos que seja a melhor soluccedilatildeo pois assim fica ressaltado esse aspecto positivo de uma unidade superior dos contraditoacuterios no fundamento Ao mesmo tempo o verbo tambeacutem significa dissoluccedilatildeo que no que respeita agrave contradiccedilatildeo eacute um significado que tambeacutem deve ser considerado visto que a contradiccedilatildeo eacute dissolvida para que assim possa entatildeo resultar uma unidade superior todavia a ressonacircncia meramente negativa de dissoluccedilatildeo talvez deixe de lado esse aspecto o mais importante de unidade dos contraditoacuterios no fundamento Aleacutem disso resolver jaacute nos daacute tambeacutem a ideacuteia de que duacutevidas incoerecircncias e contradiccedilotildees presentes num problema sejam dissolvidasdissipadas para que enfim encontremos sua resoluccedilatildeo
309 Ibidem p 282 trad p 66 (ldquoDer aufgeloumlste Widerspruch ist also der Grund das Wesen als Einheit des Positiven und Negativenrdquo)
125
no fundamento Na oposiccedilatildeo jaacute temos a relaccedilatildeo negativa e interna dos opostos relaccedilatildeo que
fornece a autonomia agrave essecircncia poreacutem essa autonomia seraacute apenas completa e acabada no
fundamento porque somente nele o negativo estaraacute efetivamente incorporado a essa reflexatildeo
das determinaccedilotildees contrapostas Eacute o que nos parece que Hegel queira dizer310 Eacute nessa
relaccedilatildeo portanto em que o negativo intrinsicamente faz dela parte que o fundamento pode
ser ldquoa identidade positiva consigo mas ao mesmo tempo como a negatividade que se
relaciona a sirdquo311 E natildeo podemos esquecer que eacute por meio dessa negatividade incorporada
ao processo que a contradiccedilatildeo se torna contradiccedilatildeo posta e eacute resolvida no fundamento312 Uma
resoluccedilatildeo na qual ldquoA oposiccedilatildeo e sua contradiccedilatildeo eacute por conseguinte tanto suprimida no
fundamento quanto conservadardquo313 O fundamento eacute a unidade dos contrapostos nessa relaccedilatildeo
negativa e contraditoacuteria que eles manteacutem entre si
ldquoA oposiccedilatildeo autocircnoma que se contradiz era jaacute portanto ela mesma o fundamento
somente que agora (como fundamento) acrescida da determinaccedilatildeo da unidade consigo
mesma que sobressai pelo fato de que os contrapostos autocircnomos cada um se suspendem e
se convertem no outro de si com isto se destruindo mas nisto ao mesmo tempo reunindo-se
consigo mesmo e desse modo no seu afundar isto eacute no seu ser-posto ou na negaccedilatildeo eacute
antes a essecircncia refletida em si idecircntica consigordquo 314
310 Ibidem p 282 trad p 67
311 Ibidem p 282 trad p 67 (ldquodie positive Identitaumlt mit sich aber die sich zugleich als die Negativitaumlt auf sich beziehtrdquo)
312 No que respeita agrave importacircncia central da dupla negaccedilatildeo ndash ou como o autor a ela se refere negaccedilatildeo autonomizada ndash para Hegel ver o ensaio de Dieter Henrich ldquoHegels Grundoperation (Eine Einleitung in die lsquoWissenschaft der Logikrsquordquo especialmente as pp 214-219 In Guzzoni Ute Der Idealismus und seine Gegenwart (Festschrift fuumlr Werner Marx) Hamburg Meiner 1976 pp 208-230
313 Ibidem p 282 trad p 67 (ldquoDer Gegensatz und sein Widerspruch ist daher im Grunde so sehr aufgehoben als erhaltenrdquo)
314 Ibidem p 282-283 trad p 67 (ldquoDer sich widersprechende selbstaumlndige Gegensatz war also bereits selbst der Grund es kam nur die Bestimmung der Einheit mit sich selbst hinzu welche dadurch hervortritt daszlig die selbstaumlndigen Entgegengesetzten jedes sich selbst aufhebt und sich zu dem andern seiner macht somit zu Grunde geht aber darin zugleich nur mit sich selbst zusammengeht also in seinem Untergange das ist in seinem Gesetztseyn oder in der Negation vielmehr erst das in sich reflectirte mit sich identische Wesen istrdquo)
126
De tudo que foi dito podemos entatildeo concluir que a contradiccedilatildeo eacute justamente o que natildeo
deve ser afastado Ela eacute ldquoa raiz de todo movimento e vitalidade somente na medida em que
algo tem a contradiccedilatildeo em si mesmo ele se movimenta tem impulso (Trieb) e atividaderdquo315
Contra o pensamento representativo o pensar do entendimento a contradiccedilatildeo natildeo
deve ser afastada Eacute por meio dela que um posto se une a seu contraposto numa unidade
negativa que teraacute como consequumlecircncia a geraccedilatildeo de um novo ser-posto Hegel assim inverte o
jogo o que antes era considerado negativo agora merece uma avaliaccedilatildeo positiva
O entendimento procurou sempre afastar a contradiccedilatildeo porque se ordena segundo uma
sintaxe na qual nada pode ser contraditoacuterio A identidade tal como estabelecida pela loacutegica
claacutessica eacute o que deve ser preservado Se haacute contradiccedilatildeo ela se resolve em um nada Em um
nada vazio vale ser lembrado
Se o ceticismo sempre teve ecircxito no seu combate ao dogmatismo eacute porque nunca se
furtou a atacar o ponto fraco do pensar de entendimento a saber que a contradiccedilatildeo sempre
pode ser obtida a partir da produccedilatildeo de antinomias Aleacutem disso o entendimento se apoacuteia em
uma ontologia que inviabiliza a sua proacutepria manutenccedilatildeo Tanto eacute assim que o ceacutetico consegue
reiteradamente estabelecer uma contradiccedilatildeo a partir daquilo que eacute posto unilateralmente pelo
discurso dogmaacutetico
Toda forma de oposiccedilatildeo que se apoacuteia na identidade abstrata de entendimento procura
sempre considerar o negativo como aquilo que natildeo existe ou para usar o vocabulaacuterio de
Hegel como um natildeo-ser Se algo eacute ele eacute idecircntico a si mesmo independente da relaccedilatildeo com
um outro O positivo natildeo se conecta ao negativo para se manter como positivo Ele eacute Esse
algo que eacute entretanto nunca eacute independente de sua relaccedilatildeo com um outro A um posto
determinado sempre se pode contrapor um outro determinado Em outras palavras uma
determinaccedilatildeo de entendimento eacute limitada por uma outra e desse modo mostra-se seu caraacuteter
finito Mas por que as determinaccedilotildees finitas quando no acircmbito do entendimento satildeo
relacionadas acabam finalmente por se contradizer Segundo Hegel a contradiccedilatildeo se efetiva
devido a esse ser finito apresentar-se como um absoluto O finito que como veremos a seguir
eacute aquilo que estaacute fadado a perecer no acircmbito do entendimento eacute encarado como se fosse um
absoluto O resultado disso eacute que a contradiccedilatildeo precisa ser evitada Se o finito fosse
315 Ibidem p 286 trad p 72 (ldquo[] ist die Wurzel aller Bewegung und Lebendigkeit nur insofern etwas in sich selbst einen Widerspruch hat bewegt es sich hat Trieb und Thaumltigkeitrdquo)
127
considerado como o que ele realmente eacute a saber como ldquoa oposiccedilatildeo que se contradiz em si
mesma (an sich selbst widersprechende Gegensatz)rdquo 316 a contradiccedilatildeo natildeo precisaria ser
evitada e o ceticismo natildeo seria mais considerado o fantasma que assombra a filosofia
Vejamos agora a partir de uma anaacutelise das categorias de finito e infinito como se
constitui essa gramaacutetica ontoloacutegica que precisa ser abandonada caso se pretenda que a
contradiccedilatildeo e o ceticismo natildeo sejam mais vistos como inimigos mortais da filosofia que tanto
horror causam no pensamento natildeo-especulativo
316 Ibidem p 290 trad p 77
128
O finito e o infinito
Para que possamos compreender o que eacute o finito tomaremos como ponto de partida a
categoria do ser-aiacute como qualidade tal como exposta na Doutrina do Ser na Enciclopeacutedia317
Assim veremos no sect 90 que o ser-aiacute unido com uma determinidade eacute a qualidade318
Na qualidade jaacute estaacute contida a negaccedilatildeo como um ser-aiacute e algo A negaccedilatildeo eacute o ser-outro
(Anderssein) desse ser-aiacute que eacute a qualidade Eacute ela que fornece a determinaccedilatildeo proacutepria da
qualidade O ser-aiacute eacute algo porque ele eacute determinado ou seja porque ele eacute um algo que natildeo
pode ser confundido com outro algo Ele eacute portanto este algo e natildeo eacute aquele outro O ser-aiacute
estaacute delimitado ele possui um limite A negaccedilatildeo diraacute Hegel eacute esse limite (Grenze) Essa
limitaccedilatildeo que atravessa esse algo faz com que ele seja finito O que natildeo eacute difiacutecil de se
compreender pois o algo por ser limitado necessariamente remete a um outro que o limita ldquoo
limite do algo se lhe torna objetivo no outrordquo319 O ser-aiacute se determina ao avanccedilar ateacute o ponto
em que se defronta com seu outro que eacute o seu limite
O ser-aiacute por ser limitado ao mesmo tempo tambeacutem eacute finito o que traz por
consequumlecircncia que ele estaacute destinado a ter um fim Segundo Hegel eacute proacuteprio das coisas finitas
o perecer (vergehen) ldquoo ser das coisas finitas como tal consiste em ter o germe do perecer
como seu ser-em-si (Insichsein) a hora de seu nascimento eacute a hora de sua morterdquo320 Se algo
perece eacute porque ele se altera o que implica numa negaccedilatildeo constante daquilo que se eacute ateacute o seu
fim O finito desse modo se altera porque ele se nega e esse negar-se significa que ele vai
aleacutem de si mesmo Eacute por esse motivo que Hegel afirma que as coisas finitas se relacionam
317 Cf GW 20 p 129 e ss trad p 186 e ss
318 Ibidem sect 90 p 129 trad p 186
319 Werke 8 E sect 92 Adendo p 197 trad p 189 (ldquo[hellip] dem Etwas wird im Anderen seine Grenze objektivrdquo) Ou ainda ldquoQuando noacutes dizemos das coisas que elas satildeo finitas com isto tambeacutem se entende que elas natildeo somente possuem uma determinidade a qualidade natildeo somente como realidade e determinaccedilatildeo que eacute em si que elas natildeo satildeo apenas limitadas ndash elas ainda tem fora de seu limite um ser-aiacute ndash mas que antes tambeacutem o natildeo-ser constitui sua natureza seu serrdquo (ldquo Wenn wir von den Dingen sagen sie sind endlich so wird darunter verstanden daszlig sie nicht nu eine Bestimmtheit haben die Qualitaumlt nicht nur als Realitaumlt und ansichseyende Bestimmung daszlig sie nicht bloszlig begrenzt sind sie haben so noch Daseyn ausser ihrer Grenze ndash sondern daszlig vielmehr das Nichtseyn ihre Natur ihr Seyn ausmacht rdquo) In GW 21 p 116 trad p 166
320 GW 21 p 116 trad p 166 (ldquodas Seyn der endlichen Dinge als solches ist den Keim des Vergehens als ihr Insichseyn zu haben die Stude ihrer Geburt ist die Stunde ihres Todesrdquo)
129
negativamente a si mesmas e nesse negar se remetem para aleacutem de si mesmas e de seu ser
(sich uumlber sich uumlber ihr Sein hinauszuschicken)321
Esse ir aleacutem de si mesmo do finito esse ir para um outro natildeo acontece como se esse
outro fosse exterior e indiferente ao algo a que estaacute vinculado Caso assim ocorresse a relaccedilatildeo
entre o algo e o outro natildeo teriacuteamos a efetiva negaccedilatildeo do finito E eacute isto que se passa quando o
finito natildeo eacute efetivamente negado e portanto natildeo vai aleacutem de si mesmo no seu outro que natildeo
seja indiferente a ele O que aiacute acontece eacute que o finito eacute negado tem um fim E entatildeo um novo
finito surge no lugar do anterior Esse novo finito tambeacutem eacute negado e assim um outro finito
surge e esse processo se reproduz de modo infinito Hegel denomina de maacute infinitude esse
processo322
ldquoA negaccedilatildeo em geral a qualidade o limite podem se conciliar com seu outro o ser-
aiacute tambeacutem o nada abstrato eacute abandonado para si como abstraccedilatildeo mas a finitude eacute como a
negaccedilatildeo fixada em si e estaacute por conseguinte rudemente defronte de seu afirmativo O finito
pode se deixar levar no fluxo ele eacute isto mesmo ser determinado ao seu fim mas somente ao
seu fim -- eacute antes o recusar se deixar levar afirmativamente ao seu afirmativo ao infinito e se
deixar ligar a ele encontra-se posto como inseparaacutevel de seu nada e com isto toda
conciliaccedilatildeo com seu outro com o afirmativo estaacute cortadardquo323
De um lado portanto temos um finito negado e de outro lado um finito afirmado O
finito assim natildeo tem inscrito nele mesmo o perecer Ele eacute tatildeo positivo quanto o outro finito
que se afirma no lugar daquele que foi negado O finito torna-se assim um absoluto Essa eacute a
321 Ibidem p 116 trad p 166
322 GW 20 E sect 94 p 130 trad p 189
323 GW 21 p 117 trad p 166-167 (ldquodie Negation uumlberhaupt Beschaffenheit Grenze vertragen sich mit ihrem Andern dem Daseyn auch das Abstracte Nichts wird fuumlr sich als Abstraction aufgegeben aber Endlichkeit ist die als an sich fixirte Negation und steht daher seinem Affirmativen schroff gegenuumlber Das Endliche laumlsst sich so in Fluszlig wohl bringen es ist selbst diszlig zu seinem Ende bestimmt zu seyn aber nur zu seinem Ende -- es ist vielmehr das Verweigern sich zu seinem Affirmativen dem Unendlichen hin affirmativ bringen mit ihm sich verbinden zu lassen es ist also untrennbar von seinem Nichts gesetzt und alle Vesoumlhnung mit seinem Andern dem Affirmativen dadurch abgeschnittenrdquo)
130
conclusatildeo a que chega Hegel324 Temos aqui um finito absolutizado E por meio dessa
sucessatildeo de finitos absolutizados como que perfilados numa linha se vai ao infinito
Com efeito a alternacircncia dos finitos soacute eacute possibilitada devido agrave separaccedilatildeo do algo e de
seu outro Esse finito assim tem a contradiccedilatildeo afastada de si Sem que um deles seja negado
natildeo se pode afirmar o outro Nesses termos eacute efetivamente impossiacutevel que a infinitude seja
outra coisa que uma sucessatildeo de finitos que nunca perecem
Para que a verdadeira infinitude venha agrave luz eacute preciso que o finito efetivamente
pereccedila Do ponto de vista da loacutegica que regula o entendimento natildeo pode ser realizado o
efetivo perecer do finito Este finito determinado de acordo com o princiacutepio de natildeo-
contradiccedilatildeo se afirma sem levar em conta seu negativo Seu outro o nega apenas
exteriormente Dentro desse quadro relacionar um finito qualquer ao seu outro isto eacute aquilo
que o nega significa estabelecer uma contradiccedilatildeo mas uma contradiccedilatildeo que natildeo se resolve
positivamente Os contraditoacuterios se anulam sem que se vaacute aleacutem disso um nada vazio e
abstrato
Mas eacute justamente porque o finito eacute unilateral que ele natildeo pode se afastar da
contradiccedilatildeo Ele eacute o que eacute por ser determinado por um outro que o limita E essa relaccedilatildeo dele
com seu outro natildeo eacute exterior O finito eacute aquilo que comporta em si seu outro Nessa relaccedilatildeo a
si ele se nega e torna-se outro a partir dele mesmo O que Hegel chama de negaccedilatildeo da
negaccedilatildeo325 Nessa negaccedilatildeo interna do finito da qual surge outro o finito se torna infinito 326
324 Cf ldquoEacute uma afirmaccedilatildeo expressa que o finito eacute inconciliaacutevel e natildeo unificaacutevel com o infinito que o finito eacute posto pura e simplesmente contra o infinito Ao infinito eacute atribuiacutedo o ser o ser absoluto perante ele se manteacutem afirmado o finito como o negativo do mesmo natildeo podendo ser unificado com o absoluto permanece ele absoluto por seu lado tambeacutemrdquo (ldquoEs ist die ausdruumlckliche Behauptung daszlig das Endliche mit dem Unendlichen unvertraumlglich und unvereinbar sey das Endliche dem Unendlichen schlechthin etgegen gesetzt sey Dem Unendlichen ist Seyn absolutes Seyn zugeschrieben ihm gegenuumlber bleibt so das Endliche festgehalten als das Negative desselben unvereinbar mit dem Unendlichen bleibt es absolut auf seiner eigenen Seiterdquo) In GW 21 p 117-118 trad p 167
325 Cf GW 21 p 135 trad p 188 Aqui diga-se de passagem ocorre a mesma dialeacutetica que acabamos de observar na contradiccedilatildeo especulativa e que a seguir veremos no meacutetodo (cap 5)
326 A respeito do surgimento do infinito a partir do finito e do relacionamento interno de ambos eacute oportuno retomar o seguinte comentaacuterio de Andreas Arndt ldquoComo eacute essa a identidade em si refletida de si mesma e do contraposto (Entgegensetzung) na medida em que ela se estende por sobre si mesma e seu contraacuterio (Gegenteil) entatildeo eacute assim tambeacutem o infinito concebido que ele se estende por sobre si mesmo e seu contraacuterio Esse resultado natildeo deve poreacutem basear-se numa prevalecircncia da identidade ou da infinitude mas sim que o finito deve a partir dele mesmo e sem coaccedilatildeo exterior ser suspenso na infinitude afirmativa e nesta descobrir (herausfinden) a
131
Capiacutetulo 2 - O meacutetodo dialeacutetico-especulativo
O dialeacutetico eacute o pulso da vida em geral
Hegel327
Como tivemos oportunidade de observar nas suas Preleccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia
mais especificamente quando tratou do ceticismo Hegel se referia a termos como conceito
absoluto ideacuteia especulativa ou ideacuteia filosoacutefica mas sem efetuar uma exposiccedilatildeo mais precisa
do significado desses termos em sua filosofia Essa exposiccedilatildeo laacute natildeo se encontra obviamente
por natildeo se tratar ali do local adequado para o desenvolvimento da mesma Todavia no
contexto em que elas aparecem a saber a discussatildeo a respeito da filosofia ceacutetica podemos
mais ou menos vislumbrar qual significado esses termos possuem em sua filosofia A tiacutetulo
meramente rememorativo o contexto no qual apareciam esses termos dizia respeito agrave
investigaccedilatildeo do relacionamento porventura existente entre o ceticismo (o antigo) e a filosofia
especulativa Que o ceticismo eacute uma filosofia ambivalente no sentido de que pode ser
aproximada do pensamento especulativo e ao mesmo tempo tambeacutem ser afastada dessa
forma filosoacutefica
Hegel procurava entatildeo mostrar que o ceticismo consistia numa forma filosoacutefica que
poderia ser incorporada agrave filosofia especulativa Uma hipoacutetese que eacute bem pouco provaacutevel que
o ceacutetico pudesse considerar como vaacutelida Grosso modo a especulaccedilatildeo parecer-lhe-ia apenas
mais uma forma bastante extravagante de dogmatismo
Sem pretender avanccedilar numa discussatildeo acerca da viabilidade ou natildeo da incorporaccedilatildeo do
ceticismo agrave filosofia especulativa nem dos motivos que talvez levassem a convencer o ceacutetico
da aceitaccedilatildeo dessa hipoacutetese ou dos motivos que embasassem sua recusa interessa-nos aqui
resoluccedilatildeo da contradiccedilatildeo no finitordquo in ARNDT A Dialektik und Reflexion zur Rekonstruktion des Vernunftbegriffs Hamburg Meiner 1994 p 190
327 Vorlesungen uumlber Logik und Metaphysik Heidelberg 1817 Mitgeschrieben von FAGood ed Karen Gloy In Vorlesungen Ausgewaumlhlte Nachschriften und Manuskripte Band 11 Hamburg Meiner 1992 p 13
132
retomar a Hegel na sua Ciecircncia da Loacutegica no ponto especiacutefico onde se faz a exposiccedilatildeo do
meacutetodo especulativo a saber o capiacutetulo final do livro a Ideacuteia Absoluta328 E antes de
continuar eacute preciso deixar consignado que eacute nesse capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica que
Hegel expotildee em detalhes o significado e o funcionamento desse meacutetodo especulativo e que
segundo o que laacute ele diz eacute o que podemos apreender torna possiacutevel agrave filosofia permanecer
imune aos ataques do ceticismo Apenas como menccedilatildeo Hegel chega inclusive a mostrar nesse
mesmo capiacutetulo como por meio do meacutetodo a filosofia se potildee a salvo da criacutetica ceacutetica
mediante o tropo da regressatildeo ao infinito329 e tambeacutem no que se refere agrave discussatildeo acerca do
comeccedilo da filosofia do tropo da hipoacutetese330 Na medida em que seja necessaacuterio faremos
remissatildeo a outros momentos da Doutrina do Conceito parte da Loacutegica na qual se insere o
capiacutetulo haacute pouco mencionado A escolha desse modo de proceder se deve ao fato de que
dado seu proacuteprio caraacuteter de fechamento do livro e dessa parte especiacutefica da Loacutegica ndash a Loacutegica
Subjetiva ndash tornasse necessaacuteria e mais clara a compreensatildeo acerca do que seraacute analisado a
partir da referecircncia a outros momentos da mesma Doutrina do Conceito
Vistas as coisas do acircngulo meramente formal a Doutrina do Conceito compotildee a terceira
parte da Ciecircncia da Loacutegica apoacutes a Doutrina do Ser e a Doutrina da Essecircncia
respectivamente Mas o que nos importa reter dessa posiccedilatildeo derradeira da Doutrina do
Conceito na economia do texto da Ciecircncia da Loacutegica eacute o seu significado filosoacutefico preciso o
conceito somente eacute tratado na terceira parte da obra pois sua implementaccedilatildeo estaacute relacionada
e dependente dos desdobramentos dialeacuteticos ocorridos nos dois momentos anteriores da
mesma Loacutegica ndash os jaacute citados Doutrina do Ser e Doutrina da Essecircncia Como Hegel assinala
em vaacuterias passagens da Ciecircncia da Loacutegica e tambeacutem da Loacutegica da Enciclopeacutedia ldquoo conceito
eacute assim a verdade do ser e da essecircncia [] Enquanto o conceito se demonstrou como a
328 Cf GW 12 pp 236-253
329 Cf HP I 170-172
330 Cf HP I 173-174
133
verdade do ser e da essecircncia que a ele retornaram os dois como ao seu fundamento o
conceito inversamente se desenvolveu a partir do ser como seu fundamentordquo331
A citaccedilatildeo de Hegel acima feita confirma o que haviacuteamos haacute pouco dito que esse terceiro
momento da Loacutegica a Doutrina do Conceito surge como resultado dos desdobramentos
dialeacuteticos anteriores ndash ou na liacutengua hegeliana de um processo de determinaccedilatildeo que no caso eacute
um processo de autodeterminaccedilatildeo ndash ocorridos na Doutrina do Ser e na Doutrina da Essecircncia
Mas o que eacute contudo mais interessante e agrave primeira vista perturbador eacute o fato de que o
conceito seja considerado o fundamento do ser e da essecircncia Como pode ser possiacutevel que o
fundamento somente venha a aparecer ao final
Da perspectiva do entendimento o que comumente acontece eacute que o fundamento de uma
ciecircncia ou ainda de modo mais simples de um argumento qualquer seja posto logo no iniacutecio
e entatildeo a partir dele teremos por exemplo o desenvolvimento de uma ciecircncia ou de um
argumento A questatildeo eacute que utilizar esse tipo de procedimento no mais das vezes torna-nos
vulneraacuteveis agraves investidas do ceticismo Como impedir que um fundamento qualquer possa
estar protegido do ataque a ele feito por meio de algum dos tropos ceacuteticos
Cremos que Hegel esteja ciente dessa fraqueza da maneira tradicional de fundamentaccedilatildeo
perante a criacutetica que a mesma possa sofrer por parte do ceticismo Jaacute no primeiro paraacutegrafo da
Enciclopeacutedia ele chama a atenccedilatildeo para esse problema do fundamento ao se referir agrave
dificuldade de se instituir um comeccedilo para a filosofia ldquoporque um comeccedilo como algo
imediato faz sua pressuposiccedilatildeo ou melhor ele mesmo eacute uma pressuposiccedilatildeordquo332 Ora o que
Hegel natildeo diz mas aiacute estaacute impliacutecito eacute apenas que da mesma maneira que posso fazer uma
331 Cf GW 20 E sect159 p 174 trad cit p 288 (ldquoDer Begriff ist hiemit die Wahrheit des Seyns und des Wesens [hellip] Indem der Begriff sich als die Wahrheit des Seyns und Wesens erwiesen hat welche beide in ihm als in ihren Grund zuruumlckgegangen sind so hat er umgekehrt sich aus dem Seyn als aus seinem Grunde entwickeltrdquo) Ou ainda ldquoSob este aspecto o conceito eacute em primeiro lugar considerado em geral como o terceiro com respeito ao ser e agrave essecircncia ao imediato e agrave reflexatildeo Ser e essecircncia satildeo nessa medida os momentos de seu vir-a-ser poreacutem ele eacute o fundamento e a verdade deles como a identidade na qual soccedilobraram (untergegangen sind) e estatildeo contidos Eles estatildeo nele contidos porque ele eacute seu resultado mas natildeo estatildeo mais como ser e essecircncia eles soacute possuem essa determinaccedilatildeo na medida em que natildeo retornaram a essa sua unidaderdquo (ldquoDer Begriff ist von dieser Seite zunaumlchst uumlberhaupt als das Dritte zum Seyn und Wesen zum Unmittelbaren und zur Reflexion anzusehen Seyn und Wesen sind insofern die Momente seines Werdens er aber ist ihre Grundlage und Wahrheit als die Identitaumlt in welcher sie untergegangen und enthalten sind Sie sind in ihm weil er ihr Resultat ist enthalten aber nicht mehr als Seyn und als Wesen diese Bestimmung haben sie nur insofern sie noch nicht in diese ihre Einheit zuruumlckgegangen sindrdquo) Cf GW 12 p 11 trad p 249
332 Cf GW 20 E sect 1 p 39 trad cit p 40 (ldquoda ein Anfang als ein Unmittelbares eine Voraussetzung macht oder vielmehr selbst eine solche istrdquo)
134
pressuposiccedilatildeo um outro pode pressupor algo que se contraponha agrave primeira pressuposiccedilatildeo e
assim natildeo haacute como se decidir por uma ou por outra sem que essa decisatildeo seja considerada
arbitraacuteria
Hegel pretende que o modo de proceder com respeito agrave fundamentaccedilatildeo na Ciecircncia da
Loacutegica natildeo sofra da mesma fraqueza que acabou por levar o entendimento a tornar-se
vulneraacutevel agrave criacutetica ceacutetica Como ele declara no iniacutecio da Doutrina do Conceito o conceito333
apesar de somente vir ao final constitui o fundamento absoluto mas que esse fundamento
necessita ter-se feito como fundamento334
O conceito eacute portanto o fundamento mas ele somente poderaacute vir a lume como
fundamento a partir de um processo dialeacutetico que comeccedila com o ser e passa pela essecircncia Eacute
justamente no uacuteltimo capiacutetulo da Loacutegica a Ideacuteia Absoluta que Hegel nos apresenta esse
meacutetodo dialeacutetico que eacute o motor e o fundamento natildeo soacute de todo o desenvolvimento da Loacutegica
mas tambeacutem da sua filosofia como um todo Ocorre que esse fundamento precisa ser
justificado e ldquouma tal intelecccedilatildeo eacute ela mesma um conhecer filosoacutefico que portanto soacute incide
no interior da filosofia Uma explicaccedilatildeo preacutevia deveria por isso ser uma explicaccedilatildeo natildeo-
filosoacutefica e natildeo poderia ser mais que um tecido de pressuposiccedilotildees asseveraccedilotildees e
raciociacutenios isto eacute de afirmaccedilotildees contingentes contra as quais se poderiam sustentar com o
mesmo direito afirmaccedilotildees opostasrdquo335
Com efeito qualquer forma de explicaccedilatildeo preacutevia a respeito do fundamento implicaria que
jaacute se partisse de algo dado e injustificado sujeito portanto a ser combatido por uma outra
afirmaccedilatildeo que a ela se contraponha com o mesmo direito que a primeira Natildeo haacute como natildeo
notar nessa declaraccedilatildeo de Hegel a preocupaccedilatildeo com um possiacutevel ataque ceacutetico por meio do
333 Quando nos referimos a conceito tambeacutem podemos entender esse termo como significando natildeo apenas o conceito em sentido estrito tal como exposto na mesma Doutrina do Conceito mas tambeacutem que esse termo abranja todas as configuraccedilotildees especiacuteficas do conceito nesta terceira parte da Loacutegica ndash assim como na Doutrina do Ser e na Doutrina da Essecircncia ndash afinal a ideacuteia absoluta tambeacutem eacute conceito e eacute o que Hegel chamaraacute de o conceito adequado
334 Cf GW 12 p 11 trad p 249
335 Cf GW 20 E sect10 p 50trad cit p 49 (ldquoEine solche Einsicht ist aber selbst philosophisches Erkennen das daher nur innerhalb der Philosophie faumlllt Eine vorlaumlufige Explication wuumlrde hiemit eine unphilosophische seyn sollen und koumlnnte nicht mehr seyn als ein Gewebe von Voraussetzungen Versicherungen und Raisonnements di von zufaumllligen Behauptungen denen mit demselben Rechte die entgegengesetzten gegenuumlber versichert werden koumlnnenrdquo)
135
exerciacutecio daquilo que se poderia chamar de ldquoprinciacutepio programaacutetico do pirronismordquo opor a
todo argumento ou proposiccedilatildeo o argumento ou proposiccedilatildeo que se lhe contraponha336
A justificaccedilatildeo do fundamento eacute a maneira que o filoacutesofo encontra para evitar que a
filosofia caia viacutetima das aporias ceacuteticas Nesse contexto o comeccedilo desse processo dialeacutetico
que termina com o estabelecimento do fundamento absoluto pode ser considerado como o faz
Hegel condiccedilatildeo a partir da qual se chega ao fundamento todavia essa condiccedilatildeo que eacute o ser
natildeo eacute o incondicionado em-si e para-si337 A este soacute se alcanccedila ao final Esse comeccedilo
portanto natildeo eacute o incondicionado que condicionaria o saber dele derivado Ele eacute apenas a
condiccedilatildeo da qual se parte para ao final do percurso alcanccedilar o fundamento absoluto
Mas entatildeo algueacutem poderia perguntar De que caraacuteter se reveste esse ser que eacute o comeccedilo e
que natildeo o torna viacutetima do ceticismo A um ser posto diria entatildeo o ceacutetico se pode contrapor
um outro com o mesmo direito A resposta de Hegel eacute a seguinte este ser do qual se parte eacute
completamente indeterminado isto eacute natildeo comporta nenhuma determinaccedilatildeo em si mesmo e
nesse sentido ele eacute tambeacutem completamente abstrato338 Essa falta de determinaccedilatildeo interna e
externa que assim permite consideraacute-lo um puro imediato eacute a ldquocondiccedilatildeordquo de que a nosso ver
Hegel utiliza para afastar a filosofia de um ataque ceacutetico O comeccedilo estaria passiacutevel de ser
criticado pelo ceacutetico caso fosse um mediatizado quer dizer caso contivesse em si uma
determinaccedilatildeo algo que acarretaria a existecircncia de uma relaccedilatildeo de um para com um outro de
um determinado relacionado a outro determinado Dessa maneira natildeo teriacuteamos efetivamente
um comeccedilo pois um comeccedilo que eacute o ser no qual jaacute houvesse um conteuacutedo seria jaacute mediado
e desse modo passiacutevel da criacutetica ceacutetica
Eacute curioso notar que Hegel chame a esse puro ser imediato e indeterminado de absoluto
Mas absoluto aqui natildeo significa que estejamos na posse daquele incondicionado do qual se
derive o sistema assim como poderia ocorrer pelo menos eacute o que nos parece dizer Hegel aos
filoacutesofos dogmaacuteticos O comeccedilo tem de ser absoluto no sentido de que ldquoele natildeo permite nada
pressupor natildeo deve ser mediado por nada nem ter um fundamentordquo339 O absoluto ou o puro
336 Cf HP I 12
337 Cf GW 12 p 22 tr p263
338 Cf GW 21 59 tr p 94
339 Cf GW 21 56 trad p 91 (ldquo[] er darf so nichts voraussetzen muszlig durch nichts vermittelt seyn noch einen Grund habenrdquo) Ou ainda ldquoQue o comeccedilo comeccedilo da filosofia eacute dele natildeo pode ser tirado propriamente nenhuma determinaccedilatildeo mais precisa ou um conteuacutedo positivo para o mesmo Pois aqui no comeccedilo onde a coisa
136
ser portanto eacute o que natildeo estaacute a nada relacionado mas nessa sua indeterminaccedilatildeo ele eacute ao
mesmo tempo unilateral340 Como veremos adiante por meio da exposiccedilatildeo do meacutetodo essa
unilateralidade seraacute na terminologia da especulaccedilatildeo hegeliana suspensa mediante a
autodeterminaccedilatildeo dialeacutetica desse ser Eacute somente com a exposiccedilatildeo do meacutetodo da filosofia
especulativa que teremos talvez condiccedilotildees de melhor compreender o que eacute esse comeccedilo ao
mesmo tempo unilateral e absoluto e que aleacutem disso por estarmos fora do ciacuterculo do
entendimento estamos eacute o que pretende Hegel fora do alcance da criacutetica ceacutetica
Toda essa longa digressatildeo acerca do porquecirc o conceito constitui o terceiro momento da
Ciecircncia da Loacutegica obrigou-nos a que nos remetecircssemos a abordar a temaacutetica da
fundamentaccedilatildeo da filosofia em Hegel Desse modo pudemos comeccedilar a compreender porque
na Loacutegica hegeliana o fundamento somente se estabelece ao final apoacutes um processo dialeacutetico
de justificaccedilatildeo que tem seu iniacutecio no puro ser indeterminado Se o conceito eacute a verdade do ser
e da essecircncia na unidade de ambos no mesmo conceito pareceria estranho que se comeccedilasse
com algo que pressupotildee o conhecimento do que sejam ser e essecircncia ou como assinala Hegel
ldquoentatildeo surgiria a questatildeo do que se entende por ser e essecircncia e como os dois termos vecircm a
condensar-se na unidade do conceitordquo341
O conceito como ideacuteia absoluta fundamenta regressivamente todas as etapas do percurso
da Loacutegica Como meacutetodo estaacute na base do processo dialeacutetico que se desenrola do ser ateacute a
ideacuteia absoluta todavia soacute temos conhecimento do que eacute o meacutetodo a partir desse processo de
justificaccedilatildeo do mesmo por meio do desdobrar-se do seu conteuacutedo que nada menos eacute que o
sistema do loacutegico342
mesma ainda natildeo estaacute aiacute-presente a filosofia eacute uma palavra vazia ou uma qualquer representaccedilatildeo suposta natildeo justificadardquo (ldquoDaszlig der Anfang Anfang der Philosophie ist daraus kann eigentlich auch keine naumlhere Bestimmung oder ein positiver Inhalt fuumlr denselben genommen werden Denn die Philosophie ist hier im Anfange wo die Sache selbst noch nicht vorhanden ist ein leeres Wort oder irgend eine angenommene ungerechtfertigte Vorstellungrdquo) In GW 21 59 trad p 94
340 ldquoMas ele precisa ser do mesmo modo tomado essencialmente na sua unilateralidade de ser o puro-imediato mesmo porque ele aqui estaacute como comeccedilordquo (ldquoAber er muszlig ebenso wesentlich nur in der Einseitigkeit das Rein-Unmittelbare zu seyn genommen werden eben weil es hier als der Anfang istrdquo) In GW 21 59 trad p 94
341 Cf Werke 8 E sect159 Adendo p 305 trad citp 289 (ldquo[]so entstaumlnde die Frage was man sich unter dem Sein und was unter dem Wesen zu denken hat und wie diese beiden dazu kommen in die Einheit des Begriffs zusammengefaszligt zu werdenrdquo)
342 Cf GW 20 E sect237 pp 228-229 trad cit p 367
137
Dentro do contexto das anaacutelises precedentes podemos agora compreender porque a
exposiccedilatildeo do meacutetodo somente seja feita no capiacutetulo final do livro Cabe portanto agora
tratar mediante a anaacutelise do capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica ndash a Ideacuteia Absoluta ndash de
compreender o significado do meacutetodo especulativo meacutetodo pelo qual a filosofia eacute o que
almeja Hegel potildee-se entre outras coisas a salvo da criacutetica do ceticismo ao dogmatismo
De acordo com o exposto ficou consignado que a determinaccedilatildeo da ideacuteia ou mais
precisamente da ideacuteia absoluta envolveu um processo dialeacutetico de determinaccedilatildeo
consubstanciado no todo do percurso da Ciecircncia da Loacutegica343 Essa ideacuteia que eacute como jaacute
vimos o fundamento da Loacutegica carrega em si todas as determinaccedilotildees desdobradas no
decorrer do processo O interesse principal da filosofia eacute a ideacuteia absoluta pois esta eacute seu uacutenico
objeto e conteuacutedo Cabe agrave filosofia reconhececirc-la nas diversas configuraccedilotildees que ela assume
no seu processo de autodeterminaccedilatildeo ou particularizaccedilatildeo Mas a ideacuteia absoluta todavia ainda
que determinada por todas as figuras apresentadas no curso da Loacutegica344 mostra-se
determinada enquanto ideacuteia absoluta como forma
Nessa sua determinaccedilatildeo de forma que faz com que a ideacuteia seja portanto ldquopura e
simplesmente como a ideacuteia universalrdquo345 natildeo tem ela como forma uma oposiccedilatildeo ao conteuacutedo
como se este fosse apenas como um outro e como um dado perante a forma e que a ela se
relacionasse346 Em outras palavras a forma natildeo eacute apenas uma pura forma abstrata que tem
diante de si e em oposiccedilatildeo um conteuacutedo dado qualquer Apesar da ideacuteia absoluta apresentar-se
na sua determinidade peculiar de forma isto natildeo significa eacute o que veremos a seguir que seu
conteuacutedo seja composto de um material tomado dalhures e completamente desvinculado do
processo de autodeterminaccedilatildeo da ideacuteia Ela estaacute na origem desse processo de determinaccedilatildeo do
343 Cf GW 12 p 237 trad p 561
344 ldquoA ideacuteia como unidade da ideacuteia subjetiva e da objetiva eacute o conceito da ideacuteia para o qual a ideacuteia como tal eacute o objeto para o qual o objeto eacute ela um objeto em que vieram reunir-se todas as determinaccedilotildeesrdquo In GW 20 E sect236 p 228 trad cit p 366
345 Cf GW 12 p 237 trad p 561 (ldquoals die schlechthin allgemeine Ideerdquo)
346 Cf Ibidem p 237 trad p 561
138
conteuacutedo mas considerada contudo na sua pura essecircncia como ela se encontra incluiacuteda na
mais simples identidade em seu conceito a mesma ainda natildeo se fez aparecer como
determinaccedilatildeo da forma347 A Loacutegica segundo Hegel representa o automovimento da ideacuteia
absoluta mas que nesse efetivo movimentar-se a ideacuteia estaacute presente apenas como aquilo que
impulsiona348 o processo e na medida em que este se cristaliza em formas determinadas Eacute
como se a ideacuteia jaacute natildeo mais aiacute estivesse assim como a palavra originaacuteria ldquoque eacute uma
exteriorizaccedilatildeo mas uma tal que como exterior imediatamente desaparece na medida
justamente que existerdquo349
Ainda que preliminarmente acabamos de observar a existecircncia de uma imbricaccedilatildeo muacutetua
entre forma e conteuacutedo na ideacuteia absoluta mas o que interessa agora considerar pela anaacutelise do
meacutetodo diz respeito a o que eacute essa forma que constitui a ideacuteia e aleacutem disso uma forma que
natildeo pode ser distinguida de seu conteuacutedo mas que na sua apresentaccedilatildeo como meacutetodo seu
conteuacutedo natildeo estaacute ainda desdobrado Isto somente ocorreraacute como decorrecircncia do processo de
determinaccedilatildeo dessa forma
Segundo Hegel o meacutetodo como forma e ideacuteia universal natildeo pode ser confundido
como um simples modo de conhecer entre outros Ele eacute dotado de uma abrangecircncia bem
maior e para ser mais preciso como ldquoa alma de toda objetividade e todo conteuacutedo
determinado somente tem sua verdade na formardquo350 O meacutetodo como veremos eacute bem mais
que um simples modo de conhecer que um simples modo de conhecer determinados
conteuacutedos Ele ldquoeacute o conceito que se sabe a si mesmo que tem a si mesmo por objeto como o
absoluto tanto subjetivo quanto objetivo por conseguinte como o puro corresponder do
conceito e de sua realidade como uma existecircncia que eacute ele (o conceito) mesmordquo351
347 Cf Ibidem p 237 trad p 560
348 Vale notar que Hegel tambeacutem chama a ideacuteia absoluta de supremo e uacutenico impulso (houmlchster und einziger Trieb) Cf Ibidem p 238 trad cit p 562
349 Cf GW 12 p 237 trad 560 (ldquodas eine Aeusserung ist aber eine solche die als Aeusseres unmittelbar wieder verschwunden ist indem sie istrdquo)
350 Ibidem p 237 trad p 561 (ldquo[hellip] die Seele aller Objectivitaumlt ist und aller sonst bestimmte Inhalt seine Wahrheit allein in der Form hat rdquo)
351 Ibidem p 238 trad p 561 (ldquoist daraus als der sich selbst wissende sich als das Absolute sowohl Subjective als Objective zum Gegenstande habende Begriff somit als das reine Entsprechen des Begriffs und seiner Realitaumlt als eine Existenz die er selbst ist hervorgegangen rdquo)
139
Mas antes de prosseguir na anaacutelise da Ideacuteia Absoluta talvez seja necessaacuterio retroceder
um pouco na Loacutegica e ainda que sumariamente tratar do significado do conceito de conceito
e tambeacutem do significado de ideacuteia na filosofia hegeliana Tal remissatildeo aos momentos da
Loacutegica no qual satildeo expostos e comentados esses termos eacute relevante na medida em que assim
ficaraacute mais claro o motivo pelo qual a Ideacuteia Absoluta ndash ou o meacutetodo ndash seja considerada o
conceito que sabe a si mesmo tanto subjetiva quanto objetivamente ou ainda que o meacutetodo
seja ldquoo movimento do proacuteprio conceito [] que o conceito eacute tudo e seu movimento eacute a
atividade universal absoluta o movimento que se determina e se realiza a si mesmordquo352
Natildeo pretendemos como haacute pouco foi dito efetuar uma anaacutelise pormenorizada do
conceito hegeliano de conceito Queremos antes apenas apresentaacute-lo em suas linhas gerais e
na medida que possamos entatildeo nos municiar dos elementos suficientes para compreender
porque a ideacuteia eacute o conceito adequado353 O conceito tal como veremos aqui eacute apenas o que
poderiacuteamos chamar de conceito em sentido estrito
Assim o conceito considerado de modo geral compotildee-se de trecircs momentos
universalidade particularidade e singularidade No seu processo de determinaccedilatildeo ou
diferenciaccedilatildeo ele se daacute cada um desses momentos que mesmo considerados cada um na sua
determinaccedilatildeo proacutepria cada um deles natildeo deixa de espelhar o conceito como um todo354 Esse
processo de determinaccedilatildeo eacute segundo Hegel um processo dialeacutetico fundado no proacuteprio
conceito e mediante o qual ele se produz a partir de si mesmo e assim passa agrave realidade355
Como o conceito portanto somente se torna aquilo que por ele proacuteprio foi gerado e nesse
sentido ele eacute livre em virtude dessa sua autodeterminaccedilatildeo
352 Ibidem p 238 trad p 562 (ldquodie Bewegung des Begriffs selbst [hellip] daszlig der Begriff Alles und seine Bewegung die allgemeine absolute Thaumltigkeit die sich selbst bestimmende und selbst realisirende Bewegung istrdquo)
353 Ibidem p 44 trad p 294
354 Ibidem p32 trad p 277 e tambeacutem GW 20 E sect 160 p 177 trad p 292
355 GW 12 p 25 trad p 267
140
A determinaccedilatildeo completa do conceito como conceito total se faz por essa
diferenciaccedilatildeo de si a partir de si mesmo que conforme Hegel eacute uma dupla negaccedilatildeo ndash negaccedilatildeo
da negaccedilatildeo ndash por meio da qual o conceito se relaciona a si e assim constitui uma absoluta
identidade consigo mesmo356 Independente do conceito posto no seu momento de
universalidade todo esse processo acima descrito tambeacutem pode ser chamado de universal Eacute o
que Hegel faz ao referi-lo como a universalidade do conceito357 Desse modo o universal
pode ser tanto o processo de determinaccedilatildeo no seu todo e efetuado mediante essa negatividade
absoluta358 quanto o universal que eacute momento do conceito nessa sua mesma determinaccedilatildeo
Para que fique claro o que eacute o conceito como nele ocorrem esses trecircs momentos
constituintes do mesmo eacute preciso compreender como essa dupla negaccedilatildeo nele opera Assim
o universal primeiramente eacute o indeterminado sua determinaccedilatildeo eacute esta mas ele entatildeo torna-se
particular ao se determinar ou seja ao se negar ndash primeira negaccedilatildeo ndash esse particular por sua
vez que adveacutem da negaccedilatildeo do universal eacute entatildeo negado ndash segunda negaccedilatildeo ou negaccedilatildeo da
negaccedilatildeo ndash e dessa maneira se potildee a singularidade359 A segunda negaccedilatildeo mediante a qual
surge a singularidade leva o conceito a tornar-se novamente universal mas um universal
superior um universal que em virtude dessa negatividade absoluta pela qual o conceito eacute
relaccedilatildeo a si saiu de si ao se determinar mas termina por retornar novamente para junto de
si360 Eacute importante deixar registrado que nesse seu sair de si isto eacute nesse determinar-se do
conceito a determinidade que surgiu eacute uma diferenccedila (Unterschied) mas uma diferenccedila que
adveio do proacuteprio determinar-se do conceito361
356 Ibidem p 33 trad p 279
357 Ibidem p 33 trad p 279
358 O universal no sentido indicado tambeacutem eacute chamado de potecircncia criadora (schoumlpferische Macht) como negatividade absoluta Cf GW 12 p 36 trad p 283
359 Ibidem p 35 trad p 281
360 ldquoOra o universal do conceito natildeo eacute simplesmente algo comum ante o qual o particular tem sua consistecircncia para si mas eacute antes o que se particulariza (o que se especifica) a si mesmo e em seu outro permanece em uma imperturbada clareza junto de si mesmordquo (ldquoNun aber ist das Allgemeine des Begriffs nicht bloszlig ein Gemeinschaftliches welchem gegenuumlber das Besondere seinen Bestand fuumlr sich hat sondern vielmehr das sich selbst Besondernde (Spezifizierende) und in seinem Anderen in ungetruumlbter Klarheit bei sich selbst Bleibenderdquo) Cf Werke 8 E sect163 Adendo p 311 trad p 297
361 GW 12 p 38 trad p 285
141
A singularidade nota Hegel ao mesmo tempo que leva o conceito a retornar a si
mesmo com a negaccedilatildeo da particularidade por meio da operaccedilatildeo da negaccedilatildeo da negaccedilatildeo
tambeacutem faz com que o conceito ao se singularizar se perca362 Essa perda do conceito
esclarece Hegel diz respeito ao fato de que ele ao tornar-se singular363 ele se potildee (treten) na
realidade efetiva (Wirklichkeit) Eacute como se o conceito deixasse de ser essa dialeacutetica oriunda de
sua proacutepria atividade e se tornasse algo soacutelido e concreto Pareceria que o conceito desse
modo natildeo mais pudesse levar adiante esse processo de autodeterminaccedilatildeo Cremos que seja
nesse sentido em que haacute uma espeacutecie de cristalizaccedilatildeo do conceito por meio de sua efetiva
penetraccedilatildeo na realidade que Hegel considere haver uma perda do conceito
O conceito poderiacuteamos entatildeo dizer torna-se realidade apenas quando eleva-se agrave ideacuteia
ldquoque eacute somente a unidade do conceito e da realidaderdquo364 Uma realidade que eacute criaccedilatildeo do
proacuteprio conceito365 Mas neste momento ainda temos apenas o conceito em sua abstraccedilatildeo
Conceito abstrato aqui deve ser entendido segundo Hegel portanto no sentido de que ldquoo
elemento do conceito eacute o pensar em geral e natildeo o sensiacutevel empiricamente concreto e de outra
parte enquanto natildeo eacute ainda a ideacuteiardquo366
E uma vez feitas as consideraccedilotildees acima a respeito da estrutura do conceito cabe
agora tratar do conceito que se torna realidade ou mais precisamente da ideacuteia
O conceito stricto sensu foi o que acabamos ver tem apenas em projeto aquilo de que
a ideacuteia seraacute a realizaccedilatildeo a produccedilatildeo da objetividade que adveacutem da proacutepria atividade do
conceito como ideacuteia
362 Ibidem p 51 trad p 303
363 Hegel tambeacutem se refere agrave singularidade como a determinidade determinada
364 GW 12 p 20 trad p 262 (ldquo[hellip] welche erst die Einheit des Begriffs und der Realitaumlt ist rdquo)
365 Ibidem p 36 trad p 283
366 Cf GW 20 E sect164 p 180 trad p 299 (ldquo[]als das Denken uumlberhaupt und nicht das empirisch concrete Sinnliche sein Element theils als er noch nicht die Idee istrdquo)
142
O conceito como ideacuteia eacute tanto subjetivo quanto objetivo ldquoA ideacuteia eacute o verdadeiro em si
e para si a unidade absoluta do conceito e da objetividade Seu conteuacutedo ideal natildeo eacute outro que
o conceito em suas determinaccedilotildees seu conteuacutedo real eacute somente a exposiccedilatildeo do conceito que
ele se daacute na forma de um ser-aiacute exterior e estando essa figura incluiacuteda na idealidade do
conceito na sua potecircncia assim se manteacutem na ideacuteiardquo367
A subjetividade da ideacuteia natildeo pode ser tomada como aquela que se relacionasse a um
objeto que fosse independente da proacutepria atividade subjetiva A determinaccedilatildeo da objetividade
eacute fruto da atividade subjetiva como negatividade absoluta O que eacute posto eacute posto pelo sujeito
torna-se diferente dele mas esse diferente retorna agrave identidade com o sujeito por meio dessa
negaccedilatildeo autoreferencial A objetividade assim natildeo estaacute afastada e separada do sujeito que a
ela se relaciona Natildeo temos aqui um sujeito como uma mera forma abstrata que exteriormente
se relacionasse a um objeto dado O sujeito se determina ndash e nesse sentido ele eacute autofinalidade
e impulso ndash e nessa sua atividade a objetividade toma forma e adquire subsistecircncia ao estar
perpassada pelo sujeito368 A objetividade dessa maneira tem sua consistecircncia e sentido
vinculada agrave atividade subjetiva da qual se originou e agrave qual retorna por meio desse processo
dialeacutetico imanente
O conceito realizado da ideacuteia se apresenta de modo condensado nessa unidade do
conceito e da objetividade na qual estaacute resolvido (aufgeloumlszligst) o processo de determinaccedilatildeo da
ideacuteia processo pelo qual a ideacuteia eacute ldquo [] a relaccedilatildeo da subjetividade sendo para si do simples
conceito e de sua objetividade distinta dela [] Ela eacute como essa relaccedilatildeo o processo de se
separar (dirimieren) na individualidade e na natureza inorgacircnica desta e de trazer novamente
essa por sob o poder (Gewalt) do sujeito e de retornar agrave primeira simples universalidade A
identidade da ideacuteia consigo mesma eacute uma e a mesma coisa com o processordquo369
367 Cf Ibidem E sect213 p 215 trad p 348 (ldquoDie Idee ist das Wahre an und fuumlr sich die absolute Einheit des Begriffs und der Objectivitaumlt Ihr ideeller Inhalt ist kein anderer als der Begriff in seinen Bestimmungen ihr reeller Inhalt ist nur seine Darstellung die er sich in der Form aumluszligerlichen Daseyns gibt und diese Gestalt in seiner Idealitaumlt eingeschlossen in seiner Macht so sich in ihr erhaumlltrdquo)
368 GW 12 p 176 trad p 475-476
369 Ibidem p 177 trad p 476-477 (ldquo[] die Beziehung der fuumlr sich seyenden Subjectivitaumlt des einfachen Befriffs und seiner davon unterschiedenen Objectivitaumlt [] Sie ist als diese Beziehung der Proceszlig sich in die Individualitaumlt und in deren unorganische Natur zu dirimiren und wieder diese unter die Gewalt des Subjects
143
A par das exposiccedilotildees efetuadas a respeito do conceito como conceito e da ideacuteia torna-
se mais faacutecil eacute o que cremos apreender o significado desse meacutetodo que eacute o movimento do
conceito em sua maior amplitude do conceito que se autodetermina e dessa maneira
perpassa e daacute forma agrave objetividade que como jaacute tivemos oportunidade de observar eacute fruto de
sua proacutepria atividade Pela atividade conceitual do meacutetodo atuante em cada coisa a razatildeo
pode por meio de si proacutepria encontrar e reconhecer a si mesma em tudo370
Cabe agora contudo avanccedilar propriamente na analise do meacutetodo isto eacute na anaacutelise
daquilo em que consiste a operaccedilatildeo efetiva desse meacutetodo por meio do qual o conceito se
realiza
Com efeito no iniacutecio de sua exposiccedilatildeo do ldquomecanismordquo de funcionamento do meacutetodo
Hegel nos chama a atenccedilatildeo para o fato de que as determinaccedilotildees que constituem o conceito e
suas relaccedilotildees tem de ser consideradas agora no seu significado de determinaccedilotildees do meacutetodo
As determinaccedilotildees do conceito a saber universalidade particularidade e singularidade eacute o
que adiante veremos reaparecem como as determinaccedilotildees que articulam o meacutetodo
A universalidade
Assim para comeccedilar do comeccedilo como jaacute o proacuteprio Hegel pede371 eacute preciso que
compreendamos o que eacute esse comeccedilo a partir do qual se inicia a determinaccedilatildeo do conceito
como ideacuteia absoluta
No comeccedilo o que pode entatildeo haver No comeccedilo apenas haacute um imediato e um
imediato que como determinaccedilatildeo conceitual ldquotem o sentido e a forma da universalidade
abstratardquo372
zuruumlckzubringen und zu der ersten einfachen Allgemeinheit zuruumlckzukehren Die Identitaumlt der Idee mit sich selbst ist ein mit dem Processerdquo)
370 Ibidem p 238 trad p 562
144
Anteriormente tivemos oportunidade de observar373 na importante questatildeo acerca do
comeccedilo da filosofia que somente torna-se possiacutevel cogitar de um comeccedilo que natildeo seja
arbitraacuterio e nesta medida seria ele totalmente vulneraacutevel agrave criacutetica ceacutetica se esse comeccedilo
implique a total falta de pressuposiccedilotildees ou como prefere Hegel que jaacute natildeo seja um mediado
e por isso entatildeo estaria em relaccedilatildeo com um outro A mediaccedilatildeo envolve a relaccedilatildeo de um para
com um outro Se pensarmos por conseguinte no tropo da relatividade o que faz o ceacutetico
Ele mostra por meio desse tropo que as coisas em geral (natildeo importa se sensiacuteveis ou
inteligiacuteveis) acabam aparecendo sempre numa determinada relaccedilatildeo entre elas que essa
relatividade de todas as coisas afasta a hipoacutetese da constituiccedilatildeo de algo natildeo-relativo logo
absoluto Nesse sentido compreendemos a preocupaccedilatildeo de Hegel com a necessidade de um
comeccedilo que natildeo seja mediado Por isso a declaraccedilatildeo tanto no comeccedilo da Ciecircncia da Loacutegica
quanto no seu uacuteltimo capiacutetulo A Ideacuteia Absoluta a respeito do comeccedilo consistir em um
imediato
O imediato eacute sem pressupostos portanto ele natildeo eacute posto pois caso assim o fosse
seria um mediado Mas se ele eacute imediato diria o ceacutetico ele eacute um posto e como tal eacute possiacutevel
que um outro seja imediatamente contraposto a ele com o mesmo direito Ocorre aqui no
entanto que Hegel natildeo pensa o imediato nesses termos Imediato segundo ele eacute o abstrato e
o completamente indeterminado Se ele eacute imediato eacute o que o proacuteprio significado da palavra
nos diz eacute porque eacute natildeo-mediado A mediaccedilatildeo envolve a determinaccedilatildeo logo se temos o
imediato temos o indeterminado No comeccedilo soacute temos o indeterminado ldquo[] porque o
comeccedilo como comeccedilo do pensar deve ser totalmente abstrato universal totalmente forma
sem nenhum conteuacutedordquo374
Esta universalidade que constitui o comeccedilo por ser imediata e indeterminada
possuiraacute e de acordo com a discussatildeo em torno do comeccedilo da Loacutegica375 tambeacutem no meacutetodo
o significado do ser376
371 Cf Ibidem p 239 trad p 563
372 Ibidem p 239 trad p 563 (ldquo[] den Sinn und die Form abstracter Allgemeinheit hatrdquo)
373 Ver a propoacutesito nossa discussatildeo a respeito do comeccedilo da filosofia agraves paacuteginas 132-137
374 GW 21 p 60 trad p 95 (ldquo[hellip] weil der Anfang als des Denkens ganz abstract ganz allgemein ganz Form ohne allen Inhalt seyn sollrdquo
375 Cf GW 21 ldquoCom que tem de ser feito o comeccedilo da ciecircnciardquo (ldquoWomit muszlig der Anfang der Wissenschaft gemacht werdenrdquo) pp 53-65 trad pp 87-101
145
Nessa aproximaccedilatildeo da universalidade imediata com o ser haacute dois aspectos a serem
considerados em primeiro lugar o fato do meacutetodo ser o ponto de chegada de toda a Loacutegica e
ao mesmo tempo seu fundamento em segundo lugar o caraacuteter abstrato e indeterminado do
puro ser
Com respeito ao primeiro aspecto haacute que se lembrar o que jaacute foi comentado acerca do
fundamento se constituir apenas ao final do processo de determinaccedilatildeo do conceito na
Loacutegica377 O fundamento natildeo pode ser dado no comeccedilo porque o comeccedilo tem de ser o
imediato e por conseguinte indeterminado O comeccedilo que jaacute fosse o fundamento pareceria
segundo Hegel uma espeacutecie de pressuposiccedilatildeo arbitraacuteria De fato o fundamento estaacute presente
e atuante no iniacutecio todavia sua posiccedilatildeo efetiva como fundamento precisa ser justificada e
essa justificaccedilatildeo na sua completude necessita do desdobramento dialeacutetico que constitui todo o
percurso da Loacutegica ateacute que se atinja o fundamento Nesse ponto de chegada que eacute o
fundamento faz-se a conexatildeo com o comeccedilo E no comeccedilo noacutes temos o puro ser imediato
que vai se determinar de acordo com esse meacutetodo (ou fundamento) que eacute imanente ao
mesmo Desse modo eacute o que nos parece fica em parte explicada a aproximaccedilatildeo que Hegel
faz da universalidade imediata que constitui o meacutetodo em seu comeccedilo com o ser
Em relaccedilatildeo ao segundo aspecto o comeccedilo se faz com o ser porque como jaacute vimos ele
eacute a completa falta de determinaccedilatildeo sem nenhuma mediaccedilatildeo e portanto natildeo relacionado a
nenhum outro Esse comeccedilo em virtude de sua indeterminaccedilatildeo e abstraccedilatildeo eacute um comeccedilo
absoluto ldquoo que constitui o comeccedilo o comeccedilo mesmo tem de ser tomado por conseguinte
como um algo que natildeo pode ser analisado tem de ser tomado em sua simples imediatez natildeo
preenchida portanto como ser como o completamente vaziordquo378
O ser diriacuteamos por nossa conta eacute essa determinidade da indeterminaccedilatildeo que preenche
os requisitos para que se constitua em comeccedilo O ser na sua absoluta vacuidade cumpre a
contento a sua obrigaccedilatildeo de constituir o ponto zero do processo de determinaccedilatildeo do conceito
loacutegico
376 Cf GW 12 p 239 trad p 564
377 Ver a respeito pp 132-137
378 GW 21 p 62 trad p 97 (ldquoWas den Anfang macht der Anfang selbst ist daher als ein Nicht-analysirbares in seiner einfachen unerfuumlllten Unmittelbarkeit also als Seyn als das ganz Leere zu nehmenrdquo)
146
E o que temos entatildeo no ser que estaacute no comeccedilo Apenas a relaccedilatildeo abstrata a si
mesmo379 O ser assim como o universal e como universal imediato eacute a negaccedilatildeo completa de
toda determinaccedilatildeo e na medida em que nega todo outro volta-se para si e entatildeo apenas se
relaciona a si mesmo Essa relaccedilatildeo abstrata a si constitui-se em virtude dessa completa falta
de determinaccedilatildeo
Dessa indeterminaccedilatildeo e abstraccedilatildeo do ser o meacutetodo pode cumprir ldquoa exigecircncia de
realizaccedilatildeo do conceito em geral que natildeo reside no proacuteprio comeccedilo mas que eacute antes a meta e
a tarefa de todo ulterior desenvolvimento do conhecerrdquo380
Mas se o ser eacute o imediato que na sua relaccedilatildeo a si eacute vazia e inteiramente
indeterminada como se pode efetivamente dar esse processo de determinaccedilatildeo pelo qual o
conceito se realiza
Segundo Hegel o ser tem a determinidade de ser simples e universal e em virtude
dessa determinidade ele eacute deficiente (mangelhaft) Eacute o meacutetodo como forma objetiva imanente
que faz com que esse comeccedilo imediato deficiente seja dotado do impulso que o faz se
conduzir adiante no processo de determinaccedilatildeo desse ser inicial381
Jaacute vimos quando tratamos do significado do conceito de conceito382 que no iniacutecio do
seu processo ndash em si mesmo dialeacutetico ndash de autodeterminaccedilatildeo o conceito como universal por
sua proacutepria abstraccedilatildeo eacute incompleto383 E este universal abstrato do iniacutecio do meacutetodo que
tambeacutem eacute conceito eacute do mesmo modo incompleto Essa incompletude do universal se
apresenta na forma de uma negaccedilatildeo que o afeta384 Ora essa negaccedilatildeo que o afeta eacute a mesma
que estaacute presente na determinaccedilatildeo do ser no iniacutecio da Loacutegica Natildeo nos esqueccedilamos que o
universal abstrato como Hegel nos indicou tem o mesmo significado que o ser385 Tanto o ser
379 Cf GW 12 p 239 trad p 564
380 Ibidem p 240 trad p 564 (ldquo[] die Foderung der Realisirung des Begriffs uumlberhaupt gemeynt welche nicht im Anfange selbst liegt sondern vielmehr das Ziel und Geschaumlfte der ganzen weitern Entwicklung des Erkennens istrdquo)
381 Cf Ibidem p 240 trad p 565
382 Ver a respeito pp 139-141
383 Cf GW 12 p 24 trad p 267
384 Cf Ibidem p 240 trad p 565
385 Cf Ibidem p 239 trad p 564
147
como o universal satildeo indeterminados e completamente vazios logo eles natildeo satildeo nada Seraacute
somente no processo determinaccedilatildeo desse universal nele mesmo que esse universal inicial se
torna concreto e deixa para traacutes essa unilateralidade que tem como abstrato386 Se no iniacutecio
natildeo podemos ter uma totalidade concreta isto se deve ao caraacuteter deficiente do comeccedilo que
somente teraacute condiccedilotildees de ser sanado na determinaccedilatildeo progressiva do conceito de acordo
com o meacutetodo absoluto que ldquotoma o determinado como seu proacuteprio objeto visto que ele (o
meacutetodo) eacute o princiacutepio e a alma imanente delerdquo387
De acordo com as anaacutelises precedentes natildeo haacute como supor que desde o iniacutecio do
processo o absoluto esteja posto Eacute justamente isso que Hegel faz questatildeo de ressaltar O
iniacutecio eacute apenas um momento abstrato e unilateral Soacute com a autodeterminaccedilatildeo do universal o
conceito deixa de ser em-si e tornar-se para-si de modo que o universal seja igualmente
singular e sujeito388 ldquoSomente em seu acabamento (Vollendung) ele eacute o absolutordquo389
Do universal para o particular
Nesse processo de determinaccedilatildeo do conceito da ideacuteia absoluta (ou meacutetodo) o
universal imediato torna-se um particular ldquo[] o imediato inicial eacute posto como mediado
relacionado a um outro []rdquo390 Temos aqui o primeiro negativo isto eacute o particular que nega
esse universal imediato Esse segundo que surge o particular na sua negaccedilatildeo desse primeiro
no processo de determinaccedilatildeo o imediato conserva-o e o manteacutem em si391 Nessa negaccedilatildeo natildeo
ocorre portanto adverte Hegel aquilo que usualmente eacute resultado da dialeacutetica como meacutetodo
386 ldquoNatildeo haacute tambeacutem por isso seja na realidade efetiva ou em pensamento nada tatildeo simples e tatildeo abstrato como usualmente se imaginardquo Cf GW 12 p 240 trad p 565 (ldquoEs gibt deswegen auch es sey in der Wirklichkeit oder in Gedanken kein so Einfaches und so Abstractes wie man es sich gewoumlhnlich vorstelltrdquo)
387 GW 12 p 241 trad p 567 (ldquo[hellip] nimmt das Bestimmte aus ihrem Gegenstande selbst da sie selbst dessen immanentes Princip und Seele istrdquo)
388 GW 12 p 241 trad p 566
389 GW 12 p 241 trad p 566 (ldquoNur in seiner Vollendung ist es das Absoluterdquo)
390 GW 12 p 244 trad p 571 (ldquo[hellip] das zuerst Unmittelbare hiemit als Vermitteltes bezogen auf ein andres [hellip] ist rdquo)
391 Ibidem p 245 trad p 571
148
subjetivo a saber que a negaccedilatildeo que adveacutem seja meramente vazia o negativo vazio ou o
nada sem nenhum conteuacutedo Abrindo um parecircnteses uma espeacutecie de negaccedilatildeo que ocorre por
exemplo no ceticismo392 No que respeita agrave negaccedilatildeo atuante no meacutetodo o que foi negado
para que surgisse o particular continua a determinaacute-lo Como mediado o particular eacute fruto
dessa determinaccedilatildeo do universal como particular
Mas o particular acrescenta Hegel natildeo eacute apenas a determinaccedilatildeo negativa ou mediada
ela eacute aleacutem disso a mediadora (die Vermittelnde)393 Aqui ainda contudo natildeo nos deteremos
mais pormenorizadamente nesse aspecto de mediador que estaacute embutido no particular
Quando tratarmos mais a frente da negaccedilatildeo da negaccedilatildeo aiacute entatildeo ficaraacute claro porque estamos
aqui diante de uma determinaccedilatildeo mediadora Antes disso interessa inicialmente a Hegel
indicar que essa segunda determinaccedilatildeo o particular eacute o outro de um outro Nesse sentido
Hegel denomina o particular como sendo em sua verdade uma relaccedilatildeo ou relacionamento
(Beziehung oder Verhaumlltniszlig)394 Realmente haacute uma relaccedilatildeo da primeira com a segunda
determinaccedilatildeo e eacute preciso segundo Hegel insistir que essa relaccedilatildeo natildeo eacute meramente exterior
como se esse outro fosse indiferente (gleichguumlltig) com respeito ao primeiro395 A relaccedilatildeo com
seu outro isto eacute da segunda determinaccedilatildeo com a primeira constitui uma relaccedilatildeo que se daacute
num uacutenico ldquoobjetordquo O universal que se determina em um outro o particular e assim sai de si
natildeo deixa por esse mesmo motivo de estar em um outro que eacute parte dele mesmo A relaccedilatildeo
entre o positivo e o negativo natildeo eacute jaacute dissemos de exterioridade ao contraacuterio eles satildeo um soacute
o positivo contido no negativo que veio a ser no processo de determinaccedilatildeo Esse
392 ldquoTrata-se com efeito do ceticismo que vecirc sempre no resultado o puro nada tatildeo-somente e abstrai do fato de que esse nada eacute determinadamente o nada daquilo do qual ele procede Mas o nada considerado apenas como o nada daquilo do qual procede eacute na realidade o resultado verdadeiro Eacute pois um nada determinado e possui um conteuacutedo O ceticismo que termina com a abstraccedilatildeo do nada e da vacuidade natildeo pode avanccedilar aleacutem dessa abstraccedilatildeo mas deve esperar que algo de novo se lhe ofereccedila para lanccedilaacute-lo no mesmo abismo vaziordquo No original ldquoSie ist nemlich der Skepticismus der in dem Resultate nur immer das reine Nichts sieht und davon abstrahirt daszlig diszlig Nichts bestimmt das Nichts dessen ist woraus es resultirt Das Nichts ist aber nur genommen als das Nichts dessen woraus es herkoumlmmt in der That das wahrhafte Resultat es ist hiemit selbst ein bestimmtes und hat einen Inhalt Der Skepticismus der mit der Abstraction des Nichts oder der Leerheit endigt kann von dieser nicht weiter fortgehen sondern muszlig es erwarten ob und was ihm etwa neues sich darbietet um es in denselben leeren Abgrund zu werfenrdquo In GW 9 p 57 trad Vaz p 51
393 Cf GW 12 p 245 trad p 572
394 Cf Ibidem p 245 trad p 572
395 Cf Ibidem p 245 trad p 572
149
relacionamento umbilical dos opostos eacute segundo Hegel ldquoa contradiccedilatildeo a dialeacutetica posta de si
proacutepria (da determinaccedilatildeo)rdquo396
Logo a seguir Hegel trata do significado que essa dialeacutetica assume tanto considerada
pelo lado do universal quanto considerada pelo lado do particular Conveacutem de passagem
notar que o que preside esse processo mas ainda sem ser citada eacute a negatividade absoluta
Assim o que temos no universal imediato ou como tambeacutem a ele se refere Hegel no
conceito em si Temos nesse momento inicial em geacutermen o negativo e o momento dialeacutetico
presente nesse iniacutecio consiste nisto ldquoque a diferenccedila (Unterschied) que ele (o conceito)
conteacutem em si nele estaacute postardquo397
Com respeito ao outro o efetivamente determinado a diferenccedila o momento dialeacutetico
consiste na posiccedilatildeo da unidade que nele estaacute contida mas que ainda natildeo estaacute posta398 Ela a
unidade se potildee com a negaccedilatildeo do primeiro negativo o particular A negaccedilatildeo da negaccedilatildeo eacute a
suspensatildeo da contradiccedilatildeo399 Na terminologia do conceito poderiacuteamos dizer que a suspensatildeo
da contradiccedilatildeo consiste na posiccedilatildeo da singularidade por meio da reflexatildeo do conceito em si
mesmo a partir de sua determinidade400 Essa atividade do conceito eacute conduzida pela
negatividade absoluta401 que faz com que tenhamos na singularidade o retorno ao universal
soacute que agora um universal superior natildeo mais imediato e vazio mas agora efetivamente
concreto
Na consideraccedilatildeo desse silogismo que eacute o movimento do conceito observa Hegel a
primeira premissa corresponde ao momento da universalidade e agrave segunda premissa ao
momento da singularidade Ditas as coisas desse modo torna-se um tanto vaga a compreensatildeo
do que sejam essa universalidade e singularidade da primeira e da segunda premissas de todo
o silogismo Aleacutem disso Hegel se refere agrave primeira premissa como analiacutetica e a segunda
396 Cf Ibidem p 245 trad p 572 (ldquo[hellip] der Widerspruch die gesetzte Dialektik ihrer selbst rdquo) Ver tambeacutem a propoacutesito da contradiccedilatildeo pp 84-88
397 Cf Ibidem pp 245-246 trad p 572 (ldquodaszlig die Unterschied den es an sich enthaumllt in ihm gesetzt wirdrdquo)
398 Cf Ibidem p 246 trad p 572
399 Cf Ibidem p 246 trad p 573
400 Cf Ibidem p 49 trad p 300
401 Ou como ainda a denomina Hegel o ponto de virada (der Wendungspunkt) do movimento do conceito Cf Ibidem p 246 trad p 573
150
como sinteacutetica Mas eacute justamente com base nessa dupla denominaccedilatildeo das premissas
denominaccedilatildeo que tambeacutem eacute utilizada para o meacutetodo em si mesmo que talvez fique mais claro
o significado de universalidade e singularidade quando referidas agraves premissas do silogismo
Com efeito o meacutetodo por um lado eacute analiacutetico pois ldquoa ulterior determinaccedilatildeo de seu
universal inicial se encontra somente nele eacute a absoluta objetividade do conceito da qual ele
(o meacutetodo) eacute a certezardquo402 por outro lado o meacutetodo eacute sinteacutetico ldquona medida em que seu
objeto determinado imediatamente como universal simples mediante a determinidade que ele
proacuteprio tem na sua imediatez e universalidade mostra-se como um outrordquo403
Detenhamo-nos primeiro no aspecto analiacutetico do meacutetodo Por ele nossa atenccedilatildeo natildeo
estaacute voltada como no caso do aspecto sinteacutetico para a determinaccedilatildeo efetiva do universal esse
mostrar-se como um outro do mesmo Importa antes aqui salientar que o meacutetodo eacute
absolutamente objetivo em virtude dessa sua capacidade inerente de a partir de si gerar seu
proacuteprio progredir e desenvolvimento Na sua relaccedilatildeo negativa a si o meacutetodo daacute andamento a
esse processo de determinar-se que ao final faz com que se torne novamente idecircntico e igual
a si Dessa maneira ele eacute universal404 Numa outra passagem Hegel indica com respeito ao
caraacuteter analiacutetico do meacutetodo que ele representa a proacutepria relaccedilatildeo no conceito O que isto pode
significar Significa que o meacutetodo como a proacutepria relaccedilatildeo estaacute pensado na sua unidade ou
melhor dizendo nessa relaccedilatildeo negativa a si que se resolve no universal Ao chamar o meacutetodo
de analiacutetico Hegel eacute o que nos parece pretende pocircr o acento nessa unidade do conceito que
eacute o universal e uma unidade que ao mesmo tempo representa esse autorelacionar-se
(Selbstbezuumlglichkeit) do conceito todavia num acircmbito global
Com respeito agora ao outro aspecto o acento recai natildeo nessa unidade e identidade a
si do conceito que conteacutem em si como virtualidade a determinaccedilatildeo mas sim no proacuteprio
determinar-se do universal e com isso nesse seu fazer-se outro por meio da negaccedilatildeo ateacute
constituir-se numa singularidade Aqui importa fundamentalmente aponta para a efetiva
402 Cf Ibidem p 242 trad p 567 (ldquodie weitere Bestimmung ihres anfaumlnglichen Allgemein ganz allein in ihm findet ist die absolute Objectivitaumlt des Begriffes deren Gewiszligheit sie istrdquo)
403 Cf Ibidem p 242 trad p 567 (ldquoindem ihr Gegenstand unmittelbar als einfaches allgemeines bestimmt durch die Bestimmtheit die er in seiner Unmittelbarkeit und Allgemeinheit selbst hat als ein Anderes sich zeigtrdquo)
404 Cf Ibidem p 16 trad p 255
151
atividade de determinaccedilatildeo a partir da qual um outro concretamente surge e se singulariza no
movimento da dupla negaccedilatildeo
O procedimento dialeacutetico do meacutetodo consiste nisso a saber nessa implicaccedilatildeo muacutetua
das determinaccedilotildees do analiacutetico e do sinteacutetico nele presentes Haacute portanto tanto esse
movimento de sair de si do universal inicial e pelo qual se determina como o outro de si
mesmo (o momento sinteacutetico) quanto o retorno ao universal ou agrave unidade de si a partir do
processo de determinaccedilatildeo (momento analiacutetico)405
Dentro do contexto das anaacutelises precedentes talvez fique mais faacutecil entender porque
1) a primeira premissa do silogismo eacute considerada analiacutetica e corresponde ao momento da
universalidade 2) a segunda premissa eacute considerada sinteacutetica e corresponde ao momento da
singularidade
Com relaccedilatildeo agrave primeira premissa Hegel sublinha a universalidade objetiva da mesma
ao notar que o imediato inicial se relaciona imediatamente ao seu outro no qual passou e com
o qual estaacute assim identificado Na universalidade da primeira premissa sabe-se que haacute uma
relaccedilatildeo de um para com seu outro pois a unidade adveacutem dessa relaccedilatildeo e como diz Hegel
dessa comunicaccedilatildeo (Mittheilung)406 E o momento dialeacutetico desse universal consiste
justamente em pocircr essa diferenccedila que aiacute estaacute contida mas de modo latente407
Eacute na segunda premissa que essa diferenccedila estaacute posta a partir dessa relaccedilatildeo do negativo
consigo mesmo a relaccedilatildeo constitutiva dessa mesma premissa Determinada como
singularidade originada portanto da negaccedilatildeo do particular (a segunda negaccedilatildeo) essa
premissa como singularidade aparece inicialmente como se na relaccedilatildeo com o outro ela fosse
apenas por si e diversa408 excludente da outra determinaccedilatildeo a ela relacionada Como sinteacutetica
405 Eacute uacutetil citar neste momento o comentaacuterio de Rainer Schaumlfer a respeito desse vai-e-veacutem entre o sinteacutetico e o analiacutetico no desenvolvimento dialeacutetico do meacutetodo ldquo Dialeacutetica eacute o duplo conhecimento que algo eacute igual a si (momento analiacutetico) na medida em que se altera (sich veraumlndert) (momento sinteacutetico) e que algo ao se alterar eacute consigo mesmo igual isto eacute consigo mesmo torna-se igual Essa constituiccedilatildeo simultacircnea da mesmidade (Selbigkeit) na outridade (Andersheit) e da outridade na mesmidade mostra que o processo analiacutetico natildeo eacute pensaacutevel sem o sinteacutetico e o sinteacutetico natildeo eacute pensaacutevel sem o analiacuteticordquo In Schaumlfer R Die Dialektik und ihrehellip p 259
406 Cf GW 12 p 246 trad p 574
407 Cf Ibidem p 245-246 trad p 572
408 A singularidade como diversa aqui deve ser entendida de acordo com a determinaccedilatildeo reflexiva da diversidade exposta agraves pp 108-113
152
a segunda premissa traz ao primeiro plano esse passar de um no outro a realizaccedilatildeo da divisatildeo
de si do imediato com a posiccedilatildeo do outro409 Esse outro posto pela atividade do conceito
aparece como por si diverso e excludente pois antes de tornar-se singularidade ele antes eacute
particular O particular surge portanto como um diverso com respeito ao universal imediato
contudo no processo da dupla negaccedilatildeo esse particular se determina como singular e como
suspensatildeo da contradiccedilatildeo entre universal imediato e particular retorna agrave unidade
A volta agrave unidade corresponde a um retorno agrave imediatez a partir da mediaccedilatildeo ldquoo
imediato poreacutem mediante a suspensatildeo da mediaccedilatildeo o simples por meio do suspender da
diferenccedila o positivo mediante o suspender do negativo o conceito que se realiza mediante o
ser-outro e mediante o suspender dessa realidade se reuniu consigo e produziu sua realidade
absoluta sua relaccedilatildeo simplesrdquo410
A divisatildeo formal do meacutetodo desde o primeiro imediato ateacute o novo retorno ao
imediato compotildee-se segundo Hegel de quatro partes o primeiro termo eacute o universal
imediato inicial o segundo corresponde ao primeiro negativo ou o particular que se
determina pela negaccedilatildeo do universal o terceiro termo corresponde ao segundo negativo ou a
negaccedilatildeo da negaccedilatildeo por fim temos o quarto termo que natildeo eacute nada mais do que o terceiro
409 ldquo[hellip] porque ela eacute a relaccedilatildeo do diverso como tal ao seu diversordquo (ldquo[] weil sie die Beziehung des Unterschiedenen als solchen auf sein Unterschiedenes istrdquo) Cf GW 12 p 246 trad p 574
410 Cf Ibidem p 248 trad p 575 (ldquodas Unmittelbare aber durch Aufhebung der Vermittlung das Einfache durch Aufheben des Unterschiedes das Positive durch Aufheben des Negativen der Begriff der sich durch das Andersseyn realisirt und durch Aufheben dieser Realitaumlt mit sich zusammengegangen und seine absolute Realitaumlt seine einfache Beziehung auf sich hergestellt hatrdquo) Ou ainda ldquoComo o inicial eacute o universal o resultado eacute entatildeo o singular concreto sujeito o que aquele eacute em si este eacute agora do mesmo modo o para si o universal estaacute posto no sujeito Os dois primeiros momentos da triplicidade satildeo os momentos abstratos natildeo-verdadeiros que por isso mesmo satildeo dialeacuteticos e por meio dessa sua negatividade se fazem sujeito O conceito eacute para noacutes inicialmente natildeo soacute o universal sendo em si como o negativo sendo para si e como tambeacutem o terceiro sendo em si e para si o universal que atravessa todos os momentos do silogismo mas o terceiro [termo] eacute a conclusatildeo na qual ele se mediatiza consigo mesmo mediante sua negatividadedeste modo eacute posto para si como o universal e idecircntico de seus momentosrdquo (ldquoWie das Anfangende das Allgemeine so ist das Resultat das Einzelne Concrete Subject was jenes an sich ist dieses nun ebensosehr fuumlr sich das Allgemeine ist im Subjecte gesetzt Die beyden ersten Momente der Triplicitaumlt sind die abstracten unwahren Momente die eben darum dialektisch sind und durch diese ihre Negativitaumlt sich zum Subjecte machen Der Begriff selbst ist fuumlr uns zunaumlchst sowohl das An sich seyende Allgemeine als dar Fuumlr sich seyende Negative als auch das Dritte an und fuumlr sich seyende das Allgemeine welches durch alle Momente des Schlusses hindurchgeht aber das Dritte ist der Schluszligsatz in welchen er durch seine Negativitaumlt mit sich selbst vermittelt hiemit fuumlr sich als das Allgemeine und Identische seiner Momente gesetzt ist rdquo) In Ibidem p 248 trad p 575
153
apenas que no seu retorno agrave imediatez portanto como segundo imediato ele pode aparecer de
um ponto de vista meramente didaacutetico como quarto nesse processo de determinaccedilatildeo411
O meacutetodo e sua determinaccedilatildeo como sistema
Uma vez feita a anaacutelise do modus operandi do meacutetodo na Ideacuteia Absoluta Hegel toca
entatildeo num tema de fundamental importacircncia a saber a constituiccedilatildeo do sistema Mais uma vez
ele retoma o diaacutelogo com os ceacuteticos pois uma de suas principais preocupaccedilotildees agora talvez a
principal eacute mostrar como na constituiccedilatildeo do sistema a partir do procedimento dialeacutetico
inscrito no meacutetodo a filosofia especulativa natildeo daacute nenhum passo atraacutes de modo que
permitisse ainda novamente abrir a guarda perante o ceacutetico
Assim do percurso de determinaccedilatildeo do conceito observado no meacutetodo a que
chegamos no final Como pudemos ver a um novo universal e no qual todo o processo se
condensa numa nova identidade que ao mesmo tempo eacute uma nova imediatez412 Seraacute a partir
desse novo imediato que justamente pela suspensatildeo da contradiccedilatildeo daacute origem a essa
determinidade simples que teremos um novo comeccedilo e daiacute entatildeo o meacutetodo se amplia na
forma de um sistema413
Isto posto a questatildeo que a nosso ver Hegel potildee e procura responder diz respeito ao
seguinte esse novo comeccedilo a que se chega adveacutem do processo de autodeterminaccedilatildeo do
meacutetodo e em virtude dessa mesma determinaccedilatildeo eacute um comeccedilo determinado Perante essa
determinidade do resultado o proacuteprio comeccedilo inicial que eacute indeterminado tambeacutem eacute um
determinado logo ldquonatildeo deve ser tomado como um imediato mas antes como mediado e
deduzidordquo414 Ora o comeccedilo como mediado e deduzido natildeo seria um comeccedilo destituiacutedo de
pressupostos e seria assim tatildeo arbitraacuterio quanto qualquer outro comeccedilo que a ele se
411 Ibidem p 247 trad p 574
412 Ibidem p 248 trad p 576
413 Ibidem p 248 trad p 576
414 Ibidem p 249 trad p 577
154
contrapusesse com o mesmo direito Hegel se refere especificamente agrave possiacutevel ocorrecircncia de
uma regressatildeo ao infinito em virtude desse caraacuteter mediado do comeccedilo415
Como combater essa possiacutevel criacutetica Abrindo um parecircnteses uma criacutetica sim
possiacutevel mas que natildeo deixa de ser mesmo assim resultado de uma maacute compreensatildeo da
filosofia especulativa Pelo menos da perspectiva hegeliana O fato eacute que Hegel se adianta em
relaccedilatildeo a seus possiacuteveis criacuteticos a nossos olhos fundamentalmente aqui o ceacutetico na tentativa
de natildeo deixar duacutevidas ou perplexidades quanto aos seus propoacutesitos Mas de volta agrave pergunta
acima feita a resposta de Hegel vai no sentido de mostrar que estamos num outro acircmbito que
aquele da filosofia do entendimento ldquoJaacute foi mostrado repetidas vezes que o progresso
infinito em geral pertence agrave reflexatildeo carente de conceito o meacutetodo absoluto que tem o
conceito como sua alma e conteuacutedo natildeo pode levar ao mesmordquo416
O ponto principal da resposta de Hegel agrave criacutetica referente ao caraacuteter determinado do
comeccedilo seja ele o comeccedilo inicial ou o comeccedilo que resulta da dialeacutetica do conceito baseia-se
na jaacute mencionada417 indeterminaccedilatildeo do conceito e sua consequumlente imediaccedilatildeo A
determinaccedilatildeo do comeccedilo e que impede ao mesmo ser considerado um mediado apresenta-se
por meio de sua indeterminaccedilatildeo Nele natildeo haacute nenhum conteuacutedo E natildeo haver conteuacutedo ou ndash o
que eacute o mesmo ndash ser indeterminado significa que natildeo seja admissiacutevel nenhuma regressatildeo
Aleacutem disso o conteuacutedo somente se origina da proacutepria determinaccedilatildeo da forma absoluta que eacute o
meacutetodo O indeterminado passa para o determinado mas o indeterminado apesar de ser um
determinado perante o outro a saber o determinado que dele resulta natildeo eacute contudo ainda a
mediaccedilatildeo no sentido de que fosse um determinado ao qual um outro pudesse ser contraposto
E no caso do comeccedilo que surge da dialeacutetica do conceito Como veremos a mesma
coisa se passa O comeccedilo imediato se determina como um outro e na negatividade absoluta
da relaccedilatildeo a si a contradiccedilatildeo posta eacute suspensa e assim se restabelece a primeira
indeterminidade418 O novo comeccedilo eacute sim um comeccedilo mediado e determinado mas ele eacute tal
somente no que se refere a ser resultado desse processo que ele traz conservado dentro dele
Esse novo comeccedilo eacute uma nova unidade que por isso mesmo constitui uma nova imediaccedilatildeo e
415 Ver de modo geral ibidem p 249 trad pp 577-578
416 Ibidem p 249 trad pp 577-578
417 Ver a respeito pp 143-147
418 Cf GW 12 p 250 trad p 579
155
dessa maneira estatildeo dadas as condiccedilotildees para que o processo siga adiante ldquoA determinidade
que era resultado eacute como se mostrou por causa da forma da simplicidade na qual ela
convergiu um novo comeccedilo na medida em que ele eacute diferente de seu [comeccedilo] precedente
justamente mediante essa determinidade o conhecer se impele (sich fortwaumllzen) de conteuacutedo
em conteuacutedo adianterdquo419 Desse novo comeccedilo vai portanto repetir-se o mesmo processo
dialeacutetico e que levaraacute ao surgimento de uma outra determinaccedilatildeo mais rica do que a anterior
ldquoO conceito no meacutetodo absoluto manteacutem-se no seu ser-outro o universal na sua
particularizaccedilatildeo no juiacutezo e na realidade ele eleva a massa inteira do seu conteuacutedo precedente
a cada degrau da sua determinaccedilatildeo ulterior e natildeo somente natildeo perde nada atraveacutes do seu
progredir dialeacutetico nem deixa nada para traacutes senatildeo que carrega tudo consigo e se enriquece e
se condensa dentro de sirdquo420
Eacute por meio desse processo que partindo do comeccedilo indeterminado se chega ao
fundamento de todo o processo Ao mesmo tempo que nos afastamos do comeccedilo estamos
novamente retornando a ele Hegel chama esse procedimento de fundamentaccedilatildeo regressiva do
comeccedilo421 Fundamento que somente eacute alcanccedilado no seu processo de justificaccedilatildeo a partir da
determinaccedilatildeo progressiva do comeccedilo indeterminado Nesse processo progressivo e ao mesmo
tempo regressivo de fundamentaccedilatildeo o meacutetodo se entrelaccedila (sich schlingt) num ciacuterculo422 E
419 Cf Ibidem p 250 trad p 579 (ldquoDie Bestimmheit welche Resultat war ist wie gezeigt worden um der Form der Einfachheit willen in welche sie zusammengegangen selbst ein neuer Anfang indem er von seinem vorhergehenden durch eben diese Bestimmtheit unterschieden ist so waumllzt sich das Erkennen von Inhalt zu Inhalt fortrdquo)
420 Cf Ibidem p 250 trad p 579 (ldquoDer Begriff in der absoluten Methode erhaumllt sich in seinem Andersseyn das Allgemeine in seiner Besonderung in dem Urtheile und der Realitaumlt es erhebt auf jede Stuffe weiterer Bestimmung die ganze Masse seines vorhergehenden Inhalts und verliert durch sein dialektisches Fortgehen nicht nur nichts noch laumlszligt etwas dahinten sondern traumlgt alles Erworbene mit sich und bereichert und verdichtet sich in sichrdquo)
421 Cf Ibidem p 251 trad p 580
422 Ibidem p 251 trad p 580 E tambeacutem a ciecircncia (Wissenschaft) desenvolvida a partir desse meacutetodo imanente circular seraacute do mesmo modo circular ldquoEm virtude da natureza do meacutetodo [que foi] indicada a ciecircncia se apresenta como um ciacuterculo entrelaccedilado em si em cujo comeccedilo o fundamento simples a mediaccedilatildeo entrelaccedila o fim do mesmo modo esse ciacuterculo eacute um ciacuterculo dos ciacuterculos pois cada membro singular como [algo] animado pelo meacutetodo eacute a reflexatildeo-em-si que na medida em que ela retorna ao comeccedilo eacute ao mesmo tempo o comeccedilo de um novo membro Fragmentos dessa cadeia satildeo as ciecircncias singulares e cada uma delas tem um antes e um depois ou para falar com mais exatidatildeo somente tem o antes e no seu silogismo mostra seu depoisrdquo No original ldquoVermoumlge der aufgezeigten Natur der Methode stellt sich die Wissenschaft als einen in sich geschlungenen Kreis dar in dessen Anfang den einfachen Grund die Vermittlung das Ende zuruumlckschlingt dabey ist dieser Kreis ein Kreis von Kreisen denn jedes einzelne Glied als Beseeltes der Methode ist die Reflexion-in-sich die indem si in den Anfang zuruumlckkehrt zugleich der Anfang eines neuen Gliedes ist
156
contra aqueles que por impaciecircncia (Ungeduld) pretendem de antematildeo encontrar-se para
aleacutem do determinado portanto desde o iniacutecio se encontrarem imediatamente no absoluto
Hegel mais uma vez nos alerta para o fracasso que estaacute agrave vista dos que querem seguir essa
via423 pois o absoluto ldquosomente se deixa apreender pela mediaccedilatildeo do conhecer do qual o
universal e imediato eacute um momento a verdade poreacutem somente eacute no percurso desenvolvido e
no finalrdquo424 O absoluto que se pusesse independente desse processo de determinaccedilatildeo que
tambeacutem eacute um processo de justificaccedilatildeo do fundamento seria um absoluto suposto (ein
gemeyntes Absolutes) um absoluto que teria tanta validade e creacutedito quanto qualquer outro
que a ele se pusesse em sentido contraacuterio Essa espeacutecie de criacutetica ceacutetica Hegel quer evitar
Uma criacutetica que dificilmente se deixa evitar quando se parte de um absoluto que natildeo foi posto
a partir do processo de fundamentaccedilatildeo que observamos no meacutetodo Mas natildeo apenas isso
Cabe ainda assinalar que quando Hegel fala em absoluto eacute o que nos parece natildeo
esteja ele se referindo a um ponto que se chegasse sem que daiacute natildeo mais se pudesse avanccedilar
adiante O absoluto eacute o proacuteprio meacutetodo ndash a ideacuteia absoluta ndash ao qual se chega por esse
processo de justificaccedilatildeo que constitui a Ciecircncia da Loacutegica Ele eacute essa atividade inerente ao
meacutetodo e pela qual o conceito se autodetermina e forma (ausbildet) o sistema da ciecircncia (Cf
GW 12 pp 252-3 trad p 582) O caraacuteter absoluto do meacutetodo eacute o que faz com que por meio
dele os resultados obtidos pelo menos eacute o que almeja Hegel natildeo sejam passiacuteveis de serem
criticados pelo ceacutetico Esse absoluto eacute fruto de um modo de proceder que considera o posto e
seu contraposto e mediante a negatividade absoluta inscrita no meacutetodo a contradiccedilatildeo posta
pode ser resolvida425 Chega-se ao absoluto no final da Loacutegica mas esse absoluto eacute como jaacute
dissemos o proacuteprio meacutetodo que incorpora a si um procedimento ceacutetico a saber esse
procedimento consistente na oposiccedilatildeo de argumentos Eacute somente pela contradiccedilatildeo dos
Bruchstuumlcke dieser Kette sind die einzelnen Wissenschaften deren jede ein Vor und ein Nach hat - oder genauer gesprochen nur das Vor hat und in ihrem Schlusse selbst ihr Nach zeigt rdquo In Ibidem p 252 trad pp 581-2
423 Ibidem p 252 trad p 581
424 Ibidem p 252 trad p 581 (ldquo[hellip] erfassen laumlszligt es sich nur durch die Vermittlung des Erkennens von der das Allgemeine und Unmittelbare ein Moment die Wahrheit selbst aber nur im ausgebreiteten Verlauf und im Ende istrdquo)
425 Tanto na Ciecircncia da Loacutegica (Cf GW 12 p 46 trad p 296) quanto na Enciclopeacutedia (sect164) Hegel natildeo deixa de apontar para o fato de que o mesmo processo dialeacutetico ocorrido com as determinaccedilotildees de reflexatildeo vai se repetir na Doutrina do Conceito com as determinaccedilotildees da universalidade particularidade e singularidade Quanto a isso citemos o referido sect 164 ldquoUniversalidade particularidade e singularidade tomadas abstratamente satildeo o mesmo que identidade diferenccedila e fundamentordquo (ldquoAllgemeinheit Besonderheit und Einzelheit sind abstract genommen dasselbe was Identitaumlt Unterschied und Grundrdquo In GW 20 p 180 trad p 299
157
opostos resolvida de acordo com o meacutetodo dialeacutetico imanente apresentado na Ideacuteia Absoluta
que eacute possiacutevel agrave ciecircncia avanccedilar e a verdade que ela alcanccedila como resultado ldquotorna-se o
comeccedilo de uma outra esfera e ciecircnciardquo426 Dessa maneira eacute a que somos levados a concluir o
processo natildeo tem de se deter necessariamente num ponto determinado ao contraacuterio o saber
alcanccedilado estaraacute sempre sujeito a ser suspenso (aufgehoben)427
Hans Friedrich Fulda dedica um ensaio a mostrar como Hegel na formulaccedilatildeo do
meacutetodo especulativo diretamente se preocupa em se sobrepor agrave criacutetica ceacutetica por meio da
integraccedilatildeo de sua dialeacutetica antinocircmica ao mesmo meacutetodo428 A possibilidade de uma filosofia
especulativa estaria assim segundo o autor assentada em um meacutetodo que na sua instacircncia
negativa tivesse em si operando a contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos e uma vez cumprido
seu papel criacutetico com relaccedilatildeo ao pensar enquanto entendimento seu trabalho seria rematado
na instacircncia especulativa do meacutetodo com a modificaccedilatildeo dos conceitos que foram ceticamente
examinados anteriormente Fulda natildeo se cansa de afirmar que a possibilidade do pensamento
absoluto pressupotildee o exerciacutecio da agogeacute ceacutetica na instacircncia dialeacutetica do meacutetodo Eacute somente
por meio desse exerciacutecio que a filosofia conseguiraacute eacute o que acredita Hegel se desvencilhar do
ceticismo stricto sensu
No comeccedilo do capiacutetulo que trata do meacutetodo ndash a ideacuteia absoluta ndash Hegel faz uma
afirmaccedilatildeo importante no que se refere agrave proacutepria ideacuteia absoluta que ldquoela eacute o uacutenico objeto e
conteuacutedo da filosofiardquo429 Aleacutem disso que a tarefa da filosofia eacute reconhececirc-la nas diversas
426 GW 12 p 253 trad pp 582-3 (ldquo[hellip] wird als letztes Resultat auch den Anfang einer andern Sphaumlre und Wissenschaftrdquo)
427 Nesse sentido eacute entatildeo pertinente aqui recordar Geacuterard Lebrun ldquoQuando interpretam o saber absoluto como o coroamento da metafiacutesica e lhe reprovam deixar fora de si uma zona de natildeo-sentido um negativo irredutiacutevel que ignoraria soberbamente ainda tecircm certeza de natildeo conceder a certas significaccedilotildees um lsquovalor isoladorsquo Assim compreendem a dialeacutetica como uma outra ontologia outra experiecircncia do ser ndash e a negatividade se torna gradualmente uma reapropriaccedilatildeo laboriosa mas sempre exitosa Mas afinal onde eacute o lugar desse ecircxito Em que lugar do percurso nos datildeo o direito de parar em uma significaccedilatildeo isolada que o totalizariardquo E veja-se ainda tambeacutem o seguinte trecho ldquoO jogo portanto natildeo paacutera nenhuma descriccedilatildeo eacute privilegiada nenhum movimento termina em um nome que resumiria seu percurso Incessante vitoacuteria do sentido tanto quanto se quiser mas tambeacutem advento da mais desconcertante noccedilatildeo de lsquosentidorsquo Estranho lsquocoroamento da metafiacutesicarsquo com efeito um discurso que natildeo paacutera de denunciar como parcial a tese que ao que parece ele vem formular ndash discurso que ao ponto final prefere o corretivo que torna a questionar a frase inteira Estranho lsquodogmatismorsquo esse interditando ao leitor jamais se repousar em um ponto fixo e sempre o deportando mais longerdquo (Lebrun G A paciecircncia do Conceito respectivamente p 307 e p 308)
428 Ver Fulda H F Philosophisches Denken in einer spekulativen Metaphysik in Paumltzold DVandejagt A (eds) Hegels Transformation der Metaphysik Koumlln Dinter 1991 pp 62-82
429 GW 12 p 236 trad p 559 (ldquoSie ist der einzige Gegenstand und Inhalt der Philosophierdquo)
158
configuraccedilotildees (Gestaltungen) que ela assume no seu processo de autodeterminaccedilatildeo430 Esse
reconhecimento se daacute portanto conforme ao meacutetodo ndash que eacute a proacutepria ideacuteia absoluta como
forma ndash e o qual foi objeto de nossa anaacutelise neste capiacutetulo O processo dialeacutetico que ocorre no
meacutetodo compotildee segundo a descriccedilatildeo hegeliana nos sectsect79-82 da Enciclopeacutedia431 de trecircs
aspectos (Seiten) atuantes em ldquotodo loacutegico-realrdquo432 Isto significa que no processo de
autodeterminaccedilatildeo da ideacuteia absoluta esses trecircs aspectos satildeo trecircs momentos que se realizam
naquilo que a cada caso se determina Assim temos em cada loacutegico-real o momento do
entendimento o dialeacutetico ou negativamente-racional e por fim o especulativo ou
positivamente-racional433
O momento do entendimento eacute aquele em que se permanece na determinidade finita e
limitada O combate a essa a essa unilateralidade do que eacute posto pelo entendimento eacute efetuado
pelo ceticismo434 operante no momento negativo-dialeacutetico do meacutetodo Eacute esse ceticismo que
atua no sentido de mostrar como jaacute observara Fulda que as determinidades postas pelo
entendimento natildeo apenas natildeo satildeo fixas como tambeacutem satildeo negadas por suas opostas que as
limitam Cabe por fim ao especulativo apreender ldquoa unidade das determinaccedilotildees em sua
oposiccedilatildeordquo435 na medida em que resolve a contradiccedilatildeo que haacute entre elas com a negaccedilatildeo das
mesmas no passar (Uebergehen) a outra coisa que nada mais eacute que o resultado Resultado que
conserva em si essas determinaccedilotildees que foram negadas no processo de Aufhebung
Fulda crecirc que esse exame efetuado no lado ceacutetico do meacutetodo eacute o que permite a
modificaccedilatildeo de conteuacutedo dos conceitos pela especulaccedilatildeo436 O exame ceacutetico bem realizado
continua ele torna possiacutevel a sistematizaccedilatildeo do que foi obtido no momento positivo-racional
do meacutetodo437
430 Cf Ibidem p 236 trad pp 559-560
431 Cf GW 20 pp 118-120 trad pp 159-169
432 GW 20 E sect79 p 118 trad p 159
433 Ibidem p 118 trad p 159
434 Hegel no sect78 da Enciclopeacutedia chama esse momento dialeacutetico de ceticismo consumado (vollbrachte Skepticismus) Cf Ibidem p 118 trad p 156
435 Ibidem p 120 trad p 166 (ldquofaszligt die Einheit der Bestimmungen in ihrer Entgegensetzung auf []rdquo)
436 Cf Fulda Philosophisches Denkenhellip p 70
437 Cf Ibidem p 70
159
Parece-nos que para Hegel a saiacuteda para natildeo se cair novamente no ceticismo estaacute
justamente em proceder como o ceacutetico Eacute claro que a partir da integraccedilatildeo de seu procedimento
agrave filosofia especulativa e deixando-se para traacutes o ponto de vista do entendimento que tambeacutem
era o do ceacutetico ao se aceitar que a negaccedilatildeo fosse abstrata E antes que o ceacutetico pudesse
novamente acusar a filosofia especulativa de parcialidade esta dado que natildeo pretende que
seus resultados natildeo possam ser superados estaacute pronta para um outro exame ceacutetico de suas
determinaccedilotildees ateacute que um novo resultado seja alcanccedilado A precipitaccedilatildeo (propeacuteteia)
dogmaacutetica tatildeo combatida pelos ceacuteticos pode entatildeo ser evitada com esse paciente exerciacutecio
dialeacutetico que acabamos de expor Se natildeo haacute porque se deter num ponto determinado de uma
vez por todas como vingar a acusaccedilatildeo de precipitaccedilatildeo Hegel deixa sempre aberta a hipoacutetese
de que a investigaccedilatildeo continue assim como o queriam os ceacuteticos Mas a despeito desse fato
cremos que mesmo assim e nosso filoacutesofo tambeacutem estaacute ciente disso seja difiacutecil que os
advogados da duacutevida terminem por concordar com ele
161
CONCLUSAtildeO
Nesta nossa pesquisa acerca da temaacutetica do ceticismo na filosofia de Hegel
procuramos ressaltar a importacircncia que ele concede ao ceticismo como procedimento criacutetico-
investigativo na constituiccedilatildeo de sua proacutepria filosofia
Nesse trajeto buscamos apontar o interesse de Hegel pela filosofia ceacutetica desde o
iniacutecio de sua carreira filosoacutefica verificaacutevel jaacute nas suas primeiras publicaccedilotildees como o escrito
sobre a Diferenccedila e o artigo sobre o ceticismo
Na apresentaccedilatildeo e anaacutelise da interpretaccedilatildeo hegeliana do ceticismo torna-se patente a
preocupaccedilatildeo do filoacutesofo em uma resposta ao desafio que o ceticismo constitui para a
elaboraccedilatildeo e sustentaccedilatildeo de sua filosofia positiva A intenccedilatildeo ceacutetica de tudo que se lhe
apresenta com valor de verdade submeter a exame visto que sem essa atitude natildeo se vecirc o
ceacutetico em condiccedilotildees de talvez poder assentir a qualquer verdade eacute vista com bons olhos por
Hegel Esse natildeo aceitar nada como dado natildeo aceitar pressupostos natildeo examinados eacute uma
exigecircncia que Hegel adota para a filosofia especulativa A questatildeo eacute que no seu exame o
ceacutetico reiteradamente mostra a limitaccedilatildeo e a falta de universalidade das verdades
pretensamente absolutas que foram objeto da sua investigaccedilatildeo Ele mostra assim que a um
discurso se pode opor um outro discurso de igual forccedila
Hegel se daacute conta dessa forccedila da criacutetica ceacutetica Que a filosofia que natildeo a considera estaacute
fadada a perecer Para responder ao ceacutetico contudo Hegel natildeo se empenhou simplesmente
em refutaacute-lo Isso seria inviaacutevel justamente porque a filosofia precisa valer-se da criacutetica ceacutetica
para se constituir Por outro lado natildeo entrava em pauta para ele adotar a posiccedilatildeo ceacutetica E isto
porque nota que o ceacutetico tambeacutem assume certos pressupostos dos quais natildeo tem consciecircncia
O seu ecircxito no combate ao dogmatismo eacute possiacutevel em virtude de exercer sua criacutetica no
domiacutenio do entendimento logo assumindo como pressuposto as regras que regulam esse
domiacutenio Assim o ceacutetico consegue contrapor discursos ou argumentos porque no acircmbito do
entendimento aquilo que eacute afirmado natildeo leva em consideraccedilatildeo o seu oposto A limitaccedilatildeo das
determinaccedilotildees postas no acircmbito do entendimento faz com que as mesmas sejam aniquiladas
com a posiccedilatildeo daquelas que se lhes contrapotildeem Aleacutem disso nesse domiacutenio vige o princiacutepio
de natildeo-contradiccedilatildeo e uma vez estabelecida a contradiccedilatildeo o resultado eacute um nada a que se
162
chega com a aniquilaccedilatildeo dos contrapostos Diante da contradiccedilatildeo o ceacutetico natildeo tem como
avanccedilar Ele natildeo vecirc que haja uma outra maneira de considerar a oposiccedilatildeo e a contradiccedilatildeo
Independente dessas limitaccedilotildees o que Hegel faz eacute incorporar reformulado o
procedimento ceacutetico de contraposiccedilatildeo de argumentos agrave sua filosofia O que ele denominou de
seu lado negativo Mas aleacutem do domiacutenio do entendimento haacute o especulativo no qual as
oposiccedilotildees e a consequumlente contradiccedilatildeo entre elas satildeo vistas de maneira positiva Natildeo se
termina aqui com a contradiccedilatildeo num nada vazio Ela se resolve positivamente pois a
negaccedilatildeo aqui atuante faz com que o movimento avance nesse sentido A possibilidade de
conseguirmos escapar da criacutetica ceacutetica estaacute vinculada portanto agrave integraccedilatildeo de sua dialeacutetica
antinocircmica agrave filosofia o que tambeacutem envolveraacute a criacutetica dos pressupostos assumidos pelo
ceticismo Assim a soluccedilatildeo que Hegel encontra para que natildeo nos tornemos alvo do ceticismo
e ao mesmo tempo natildeo tenhamos que assumir a posiccedilatildeo ceacutetica implica na incorporaccedilatildeo do
procedimento criacutetico-ceacutetico agrave filosofia
163
OBRAS DE HEGEL
HEGEL G W F Differenz des Fichteschen und Schellingschen Systems der Philosophie
In Jenaer Kritische Schriften ediccedilatildeo de Hartmut Buchner e Otto Poumlggeler Hamburg Felix
Meiner 1968 Gesammelte Werke vol 4
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830)
ediccedilatildeo de U Rameil W Bonsiepen e H-C Lucas Hamburg Felix Meiner 1992
Gesammelte Werke vol 20
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830)
ediccedilatildeo de E Moldenhauer e K M Michel Frankfurt a M Suhrkamp 1993 Werke vol 8
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Phaumlnomenologie des Geistes ediccedilatildeo de W Bonsiepen e R Heede
Hamburg Felix Meiner 1980 Gesammelte Werke vol 9
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Verhaumlltniss des Skepticismus zur Philosophie Darstellung seiner
Verschiedenen Modificationen und Vergleichung des Neuesten mit dem Alten In Jenaer
Kritische Schriften Gesammelte Werke vol 4
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie I ediccedilatildeo de E
Moldehhauer e K M Michel Frankfurt a M Suhrkamp 1986 vol 18
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie II ediccedilatildeo de E
Moldehhauer e K M Michel Frankfurt a M Suhrkamp 2003 vol 19
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Vorlesungen uumlber Logik und Metaphysik Heidelberg 1817
Mitgeschrieben von FAGood ed Karen Gloy In Vorlesungen Ausgewaumlhlte Nachschriften
und Manuskripte Band 11 Hamburg Meiner 1992
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Wissenschaft der Logik Erster Band Erstes Buch Die Lehre vom Sein
(1832) Gesammelte Werke vol 21 Hamburg Meiner 1984
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Wissenschaft der Logik Erster Band Zweites Buch Die Lehre vom Wesen
(1813) Gesammelte Werke vol 11 Hamburg Meiner 1978
164
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Wissenschaft der Logik Zweiter Band Die subjektive Logik oder die
Lehre vom Begriff (1816) Gesammelte Werke vol 12 Hamburg Meiner 1981
Traduccedilotildees
HEGEL G W F Ciencia de la Logica (I e II ) trad de Augusta e Rodolfo Mondolfo
Ciencia de la Loacutegica Buenos Aires Ediciones Solar 1993
______________ Diffeacuterence des systegravemes philosophiques de Fichte et de Schelling traduccedilatildeo
de Marcel Meacutery In Premiegraveres Publications 2ordf ed Paris Ophrys-Gap 1964
______________ Enciclopeacutedia das Ciecircncias Filosoacuteficas em compecircndio (1830) I ndash A Ciecircncia
da Loacutegica trad de Paulo Meneses Satildeo Paulo Loyola 1995
______________ Fenomenologia do Espiacuterito trad de Henrique C de Lima Vaz coleccedilatildeo Os
Pensadores Satildeo Paulo Abril 1974
______________ Fenomenologia do Espiacuterito trad de Paulo Meneses Petroacutepolis Vozes 2a
ed 1992
______________ Introduccedilatildeo agrave Filosofia do Direito Traduccedilatildeo notas e apresentaccedilatildeo de
Marcos Lutz Muumlller IFCH-UNICAMP 2005
______________ La relation du scepticism avec la philosophie trad de B Fauquet 2ordf ed
Paris Vrin 1986
______________ Leccedilons sur lrsquohistoire de la philosophie La Philosophie Grecque tome 2
trad de Pierre Garniron Paris Vrin 1971
______________ Leccedilons sur lrsquohistoire de la philosophie La Philosophie Grecque tome 4
trad de Pierre Garniron Paris Vrin 1975
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MUumlLLER M L ldquoO idealismo especulativo de Hegel e a modernidade filosoacutefica criacutetica ou
radicalizaccedilatildeo dessa modernidaderdquo Revista Eletrocircnica Estudos Hegelianos ano 2ordm Nordm 3
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PORCHAT PEREIRA O Rumo ao ceticismo Satildeo Paulo Unesp 2006
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SCHAumlFER R Die Dialektik und ihre besonderen Formen in Hegels Logik In Hegel-
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SCHULZE G E Kritik der theoretischen Philosophie Band 1 Hamburg 1801 (reimpressatildeo por Aetas Kantiana Bruxelas Culture et Civilisation 1973)
SEXTO EMPIacuteRICO Outlines of Pyrrhonism vol I trad de RG Bury Cambridge Harvard
University Press 2000 Grundriszlig der pyrrhonischen Skepsis trad de Malte Hossenfelder
Frankfurt a M Suhrkamp 1985
SEXTO EMPIacuteRICO Adversus Mathematicos trad de RG Bury The Loeb Classical
Library in four volumes Cambridge Harvard University Press 1985
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Philosophie Band 10 2006
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um 1800 im Kontext neuzeitlicher Wissenskonzeptionen Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp
Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 8 2003
VIEWEG K (org) Gegen das lsquounphilosophische Unwesenrsquo (Das Kritische Journal der
Philosophie von Schelling und Hegel) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches
Jahrbuch der Philosophie Band 7 2002
___________ Die Philosophie des Remis - Der junge Hegel und das ldquoGespenst des
Skepticismusrdquo Muumlnchen Wilhelm Fink 1999
ZIMMERLI W C DIE FRAGE NACH DER PHILOSOPHIE Interpretation zu Hegels
Differenzschrif In Hegel-Studien Beiheft 12 Bonn Bouvier 1974
7
ABSTRACT
First it means to analyse Hegelrsquos reading of the skeptical philosophy specifically
pyrrhonian skepticism Thus it will be possible to assess to what extent the skepticism is
important to Hegelrsquos philosophy in general and in particular for the formation of his
speculative dialectical method We will cover texts from many phases of Hegelrsquos philosophy
in which skepticism is focus or appears within a context that also interests us namely the
discussion of the method Regarding this last one subject of the second part of the thesis we
examine in Science of Logic the moments where we can observe in a special way the
formation of hegelian dialectical method the section in Doctrine of Essence that is dedicated
to the determinations of reflection and the section entitled Absolute Idea the last chapter of
the book From this study of Science of Logic we can judge more accurately what the
Hegelian philosophical method is liable to the skeptical philosophy which means how this
method is formulated in a way that skepticism is a part of it The main idea is to show that
Hegel does not try a simple refutation of skepticism more than this he shows that skepticism
is the philosophy unavoiable which preserves the philosophy from fall victim of skepticals
aporias This is the way that Hegel finds to not become skeptical pyrrhonian and also the
subject of skeptical criticism
9
Para a Luciana
11
Eacute poreacutem muito mais difiacutecil conferir fluidez aos
pensamentos fixos do que ao ser-aiacute sensiacutevel
Hegel
A razatildeo captou sua proacutepria fundaccedilatildeo na ausecircncia
de fundamento das limitaccedilotildees e particularidades
Hegel
13
AGRADECIMENTOS
Ao Prof Marcos Lutz Muumlller pela oportunidade de poder jaacute haacute alguns anos conviver
intelectualmente por sua orientaccedilatildeo rigorosa pelas indicaccedilotildees valiosas pela liberdade de
pesquisa que sempre me proporcionou fundamental para a realizaccedilatildeo desta tese e por sua
amizade
Aos Profs Roberto Bolzani e Joseacute Eduardo M Baioni pelas anaacutelises criteriosas no
meu exame de qualificaccedilatildeo que muito contribuiacuteram para o andamento posterior deste
trabalho
Ao prof Oswaldo Porchat que talvez nem se decirc conta de quanto tambeacutem participou
da orientaccedilatildeo desta tese e pela sua amizade
Agrave Capes pela bolsa de doutorado a mim concedida fundamental para a realizaccedilatildeo
deste trabalho
Ao convecircnio Capes-DAAD pela bolsa de doutorado-sanduiacuteche que me permitiu
pesquisar na Freien Universitaumlt Berlin sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Andreas Arndt e
tambeacutem pela bolsa de estudos de alematildeo em Dresden
Ao DAAD pelo auxiacutelio que me permitiu uma nova temporada de pesquisa na Freien
Universitaumlt Berlin sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Andreas Arndt
Aos meus pais Nelson e Doralice e aos meus irmatildeos Carlos Frederico e Viviane
Agrave minha famiacutelia
Ao apoio e incentivo dos amigos do Brasil e da Alemanha
Especialmente agrave Luciana que talvez natildeo tenha a dimensatildeo de o quanto foi importante
em todos os aspectos sua presenccedila e incentivo
A todos do departamento de Filosofia e da Secretaria de Poacutes-Graduaccedilatildeo do IFCH-
UNICAMP que direta ou indiretamente tornaram viaacutevel esta pesquisa
15
SUMAacuteRIO
LISTA DE ABREVIATURAS p 17
INTRODUCcedilAtildeO p 19
I ndash Ceticismo pirrocircnico e ceticismo na perspectiva hegeliana
Capiacutetulo 1 ndash O ceticismo pirrocircnico p 25
Capiacutetulo 2 ndash O ceticismo na filosofia do jovem Hegel p 49
Capiacutetulo 3 ndash O ceticismo nas Liccedilotildees sobre a histoacuteria da filosofia de Hegel p 65
II ndash A dialeacutetica-especulativa de Hegel
Capiacutetulo 1 ndash As determinaccedilotildees de reflexatildeo da identidade agrave contradiccedilatildeo especulativa p 101
Capiacutetulo 2 ndash O meacutetodo dialeacutetico-especulativo p 131
CONCLUSAtildeO p 161
BIBLIOGRAFIA p 163
17
LISTA DE ABREVIATURAS
Georg Wilhelm Friedrich Hegel
GW Gesammelte Werke Ediccedilatildeo histoacuterico-criacutetica editada pela ldquoRheinisch-Westfaumllische
Akademie der Wissenschaftenrdquo e publicada pela editora Felix Meiner Hamburg de 1968 em
diante A indicaccedilatildeo seraacute seguida do nuacutemero do volume e da paacutegina
Vol 4 Jenaer Kritische Schriften (Eds) H Buchner e O Poumlggeler 1968
Vol 9 Phaumlnomenologie des Geistes (Eds) W Bonsiepen e R Heede 1980
Vol 11 Wissenschaft der Logik Erster Band Die objective Logik Zweites Buch Die Lehre
vom Wesen (1813) (Eds) F Hogemann e W Jaeschke 1978
Vol 12 Wissenschaft der Logik Zweiter Band Die subjective Logik oder die Lehre vom
Begriff (1816) (Eds) F Hogemann e W Jaeschke 1981
Vol 20 Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830) (Eds) W
Bosiepen e H -C Lucas 1992
Vol 21 Wissenschaft der Logik Erster Band Die objective Logik Erstes Buch Die Lehre
vom Sein (1832) (Eds) F Hogemann e W Jaeschke 1984
Werke Ediccedilatildeo de Eva Moldenhauer e Karl Markus Michel Frankfurt a M
Suhrkamp em 20 volumes A indicaccedilatildeo seraacute seguida do nuacutemero do volume e da paacutegina
Vol 8 Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenchaften I Frankfurt a M Suhrkamp 1993
Vol 18 Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie I Frankfurt a M Suhrkamp
1986
Vol 19 Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie II Frankfurt a M Suhrkamp
2003
19
Introduccedilatildeo
Talvez natildeo seja demasiado dizer que no iniacutecio do seacuteculo XIX Hegel tenha sido o
filoacutesofo que mais detidamente dedicou sua atenccedilatildeo ao estudo e anaacutelise do ceticismo antigo1
Uma de suas primeiras publicaccedilotildees o artigo ienense ldquoRelacionamento do ceticismo agrave
filosofiardquo2 como o proacuteprio tiacutetulo nos informa era todo voltado para o tema e vale mencionar
que parte importante do ensaio cuidava de uma anaacutelise minuciosa do ceticismo antigo3
O interesse de Hegel pelo ceticismo antigo vem mesmo antes de sua mudanccedila para
Iena em 18014 Aleacutem disso eacute preciso ser ressaltado a presenccedila do ceticismo na filosofia
hegeliana eacute o que nos parece natildeo se restringe apenas ao primeiro periacuteodo de sua carreira
1 Em alentado estudo recente Dietmar Heidemann chega mesmo a afirmar o seguinte ldquoNa histoacuteria da filosofia ningueacutem se ocupou mais aprofundadamente do ceticismo antigo pirrocircnico do que Hegel Na sua discussatildeo com a skepsis pirrocircnica Hegel no que respeita ao problema do ceticismo chegou a juiacutezos a que mesmo um veemente adversaacuterio de sua filosofia natildeo pode em princiacutepio negar um significado filosoacutefico sistemaacutetico Entre os neo-pirrocircnicos atuais estatildeo contudo completamente esquecidas as fundamentais anaacutelises de Hegel do conceito do ceticismo ou melhor dizendo satildeo elas completamente desconhecidas por eles Isso eacute mais do que lamentaacutevel pois em muitos aspectos neo-pirronistas como Fogelin Stroud ou Nagel poderiam obter em Hegel sugestotildees produtivas para suas proacuteprias avaliaccedilotildees de maneiras ceacuteticas de problematizarrdquo Cf Heidemann D H Der Begriff des Skeptizismus (Seine systematischen Formen die pyrrhonische Skepsis und Hegels Herausforderung) BerlinNew York Walter de Gruyter Band 78 2007 p 117 Concordo com Heidemann que Hegel possui uma leitura bastante atenta e profunda do ceticismo antigo mas sem endossar sua afirmaccedilatildeo referente a ser Hegel o filoacutesofo que mais se ocupou na histoacuteria da filosofia do ceticismo antigo De fato poderiacuteamos acrescentar o desconhecimento da leitura hegeliana do ceticismo antigo por parte dos estudiosos desta filosofia chama atenccedilatildeo Pensemos por exemplo no caso de Jonathan Barnes e de Julia Annas no livro conjunto The modes of scepticism neste livro ao citarem vaacuterios filoacutesofos importantes que se ocuparam do ceticismo ndash como Montaigne Descartes Hume e Kant ndash natildeo haacute nenhuma menccedilatildeo a Hegel (Cf The modes of scepticism Cambridge Cambridge UP 1985 pp 6-7)
2 Cf GW 4 pp 197-238
3 Apesar de nesse artigo tambeacutem ser feita referecircncia ao ceticismo acadecircmico o interesse principal de Hegel eacute pelo ceticismo pirrocircnico e mais precisamente o ceticismo pirrocircnico exposto por Sexto Empiacuterico nas suas Hipotiposes Pirronianas Dessa maneira sempre que daqui em diante se falar em ceticismo antigo estaremos nos referindo ao ceticismo pirrocircnico A respeito da referecircncia ao ceticismo acadecircmico no artigo especificamente na disputa entre pirrocircnicos e acadecircmicos acerca de qual deles poderia ser o legiacutetimo representante do ceticismo ver nosso artigo ldquoAlguns aspectos da compreensatildeo hegeliana do ceticismo antigo a partir da criacutetica ao ceticismo de Gottlob Ernst Schulzerdquo pp 237-240 In Revista Dois Pontos UFSCARUFPR vol 4 nuacutemero 2 2007
4 A propoacutesito do interesse de Hegel pelo ceticismo no periacuteodo anterior agrave sua ida para Iena ver de Klaus Vieweg Philosophie des Remis (Der junge Hegel und das lsquogespenst des Skeptizismusrsquo) Muumlnchen Wilhelm Fink 1999
20
filosoacutefica que vai justamente ateacute 1807 com a publicaccedilatildeo da Fenomenologia do Espiacuterito5 O
diaacutelogo hegeliano com o ceticismo pode ser observado natildeo apenas nesse periacuteodo inicial de
sua atividade intelectual filosoacutefica visto que ele se espraia por toda sua obra
No acircmbito de um estudo a respeito das relaccedilotildees da filosofia de Hegel com o ceticismo
nossas pretensotildees satildeo modestas Isto quer dizer que natildeo eacute nosso intento neste trabalho
explorar em todos os seus aspectos a minuciosa ocupaccedilatildeo de Hegel com o ceticismo Hans
Friedrich Fulda vem no que a isso se refere inclusive a declarar que ldquocomo poucos outros o
tema lsquoceticismo e pensamento especulativorsquo eacute adequado para se discutir o conjunto do
conceito filosoacutefico hegeliano e suas conexotildees exteriores que com isso natildeo se eacute meramente
escravo de curiosidade doxograacutefica mas antes que se pode notar o mais nobre interesse por
uma ocupaccedilatildeo filosoacutefica com a histoacuteria da filosofia descobrir o que era significativo numa
filosofia passada e eacute uma demanda natildeo-satisfeitardquo6
De um ponto de vista mais amplo nos importa com efeito mostrar que o ceticismo
antigo se faz um interlocutor fundamental de Hegel no que toca agrave possibilidade de
constituiccedilatildeo e sustentaccedilatildeo de sua filosofia especulativa Nesse contexto natildeo eacute porque a
filosofia hegeliana natildeo possa obviamente ser considerada ceacutetica que isto signifique como
algueacutem poderia pensar que o filoacutesofo tenha uma visatildeo essencialmente negativa do ceticismo
pirrocircnico Muito ao contraacuterio E se Hegel tece criacuteticas ao ceacutetico elas se devem por exemplo
natildeo ao seu modo de proceder no combate ao dogmatismo mas ao resultado a que ele chega
em virtude da incapacidade de se decidir agrave maneira dogmaacutetica a suspensatildeo do juiacutezo (epokheacute)
A criacutetica ceacutetica ao dogmatismo na sua prolificidade necessita ser tomada tatildeo a seacuterio que
Hegel acaba por propor a incorporaccedilatildeo do ceticismo agrave filosofia Uma estrateacutegia poderiacuteamos
dizer de imunizaccedilatildeo De fato a integraccedilatildeo do ceticismo agrave filosofia constitui-se numa maneira
de se defender da posiccedilatildeo ceacutetica levada agraves suas uacuteltimas consequumlecircncias Hegel natildeo pretende se
tornar ceacutetico pirrocircnico Ocorre que a filosofia que almeje continuar de peacute natildeo importa em que
novos termos natildeo pode fingir que o ceticismo natildeo existe Eacute preciso como veremos estar
atento ao que ele nos pede O que significaraacute afastar duas espeacutecies de atitudes que
5 Obra na qual o ceticismo aparece como o motor do exame a que a consciecircncia submete a si mesma e cujo progredir se daacute por meio de figuras que essa consciecircncia assume Eacute necessaacuterio frisar que natildeo faraacute parte de nossa pesquisa a abordagem do ceticismo na Fenomenologia do Espiacuterito salvo alguns raacutepidos comentaacuterios a respeito do tema em notas de rodapeacute Cremos que o estudo desse texto mereceria um trabalho apenas a ele dedicado
6 Cf Fulda H F e Horstmann R P (eds) Skeptizismus und spekulatives Denken in der Philosophie Hegels Stuttgart Klett-Cotta 1996 p 26 Vale notar que este livro eacute formado por um conjunto de artigos de diversos autores a respeito de distintos aspectos nos quais o tema ceticismo pode ser vinculado agrave filosofia hegeliana
21
comumente os filoacutesofos tomam perante a filosoacutefica ceacutetica ou adoccedilatildeo ou refutaccedilatildeo dessa
postura filosoacutefica Indo aleacutem dessas duas atitudes parece-nos que a questatildeo que Hegel iraacute se
fazer eacute a seguinte Haveria possibilidade de uma filosofia que incorporasse o ceticismo agrave
mesma de modo que ele operasse no seu interior mas sem que ao final se terminasse na
assunccedilatildeo de uma posiccedilatildeo ceacutetico pirrocircnica Seria isso uma mera refutaccedilatildeo do ceticismo
Em linhas gerais Hegel natildeo vecirc desacerto na postura ceacutetica com relaccedilatildeo ao
dogmatismo Pensemos no caso da fundaccedilatildeo de um sistema filosoacutefico seria aos olhos de
Hegel arriscado fazecirc-la deixando de lado a criacutetica que porventura o ceacutetico a ela dirija Uma
vez essa criacutetica desconsiderada as chances de fracasso satildeo iminentes Em outras palavras
seria inoacutecuo tentar se esquivar da posiccedilatildeo ceacutetica Tanto eacute assim que como veremos estaraacute no
cerne da discussatildeo hegeliana acerca da fundamentaccedilatildeo em filosofia a preocupaccedilatildeo em
responder a uma possiacutevel criacutetica ceacutetica por exemplo por meio dos tropos de Agripa
Com efeito a filosofia especulativa seria aquela que a partir do ceticismo terminaria
por encontrar um outro caminho que natildeo fossem aqueles trilhados distintamente por ceacuteticos e
dogmaacuteticos Pelo menos eacute essa cremos a intenccedilatildeo de Hegel Quanto a saber se o objetivo foi
atingido ou natildeo trata-se de uma questatildeo que natildeo assumimos o compromisso de respondecirc-la
A propoacutesito seria possiacutevel ao ceacutetico considerar que a filosofia especulativa natildeo fosse
dogmaacutetica Para tentar responder questotildees desse teor talvez fosse necessaacuterio levar em conta
outros elementos implicados nessa discussatildeo Nesse sentido poderiacuteamos aqui por um lado
nos fazermos de advogado do ceacutetico contra Hegel e sustentar em seu favor como um ceacutetico
poderia acreditar na sinceridade de Hegel quando este avalia positivamente sua filosofia De
fato a linguagem de Hegel seu vocabulaacuterio a complexidade de sua filosofia e a pretensatildeo em
ir aleacutem da diaphoniacutea filosoacutefica datildeo razatildeo para o ceacutetico se afastar dessa filosofia como se esta
representasse mais uma forma de dogmatismo Por outro lado em favor de Hegel e contra o
ceacutetico poder-se-ia entre outras coisas afirmar como ele poderia bom conhecedor que era da
filosofia ceacutetica pretender elaborar um sistema filosoacutefico assentado nas mesmas balizas que o
fizeram as filosofias anteriores Estaria ele na hora de elaborar sua filosofia simplesmente se
esquecendo como que acometido de uma amneacutesia momentacircnea daquilo que positivamente
avaliara no ceticismo 7
7 Parece-nos talvez que Geacuterard Lebrun procurou avanccedilar uma resposta no sentido de mostrar que Hegel continua de onde o ceacutetico paacutera Natildeo haveria assim conflito entre os ceacuteticos e Hegel apenas que ele teria levado mais adiante a investigaccedilatildeo que os ceacuteticos por precipitaccedilatildeo deixaram ainda por fazer Vaacuterias satildeo as passagens em que Lebrun nos daacute a impressatildeo de considerar a filosofia hegeliana como uma espeacutecie de terapecircutica filosoacutefica da
22
Para aleacutem da disputa entre Hegel e o ceticismo talvez a questatildeo a ser feita devesse ser
formulada nos seguintes termos o que distinguiria essa filosofia que ao mesmo tempo
acolhe e afasta de si o ceticismo das outras filosofias O que significa essa filosofia que
almeja nem ser dogmatismo nem ceticismo
Neste estudo nossa proposta eacute a de perscrutar tendo a questatildeo do meacutetodo filosoacutefico
como ponto de fuga a respeito da singularidade dessa filosofia que se quer localizar fora dos
limites dessa arena onde se confrontam dogmaacuteticos e ceacuteticos Assim articulamos este
trabalho em duas partes na primeira trataremos especificamente do ceticismo isto eacute tanto do
ceticismo antigo (cap 1) quanto do ceticismo de acordo com a leitura que dele Hegel faz
(caps 2 e 3) A retomada do ceticismo pirrocircnico serve principalmente para que
comparativamente tenhamos elementos suficientes para avaliar a leitura hegeliana do
pirronismo e tentar melhor compreender o que levou o filoacutesofo a integrar o ceticismo em seu
sistema A seguir com a abordagem de textos de Hegel ndash de vaacuterias fases de sua obra ndash nos
quais o ceticismo ou eacute o tema principal ou esteja fundamentalmente implicado na discussatildeo
desenvolvida poderemos assim tomar aprofundadamente contato com sua interpretaccedilatildeo e
anaacutelise do ceticismo Dessa maneira teremos condiccedilotildees de compreender em que aspectos o
ceticismo positivamente avaliado torna-se importante para a concepccedilatildeo filosoacutefica hegeliana
e faz entatildeo com que ele mereccedila ser integrado agrave filosofia especulativa Aleacutem disso poderemos
observar por que ele ao mesmo tempo eacute limitado Por que por exemplo a espeacutecie de
negaccedilatildeo envolvida na investigaccedilatildeo ceacutetica significa para Hegel a admissatildeo de pressupostos que
mereceriam ser examinados Fundamentalmente a filosofia ceacutetica para Hegel tambeacutem natildeo eacute
isenta de pressupostos que mereceriam ser examinados e satildeo esses pressupostos que
impedem a ela de estender sua criacutetica ao pensamento especulativo
Na segunda parte de nosso trabalho tratamos particularmente da reformulaccedilatildeo
hegeliana do conceito de contradiccedilatildeo (cap 4) a partir da anaacutelise das determinaccedilotildees de
reflexatildeo na Loacutegica da Essecircncia Aleacutem disso no capiacutetulo 5 veremos como os resultados
obtidos no capiacutetulo anterior se refletem na constituiccedilatildeo de seu meacutetodo dialeacutetico-especulativo
tal como desenvolvido no capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica a Ideacuteia Absoluta Seraacute somente
assim a partir dessa ocupaccedilatildeo com a temaacutetica do meacutetodo que poderemos observar como a
linguagem Hegel assim natildeo seria um dogmaacutetico mas em certa medida seria antes o continuador da tarefa investigativa ceacutetica Ver a propoacutesito A paciecircncia do conceito cap 5 ldquoA dialeacutetica nos limites da simples razatildeordquo
23
filosofia especulativa procura ao mesmo tempo vencer as limitaccedilotildees do ceticismo e integraacute-
lo reformulado a si proacutepria
Em todo nosso percurso portanto a preocupaccedilatildeo principal eacute conduzir a pesquisa de
acordo com a tentativa de se compreender na elaboraccedilatildeo da dialeacutetica hegeliana como o
ceticismo pode ser superado e ao mesmo tempo conservado na filosofia hegeliana como o
lado negativo de seu meacutetodo dialeacutetico-especulativo Que natildeo haacute como se esquivar do
ceticismo pelo contraacuterio deve-se dele partir para que a filosofia natildeo seja viacutetima das suas
aporias Essa eacute a via que Hegel encontra para natildeo se tornar um pirrocircnico e simultaneamente
natildeo poder ser alvo da criacutetica ceacutetica
25
I ndash Ceticismo pirrocircnico e ceticismo na perspectiva hegeliana
Capiacutetulo 1 ndash O ceticismo pirrocircnico
Na histoacuteria da filosofia ocupa o ceticismo uma posiccedilatildeo singular Isto se deve ao fato
dele pretender ser uma forma de filosofar que natildeo possui e nem sustenta doutrinas e dogmas
E por doutrina filosoacutefica entendamos o conjunto de teses que uma filosofia procura apresentar
por meio de argumentos concatenados que por fim pretendam nos fazer crer que atingimos
por exemplo algo de verdadeiro a respeito do que eacute investigado Natildeo importa que uma
filosofia seja construiacuteda ou natildeo na forma de um sistema de teses concatenadas e desdobradas
por argumentos ou numa forma natildeo-sistemaacutetica isto eacute por exemplo na forma de aforismos O
que importa eacute que se pretenda afirmar algo de absoluto e verdadeiro a respeito do tema
filosoacutefico exposto8
Como veremos mais adiante o ceacutetico natildeo procura apresentar teses que afirmem com
verdade absoluta e aqui tanto faz se positiva ou negativamente a respeito de um tema
qualquer Ele de fato natildeo sustenta teses pelo contraacuterio procura se manter afastado de
qualquer espeacutecie de enunciaccedilatildeo que remotamente lembre o discurso teacutetico Mas se sua
filosofia natildeo pode ser considerada doutrinal da maneira acima exposta se ela natildeo pretende
dizer o verdadeiro ou como algo seria em sua verdadeira realidade entatildeo o que poderia ser
essa filosofia que vai na contramatildeo do que comumente nos acostumamos a entender por
filosofia Se o ceticismo natildeo possui uma doutrina entatildeo o que sobraria dessa filosofia
Poderia parecer agrave primeira vista que francamente pouca coisa Se uma filosofia natildeo possui
doutrina entatildeo o que seria e teria a oferecer Qual deveria ser para finalmente entrarmos no
nosso assunto o interesse que Hegel teria tido nessa filosofia sui generis
Antes de prosseguir conveacutem notar que quando nos referimos a ceticismo estamos nos
referindo ao ceticismo antigo Mais especificamente ao ceticismo tal como apresentado por
8 Cf Sexto Empiacuterico Outlines of Pyrrhonism (Hipotiposes Pirronianas) vol 1 Ed Por RG Bury Cambridge Harvard University Press 2000 livro I paraacutegrafos 13-15 [doravante citado como HP seguido da indicaccedilatildeo do livro e do paraacutegrafo]
26
Sexto Empiacuterico nas suas Hipotiposes Pirronianas e que tambeacutem poderiacuteamos denominar de
ceticismo pirrocircnico em virtude da filiaccedilatildeo que Sexto estabelece entre esse ceticismo e Pirro9
Voltando a Hegel a forma de ceticismo que lhe interessa eacute a antiga Aleacutem disso o
ponto interessante dessa filosofia seria para ele justamente essa sua falta de conteuacutedo
doutrinal Seratildeo justamente algumas caracteriacutesticas definidoras do ceticismo pirrocircnico e que o
tornam diferente das demais filosofias que faratildeo Hegel se aproximar dessa filosofia Mas o
que poder-se-ia perguntar numa filosofia natildeo-doutrinal pode haver de atrativo
filosoficamente falando Ainda mais quando se sabe que na longa histoacuteria da filosofia o
ceticismo foi em larga medida mal visto foi considerado de modo predominante uma forma
menor de pensamento Eacute certo que houve muitas vozes discordantes e algumas de peso
Hegel eacute uma delas o que todavia natildeo impede que o juiacutezo negativo tenha sido preponderante
Mas graccedilas a que a quais motivos o ceticismo foi sempre atacado O que para a
filosofia que natildeo se quer ceacutetica haveria de tatildeo perigoso nele
Podemos desde jaacute adiantar que na apreciaccedilatildeo positiva do ceticismo antigo por parte de
Hegel haacute espaccedilo para criacuteticas a essa filosofia A posiccedilatildeo de Hegel em relaccedilatildeo ao ceticismo
natildeo consiste eacute o que nos parece nem em uma mera adesatildeo integral e nem em uma simples
tentativa de refutaccedilatildeo do mesmo Cremos que a questatildeo vaacute aleacutem disso Mas que espeacutecie de
relacionamento portanto se estabelece entre a filosofia de Hegel e o ceticismo Se natildeo haacute
nem adesatildeo e nem recusa a essa filosofia o que haveria entatildeo
Mas antes de tentar responder agraves questotildees haacute pouco esboccediladas comecemos por uma
breve exposiccedilatildeo do ceticismo pirrocircnico a partir das Hipotiposes Pirronianas de Sexto
Empiacuterico Uma exposiccedilatildeo que vai se ater ao delineamento dos traccedilos principais dessa
filosofia Talvez assim fique mais faacutecil e claro compreender natildeo soacute a leitura a nosso ver
9 Acerca da filiaccedilatildeo do ceticismo a Pirro eacute uacutetil citar a seguinte observaccedilatildeo de Oswaldo Porchat ldquoTambeacutem o termo lsquoceticismorsquo se usa no vocabulaacuterio filosoacutefico em diferentes sentidos Vou considerar o termo aqui somente com referecircncia ao pirronismo grego doutrina que se desenvolveu no seacuteculo I antes de Cristo e nos primeiros seacuteculos de nossa era Nossa principal fonte para o estudo do pirronismo eacute a obra de Sexto Empiacuterico que provavelmente viveu na uacuteltima metade do seacuteculo II Os pirrocircnicos se chamaram a si mesmos de lsquoceacuteticosrsquo (skeptikoiacute em grego) e esse termo aparentado ao verbo skeacuteptomai tatildeo-somente significava lsquoaqueles que observamrsquo isto eacute lsquoaqueles que examinam consideram com atenccedilatildeorsquo O nome lsquopirrocircnicosrsquo lhes foi dado porque invocavam o nome do lendaacuterio filoacutesofo Pirro contemporacircneo e companheiro das expediccedilotildees de Alexandre como inspirador de sua doutrinardquo (Cf Porchat O ldquoEmpirismo e ceticismordquo In Rumo ao ceticismo Satildeo Paulo Ed Unesp 2006 p 296) E para uma discussatildeo em torno da filiaccedilatildeo do ceticismo a Pirro ou de sua natildeo-filiaccedilatildeo como no caso do ceticismo chamado de acadecircmico cf Bolzani F R Acadecircmicos versus Pirrocircnicos Tese de Doutorado FFLCH-USP 2003 p2 e ss
27
rigorosa e atenta que Hegel faz do ceticismo como tambeacutem em que medida essa filosofia se
incorpora agrave filosofia hegeliana
Que a filosofia ceacutetica possui um caraacuteter singular que ela como veremos pela
descriccedilatildeo de Sexto Empiacuterico natildeo corresponde agrave maneira ldquotradicionalrdquo de filosofar eacute
declarado de modo bastante niacutetido desde as primeiras linhas das Hipotiposes Pirronianas
Sexto inicia o livro distinguindo as trecircs espeacutecies de filoacutesofos que pode haver de acordo
com o resultado que cada um alcanccedila na sua investigaccedilatildeo10 Assim existem aqueles que em
virtude do resultado de suas investigaccedilotildees declaram ter descoberto a verdade outros
declaram natildeo poder ser apreendida a verdade e por fim haacute aqueles que continuam a
investigar E por que continuam a investigar Porque provavelmente natildeo chegaram a nenhum
resultado conclusivo como no caso das duas outras espeacutecies de filosofia natildeo se consideram
capazes de emitir nenhuma declaraccedilatildeo positiva ou negativa a respeito da existecircncia de uma
suposta verdade filosoacutefica
Sexto denomina entatildeo aqueles filoacutesofos que declaram ter obtido a verdade como
resultado de suas investigaccedilotildees de ldquodogmaacuteticosrdquo aqueles que afirmam ser a verdade
inapreensiacutevel de acadecircmicos e aqueles que continuam a investigar de ceacuteticos As filosofias se
dividem portanto em dogmaacutetica acadecircmica e ceacutetica
Desse iniacutecio das Hipotiposes jaacute se pode depreender que o que vai distanciando o
ceticismo das outras duas espeacutecies de filosofia eacute o fato dele natildeo chegar a uma verdade que
ponha termo agrave investigaccedilatildeo Mas devido a que motivo ou motivos o ceacutetico continua a
investigar E se ele continua a investigar eacute porque talvez ainda pretende chegar a algum
resultado parecido com aqueles que as filosofias dogmaacutetica e acadecircmica chegaram Mas o
uacutenico resultado a que chegou apoacutes ter investigado foi diferente do que ocorreu aos outros
filoacutesofos natildeo chegar a nenhuma verdade Mas natildeo chegar a nenhum verdade numa
10 A esse respeito veja-se HP I 1-4
28
investigaccedilatildeo filosoacutefica natildeo eacute algo pelo menos agrave eacutepoca de Sexto que ocorresse com
frequumlecircncia Ainda mais caracterizar uma filosofia apenas como investigaccedilatildeo permanente
Tambeacutem soa estranho dizer que a descriccedilatildeo a ser feita da filosofia ceacutetica natildeo significa
que o que foi afirmado pretenda ser a expressatildeo de como as coisas satildeo mas antes como diz
Sexto Empiacuterico ldquocomo um cronista noacutes simplesmente relatamos cada fato como ele aparece
a noacutes no momentordquo11
Agrave primeira vista parece contraditoacuterio dizer que algo seraacute afirmado mas que o
afirmado natildeo seja exatamente ldquocomo noacutes o declaramosrdquo Parece assim que se afirma algo
mas que o peso dessa afirmaccedilatildeo ndash e aqui precisamente a respeito da proacutepria descriccedilatildeo da
filosofia ceacutetica ndash natildeo eacute relevante Ora a tomar as coisas dessa maneira ficamos com a
impressatildeo de que natildeo deveriacuteamos entatildeo considerar digno de creacutedito o que se declara da
filosofia ceacutetica A continuaccedilatildeo da frase causa ainda mais estranheza ao se dizer que o relato
concernente agrave filosofia ceacutetica se faz de acordo com o que aparece ao ceacutetico no momento da
descriccedilatildeo ou seja podemos talvez concluir que aquilo que eacute dito do ceticismo poderia variar
de acordo com o momento Hoje seria de um modo e amanhatilde seria de outro
Como veremos no curso desta exposiccedilatildeo a respeito do ceticismo pirrocircnico se
inicialmente a partir do que o proacuteprio Sexto afirma podemos ser levados a enxergar com
receio e a vislumbrar contradiccedilotildees nessa filosofia veremos entatildeo depois que haacute coerecircncia e
sentido nas formulaccedilotildees de Sexto por mais diferentes e estranhas que num primeiro
momento pareccedilam Afinal uma filosofia que se caracteriza pela persistecircncia na investigaccedilatildeo
e que parte da ideacuteia de que o dito a seu respeito natildeo deve ser considerado como as coisas satildeo
mas antes de acordo com o que nos aparece no momento natildeo representa a forma canocircnica de
se fazer filosofia no decorrer de sua histoacuteria
Assim como no caso das outras formas de filosofar a origem do ceticismo foi a
esperanccedila de obter tranquumlilidade (ataraxiacutea)12 Como o ceacutetico atinge a ataraxia isto eacute uma
questatildeo que vai depender para ser respondida de como ele se posiciona perante a
possibilidade de encontrar verdade ou falsidade naquilo que investiga pois inicialmente se
trata tambeacutem para ele de tentar encontrar algo de certo definitivo verdadeiro ndash positiva ou
negativamente ndash naquilo que investiga
11 Cf HP I 4
12 Cf HP I 12
29
Segundo o relato de Sexto tambeacutem o ceacutetico perturbado com as anomalias que
encontrava nas coisas desejava chegar a algo de certo por meio da investigaccedilatildeo a respeito do
que poderia ser verdadeiro ou falso no objeto da pesquisa13 Nesse aspecto o ceacutetico natildeo se
distingue dos chamados dogmaacuteticos e acadecircmicos Tambeacutem ele almejou obter a tranquumlilidade
a partir de uma investigaccedilatildeo filosoacutefica que tivesse seu teacutermino com a descoberta da verdade
ou falsidade nas coisas Em princiacutepio portanto estatildeo os filoacutesofos unidos pela busca do
mesmo fim a saber a ataraxiacutea
Mas se contudo os outros filoacutesofos ou descobriram a verdade ou descobriram que ela eacute
inapreensiacutevel dando por conseguinte um teacutermino agraves suas investigaccedilotildees o ceacutetico natildeo teve ndash se
eacute que podemos dizer isso a seu respeito ndash a mesma sorte
Da sua pesquisa natildeo chegou ao encontro da verdade ou falsidade nas coisas de modo
que ao final se tornasse livre de perturbaccedilotildees Ao contraacuterio o que conseguiu mesmo foi se
tornar mais perturbado Nas coisas investigadas encontrou apenas discordacircncia (diaphoniacutea)
anomalias contradiccedilotildees Natildeo se sentia capaz de assentir que isto era verdadeiro em
detrimento de outra ou outra hipoacutetese que seriam falsas Nenhuma alternativa mostrava-se
mais digna de creacutedito que a outra Dessa maneira a almejada tranquumlilidade fazia-se um
objetivo difiacutecil de ser realizado Pela via da busca do verdadeiro ou do falso do que as coisas
satildeo ou natildeo satildeo real e absolutamente um objetivo cada vez mais distante
E por que com relaccedilatildeo a essa busca as coisas se passariam desse modo A resposta se
encontra no acontecimento de um fato que acabaraacute por se tornar a caracteriacutestica definidora do
que eacute o ceticismo Mais precisamente no curso de sua investigaccedilatildeo filosoacutefica o ceacutetico
terminava sempre encontrando para cada possiacutevel argumento em favor da verdade ou
falsidade de qualquer tema um argumento contraacuterio de igual forccedila (isostheacuteneia) tornando-se
portanto difiacutecil decidir-se por um ou por outro lado14
A repeticcedilatildeo dessa experiecircncia leva o ceacutetico a descrer da possibilidade de que enfim
chegue aos mesmos resultados que as outras filosofias Ele natildeo se sente capaz de decidir entre
as alternativas opostas e igualmente persuasivas A saiacuteda desse impasse natildeo consistiraacute na
opccedilatildeo por um lado ou por outro mas antes natildeo haveraacute decisatildeo nenhuma nesse sentido o que
13 Cf HP I 12
14 Cf HP I 10 tambeacutem 202-5
30
acontece sim eacute ele ser levado agrave suspensatildeo de juiacutezo (epokheacute)15 isto eacute a um estado do intelecto
(staacutesis dianoiacuteas) devido ao qual natildeo se sente capaz de nem afirmar nem negar algo16
Na suspensatildeo do juiacutezo se cristaliza essa incapacidade do ceacutetico se decidir agrave maneira
dogmaacutetica Eacute importante frisar que para a efetivaccedilatildeo da suspensatildeo de juiacutezo natildeo haacute uma atitude
deliberada e positiva do ceacutetico para que tenha o juiacutezo suspenso Ele natildeo decide que iraacute
suspender seu juiacutezo Como Sexto assinala ldquonoacutes somos levados em primeiro lugar a um estado
de intelecto suspensivordquo17
Como vemos a epokheacute eacute um estado do intelecto a que o ceacutetico eacute levado por fruto do
conflito indecidiacutevel que encontra nas coisas que investiga Reiteradamente encontra-se
diante de alternativas opostas uma tatildeo persuasiva quanto a outra Como decidir A partir de
qual criteacuterio tomar essa decisatildeo A precipitaccedilatildeo a imoderaccedilatildeo e porque natildeo dizer o capricho
e vaidade do ldquodogmaacuteticordquo contribuem para sua decisatildeo excludente de uma das alternativas
Caso fosse mais ponderado menos afoito talvez natildeo decidisse tatildeo raacutepido Do ponto de vista
do ceacutetico o problema do dogmatismo reside nisso sua precipitaccedilatildeo (propeacuteteia)
Mas voltando agrave questatildeo da incapacidade de decisatildeo devido agrave equumlipolecircncia
(isostheacuteneia) dos opostos isto eacute por forccedila da igualdade quanto agrave credibilidade e natildeo-
credibilidade dos contrapostos natildeo haacute meio de se fazer uma opccedilatildeo Soacute resta enfim suspender
o juiacutezo E como consequumlecircncia da suspensatildeo adveacutem casualmente a tranquumlilidade (ataraxiacutea)
Natildeo pretendemos adentrar neste momento no tema referente ao significado da
tranquumlilidade no ceticismo pirrocircnico conveacutem antes explicitar porque a oposiccedilatildeo de
argumentos se torna a caracteriacutestica definidora da atitude (agogeacute) filosoacutefica ceacutetica
A agogeacute ceacutetica
A certa altura do iniacutecio das Hipotiposes Sexto apresenta uma definiccedilatildeo do que eacute o
ceticismo ldquoeacute uma habilidade ou atitude intelectual que opotildee fenocircmenos a nuacutemenos de todas
15 Cf HP I 7 10 26 165
16 Cf HP I 10
17 Cf HP I 8
31
as maneiras tendo como resultado que devido agrave equipotecircncia dos objetos e discursos (loacutegois)
assim opostos somos noacutes levados primeiro a um estado suspensivo do intelecto e em seguida
a um estado de tranquumlilidade (ataraxiacutea)rdquo18
Da descriccedilatildeo acima podemos perceber que eacute fundamental para a caracterizaccedilatildeo da
filosofia ceacutetica a oposiccedilatildeo de um discurso a outro Natildeo eacute por outro motivo que Sexto
apresenta como princiacutepio baacutesico do ceticismo a oposiccedilatildeo de todo discurso a um discurso de
igual forccedila (pantiacute loacutegoi loacutegon ison antikeiacutesthai)19
Devido a que poderiacuteamos agora perguntar o ceticismo se caracteriza como uma tal
atitude (agogeacute) um tal modo de proceder
Eacute a renovada experiecircncia do conflito (diaphoniacutea) das posiccedilotildees contraacuterias que o leva a
adotar essa postura como caracterizadora da filosofia ceacutetica Diferente dos ldquodogmaacuteticosrdquo o
ceacutetico natildeo vecirc como adotar outra postura Natildeo eacute nem uma nem satildeo duas vezes que ele se vecirc
diante de discursos opostos de igual persuasividade A cada nova investigaccedilatildeo depara-se ele
com a isostheacuteneia e por consequumlecircncia eacute levado agrave suspensatildeo de juiacutezo Dessa maneira
podemos supor diante dessa frequumlente experiecircncia resolve mudar de atitude a ponto de
caracterizar sua postura filosoacutefica desse modo ineacutedito
A preocupaccedilatildeo central agora eacute tentar opor a cada discurso aquele outro que se lhe
contrapotildee tornando-se assim difiacutecil dar assentimento a um dos lados opostos em virtude da
igualdade de ambos os lados quanto agrave credibilidade ou natildeo-credibilidade do que por ele eacute
declarado Se o ldquodogmaacuteticordquo tem como meta primeira tentar apreender aquilo que eacute real
verdadeiro e nessa busca podendo chegar agrave conclusatildeo de que a apreensatildeo do real do
verdadeiro comporta duas hipoacuteteses a saber ser possiacutevel ou natildeo ser possiacutevel a apreensatildeo jaacute
o ceacutetico teraacute essa meta apenas em um horizonte distante isto eacute caberaacute primeiro exercitar a
atitude opositiva Essa espeacutecie de decepccedilatildeo a que eacute acometido toda vez que encontra conflito
nas posiccedilotildees dogmaacuteticas leva-o a adotar essa atitude com relaccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo filosoacutefica
Eacute preciso sublinhar que a atitude opositiva ceacutetica natildeo se realiza apenas com relaccedilatildeo a
temas filosoacuteficos Como estaacute descrito naquela definiccedilatildeo haacute pouco citada20 a oposiccedilatildeo se faz
18 Cf HP I 8
19 Cf HP I 12 tambeacutem HP I 8
20 Cf HP I 8
32
entre fenocircmenos e nuacutemenos de todas as maneiras Isto quer dizer que a oposiccedilatildeo natildeo segue
um certo protocolo que regule sua realizaccedilatildeo Ela se faz de variadas maneiras21 fenocircmenos a
fenocircmenos nuacutemenos a nuacutemenos fenocircmenos a nuacutemenos e por aiacute adiante Com efeito o que
Sexto pretende mostrar eacute que o conflito se pode estabelecer de muitos modos possiacuteveis Um
argumento pode se opor a uma suposta evidecircncia fenomenal Exemplo disso temos na
contestaccedilatildeo feita por Anaxaacutegoras contra o fato da neve ser branca com base no argumento de
que se a neve eacute aacutegua congelada e a aacutegua eacute preta por conseguinte a neve tambeacutem eacute preta22 O
que importa aqui portanto eacute mostrar que a oposiccedilatildeo natildeo estaacute sujeita a regras estritas ao
contraacuterio ela se efetua das mais variadas maneiras e com vistas a produzir discursos
conflitantes equumlipotentes ou seja discursos que natildeo podem ter precedecircncia um em relaccedilatildeo ao
outro quanto a ser mais digno de creacutedito23
Se o ceacutetico natildeo consegue tomar uma decisatildeo entre duas alternativas equumlipotentes
entatildeo ele eacute levado a suspender seu juiacutezo Isto significa que ele se vecirc incapacitado de decidir agrave
maneira dogmaacutetica ou seja ele natildeo correraacute o risco de dogmatizar Eacute nesse espiacuterito que eacute dito
nas Hipotiposes que em virtude da oposiccedilatildeo de argumentos ter-se-aacute como consequumlecircncia o
ceacutetico cessar de dogmatizar24 E o que quereria dizer de um modo um pouco mais preciso
cessar de dogmatizar Sexto de antematildeo esclarece que dogma natildeo deve ser aqui entendido
como o simples fato de aceitar algo determinado isto eacute o ceacutetico daria seu assentimento agraves
afecccedilotildees que a ele se impotildeem atraveacutes de uma impressatildeo Ele assim natildeo diria que natildeo lhe
parece que tenha calor ou frio ao ter a sensaccedilatildeo de calor ou frio25 Noutras palavras se ele
sente frio ele natildeo diraacute que natildeo sente frio Se dogma for entatildeo pensado no sentido do exemplo
exposto agora natildeo teria o ceacutetico nada que a ele se opor visto natildeo estar assim dogmatizando
21 Cf HP I 9
22 Cf HP I 33
23 Cf HP I 10
24 Cf HP I 12
25 Cf HP I 13
33
De fato dogma no sentido acima estaacute muito mais proacuteximo daquilo que o ceacutetico entende por
fenocircmeno Posto isso voltemos agrave questatildeo referente ao significado do ceacutetico ldquocessar de
dogmatizarrdquo
Se nos ativermos apenas agrave passagem do texto na qual Sexto expotildee a questatildeo de modo
expliacutecito poderiacuteamos ficar com a impressatildeo de que o ceacutetico esboccedila uma restriccedilatildeo ao alcance
de sua investigaccedilatildeo Tal impressatildeo poder-se-ia assim confirmar porque laacute se declara que o
ceacutetico natildeo dogmatiza caso tomemos o termo doacutegma como ldquoassentimento a qualquer das
coisas natildeo-evidentes investigadas nas ciecircnciasrdquo26 Desse modo parece que a investigaccedilatildeo
restringe-se apenas aos produtos de elaboraccedilotildees conceituais mais sofisticadas o que seria o
caso correspondente agraves ciecircncias Todavia natildeo eacute essa a intenccedilatildeo uacutenica do ceacutetico Seu escopo eacute
mais geral pois ele natildeo pretende dogmatizar natildeo apenas em relaccedilatildeo agraves ciecircncias mas tambeacutem
em relaccedilatildeo a qualquer coisa que seja natildeo-evidente
ldquoCom efeito o pirrocircnico natildeo daacute seu assentimento a nenhum dos natildeo-evidentesrdquo27
Em outra passagem das Hipotiposes veremos que a intenccedilatildeo do ceacutetico ao natildeo
dogmatizar eacute de caraacuteter mais geral pois a natildeo-evidecircncia abrange qualquer coisa objeto de
controveacutersia ldquoAliaacutes as coisas controvertidas na medida mesma em que satildeo controvertidas
exibem sua natildeo-evidecircnciardquo28 Aqui natildeo haacute mais referecircncia a objetos de uma determinada
espeacutecie visto que satildeo consideradas natildeo-evidentes simplesmente as coisas controvertidas
Devemos lembrar tambeacutem a discussatildeo haacute pouco feita a respeito da definiccedilatildeo do
ceticismo29 especificamente no que se refere agrave oposiccedilatildeo ceacutetica se realizar das mais variadas
maneiras possiacuteveis ou seja que natildeo haacute restriccedilatildeo quanto ao que vai se contrapor nuacutemenos a
fenocircmenos fenocircmenos a fenocircmenos nuacutemenos a nuacutemenos e assim por diante
26 Cf HP I 13
27 Cf HP I 13
28 Cf HP I 182
29 Ver a respeito pp 30-32 deste estudo
34
Se eacute assim entatildeo que as coisas procedem eacute porque a controveacutersia se estabelece
indiscriminadamente onde houver conflito e discrepacircncia de opiniotildees natildeo importa quanto a
quecirc existiraacute controveacutersia a respeito do que eacute natildeo-evidente30 Por aiacute jaacute podemos ter uma
amostra da radicalidade da criacutetica ceacutetica Natildeo haacute nada que fique a salvo de suas investidas31
Tal radicalidade do ceticismo trouxe por outro lado problemas ao ceacutetico pois a sua criacutetica
foi alvo de muita incompreensatildeo
A partir de agora e ainda no acircmbito dessa discussatildeo acerca do ceacutetico evitar
dogmatizar conveacutem analisar a questatildeo concernente ao estatuto natildeo-dogmaacutetico da linguagem
ceacutetica
Quando no iniacutecio das Hipotiposes Sexto nos alerta para o fato de que suas afirmaccedilotildees
natildeo podem ser tomadas exatamente tal como proferidas e que o alegado a respeito do
ceticismo tem de ser encarado como o relato de um cronista32 Sexto estaacute apenas se
expressando eacute o que nos parece de acordo com uma concepccedilatildeo natildeo-dogmaacutetica da linguagem
ou tambeacutem poderiacuteamos dizer uma concepccedilatildeo ldquomais frouxardquo da mesma
A ideacuteia central para que possamos compreender o caraacuteter das foacutermulas ceacuteticas eacute a de
instrumentalidade O ceacutetico natildeo busca como o dogmaacutetico dizer o real o verdadeiro como as
30 No mesmo sentido Roberto Bolzani sustenta que a contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos natildeo se restringe a determinada classe de objetos isto eacute natildeo se restringe apenas a discursos filosoacuteficos ou cientiacuteficos mas que abrange tambeacutem opiniotildees de caraacuteter mais ruacutestico como por exemplo a suposta lsquoevidecircncia sensiacutevelrsquo de que lsquoagora eacute diarsquo ldquo[] a contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos diz respeito a lsquofenocircmenosrsquo e lsquonuacutemenosrsquo o que significa que a mais simples ndash e na verdade problemaacutetica ndash lsquoevidecircncia sensiacutevelrsquo natildeo escapa de seu caminho A isostheacuteneia natildeo ocorre apenas entre discursos filosoacuteficos que respectivamente afirmem ou neguem por exemplo a existecircncia de uma providecircncia no mundo encontra-se tambeacutem entre duas diferentes visotildees de uma torre ndash uma proacutexima mostrando-a redonda outra distante revelando-a quadrada (cf HP I 32) E natildeo haacute diferenccedila de intensidade persuasiva entre pretensas evidecircncias oriundas de diferentes fontes argumentos e dados sensoriais imediatos todos se misturam em isostheacuteneia como se vecirc por exemplo na anaacutelise do tempo lsquoa julgar pelos fenocircmenos o tempo parece ser algo mas a julgar pelos fenocircmenos o movimento eacute algo mas a julgar pelo discurso filosoacutefico natildeo existersquo(AM X 49)rdquo Cf Bolzani R O ceticismo pirrocircnico na obra de Sexto Empiacuterico Dissertaccedilatildeo de Mestrado FFLCH-USP 1992 pp 36-37
31 Essa criacutetica radical que chamaraacute a atenccedilatildeo de Hegel para a filosofia ceacutetica
32 Cf HP I 4
35
coisas (praacutegmata)33 satildeo em si mesmas Natildeo tenciona que suas asserccedilotildees suas foacutermulas sejam
a expressatildeo de qualquer sentido absoluto O ldquodogmaacuteticordquo sim ele tenciona fornecer um
caraacuteter absoluto verdadeiro ao que afirma Tambeacutem o homem comum muitas vezes intenta se
expressar a respeito de qualquer aspecto de sua vida num sentido amplo de uma maneira
dogmaacutetica isto eacute que possa dizer algo absoluta e verdadeiramente Apenas conveacutem notar
que ele o faz sem a sofisticaccedilatildeo e a elaboraccedilatildeo do discurso filosoacutefico
Diferente dos filoacutesofos e do homem comum ldquoo ceacutetico natildeo potildee suas foacutermulas em
nenhum sentido absolutordquo34 Fundamentalmente o que ele diz natildeo possui a intenccedilatildeo de
expressar o real o verdadeiro o absoluto Em outras palavras natildeo pretende por meio de seu
discurso dogmatizar Tanto na sua vida quanto no combate ao dogmatismo procura ele
sempre evitar dogmatizar
Tomemos entatildeo como objeto de anaacutelise o combate ao dogmatismo e tentemos ver
nesse caso em que sentido ele se expressa mas sem dogmatizar
Quando o ceacutetico natildeo se sente capaz de declarar algo dogmaticamente a respeito das
coisas natildeo-evidentes que investiga simplesmente enuncia ele uma certa afecccedilatildeo Isto quer
dizer que ele apenas estaacute enunciando algo que a ele se impotildee e natildeo pode evitar a saber que
natildeo se vecirc em condiccedilotildees de dizer que isto eacute mais verdadeiro do que aquilo que esta tese
filosoacutefica seja mais plausiacutevel do que aquela outra em suma natildeo eacute capaz de asserir algo
dogmaticamente Neste sentido parece-nos que tecircm de ser compreendidas as ldquofoacutermulasrdquo dos
ceacuteticos anuacutencio de suas humanas afecccedilotildees35 daquilo que lhe aparece
Por natildeo conseguirem nem afirmar nem negar nada a respeito de qualquer tema natildeo-
evidente investigado acabam eles referindo-se a essa situaccedilatildeo pela qual passam por meio de
foacutermulas que expressam essa incapacidade
33 Coisas aqui devendo ser entendidas num sentido amplo ou seja com referecircncia tanto ao que chamamos de fenocircmeno quanto ao que chamamos de nuacutemenos A distinccedilatildeo entre fenocircmenos ou coisas sensiacuteveis e entre nuacutemenos ou coisas inteligiacuteveis eacute elaborada pelo assim chamado pensamento dogmaacutetico Vale antecipar que se o ceacutetico fala por exemplo em fenocircmenos natildeo estaacute ele se expressando dentro do quadro dessa distinccedilatildeo Na continuaccedilatildeo do nosso tratamento do tema da linguagem no ceticismo tentaremos esclarecer o motivo pelo qual o ceacutetico pode ainda se utilizar de termos carregados de significado dogmaacutetico sem no entanto incorrer em dogmatismo
34 Cf HP I 14
35 Cf HP I 203
36
Se essas foacutermulas podem transmitir a impressatildeo de que expressam como as coisas satildeo
absolutamente que o ceacutetico esteja afirmando ou negando algo eacute preciso atentar para o fato de
que essas foacutermulas satildeo expressotildees de algo que ao ceacutetico se impotildee que lhe aparece Tratam-se
de meras afecccedilotildees Ao dedicar algumas seccedilotildees das Hipotiposes36 ao comentaacuterio das foacutermulas
ceacuteticas natildeo eacute outra sua intenccedilatildeo que natildeo a de esclarecer de que maneira natildeo-dogmaacutetica elas
satildeo enunciadas e o que se pretende expressar por meio delas
Quando o ceacutetico diz por exemplo ldquoque todas as coisas satildeo indeterminadasrdquo natildeo
existe a tentativa de afirmar definitivamente que das coisas nada em nenhuma hipoacutetese possa
ser determinado Mas antes que a indeterminaccedilatildeo significa um estado de intelecto (paacutethos
dianoiacuteas) no qual o ceacutetico natildeo se sente capaz de negar ou afirmar algo e mais precisamente a
respeito de temas propostos pela investigaccedilatildeo dogmaacutetica isto eacute daquilo que eacute natildeo-evidente37
Assim38 quando diz que ldquotodas as coisas satildeo indeterminadasrdquo a palavra lsquosatildeorsquo apenas
quer significar lsquoaparece a elersquo e por lsquotodas as coisasrsquo ele somente se refere agraves coisas natildeo-
evidentes investigadas pelos dogmaacuteticos e que foram apenas essas objetos do seu exame
finalmente por lsquoindeterminadasrsquo quer ele dizer que agraves coisas opostas ou em relaccedilatildeo agraves quais
conflitam natildeo sejam [essas coisas natildeo-evidentes] superiores no que respeita agrave credibilidade
ou incredibilidade Sexto repete o mesmo procedimento de anaacutelise em relaccedilatildeo agraves outras
foacutermulas ceacuteticas apresentadas nas Hipotiposes e sempre com o intuito de apontar o caraacuteter
natildeo-dogmaacutetico das mesmas
Nesse contexto se pode compreender segundo o relato de Sexto porque essas
foacutermulas se cancelam juntamente com aquilo a que se aplica a duacutevida ceacutetica39 Cancelam-se
no sentido de que natildeo podem ser tomadas como testemunho de um dogma Nem poderia ser
de outra maneira pois se o ceacutetico natildeo pretende dogmatizar nem suas proacuteprias declaraccedilotildees a
respeito do seu estado de incapacidade em tomar uma decisatildeo podem contrariar a sua atitude
filosoacutefica
A propoacutesito de suas foacutermulas eacute bem conveniente a imagem que ele se utiliza para
esclarecer em que sentido suas foacutermulas satildeo anuladas por elas mesmas
36 Ver a respeito HP I 187-209
37 Cf HP I 198
38 Sobre o que se diraacute a seguir veja-se HP I 198
37
ldquoAliaacutes no que respeita agraves expressotildees ceacuteticas eacute preciso primeiro compreender que noacutes
natildeo fazemos nenhuma asserccedilatildeo positiva no que se refere a elas serem absolutamente
verdadeiras visto que noacutes dizemos que elas podem ser anuladas por si proacuteprias suprimindo-se
ao mesmo tempo que as coisas a propoacutesito das quais elas satildeo ditas assim como aquelas drogas
purificadoras que natildeo somente eliminam os humores do corpo mas tambeacutem a si mesmas com
os humores se expelemrdquo40
Uma vez cumprida sua funccedilatildeo essas foacutermulas podem ser descartadas O ceacutetico apenas
expressou por meio delas aquilo que lhe apareceu a saber que ele se encontra num estado no
qual natildeo se sente capaz de afirmar nem de negar algo e por isso eacute levado a suspender seu
juiacutezo
Sua relaccedilatildeo com a linguagem eacute de outra ordem que aquela que o dogmaacutetico
estabeleceu Este tem a preocupaccedilatildeo com a verdade das coisas com o possiacutevel caraacuteter
absoluto do que assere O ceacutetico natildeo sua preocupaccedilatildeo eacute por meio da linguagem exercer uma
atitude filosoacutefica singular que ao fim ao cabo e por um caminho diferente do trilhado pelo
dogmaacutetico trar-lhe-aacute a ataraxiacutea
O mesmo caraacuteter instrumental que apresentam as foacutermulas ceacuteticas tambeacutem
apresentam os argumentos de que utiliza tanto os criados por ele proacuteprio quanto os que toma
de empreacutestimo para produzir antinomias e assim combater o dogmatismo
A finalidade desses argumentos consiste em como acabou de ser assinalado produzir
antinomias isto eacute contrapor a um argumento posto pelos dogmaacuteticos um outro argumento
que devido agrave equipotecircncia (isostheacuteneia) impeccedila ao ceacutetico de se decidir por um ou por outro
visto que ambos os argumentos parecem ser igualmente persuasivos E uma vez dada a
isostheacuteneia essa posiccedilatildeo de equiliacutebrio das forccedilas em disputa o ceacutetico eacute conduzido agrave
suspensatildeo do juiacutezo
Os ldquoargumentos ceacuteticosrdquo natildeo tecircm portanto outra funccedilatildeo que haacute de levar o ceacutetico a
concretizar seu propoacutesito filosoacutefico natildeo-dogmaacutetico Eles servem como instrumentos que o
39 Cf HP I 14-15 206
40 Cf HP I 206
38
conduzem a isso Quando argumenta contra o dogmaacutetico natildeo procura ldquopocircrrdquo outras tantas
teses no lugar das que foram avanccediladas pelo dogmaacutetico41 A metaacutefora da escada presente no
uacuteltimo capiacutetulo do segundo livro de Contra os Loacutegicos refere-se explicitamente a essa
instrumentalidade dos argumentos utilizados
ldquoAssim como um homem pode apoacutes ter subido a um lugar alto por meio de uma
escada desfazer-se dela assim tambeacutem o ceacutetico ao atingir por via da argumentaccedilatildeo sua
lsquotesersquo que contradiz e portanto suprime uma formulaccedilatildeo lsquodogmaacuteticarsquo tambeacutem suprime no
mesmo movimento sua proacutepria argumentaccedilatildeordquo42
Uma vez chegado ao seu objetivo qual seja estabelecer uma posiccedilatildeo de equiliacutebrio
entre os argumentos opostos (isostheacuteneia) fazendo assim com que se torne um ato precipitado
decidir-se por um dos lados o ceacutetico pode abandonar seu argumento Como instrumento a
serviccedilo de sua atitude anti-dogmaacutetica cumpriu ele sua funccedilatildeo Esses argumentos natildeo
poderiam permanecer como se fossem a demonstraccedilatildeo de teses ceacuteticas opostas agraves teses
adversas levantadas pelos dogmaacuteticos Se pela sua forccedila eles podem fornecer a impressatildeo de
que expressam teses dogmaacuteticas afinal por meio deles o ceacutetico chega agrave epokheacute a
persuasividade desses argumentos eacute aparente43
41 Com respeito ao caraacuteter instrumental dos argumentos de que se utiliza o ceacutetico para construir antinomias cabe recorrer ao comentaacuterio de Oswaldo Porchat ldquoOs argumentos lsquodestrutivosrsquo satildeo construiacutedos no melhor estilo dogmaacutetico seguem os padrotildees da loacutegica e da demonstraccedilatildeo dogmaacutetica satildeo argumentos dogmaacuteticos sob esse prisma em nada se distinguem em natureza dos argumentos dogmaacuteticos lsquoconstrutivosrsquo com os quais se fazem conflitar Porque o que importa aos pirrocircnicos mostrar eacute precisamente esta ambivalecircncia fundamental e constitutiva da argumentaccedilatildeo dogmaacutetica que implica sua autodestruiccedilatildeo graccedilas agrave manifestaccedilatildeo da isostheacuteneia e agrave subsequumlente inevitabilidade da epokheacute O pirronismo faz o dogmatismo assim servir agrave denuacutencia do dogmatismo ele usa o dogmatismo instrumentalmenterdquo Cf Porchat O Rumo ao ceticismo pp 158-159
42 Cf AM VIII 481 In Contra os loacutegicos segundo livro ediccedilatildeo da Loeb Classical Library Willian Heinemann Londres trad de R G Bury 1983 vol 2
43 A propoacutesito da instrumentalidade dos argumentos proferidos pelos ceacuteticos veja-se tambeacutem a seguinte passagem das Hipotiposes ldquoMas eacute preciso saber que natildeo eacute nosso desiacutegnio asserir que eacute irreal o criteacuterio da verdade (isso seria dogmaacutetico) poreacutem jaacute que os dogmaacuteticos parecem ter estabelecido de modo persuasivo que haacute um criteacuterio da verdade noacutes lhe opusemos argumentos que parecem ser persuasivos nem sustentando que satildeo verdadeiros nem que satildeo mais persuasivos que seus contraacuterios mas inferindo a suspensatildeo de juiacutezo em virtude da aparente igual persuasividade desses argumentos e dos que foram expostos pelos dogmaacuteticosrdquo (Cf HP II 79 tambeacutem AM VII 443-4)
39
Tambeacutem aqui em relaccedilatildeo aos argumentos que os ceacuteticos apresentam contra os
argumentos dogmaacuteticos vale ser feita a comparaccedilatildeo dos mesmos com os remeacutedios purgativos
ndash e o ceacutetico a faz ndash pois esses argumentos de algum modo se suprimem a si proacuteprios
juntamente com aqueles outros que se pretendem probativos44
Em suma a linguagem para o ceacutetico eacute considerada de um ponto de vista bem diferente
do que ela o eacute para o dogmaacutetico Para este a linguagem deve ser veiacuteculo de transmissatildeo do
verdadeiro do que eacute absoluto daquilo que eacute natildeo-evidente Dessa perspectiva cada palavra
tem um peso precisa ser empregada de uma maneira muito especiacutefica a fim de que
determinada tese dogmaacutetica seja posta
Outra eacute todavia a perspectiva do ceacutetico as palavras expressotildees argumentos natildeo
possuem para ele essa capacidade de dizer o conhecimento a verdade o absoluto Elas apenas
satildeo o meio pelo qual declara aquilo que lhe aparece em determinado momento Como ele
mesmo diz seu uso da linguagem eacute frouxo natildeo pretende se expressar de modo preciso Assim
como agora se valeu deste termo pode substituiacute-lo por um outro com vistas a evitar que o
compreendam dogmaticamente45 Eacute-lhe indiferente que termos utilize na sua vida cotidiana
ou no seu ataque ao dogmatismo ldquonatildeo conveacutem ao ceacutetico disputar a respeito de palavras
(expressotildees)rdquo46
E aqui entra em cena um outro aspecto do ceticismo e que se vincula a essa forma natildeo-
dogmaacutetica de encarar a linguagem o ldquofenomenismordquo ceacutetico
A linguagem eacute apenas o meio pelo qual o ceacutetico expressa como foi dito em algumas
ocasiotildees neste estudo aquilo que lhe aparece E o que lhe aparece eacute tatildeo sujeito a variaccedilotildees
quanto a linguagem de que ele se utiliza Como veremos a noccedilatildeo de fenocircmeno vai
desempenhar um papel central na economia da filosofia ceacutetica Eacute por meio dela que o ceacutetico
passa a se orientar na sua vida comum e tambeacutem no exerciacutecio de sua atitude filosoacutefica natildeo-
44 Cf HP I 188 Ou ainda ldquoPois haacute muitas coisas que produzem em si proacuteprias o mesmo efeito que produzem em outras coisas Por exemplo assim como o fogo apoacutes consumir a madeira se destroacutei tambeacutem a si proacuteprio e da mesma maneira como os purgativos apoacutes expulsarem dos corpos os fluidos tambeacutem a si mesmos se expelem assim tambeacutem pode o argumento contra a prova ao ter destruiacutedo toda prova tambeacutem a si mesmo suprimir-serdquo (Cf AM VIII 480)
45 Cf HP I 207
46 Ibidem I 207
40
dogmaacutetica Mas o que propriamente significa o fenocircmeno para ele Por que ele seraacute o criteacuterio
segundo o qual ele se conduz
Uma vez que seja estabelecida a equumlipolecircncia isto eacute essa posiccedilatildeo de equiliacutebrio das
forccedilas em disputa o ceacutetico natildeo tendo como decidir por uma ou por outra alternativa dado
que ambas satildeo aparentemente uma tatildeo persuasiva quanto a outra eacute levado agrave epokheacute A
respeito de todas as formas de dogmatismo que investiga tanto os filosoacuteficos quanto os natildeo-
filosoacuteficos acaba sendo ele levado casualmente agrave suspensatildeo de seu juiacutezo
Se for incapaz de decidir fica a impressatildeo de que uma vez adotado o seu ponto de
vista estariacuteamos condenados agrave paralisia Fazer opccedilotildees tomar decisotildees tanto no plano praacutetico
quanto no plano discursivo de alguma forma envolve que se considere que isto eacute preferiacutevel a
aquilo outro que um seja melhor que o outro em determinada situaccedilatildeo Se um ceacutetico se vecirc na
incapacidade de preferir isto a aquilo outro se natildeo consegue decidir visto que encontra
reiteradamente um conflito indecidiacutevel nas coisas que na sua investigaccedilatildeo dos natildeo-evidentes
um equiliacutebrio das posiccedilotildees opostas se estabelece como algueacutem poderia continuar a viver caso
pautasse sua vida pelo ceticismo O resultado da empresa ceacutetica soacute poderia ser mesmo a
paralisia a impossibilidade do agir no seu sentido mais geral
Um dogmaacutetico entatildeo poderia dizer que o ceacutetico assim como ele para agir precisa
decidir E se decidiu teve de considerar que esta decisatildeo eacute melhor que a outra segundo algum
criteacuterio que ele todavia outrora criticou como dogmaacutetico E natildeo haveria como acontecer de
outra forma afinal como poderiacuteamos prosseguir com nossa vida sem que tomaacutessemos
qualquer forma de decisatildeo
De fato o ceacutetico natildeo permaneceraacute inativo em virtude da sua incapacidade de decidir e
que o leva agrave suspensatildeo de juiacutezo Ele como qualquer outro homem continuaraacute tomando
decisotildees e levando adiante sua vida Mas como eacute possiacutevel que apoacutes a epokheacute deixe de ser
inativo sem que ao mesmo tempo acabe por contradizer a sua proacutepria postura filosoacutefica
A resposta estaacute no criteacuterio que vai guiar sua conduta o fenocircmeno Como sabemos o
ceacutetico natildeo tem instrumentos suficientes que lhe permitam decidir a respeito da verdade ou da
41
falsidade de uma teoria que porventura pretenda apresentar a verdade Ele natildeo tem mesmo
como decidir se no acircmbito da experiecircncia sensiacutevel mais comezinha se o mel eacute realmente
doce ou natildeo Enfim tanto no acircmbito dos discursos mais sofisticados da filosofia ou da ciecircncia
quanto no acircmbito de tudo que diga respeito agrave sua vida de homem comum natildeo tem como
proferir um juiacutezo de caraacuteter dogmaacutetico Com o apoio de qual criteacuterio poderaacute decidir que isto eacute
verdadeiro e aquilo falso Naquilo que investiga em relaccedilatildeo ao que se diz dogmaticamente
natildeo consegue encontrar um criteacuterio que lhe permita ter ecircxito na busca pela verdade realidade
das coisas assim como o faz o dogmaacutetico Por toda a parte encontra conflito e desacordo
Para alguns o criteacuterio da verdade possui tais e tais caracteriacutesticas para outros ele possui
caracteriacutesticas diferentes Para outros ainda nem haveria um criteacuterio de verdade47 A noccedilatildeo de
criteacuterio proposta pelos dogmaacuteticos qualquer que ela seja ndash filosoacutefica ou natildeo mais ou menos
elaborada ndash acaba sempre natildeo passando ilesa pelo exame ceacutetico Nos termos pretendidos
pelos dogmaacuteticos natildeo haacute como o ceacutetico natildeo ser levado a suspender seu juiacutezo em relaccedilatildeo a
essa noccedilatildeo Guiar-se por um criteacuterio de maneira anaacuteloga a que os dogmaacuteticos o fazem
significa para o ceacutetico ir portanto contra a orientaccedilatildeo central de sua atitude filosoacutefica Como
obter um criteacuterio que permita concluir pela verdade de que as coisas sejam realmente desta ou
daquela maneira Toda vez que investigou se este ou aquele criteacuterio eacute o verdadeiro o ceacutetico
em acordo com sua atitude investigativa apenas foi trazido agravequele estado de incapacidade de
se decidir agrave maneira dogmaacutetica que assim fez com que suspendesse seu juiacutezo
Eacute em virtude do que acima dissemos que criteacuterio para ele natildeo pode ser entendido
como ldquoaquele a que recorremos para nos convencer da realidade ou da natildeo-realidade de
qualquer coisardquo48
Em que sentido poderiacuteamos entatildeo falar ainda em criteacuterio Para o ceacutetico o criteacuterio seraacute
como jaacute foi mencionado o ldquofenocircmenordquo o que aparece (tograve phainoacutemenon) aquilo que lhe
permite natildeo permanecer inativo em virtude da epokheacute e ldquoconforme ao qual na conduta da
vida praticamos certas accedilotildees e nos abstemos de outrasrdquo49
Se o ceacutetico assim como qualquer outro natildeo estaacute impossibilitado de agir visto que age
de acordo com o que lhe aparece isto que lhe aparece e o faz agir natildeo envolve alguma espeacutecie
47 Para uma discussatildeo geral da problemaacutetica do criteacuterio cf HP II 14-79
48 Cf HP I 21
49 Cf HP I 21
42
de decisatildeo baseada em algum criteacuterio dogmaacutetico a respeito do que quer que seja O que lhe
aparece eacute fruto de um assentimento e de uma afecccedilatildeo involuntaacuteria (Cf HP I 22) Ele eacute
constrangido por uma afecccedilatildeo que a ele se impotildee a agir dessa ou daquela maneira Assim se
ele sente calor ou frio ele natildeo iraacute dizer que acredita natildeo sentir nem calor nem frio (Cf HP I
13) Ele daraacute seu assentimento a esse fenocircmeno que a ele se impotildee ou o calor ou o frio As
decisotildees a serem tomadas seratildeo todas feitas a partir do que aparece Natildeo estaacute no poder dele
por conseguinte decidir-se a respeito do que lhe aparece mas sim decidir-se a partir do que
lhe apareceu Nem poderia ser de outro modo afinal como poderia questionar o proacuteprio
aparecer Quais criteacuterios poderiam guiaacute-lo A mera tentativa que se encaminhasse nessa
direccedilatildeo envolveria um retorno agrave perspectiva dos dogmaacuteticos O fenocircmeno eacute inquestionaacutevel
(azeacutetetoacutes)50 Natildeo haacute o que teorizar a respeito dele Se o ceacutetico tem algo a questionar do
fenocircmeno ele o faz com relaccedilatildeo agraves discussotildees que os dogmaacuteticos dele fazem Qualquer
asserccedilatildeo proferida com a intenccedilatildeo de demonstrar como o fenocircmeno seja realmente e por meio
da qual pretenda-se afirmar uma verdade a seu respeito eacute posta sob investigaccedilatildeo
A partir do que acaba de ser dito talvez fique mais faacutecil entender porque Sexto se
refira no capiacutetulo 10 das Hipotiposes agravequeles que dizem que os ceacuteticos suprimem as
aparecircncias51 Com efeito se for levado em conta os discursos que dogmaticamente pretendem
estabelecer algo em relaccedilatildeo agraves aparecircncias poderiacuteamos entatildeo dizer que os ceacuteticos ldquosuprimemrdquo
as aparecircncias Natildeo eacute o que de fato acontece Os ceacuteticos ndash diante da existecircncia de diversos
discursos conflitantes que tentam cada um de maneira diferente com um grau maior ou
menor de sofisticaccedilatildeo dogmatizar a respeito do que aparece discursos que podem ter contra
eles outros discursos opostos e aparentemente tatildeo dignos de aceitaccedilatildeo ndash satildeo levados agrave
suspensatildeo de juiacutezo Do que se diz a respeito dos fenocircmenos nada pode ele afirmar ou negar
Qualquer juiacutezo que emitisse acerca dos fenocircmenos envolveria a assunccedilatildeo de dogmas E se haacute
supressatildeo das aparecircncias essa supressatildeo se faz a respeito das aparecircncias vistas sob a oacutetica do
discurso dogmaacutetico Natildeo haacute supressatildeo portanto daquilo que lhe aparece e natildeo pode evitar
ldquoPois como noacutes dissemos acima noacutes natildeo derrubamos a representaccedilatildeo passiva (φαντασίαν
παθητικήν) que induz nosso assentimento involuntariamente e essas impressotildees satildeo os
fenocircmenosrdquo52
50 Cf HP I 22
51 Cf HP I 19
52 Cf HP I 19-20
43
Mas tatildeo longe da perspectiva ceacutetica seria tambeacutem todavia afirmar que o dogmatismo
se pode encontrar no coraccedilatildeo do ceticismo em virtude de se considerar o fenocircmeno
inquestionaacutevel
Quando se afirma que o fenocircmeno eacute inquestionaacutevel natildeo se procura dessa maneira
afirmar que ele seja representaccedilatildeo fiel da realidade A aceitaccedilatildeo do fenocircmeno por parte do
ceacutetico se faz isenta de opiniatildeo (adoxaacutestos) Constato diria ele que algo me aparece e guia
minha accedilatildeo natildeo sou capaz contudo de afirmar nada dogmaticamente a respeito desse
aparecer O que natildeo posso eacute questionar que ele a mim se impotildee Dizer o que ele eacute realmente
natildeo eacute algo que esteja em meu poder afirmar Para aleacutem dessa constataccedilatildeo isenta de opiniatildeo
isto eacute natildeo acompanhada de nenhum discurso que procure por exemplo fundamentar esse
caraacuteter inquestionaacutevel daquilo que me aparece natildeo tenho nada a dizer meu juiacutezo estaacute quanto
a este ponto suspenso O que a mim me aparece aparece de modo irrecusaacutevel independente
de minha vontade
Natildeo eacute agrave toa que comumente qualifica de involuntaacuteria a afecccedilatildeo que determinaraacute o seu
agir O fenocircmeno eacute uma afecccedilatildeo isto eacute um paacutethos algo que afeta o ceacutetico e natildeo depende
dele Ele sofre a accedilatildeo de algo que o leva ao assentimento53
O proacuteprio assentimento ao fenocircmeno eacute fruto de um reconhecimento O assentimento
que ele daacute agravequilo que lhe aparece seria apenas a concessatildeo agravequilo que ele natildeo pode evitar e
determina seu agir54
Nessa nossa tentativa de explicitar o ldquofenomenismordquo ceacutetico talvez seja vaacutelido ainda
acrescentar que quando se trata de fenocircmeno no ceticismo eacute necessaacuterio que deixemos de
pensar em termos de uma distinccedilatildeo que poderia existir entre ser e aparecer Natildeo estamos mais
aqui nos movendo no quadro da distinccedilatildeo que muitos filoacutesofos ldquodogmaacuteticosrdquo fizeram entre o
domiacutenio do sensiacutevel das coisas que nos aparecem e o domiacutenio do inteligiacutevel no qual
poderiacuteamos ter acesso ao que as coisas sejam realmente para aleacutem das variaccedilotildees que podem
ser observadas no domiacutenio sensiacutevel
53 ldquo() mas nos dizemos que o ceacutetico eacute perturbado pelas coisas que natildeo consegue evitar Assim noacutes concedemos que ele agraves vezes sente frio e tem sede e sofre vaacuterias afecccedilotildees semelhantesrdquo (Cf HP I 29)
54 A mesma passividade jaacute se observava com relaccedilatildeo agrave suspensatildeo de juiacutezo O que temos agora no que concerne agrave atitude ceacutetica para com o ldquofenocircmenordquo eacute apenas um desdobramento de como um ceacutetico pode exercer sua conduta filosoacutefica uma vez afastado do dogmatismo
44
O fenocircmeno ou aquilo que aparece natildeo abrange para o ceacutetico um domiacutenio separado e
que remeta a um outro domiacutenio que lhe daria seu fundamento No ceticismo fenocircmeno tem
de ser compreendido no sentido mais amplo possiacutevel Nenhum estatuto ontoloacutegico ou
epistemoloacutegico deve lhe ser acrescentado Tudo que aparece ao ceacutetico e lhe determina o agir
apoacutes a epokheacute eacute fenocircmeno Aderindo entatildeo aos ldquofenocircmenosrdquo na observacircncia da vida vive ele
sem opinar (adoxaacutestos)55
Aparece entatildeo a ele que ele tem de se guiar por suas faculdades naturais pelas
afecccedilotildees compulsoacuterias pela tradiccedilatildeo das leis e costumes e pelos ensinamentos das artes56
Com essa divisatildeo do que pode aparecer ao ceacutetico e o permite se conduzir em sua vida mostra-
se assim que do mesmo modo que com os outros homens filoacutesofos ou natildeo seu agir em
princiacutepio natildeo diferiraacute em nada do deles Apoacutes a epokheacute continuaraacute a realizar as mesmas
accedilotildees a viver a mesma vida que todos os outros vivem mas apenas com uma diferenccedila ele
viveraacute mas sem opinar O ceacutetico estaacute consciente de que ele sente fome sede que pensa que
ouve que haacute uma mesa agrave sua frente que algueacutem passa andando agrave sua frente que esta pessoa
se movimenta Ele natildeo nega esses fatos Apenas que natildeo profere nenhuma asserccedilatildeo natildeo
elabora nenhuma teoria que pretendesse dizer o que significariam em si mesmos em sua
realidade esses fenocircmenos Isso quer dizer que ele na sua vida age mas sem pretender fazer
algo fundado nalguma teoria segundo algum criteacuterio que o indique ser melhor isto do que
aquilo este preferiacutevel agravequele dado que soubesse estar agindo de acordo com a verdade
O ceacutetico assente ao que lhe aparece entretanto isto que lhe aparece pode hoje aparecer
de um modo e amanhatilde pode aparecer de outro Aquilo que lhe aparece natildeo eacute aceito porque
estaria de acordo com alguma verdade seria a expressatildeo da realidade mesma em suma essa
afecccedilatildeo (paacutethos) que se lhe impotildee natildeo deve sua aceitaccedilatildeo a um possiacutevel teor dogmaacutetico da
mesma As aparecircncias estatildeo sujeitas a mudanccedilas tanto quanto aquele para quem elas
aparecem Fundado em que posso dizer que aquilo que a mim me aparece tambeacutem iraacute
aparecer da mesma maneira para todos os outros homens Uma vez afastada a perspectiva
dogmaacutetica soacute resta ao ceacutetico comunicar individualmente como fruto de uma experiecircncia
pessoal aquilo que lhe aparece Se a perspectiva dogmaacutetica estaacute afastada eacute perfeitamente
coerente com o ceticismo que o que conduz o ceacutetico na sua vida possa variar Natildeo haacute nada
que o prenda a determinada linha de conduta Se ele age sempre da mesma maneira tal
55 Cf HP I 23
56 Cf HP I 23
45
comportamento natildeo eacute obstaacuteculo a uma mudanccedila de conduta Como jaacute foi salientado o que
hoje lhe aparece de um modo amanhatilde pode aparecer diferente
Na conduccedilatildeo natildeo-dogmaacutetica de sua vida de acordo com o fenocircmeno o ceacutetico procura
agir em conformidade com a finalidade do ceticismo a saber tranquumlilidade (ataraxiacutea) com
respeito a mateacuteria de opiniatildeo e moderaccedilatildeo nos sentimentos (metriopateacuteia) com respeito a
coisas inevitaacuteveis57
Com efeito a busca dogmaacutetica pela tranquumlilidade soacute trouxe dissabores ao ceacutetico Por
essa via natildeo foi capaz de distinguir o verdadeiro do falso nas coisas que investigou natildeo
conseguiu chegar a nenhuma verdade absoluta A uacutenica coisa a que chegou foi encontrar
contradiccedilotildees naquilo que investigava Dessa maneira diante do conflito de igual forccedila entre
argumentos discursos opostos sem poder se decidir por um dos lados em disputa a
tranquumlilidade lhe adveio casualmente com a suspensatildeo do juiacutezo58
Aleacutem disso a moderaccedilatildeo nos sentimentos adveacutem de sua postura natildeo-dogmaacutetica e que
o leva a conduzir-se na vida de acordo com os fenocircmenos Se natildeo haacute dogmas a serem aceitos
entatildeo os ceacuteticos natildeo sofreratildeo como no caso dos dogmaacuteticos por considerarem que possa
haver coisas boas ou maacutes por natureza59 Se o ceacutetico sofre e como assinala Sexto ele de fato
natildeo estaacute assim como natildeo estatildeo os outros homens isento de perturbaccedilotildees em sua vida60 o
sofrimento causado por qualquer forma de perturbaccedilatildeo poderaacute ser minimizado em virtude
dessa atitude consistente no viver conforme o fenocircmeno Natildeo que ele efetivamente natildeo possa
em nenhuma hipoacutetese vir a ter uma qualquer perturbaccedilatildeo Nada mais distante do ceticismo
Apenas que a sua postura filosoacutefica talvez seja mais capaz de realizar a finalidade que ele se
propotildee alcanccedilar De acordo com o que me aparece poderia ele dizer vejo que agindo como
ajo estou menos propenso a ficar perturbado e intranquumlilo do que aqueles que procuram viver
de acordo com dogmas
57 Cf HP I 25
58 Cf Ibidem I 26
59 Cf Ibidem I 27
60 Cf Ibidem I 29
46
Os tropos ceacuteticos
Com o intuito de chegar agrave suspensatildeo de juiacutezo o procedimento de que se serve o ceacutetico
consiste como jaacute mencionado61 em produzir oposiccedilotildees entre as coisas Essas oposiccedilotildees natildeo
seguem regras especiacuteficas Das mais variadas maneiras portanto satildeo elas produzidas Desse
modo opotildeem-se aparecircncias a aparecircncias juiacutezos a juiacutezos aparecircncias a juiacutezos e assim por
diante62
Os tropos satildeo diversos modos pelos quais os ceacuteticos produzem essas antinomias e
assim ele pode ser levado agrave suspensatildeo do juiacutezo Entre os modos mais antigos contam dez63
Satildeo eles o primeiro baseado na variedade dos animais o segundo nas diferenccedilas entre os
homens o terceiro nas diferentes estruturas dos oacutergatildeos dos sentidos o quarto nas
circunstacircncias o quinto nas posiccedilotildees distacircncias e lugares o sexto nas misturas o seacutetimo
nas quantidades e constituiccedilatildeo dos objetos o oitavo na relaccedilatildeo o nono na frequumlecircncia ou
raridade de ocorrecircncia o deacutecimo nos costumes e leis nas crenccedilas miacuteticas e convicccedilotildees
dogmaacuteticas
Podemos dizer de modo sucinto que esses tropos nos mostram o caraacuteter relativo de
todas as coisas A partir de cada um deles considerando-se um aspecto especiacutefico podemos
apontar a relatividade das coisas Tanto eacute assim que o tropo da relaccedilatildeo eacute visto como aquele ao
qual todos os outros nove podem se referir64
Aleacutem desse tropos existem outros cinco posteriores que igualmente satildeo meios de que
se vale o ceacutetico para ser trazido agrave epokheacute o primeiro baseado na diaphoniacutea (discrepacircncia
controveacutersia) o segundo na regressatildeo ao infinito o terceiro na relatividade o quarto na
61 Ver a respeito pp 30-32
62 Cf HP I 31
63 Na sua exposiccedilatildeo do ceticismo de Enesidemo Brochard nos lembra que se os dez tropos foram argumentos que os ceacuteticos mais antigos nos legaram foi justamente Enesidemo que os ordenou e numerou na forma que noacutes os conhecemos O proacuteprio Sexto continua ele assim como Aristocleacutes e Dioacutegenes atribuem os dez tropos a Enesidemo Assim para os estudiosos do ceticismo esses tropos satildeo conhecidos como os tropos de Enesidemo A respeito do que agora foi dito e para uma apresentaccedilatildeo sumaacuteria desses tropos cf Brochard V Les sceptiques grecs Paris Vrin 1969 pp 253-259
64 Cf HP I 39
47
hipoacutetese o quinto no raciociacutenio circular Esses cinco tropos ficaram conhecidos como os
tropos de Agripa65
Com efeito pelo tropo da diaphoniacutea somos postos de frente ao conflito interminaacutevel
de opiniotildees a respeito de todos os assuntos conflito que pode ter surgido tanto entre pessoas
comuns e entre filoacutesofos A dificuldade em decidir do ceacutetico dada essa imensa variedade de
opiniotildees a sua incapacidade em acolher ou rejeitar esta ou aquela opiniatildeo acaba por levaacute-lo agrave
suspensatildeo do juiacutezo66
Pelo tropo da regressatildeo ao infinito o ceacutetico pede ao dogmaacutetico que forneccedila uma nova
prova para o tema pesquisado pois a prova que fora aduzida natildeo lhe pareceu suficiente E
essa nova prova tambeacutem natildeo eacute suficiente e assim pede uma nova prova o que leva a uma
regressatildeo que natildeo tem fim67
O tropo da relatividade nos mostra que o assunto investigado aparece recorrentemente
numa determinada relaccedilatildeo isto eacute estaacute sujeito a uma determinada condiccedilatildeo o que impede que
o que se diga dele seja posto de modo absoluto Assim o assunto estaacute por exemplo
relacionado ao sujeito que julga esse sujeito constitui-se num determinado ponto de vista
natildeo-universalizaacutevel Desse modo diante da relatividade das coisas o ceacutetico eacute induzido agrave
suspensatildeo do juiacutezo68
O tropo da hipoacutetese nos impede de aceitar algo como ponto de partida sem nenhuma
demonstraccedilatildeo Isto acontece porque podemos da mesma maneira que aquele que avanccedilou
essa hipoacutetese tambeacutem levantar uma outra hipoacutetese contraacuteria e sem para tanto aduzir nenhuma
demonstraccedilatildeo para a mesma Tanto uma quanto a outra seratildeo dignas do mesmo creacutedito Natildeo
haacute assim motivo para que uma seja mais aceitaacutevel que sua contraacuteria69
65 De acordo com Brochard a referecircncia desses tropos a Agripa se faz com base na menccedilatildeo de Dioacutegenes a esse filoacutesofo no momento em que cita esses cinco tropos na mesma ordem e termos que o faz Sexto Empiacuterico que no entanto natildeo faz menccedilatildeo a Agripa Acerca da exposiccedilatildeo desses tropos por Brochard cf Les sceptiques grecs pp 300-303
66 Cf HP I 165
67 Cf HP I 166
68 Cf Ibidem I 167
69 Cf Ibidem I 168
48
Por fim pelo tropo do raciociacutenio circular eacute absurdo imaginar que aquilo que seraacute
objeto de prova seja provado a partir daquilo mesmo que aguarda prova e desse modo
acabamos sendo levados novamente agrave epokheacute70
Como poderemos acompanhar neste estudo Hegel estaraacute sempre convencido que a
filosofia precisa tomar a seacuterio essa radicalidade da criacutetica ceacutetica pois de outra maneira a
filosofia corre o risco de perecer diante dessa mesma criacutetica Hegel estaacute atento a esse aspecto
diriacuteamos negativo do ceticismo Tanto eacute assim que ele por exemplo na discussatildeo que
empreende na Ciecircncia da Loacutegica71 acerca do comeccedilo da filosofia tem em vista sempre uma
possiacutevel criacutetica ceacutetica e mais precisamente por meio dos tropos Aleacutem disso esta exposiccedilatildeo
da filosofia ceacutetica permite que se possa eacute o que nos parece avaliar a compreensatildeo hegeliana
do ceticismo e o aproveitamento do mesmo em sua filosofia
70 Cf Ibidem I 169
71 Com relaccedilatildeo ao mesmo tema tambeacutem haacute essa preocupaccedilatildeo na Enciclopeacutedia quando trata da Loacutegica
49
Capiacutetulo 2 ndash O ceticismo na filosofia do jovem Hegel
No seu artigo ldquoRelacionamento do ceticismo agrave filosofiardquo72 Hegel dentre outros
objetivos apresenta sua concepccedilatildeo do papel do ceticismo na filosofia A esse respeito natildeo
nos parece insensato dizer que para o filoacutesofo a possibilidade da filosofia estaacute em larga
medida atrelada agrave consideraccedilatildeo do desafio imposto pela criacutetica ceacutetica do caraacuteter dogmaacutetico
das filosofias73 Natildeo que para que haja filosofia o ceticismo precise ser afastado por meio de
uma refutaccedilatildeo que aponte a falta de propoacutesito de sua atitude filosoacutefica Eacute legiacutetima para Hegel
a criacutetica ceacutetica das filosofias O que natildeo implica para ele que devamos nos tornar ceacuteticos Natildeo
teremos aqui portanto nem adesatildeo ao ceticismo e nem uma mera refutaccedilatildeo do mesmo
Teremos o quecirc entatildeo
No mesmo artigo sobre o Ceticismo veremos que a soluccedilatildeo apresentada por Hegel
para esse impasse envolve a incorporaccedilatildeo do ceticismo agrave sua filosofia Nesta o ceticismo seraacute
um momento fundamental O que ele chama de seu lado negativo e que prepara o surgimento
de seu momento positivo ou o lado positivo da filosofia Por traacutes dessa incorporaccedilatildeo do
ceticismo agrave filosofia opera uma distinccedilatildeo feita por Hegel entre o que seja o entendimento e o
que seja a razatildeo Neste escrito que trata da filosofia ceacutetica natildeo temos todavia uma exposiccedilatildeo
mais minuciosa do significado desses termos
Interessa-nos aqui retomar um outro texto de Hegel a saber Diferenccedila entre o sistema
filosoacutefico de Fichte e de Schelling74o assim chamado Escrito sobre a Diferenccedila pois eacute nele
72 GW 4 pp 197-238
73 No tocante ainda agrave importacircncia decisiva da filosofia ceacutetica para Hegel e levando-se em conta nossa interpretaccedilatildeo que busca entre outras coisas apontar para a relaccedilatildeo natildeo-defensiva do autor para com o ceticismo cremos natildeo estar sozinhos e por isso talvez natildeo seja exagerado mencionar a seguinte declaraccedilatildeo de Michael Forster ldquoEm primeiro lugar a interpretaccedilatildeo hegeliana da tradiccedilatildeo ceacutetica na filosofia e sua reaccedilatildeo a essa tradiccedilatildeo satildeo absolutamente fundamentais para a sua perspectiva filosoacutefica de modo que regiotildees extensas de seu pensamento permanecem obscuras ateacute que essa interpretaccedilatildeo e reaccedilatildeo sejam apropriadamente compreendidas Em segundo lugar as reflexotildees hegelianas a respeito da natureza da tradiccedilatildeo ceacutetica possuem meacuterito intriacutenseco consideraacutevel contendo lsquoinsightsrsquo originais e que podem ser aproveitados por historiadores contemporacircneos da filosofia e filoacutesofos interessados pelo ceticismordquo In Forster M Hegel and Skepticism CambridgeMassachusetts Harvard University Press 1989 p 1 E com respeito precisamente agrave interpretaccedilatildeo hegeliana do ceticismo antigo no livro de Forster ver os capiacutetulos 1 e 2
74 GW 4 pp 5-92
50
que encontraremos uma exposiccedilatildeo detalhada do significado de entendimento e razatildeo e que
nos permitiraacute melhor compreender na visatildeo do jovem Hegel o papel do ceticismo na
filosofia75
Eacute no capiacutetulo inicial do Escrito sobre a Diferenccedila que tem como tiacutetulo ldquo[Das] vaacuterias
formas que se encontram no filosofar atualrdquo que encontramos um tratamento mais detalhado
do significado de entendimento e razatildeo
Tendo como pano de fundo um diagnoacutestico e uma criacutetica da cultura (Bildung) de sua
eacutepoca todavia com o foco aiacute voltado para a filosofia que satildeo efetuadas as consideraccedilotildees
hegelianas a respeito de entendimento e razatildeo Esta criacutetica estaacute alicerccedilada na reflexatildeo criacutetica
da razatildeo sobre si mesma empreendida por Kant mas que Hegel por considerar a mesma
insuficiente procura prolongar e tornaacute-la mais radical76 Nesse sentido a radicalidade da
criacutetica ceacutetica a toda forma de pensamento finito eacute um elemento importante a contribuir nessa
tarefa criacutetica hegeliana
Com efeito Hegel afirma que a razatildeo como manifestaccedilatildeo do absoluto que eacute busca na
sua auto-produccedilatildeo modelar o absoluto numa totalidade objetiva77 O ecircxito da atividade
especulativa da razatildeo depende de se alcanccedilar a identidade a mais completa a identidade
absoluta quando a filosofia do sistema coincide com o proacuteprio sistema Todavia nem sempre
essa identidade eacute alcanccedilada Ainda mais numa eacutepoca em que ldquoa potecircncia de unificaccedilatildeo
desaparece da vida dos homens e as oposiccedilotildees tendo perdido seu relacionamento vivo e sua
75 Vale mencionar ainda apenas a tiacutetulo ilustrativo que o Escrito sobre a Diferenccedila fora publicado em 1801 e o artigo sobre o Ceticismo em 1802 e apenas com poucos meses de diferenccedila
76 ldquoO princiacutepio da independecircncia da razatildeo de sua absoluta autonomia em si mesma deve ser considerado de agora em diante como princiacutepio universal da filosofia e tambeacutem como um dos preconceitos da eacutepocardquo In GW 20 p 99 trad brasileira por Paulo Meneses Enciclopeacutedia das Ciecircncias Filosoacuteficas Satildeo Paulo Loyola 1992 p 136
77 Cf GW 4 p 10 e p 30 trad p 84 e p 104
51
accedilatildeo reciacuteproca ganham subsistecircncia por sirdquo78 Vive-se portanto numa eacutepoca em que a
fragmentaccedilatildeo e o isolamento passaram a ser dominantes em todos os aspectos da vida Uma
cultura fundada no entendimento prosperou e passou a ser dominante79 Mas por mais que seja
um dado da vida esse seu cultivar-se a partir da eterna produccedilatildeo de oposiccedilotildees esta atividade
natildeo pode levar agrave perda de qualquer possibilidade de unificaccedilatildeo Por isso eacute preciso a partir do
combate a essa Bildung limitadora tentar restaurar a harmonia perdida
No aspecto filosoacutefico esse desaparecimento da unificaccedilatildeo que pode ser observado
pelo predomiacutenio dessa cultura regida pela potecircncia da cisatildeo (Entzweiung)80 na qual as
oposiccedilotildees como jaacute foi dito tornaram-se autocircnomas configura-se em uma cultura filosoacutefica
fundada tambeacutem no entendimento uma cultura filosoacutefica na qual a razatildeo renuncia a si mesma
em prol do entendimento (Cf GW 4 p 15)
E o que pode significar para a filosofia estar sob a eacutegide do entendimento Significa
como veremos estar vulneraacutevel aos ataques do ceticismo Cremos que Hegel jaacute neste
momento mesmo sem haver referecircncia direta estaacute preocupado com a defesa da filosofia
perante a criacutetica ceacutetica Em vista da situaccedilatildeo da filosofia naquele momento o diagnoacutestico
hegeliano aponta para o fracasso de qualquer tentativa filosoacutefica de se sustentar perante uma
possiacutevel criacutetica de teor ceacutetico
Com efeito Hegel constatou ser a sua eacutepoca aquela em que a cultura fruto da cisatildeo do
absoluto isolou-se do mesmo e tornou-se autocircnoma81 Mas o fenocircmeno justamente por advir
do absoluto quer se constituir numa totalidade Se o fenocircmeno se constituir num todo a partir
dessa forccedila que limita ndash o entendimento e apoiado em todas as potecircncias da natureza e dos
talentos82 ao final desse processo teraacute apenas uma totalidade composta de limitaccedilotildees um
conjunto de partes justapostas mas natildeo o absoluto E quanto maior o esforccedilo em direccedilatildeo ao
absoluto mais e mais o entendimento produz a si mesmo numa totalidade composta de
finitos que natildeo teraacute fim O entendimento aiacute soacute faz zombar de si mesmo (seiner selbst
78 Ibidem p 14 trad p 88
79 Cf Ibidem pp 12-16 trad pp 86-90
80 Cf Ibidem p 14 trad p 88
81 Ibid p 12 trad p 86
82 Ibid pp 12-13 trad pp 86-87
52
spottet)83 Por outro lado o entendimento ao inveacutes de justapor os limitados por ele mesmo
postos num todo pode suprimindo todo finito fixar ldquoem um produto o negar racionalrdquo (ibid
p 13 trad p 87) Se a reflexatildeo pretendia elevar-se agrave razatildeo com a oposiccedilatildeo do infinito a todo
finito que nega fracassa nesse intento pois ldquoela se rebaixa novamente a entendimento ao
fixar o fazer da razatildeo na oposiccedilatildeordquo84 O infinito enquanto ato racional de negar opotildee-se a
todo finito por ele negado ldquoo entendimento ao fixar o negar do finito opotildee o mesmo
absolutamente ao finitordquo85 Nos dois casos acima descritos por mais que se tente natildeo se
consegue deixar a esfera das oposiccedilotildees Ou porque os opostos permanecem justapostos numa
totalidade finita que sempre pode se ampliar sem nunca tornar-se absoluta ou porque o negar
que se pretende racional natildeo atinge sua meta por manter-se em oposiccedilatildeo a todo finito
A cultura (Bildung) de diferentes eacutepocas observa Hegel mediante o trabalho do
entendimento produziu variadas formas de oposiccedilatildeo e pretendeu que elas valessem como
expressotildees do racional e do absoluto (Cf ibid p 13 trad p 87) Todavia o entendimento
arvorava-se em vatildeo realizar uma tarefa para a qual natildeo fora destinado A razatildeo tem como
uacutenico interesse suspender86 (aufheben) as oposiccedilotildees fixadas pelo entendimento pois essa eacute a
maneira de se tentar restabelecer a harmonia perdida com a dilaceraccedilatildeo do absoluto A tarefa
da razatildeo eacute ainda mais urgente numa eacutepoca que conforme o cenaacuterio descrito por Hegel a
formaccedilatildeo cultural cada vez mais se estende na forma de uma exteriorizaccedilatildeo da vida mediante
a potecircncia da cisatildeo num processo vertiginoso em que tornam-se os esforccedilos da vida mais e
mais alheios ao todo da formaccedilatildeo cultural e insignificantes na sua tentativa de parir
novamente a harmonia (Cf ibid p 14 trad p 88)
Este cenaacuterio eacute a descriccedilatildeo que Hegel faz de uma eacutepoca a sua na qual a filosofia que
natildeo seja mera expressatildeo do pensar limitado de entendimento faz falta Somente com a
realizaccedilatildeo da filosofia pode a cisatildeo absoluta posta pelo entendimento ser posta na sua
condiccedilatildeo verdadeira subalterna de cisatildeo relativa (Cf ibid p 14 trad p 88) Vive-se
83 Cf Ibid p 13 trad p 87
84 Ibid p 13 trad p 87 (ldquohat sich wieder zum Verstand erniedrigt indem sie das Thun der Vernunft in Entgegensetzung fixirterdquo)
85 Ibid p 13 trad p 87 (ldquoindem der Verstand es fixirt setzt er es dem Endlichen absolut entgegen rdquo)
86 Com efeito ao dizer que a razatildeo tem como uacutenico interesse suspender as oposiccedilotildees fixadas pelo entendimento isto se deve ao fato de que a razatildeo natildeo eacute contraacuteria agrave oposiccedilatildeo e agrave limitaccedilatildeo elas precisam existir mas que as oposiccedilotildees absolutamente fixadas impedem a restauraccedilatildeo da totalidade da harmonia absoluta (Cf GW 4 pp 13-14 trad pp 87-88)
53
segundo ele num periacuteodo carente de uma filosofia que cumpra sua tarefa isto eacute que ponha o
ser no natildeo-ser ndash como vir-a-ser a cisatildeo no absoluto ndash como seu fenocircmeno o finito no infinito
ndash como vida (GW 4 16) Sua concepccedilatildeo de razatildeo e de entendimento aleacutem do relacionamento
que entre ambos se estabelece indicam a direccedilatildeo pela qual poderaacute ocorrer o suprimento dessa
carecircncia e ao mesmo tempo tornar a filosofia imune ao ceticismo
Mas de volta agraves paacuteginas iniciais do Escrito sobre a Diferenccedila Hegel laacute notava que o
entendimento constitui-se num domiacutenio onde predomina o limitado Ele eacute ldquoa forccedila da
limitaccedilatildeordquo (GW 4 p 12) Toda determinaccedilatildeo que produz adveacutem de uma atividade reflexiva
apartada da razatildeo Hegel a chama de reflexatildeo isolada (GW 4 p 16) A reflexatildeo soacute pode dar
origem ao o limitado Isto significa que todo ser que ela produz estaraacute sempre numa relaccedilatildeo
com um outro ldquotodo ser porque ele eacute posto eacute um contraposto condicionado e
condicionanterdquo (GW 4 p 17) Sempre haveraacute um outro perante um posto A construccedilatildeo de
uma totalidade no plano do entendimento a formaccedilatildeo de um sistema filosoacutefico segundo suas
regras eacute uma tarefa que nunca se completaraacute uma tarefa fadada ao fracasso o entendimento
completa suas limitaccedilotildees que lhe satildeo proacuteprias mediante o pocircr das limitaccedilotildees contrapostas na
qualidade de condiccedilotildees essas carecem do mesmo completamento (Vervollstaumlndigung) e o
trabalho do entendimento se estende ao infinitordquo (GW 4 p 17) Todo ser posto pela atividade
reflexiva do entendimento natildeo subsiste por si soacute A sua limitaccedilatildeo torna-o dependente de um
outro que a ele se relaciona O entendimento contudo natildeo quer enxergar essa relaccedilatildeo de
dependecircncia existente entre os contrapostos Hegel chama isso de teimosia (Eigensinn) do
entendimento que ldquodeixa subsistir um ao lado do outro numa contraposiccedilatildeo natildeo unificada o
determinado e o indeterminado a finitude e a infinitude dadardquo (GW 4 p 17)
Na criacutetica de Hegel agrave limitaccedilatildeo do entendimento Klaus Vieweg vecirc e julgamos que de
modo acertado a aplicaccedilatildeo do 2ordm e 3ordm tropos de Agripa a essa faculdade do conhecer finito o
entendimento87
87 Vieweg K Philosophie des Remis Der junge Hegel und das ldquoGespenst des Skepticismusrdquo Muumlnchen Wilhelm Fink 1999 p 129 Cabe notar que este livro de Vieweg constitui uma minuciosa investigaccedilatildeo acerca da presenccedila do ceticismo na filosofia do jovem Hegel e em larga medida da discussatildeo em torno do ceticismo no mesmo periacuteodo na Alemanha Ver tambeacutem a respeito ndash e sob um ponto de vista mais amplo ndash da compreensatildeo hegeliana do ceticismo Vieweg K e Bowman B (orgs) Die freie Seite der Philosophie (Skeptizismus in hegelscher Perspektive) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 10 2006 O volume conteacutem uma seacuterie de artigos de diversos autores acerca do tema Tambeacutem no volume que organizou em torno do Jornal criacutetico da filosofia de Schelling e Hegel onde foi publicado o artigo ienense de Hegel sobre o ceticismo haacute alguns artigos tratando do tema ceticismo na filosofia do jovem Hegel Para tanto cf Vieweg K (org) Gegen das lsquounphilosophische Unwesenrsquo (Das Kritische Journal der Philosophie von
54
Se tudo que eacute posto pelo entendimento eacute limitado e finito ou seja em virtude dessas
caracteriacutesticas estaacute sempre na dependecircncia dado seu caraacuteter condicionado de um outro que o
complete na medida que a ele se relacione entatildeo natildeo seria descabido pensar aqui na criacutetica
por meio do 3ordm modo de Agripa ao caraacuteter relativo de todas as coisas (Cf HP I 167 tambeacutem
I 175-7)
Essa relatividade adveacutem para Hegel do fato de que o entendimento eacute regido pelo
princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo algo natildeo pode ser A e natildeo-A ao mesmo tempo Ao se aceitar o
princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo aceita-se concomitantemente o princiacutepio de identidade que A eacute
igual a A Segundo Hegel eacute por estar comandado por esses princiacutepios que o entendimento
estaraacute sempre sujeito a que as determinaccedilotildees por ele postas sejam sempre condicionadas e
possam a elas outras serem contrapostas Ele chama a identidade que rege o entendimento de
relativa e abstrata uma identidade limitada pois as determinaccedilotildees produzidas de acordo com
ela tem como caracteriacutestica proacutepria estarem abstraiacutedas de suas opostas (GW 4 p 25)
As proposiccedilotildees de entendimento satildeo constituiacutedas a partir de uma igualdade que exclui
de si a desigualdade Isto ocorre porque tais proposiccedilotildees satildeo regidas por uma identidade
formal Para o entendimento prossegue Hegel em A=A como princiacutepio de identidade estaacute
contida apenas uma igualdade e na qual se faz abstraccedilatildeo de toda desigualdade (GW 4 pp 24-
25)
Podemos adiantar entretanto que do ponto de vista da razatildeo postula-se tambeacutem ldquoa
posiccedilatildeo daquilo que foi abstraiacutedo na igualdade pura o pocircr do contraposto o pocircr da
desigualdaderdquo (GW 4 p 25) Assim A=A natildeo consiste numa igualdade pura Tal igualdade
se sustenta na medida em que o entendimento abstrai da posiccedilatildeo do contraposto da
desigualdade
Schelling und Hegel) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 7 2002 Cabe ainda mencionar a respeito do tema ceticismo e dos debates no qual ele aparece na filosofia alematilde em 1800 o volume organizado por Vieweg e Bowman Wissen und Begruumlndung (Die Skeptizismus-Debatte um 1800 im Kontext neuzeitlicher Wissenskonzeptionen Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 8 2003 Para uma anaacutelise do ceticismo na filosofia do jovem Hegel ver tambeacutem Hofweber G Skeptizismus als bdquodie erste Stuffe zur Philosophieldquo beim Jenaer Hegel Heidelberg Winter 2006 Dentro ainda do mesmo tema o artigo de Paulo Eduardo Arantes Nihilismusstreit in Ressentimento da Dialeacutetica Satildeo Paulo Paz e Terra 1996
55
Segundo Hegel em A=A o primeiro A eacute um sujeito e o outro A eacute um objeto O A que
estaacute posto do lado do sujeito natildeo eacute o mesmo A que estaacute posto do lado do objeto Eles satildeo
diferentes E a expressatildeo dessa diferenccedila eacute A natildeo eacute = A ou A eacute = B
Uma proposiccedilatildeo formal natildeo pode ser contraditoacuteria em si mesma No domiacutenio do
entendimento se expressa a igualdade numa proposiccedilatildeo e a cisatildeo ou desigualdade em outra
Mas quando entra em cena a razatildeo a identidade formal eacute deixada de lado Em A=A o A
posto do lado do sujeito soacute afirma sua identidade ao se relacionar com seu oposto o A posto
do lado do objeto negando-o Como jaacute foi dito haacute uma diferenccedila entre o A (sujeito) e o A
(objeto)
ldquoA=A conteacutem a diferenccedila de A como sujeito e de A como objeto ao mesmo tempo
que sua identidaderdquo(GW 4 p 26)
O mesmo se passa em A=B --- e por isso eacute indiferente pocircr A=A ou A=B o A sujeito eacute
diferente do B objeto ao mesmo tempo que haacute uma identidade aiacute contida Como conclusatildeo
podemos dizer que a identidade no acircmbito da razatildeo somente eacute possiacutevel com a diferenccedila
Se o entendimento no entanto manteacutem-se de acordo com o princiacutepio de natildeo-
contradiccedilatildeo estaacute condenado a perecer devido a estar sob a legislaccedilatildeo desse mesmo princiacutepio
Conforme Hegel a lei da contradiccedilatildeo eacute o que possibilita ao entendimento constituir-se como
absoluto e dessa maneira fazer com que seu ser-posto (Gesetzsein) seja e permaneccedila (GW 4
p 18) Mas em virtude de se reger por essa lei os produtos do entendimento natildeo podem se
manter jaacute que a limitaccedilatildeo dos mesmos eacute mostrada pelo seu contraposto
O que isso significa Significa que de acordo com o que foi dito haacute pouco a
contradiccedilatildeo precisa ser afastada As proposiccedilotildees produzidas no acircmbito do entendimento natildeo
admitem a contradiccedilatildeo Natildeo podem admitir que se diga que algo seja e natildeo seja ao mesmo
tempo No que nos interessa mais de perto a filosofia Hegel procura a todo momento neste
no iniacutecio do Escrito sobre a Diferenccedila mostrar que os sistemas filosoacuteficos de sua eacutepoca se
articulam na forma de proposiccedilotildees de acordo com a lei do entendimento (Cf GW 4 p 24) O
que traz por consequumlecircncia a impossibilidade de manutenccedilatildeo desses sistemas ldquopois algo
posto por meio da reflexatildeo uma proposiccedilatildeo eacute por si um limitado e condicionado e carece de
um outro para sua fundamentaccedilatildeo e assim ao infinitordquo (GW 4 p 23) Natildeo haacute como natildeo
pensar aqui assim como jaacute fora notado por Vieweg no 2ordm tropo de Agripa o da regressatildeo ao
infinito Por meio desse tropo o ceacutetico pretende mostrar a inexistecircncia de demonstraccedilotildees pois
56
se pode questionar as premissas de uma argumentaccedilatildeo proposta dogmaticamente e tambeacutem as
premissas dessas premissas de modo que esse processo de justificaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo
possa sempre se renovar numa regressatildeo ao infinito (Cf HP I 166)
Qualquer proposiccedilatildeo posta como fundamento absoluto de um sistema baseado no
entendimento natildeo teraacute como se sustentar ldquopois de um algo pensado que a proposiccedilatildeo
exprime se pode facilmente demonstrar que ele eacute condicionado por um contraposto e
portanto natildeo eacute absoluto e se pode demonstrar por esse contraposto agrave proposiccedilatildeo que ela
precisa ser posta e que portanto aquele algo pensado que a proposiccedilatildeo exprime eacute nadardquo
(GW 4 p 24) Uma tal proposiccedilatildeo natildeo tem condiccedilotildees de cumprir seu propoacutesito de fundaccedilatildeo
do sistema A ela uma outra pode ser posta em sentido contraacuterio de maneira que sua pretensatildeo
ao absoluto fique prejudicada Parece-nos que natildeo seja por outro motivo que Hegel afirme que
uma proposiccedilatildeo dessa natureza seja no fundo uma antinomia e por isso fadada a ser
suprimida (Cf GW 4 p 24)88 Do ponto de vista do que ele chama de mera reflexatildeo (die
blosse Reflexion) natildeo eacute entatildeo possiacutevel que um sistema construiacutedo a partir da ldquoloacutegicardquo do
entendimento possa pretender tornar-se incondicionado Essa conclusatildeo a nosso ver estaacute
dentro do espiacuterito da filosofia ceacutetica Diante do conflito entre proposiccedilotildees ou argumentos
contraditoacuterios o ceacutetico natildeo tendo como se decidir por um dos lados afinal ambos parecem
igualmente persuasivos eacute levado a suspender seu juiacutezo (Cf HP I 8) No caso de Hegel a
antinomia estabelecida tambeacutem impede que se aceite que um sistema qualquer tenha sido bem
sucedido na sua pretensatildeo ao absoluto Do ponto de vista do entendimento a contradiccedilatildeo eacute
um mal a ser evitado Mas como mostrou o ceacutetico ela natildeo pode ser evitada e Hegel leitor
atento de Sexto Empiacuterico concorda com ele
A filosofia numa eacutepoca dominada pela potecircncia da cisatildeo torna-se um alvo faacutecil do
ceticismo Natildeo haacute como evitar que o ceacutetico possa sempre mostrar o oposto daquilo que foi
posto A constataccedilatildeo desse difiacutecil e improvaacutevel ecircxito das filosofias perante o ceticismo faz
com que sua eacutepoca esteja como jaacute foi dito anteriormente carente de uma filosofia que
cumpra sua tarefa Como entatildeo suprir essa carecircncia Como a filosofia pode configurar-se
88 O aspecto negativo que assume a antinomia no domiacutenio do entendimento se deve a que como jaacute dissemos a contradiccedilatildeo aiacute precisa ser evitada Diferente seraacute a situaccedilatildeo como veremos na sequumlecircncia do texto quando entrar em cena o racional A antinomia adquire entatildeo outro aspecto precisamente um aspecto positivo Tanto seraacute assim que Hegel elogia Espinosa por comeccedilar a filosofia com a proacutepria filosofia isto eacute inicia o sistema com uma antinomia (Cf GW4 p 24)
57
sistematicamente ainda mais se se considerar pertinente a atitude investigativa ceacutetica Como
escapar da antinomia estabelecida entre proposiccedilotildees ou argumentos que se contrapotildeem
Aqui entra em cena a razatildeo o momento positivo do saber Como veremos eacute nesse
domiacutenio que seraacute possiacutevel conforme Hegel agrave filosofia se constituir de modo que as aporias
surgidas no domiacutenio do entendimento entregue a si mesmo sejam resolvidas
Seraacute por meio da razatildeo que na sua atividade especulativa a filosofia poderaacute se
realizar Mas como especificamente esse objetivo poderaacute ser alcanccedilado Segundo Hegel natildeo
seraacute possiacutevel atingir a filosofia sem que tenham sido resolvidas as cisotildees produzidas pelo
entendimento Desde este momento jaacute estaacute ele convencido que a filosofia e o que ele
compreende por saber absoluto soacute poderatildeo advir como o resultado de um processo
Esse processo ocorreraacute em momento anterior e exterior ao surgimento da filosofia (vor
und ausser der Philosophie) [GW 4 p 16] Seraacute comandado pela razatildeo e esse momento
anterior consiste na esfera do entendimento aquela que se constitui por meio de uma
atividade reflexiva que potildee seus produtos como independentes absolutamente quer dizer
como se estivessem livres da possibilidade de que a eles pudesse algo ser contraposto o que
resultaria numa antinomia
A filosofia aos olhos de Hegel pressupotildee esse momento em que as determinaccedilotildees
postas pela atividade reflexiva do entendimento se desenvolvem Mas o que significa essa
pressuposiccedilatildeo Significa que natildeo haacute como desconsiderar essa esfera das cisotildees postas pelo
entendimento ldquoeacute um fator da vida que se cultiva mediante um eterno contrapor-serdquo (GW 4
p 13) Deixar entretanto entregue a si mesma essa dimensatildeo onde predomina a finitude eacute
deixar prosseguir a esmo seu processo de determinaccedilatildeo que jamais chegaraacute a um termo E
assim em virtude do caraacuteter limitado das proposiccedilotildees resultantes da atividade do
entendimento natildeo se pode impedir que novas antinomias se constituam Eacute preciso que se decirc
conta dessas oposiccedilotildees que continuamente surgem Sem isso torna-se a filosofia apenas uma
promessa natildeo passiacutevel de se cumprir
58
Hegel de maneira bastante sucinta refere-se agrave necessidade de justificaccedilatildeo dessas
determinaccedilotildees limitadas produzidas pelo entendimento Soacute ao teacutermino desse procedimento de
justificaccedilatildeo que a filosofia poderaacute aparecer89 Esse procedimento seraacute efetuado pelo que ele
chama de ldquoinstrumento do filosofarrdquo ou a reflexatildeo como razatildeo90
Para se ultrapassar esse domiacutenio da finitude a razatildeo precisa aniquilar as oposiccedilotildees
(Gegensaumltze) fixas do entendimento Para que entatildeo alcancemos o plano filosoacutefico eacute preciso
ir aleacutem dessa esfera onde predomina o limitado A razatildeo somente produz o absoluto ao
libertar a consciecircncia das limitaccedilotildees (GW 4 p 15)
A filosofia expressa de acordo com as regras do entendimento soacute pode se dar numa
forma reflexiva Esta por sua vez pode ou natildeo pode apoderar-se (zu fassen) do absoluto A
rigor a reflexatildeo e seus produtos satildeo apenas limitaccedilotildees (Beschraumlnkungen) Assim o absoluto
refletido por ser posto pela reflexatildeo seraacute um limitado Como entatildeo seraacute possiacutevel que a
reflexatildeo seja capaz de apoderar-se do absoluto A este respeito e a partir de uma distinccedilatildeo
entre a reflexatildeo apartada do absoluto e a reflexatildeo vinculada ao absoluto Hegel diraacute A
reflexatildeo isolada como pocircr dos contrapostos seria um suprimir (Aufheben) do absoluto ela eacute a
faculdade do ser e da limitaccedilatildeo mas a reflexatildeo como razatildeo tem relaccedilatildeo com o absoluto e ela
somente eacute razatildeo mediante essa relaccedilatildeo a reflexatildeo nesta medida aniquila a si mesma e a todo
ser e limitado enquanto se refere ao absoluto mas ao mesmo tempo por sua referecircncia ao
absoluto tem o limitado uma consistecircncia (ein Bestehen) (GW 4 pp 16-17)91
89 ldquoQuando poreacutem a razatildeo se reconhece como absoluta entatildeo com isso comeccedila a filosofia ao cessar esse modo de proceder proacuteprio da reflexatildeordquo (GW 4 p 29) Na Fenomenologia do Espiacuterito tambeacutem o saber absoluto soacute poderaacute aparecer ao teacutermino de um processo de exame da consciecircncia no qual esta se liberta de sua forma natildeo-verdadeira ldquoImpelindo-se a si mesma em direccedilatildeo agrave sua verdadeira existecircncia a consciecircncia alcanccedilaraacute aquele ponto no qual depotildee a sua aparecircncia qual seja a de estar presa a algo estranho que eacute somente para ela e como um outro ou no qual o fenocircmeno se torna igual agrave essecircncia A apresentaccedilatildeo da consciecircncia coincide aqui justamente com esse ponto da ciecircncia do espiacuterito propriamente dita e finalmente apreendendo ela mesma a sua essecircncia a consciecircncia designaraacute a natureza do proacuteprio saber absolutordquo (Hegel Fenomenologia do Espiacuterito Col Os Pensadores trad Henrique Vaz Satildeo Paulo Ed Abril 1974 p 56)
90 Parece-nos que o procedimento de justificaccedilatildeo dos produtos do entendimento a ser efetuado por esse instrumento da atividade filosoacutefica que eacute a reflexatildeo como razatildeo seja uma antecipaccedilatildeo do processo de exame pelo qual a consciecircncia na Fenomenologia do Espiacuterito eacute submetida ateacute que por fim possa chegar ao saber absoluto Talvez seja por isso que Klaus Vieweg considere no que concordamos com ele haver nesse capiacutetulo inicial do Escrito da Diferenccedila um procedimento ceacutetico de exame de diversos tipos de pensamento finito Os rudimentos do que seraacute na Fenomenologia o ldquoceticismo que se consumardquo (der sich vollbringende Skeptizismus) (Cf Vieweg Philosophie des p 129)
91 Com respeito agrave distinccedilatildeo hegeliana entre reflexatildeo isolada e reflexatildeo relacionada ao absoluto eacute com proveito que podemos nos remeter ao que diz Rainer Schaumlfer A reflexatildeo finita persiste nas suas determinaccedilotildees
59
A reflexatildeo isolada se constitui de acordo com o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Eacute
segundo este princiacutepio que ela potildee seus produtos e lhes daacute subsistecircncia A reflexatildeo ao mesmo
tempo que suprime o absoluto potildee-se como um absoluto ela fixa seus produtos como
absolutamente opostos ao absoluto daacute para si como lei eterna permanecer entendimento e
natildeo se tornar razatildeo e mantendo-se na sua obra em oposiccedilatildeo ao absoluto nada eacute ndashndash e como
limitada eacute ao absoluto oposta (GW 4 p 18)92 Todavia o subsistir daquilo que por ela eacute
posto eacute um condicionado e estaacute fadado a ser contraditado por seu oposto
Jaacute no caso da reflexatildeo como instrumento do filosofar sua vinculaccedilatildeo agrave razatildeo natildeo
permitiraacute que o limitado permaneccedila e seja esse absoluto capenga tal como acontecia na
reflexatildeo isolada A reflexatildeo aqui tambeacutem chamada por Hegel de reflexatildeo filosoacutefica aniquila
todo ser posto pelo entendimento A emergecircncia do absoluto depende dessa aniquilaccedilatildeo de
todo condicionado Na medida em que a reflexatildeo se potildee sob a lei da razatildeo ela daacute iniacutecio a esse
processo de auto-aniquilaccedilatildeo que permitiraacute que ela se torne razatildeo93 Na medida em que a
reflexatildeo se faz objeto de si mesma sua aniquilaccedilatildeo (Vernichtung) eacute sua lei suprema que a
razatildeo lhe daacute e pela qual ela se torna razatildeo (GW 4 p 18) A reflexatildeo relacionada ao absoluto
eacute a razatildeo como negaccedilatildeo absoluta que aniquila o ser limitado e condicionado posto pelo
entendimento Eacute dessa maneira que seraacute possiacutevel ir aleacutem da esfera limitada do entendimento
unilaterais natildeo chega de nenhum modo ao conhecimento de sua nulidade suas siacutenteses satildeo mesmo as de niacutevel mais complexo sempre unilaterais e abstratas pois aqui tambeacutem ainda vigoram os pontos de vista distintos Nas siacutenteses finitas vale por conseguinte ainda o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Nas siacutenteses reflexivas finitas natildeo estatildeo efetivadas (vollzogen) as destruiccedilotildees dialeacuteticas dos pontos de vista distintos A reflexatildeo em contrapartida que reconhece a nulidade dos pontos de vista distintos vai aleacutem da reflexatildeo finita e torna-se deste modo ldquoinstrumento do filosofarldquo (Schaumlfer R Die Dialektik und ihre besonderen Formen in Hegels Logik Hegel-Studien Beiheft 45 Hamburg Meiner 2001 p 41) Ver tambeacutem a esse respeito o comentaacuterio de Gilbert Geacuterard ldquoDe maneira geral a reflexatildeo designa nos Escritos Criacuteticos a atividade proacutepria do entendimento ou a subjetividade pensante na medida em que separada isto eacute cortada da objetividade real do ser ela soacute tem que ver com suas proacuteprias representaccedilotildees e portanto apenas com ela mesma Se Hegel fala aqui de reflexatildeo isolada isto se deve por um lado para sublinhar de um modo talvez redundante seu caraacuteter abstrato mas eacute contudo tambeacutem para distingui-la daquilo que ele chama de ldquoa reflexatildeo como razatildeordquo ou ldquoreflexatildeo filosoacuteficardquo Natildeo se deve deixar induzir em erro por essas uacuteltimas expressotildees elas natildeo significam de nenhum modo que a reflexatildeo como tal seja racional ou filosoacutefica Pelo contraacuterio noacutes veremos que a reflexatildeo soacute chega agrave filosofia ao se suprimir como reflexatildeo Ela se torna entatildeo na terminologia hegeliana especulaccedilatildeo (Geacuterard G Critique et dialectique Bruxelas Saint-Louis 1982 nota 54 p 37)
92 Eacute por esse processo de absolutizaccedilatildeo do limitado que se forma o entendimento Nesse sentido ver Geacuterard 1982 nota 4 p 66
93 Ver tambeacutem a esse respeito Zimmerli W C Die Frage nach der Philosophie Interpretation zu Hegels Differenzschrift Hegel-Studien Beiheft 12 Bonn Bouvier Verlag Herbert Grundmann 1974 p 99
60
Ao mesmo tempo que todo limitado mostra sua nulidade94 visto que eacute um oposto a um outro
que o nega esse limitado adquiriraacute uma consistecircncia ao ser integrado ao absoluto Mas o
absoluto porque eacute produzido para a consciecircncia mediante o filosofar da reflexatildeo torna-se
deste modo uma totalidade objetiva um todo de saber (Wissen) uma organizaccedilatildeo de
conhecimentos nessa organizaccedilatildeo cada parte eacute o todo pois ela consiste numa relaccedilatildeo com o
absoluto como parte que tem outra fora de si ela eacute um limitado e somente eacute mediante as
outros isolada como limitaccedilatildeo ela eacute deficiente somente tem sentido e significaccedilatildeo mediante
sua conexatildeo com o todo (GW 4 p 19)
Vemos assim que a reflexatildeo filosoacutefica eacute o meio pelo qual eacute possiacutevel o retorno ao
absoluto Relacionada ao absoluto a reflexatildeo eacute esse negar absoluto que suspende ( aufhebt )95
as oposiccedilotildees produzidas pelo entendimento Assim essa reflexatildeo que por ser relacionada ao
absoluto eacute razatildeo tem como tarefa suprimir a oposiccedilatildeo absoluta ela denuncia o caraacuteter
abstrato do entendimento ao mostrar que cada uma de suas posiccedilotildees eacute em verdade uma
antinomia quer dizer desvelando o viacutenculo que une cada uma delas agrave tese imediatamente
adversa (Geacuterard p 83) A pretensatildeo ao absoluto do entendimento natildeo passa de um malogro
afinal todo o posto pelo entendimento com sua suposta absolutez natildeo resiste ao encontro
com seu oposto quando este se apresenta e o contradiz formando uma antinomia A reflexatildeo
eacute o lado negativo do saber ou seja aquele que regido pela razatildeo faraacute com que todo limitado
destrua a si mesmo Mas para que surja a filosofia natildeo podemos permanecer nessa esfera
dominada pela negatividade produtora de antinomias A permanecermos aqui natildeo vamos
aleacutem do aspecto formal da especulaccedilatildeo Se se reflete apenas sobre o aspecto formal da
especulaccedilatildeo e se manteacutem firmemente a siacutentese do saber em forma analiacutetica assim eacute a
antinomia a contradiccedilatildeo que a si mesma se suspende (der sich selbst aufhebende
Widerspruch) a suprema expressatildeo formal do saber e da verdade (GW 4 p 26) O
reconhecimento da antinomia como expressatildeo formal da verdade significa para Hegel dar-se
conta por meio da razatildeo da essecircncia formal da reflexatildeo (GW 4 p 26) Eacute preciso entatildeo ir
aleacutem desse lado negativo
94 Natildeo haacute por isso nenhuma verdade da reflexatildeo isolada do pensar puro a natildeo ser aquela de sua aniquilaccedilatildeo (GW 4 p 19)
95 O termo alematildeo aufheben pode significar suprimir elevar e conservar Para o propoacutesito especulativo de Hegel a polissemia do termo vem bem a calhar pois as determinaccedilotildees de entendimento satildeo suprimidas pela reflexatildeo como razatildeo e ao mesmo tempo conservadas na sua elevaccedilatildeo ao plano especulativo da razatildeo Isto posto traduzimos aufheben por suspender em virtude do termo em portuguecircs tambeacutem poder significar suprimir elevar e conservar Apenas quando o uso do termo eacute exclusivamente negativo traduzimos entatildeo por suprimir
61
O completamento (Vervollstaumlndigung) da unilateralidade da obra da reflexatildeo dar-se-
aacute na intuiccedilatildeo (Anschauung) A intuiccedilatildeo diz Hegel eacute o que postula a razatildeo para que a obra da
reflexatildeo seja completada (GW 4 p 29) Daacute-se com essa siacutentese dos opostos que se
contradizem a possibilidade que possa surgir o lado positivo do saber qual seja a intuiccedilatildeo o
racional precisa ser deduzido de acordo com seu conteuacutedo determinado isto eacute a partir da
contradiccedilatildeo dos opostos determinados cuja siacutentese eacute o racional o postulaacutevel eacute a intuiccedilatildeo que
preenche e manteacutem esse lado antinocircmico (GW 4 p 29)96 Eacute na intuiccedilatildeo que a siacutentese dos
opostos teraacute sua subsistecircncia (ihr Bestehen) Nessa identidade de reflexatildeo e intuiccedilatildeo teremos
portanto o saber especulativo (Cf GW 4 p 29) Em resumo podemos dizer que uma vez
realizada a tarefa (negativa) da reflexatildeo filosoacutefica torna-se possiacutevel a siacutentese da mesma com a
intuiccedilatildeo absoluta de modo que possa ocorrer o desdobramento do lado positivo do saber
Neste momento a filosofia deixaraacute de ser algo a ser buscado deixaraacute de ser uma carecircncia
pois a filosofia comeccedila onde termina essa maneira que procede da reflexatildeo com a
identidade da ideacuteia e do ser (GW 4 p 29-30)97
No artigo sobre o Ceticismo essa atividade de aniquilaccedilatildeo daquilo que eacute posto pelo
entendimento conforme ao princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo eacute exercida pelo ceticismo ou como a
ele se refere Hegel o lado negativo do conhecimento do absoluto (Cf GW 4 p 207)98 Eacute por
meio dele que com a produccedilatildeo de antinomias mostra-se o caraacuteter limitado e condicionado
das determinaccedilotildees produzidas pelo entendimento e se permite a passagem para a razatildeo que eacute
96 Tambeacutem a este respeito mas a razatildeo unifica os contraditoacuterios potildee a ambos ao mesmo tempo e os suspende (GW 4 p 23)
97 Com relaccedilatildeo ao escrito sobre a Diferenccedila jaacute apresentar-se como um primeiro esboccedilo de certos desenvolvimentos posteriores da filosofia de Hegel eacute oportuno lembrar o comentaacuterio de Marcos Lutz Muumlller a respeito dessa articulaccedilatildeo do relacionamento entre entendimento e razatildeo nesse mesmo escrito sobre a Diferenccedila como sendo o motivo inspirador da constituiccedilatildeo da relaccedilatildeo dos trecircs ldquomomentosrdquo da estrutura loacutegico-especulativa do pensamento e da realidade efetiva conforme exposta condensadamente nos sectsect 79-82 da Enciclopeacutedia e no seu desdobramento quaternaacuterio no capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica A ideacuteia absoluta (Cf Muumlller M L ldquoO idealismo especulativo de Hegel e a modernidade filosoacutefica criacutetica ou radicalizaccedilatildeo dessa modernidaderdquo Revista Eletrocircnica Estudos Hegelianos ano 2ordm Nordm 3 2005 p 3)
98 Para Hegel o ceticismo se encontra implicitamente em todo autecircntico sistema filosoacutefico e como seu lado negativo (Cf GW 4 p 208) De modo expliacutecito apenas no Parmecircnides de Platatildeo sendo que deve ser notado haja no mesmo somente o lado negativo da filosofia (Cf GW 4 pp 207-208) Quanto ao ceticismo pirrocircnico Hegel o chama de ceticismo separado da filosofia Um ceticismo que assim como aquele presente no diaacutelogo platocircnico Parmecircnides tambeacutem natildeo possui um lado positivo e com relaccedilatildeo ao saber declara apenas uma pura negatividade O ceacutetico sentido-se incapaz de decidir por entre argumentos ou proposiccedilotildees aparentemente igualmente persuasivos suspende seu juiacutezo e assim nem afirma nem nega a respeito de algo dito com pretensatildeo agrave verdade Para Hegel eacute o que nos parece agir assim eacute afirmar uma pura negatividade (A respeito do ceticismo pirrocircnico ver de modo geral GW 4 pp 213-222)
62
o lado positivo do conhecimento do absoluto99 O grande valor do ceticismo para Hegel reside
nessa sua perseverante luta contra o dogmatismo realizada por meio do que poderiacuteamos
chamar de seu princiacutepio programaacutetico opor a todo argumento ou proposiccedilatildeo uma proposiccedilatildeo
ou o argumento de igual forccedila (Cf HP I 12 tb I 8)
Como o domiacutenio do entendimento eacute aquele no qual apenas lidamos com proposiccedilotildees
passiacuteveis de serem contraditadas por suas opostas isto eacute proposiccedilotildees que em virtude de
serem postas de acordo com a identidade abstrata de entendimento natildeo resistem ao
estabelecimento da antinomia o ceacutetico natildeo tem dificuldade em exercitar sua atitude filosoacutefica
Atitude que para Hegel eacute totalmente pertinente e justificaacutevel quanto agrave sua realizaccedilatildeo
Mas eacute preciso lembrar que o ecircxito do ceticismo no combate ao dogmatismo soacute poderaacute
ocorrer no acircmbito do entendimento No acircmbito da razatildeo como pudemos observar a finitude
do entendimento foi deixada para traacutes Nela a contradiccedilatildeo natildeo leva a filosofia ao seu limite
As proposiccedilotildees que se contradizem satildeo consideradas de uma outra perspectiva Elas
permanecem relacionadas numa siacutentese efetuada pela razatildeo o lado positivo da filosofia A
contradiccedilatildeo natildeo eacute mais aqui um mal a ser evitado pelo contraacuterio ela foi incorporada agrave
filosofia Uma proposiccedilatildeo que exprime um conhecimento racional teraacute como caracteriacutestica
baacutesica ser constituiacuteda por conceitos que do ponto de vista do entendimento se contradizem
(Cf GW 4 p 208) Mas para a razatildeo natildeo haacute nada de aberrante nisso100
Quando a perspectiva racional toma a frente as proposiccedilotildees que se contradizem satildeo
unificadas de modo que se suspende (aufhebt) a antinomia Como diz Hegel ldquoquando em
qualquer proposiccedilatildeo que expressa um conhecimento racional se o aspecto refletido da
mesma ndash os conceitos que nela estatildeo contidos ndash eacute isolado e o modo como eles (os conceitos)
estatildeo ligados eacute considerado entatildeo precisa mostrar-se que esses conceitos estatildeo suspensos
(aufgehoben) ou de tal modo unificados que eles se contradizem caso contraacuterio natildeo teriacuteamos
99 Cf GW 4 p 207 trad cit p 36
100 Tambeacutem no artigo sobre o Ceticismo Hegel se vale de Espinosa como exemplo de filoacutesofo que constroacutei seu sistema a partir de proposiccedilotildees que como diraacute Hegel cometem uma infraccedilatildeo (Verstoszlig) ao princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Proposiccedilotildees de caraacuteter antinocircmico como a que se encontra no iniacutecio da Eacutetica a saber a do conceito de causa sui ou seja aquela causa cuja essecircncia implica sua existecircncia Um tal conceito segundo Hegel foge completamente ao que normalmente se compreende pelo conceito de essecircncia visto que este eacute possiacutevel na medida em que se faz abstraccedilatildeo da existecircncia Da perspectiva racional natildeo haveria contradiccedilatildeo nessa uniatildeo da essecircncia com a existecircncia (Cf GW 4 p 208)
63
uma proposiccedilatildeo racional mas sim uma proposiccedilatildeo de entendimentordquo101 A identidade de
entendimento eacute uma identidade relativa que quando entra em cena a razatildeo daacute lugar a uma
identidade absoluta Essa identidade absoluta eacute uma siacutentese desses contrapostos que formam a
antinomia102 A siacutentese desses postos contrapostos de modo que por ela a antinomia seja
suspensa faz surgir o racional Os contrapostos continuam laacute entretanto eles estatildeo suspensos
(aufgehoben)103 na unidade do racional
Toda proposiccedilatildeo de razatildeo observa Hegel na medida em que ela pode se dissolver em
duas proposiccedilotildees que se contradizem (sich in zwey sich schlechthin widerstreitende aufloumlsen
laumlszligt) ndash por exemplo Deus eacute causa e Deus natildeo eacute causa ele eacute uno e natildeo eacute uno ndash faz entrar em
cena com toda a forccedila o princiacutepio do ceticismo ldquoopor a todo discurso um discurso de forccedila
igualrdquo104
A concepccedilatildeo hegeliana de filosofia reconhece a importacircncia do ceticismo para a
filosofia Entretanto eacute necessaacuterio ir aleacutem desse momento negativo no qual satildeo produzidas
antinomias O ldquoprinciacutepiordquo ceacutetico de ldquoopor a cada discurso um discurso de forccedila igualrdquo (panti
logoi logos isos antikeitai) eacute pertinente apenas no momento negativo da filosofia pois ao
levar agrave produccedilatildeo de antinomias natildeo permite que uma proposiccedilatildeo finita se determine sem
levar em conta a proposiccedilatildeo contraposta e a ela relacionada
A possibilidade de construccedilatildeo do sistema ou a auto-produccedilatildeo da razatildeo estaraacute fundada
na siacutentese de opostos que a cada nova identidade obtida reclama a produccedilatildeo de uma nova
siacutentese de modo que assim o sistema progride e se modela numa totalidade objetiva (Cf GW
4 p 31)105
101 GW 4 p 208 trad p 38 (ldquowenn in irgend einem Satze der eine Vernunfterkenntniszlig ausdruumlckt das Reflectirte desselben die Begriffe die in ihm enthalten sind isolirt und die Art wie sie verbunden sind betrachtet wird so muszlig es sich zeigen daszlig diese Begriffe zugleich aufgehoben oder auf eine solche Art vereinigt sind daszlig sie sich widersprechen sonst waumlre es kein vernuumlnftiger sondern ein verstaumlndiger Satzldquo)
102 Ibidem p 27 trad p 101
103 Suspender com o sentido de suprimir elevar e conservar
104 Hegel cita a famosa foacutermula do ldquoprinciacutepiordquo ceacutetico ndash ldquoopor a cada discurso um discurso de forccedila igualrdquo ndash no original grego Cf GW 4 p 208 e HP I 12
64
105 ldquoA razatildeo a saber a faculdade (neste caso da objetiva) totalidade completa a identidade relativa mediante sua contraposta e produz por meio da siacutentese de ambas uma nova identidade que ela mesma novamente perante a razatildeo eacute uma identidade deficiente e que de novo se completa do mesmo modordquo (GW 4 p 31)
65
Capiacutetulo 3 - O ceticismo nas Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia de Hegel
Segundo nos informa Walter Jaeschke106 com exceccedilatildeo de ldquoLoacutegica e Metafiacutesicardquo
nenhum tema foi tatildeo regular e minuciosamente objeto das preleccedilotildees de Hegel quanto a
ldquoHistoacuteria da filosofiardquo A primeira vez em Iena (18051806) depois Heidelberg (18161817 e
18171818) Nada ainda conforme Jaeschke nos restou como testemunho dessa primeira
ocupaccedilatildeo hegeliana com o tema em suas aulas Como fonte que nos chegou de suas Liccedilotildees
sobre a Histoacuteria da Filosofia temos as que Hegel ministrou em Berlim por seis vezes no
veratildeo de 1819 no inverno de 18201821 e nos invernos de 182324 182526 182728 e
182930 No inverno de 183132 Hegel tambeacutem tinha como tema de suas aulas a histoacuteria da
filosofia mas as mesmas logo foram interrompidas devido agrave morte do filoacutesofo em 14 de
Novembro Hegel havia aqui apenas iniciado a introduccedilatildeo das aulas e sem ao menos poder
concluiacute-la
Com relaccedilatildeo ao nosso interesse a saber as preleccedilotildees que tratavam do tema ceticismo
antigo Jaeschke nota que o estudo intenso do ceticismo jaacute era feito por Hegel desde seus anos
em Frankfurt antes portanto de sua ida em 1801 para Iena Aleacutem disso como jaacute pudemos
observar o ceticismo havia sido objeto de um artigo em Iena e neste artigo consideraccedilotildees de
caraacuteter historiograacutefico a respeito da filosofia ceacutetica se faziam presentes
Nossa intenccedilatildeo agora eacute observar nessas Liccedilotildees a respeito da histoacuteria da filosofia107
que leitura e interpretaccedilatildeo Hegel faz do ceticismo justamente no momento em que jaacute era um
filoacutesofo renomado e com suas principais obras publicadas
106 Cf Jaeschke W Hegel Handbuch Leben- Werk- Schule Stuttgart Metzleer 2003 XIV pp 477 ndash 478
107 Werke 19 pp 358-403 trad pp 759-809
66
No iniacutecio de sua exposiccedilatildeo a respeito do ceticismo pirrocircnico Hegel faz a seguinte
afirmaccedilatildeo ldquoO ceticismo levou a seu acabamento (vollendete) a maneira de ver da
subjetividade de todo saber e potildee de modo geral no lugar do ser a expressatildeo do parecer no
saber O ponto culminante [dessa maneira de ver] eacute o ceticismo a forma do ente e do saber
sobre o ente eacute inteiramente aniquiladardquo 108
E a partir dessa afirmaccedilatildeo fica entatildeo a pergunta o que pode significar o ceticismo ser
o acabamento da maneira de ver subjetivista
Se nos voltarmos para sua Histoacuteria da Filosofia veremos que na filosofia anterior ao
ceticismo os sofistas segundo Hegel podiam ser considerados representantes de uma
filosofia que expressava uma ldquomaneira de ver subjetivardquo109 Foram eles os primeiros a
mostrar assim como depois os ceacuteticos o caraacuteter relativo daquilo que era posto como
verdadeiro ou vaacutelido universalmente Hegel inclusive se refere aos sofistas como ceacuteticos110
Protaacutegoras por exemplo declarava que o homem eacute a medida de todas as coisas daquela que
eacute que ela eacute daquela que natildeo eacute que ela natildeo eacute111 Depende de cada homem em particular o
estabelecimento de qualquer verdade Estaacute relacionado a cada um a verdade a medida a ser
instaurada Assim como o ceacutetico posteriormente jaacute Protaacutegoras procurava nos mostrar que
dada a diversidade dos homens seria muito difiacutecil tentar obter uma verdade que a todos
aparecesse como a uacutenica ldquoa verdade (a medida) eacute fenocircmeno para a consciecircnciardquo112 Aquilo
que a mim me aparece natildeo pode valer para todos os outros dada essa diversidade dos homens
e do caraacuteter relativo daquilo que julgam a respeito das coisas Subjetividade aqui indica aquilo
que natildeo pode obter generalidade que natildeo pode deixar de ser particular e relacionado a
108 Werke 19 p 358 trad cit p 759 (ldquoDer Skeptizismus vollendete die Ansicht der Subjektivitaumlt alles Wissens ud setzte allgemein an die Stelle des Seins im Wissen den Ausdruck des Scheinens Die letzte Spitze ist der Skeptizismus die Form des Seienden und des Wissens des Seienden wird ganz zunichte gemachtrdquo)
109 Cf Werke 18 pp 406-441 trad pp 241-272
110 Hegel denomina de modo claro Protaacutegoras e Goacutergias como representantes do ceticismo isto eacute como aqueles que se expressam em relaccedilatildeo agrave verdade agrave maneira dos ceacuteticos Apoacutes fazer uma exposiccedilatildeo a respeito de Protaacutegoras Hegel comeccedila a tratar de Goacutergias nos seguintes termos ldquoEsse ceticismo chegou a uma profundidade bem maior por meio de Goacutergiasrdquo (ldquoZu einer weit groumlszligeren Tiefe gelangte dieser Skeptizismus durch Gorgiasrdquo) In Werke 18 p 434 trad cit p 266
111 Nessa breve apresentaccedilatildeo de Protaacutegoras guiamo-nos por Hegel na seccedilatildeo que ele dedica ao filoacutesofo Cf Ibidem 18 pp 428-434 trad pp 260-266
112 Citaccedilatildeo de Protaacutegoras que Hegel faz a partir de Sexto Empiacuterico Adversus mathematicos VII 388 In Ibidem 18 p 431 trad p 263 (ldquoDie Wahrheit (das Maszlig) ist die Erscheinung fuumlr das Bewuszligtseinrdquo)
67
determinadas condiccedilotildees Eacute nesse sentido que Hegel chama de maneira de ver da subjetividade
a filosofia ceacutetica
Nessa aproximaccedilatildeo da sofiacutestica ao ceticismo Hegel estaacute em certa medida de acordo
com um comentaacuterio do proacuteprio Sexto Empiacuterico quando este se refere agrave semelhanccedila que possa
haver entre a filosofia ceacutetica e a filosofia de Protaacutegoras113 Mesmo que haja semelhanccedilas entre
os ceacuteticos e Protaacutegoras Sexto adverte que ambos natildeo podem ser confundidos pois o sofista
acaba por fazer afirmaccedilotildees de teor dogmaacutetico algo que para um ceacutetico eacute inadmissiacutevel114
De fato o comentaacuterio de Hegel a respeito da maneira de ver subjetiva ter seu
acabamento no ceticismo quer justamente mostrar essa radicalidade do ceticismo Se antes
houve aqueles que poderiam ser aproximados dos ceacuteticos por forccedila das suas ldquoconclusotildeesrdquo de
teor natildeo-dogmaacutetico natildeo conseguiram eles entretanto se libertar por completo do
dogmatismo
Como jaacute foi dito115 o ceacutetico foi aquele filoacutesofo que natildeo conseguiu afirmar nem
positiva nem negativamente coisa alguma a respeito da verdade Da sua investigaccedilatildeo natildeo
chegou ao mesmo resultado que chegaram os filoacutesofos por ele chamados de dogmaacuteticos O
113 Essa aproximaccedilatildeo entre Protaacutegoras e os ceacuteticos feita por Hegel tambeacutem aparece como pertinente para os estudiosos do ceticismo Oswaldo Porchat refere-se aos sofistas e em especial a Protaacutegoras como algueacutem que antecipava a postura ceacutetica ldquoE eacute verdade entretanto que ao constatar o conflito das opiniotildees e das verdades dos homens umas com as outras ao procurar mostrar que o verdadeiro eacute sempre para cada homem o que tal lhe parece e o que como tal portanto assume e propotildee aos outros Protaacutegoras natildeo visava especificamente as oposiccedilotildees e divergecircncias que dividiam o pensamento filosoacutefico anterior ou contemporacircneo conforme a sua doutrina ao contraacuterio tal diferenccedila de perspectivas sobre a verdade e o saber natildeo configuraria mais do que um caso particular da infinda e irredutiacutevel diversidade das opiniotildees humanas() Ignorando se os deuses satildeo ou natildeo dos homens filoacutesofos ou natildeo Protaacutegoras verificava apenas que as opiniotildees sempre divergem e que eles natildeo se potildeem de acordo Mas tambeacutem descobria mestre de retoacuterica e de eloquumlecircncia que os homens se deixam persuadir com frequumlecircncia pelo discurso e que eacute sempre possiacutevel opor persuasivamente a um argumento um argumento contraacuterio ou tornar mais forte a razatildeo anteriormente mais fraca Uma primeira formulaccedilatildeo assim se propunha do que seria a contribuiccedilatildeo fundamental da sofiacutestica para a filosofia a saber a descoberta de que se pode provar tudo que se quer de que todas as teses se podem demonstrar se se domina de modo adequado e conveniente a teacutecnica de argumentaccedilatildeo Goacutergias natildeo pretenderaacute dizer outra coisa ao proclamar no famoso Elogio de Helena que lsquoo Loacutegos eacute um grande senhorrsquordquo(Porchat O ldquoO conflito das filosofiasrdquo Vida comum e ceticismo Satildeo Paulo Brasiliense 1993 pp 5-7) Ou ainda ldquoEm sua polecircmica antidogmaacutetica os ceacuteticos mostraram retomando o ensinamento de Protaacutegoras que a todo discurso se pode sempre opor um discurso igual isto eacute um discurso de igual forccedila persuasivardquo (Porchat O Rumo ao ceticismo p 297)
114 A respeito de Protaacutegoras diz Sexto Empiacuterico ldquoNoacutes vemos entatildeo que ele dogmatiza natildeo somente a respeito da fluidez da mateacuteria como tambeacutem a respeito disso que os fundamentos de todos os fenocircmenos nela existiam estes assuntos poreacutem satildeo natildeo-evidentes e a respeito dos quais noacutes suspendemos o julgamentordquo (HP I 219)
115 Ver de modo geral o capiacutetulo 1
68
que terminava por acontecer era sempre encontrar uma diversidade de pontos de vista
conflitantes uns aparentemente tatildeo persuasivos quanto os outros Em vista de tal situaccedilatildeo
como interromper a investigaccedilatildeo e poder entatildeo aceitar que um desses pontos de vista seja a
expressatildeo de uma verdade absoluta qualquer Ante a precipitaccedilatildeo no julgar caracteriacutestica por
ele comumente encontrada entre os dogmaacuteticos prefere contudo continuar a investigar E
esta investigaccedilatildeo far-se-aacute por meio da contraposiccedilatildeo de argumentos O ceacutetico entatildeo vai se
esforccedilar em de variadas formas examinar se os argumentos postos pelos dogmaacuteticos resistem
a outros argumentos aparentemente tatildeo persuasivos quanto os primeiros Em resumo o ceacutetico
substitui a busca pela verdade por uma criacutetica do dogmatismo assentada no exerciacutecio dessa
atitude produtora de contraposiccedilotildees ou antinomias Podemos supor que a dificuldade imensa
em encontrar a verdade levou-o a essa mudanccedila de atitude No limite natildeo tem ele mais no
horizonte a esperanccedila de encontrar alguma verdade116 Tanto eacute assim que sua filosofia teraacute
desdobramentos que em nenhum aspecto se assemelham ao que tradicionalmente se podia
encontrar em outras filosofias Referimo-nos aqui agrave suspensatildeo do juiacutezo e a conduta ceacutetica de
se guiar na vida de acordo com os fenocircmenos117
Mas a que nos interessa chamar a atenccedilatildeo neste momento eacute para esse ecircxito dos ceacuteticos
em produzir antinomias em reiteradamente mostrar que eacute possiacutevel a um determinado ponto
de vista um outro ser contraposto ficando difiacutecil portanto decidir em favor de um lado ou de
outro Cremos que natildeo seja por outro motivo que Hegel reconheccedila a forccedila do ceticismo
Como combatecirc-lo Seria mesmo possiacutevel combatecirc-lo Uma filosofia reconhece Hegel que
sempre foi muito temida ldquoNa medida em que eacute a arte de dissolver todo determinado de
mostraacute-lo em sua nulidade o ceticismo passou em todos os tempos e ainda hoje pelo mais
terriacutevel adversaacuterio da filosofia e tambeacutem passou por invenciacutevelrdquo118
Para Hegel qualquer tentativa de refutaccedilatildeo direta do ceticismo estaacute condenada ao
fracasso Natildeo diga-se de passagem que ele pretendesse ser mais um na lista dos que tentaram
116
Com efeito trata-se de uma questatildeo bastante controversa entre os estudiosos do ceticismo ndash uma vexata quaestio ndash se efetivamente o ceacutetico teria desistido da busca da verdade por decorrecircncia dessa dificuldade em encontrar alguma que porventura pudesse passar ilesa perante o exame ceacutetico Daiacute entatildeo com o reiterado fracasso na tentativa de executar a tarefa substituiria a busca pela verdade pelo exerciacutecio da praacutetica dialeacutetica antinocircmica
117 Ver a respeito no cap 1 pp 40-45
118 Werke 19 p 358 (ldquoDer Skeptizismus hat zu Allen Zeiten und noch jetzt fuumlr den furchtbarsten Gegner der Philosophie gegolten und fuumlr unbezwinglich indem er die Kunst sei alles Bestimmte aufzuloumlsen es in seiner Nichtigkeit zu zeigenrdquo)
69
essa faccedilanha Segundo ele natildeo haacute como lutar contra o ceticismo Ele sempre encontraraacute uma
maneira de se sobrepocircr ldquoSe (algueacutem) de fato lhe tivesse escapado natildeo seria ele assim
subjugado mas antes ele por seu lado permaneceria subsistindo e prevaleceriardquo119
No seu juiacutezo a respeito dos ceacuteticos Hegel ao mesmo tempo que louva a atitude ceacutetica
de dissoluccedilatildeo de todo determinado por meio da produccedilatildeo de antinomias recrimina o que
poderiacuteamos chamar de uma certa desmesura presente nessa postura filosoacutefica Uma
desmesura que acaba na incapacidade ceacutetica em chegar a alguma verdade e advinda desse
reiterado ecircxito em conseguir mostrar a todo argumento o argumento que o contrapotildee
Todavia a pertinecircncia da criacutetica ceacutetica eacute tal que ele o ceticismo ldquoparece ser algo a que
devamos nos entregar e que faz imaginar que natildeo se possa vencer aquele que se entregou a
elerdquo120
O ceticismo aos olhos de Hegel apresenta esse caraacuteter ambivalente O que o torna
forte e pertinente leva-o nesse mesmo movimento agrave sua derrocada Derrocada da perspectiva
de Hegel porque da perspectiva dos ceacuteticos a incapacidade de chegar a uma verdade natildeo traz
junto de si nada de problemaacutetico Hegel sabe disso e tambeacutem natildeo se cansa de lembrar que
natildeo haacute como se sobrepor ao ceacutetico que este consegue sempre ao fim ao cabo prevalecer
perante as filosofias ldquodogmaacuteticasrdquo Chega mesmo a dizer que aquele que decidiu tornar-se
ceacutetico natildeo poderaacute com efeito ser dominado e nem ser reconduzido aos braccedilos de uma
filosofia positiva121 Mas que intenccedilatildeo teria ele em insistentemente mostrar a impossibilidade
de se conseguir vencer ao ceacutetico
Parece-nos que a intenccedilatildeo de Hegel eacute de fato mostrar que o ceacutetico eacute um adversaacuterio
extremamente difiacutecil de ser vencido ou que natildeo pode mesmo ser vencido Que contra ele
nada podemos Ele sempre encontraraacute um meio para nos vencer Mas a despeito desse fato
Hegel tem como veremos plena consciecircncia da forccedila do ceticismo A questatildeo eacute que
independente da pertinecircncia da postura filosoacutefica do ceticismo natildeo teria ele ainda a uacuteltima
palavra Sua forccedila eacute a outra face de sua cegueira como tambeacutem veremos Eacute como se ele
realmente estivesse cego perante suas proacuteprias deficiecircncias Natildeo supotildee portanto que possa
119 Ibidem p 359 trad cit p 760 (ldquoWenn in der Tat ihm nur entgangen wuumlrde so waumlre er nicht bezwungen sondern er bliebe seinerseits bestehen und er haumltte die Oberhandrdquo)
120 Ibidem p 358 trad cit p 760 (ldquo[hellip] scheint so etwas zu sein dem man sich ergebe und man hat die Vorstellung daszlig man einem der sich ihm so in die Arme werfe gar nicht beikommen koumlnnerdquo)
121 Cf Ibidem p 359 trad cit p 760
70
ser tatildeo limitado quanto as filosofias que critica Essa eacute ao que parece a posiccedilatildeo de Hegel a
seu respeito Mas dizer que ele eacute limitado natildeo nos pode levar a concluir que Hegel seja
favoraacutevel a que o ceticismo mereccedila ser descartado
Desde o iniacutecio do periacuteodo de Iena quando comeccedila a publicar Hegel afirma que a
filosofia precisa ter um lado ceacutetico que por conseguinte eacute o seu lado negativo122 Mas por
que haveria ela de ter um lado ceacutetico Se partimos do pressuposto como o faz Hegel que a
criacutetica ceacutetica das filosofias dogmaacuteticas eacute dotada de tal forccedila e pertinecircncia que tentar escapar a
ela torna-se uma tarefa dificilmente realizaacutevel vemos que realmente a filosofia precisa
estabelecer uma relaccedilatildeo com o ceticismo que natildeo a de uma mera tentativa de desqualificaccedilatildeo
do mesmo Eacute tatildeo necessaacuterio agrave filosofia tomar a seacuterio o ceticismo que no caso hegeliano
incorpora-se o mesmo a ela
Na anaacutelise do ceticismo antigo nas suas Liccedilotildees o que faz segundo Hegel o ceacutetico na
sua investigaccedilatildeo Ele eacute capaz de mostrar que eacute possiacutevel produzir antinomias a respeito de
qualquer verdade seja de caraacuteter sensiacutevel seja de caraacuteter inteligiacutevel123 Ele aponta uma
contradiccedilatildeo entre aquilo que almejou representar a verdade e aquilo que foi contraposto a essa
suposta verdade ou ainda mostra que cada um dos contrapostos tem tanto valor quanto o
outro ou seja que um natildeo eacute mais capaz que o outro de ser verdadeiro A igual forccedila entre os
contrapostos natildeo nos permite tender para o assentimento a um ou a outro Diante disso soacute
pode o ceacutetico entatildeo suspender seu juiacutezo
Eacute relevante notar que a contradiccedilatildeo que se estabelece entre os contrapostos atesta
apenas que existem argumentos ou discursos de igual forccedila que conflitam o que por si soacute
basta para que natildeo sejamos capazes de nos decidirmos por um dos lados opostos124 Natildeo se
encontra na base da contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos nenhuma teoria que pudesse afirmar
122 Ver cap 2
123 Hegel nesse seu comentaacuterio a respeito da possibilidade do ceacutetico produzir antinomias a respeito de qualquer verdade dogmaacutetica ndash mais ou menos elaborada refere-se explicitamente agraves Hipotiposes I 8-10
124 Cf HP I 10
71
que a contradiccedilatildeo surgiu dadas certas premissas dessa teoria e que apenas de acordo com as
mesmas teriacuteamos entatildeo uma contradiccedilatildeo Temos de consideraacute-la portanto em sentido lato
Hegel tambeacutem estaacute ciente desse sentido amplo ou pouco preciso da contradiccedilatildeo Tanto eacute
assim que reconhece ser a contradiccedilatildeo apenas o resultado de uma oposiccedilatildeo que se faz a partir
do conflito estabelecido entre dois conteuacutedos devendo ser lembrado que essa oposiccedilatildeo natildeo se
restringe a determinados conteuacutedos pelo contraacuterio ela abrange qualquer conteuacutedo125 Essa
possibilidade de que possa ocorrer uma oposiccedilatildeo ou como prefere dizer Hegel uma
contraposiccedilatildeo irrestrita torna o ceticismo antigo mais radical que o puro idealismo formal
moderno a saber Kant ldquoMas os ceacuteticos vatildeo mais aleacutem do que os membros do puro idealismo
formal moderno eles tecircm de se haver com o conteuacutedo e em todo conteuacutedo mostram seja ele
sentido ou pensado que ele tem um contraposto a ele Eles indicam no mesmo portanto a
contradiccedilatildeo que de tudo que eacute posto o contraposto tambeacutem eacute vaacutelidordquo126
Se por um lado para os ceacuteticos antigos a contradiccedilatildeo ou a antinomia natildeo estava
restrita a determinada classe de objetos afinal a mesma podia ser obtida nas mais variadas
formas de oposiccedilatildeo para Kant por outro lado a antinomia se encontrava apenas nos quatro
objetos particulares tomados da Cosmologia127 O que Kant natildeo viu lembra-nos Hegel eacute o
fato de que a antinomia pode ser encontrada ldquoem todos os objetos de todos os gecircneros em
todas as representaccedilotildees conceitos e ideacuteiasrdquo128
Dessa contradiccedilatildeo na qual natildeo tem o ceacutetico como se decidir por um dos contrapostos
adveacutem como jaacute foi dito anteriormente129 a suspensatildeo de juiacutezo Independente do fato de que
Hegel natildeo considere que da incapacidade de decisatildeo entre as opccedilotildees opostas reste como uacutenica
soluccedilatildeo para o impasse a suspensatildeo do juiacutezo natildeo eacute ele avaro em declarar sua admiraccedilatildeo pela
125 Cf Werke 19 p 372 trad cit p 776
126 HEGEL Ibidem p 373 trad p 777 (ldquoAber die Skeptiker gehen weiter als die Anhaumlnger des neueren rein formellen Idealismus sie haben es mit dem Inhalt zu tun und zeigen von allem Inhalt er sei ein empfundener oder gedachter dass er ein ihm Entgegengesetztes habe Sie zeigen also in demselben den Widerspruch auf daszlig von allem was aufgestellt wird auch das Entgegengesetzte giltrdquo)
127 ldquoPode-se notar aleacutem disso que a falta de uma consideraccedilatildeo mais profunda da antinomia ainda levou inicialmente Kant a soacute citar quatro antinomiasrdquo (ldquoEs kann ferner bemerkt werden daszlig die Ermangelung einer tiefern Betrachtung der Antinomie zunaumlchst noch veranlaszligte daszlig Kant nur vier Antinomien auffuumlhrtrdquo) In GW 20 E sect 48 p 85 trad bras p 120
128 HEGEL GW 20 E sect 48 p 85 trad bras p 121 (ldquoin allen Gegenstaumlnden aller Gattungen in allen Vorstellungen Begriffen und Ideenrdquo)
129 Ver o cap 1
72
postura corajosa do ceacutetico que termina na epocheacute seguindo-se agrave mesma casualmente a
ataraxia Natildeo haacute aos olhos de Hegel incerteza para o ceacutetico A incapacidade dele em tomar
uma decisatildeo natildeo lhe traz intranquumlilidade Pelo contraacuterio Para Hegel esse natildeo tomar uma
decisatildeo em favor de um dos lados que se contrapotildeem seria paradoxalmente uma ldquodecisatildeordquo
que se realiza com a suspensatildeo do juiacutezo
Eacute preciso com efeito natildeo deixar de assinalar que Hegel tem consciecircncia de que a
suspensatildeo do juiacutezo e a ataraxia natildeo satildeo frutos de uma atitude deliberada do ceacutetico em favor
delas Ele cita inclusive o exemplo que Sexto nas Hipotiposes nos fornece a respeito do pintor
Apeles que somente consegue seu intento qual seja pintar a espuma na boca do cavalo no
momento que desiste de encontrar a melhor maneira de efetuar tal pintura e entatildeo consegue o
efeito desejado casualmente apenas lanccedilando o pincel em direccedilatildeo agrave tela Hegel tem portanto
plena consciecircncia de que natildeo haacute decisatildeo por parte do ceacutetico com relaccedilatildeo agrave suspensatildeo do juiacutezo
O que contudo quer ele mostrar eacute que o ceacutetico por se sentir incapaz de dar assentimento a
uma suposta verdade que em face dela haja uma outra aparentemente tatildeo persuasiva quanto a
primeira eacute levado a suspender seu juiacutezo Entre natildeo ficar com nada e ficar com uma verdade
qualquer isto eacute ficar com uma verdade a partir de uma decisatildeo puramente arbitraacuteria posto
que infundada o ceacutetico natildeo se ressente de ser levado a ficar de matildeos vazias Pior do que isso
seria ficar oscilando entre verdades contrapostas que natildeo se sustentam agrave luz da investigaccedilatildeo a
que satildeo submetidas Esse oscilar entre poacutelos opostos e que poderia ser interrompido com o
assentimento a um deles natildeo passa para o ceacutetico de uma ilusatildeo a que o dogmaacutetico a si proacuteprio
se condena Fiar-se naquilo que natildeo pode se sustentar somente pode aos olhos do ceacutetico
gerar intranquumlilidade E Hegel na sua concordacircncia com o ceacutetico de que natildeo podemos nos
ater ao que eacute passiacutevel de ter sua verdade contestada procura ainda mostrar a incapacidade do
uso do termo duacutevida para caracterizar o ceticismo
Duvidar segundo Hegel natildeo condiz com a postura ceacutetica ldquoA empresa ceacutetica eacute
caracterizada injustamente como uma doutrina da duacutevidardquo130 Duvidar diz Hegel seria uma
atitude que apenas intranquumlilidade poderia trazer Duvidar significa que fiquemos entre duas
coisas entre duas alternativas e a respeito das quais teriacuteamos que nos decidir por uma ou por
outra Com a tomada dessa decisatildeo obteriacuteamos por conseguinte a tranquumlilidade Mas natildeo eacute
isso que acontece ao ceacutetico ldquoDuacutevida eacute justamente o contraacuterio da tranquumlilidade que eacute o
130 HEGEL Werke 19 p 362 trad cit p 763 (ldquoDas Geschaumlft des Skeptizismus ist unrecht als eine Lehre vom Zweifel ausgedruumlcktrdquo)
73
resultado do ceticismo Duacutevida vem de dois eacute um oscilar entre dois ou mais natildeo sossegamos
nem em um nem no outro e contudo devemos obter sossego em um ou no outrordquo131
O ceacutetico portanto natildeo duvida pois dessa maneira natildeo teria ainda se afastado da
perspectiva dos dogmaacuteticos Quem fica entre dois ou mais e procura por fim obter a
tranquumlilidade se decidindo por entre um dentre esses dois ou mais eacute o dogmaacutetico132 O ceacutetico
ao contraacuterio natildeo adere a nenhuma verdade que possa ter uma outra a ela oposta e
aparentemente de igual forccedila Como obter tranquumlilidade poderia ele pensar sabendo que sua
decisatildeo por uma ou por outra verdade natildeo teria como se sustentar Dada a equumlipolecircncia natildeo
haacute como se decidir por uma ou por outra alternativa sem ao mesmo tempo ter consciecircncia de
que essa decisatildeo natildeo eacute menos arbitraacuteria que a decisatildeo pela outra alternativa e portanto uma
decisatildeo de caraacuteter meramente subjetivo destituiacuteda de qualquer fundamento Quando Hegel se
refere agrave impossibilidade de se obter tranquumlilidade (Ruhe) ao se fazer opccedilatildeo por uma entre duas
ou mais verdades conflitantes assume ele a posiccedilatildeo ceacutetica a respeito da incapacidade de se
131 Ibidem p 371 trad cit p 775 (ldquoZweifel ist gerade das Gegenteil der Ruhe die das Resultat desselben ist Zweifel kommt von Zwei her ist ein Hin- und Herwerfen zwischen zweien und mehreren man beruhigt sich weder bei dem einen noch bei dem anderen - und doch soll man sich bei dem einen oder bei dem anderen beruhigenrdquo)
132 Assim como natildeo considera apropriado caracterizar o ceticismo como uma doutrina da duacutevida dado que aquele que duvida natildeo consegue transpor a perspectiva dogmaacutetica Hegel tambeacutem faz questatildeo de frisar que na Fenomenologia do Espiacuterito o exame efetuado pelo ceticismo que se consuma (der sich vollbringende Skepticismus) em todo acircmbito da consciecircncia fenomenal natildeo pode ser considerado um caminho da duacutevida pois se assim o fosse natildeo seria possiacutevel ir aleacutem da ldquonatildeo-verdade do saber como fenocircmenordquo ldquoTrata-se portanto de um caminho que pode ser considerado caminho da duacutevida ou mais propriamente caminho do desespero Nele com efeito natildeo tem lugar o que geralmente se entende por duacutevida vem a ser o abalo desta ou daquela pretensa verdade ao qual sucede de novo o conveniente desaparecimento da duacutevida e um retorno agrave mesma verdade de sorte que no fim tudo volta a ser como no princiacutepio Ao contraacuterio a duacutevida de que tratamos eacute a vista penetrante e consciente lanccedilada na natildeo-verdade do saber como fenocircmeno []rdquo No original ldquoEr kann deszligwegen als der Weg des Zweifels angesehen werden oder eigentlicher als Weg der Verzweiflung auf ihm geschieht nemlich nicht das was unter zweifeln verstanden zu werden pflegt ein Ruumltteln an dieser oder jener vermeynten Wahrheit auf welches ein gehoumlriges wiederverschwinden des Zweifels und eine Ruumlckkehr zu jener Wahrheit erfolgt so daszlig am Ende die Sache genommen wird wie vorher Sondern er ist die bewusste Einsicht in die Unwahrheit des erscheinenden Wissens [hellip]rdquo In GW 9 p 56 trad Vaz p 50 A respeito de se caracterizar o caminho da duacutevida na Fenomenologia mais propriamente como caminho do desespero eacute bastante esclarecedor citar a seguinte declaraccedilatildeo hegeliana acerca da afinidade do desespero (Verzweiflung) com o ceticismo ldquoO ceticismo poreacutem natildeo eacute um mero duvidar mas antes tambeacutem um desesperar No duvidar ainda existe a esperanccedila ou a expectativa que a duacutevida aiacute-presente possa ser resolvida Uma vez tendo o sujeito perdido essa esperanccedila ou expectativa entatildeo surge um desesperordquo (ldquoDer Skeptizismus ist aber nicht ein bloszliges Zweifeln sondern auch ein Verzweifeln Beim Zweifeln ist noch die Hoffnung oder Erwartung daszlig der Zweifel noch geloumlst werden koumlnne vorhanden ndash Verliert das Subjekt auch diese Hoffnung und Erwartung so entsteht eine Verzweiflungrdquo) Cf Hegel GW Vorlesungen uumlber Logik und Metaphysik Heidelberg 1817 Mitgeschrieben von FAGood ed Karen Gloy In Vorlesungen Ausgewaumlhlte Nachschriften und Manuskripte Band 11 Hamburg Meiner 1992 p 14
74
decidir agrave maneira dogmaacutetica e desse modo chegar agrave ataraxia Como sabemos por Sexto
Empiacuterico o ceacutetico natildeo encontrou tranquumlilidade ao tentar assim como os outros filoacutesofos
descobrir o que eacute verdadeiro e o que eacute falso nas coisas A uacutenica coisa que descobriu foi uma
discordacircncia um conflito ou anomalia nas coisas extremamente difiacutecil de ser solucionado
tanto que termina por adotar como princiacutepio baacutesico de sua filosofia a atitude consistente no
opor a cada argumento o argumento oposto de igual forccedila133
Como vemos o duvidar na visatildeo de Hegel natildeo pode ser um termo apropriado para se
caracterizar a atitude exercida pelo ceacutetico134 Este natildeo duvida pois ele natildeo se resolve por entre
um dos dois ou mais que se opotildeem O ceacutetico ante a falta de meios para fazer uma opccedilatildeo eacute
levado a suspender seu juiacutezo Tentar ao inveacutes disso se decidir por uma das alternativas eacute o
que lhe traraacute intranquumlilidade Duvidar eacute permanecer naquela busca pela verdade assim como o
fizeram os dogmaacuteticos e da mesma maneira fizeram os ceacuteticos inicialmente perturbados
com a anomalia nas coisas passaram entatildeo a investigar o que poderia ser verdadeiro ou falso
nas coisas E o que conseguiram foi ficarem mais perturbados Por isso a mudanccedila de atitude
com relaccedilatildeo agrave busca da verdade e a possibilidade de se encontrar a tranquumlilidade em termos
completamente outros que aqueles dos dogmaacuteticos135 A ataraxia adveacutem dessa indiferenccedila
perante os opostos
133 Cf HP I 12
134 Ainda com referecircncia agrave impropriedade do termo duacutevida para caracterizar o ceticismo diz Hegel a partir de HP I 7 ldquoO ceticismo se chamou tambeacutem de filosofia pirrocircnica e skeacutepsis ldquoefeacuteticardquo de σχέπτειν pesquisar investigar Natildeo devemos traduzir σχέψις por doutrina da duacutevida ou mania da duacutevida O ceticismo natildeo eacute uma duacutevidardquo (ldquoDer Skeptizismus hieszlig auch pyrrhonische Philosophie und ephektische Skepsis von σχέπτειν suchen forschen Man muszlig σχέψις nicht uumlbersetzen Lehre des Zweifels oder Zweifelsucht Skeptizismus ist nicht ein Zweifelrdquo)
135 Cf HP I 12 Com relaccedilatildeo a essa mudanccedila de atitude do ceacutetico para que possa obter a tranquumlilidade declara no mesmo sentido que o fazemos Roberto Bolzani ldquoA constataccedilatildeo dessa incapacidade de resolver o conflito de dar assentimento a uma doutrina em detrimento das outras todas esse estado de equiliacutebrio (άρρεψία HP I 190) e repouso do intelecto (στάσις διανοίας HP I 10) no qual se encontra entatildeo essa impressatildeo ou afecccedilatildeo (πάτος HP I 7187190192 198) nada mais satildeo do que a epokheacute E eacute nessa situaccedilatildeo de suspensatildeo que inesperadamente o filosoacutefo ndash agora ceacutetico ndash se descobre em ataraxiacutea (Cf HP I 29) A meta de todo filosofar agora se obteacutem natildeo mais com a posse da verdade ndash a partir daiacute problemaacutetica ndash mas sim com a produccedilatildeo sempre renovada desse estado intelectual que se impocircs a uma anaacutelise acurada e isenta dos argumentos que os filoacutesofos tecircm proposto para justificar suas doutrinas dogmaacuteticasrdquo (In Bolzani R Acadecircmicos versus Pirrocircnicos Tese de Doutorado em Filosofia Satildeo Paulo FFLCH-USP 2003 p 15)
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Um outro aspecto a ser considerado nessa leitura hegeliana do ceticismo antigo
refere-se ao motivo que permite ao ceacutetico obter ecircxito na sua criacutetica do dogmatismo seja este
filosoacutefico ou natildeo Por que estaacute a seu alcance mostrar a contradiccedilatildeo naquilo que a ele se
apresenta com valor de verdade
Como vimos anteriormente136 Hegel faz uma distinccedilatildeo entre o domiacutenio do
entendimento e o domiacutenio da razatildeo O primeiro constitui-se em um domiacutenio no qual somente
eacute possiacutevel produzir o limitado e finito137 Qualquer determinaccedilatildeo aiacute posta natildeo estaacute livre de ter
uma outra a ela contraposta A ocorrecircncia desse fato se deve como jaacute mencionado ao caraacuteter
limitado das determinaccedilotildees de entendimento138 Tais determinaccedilotildees satildeo limitadas porque
estatildeo reguladas pelo princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo ou seja que algo natildeo pode ser por
exemplo A e natildeo-A ao mesmo tempo Ou eacute uma coisa ou outra Jaacute o domiacutenio da razatildeo eacute
aquele em que essas determinaccedilotildees finitas produzidas pelo entendimento natildeo satildeo
consideradas isoladamente Se para o entendimento natildeo eacute possiacutevel que algo seja e natildeo seja ao
mesmo tempo que uma determinaccedilatildeo de entendimento desse modo somente valha na sua
unilateralidade e com desconsideraccedilatildeo da outra determinaccedilatildeo que a ela se contraponha e a
limite no domiacutenio racional as duas determinaccedilotildees contrapostas satildeo unificadas A contradiccedilatildeo
aqui natildeo eacute um mal a ser evitado
O que nos interessa com essa pequena retomada da distinccedilatildeo hegeliana entre
entendimento e razatildeo eacute fornecer elementos para que possamos elucidar o significado da
afirmaccedilatildeo do filoacutesofo com relaccedilatildeo ao ecircxito do ceacutetico no seu combate ao dogmatismo Com
efeito o ceacutetico consegue mostrar a fraqueza a limitaccedilatildeo das asserccedilotildees dos dogmaacuteticos devido
a estas estarem estruturadas a partir da loacutegica do entendimento Assim natildeo fica difiacutecil para ele
exercer sua atitude (agogeacute) consistente em mostrar que a cada argumento ou proposiccedilatildeo eacute
136 Ver o cap 2
137 ldquoFinito significa ndash expresso formalmente ndash aquilo que tem um fim o que eacute mas que deixa de ser onde estaacute em conexatildeo com seu outro e por conseguinte eacute limitado por ele Assim o finito consiste em uma relaccedilatildeo ao seu outro que eacute sua negaccedilatildeo e se apresenta como seu limiterdquo (ldquoEndlich heiszligt formell ausgedruumlckt dasjenige was ein Ende hat was ist aber da aufhoumlrt wo es mit seinem Anderen zusammenhaumlngt und somit durch dieses beschraumlnkt wird Das Endliche besteht also in Beziehung auf sein Anderes welches seine Negation ist und sich als dessen Grenze darstellt rdquo In Werke 8 E sect28 Adendo p 94 trad bras p 91
138 ldquoO pensar que soacute produz determinaccedilotildees finitas e nelas se move chama-se entendimento no sentido estrito do termordquo (ldquoDas Denken nur endliche Bestimmungen hervorbringend und in solchen sich bewegend heiszligt Verstand (im genauern Sinne des Wortesrdquo) In GW 20 E sect25 p 68 trad bras p 87
76
possiacutevel contrapor um argumento ou proposiccedilatildeo de igual forccedila No acircmbito do entendimento
natildeo eacute portanto possiacutevel se esquivar dos ataques do ceacutetico Ocorre entretanto que num outro
domiacutenio o da razatildeo a situaccedilatildeo natildeo seja tatildeo favoraacutevel ao ceacutetico Se no acircmbito do racional a
contradiccedilatildeo natildeo precisa ser evitada isso significa que teriacuteamos entatildeo um domiacutenio no qual a
agogeacute ceacutetica seria ineficaz Para aleacutem do acircmbito do dogmatismo produzido pelo
entendimento como poderia o ceacutetico ainda ser uma ameaccedila
Eacute apenas tendo em vista as consideraccedilotildees acima feitas que podemos entender Hegel
quando declara que se trata de um equiacutevoco pensar que toda filosofia que natildeo eacute ceticismo seja
dogmatismo139 As filosofias constituiacutedas segundo a loacutegica do entendimento satildeo para Hegel
filosofias dogmaacuteticas E satildeo essas filosofias que natildeo resistem ao combate empreendido pelo
ceticismo contra elas A filosofia especulativa estaria segundo o filoacutesofo a salvo desse
ataque Ela diferente das filosofias de entendimento (ou dogmaacuteticas) natildeo ldquoafirma algo
determinado como o absolutordquo140
Na Enciclopeacutedia141 Hegel nos fornece uma amostra desse dogmatismo expresso
filosoficamente ao se referir ao que chama de antiga metafiacutesica isto eacute a metafiacutesica que havia
se constituiacutedo anteriormente agrave filosofia kantiana142
Segundo Hegel essa metafiacutesica se articulava por meio de determinaccedilotildees de
pensamento finitas ou seja determinaccedilotildees de entendimento Procurava-se por meio delas
determinar o absoluto pela atribuiccedilatildeo de predicados Elas constituiacuteam os predicados mediante
os quais poderiacuteamos conhecer o objeto a que eram atribuiacutedas Assim dizia-se por exemplo
que o mundo eacute finito ou infinito Temos aqui um sujeito mundo ao qual um dos predicados
finito ou infinito a ele deve ser atribuiacutedo de maneira que possamos conhecer o que ele seja
De fato o que conseguimos ao proceder desse modo natildeo eacute o absoluto Finito eacute uma
determinaccedilatildeo de pensamento que tem diante de si uma outra infinito a ela contraposta Se o
mundo portanto eacute considerado finito podemos por outro lado nos contrapor a essa
afirmaccedilatildeo ao declarar com a mesma intenccedilatildeo de verdade que o mundo eacute infinito Como
impedir entatildeo que se instaure a oposiccedilatildeo Eacute com base nesse tipo de dificuldade oriunda desse
139 Cf Werke 19 p 393 trad cit p 798
140 Ibidem p 393 trad cit p 798 (ldquo etwas Bestimmtes als das Absolute behauptetrdquo)
141 Ver GW 20 E sect26 e ss trad bras p 89 e ss
142 Cf Ibidem E sect27 pp 70-71 trad bras p 90
77
modo de proceder da assim chamada antiga metafiacutesica que podemos compreender Hegel
quando se refere agraves determinaccedilotildees de pensamento finitas como as ldquooposiccedilotildees ainda natildeo
resolvidasrdquo143 A resoluccedilatildeo da oposiccedilatildeo como veremos mais tarde somente poderaacute ocorrer na
filosofia que natildeo mais se articula pela atribuiccedilatildeo de predicados a um sujeito fixo Esta
filosofia eacute a filosofia especulativa
Hegel assinala ainda que em virtude dessa possibilidade de que uma determinaccedilatildeo de
pensamento finita possa ter a ela uma outra determinaccedilatildeo de pensamento finita contraposta
esse procedimento da filosofia calcada no entendimento e consistente em se formular
proposiccedilotildees que possam dar-nos a conhecer o que eacute o objeto por meio da atribuiccedilatildeo de
predicados a um sujeito fixo padece de unilateralidade Em outras palavras para Hegel a
forma proposicional eacute incapaz de exprimir o especulativo ldquoo juiacutezo eacute por sua forma
unilateral e nessa medida eacute falsordquo144 Natildeo haacute como escapar do dogmatismo quando se
pretende portanto que o absoluto seja expresso em forma proposicional A parcialidade desse
absoluto eacute mostrada na medida em que eacute possiacutevel a formulaccedilatildeo de duas proposiccedilotildees opostas
que procurem nos dar a conhecer o que ele seja e como nos adverte Hegel uma delas deve
ser verdadeira e a outra deve ser falsa145 Para o pensar de entendimento natildeo cabe a hipoacutetese
de que essas proposiccedilotildees contrapostas possam coexistir Como admitir a coexistecircncia dos
opostos Se o mundo eacute finito eacute porque ele natildeo eacute infinito e vice-versa Do ponto de vista do
entendimento seria absurdo pensar que determinaccedilotildees opostas pudessem ter contato146 que o
mundo fosse por exemplo finito e infinito ao mesmo tempo sem que isso fosse
contraditoacuterio E uma vez instaurada a contradiccedilatildeo potildee-se a claro o limite do pensamento
dogmaacutetico O que o ceticismo faraacute aos olhos de Hegel eacute justamente atacar esse ponto fraco
do pensamento dogmaacutetico por meio da produccedilatildeo de antinomias
143 Cf Ibidem E sect 27 trad bras p 90 (ldquonoch unaufgeloumlsten Gegensatzerdquo)
144 Ibidem E sect31 p 72 trad bras p 94 (ldquodas Urtheil ist durch seine Form einseitig und in sofern falschrdquo)
145 ldquoEssa metafiacutesica tornou-se dogmatismo porque ela conforme a natureza das determinaccedilotildees finitas devia admitir que de duas afirmaccedilotildees contrapostas tais como eram aquelas proposiccedilotildees uma devia ser verdadeira mas a outra falsardquo (ldquoDiese Metaphysik wurde Dogmatismus weil sie nach der Natur der endlichen Bestimmungen annehmen muszligte daszlig von zwei entgegengesetzten Behauptungen dergleichen jene Saumltze waren die eine wahr die andere aber falsch seyn muumlsserdquo) In Ibidem E sect 32 p 72 trad bras p 94
146 O dogmatismo da metafiacutesica de entendimento natildeo pode imaginar que haja qualquer ponto de contato entre determinaccedilotildees opostas ldquoNoacutes as consideramos como separadas uma da outra por um abismo infinito de modo que as determinaccedilotildees que se contrapotildeem natildeo possam nunca tocar-serdquo (ldquoWir betrachten dieselben als durch einen unendlichen Abgrund voneinander getrennt so daszlig die einander gegenuumlberstehenden Bestimmungen sich nie zu erreichen vermoumlgenrdquo) In Werke 8 E sect32 Adendo p 98 trad bras modificada p 95
78
Mas de volta ao nosso ponto de partida referiacuteamo-nos agrave questatildeo do motivo que levaria
o ceacutetico a ter ecircxito na sua criacutetica ao dogmatismo Vimos entatildeo que na perspectiva hegeliana
esse ecircxito estava vinculado a certas caracteriacutesticas definidoras do dogmatismo ou pensar de
entendimento Eacute preciso contudo abrir aqui um parecircntese para lembrar que o ceacutetico natildeo
admite que haja uma terceira hipoacutetese que natildeo ceticismo ou dogmatismo Ou se eacute ceacutetico ou se
eacute dogmaacutetico147 Natildeo haacute para o ceticismo uma filosofia que natildeo fosse ceacutetica e ao mesmo
tempo tambeacutem natildeo fosse dogmaacutetica Qualquer filosofia que de uma maneira ou de outra
procure afirmar algo sobre a realidade o que seriam as coisas em si mesmas a verdade ou o
absoluto eacute aos olhos do ceticismo dogmaacutetica Qualquer filosofia que enfim avance teses
determinadas Hegel estaacute consciente desse aspecto do ceticismo Ele sabe que da perspectiva
ceacutetica tambeacutem o pensamento especulativo seria considerado dogmaacutetico148 Isto posto
podemos afirmar que para ele o dogmatismo eacute um ldquoconceitordquo que natildeo possui a mesma
abrangecircncia que possuiacutea para os ceacuteticos antigos A filosofia especulativa por exemplo natildeo
poderia ser considerada dogmaacutetica Ela natildeo se constitui na forma de proposiccedilotildees que possam
ser contraditadas por outras a elas contrapostas assim como ocorre no caso do pensar limitado
do entendimento Dessa maneira aos olhos de Hegel ela a filosofia especulativa natildeo eacute
dogmaacutetica Somente as filosofias assentadas no pensar de entendimento poderiam receber tal
denominaccedilatildeo Algo impensaacutevel para o ceacutetico fazer uma tal espeacutecie de distinccedilatildeo
A anaacutelise hegeliana dos tropos utilizados pelos ceacuteticos para combater o dogmatismo
tambeacutem estaacute assentada na distinccedilatildeo que ele faz e acima exposta entre dogmatismo ceticismo
e filosofia especulativa Assim veremos a seguir como Hegel caracteriza os tropos e avalia
em que medida podem ser uacuteteis agrave filosofia especulativa
147 Mesmo a divisatildeo tripartite da filosofia no iniacutecio das Hipotiposes natildeo parece a nosso ver desautorizar a hipoacutetese de que para o ceacutetico apenas haja ou dogmatismo ou ceticismo Cremos que a divisatildeo laacute efetuada apenas pretenda tornar mais precisa a distinccedilatildeo entre um dogmatismo positivo e um dogmatismo negativo Por isso quando declaramos acima que para o ceacutetico apenas haja ou filosofia dogmaacutetica ou filosofia ceacutetica utilizamos o termo dogmatismo em sentido lato isto eacute que o dogmatismo possa ser tanto positivo quanto negativo A respeito da divisatildeo tripartite da filosofia pelo ceticismo cf HP I 1-4 Ver ainda no capiacutetulo inicial deste trabalho p 27 e ss
148 ldquoOs ceacuteticos da Antiguumlidade chamavam em geral dogmatismo toda e qualquer filosofia enquanto ela estabelecia teses determinadas Nesse sentido amplo tambeacutem a filosofia propriamente especulativa conta como dogmaacutetica para o ceticismordquo (ldquoDie alten Skeptiker nannten uumlberhaupt eine jede Philosophie dogmatisch insofern dieselbe bestimmte Lehrsaumltze aufstellt In diesem weiteren Sinne gilt auch die eigentlich spekulative Philosophie dem Skeptizismus fuumlr dogmatischrdquo) In Werke 8 E sect 32 Adendo p 97 trad bras p 94
79
Como jaacute foi observado no iniacutecio deste estudo149 e Hegel faz questatildeo de assinalar150 os
tropos satildeo modos maneiras151 que o ceacutetico se utiliza para por meio da produccedilatildeo de antiacuteteses
chegar agrave suspensatildeo do juiacutezo152 Tambeacutem para Hegel assim como jaacute o eram para os ceacuteticos
antigos os tropos satildeo armas valiosas e eficazes para a criacutetica do dogmatismo
Diferentemente dos ceacuteticos que natildeo procuram efetuar nenhuma distinccedilatildeo entre os dez
tropos de Enesidemo e os cinco tropos de Agripa153 Hegel na sua exposiccedilatildeo dos mesmos
empenha-se em delinear as caracteriacutesticas peculiares de ambos os grupos de tropos Assim os
tropos de Enesidemo satildeo eficazes no combate a uma forma de dogmatismo diferente daquele
que eacute alvo dos cinco tropos de Agripa Os dez tropos tecircm segundo o filoacutesofo como alvo uma
forma mais rudimentar de dogmatismo Uma forma de dogmatismo produzida por uma
consciecircncia vulgar (gemeine Bewuszligtsein) e que tem como crenccedila uma verdade imediata154
Mas a que se deve essa ponderaccedilatildeo de Hegel com relaccedilatildeo ao caraacuteter rudimentar do
dogmatismo que estaacute na mira dos dez tropos Ela se deve com efeito a uma falta de
elaboraccedilatildeo conceitual desses tropos Natildeo haacute neles de acordo com a perspectiva hegeliana a
intenccedilatildeo de se procurar fazer frente a teorias sejam elas filosoacuteficas ou natildeo Eles se dirigem
imediatamente contra o empiacuterico155 A oposiccedilatildeo por meio deles advinda se faz da maneira a
mais simples Tomemos a tiacutetulo de exemplo o primeiro tropo156 baseado nas diferenccedilas dos
animais de acordo com ele dados os caracteres proacuteprios de cada animal diferentes
149 Ver Cap 1 pp 46-48
150 Cf Hegel Werke 19 p 37 trad cit p 778
151 Com respeito ao significado do termo grego tropos no ceticismo antigo cf Barnes J e Annas J The modes of scepticism Cambridge Cambridge University Press 1985 p 21 e ss
152 Cf HP I 3135 e 36
153 No que toca agrave atribuiccedilatildeo dos tropos a Enesidemo e a Agripa veja-se respectivamente em Brochard Les Sceptiques Grecs Paris Vrin 1969 p 253 e ss e p301 e ss
154 Cf Werke pp 374-375 trad cit pp 778-779
155 No mesmo sentido a seguinte observaccedilatildeo de Victor Brochard ldquoLimitemo-nos a notar que os dez tropos de Enesidemo exceto o uacuteltimo (trata-se ainda poreacutem de opiniotildees comumente admitidas sem nenhum caraacuteter cientiacutefico) tecircm por objeto mostrar a insuficiecircncia da percepccedilatildeo sensiacutevel (Cf Brochard p 261)
156 Cf HP I 40-78
80
representaccedilotildees seratildeo produzidas a respeito dos mesmos objetos Desse modo em vista das
diferenccedilas especiacuteficas dos olhos de diversos animais produzir-se-atildeo diferentes representaccedilotildees
visuais a respeito de um mesmo objeto Ou ainda conforme o terceiro tropo157 as diferenccedilas
nos oacutergatildeos sensoriais de um homem para outro natildeo permitem que possamos afirmar nada de
certo no que se refere agrave real natureza daquilo que sentimos Assim natildeo podemos nada dizer
por exemplo quanto ao mel ser em si mesmo doce visto que a um pode parecer doce e a
outro natildeo
Por essa maneira ruacutestica de engendrar oposiccedilotildees apenas apontando a relatividade
daquilo que eacute imediatamente posto como um saber verdadeiro Hegel considera haver uma
falta de abstraccedilatildeo (Mangel der Abstraktion) um caraacuteter a-conceitual (Begriffslosigkeit) desses
dez primeiros tropos que eles expressam um pensamento inabilidoso (ein ungeuumlbtes Denken)
Eacute fato que Sexto nos advirta que o tropo da relatividade eacute o mais geral isto eacute que no fundo
todos os dez tropos satildeo variadas formas de expressar a relatividade de todas as coisas158
Mesmo assim nota Hegel o tropo da relatividade aparece exposto ao lado dos outros nove
como apenas mais um deles159 Natildeo importa portanto que natildeo passem de variaccedilotildees do tropo
da relatividade os outros nove tropos160 Parece-nos que o objetivo do ceacutetico ao apresentar por
meio dos dez tropos diversas maneiras de se poder suspender o juiacutezo eacute ilustrar
extensivamente como fica difiacutecil de se escapar da epokheacute Natildeo eacute suficiente apenas assinalar
que pode ser mostrado o caraacuteter relativo de todas as coisas Eacute necessaacuterio exemplificar
abundantemente essa relatividade A produccedilatildeo de antiacuteteses se daacute portanto dos mais variados
modos tornando a tarefa de se encontrar alguma verdade absoluta um objetivo cada vez mais
distante e irrealizaacutevel
Se o ceticismo assinala Hegel eacute uma filosofia que nos mostra natildeo haver constacircncia
nas coisas que elas satildeo variaacuteveis que nada permanece sempre da mesma maneira no caso
dos dez tropos insiste ele essa inconstacircncia pode ser observada no plano do saber imediato
Por meio deste saber apenas se diz que algo eacute imediatamente de determinado modo E por que
157 Cf HP I 79-91
158 Cf HP I 39
159 Cf Werke 19 p 385 trad cit p 790
160 A respeito da sistematizaccedilatildeo precaacuteria desses tropos ou mesmo falta dela diz Brochard ldquoEsses dez tropos noacutes os vemos se suceder com exceccedilatildeo dos quatro primeiros sem grande ordem Natildeo haacute por que se espantar com isso natildeo eacute metodicamente e nem a priori mas empiricamente e acumulando observaccedilotildees que eles foram determinadosrdquo (Cf Brochard p 259)
81
eacute assim Eacute apenas porque eacute Tenho a experiecircncia imediata de que por exemplo o mel eacute doce
Um outro experimenta do mesmo mel e afirma de igual modo que o mel eacute amargo Diante
portanto de duas percepccedilotildees opostas natildeo eacute possiacutevel saber se o mel eacute doce ou amargo e
assim somos levados agrave suspensatildeo de juiacutezo Segundo Hegel a verdade imediata das coisas eacute
refutada apenas com a posiccedilatildeo do contraacuterio ao que eacute afirmado como o verdadeiro por meio
do ldquoser contrapostordquo (das entgegengesetzte Sein)161 Algueacutem afirma que algo eacute assim mas
outro afirma que natildeo eacute assim que eacute de outro modo
Por mais triviais e vulgares que sejam esses tropos Hegel os considera bastante
apropriados (ganz treffend) contra o dogmatismo do senso comum (den Dogmatismus des
gemeinen Menschenverstandes)162 Exemplo desse dogmatismo grosseiro poderia ser o
ceticismo de Schulze163 Para este autor aquilo que se daacute agrave nossa consciecircncia imediata eacute
verdadeiro164 Natildeo haacute porque de acordo com ele negarmos que seja verdadeiro aquilo que
imediatamente experienciamos Se existe algo verdadeiro este consiste apenas naquilo de que
possamos imediatamente ter certeza165 E Schulze ainda pretende que os ceacuteticos antigos
161 Cf Ibidem p 375 trad cit p 779
162 Cf Hegel Ibidem p 385 trad cit p 790
163 Para a criacutetica detalhada de Hegel ao ceticismo de Schulze ver seu artigo ldquoRelacionamento do ceticismo agrave filosofiardquo In GW 4 pp 197-238 Seja-nos permitido citar tambeacutem a respeito nosso artigo ldquoAlguns aspectos da compreensatildeo hegeliana do ceticismo antigo a partir da criacutetica ao ceticismo de Gottlob Ernst Schulzerdquo In Dois Pontos Ceticismo UFPRUFSCAR vol 4 no 2 2007 pp 221-246 Cf tambeacutem Vieweg Philosophie des Remis especialmente pp 207-221 Por fim cf Forster M N Hegel and Skepticism cap 1
164 Cf Werke 19 p 360 trad cit p 375
165 Ver a propoacutesito a exposiccedilatildeo hegeliana desse lado positivo do ceticismo de Schulze no artigo sobre o ceticismo In GW 4 p 202 Hegel notemos laacute se refere quase textualmente ao seguinte trecho da obra de Schulze Criacutetica da Filosofia Teoacuterica a saber ldquoTem entatildeo certeza completamente incontestaacutevel a existecircncia daquilo que eacute dado presente no acircmbito de nossa consciecircncia Pois o que aiacute estaacute presente na consciecircncia natildeo podemos noacutes de sua existecircncia tampouco duvidar assim como duvidar da proacutepria consciecircncia Querer poreacutem duvidar da consciecircncia eacute absolutamente impossiacutevel porque uma tal duacutevida visto que ela natildeo pode realizar-se sem [que haja] consciecircncia a si mesma se aniquila natildeo seria portanto nada Chamamos entatildeo um fato da consciecircncia aquilo que na e com a consciecircncia eacute dadordquo (ldquoNun hat die Existenz desjenigen was im Umfange unsers Bewuszligtseins als vorhanden gegeben ist ganz unlaumlugbare Gewiszligheit Denn da es im Bewuszligtsein gegenwaumlrtig ist so koumlnnen wir dessen Existenz eben so wenig bezweifeln als das Bewuszligtsein selbst das Bewuszligtsein aber bezweifeln zu wollen ist absolut unmoumlglich weil ein solcher Zweifel da er ohne Bewuszligtsein nicht statt finden kann sich selbst vernichten mithin Nichts seyn wuumlrde Nun nennt man dasjenige was in und mit dem Bewuszligtsein gegeben ist eine Tatsache des Bewuszligtseinsrdquo In Schulze G E Kritik der theoretischen Philosophie Band 1 Hamburg 1801 p 51 (reimpressatildeo por Aetas Kantiana Bruxelas Culture et Civilisation 1973)
82
tambeacutem tenham considerado verdadeiro esse saber imediato e natildeo-filosoacutefico166 Ora natildeo haacute
nada mais distante da filosofia ceacutetica do que esse assentimento a verdades imediatas Os dez
tropos de Enesidemo satildeo prova disso natildeo apenas da perspectiva hegeliana como tambeacutem da
perspectiva ceacutetica Hegel sabe que os ceacuteticos estatildeo longe de afirmar que aquilo que lhes
aparece seja expressatildeo de qualquer verdade Como ele bem nota aquilo que lhes aparece
serve apenas de guia para que o ceacutetico se conduza na sua vida praacutetica167 O ldquofenocircmenordquo natildeo
possui nenhum estatuto epistemoloacutegico e nem ontoloacutegico no sentido dogmaacutetico Se os dez
tropos de Enesidemo servem muito bem aos olhos de Hegel para combater qualquer forma
rudimentar de dogmatismo jaacute o ceticismo de Schulze que tambeacutem poderia ser considerado
uma forma de dogmatismo canhestro natildeo pode ficar fora da mira dos ceacuteticos apontada para
ele por meio dos dez tropos
Na primeira seccedilatildeo da Fenomenologia do Espiacuterito ldquoA certeza sensiacutevel ou o isto ou o
visarrdquo Hegel nos apresenta uma criacutetica de toda forma de saber imediato Assim como no caso
dos dez tropos aqui tambeacutem se aponta para a instabilidade desse saber imediato E para
mostrar que a certeza sensiacutevel que esse saber do imediato nos proporciona natildeo eacute nenhuma
verdade sustentaacutevel que quando procuramos ter acesso agrave coisa que eacute imediatamente para noacutes
de fato natildeo temos acesso a ela Hegel eacute o que nos parece apoacuteia-se tambeacutem no ceticismo
antigo Cremos ser possiacutevel fazer semelhante afirmaccedilatildeo porque em certos momentos do
texto seu modo de proceder com vistas a atacar o saber imediato estaacute em consonacircncia com o
procedimento dos ceacuteticos antigos por meio dos dez tropos168 Essa forma de oposiccedilatildeo que
Hegel vecirc como caracteriacutestica do modo de proceder que opera nos dez tropos a saber que a
uma verdade posta imediatamente uma outra verdade eacute imediatamente contraposta agrave
primeira de maneira que uma anule a outra tambeacutem se encontra presente na seccedilatildeo inicial da
166 Cf GW 4 p 204
167 ldquoO que como ente ou inteligiacutevel valia vale por conseguinte a eles somente por algo que aparece ou uma pura representaccedilatildeo poreacutem lhes vale apenas como algo conforme o qual os ceacuteticos se guiam na sua conduta seu agir e deixar-se submeterrdquo (ldquoWas als Seiendes und Gedachtes galt galt ihnen daher nur fuumlr ein Erscheinendes ode reine Vorstellung aber es galt ihnen als eine solche nach der der Skeptiker sich in seinem Betragen Tun und Lassen richteterdquo) In Werke 19 p 371 trad cit p 775
168 Em sucinto poreacutem bastante elucidativo estudo Klaus Duumlsing relaciona a criacutetica hegeliana da certeza sensiacutevel na Fenomenologia do Espiacuterito ao ceticismo antigo Mais especificamente Duumlsing procura mostrar como estaacute nela presente a criacutetica ceacutetica a toda forma de saber imediato por meio da contraposiccedilatildeo de argumentos com ecircnfase na efetivaccedilatildeo dessa tarefa mediante os tropos de Enesidemo (Cf Duumlsing K ldquoDie Bedeutung des antiken Skeptizismus fuumlr Hegels Kritik der Sinnlichen Gewissheitrdquo Hegel-Studien 8 1973 pp 119-130) Tambeacutem Dietmar Heidemann remete a anaacutelise da certeza sensiacutevel ao ceticismo antigo Em particular ele se refere ao que chama de criacutetica ceacutetica ao realismo imediato (Cf Heidemann D Der Begriff des Skeptizismus pp 280-290)
83
Fenomenologia do Espiacuterito quando do exame que se faz do saber imediato que daiacute se parte
Assim eacute faacutecil mostrar que a certeza sensiacutevel imediata de que agora eacute noite natildeo resiste perante
a certeza oposta a ela e pela qual se declara que agora eacute dia Tanto a certeza de que agora eacute
noite quanto aquela outra de que agora eacute dia satildeo certezas portadoras de verdades
insustentaacuteveis em vista da mais simples oposiccedilatildeo a que sejam submetidas169
O mesmo se passa com a verdade ldquoo aqui eacute a aacutervorerdquo 170 quando me viro prossegue
Hegel essa verdade desvaneceu (ist verschwunden) e mudou na oposta o aqui natildeo eacute uma
aacutervore mas antes uma casa
Sem pretender seguir aqui todos os passos dessa dialeacutetica que aniquila a possibilidade
de que haja um saber imediato vale chamar agora a atenccedilatildeo para a conclusatildeo mais geral a que
se pode chegar qual seja de que o ser que a certeza sensiacutevel quer conhecer imediatamente
natildeo pode ser apreendido Mas por que natildeo podemos ter acesso a essa verdade imediata Seu
acesso nos eacute vedado porque quando pretendemos dizer o imediato apenas conseguimos dizer
o universal Na dialeacutetica do agora natildeo conseguimos de fato dizer verdadeiramente que agora
eacute por exemplo dia Agora pode ser dia ou noite Contra o agora que eacute dia pode ser
contraposto o agora que eacute noite A uacutenica coisa que se manteacutem aqui eacute o agora indiferente a ser
dia ou noite ldquoComo o dia e a noite natildeo satildeo o seu ser assim tambeacutem ele natildeo eacute o dia e a noite
natildeo eacute afetado por esse seu ser-outrordquo171 O agora eacute por meio dessa negaccedilatildeo daquilo que ele
natildeo eacute Quando se pretende dizer verdadeiramente que agora eacute dia somente se consegue dizer
o universal isto eacute o agora que se manteacutem a salvo da oposiccedilatildeo que possa surgir entre o ser
que ele pretende enunciar e o ser que se opotildee a ele
A impossibilidade de dizermos o imediato se deve ao fato de sermos traiacutedos pela
linguagem Ela proacutepria nos mostra que ao tentarmos dizer o ser sensiacutevel apenas estaacute ao nosso
alcance dizer o universal172 Se pretendemos dizer este pedaccedilo de papel segundo o que se nos
169 Cf GW 9 pp 64-65 trad Paulo Meneses p 76
170 Cf Ibidem p 65 trad cit p 77
171 (ldquoso wenig die Nacht und der Tag sein Seyn ist ebensowohl ist es auch Tag und Nacht es ist durch diszlig sein andersseyn nicht afficirtrdquo) In GW 9 p 64 trad cit p 76
172 Cf GW 9 pp 64-65 trad Vaz p 63 Hegel natildeo perde aleacutem disso a oportunidade tambeacutem aqui na Fenomenologia do Espiacuterito de criticar e de modo incisivo Schulze Mesmo que natildeo seja citado nominalmente a referecircncia de Hegel soacute pode ser a ele Vale a pena citar todo o trecho ldquoEacute pois de se admirar quando contra essa experiecircncia se sustenta como experiecircncia universal e tambeacutem como afirmaccedilatildeo filosoacutefica e mesmo como resultado do ceticismo que a realidade ou o ser das coisas exteriores como estas ou como sensiacuteveis tem uma
84
apresenta pelo exame da certeza sensiacutevel natildeo conseguiriacuteamos dizer este pedaccedilo de papel
singular e individual Pela linguagem o ser-aiacute desse objeto exterior a noacutes eacute inatingiacutevel173 Este
pedaccedilo de papel que digo eacute um pedaccedilo de papel como qualquer outro ldquo() como esse pedaco
de papel todo e cada papel eacute um este pedaccedilo de papel e o que eu disse foi sempre e somente
o universalrdquo174
Trazendo novamente o eixo da discussatildeo para o debate entre Hegel e o ceticismo natildeo
conveacutem aqui discutir a respeito do alcance daquilo que aparece para o ceacutetico apoacutes a suspensatildeo
de juiacutezo mas no que nos interessa a saber a possibilidade ou natildeo de se poder afirmar a
verdade simploacuteria do imediato parece-nos oportuno ainda articular a discussatildeo acerca do
saber imediato agrave temaacutetica ceacutetica referente ao ldquoaparecer apoacutes a epokheacuterdquo
Assim quando nas Hipotiposes se discute a respeito dos ceacuteticos abolirem os
fenocircmenos175 parece-nos que a questatildeo em torno da possibilidade de haver ou natildeo saber
imediato esteja presente O ceacutetico procura aiacute justamente desfazer um mal-entendido
concernente agrave sua ldquoposiccedilatildeo filosoacuteficardquo Se natildeo podemos ter acesso agrave verdade no sentido
dogmaacutetico se as coisas se nos apresentam dotadas de um conflito indecidiacutevel somos levados
agrave epokheacute Diante dessa incapacidade do ceacutetico se decidir (dogmaticamente) em nada poder
afirmar absolutamente o que restaria a ele fazer daiacute por diante Esse eacute a espeacutecie de
verdade absoluta para a consciecircncia Semelhante afirmaccedilatildeo natildeo sabe o que diz ou natildeo sabe que diz o contraacuterio do que pretende dizer A verdade do isto sensiacutevel para a consciecircncia deve ser uma experiecircncia universal Aquela consciecircncia suprime uma verdade desse tipo como por exemplo o aqui eacute uma aacutervore ou o agora eacute meio-dia sempre de novo e enuncia o contraacuterio o aqui natildeo eacute uma aacutervore mas uma casa E do mesmo modo a consciecircncia suprime o que nessa afirmaccedilatildeo que suprime a primeira eacute igualmente afirmaccedilatildeo de um isto sensiacutevel Desta sorte em toda certeza sensiacutevel somente eacute experimentado em verdade o que vimos ou seja o isto como um universal o contraacuterio do que aquela afirmaccedilatildeo assegura ser a experiecircncia universal A propoacutesito dessa menccedilatildeo da experiecircncia seja permitido antecipar uma consideraccedilatildeo que pertence ao domiacutenio da praacutetica Na linha dessa consideraccedilatildeo pode-se dizer agravequeles que afirmam a tal verdade e certeza dos objetos sensiacuteveis que eles devem ser reenviados agrave escola mais baixa da sabedoria ou seja aos velhos misteacuterios eleusiacutenicos de Ceres e Baco e que devem aprender pela primeira vez os misteacuterios de comer o patildeo e beber o vinho Com efeito o iniciado nesses misteacuterios natildeo somente chega a duvidar do ser das coisas sensiacuteveis mas a desesperar dele e ele mesmo de uma parte leva a cabo o seu nada de outra o vecirc levar a cabo Tambeacutem os animais natildeo estatildeo excluiacutedos dessa sabedoria mas ao contraacuterio mostram-se profundamente iniciados nela De fato eles natildeo permanecem diante das coisas sensiacuteveis como se elas possuiacutessem um ser em si mas desesperando da sua realidade e na certeza total de seu nada eles as tomam sem mais e as devoram Como eles toda a natureza celebra assim esses misteacuterios revelados que ensinam qual seja a verdade das coisas sensiacuteveisrdquo In GW 9 p 69 trad Vaz p 66-67
173 Cf Ibid pp 69-70 trad Vaz pp 67-68
174 (ldquoals dieses Stuumlck Papier so ist alles und jedes Papier ein dieses Stuumlck Papier und ich habe nur immer das Allgemeine gesagtrdquo) Cf GW 9 p 70 trad de Paulo Meneses p 82
175 Cf HP I 19-20
85
pensamento que poderia surgir para aqueles que natildeo satildeo suficientemente versados no
ceticismo Mais estranho ainda para o natildeo-ceacutetico eacute essa aceitaccedilatildeo adoxaacutestica daquilo que
aparece sem contudo que este aparecer natildeo seja dotado de verdade A partir deste ponto
estamos a um passo de natildeo compreender que o fenocircmeno da perspectiva do ceticismo possa
ter nossa aceitaccedilatildeo isto eacute que possamos dar nosso assentimento ao que nos aparece e se nos
impotildee independente de nossa vontade mas que isto que nos aparece natildeo tem nenhum valor de
verdade
O pensar natildeo-filosoacutefico podemos conjecturar aceita com dificuldade essa hipoacutetese de
um aparecer do qual natildeo possamos ter certeza verdadeira Afinal como natildeo ter certeza de que
vejo que agora eacute dia A ingenuidade do pensar natildeo-filosoacutefico natildeo se daacute conta de que o ceacutetico
tambeacutem talvez concordasse com essa certeza de que agora eacute dia contudo se ele concorda o
faz de uma outra perspectiva
Talvez seja nesse tipo de confusatildeo com respeito agrave sua posiccedilatildeo que o ceacutetico seja
obrigado a tentar esclarecer porque ele natildeo pretende abolir as aparecircncias Parece-nos
portanto que a explicaccedilatildeo fornecida para esse tema pretenda justamente tornar claro que essa
discussatildeo acerca do caraacuteter do aparecer se faccedila ao niacutevel da linguagem e que nesse niacutevel natildeo
podemos obter certezas vinculadas ao que se noacutes daacute imediatamente Natildeo haacute como decidir
entre afirmaccedilotildees opostas a respeito do ldquorealrdquo O ceacutetico portanto constata que no uacutenico plano
ndash a linguagem ndash em que podemos discutir o fenocircmeno natildeo podemos concluir
dogmaticamente nada a seu propoacutesito Mesma conclusatildeo a que chega Hegel exceto que na
dialeacutetica da certeza sensiacutevel se chega a um resultado positivo176 que acerca daquilo que eacute
visado imediatamente apenas podemos ter acesso ao universal
Dessa discussatildeo importa com efeito reter que tanto para os ceacuteticos quanto para
Hegel natildeo podemos por meio da linguagem exprimir o sensiacutevel Mas nada poder dizer a
respeito do sensiacutevel com valor de verdade natildeo impede o ceacutetico de continuar a falar dele Ele
continua a ver uma aacutervore a perceber que agora eacute dia e que este dia se torna noite O que
acontece agora eacute que em virtude da sua incapacidade em poder dizer algo com valor de
verdade ele apenas pode relatar acerca do que lhe aparece deixando de lado qualquer juiacutezo
teacutetico concernente a esse aparecer
176 O ceacutetico chega apenas agrave suspensatildeo do juiacutezo
86
Os tropos nos mostraram o caminho dessa dificuldade em se afirmar algo
dogmaticamente Apoacutes a suspensatildeo do juiacutezo natildeo estamos de acordo com a visatildeo ceacutetica
impedidos de viver como antes o faziacuteamos mas estamos impedidos todavia de tentar nos
referirmos a essa experiecircncia pela qual todos ndash filoacutesofos ou natildeo ndash passamos de modo
dogmaacutetico
O ceacutetico antigo foi obrigado como haacute pouco vimos a ter de se haver com essa falta de
compreensatildeo relacionada agrave sua filosofia E se essa dificuldade de compreensatildeo do
ldquofenomenismordquo ceacutetico jaacute era notaacutevel agrave eacutepoca de Sexto outro exemplo da mesma
incompreensatildeo novamente se verifica agrave eacutepoca de Hegel o ceticismo de Schulze e este eacute o
exemplo mais gritante da mesma
Se na seccedilatildeo Ceticismo das suas Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia a fraqueza do
ceticismo de Schulze era apontada dentro da criacutetica que por meio dos tropos se fazia agrave falta de
solidez do saber imediato das coisas exteriores sensiacuteveis na Fenomenologia do Espiacuterito a
criacutetica a Schulze se desenvolve no mesmo sentido todavia que agora ela vai como haacute pouco
vimos aleacutem da mera criacutetica negativa e aponta para o resultado positivo dessa dialeacutetica
presente na certeza sensiacutevel
De volta aos tropos conveacutem reparar que nas Hipotiposes Sexto natildeo se refere aos
tropos a partir da dupla denominaccedilatildeo tropos de Enesidemo e tropos de Agripa Ele apenas
nota que os modos de Enesidemo surgem em um periacuteodo mais antigo da histoacuteria do
ceticismo177 Jaacute os tropos de Agripa satildeo de um periacuteodo bem posterior da histoacuteria do
ceticismo178 A diferenccedila entre a eacutepoca de surgimento eacute a uacutenica que Sexto menciona A uacutenica
observaccedilatildeo que Sexto faz nas Hipotiposes quanto agrave relaccedilatildeo entre os dois grupos de tropos
refere-se a notar que os cinco posteriores servem para proporcionar maior variedade e
completude agrave exposiccedilatildeo da precipitaccedilatildeo (propeacuteteia) dos dogmaacuteticos179 Mas apesar contudo
177 Cf HP I 36
178 Cf HP I 164
179 Cf HP I 177
87
de natildeo ser feita nenhuma distinccedilatildeo entre eles com relaccedilatildeo a isso Sexto faz uma declaraccedilatildeo
que merece nossa atenccedilatildeo a saber que os cinco tropos de Agripa natildeo pretendem anular os
dez tropos anteriores Ora por que razatildeo eacute declarado que natildeo se pretende por meio dos tropos
de Agripa repelir os anteriores No contexto dessa discussatildeo poderiacuteamos supor subjaz a
ideacuteia de que os tropos posteriores dariam conta da tarefa a ser executada pelos outros dez
tropos Haveria entatildeo uma superioridade dos tropos de Agripa o que por consequumlecircncia
forccedilaria o afastamento dos dez primeiros tropos em prol dos cinco de Agripa Da perspectiva
ceacutetica tal discussatildeo em torno da superioridade tem de ser evitada afinal por qual criteacuterio
julgar a superioridade de uns em relaccedilatildeo aos outros
Com efeito parece-nos que os cinco tropos de Agripa poderiam tomar o lugar dos dez
tropos de Enesidemo Satildeo de caraacuteter mais geral Dentre eles temos inclusive o tropo da
relatividade aquele ao qual poderiam todos os outros nove tropos de Enesidemo serem
reduzidos
Quando Hegel efetua a distinccedilatildeo entre os dois grupos de tropos eacute cabiacutevel que ele natildeo
esteja cometendo nenhum exagero com respeito ao que de fato nos eacute mostrado pelo ceticismo
antigo
Para Hegel a diferenccedila fundamental entre os tropos de Enesidemo e os tropos de
Agripa reside no grau de elaboraccedilatildeo que eles atingem e atrelado a essa marca distintiva o
alvo a ser atacado por meio deles tambeacutem seraacute diferente180 Assim para ele os tropos de
Agripa ldquopertencem mais agrave reflexatildeo pensante e contecircm a dialeacutetica que o conceito determinado
tem nele Esses parecem melhores satildeo manifestamente de uma origem posterior
imediatamente se vecirc que eles designam um ponto de vista e uma cultura inteiramente
180 Jaacute Brochard na sua apresentaccedilatildeo dos tropos de Enesidemo e Agripa empenhava-se em sublinhar a diferenccedila de grau que havia entre os dois grupos de tropos Dessa maneira procurava mostrar que os tropos de Agripa eram dotados de maior generalidade e abstraccedilatildeo sendo portanto mais eficazes que os tropos de Enesidemo no que toca agrave criacutetica ceacutetica por meio deles efetuada ldquoPor mais gerais que sejam as concepccedilotildees criticadas por Enesidemo elas possuem ainda um conteuacutedo determinado os argumentos de Agripa atingem natildeo somente tal ou tal proposiccedilatildeo mas antes toda proposiccedilatildeo de qualquer espeacutecie que ela seja natildeo apenas determinadas verdades mas toda verdade consideradas segundo as condiccedilotildees as mais imediatas e as mais essenciais do conhecimentordquo (Brochard p 305) Ou ainda ldquoOs cinco tropos podem ser considerados como a foacutermula a mais radical e a mais precisa que jamais fora dada a respeito do ceticismo Numa palavra ainda hoje eles satildeo irresitiacuteveis Quem quer que aceite a discussatildeo acerca dos princiacutepios que natildeo os declare superiores ao raciociacutenio e ao conhecido por uma intuiccedilatildeo imediata do espiacuterito admitido por um ato de feacute primitivo do qual natildeo prestamos contas e nem necessitamos justificar natildeo poderia escapar a essa sutil dialeacuteticardquo (Brochard p 306) Natildeo eacute agrave toa que cabe notar Hegel dedique tanta atenccedilatildeo agrave filosofia ceacutetica
88
diferentes do pensamento filosoacutefico Eles se dirigem com efeito especialmente contra as
formas de pensamento e as determinidades do conceitordquo181
O que chama a atenccedilatildeo de Hegel nos cinco tropos de Agripa eacute o caraacuteter geral dos
mesmos que implica na possibilidade de que eles natildeo fiquem restritos ao ataque a um
dogmatismo de aspecto mais rudimentar182 Os tropos de Agripa por sua proacutepria estrutura
nos permitem eacute o que nota Hegel combater o dogmatismo num outro acircmbito Este acircmbito eacute o
da forma do que eacute dito Natildeo existe aqui a preocupaccedilatildeo em exibir a falta de fundamento de
uma premissa por exemplo com relaccedilatildeo a determinado conteuacutedo Eacute indiferente o assunto de
que se trata
Interessa primordialmente a Hegel que por meio desses tropos possamos combater
natildeo apenas o dogmatismo natildeo-filosoacutefico mas tambeacutem o dogmatismo criado pelos filoacutesofos E
por dogmatismo filosoacutefico deve ser entendido aquele dogmatismo denominado por Hegel de
filosofia do entendimento (Verstandesphilosophie)
Como jaacute foi visto anteriormente183 o ecircxito do ceacutetico no combate ao dogmatismo estaacute
na visatildeo hegeliana relacionado agrave limitaccedilatildeo intriacutenseca da esfera do entendimento Assim a
aplicaccedilatildeo do ldquoprinciacutepio programaacutetico do pirronismordquo qual seja opor a todo argumento ou
proposiccedilatildeo a proposiccedilatildeo ou argumento de igual forccedila184 ao saber de entendimento fazia com
que esse saber sempre desmoronasse em vista das antinomias estabelecidas pelo ceacutetico
Contra o limitado posto pelo entendimento o ceacutetico punha um outro que contrapusesse o
primeiro mostrando assim a falta de consistecircncia desse185
Os tropos de Agripa natildeo satildeo nada mais do que variadas formas de apontar o caraacuteter
determinado do pensar filosoacutefico de entendimento ldquoEsses tropos satildeo armas fundamentais
181 (ldquosie gehoumlren mehr der denkenden Refelxion an und enthalten die Dialektik welche der bestimmte Begriff an ihm hat Diese sehen besser aus sie sind offenbar spaumlteren Ursprungs es erhellt sogleich dass sie einen ganz anderen Standpunkt und Bildung des philosophischen Denkens bezeichnen Sie gehen naumlmlich besonders gegen die Gedankenformen und Bestimmtheiten des Begriffsrdquo) In Werke 19 p 386 trad cit p 790
182 ldquoOs dez tropos de Enesidemo tendem a provar que a certeza de fato natildeo existe os cinco tropos de Agripa querem estabelecer que logicamente natildeo poderia haver certeza Por aiacute podemos medir a superioridade dos uacuteltimos por sobre os primeirosrdquo (Brochard p 304)
183 No que se refere agrave relaccedilatildeo entre dogmatismo e entendimento e agrave criacutetica ao dogmatismo produzido pelo entendimento ver de modo geral cap 2
184 Cf HP I 12
185 A respeito da limitaccedilatildeo do entendimento ver neste estudo o capiacutetulo 2
89
contra a filosofia de entendimentordquo186 Hegel natildeo perde a oportunidade de por diversas vezes
elogiar os tropos de Agripa como armas eficazes contra a limitaccedilatildeo da filosofia de
entendimento187
Tomemos um exemplo de como pode ser combatida a limitaccedilatildeo de uma filosofia do
entendimento segundo Hegel a filosofia dogmaacutetica comumente apresenta um princiacutepio em
uma proposiccedilatildeo determinada Ora eacute faacutecil apontar a condicionalidade desse princiacutepio ao se
simplesmente contrapor a ele de acordo com o tropo da hipoacutetese um outro princiacutepio que o
negue Diante dessa oposiccedilatildeo o ceacutetico suspende seu juiacutezo pois natildeo se vecirc em condiccedilotildees de
acolher um ou outro princiacutepio como vaacutelido A posiccedilatildeo do princiacutepio dessa filosofia eacute tatildeo
arbitraacuteria quanto a posiccedilatildeo do princiacutepio que o contrapotildee e posto pelo ceacutetico Contra um tal
princiacutepio determinado tambeacutem poder-se-ia arguumlir qual eacute seu fundamento e assim um outro
princiacutepio seria posto como fundamento do primeiro mas este novo princiacutepio padeceria da
mesma falta de fundamento e entatildeo seria necessaacuterio um outro princiacutepio a fundaacute-lo e assim por
diante Com esse processo de fundamentaccedilatildeo que nunca se basta teriacuteamos entatildeo uma
regressatildeo ao infinito (2ordm tropo de Agripa)
Como podemos observar natildeo eacute difiacutecil para o ceacutetico apontar mediante os tropos a
falta de solidez do que eacute posto pelas filosofias do entendimento ldquoEsses tropos satildeo as
oposiccedilotildees necessaacuterias nas quais o entendimento cai Nesses tropos estaacute contida a deficiecircncia
(das Mangelhafte) de toda metafiacutesica do entendimentordquo188 A proacutepria estrutura da proposiccedilatildeo
favorece a criacutetica ceacutetica Lembremos189 que uma proposiccedilatildeo de entendimento se constitui de
acordo com o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo190 Desse modo natildeo podemos dizer que algo seja
e natildeo seja ao mesmo tempo O ceacutetico apoiado em sua dialeacutetica potildee ao que se diz numa
proposiccedilatildeo de entendimento o seu contraposto tornando assim patente a limitaccedilatildeo do que era
enunciado por meio dessa proposiccedilatildeo
186 (ldquoDiese Tropen sind gruumlndliche Waffe gegen Verstandesphilosophierdquo) Werke 19 p 395 trad cit p 799
187 ldquoEsses tropos demonstram a alta consciecircncia dos ceacuteticos no progredir da argumentaccedilatildeo superior agravequela da loacutegica comum da loacutegica dos estoacuteicos e da canocircnica de Epicurordquo (ldquoDiese Tropen beweisen das hohe Bewuszligtsein der Skeptiker in dem Fortgehen der Argumentation -- ein houmlheres als in der gewoumlhnliche Logik der Logik der Stoiker und der Kanonik des Epikur vorhanden istrdquo) In Ibidem p394 trad cit p 799
188 (ldquoDiese Tropen sind notwendige Gegensaumltze in welche der Verstand faumlllt In diesen Tropen ist das Mangelhafte aller Verstandesmetaphysik enthaltenrdquo) In Ibidem p 394 trad cit p 799
189 Veja-se a respeito o capiacutetulo 2
190 Hegel a ele se refere como princiacutepio de contradiccedilatildeo
90
Ainda sobre os tropos de Agripa atacarem a forma do que eacute dito dogmaticamente por
essas filosofias limitadas Hegel se refere a essa operaccedilatildeo como ldquodesse determinado
encontrar o que eacute sua determinidaderdquo191 Encontrar nesse determinado produzido pelo
entendimento aquilo que o faz limitado e que dessa maneira torna-o vulneraacutevel agrave criacutetica
ceacutetica
A fim ainda de esclarecer o que eacute o ceticismo Hegel distingue dois momentos formais
do que ele chama de cultura (Bildung) ceacutetica Esses dois momentos constituem uma espeacutecie
de descriccedilatildeo hegeliana da estrutura fundamental do modo de operar dessa filosofia
Assim no primeiro momento Hegel salienta essa forccedila da consciecircncia (ceacutetica) de se
retirar de si mesma e tomar a totalidade do que existe incluiacuteda aiacute ela mesma ndash sua operaccedilatildeo ndash
como seu objeto192 Talvez com essa espeacutecie de caracterizaccedilatildeo Hegel se refira agrave neutralidade
que haacute nessa postura filosoacutefica quando do exame daquilo que a ela se apresenta
dogmaticamente
Natildeo haveria como ser diferente pois se o ceacutetico em virtude de sua proacutepria atitude
filosoacutefica natildeo possui dogmas a defender natildeo parte portanto de nenhuma verdade seja ela
qual for ou diga respeito ao que quer que seja o seu exame do que eacute afirmado
dogmaticamente seraacute isento e neutro O exame dos enunciados dos dogmaacuteticos se efetua
levando apenas em conta aquilo que eles mesmos propuseram e os argumentos utilizados
pelos ceacuteticos para combater tais enunciados expressam somente a forma por eles encontrada
para verificar a sustentabilidade do que foi dogmaticamente posto193
191 (ldquovon diesem Bestimmten zu finden was seine Bestimmtheit istrdquo) In Werke 19 p 395 trad cit pp 799-800
192 Cf Ibidem p 395 trad cit p 800
193 Nada fica por conseguinte excluiacutedo do acircmbito do exame do dogmatismo filosoacutefico Natildeo se parte de premissas que sirvam como criteacuterio a ser seguido com relaccedilatildeo ao que seraacute analisado Eacute de acordo com essa forma de proceder do ceacutetico que na Fenomenologia do Espiacuterito eacute o que nos parece dir-se-aacute que o exame ceacutetico da consciecircncia aconteceraacute a partir daquilo mesmo que se apresenta nesta ou naquela figura da consciecircncia de maneira que ldquonatildeo temos portanto necessidade de trazer outras medidas e aplicar na investigaccedilatildeo nossas descobertas e nossos pensamentos Deixando-os de lado conseguiremos tratar o objeto de nossa inquisiccedilatildeo tal como ele eacute em-si e para-si Torna-se supeacuterflua por conseguinte uma intervenccedilatildeo de nossa parte desde que o
91
O segundo momento da Bildung ceacutetica consiste na operaccedilatildeo efetivamente realizada
quando do exame do que eacute dito dogmaticamente Pensemos por exemplo numa proposiccedilatildeo
qualquer o interesse do ceacutetico natildeo estaacute voltado primordialmente para o conteuacutedo enunciado
por meio dessa proposiccedilatildeo mas antes na forma do que eacute dito194 Desse modo no juiacutezo ldquoa
coisa eacute unardquo sua preocupaccedilatildeo natildeo eacute com a coisa que eacute dita e com o fato dela ser uma
preocupa-se ele antes que nessa proposiccedilatildeo haacute um algo um determinado relacionado ao uno
O essencial consiste nessa relaccedilatildeo entre esse singular que se potildee como um com o universal
que por sua vez eacute diverso (verschieden) dele195 O essencial prossegue Hegel eacute o elemento
loacutegico trazido ao primeiro plano pelo ceticismo196
Os tropos de Agripa exemplificam essa mudanccedila de foco do conteuacutedo para a forma do
que eacute enunciado A criacutetica ao dogmatismo independe do conteuacutedo que estaacute presente num
argumento ou proposiccedilatildeo pois esses tropos satildeo eficazes no combate ao dogmatismo apenas
ao apontar em seu aspecto formal a falta de solidez do que eacute afirmado
Outro aspecto que adveacutem como consequumlecircncia desse desinteresse pelo conteuacutedo do que
eacute dito refere-se ao fato de que a investigaccedilatildeo ceacutetica por natildeo poder ndash em virtude de sua
conceito e o objeto a medida e a coisa a ser examinada estatildeo presentes na consciecircncia mesmardquo (ldquo[]und hiemit wir nicht noumlthig haben Masszligstaumlbe mitzubringen und unsere Einfaumllle und Gedanken bey der Untersuchung zu appliciren dadurch daszlig wir diese weglassen erreichen wir es die Sache wie sie an und fuumlr sich selbst ist zu betrachten Aber nicht nur nach dieser Seite daszlig Begriff und Gegenstand der Maszligstab und das zu Pruumlffende in dem Bewuszligtsein selbst vorhanden sind [hellip] rdquo In GW 9 p 59 trad Vaz p 54
194 Cf Werke 19 p 395 trad cit p 800
195 Cf Ibidem p 395 trad cit p 800
196 Poderiacuteamos aproximar essa discussatildeo a respeito da mudanccedila de foco realizada pelo ceacutetico do conteuacutedo para a forma do que seraacute examinado agrave discussatildeo no iniacutecio da Enciclopeacutedia precisamente no sect3 acerca da necessidade de se passar para o plano dos pensamentos puros quando se pretende pensar filosoficamente Nesse sentido eacute interessante o comentaacuterio hegeliano acerca da dificuldade da consciecircncia ordinaacuteria compreender o ponto de vista da filosofia Dessa ldquofalta de costume de pensar abstratamenterdquo deriva a acusaccedilatildeo de ininteligibilidade (Unverstaumlndlichkeit) da filosofia (cf GW 20 p42 trad cit p 42) O pensar que natildeo consegue se libertar de suas representaccedilotildees sentimentos intuiccedilotildees tem dificuldade em se elevar ao plano de uma discussatildeo na qual lhe sejam retirados os conteuacutedos familiares a que estaacute acostumado a lidar O que o ceacutetico faz eacute passar desse plano mais terra-a-terra da consciecircncia ordinaacuteria e como quer Hegel transpor-se para o plano dos pensamentos puros ldquoEm qualquer proposiccedilatildeo de conteuacutedo inteiramente sensiacutevel como lsquoessa folha eacute verdersquo jaacute estatildeo inseridas categorias ser singularidaderdquo (GW 20 p 42 trad p 42) Quando se faz essa passagem para esse plano mais abstrato o exame se aprofunda As proacuteprias coordenadas que regulam a constituiccedilatildeo de nosso pensamento acerca das coisas satildeo postas em questatildeo Por isso a consciecircncia ordinaacuteria diraacute Hegel se sente aturdida pois perde seu ponto fixo e domiciacutelio ldquoQuando se encontra deslocada para a regiatildeo pura dos conceitos natildeo sabe onde estaacute no mundordquo (Cf GW 20 p 43 trad p 43) A ldquoresoluccedilatildeo de querer pensar puramenterdquo (rein denken zu wollen) cumpre essa exigecircncia ceacutetica de submeter tudo a exame o que envolve a ldquoausecircncia de pressuposiccedilatildeo a respeito de tudordquo (Cf GW 20 E sect 78 p 118 trad p 156)
92
proacutepria atitude filosoacutefica ndash nada pressupor natildeo considera nada como dado isto eacute daquilo que
eacute afirmado dogmaticamente nenhum dos elementos componentes dessa afirmaccedilatildeo ficaria
excluiacutedo da investigaccedilatildeo
Talvez pudeacutessemos compreender a partir do que se disse agora a declaraccedilatildeo de Hegel
referente aos ceacuteticos natildeo estarem preocupados em disputar se a coisa eacute deste ou daquele
modo mas que eles se preocupam antes se a coisa eacute mesmo algo197
O exemplo extraiacutedo das Hipotiposes198 que Hegel nos daacute a esse respeito eacute o seguinte
na discussatildeo acerca das propriedades que porventura Deus possua eacute preciso primeiro que
saibamos se ele tem realidade (Realitaumlt)199 Antes de conceber quais propriedades Deus
possui primeiro se faz necessaacuterio saber se Deus mesmo eacute algo ldquonatildeo fornecer a coisa se a
coisa eacute assim ou assado mas antes se coisa mesma eacute algordquo200 A postura filosoacutefica ceacutetica
implica essa mudanccedila de atitude perante o discurso filosoacutefico ou natildeo Antes de empregar a
linguagem ldquodoacutexicardquo eacute preciso examinar se as ldquoessecircnciasrdquo que essa linguagem nos fornece satildeo
algo de soacutelido e estaacutevel Via de regra o pensamento dogmaacutetico natildeo se questiona a respeito do
que diz Eacute como se desde sempre os conceitos dos quais se vale tivessem os significados que
num determinado contexto prevaleceram O ceacutetico recua ante esse emprego ingecircnuo das
palavras e examina se as ldquoessecircnciasrdquo que nelas habitam satildeo efetivamente ldquoessecircnciasrdquo estaacuteveis
Nesse exame da ldquoessecircncia do expressordquo para falar em linguagem hegeliana se atinge o
caraacuteter limitado e instaacutevel dessas ldquoessecircnciasrdquo E ao se atingir a limitaccedilatildeo das mesmas
descobre-se tambeacutem que como veremos natildeo podem ser visadas apenas na sua
unilateralidade Em suma para que possamos pretender aceitar determinada posiccedilatildeo
dogmaacutetica filosoacutefica ou natildeo eacute necessaacuterio que nada deixe de ser investigado Eacute por essa
amplitude e falta de restriccedilotildees embutidas na investigaccedilatildeo ceacutetica que Hegel se referiu agrave forccedila
da consciecircncia ceacutetica em fazer seu objeto tudo que eacute existente inclusive a si mesma e sua
proacutepria operaccedilatildeo
197 Cf Ibidem p 396 trad cit p 800
198 Cf HP III 4
199 Nas Hipotiposes III 4 no trecho que certamente Hegel tem em mente trata-se de saber o que eacute a essecircncia (οὐσίαν) de Deus antes de se aprender e conceber suas propriedades
200 (ldquonicht die Sache zu geben ob die Sache so oder so ist sondern ob die Sache selbst etwas istrdquo) Ibidem p 396 trad cit p 800
93
No que respeita propriamente ao seu exame Hegel vislumbra jaacute no ceticismo antigo
um procedimento operatoacuterio caracteriacutestico do pensamento especulativo201 Eacute o que ele nos
diraacute logo apoacutes ter feito a exposiccedilatildeo da anaacutelise de Sexto Empiacuterico sobre as noccedilotildees geomeacutetricas
Natildeo apenas com relaccedilatildeo agraves noccedilotildees geomeacutetricas mas tambeacutem em todas as
determinaccedilotildees das ciecircncias o ceacutetico apresenta a determinidade delas ao indicar nas mesmas o
seu outro202 No caso especiacutefico das determinaccedilotildees da geometria Sexto prossegue Hegel
critica a matemaacutetica por nela se dizer que haacute um ponto um espaccedilo uma linha uma superfiacutecie
uma unidade e assim por diante Com efeito o que para Hegel se encontra na criacutetica ceacutetica agraves
determinaccedilotildees matemaacuteticas eacute o fato dessas determinaccedilotildees padecerem de unilateralidade quer
dizer que nelas natildeo se consideram as determinaccedilotildees agraves mesmas opostas e unidas
Hegel cita um exemplo dessa criacutetica agrave matemaacutetica a saber o exemplo do
relacionamento dialeacutetico entre o ponto e o espaccedilo
ldquoO ponto eacute um espaccedilo e eacute um simples no espaccedilo ele natildeo tem nenhuma dimensatildeo
(mas se) ele natildeo tem nenhuma dimensatildeo entatildeo ele natildeo estaacute no espaccedilo Na medida em que o
um eacute espacial noacutes o denominamos um ponto mas se isso deve ter um sentido ele precisa ser
espacial e enquanto espacial ter uma dimensatildeo ndash mas entatildeo natildeo eacute mais um ponto O ponto eacute a
negaccedilatildeo do espaccedilo na medida em que eacute o seu limite e como tal ele toca o espaccedilo essa
negaccedilatildeo participa portanto do espaccedilo ela proacutepria eacute espacial eacute assim um nulo (Nichtiges) em
si mas com isso eacute tambeacutem um dialeacutetico em sirdquo203
Como acabamos de observar nessa dialeacutetica do ponto e do espaccedilo o ponto somente se
determina como ponto na medida em que estaacute intrinsecamente relacionado ao outro elemento
201 ldquoO ceticismo tratou portanto tambeacutem propriamente de ideacuteias especulativas e apontou a importacircncia delasrdquo (ldquoDer Skeptizismus hat also auch eigentlich spekulative Ideen behandelt und ihre Wichtigkeit aufgezeigtrdquo) Cf Ibidem p 396 trad cit p 802
202 Cf Ibidem p 396 trad cit p 802
203 Ibidem p 396 trad cit p 802 (ldquoPunkt ist ein Raum und ein Einfaches im Raum er hat keine Dimension hat er keine Dimension so ist er nicht im Raume Insofern das Eins raumlumlich ist nennen wir es einen Punkt wenn dies aber einen Sinn haben soll so muszlig es raumlumlich sein und als Raumlumliches Dimension haben ndash so ist es aber kein Punkt mehr Er ist die Negation des Raums insofern er die Grenze des Raums ist als solche beruumlhrt er den Raum diese Negation hat also einen Anteil an dem Raum ist selbst raumlumlich ndash ist so ein Nichtiges in sich ist aber damit auch ein Dialektisches in sichrdquo)
94
que nega o espaccedilo mas sem o qual o ponto natildeo se constitui como ponto O limite do ponto eacute
o espaccedilo e o limite do espaccedilo eacute o ponto Um somente eacute o que eacute na medida em que o outro natildeo
eacute todavia esse relacionamento dos opostos eacute o que permite que ambos sejam ponto e espaccedilo
A limitaccedilatildeo de um pelo outro eacute a condiccedilatildeo para que cada um se determine ou como ponto ou
como espaccedilo Para o pensamento finito de entendimento o ponto eacute um simples no espaccedilo que
natildeo possui dimensatildeo Ora o ceacutetico mostra que natildeo eacute possiacutevel pensar o ponto desvinculado da
dimensatildeo Como estar no espaccedilo e natildeo ter dimensatildeo Aqui temos o ldquolimiterdquo do entendimento
natildeo eacute capaz de conceber que o ponto seja no espaccedilo e dependa da dimensatildeo espacial para se
determinar como ponto Para o entendimento essa convivecircncia muacutetua de ponto e espaccedilo eacute
uma contradiccedilatildeo e por ser uma contradiccedilatildeo natildeo eacute nada O que o ceacutetico faz eacute mostrar que
ponto e espaccedilo efetivamente contradizem um ao outro entretanto essa contradiccedilatildeo entre
ambos os elementos eacute o que permite aos olhos do pensamento especulativo que sejam como
jaacute dissemos ponto e espaccedilo Cremos que a partir dessas consideraccedilotildees possamos compreender
porque Hegel se refira ao fato do ceticismo ter tratado de ideacuteias especulativas204 Esse na
liacutengua hegeliana indicar da contradiccedilatildeo no finito aqui especificamente pelo exemplo do
ponto e do espaccedilo eacute segundo o filoacutesofo ldquoum ponto essencial do meacutetodo filosoacutefico
especulativordquo205
Mas o ceacutetico natildeo se restringe como gostaria Hegel a combater apenas o finito Ele
natildeo reconhece que o especulativo seja um domiacutenio a salvo de suas investidas Se o ponto e o
204 Em Ordem do tempo Paulo Eduardo Arantes ao refazer todos os passos da argumentaccedilatildeo hegeliana a respeito da passagem especulativa do espaccedilo ao tempo explicita a articulaccedilatildeo dialeacutetica presente nessa passagem entre ponto e espaccedilo ldquoGraccedilas agrave ideacuteia de limite ndash primeira negaccedilatildeo ou negaccedilatildeo simples ndash eacute a armaccedilatildeo dialeacutetica inteira que estaacute montada na exposiccedilatildeo do conceito de espaccedilo O ponto eacute a negaccedilatildeo do espaccedilo uma vez que este se mostra inicialmente como o ser-fora-de-si indiferenciado ou imediato Certo natildeo haacute como falar de pontos espaciais como constituindo o elemento positivo do espaccedilo (agregado obtido por soma de pontos) A continuidade abstrata do espaccedilo eacute apenas a possibilidade mas natildeo o estar-posto do ser-um-fora-do-outro e do negativo Vale dizer que a desarticulaccedilatildeo do contiacutenuo pela limitaccedilatildeo equivale a uma posiccedilatildeo do negativo por isso lsquoo ponto o ser-para-si eacute antes a negaccedilatildeo do espaccedilo e essa negaccedilatildeo posta nelersquo (ibid sect 254 p 207 trad p 245) Vale dizer tambeacutem que a negatividade de que o ponto eacute portador eacute da ordem da negaccedilatildeo determinada Em suma o ponto eacute a negaccedilatildeo do espaccedilo portanto essa negaccedilatildeo mesma eacute espacial e a linha que natildeo eacute mais que o ponto suprimido eacute assim o ser espacial do ponto (cf ibid sect 256)rdquo In Arantes P E A ordem do tempo Satildeo Paulo Ed Polis 1981 p 37
205 Ibidem p 396 trad 802 (ldquoein wesentlicher Punkt der spekulativ philosophischen Methoderdquo) Nesse sentido podemos compreender que o conceito absoluto seja uma arma da qual se vale o ceacutetico ldquoContra o conceito como conceito conceito absoluto nada pode o ceticismo o conceito absoluto eacute antes sua arma apenas que ele natildeo tem nenhuma consciecircncia a respeito dissordquo (ldquoGegen den Begriff als Begriff absoluten Begriff geht der Skeptizismus nicht der absolute Begriff ist vielmehr seine Waffe nur daszlig er kein Bewuszligtsein daruumlber hatrdquo) In Ibidem p 372 trad cit p 776
95
espaccedilo se contradizem natildeo haacute conciliaccedilatildeo possiacutevel A incapacidade de decidir soacute o leva agrave
suspensatildeo do juiacutezo Da contradiccedilatildeo natildeo se pode esperar nada
Se o ceacutetico segundo Hegel acertadamente eacute capaz de apontar (aufzeigen) a
limitaccedilatildeo do pensar de entendimento que seu saber por natureza unilateral estaacute condenado a
ser sempre contraditado por um outro ele natildeo eacute entretanto capaz de enxergar nessa
contradiccedilatildeo a possibilidade de que haja nela um aspecto afirmativo ldquoos ceacuteticos permanecem
no resultado como perante um negativo tal coisa tem uma contradiccedilatildeo em si portanto se
dissolve (loumlst es sich auf) portanto natildeo eacuterdquo206 O termo da investigaccedilatildeo ceacutetica se consuma
nessa aporia Mas o negativo a que se chega ldquoeacute novamente uma determinidade unilateral em
face do positivo isto significa que o ceticismo se comporta somente como entendimentordquo207
O que Hegel pretende com essa criacutetica eacute mostrar que o ceacutetico por mais que se
empenhe em efetuar sua investigaccedilatildeo da maneira a mais abrangente mesmo ele natildeo se daacute
conta de que assume certos pressupostos tambeacutem passiacuteveis de exame Aqui especificamente
falta a ele atentar para o fato de que o negativo a que chega eacute tatildeo limitado quanto o positivo
que aboliu que a negaccedilatildeo comporta um lado afirmativo208 que o nada que adveacutem da
contradiccedilatildeo natildeo eacute um puro nada
ldquoEssa dialeacutetica permanece assim simplesmente no lado negativo do resultado e abstrai
daquilo que ao mesmo tempo estaacute aiacute-presente um resultado determinado aqui um puro nada
mas um nada que em si inclui o ser e igualmente um ser que nele inclui o nadardquo209
206 (ldquo[] die Skeptiker bei dem Resultat als einem Negativen stehenbleiben dies und dies hat einen Widerspruch in sich also loumlst es sich auf also ist es nichtrdquo) Werke 19 p 360 trad cit p 761
207 (ldquo [hellip]ist wieder eine einseitige Bestimmtheit gegen das Positive dh der Skeptizismus verhaumllt sich nur als
Verstand rdquo) Ibidem p 360 trad cit p 761
208 Ibidem p 360 trad cit p 761
209 GW 20 E sect89 p 129 trad cit p 185 No original ldquoDiese Dialektik bleib so blos bei der Negativen Seite des Resultates stehen und abstrahirt von dem was zugleich wirklich vorhanden ist ein bestimmtes Resultat hier ein reines Nichts aber Nichts welches das Seyn und eben so ein Seyn welches das Nichts in sich schlieszligtrdquo
96
O pressuposto natildeo assumido pelo ceacutetico eacute portanto que o nada eacute uma determinaccedilatildeo
unilateral que se relaciona apenas exteriormente ao ser Com efeito vemos nos paraacutegrafos
iniciais da Doutrina do Ser na Enciclopeacutedia que o ser e o nada estatildeo unidos que eles se
determinam mutuamente210 Sem pretender adentrar na anaacutelise desses paraacutegrafos da
Enciclopeacutedia importa agora reparar que o ponto de vista do ceacutetico tambeacutem eacute passiacutevel de
criacutetica que por mais que ele deseje o contraacuterio aos olhos de Hegel natildeo conseguiu ele se
desvencilhar do horizonte do dogmatismo211 Seu exame natildeo fora tatildeo radical quanto ele o
quereria212 O ceacutetico natildeo deixa por conseguinte de ser tributaacuterio da ontologia que critica
Mas mesmo que natildeo vaacute aleacutem da contradiccedilatildeo soacute por chegar ateacute ela o ceticismo aos olhos de
Hegel honra a filosofia especulativa Natildeo eacute por outro motivo que Hegel considera o ceticismo
como parte da filosofia positiva que esta tem incorporado a ela o negativo do ceticismo como
seu momento Eacute claro deve ser ressalvado que o negativo devidamente tingido pela filosofia
especulativa ldquoA filosofia positiva [] ela tem o negativo do ceticismo nela mesma ele natildeo eacute
contraposto a ela natildeo eacute fora dela mas antes eacute um momento da mesma poreacutem o negativo em
sua verdade tal como o ceticismo natildeo o temrdquo213
Fica bastante expliacutecito por meio dessas Liccedilotildees de Hegel eacute o que natildeo podemos deixar
de notar a enorme influecircncia exercida pela filosofia ceacutetica na especulaccedilatildeo hegeliana
Na filosofia isto eacute na filosofia especulativa que por sua vez estaacute para aleacutem da
alternativa ou dogmatismo ou ceticismo ndash afinal a especulaccedilatildeo para Hegel conteacutem em si
210 Cf E sect86 e ss
211 Uma espeacutecie de criacutetica que diga-se de passagem mesmo que recebesse aceitaccedilatildeo unacircnime ainda assim natildeo faria com que ele se desse por vencido Provavelmente seria a seguinte sua resposta ldquo[] quando algueacutem nos propotildee um argumento que natildeo podemos refutar dizemos-lhe que assim como antes de surgir o introdutor da doutrina de que ele participa o argumento dela natildeo aparecia ainda como vaacutelido embora jaacute existisse por natureza assim tambeacutem eacute possiacutevel que o argumento oposto agravequele agora proposto exista por natureza mas ainda natildeo nos apareccedila de modo que natildeo devemos ainda dar assentimento ao argumento que agora parece ser mais forterdquo In HP I 33-34
212 Nesse sentido diz Geacuterard Lebrun ldquoBasta mostrar que seu uacutenico erro foi natildeo o de ir tatildeo longe que fosse impossiacutevel acreditar em sua sinceridade mas de natildeo ter ido longe o bastanterdquo In A paciecircncia do conceito Satildeo Paulo Unesp 2000 p 243
213 (ldquoDie positive Philosophie [] sie hat das Negative des Skeptizismus in ihr selbst er ist nicht ihr entgegengesetzt nicht auszliger ihr sondern ein Moment derselben aber das Negative in seiner Wahrheit wie es der Skeptizismus nicht hatrdquo) Werke 19 p 359 trad cit p 760 Tambeacutem a esse respeito ldquoContudo essa (a ideacuteia especulativa) tem o ceticismo nela como seu momento e vai ainda para aleacutem delerdquo No original ldquoAllein diese hat den Skeptizismus selbst als Moment in ihr und ist wieder uumlber ihn hinausrdquo Ibidem p 372 trad cit p 776
97
mesma a oposiccedilatildeo do determinado e de seu contraposto214 ndash encontra-se poderiacuteamos dizer
um lado ceacutetico presente Esse ceticismo presente na filosofia especulativa Hegel o chama de
dialeacutetica de todo determinado215 Por meio dessa dialeacutetica podemos indicar que o finito dada
sua limitaccedilatildeo comporta uma negaccedilatildeo ou seja eacute determinado por um outro que o nega o que
por consequumlecircncia envolve uma contradiccedilatildeo Quando Hegel declara ldquoO conceito loacutegico eacute
igualmente essa dialeacutetica pois o conhecimento verdadeiro da ideacuteia eacute essa negatividade que
no ceticismo do mesmo modo estaacute na sua terra natalrdquo 216 torna-se patente a importacircncia
dessa incorporaccedilatildeo de um procedimento ceacutetico agrave filosofia especulativa Mesmo que seja
necessaacuterio obviamente natildeo deixar de lado o que haacute de especiacutefico nessa incorporaccedilatildeo do
ceticismo agrave filosofia especulativa se faz necessaacuterio sublinhar que eacute ele o ceticismo que
transfigurado constitui esse lado negativo da especulaccedilatildeo hegeliana217 Natildeo haveria portanto
diferenccedila de intenccedilatildeo entre o ceticismo pensante e o ceticismo antigo na medida em que
ambos se empenham como quer Hegel no combate ao pensamento finito do entendimento
Todavia o ceticismo puro218 natildeo distingue entre um domiacutenio no qual se daria a finitude e um
outro que estivesse para aleacutem dela Para esse ceticismo fazer uma tal espeacutecie de demarcaccedilatildeo
jaacute pressuporia algum criteacuterio Em outras palavras estariacuteamos partindo de alguma verdade que
nos permitisse investigar dentro de certos paracircmetros Estariacuteamos portanto em territoacuterio
dogmaacutetico O ceacutetico ao natildeo demarcar o terreno da finitude estaacute apenas sendo coerente com
as coordenadas que balizam sua proacutepria postura E Hegel sabe disso Mas em virtude dessa
sua natildeo-distinccedilatildeo entre o domiacutenio do entendimento e o domiacutenio do racional o ceticismo
214 Cf Werke 19 p 397 trad pp 802-803
215 Cf Ibidem p 359 trad cit p 760
216 (ldquoDer logische Begriff ist ebenso selbst diese Dialektik denn die wahrhafte Kenntnis der Idee ist diese Negativitaumlt die im Skeptizismus ebenso einheimisch istrdquo) Ibidem p 360 trad cit pp 760-761
217 No iniacutecio de suas Liccedilotildees sobre o ceticismo Hegel se refere ao ceticismo que faz parte da filosofia especulativa como ceticismo pensante (denkende Skeptizismus) Um ceticismo que natildeo terminaraacute numa negaccedilatildeo unilateral isto eacute um negativo que natildeo desaacutegua nos termos da Fenomenologia do Espiacuterito num puro nada Na Fenomenologia Hegel se refere a esse ceticismo que impulsiona o percurso fenomenoloacutegico como ceticismo que se consuma (sich vollbringenden Skeptizismus) Com efeito dentro do contexto das anaacutelises precedentes tambeacutem poderiacuteamos considerar esse ceticismo pensante agrave luz dessa denominaccedilatildeo feita na Fenomenologia do Espiacuterito O ceticismo que faz parte da filosofia especulativa natildeo peca por insuficiecircncia pois seu exame traz um resultado que a partir do mesmo a investigaccedilatildeo continua Seu caraacuteter consumado eacute o que permite dar impulso ao processo
218 Denominaccedilatildeo que Hegel fornece na Fenomenologia ao ceticismo natildeo incorporado ao pensamento especulativo E cremos certamente que ele esteja aiacute se referindo ao ceticismo antigo
98
como jaacute observamos anteriormente tambeacutem critica a especulaccedilatildeo filosoacutefica todavia nessa
sua criacutetica contra o especulativo ele eacute impotente (unkraumlftig)219
Segundo Hegel os ataques do ceacutetico ao especulativo satildeo ineficazes porque neste
domiacutenio natildeo lidamos com determinaccedilotildees finitas como ocorre no caso do entendimento O
que isso significa Significa que o ceacutetico natildeo poderaacute mostrar que a um posto um outro se
contrapotildee ldquono que concerne agrave ideacuteia especulativa natildeo eacute esta precisamente um determinado
natildeo tem a unilateralidade que existe na proposiccedilatildeo natildeo eacute finita ela tem antes o absolutamente
negativo (das absolut Negativ) nela mesma tem a oposiccedilatildeo dentro dela mesma ela eacute em si
mesma circular conteacutem nela esse determinado e seu contraposto essa idealidade dentro dela
mesmardquo220
Como acabamos de ver a proacutepria ideacuteia especulativa daacute conta daquilo que seria tarefa
do ceacutetico mostrar o argumento contraposto agravequele que se punha isoladamente na sua
unilateralidade Ela abarca nela mesma o determinado e aquele outro determinado que o nega
Eacute por esse motivo que a ideacuteia especulativa natildeo pode ser atacada pelo ceticismo Aquilo que
por ela eacute afirmado natildeo se faz do mesmo modo que numa proposiccedilatildeo221 Jaacute foi notado neste
estudo222 que a proposiccedilatildeo por sua proacutepria estrutura natildeo admite a contradiccedilatildeo ou se diz que
algo eacute ou que ele natildeo eacute nunca as duas coisas A ideacuteia especulativa natildeo tem a unilateralidade
que existe na proposiccedilatildeo porque nela satildeo admitidas ambas as determinaccedilotildees que se
contradizem O princiacutepio de contradiccedilatildeo natildeo possui aqui validade
A contradiccedilatildeo existente na ideacuteia especulativa resolve-se numa nova unidade que da
mesma maneira ldquoestaacute aberta agrave potecircncia do negativordquo223 Isto quer dizer que estaacute sujeita a ser
219 Cf Werke 19 p 397 trad cit p 802
220 Cf Ibidem p 397 trad cit pp 802-803 (ldquoDenn was die spekulative Idee selbst anbetrifft so ist diese eben nicht ein Bestimmtes hat nicht die Einseitigkeit welche im Satze liegt ist nicht endlich sondern sie hat das absolut Negative an ihr selbst den Gegensatz in ihr selbst sie ist in sich rund enthaumllt dies Bestimmte und sein Entgegengesetztes an ihr diese Idealitaumlt in ihr selbst rdquo
221 ldquoMas a filosofia a filosofia especulativa afirma sem duacutevida mas natildeo um determinado ela natildeo expressa sua verdade na forma de uma proposiccedilatildeo ela natildeo tem proposiccedilatildeo fundamentalrdquo (ldquoAber die Philosophie spekulative Philosophie behauptet wohl aber nicht so ein Bestimmtes oder sie spricht ihr Wahres nicht in der Form eines Satzes aus sie hat keinen Grundsatzrdquo) Cf Ibidem p 393 trad cit p 798
222 Veja-se o cap 2 e tambeacutem o que se diraacute no cap 4
223 Werke 19 p 397 trad cit p 803 (ldquo [hellip] steht sie der Macht des Negativen offenrdquo)
99
contraposta por uma nova determinaccedilatildeo agrave qual se uniraacute e assim indefinidamente224 A
natureza dialeacutetica da ideacuteia implica essa continuaccedilatildeo do movimento225
A partir do que foi exposto vemos por que Hegel julga que o ceticismo seja impotente
(unkraumlftig) quando pretende atacar a filosofia especulativa Esta procura se defender do
ceticismo adotando seu modo de proceder Aleacutem disso mesmo que considere correta a atitude
filosoacutefica ceacutetica natildeo deixa entretanto de assinalar a limitaccedilatildeo de seu alcance o que faz
assim que o ceticismo stricto sensu fique restrito a atuar apenas no acircmbito do entendimento
224 ldquoNo especulativo o outro jaacute estaacute contido Eacute uma outra identidade que aquela do entendimento O objeto eacute em si concreto contraposto a si mesmo Estaacute poreacutem do mesmo modo aiacute-presente a resoluccedilatildeo dessa oposiccedilatildeo O especulativo natildeo pode ser expresso como proposiccedilatildeordquo No original ldquoIm Spekulativen ist das Andere schon selbst enthalten Das ist andere Identitaumlt als die des Verstandes Der Gegenstand ist konkret in sich sich selbst entgegengestzt Ebenso ist aber Aufloumlsung dieses Gegensatzes selbst vorhanden Das Spekulative kann so nicht als Satz ausgedruumlckt werdenrdquo Ibidem p 397 trad cit p 803 Ver ainda a propoacutesito o capiacutetulo 5
225 Cf Ibidem p 397 trad cit p 803 Ver tambeacutem Ibidem p 360 trad cit p 761
101
II ndash A dialeacutetica especulativa de Hegel
Capiacutetulo 1 ndash As determinaccedilotildees de reflexatildeo da identidade agrave contradiccedilatildeo especulativa
Natildeo eacute muito bom para a filosofia
ter uma proposiccedilatildeo e entatildeo
apenas poder dizer isto eacute ou isto
natildeo eacute
Hegel226
Eacute na Loacutegica da Essecircncia227 especificamente no capiacutetulo que trata das determinaccedilotildees
de reflexatildeo que podemos comeccedilar a compreender como a criacutetica hegeliana ao aspecto
limitado do ceticismo pode ser efetuada a partir da Loacutegica o motivo da suposta falta de
eficaacutecia do ceticismo quando pretende atacar a filosofia especulativa Neste capiacutetulo que
comeccedila com a anaacutelise da determinaccedilatildeo da identidade e termina na exposiccedilatildeo da sua
concepccedilatildeo de contradiccedilatildeo que se resolve no fundamento nos satildeo fornecidos elementos
importantes e necessaacuterios tanto para a jaacute mencionada criacutetica do ceticismo quanto para o
entendimento de seu meacutetodo dialeacutetico-especulativo228 que permite segundo ele agrave filosofia
natildeo ficar refeacutem da criacutetica ceacutetica229
226
Aforisma no 68 da eacutepoca de docecircncia em Iena In Hoffmeister J Dokumente zu Hegels Entwicklung Stuttgart Frommann-Holzboog 1974
227 GW 11 pp258-290
228 A ser tratado no capiacutetulo 5
229 Para uma anaacutelise precisa das determinaccedilotildees de reflexatildeo veja-se tambeacutem o estudo de Andreas Arndt Dialektik und Reflexion zur Rekonstruktion des Vernunftbegriffs Hamburg Meiner 1994 pp 203-216
102
A identidade
Hegel comeccedila a tratar da unilateralidade da identidade que eacute caracteriacutestica do
entendimento ao considerar as determinaccedilotildees reflexivas num percurso que teraacute o seu teacutermino
quando expotildee o significado da contradiccedilatildeo especulativa
Segundo Hegel as determinaccedilotildees de reflexatildeo eram antigamente acolhidas na forma de
proposiccedilotildees (Saumltzen) e declarava-se que as mesmas valiam como leis universais do
pensamento isto eacute leis que estariam na base de todo pensamento nelas mesmas absolutas e
indemonstraacuteveis aceitas por todo pensamento como imediatas e natildeo-contraditoacuterias (GW 11
p 258 trad pp 33-34) O princiacutepio de identidade eacute uma das dessas proposiccedilotildees que valem
como leis universais do pensamento Tudo eacute igual a si mesmo A=A E dito de forma
negativa A natildeo pode ao mesmo tempo ser A e natildeo-A230
Com efeito natildeo se deve desconsiderar prossegue Hegel qual seria o motivo pelo qual
apenas tais simples determinaccedilotildees de reflexatildeo sejam apreendidas nessa forma particular isto
eacute como proposiccedilotildees imediatas indemonstraacuteveis e natildeo-contraditoacuterias e natildeo tambeacutem outras
categorias e todas as determinidades da esfera do ser231 Uma proposiccedilatildeo eacute o meio pelo qual
se pode dizer por exemplo que tudo eacute ou tudo tem um ser-aiacute tem uma qualidade tem uma
quantidade etc232 Ocorre que eacute disso que Hegel parece querer nos advertir categorias e
determinidades satildeo componentes de proposiccedilotildees e nas quais figuram como predicados
(Praumldicate) E para ressaltar essa vinculaccedilatildeo estreita entre proposiccedilotildees e categorias Hegel
chega inclusive a nos lembrar que ldquosegundo a etimologia e segundo Aristoacuteteles categoria eacute
aquilo que eacute dito do que eacute (von dem Seyenden)233
E agora antes de prosseguirmos cabe a pergunta As determinidades de ser que
fazem parte das proposiccedilotildees como predicados isto eacute como aquilo que eacute dito de algo seriam
tambeacutem assim como as proposiccedilotildees imediatas indemonstraacuteveis e natildeo-contraditoacuterias
230 GW 11 p 258 trad p 34
231 Cf Ibidem p 259 trad p 34
232 Cf Ibidem p 259 trad p 34
233 Ibidem p 259 trad p 34
103
A resposta de Hegel eacute a seguinte
Uma determinidade de ser eacute essencialmente um passar no seu oposto a
negativa de qualquer determinidade eacute tatildeo necessaacuteria como ela proacutepria como
determinidades imediatas frente a cada uma delas se encontra imediatamente a outra
Quando por conseguinte essas categorias satildeo formuladas em tais proposiccedilotildees entatildeo
aparecem do mesmo modo as proposiccedilotildees contrapostas ambas se apresentam com a
mesma necessidade e possuem como afirmaccedilotildees imediatas iguais direitos234
Como teremos oportunidade de mais detidamente a seguir observar mas que desde jaacute
Hegel faz questatildeo de frisar eacute que as determinidades de ser ou as categorias por sua proacutepria
estrutura interna natildeo podem ser afastadas da contradiccedilatildeo isto eacute mediante o pocircr das
determinidades a elas contrapostas Aleacutem disso na medida em que satildeo partes constituintes de
proposiccedilotildees tambeacutem estas natildeo podem escapar agrave posiccedilatildeo de proposiccedilotildees a elas contrapostas
Um pequeno parecircnteses aqui merece ser aberto para que natildeo se deixe de sublinhar a
influecircncia do ceticismo antigo nessa discussatildeo acerca da inevitabilidade235 da contradiccedilatildeo em
decorrecircncia de proposiccedilotildees estarem submetidas ao princiacutepio de identidade Assim Hegel
apenas nos faz ver que natildeo haacute como escapar da criacutetica ceacutetica quando lidamos com tais
proposiccedilotildees Dessa maneira natildeo haacute como escapar do ataque ceacutetico mediante o uso que este
pode fazer de seu ldquoprinciacutepio baacutesicordquo a saber opor a cada proposiccedilatildeo uma proposiccedilatildeo de igual
valor236 Eacute por essa limitaccedilatildeo constitutiva dessas proposiccedilotildees regidas pelo princiacutepio de
identidade que o ceacutetico conclui Hegel eacute capaz de produzir antinomias
234 Ibidem p259 trad p 34 (ldquoAllein eine Bestimmtheit des Seyns ist wesentlich ein Uebergehen ins Entgegengesetzte die negative einer jeden Bestimmtheit ist so nothwendig als sie selbst als unmittelbaren Bestimmtheiten steht jeder die andere unmittelbar gegenuumlber Wenn diese Kategorien daher in solche Saumltze gefaszligt werden so kommen eben so sehr die entgegengesetzten Saumltze zum Vorschein beyde bieten sich mit gleicher Nothwendigkeit dar und haben als unmittelbare Behauptungen wenigstens gleiches Rechtrdquo)
235 A propoacutesito o ceacutetico natildeo diria que a contradiccedilatildeo eacute inevitaacutevel Isto seria ir contra sua proacutepria postura filosoacutefica A esse respeito veja-se de modo geral o capiacutetulo 1
236 Cf HP I 12
104
Tomadas apenas como relacionadas a si as determinaccedilotildees reflexivas uma vez de
acordo com o princiacutepio de identidade natildeo tecircm postas perante as mesmas as suas contrapostas
que por direito a elas se relacionam
Se fossem consideradas em si e para si ver-se-ia entatildeo que as determinaccedilotildees
reflexivas ldquosatildeo determinadas umas contra as outras natildeo estatildeo portanto mediante sua forma de
reflexatildeo retiradas do passar e da contradiccedilatildeordquo237 Toda proposiccedilatildeo estaacute sujeita a ser
contraditada por uma outra de modo que ambas se suprimam mutuamente (heben sich
gegenseitig auf)238
Mas por que eacute possiacutevel que toda proposiccedilatildeo estabelecida de acordo com o princiacutepio de
identidade possa ser contraditada por uma outra Qual o mecanismo impliacutecito a reger tais
proposiccedilotildees e que leva as mesmas inelutavelmente agrave contradiccedilatildeo
A resposta de Hegel a essas questotildees pode comeccedilar a ser entrevista a partir de um
exame da proacutepria articulaccedilatildeo do princiacutepio de identidade isto eacute daquilo que constitui esse
princiacutepio enquanto tal
Fundamentalmente Hegel quer mostrar que a admissatildeo do princiacutepio de identidade
implica afirmar que aquilo que eacute diferente estaacute fora e ao lado da identidade (GW 11 p 261
trad p 37) Aquilo que eacute igual a si mesmo de acordo com esse princiacutepio tem necessariamente
a diferenccedila fora dele afinal A natildeo pode ser ao mesmo tempo A e natildeo-A Numa proposiccedilatildeo eacute
expressa a identidade e na outra a diferenccedila Hegel chama de negar relativo essa negaccedilatildeo que
agravequilo posto pela identidade abstrata potildee-se ao seu lado e fora dela como aquilo que ela natildeo
eacute239 De um lado temos portanto a identidade e de outro lado temos a diferenccedila Algo eacute
aquilo que eacute sem que para isso seja necessaacuterio que ele esteja em relaccedilatildeo com aquilo que ele
nega a sua diferenccedila Considerar as coisas desse modo eacute proacuteprio assinala Hegel de uma
reflexatildeo extriacutenseca A diferenccedila que aiacute existe entre algo e aquilo que natildeo eacute esse algo eacute apenas
uma diversidade indiferente (gleichguumlltige Verschiedenheit)240
237 Ibidem p260 trad p 35 (ldquosind sie bestimmt gegen einander sie sind also durch ihre Form der Reflexion dem Uebergehen und dem Widerspruche nicht entnommenrdquo)
238 Ibidem p 260 trad p 36
239 Cf Ibidem p 260 trad p 36
240 Cf Ibidem p 261 trad pp 37-38
105
Segundo Hegel aqueles que se submetem ao princiacutepio de identidade natildeo se datildeo conta
que de acordo com o mesmo a identidade e a diferenccedila satildeo diversos ldquoque a identidade eacute um
diversordquo (GW 11 p 262 trad p 39) A identidade eacute assim distinta com relaccedilatildeo ao diverso
dela mesma e que todavia natildeo eacute exterior a ela ldquoque a identidade nela mesma em sua
natureza eacute isso ser distinta e natildeo de modo exteriorrdquo241
A identidade somente vai se constituir efetivamente como identidade caso se abandone
o ponto de vista unilateral e incompleto que parte do pressuposto de que a identidade exclui
de si o natildeo-idecircntico Eacute esse o ponto de vista que uma vez aceito viabiliza a criacutetica ceacutetica
Poderiacuteamos dizer que o ceacutetico aproveitando-se dessa limitaccedilatildeo do pensar de entendimento
que aceita o princiacutepio de identidade como lei de pensamento acaba por conseguir sempre
mostrar o natildeo-idecircntico a diferenccedila que se contrapotildee ao idecircntico E dentro desse quadro vale
insistir a contradiccedilatildeo eacute sempre um mal a ser evitado Todavia a identidade que natildeo eacute abstrata
estaacute unida com a diferenccedila Ela se sustenta como identidade ao ter nela mesma aquilo que a
contradiz
Mas antes de tentar responder agraves questotildees que acima foram postas talvez seja
interessante continuar a examinar o princiacutepio de identidade e tentar compreender porque ele
natildeo passa aos olhos de Hegel de uma tautologia vazia sem conteuacutedo e que natildeo leva a lugar
nenhum (GW 11 p 262 trad p 39)
Se pensarmos242 diz Hegel na pergunta O que eacute uma planta E se responde uma
planta eacute -- uma planta todos admitem a verdade de tal proposiccedilatildeo e ao mesmo tempo de
maneira tambeacutem unacircnime eacute dito que com isso nada eacute dito A mesma situaccedilatildeo poderia ocorrer
com algueacutem que pretende declarar o que eacute Deus e apenas diz que Deus eacute ndash Deus Com essa
declaraccedilatildeo temos nossa expectativa frustrada pois esperaacutevamos uma determinaccedilatildeo diferente
ou em outras palavras uma declaraccedilatildeo que pudesse efetivamente nos informar a respeito do
que seja Deus E se essa proposiccedilatildeo eacute verdade absoluta continua Hegel eacute pouco apreciado
essa espeacutecie de palavroacuterio (Rednerei) afinal nada mais aborrecido e maccedilante do que uma
conversa que segue ruminando sempre a mesma coisa Espera-se que se diga algo a respeito
da planta e quando se tem como resposta somente a repeticcedilatildeo do mesmo tem-se o contraacuterio
do que era esperado a saber nada
241 Ibidem p 262 trad p 39 (ldquodaszlig die Identitaumlt nicht aumlusserlich sondern an ihr selbst in ihrer Natur diszlig sey verschieden zu seynrdquo)
106
Se tomarmos agora a forma da proposiccedilatildeo que expressa a identidade qual seja A eacute ndash
A ao se dizer que A eacute espera-se chegar a algo diferente mas esse outro entra em cena
apenas como um imediato desvanecer (als unmittelbares Verschwinden) A diferenccedila eacute apenas
um desvanecer De A se vai a A novamente ldquoo movimento retorna a si mesmordquo (GW 11 p
264 trad p 42) todavia mesmo que o diferente seja apenas vislumbrado para entatildeo em
seguida imediatamente desaparecer ele eacute algo ou nas palavras de Hegel o excedente daquele
movimento (das Mehr jener Bewegung) Esse excedente eacute o nada a que se chega quando se
sai de A e se chega novamente a A eacute o diferente que se apresenta quando se quer apenas
afirmar a identidade ldquoque na expressatildeo da identidade tambeacutem aparece imediatamente a
diferenccedilardquo243
Com a outra expressatildeo do princiacutepio de identidade o chamado princiacutepio de
contradiccedilatildeo a saber ldquoA natildeo pode ser ao mesmo tempo A e natildeo-A ocorre o mesmo que
havia ocorrido com a primeira isto eacute tambeacutem se apresenta uma negaccedilatildeo que imediatamente
se desvanece Mais precisamente A eacute A porque ele natildeo eacute natildeo-A Este eacute o puro outro de A que
aparece para em seguida desaparecer ldquoa identidade eacute portanto nessa proposiccedilatildeo expressa
como negaccedilatildeo da negaccedilatildeordquo244
Dessa discussatildeo em torno ao que se pode pretender afirmar por meio do princiacutepio de
identidade e do princiacutepio de contradiccedilatildeo o mais importante para Hegel eacute mostrar que tais
princiacutepios pecam por incompletude A verdade que eles pretendem exprimir eacute abstrata e
como jaacute foi dito incompleta Como bem adverte Hegel ldquoo que resulta dessa consideraccedilatildeo eacute
que em primeiro lugar o princiacutepio de identidade ou de contradiccedilatildeo como ele apenas deve
expressar como o verdadeiro a identidade abstrata em oposiccedilatildeo agrave diferenccedila natildeo eacute nenhuma lei
do pensamento mas antes o contraacuterio disso em segundo lugar que esses princiacutepios contecircm
242 Do que seraacute dito a seguir veja-se Ibidem pp 264-265 trad pp 41-43
243 Ibidem p 264-5 trad p 42 (ldquo[] daszlig in dem Ausdrucke der Identitaumlt auch unmittelbar die Verschiedenheit vorkommtrdquo) Ou ainda ldquoEssa proposiccedilatildeo em lugar de ser uma verdadeira lei-do-pensamento natildeo eacute outra coisa que a lei do entendimento abstrato A forma da proposiccedilatildeo jaacute a contradiz ela mesma porque uma proposiccedilatildeo tambeacutem promete uma diferenccedila entre sujeito e predicado enquanto esta natildeo fornece o que sua forma exigerdquo (ldquoDieser Satz statt ein wahres Denkgesetz zu seyn ist nichts als das Gesetz des abstracten Verstandes Die Form des Satzes widerspricht ihm schon selbst da ein Satz auch einen Unterschied zwischen Subject und Praumldicat verspricht dieser aber das nicht leistet was seine Form fodert rdquo) In GW 20 E sect115 p 147 trad p 228
244 GW 11 p 265 trad p 43 (ldquoDie Identitaumlt ist also in diesem Satze ausgedruumlckt ndash als Negation der Negationrdquo)
107
mais do que se visa com eles precisamente esse contraacuterio a proacutepria diferenccedila absolutardquo245
Esses princiacutepios por apresentarem mais do que efetivamente pretendem apresentar natildeo satildeo de
natureza meramente analiacutetica mas sim tambeacutem de natureza sinteacutetica Ao se pretender
apresentar a identidade apenas abstrata aponta-se para algo que contradiz essa suposta
identidade afastada de seu negativo e mesmo que o diferente surja como um imediato
desvanecer esse diferente natildeo pode ser afastado Como veremos a seguir a diferenccedila eacute
ldquomomento essencial da identidade mesmardquo246
A diferenccedila
Quando Hegel expotildee o que eacute a diferenccedila eacute preciso que esta seja considerada sob um
duplo ponto-de-vista como diferenccedila em si e por si e como diferenccedila em si
Hegel chama tambeacutem essa diferenccedila que eacute em si e por si de diferenccedila absoluta ou de
diferenccedila simples247 Mas o que entatildeo pretende ele quando considera a diferenccedila em si e por
si Basicamente a diferenccedila em si e por si eacute aquela que natildeo eacute por meio de algo exterior248
Esta diferenccedila natildeo se constitui como antes se fazia na esfera do ser Laacute um ser-aiacute e um outro
ser-aiacute eram postos separados um do outro Um ser-aiacute se encontrava perante o outro ser-aiacute mas
apenas exteriormente O que Hegel pretende frisar eacute que na diferenccedila em si e por si uma
diferenccedila que se daacute no acircmbito loacutegico da essecircncia portanto uma diferenccedila reflexiva os
diferentes satildeo diferentes sob um uacutenico e mesmo aspecto uma diferenccedila numa uacutenica relaccedilatildeo
O caraacuteter simples dessa diferenccedila adveacutem dessa relaccedilatildeo (Beziehung) dos diferentes ocorrer no
acircmbito de um movimento uacutenico ldquona diferenccedila absoluta de A e natildeo-A de um a outro eacute o
245 Ibidem p 265 trad p 43 (ldquoWas sich also aus dieser Betrachtung ergibt ist daszlig erstens der Satz der Identitaumlt oder des Widerspruchs wie er nur die abstracte Identitaumlt im Gegensatz gegen den Unterschied als Wahres ausdruumlcken soll kein Denkgesetz sondern vielmehr das Gegentheil davon ist zweytens daszlig diese Saumltze mehr als mit ihnen gemeynt wird nemlich dieses Gegentheil den absoluten Unterschied selbst enthaltenrdquo)
246 Ibidem p 265 trad p 43 (ldquowesentlich Moment der Identitaumlt selbstrdquo)
247 Cf GW 11 p 266-267 trad p 44-45
248 Ibidem p 266 trad p 44
108
simples natildeo que constitui a mesmardquo249 Se a diferenccedila se desse entre diferentes exteriores um
ao outro natildeo seria possiacutevel que ela fosse completa em si mesma em outras palavras absoluta
Considerar a diferenccedila apenas como em si significa tomaacute-la no seu relacionamento a
si uma diferenccedila de si por si mesma (seiner von sich selbst)250 Perante a mesma temos a
identidade Somente com a consideraccedilatildeo de ambos isto eacute na relaccedilatildeo que natildeo eacute exterior da
diferenccedila com a identidade que se constitui a diferenccedila (natildeo-unilateral) A diferenccedila apenas
relacionada a si mesma eacute um momento que exige o outro a saber a identidade para que se
possa ter o todo da diferenccedila
Nessa relaccedilatildeo da diferenccedila com a identidade tem-se portanto uma unidade de dois
momentos que natildeo obstante o fato mesmo da relaccedilatildeo de ambos cada um natildeo deixa de ser
uma relaccedilatildeo (Beziehung) a si proacuteprio ou seja continuam a ser refletidos em si mesmos Hegel
chama cada um desses momentos que constituem a diferenccedila de ser-posto (Gesetzsein) Cada
um deles em virtude do seu caraacuteter auto-reflexivo que faz com que se coloquem
distintamente como diferenccedila e identidade seraacute poder-se-ia dizer impermeaacutevel um ao outro
A diversidade
Quais as consequumlecircncias que advecircm para a constituiccedilatildeo da diferenccedila terem os dois
momentos constituintes da diferenccedila precisamente identidade e diferenccedila a caracteriacutestica de
serem refletidos em si mesmos Por que ao inveacutes de uma diferenccedila temos apenas uma
diversidade (Verschiedenheit)
Em primeiro lugar identidade e diferenccedila natildeo satildeo tatildeo distintas assim Tanto uma
quanta a outra por meio da auto-reflexatildeo de cada uma satildeo idecircnticas a si mesmas A
identidade se afirma como identidade ao suprimir imediatamente o seu negar Como jaacute foi
dito a identidade somente se manteacutem como identidade porque eacute uma tautologia A confirma
sua identidade ao se refletir em si mesmo Esse refletir-se em si mesmo e que fornece a A a
249 Ibidem p 266 trad p 44 (ldquoIm absoluten Unterschiede des A und Nicht-A von einander ist es das einfache
Nicht was als solches denselben ausmachtrdquo)
250 Ibidem p 266 trad p 44
109
identidade eacute o que Hegel chama de a sua determinaccedilatildeo (Bestimmung)251 Tambeacutem no caso do
diferente ele eacute o que eacute na identidade que estabelece consigo mesmo Eacute como se um e outro o
idecircntico e o diferente natildeo fossem nada de diferentes afinal ambos satildeo o que satildeo por meio da
identidade que cada um tem consigo mesmo e que lhes daacute independecircncia reciacuteproca
Eles satildeo diversos como refletidos em si mesmos como relacionando-se a si eles satildeo
assim na determinaccedilatildeo da identidade apenas relacionamentos a si a identidade natildeo estaacute
relacionada com a diferenccedila nem a diferenccedila estaacute relacionada com a identidade posto entatildeo
que cada um desses momentos estaacute relacionado somente a si natildeo satildeo eles determinados um
em face do outro252
Nesses termos como se pode estabelecer a diferenccedila entre eles De acordo com Hegel
apenas uma diversidade indiferente (gleichguumlltig verschiedenes) reciacuteproca Natildeo haacute ponto
algum de contato que permita-nos entrever aquilo que torna um diferente do outro ldquoa
diferenccedila lhes eacute exteriorrdquo253
Para que surja essa indiferenccedila dos diferentes o que Hegel chama de diversidade
(Verschiedenheit) a diferenccedila que de fato somente se constitui com a unidade de identidade e
diferenccedila precisa ser enxergada como apenas um dos lados da ldquooposiccedilatildeordquo A diferenccedila seraacute
apenas uma determinaccedilatildeo que teraacute perante si uma outra determinaccedilatildeo a saber a identidade
Essa determinaccedilatildeo ou ser-posto que eacute a diferenccedila constitui o lado negativo da relaccedilatildeo o que
Hegel chama de negaccedilatildeo como negaccedilatildeo254 A diferenccedila seraacute portanto exterior agrave identidade
oposta de modo indiferente a ela Da mesma maneira teremos a identidade tambeacutem oposta
de modo indiferente agrave negaccedilatildeo Se a diferenccedila eacute o ser-posto como negaccedilatildeo a identidade seraacute o
251 Ibidem p 267 trad p 45
252 Ibidem p 267 trad p 46 (ldquoVerschiedene sind sie als in sich selbst reflectirte sich auf sich beziehende so sind sie in der Bestimmung der Identitaumlt Beziehungen nur auf sich die Identitaumlt ist nicht bezogen auf den Unterschied noch ist der Unterschied bezogen auf die Identitaumlt indem so jedes dieser Momente nur auf sich bezogen ist sind sie nicht bestimmt gegen einanderrdquo)
253 Ibidem p 267 trad p 46(ldquo ist der Unterschied ihnen aumlusserlicherdquo)
254 Ibidem p 268 trad p46 Eacute uacutetil aqui alertar para que natildeo se confunda negaccedilatildeo como negaccedilatildeo com negaccedilatildeo da negaccedilatildeo A primeira se refere apenas a essa negaccedilatildeo somente relacionada a si e assim diversa da identidade Jaacute a segunda a negaccedilatildeo da negaccedilatildeo constitui-se como adiante veremos na negaccedilatildeo especulativa negaccedilatildeo que envolve em si a identidade e a diferenccedila
110
ser-posto como reflexatildeo em si isto eacute como reflexatildeo que se relaciona a si e forma a
identidade
De fato identidade e diferenccedila natildeo poderiam ser consideradas como completamente
exteriores uma agrave outra pois justamente ldquocada uma eacute unidade de si mesma e de seu outro cada
uma eacute o todordquo255 Ambas se refletem internamente uma na outra Se elas se tornam exteriores
isso se daacute devido a uma reflexatildeo que se tornou exterior a si mesma Identidade e diferenccedila natildeo
satildeo qualidades Qualidade aqui deve ser entendida conforme o que diz Hegel na Doutrina do
Ser na Enciclopeacutedia a saber que a qualidade eacute o ser com uma determinidade que como tal
constitui a categoria do ser-aiacute A qualidade eacute o ser-aiacute unido imediatamente a essa
determinidade O ser-aiacute refletido sobre si nessa sua determinidade eacute algo256 A qualidade
assim constituiacuteda faz com que o ser-aiacute seja um algo que tenha afastado de si a negaccedilatildeo Esse
ser-aiacute poderiacuteamos dizer eacute uma pura identidade Vale seguir um pouco mais com a descriccedilatildeo
da qualidade na Doutrina do Ser257 e observar que a qualidade tem a negaccedilatildeo contida nela
mesmo que essa seja diferente dela e enquanto um ser-outro Aleacutem disso esse ser-outro eacute sua
determinaccedilatildeo proacutepria todavia neste momento diferente dela (a qualidade) Quando Hegel
afirma que a identidade e diferenccedila natildeo satildeo qualidades podemos agora avanccedilar a hipoacutetese de
que se elas fossem qualidades identidade e diferenccedila seriam apenas cada uma a determinaccedilatildeo
unilateral refletida sobre si e afastada do negativo O que de fato natildeo se verifica pois a
determinidade tanto da identidade quanto da diferenccedila por meio da reflexatildeo em si eacute ao
mesmo tempo somente como negaccedilatildeo258 Em outras palavras elas satildeo o que satildeo porque
negam a sua oposta e natildeo de modo exterior
Na diversidade poreacutem eacute como se diferenccedila e identidade fossem efetivamente duas
qualidades O que resultaria em considerar a ambas como duas determinaccedilotildees inteiramente
positivas Pelo contraacuterio uma determinaccedilatildeo aos olhos de Hegel natildeo pode ser somente
positiva Nesse sentido o filoacutesofo retoma Espinosa quando este diz que toda determinaccedilatildeo eacute
uma negaccedilatildeo (omnis determinatio est negatio) Para Hegel a base de toda determinaccedilatildeo eacute a
negaccedilatildeo ldquoO opinar carente-de-pensamento considera as coisas determinadas como somente
positivas e as sustenta sob a forma do ser Com o simples ser contudo o opinar natildeo eacute
255 Ibidem p 267 trad p 46 (ldquojedes Einheit seiner selbst und seines Andern jedes ist das Ganzerdquo)
256 Cf GW 20 E sect 90 pp 129-130 trad p 186
257 Ibidem sect 91 p 130 trad p 187
258 GW 11 p 268 trad p 46
111
abolido pois esse como vimos antes eacute o absolutamente vazio e ao mesmo tempo o carente-
de-consistecircnciardquo259
Esses dois positivos ndash a identidade e a diferenccedila ndash que se colocam um frente ao outro
de modo indiferente mediante uma reflexatildeo que se tornou exterior a si mesma seratildeo
denominados por Hegel de reflexatildeo em si e de reflexatildeo exterior respectivamente Reflexatildeo em
si porque nessa determinaccedilatildeo temos o momento da identidade que por sua vez eacute
ldquodeterminada para ser indiferente (gleichguumlltig) com respeito agrave diferenccedilardquo260 Reflexatildeo
exterior porque nessa determinaccedilatildeo temos o momento da diferenccedila ldquoperante agrave qual a reflexatildeo
sendo em si (die an sich seiend Reflexion) eacute indiferenterdquo261
E uma vez entatildeo visto que identidade e diferenccedila natildeo se datildeo numa mesma reflexatildeo
como se produziraacute essa diferenccedila de duas determinaccedilotildees exteriores uma agrave outra O
estabelecimento da diferenccedila segundo Hegel dependeraacute da consideraccedilatildeo de um terceiro que
se coloca fora de ambos identidade e diferenccedila Seraacute esse terceiro que declararaacute o que eacute a
identidade e a diferenccedila e que agora seratildeo denominadas por Hegel respectivamente como
igualdade (a identidade exterior) e desigualdade (a diferenccedila exterior)
Nem a igualdade e nem a desigualdade seratildeo em si e por si E o que isso significa
Significa que se algo eacute igual a um outro algo isso natildeo depende nem de um e nem de outro262
Depende antes da referecircncia a esse terceiro Da comparaccedilatildeo que ele estabelece Essa reflexatildeo
que tornou-se estranha a si mesma ora declara que temos uma igualdade e ora declara que
temos uma desigualdade A igualdade e a desigualdade nunca segundo o ponto-de-vista da
diversidade dependem uma da outra para se efetivarem Natildeo haveria diferenccedila intriacutenseca
entre uma e outra Para Hegel esse natildeo relacionar-se entre o igual e o desigual longe de
afastar delas a contradiccedilatildeo (Widerspruch) e a dissoluccedilatildeo (Aufloumlsung) eacute o que de fato leva agrave
destruiccedilatildeo (Zerstoumlrung) das mesmas Se o igual eacute colocado junto do desigual mas sem que
259 Werke 8 E sect 91 Adendo p 195 trad p 187 (ldquoDas gedankenlose Meinen betrachtet die bestimmten Dinge als nur positiv und haumllt dieselben unter der Form des Seins fest Mit dem bloszligen Sein ist es indes nicht abgetan
denn dieses ist wie wir fruumlher gesehen haben das schlechthin Leere und zugleich Haltloserdquo)
260 GW 11 p 268 trad p 47
261 Ibidem p 268 trad p 47
262 Ibidem p 268 trad p 47
112
haja entre eles o menor contato entatildeo eles se contradizem263 Do ponto-de-vista da loacutegica que
rege o entendimento eacute isto o que ocorre264
Admitir que natildeo haja uma diferenccedila que vincule o igual ao desigual que essa
diferenccedila seja exterior e indiferente eacute proacuteprio segundo Hegel de uma consideraccedilatildeo que natildeo
consegue se dar conta de que ldquoo que compara (das Vergleichende) vai da igualdade agrave
desigualdade e desta para aquela novamente faz portanto uma desvanecer na outra e de fato
eacute a unidade negativa de ambas Ela estaacute em primeiro lugar para aleacutem do comparado assim
como aleacutem dos momentos da comparaccedilatildeo como um subjetivo um operar exterior que incide
fora deles Mas essa unidade negativa em verdade eacute a natureza da igualdade e da
desigualdade mesma tal como resultourdquo265
263 ldquoPara Hegel isso significa que tem de se destruir a si mesma a reflexatildeo que se perdeu na exterioridade As determinaccedilotildees da igualdade e da desigualdade se excluem reciprocamente elas satildeo nas palavras de Hegel lsquodeterminaccedilotildees da diferenccedilarsquo lsquorelaccedilatildeo de uma a outra que uma para ser eacute aquilo que a outra natildeo eacutersquo (GW 11 p 269)rdquo Ou ainda ldquoA reflexatildeo exterior na medida em que poe as determinaccedilotildees da igualdade e da desigualdade relaciona ambas uma a outra Hegel assim expressa isso que a contradiccedilatildeo mantida afastada dos objetos se reitera nessa reflexatildeordquo In Arndt A Dialektik und p 206 e 207 respectivamente
264 Eacute essa contradiccedilatildeo que o ceacutetico natildeo se cansa de apontar segundo Hegel no acircmbito do entendimento
265 Ibidem p 269 trad pp 48-49 (ldquoDas Vergleichende geht von der Gleichheit zur Ungleichheit und von dieser zu jener zuruumlck laumlszligt also das eine im andern verschwinden und ist in der That die negative Einheit beyder Sie ist zunaumlchst jenseits des Verglichenen so wie jenseits der Momente der Vergleichung als ein subjectives ausserhalb ihnen fallendes Thun Aber diese negative Einheit ist in der That die Natur der Gleichheit und Ungleichheit selbst wie sich ergeben hatrdquo) Ou ainda ldquoEnquanto os [termos] simplesmente diversos se mostram como indiferentes entre si ao contraacuterio a igualdade e a desigualdade satildeo um par de determinaccedilotildees que se referem pura e simplesmente uma agrave outra e natildeo se pode pensar uma delas sem a outra Essa progressatildeo da mera diversidade agrave oposiccedilatildeo se encontra jaacute tambeacutem na consciecircncia ordinaacuteria na medida em que admitimos que a comparaccedilatildeo soacute tem um sentido na pressuposiccedilatildeo de uma diferenccedila dada e inversamente tambeacutem a diferenciaccedilatildeo soacute [tem sentido] na pressuposiccedilatildeo de uma igualdade dada Por conseguinte quando se potildee como tarefa indicar uma diferenccedila natildeo se atribui grande perspicaacutecia a quem soacute diferencia um do outro objetos cuja diferenccedila eacute imediatamente visiacutevel (como por exemplo uma caneta e um camelo) De outro lado dir-se-aacute igualmente que natildeo foi longe na comparaccedilatildeo quem soacute sabe comparar coisas que estatildeo proacuteximas umas das outras uma faia com um carvalho um templo com uma igreja Exigimos portanto na diferenccedila a identidade e na identidade a diferenccedilardquo (ldquoWaumlhrend die bloszlig Verschiedenen sich als gleichguumlltig gegeneinander erweisen so sind dagegen die Gleichheit und die Ungleichheit ein Paar Bestimmungen die sich schlechthin aufeinander beziehen und von denen die eine nicht ohne die andere gedacht werden kann Dieser Fortgang von der bloszligen Verschiedenheit zur Entgegensetzung findet sich dann auch insofern schon im gewoumlhnlichen Bewuszligtsein als wir einraumlumen daszlig das Vergleichen nur einen Sinn hat unter der Voraussetzung eines vorhandenen Unterschiedes und ebenso umgekehrt das Unterscheiden nur unter der Voraussetzung vorhandener Gleichheit Man schreibt demgemaumlszlig auch wenn die Aufgabe gestellt wird einen Unterschied anzugeben demjenigen keinen groszligen Scharfsinn zu der nur solche Gegenstaumlnde voneinander unterscheidet deren Unterschied unmittelbar zutage liegt (wie z B eine Schreibfeder und ein Kamel) wie man andererseits sagen wird daszlig es derjenige nicht weit im Vergleichen gebracht hat welcher nur einander Naheliegendes - eine Buche mit einer Eiche einen Tempel mit einer Kirche - zu vergleichen weiszlig Wir verlangen somit beim Unterschied die Identitaumlt und bei der Identitaumlt
den Unterschiedrdquo) In Werke 8 E sect 118 Adendo p 241 trad pp 232-233]
113
Tanto o igual quanto o desigual por terem o caraacuteter de ser-posto natildeo satildeo apenas essa
identidade abstrata consigo mesmos essa relaccedilatildeo a si sem negaccedilatildeo Cada um como um
diverso passa por meio do ser-posto agrave reflexatildeo negativa O que Hegel pretende nos apontar
refere-se ao caraacuteter determinado de cada um dos diversos isto eacute que cada um somente se
determina como o que eacute por meio da relaccedilatildeo com o outro ldquoO igual natildeo eacute portanto o igual de
si mesmo e o desigual como o desigual natildeo de si mesmo mas sim de um desigual a ele eacute ele
mesmo o igualrdquo266
Identidade e diferenccedila natildeo satildeo por meio dessa unidade negativa momentos separados
mas antes uma uacutenica unidade e esta eacute a oposiccedilatildeo267
A oposiccedilatildeo
Hegel inicia sua anaacutelise do que estaacute em jogo na oposiccedilatildeo da seguinte maneira ldquoNa
oposiccedilatildeo a reflexatildeo determinada a diferenccedila estaacute acabada (Im Gegensatze ist die bestimmte
Reflexion der Unterschied vollendet)rdquo268
Como jaacute observamos anteriormente269 a diferenccedila se constitui de dois momentos
precisamente a identidade e a diferenccedila Ela eacute o todo que abrange esses dois momentos no
relacionamento que haacute entre eles Tambeacutem na diversidade havia um relacionamento entre
identidade e diferenccedila ou entre igualdade e desigualdade todavia do ponto-de-vista da
diversidade a diferenccedila que havia entre eles era indiferente (gleichguumlltig) Quer dizer era
como se cada um dos momentos natildeo tivesse a sua determinaccedilatildeo a igualdade e a desigualdade
em virtude de um relacionamento negativo entre ambos Em suma a diferenccedila natildeo estava
acabada (vollendet) A igualdade e a desigualdade eram declaradas a partir de uma reflexatildeo
exterior a si na qual os termos da relaccedilatildeo natildeo se vinculavam internamente um ao outro O
266 GW 11 p 269 trad p 49 (ldquoSo ist das Gleiche nicht das Gleiche seiner selbst und das Ungleiche als das Ungleiche nicht seiner selbst sondern eines ihm ungleichen ist selbst das Gleicherdquo)
267 Ibidem p 270 trad p 50
268 Ibidem p 272 trad p 53
269 Ver a esse respeito as paacuteginas 107 e 108
114
tertius comparationis postulava a igualdade ou a desigualdade dos termos diferentes ou
poderiacuteamos tambeacutem dizer efetuava a ldquomediaccedilatildeordquo entre ambos
Posto tudo isso podemos agora comeccedilar a entrever porque a diferenccedila na oposiccedilatildeo
estaacute acabada Mas do que realmente se trata nesse passo aleacutem
A tiacutetulo meramente introdutoacuterio podemos assinalar que a diferenccedila na oposiccedilatildeo teraacute
seus momentos unidos numa uacutenica identidade E seraacute essa unidade interior que permitiraacute a
Hegel afirmar que na oposiccedilatildeo a diferenccedila estaacute acabada no sentido de que aqui ela teraacute sua
completude
Mesmo assim ainda aqui na oposiccedilatildeo esse relacionamento entre identidade e
diferenccedila estaacute de alguma maneira afetado pela diversidade da qual parte Vejamos entatildeo agora
como se estabelece esse relacionamento de identidade e diferenccedila na oposiccedilatildeo
Originariamente igualdade e desigualdade satildeo a indiferenccedila reciacuteproca Cada uma eacute
apenas idecircntica consigo mesma sem que haja referecircncia ao seu negativo Eacute o que Hegel
chama de imediatez natildeo refletida em si (die nicht in sich reflectirte Unmittelbarkeit)270 Como
ser-posto cada momento deveria ser oposto ao outro entretanto por consequumlecircncia da reflexatildeo
exterior cada um deles eacute um ser e aquele que deveria ser seu contraposto isto eacute seu natildeo-ser-
posto (Nichtgesetztsein) eacute apenas um natildeo-ser (Nichtsein) Quando Hegel declara que cada
momento eacute apenas um ser que tem diante de si um natildeo-ser estamos ainda eacute o que nos parece
no terreno da diversidade no qual ser eacute uma determinaccedilatildeo visada de acordo com esse ponto-
de-vista e que de fato estaacute aqueacutem do que efetivamente se passa nos momentos dessa
diferenccedila A tiacutetulo de esclarecimento Hegel caracterizava o ser na Enciclopeacutedia271 como
apenas o imediato indeterminado Parece-nos que denominar os momentos da igualdade e da
desigualdade como ser se faccedila de acordo com tal caracterizaccedilatildeo do ser na obra acima citada
O ser eacute indeterminado porque ele natildeo possui nenhuma relaccedilatildeo com um outro e a
determinaccedilatildeo natildeo se faz sem uma negaccedilatildeo272 o que implica uma relaccedilatildeo a um outro
270 GW 11 p 272 trad p 53
271 Cf GW 20 E sect 86 p 122 trad p175
272 Leia-se a propoacutesito o que foi dito na paacutegina 97 a respeito da determinaccedilatildeo implicar uma negaccedilatildeo
115
ldquoQuando se comeccedila a pensar natildeo temos outra coisa que o pensamento em sua
carecircncia-de- determinaccedilatildeo pois para a determinaccedilatildeo jaacute se requer um e um outro O carente-de-
determinaccedilatildeo como temos aqui eacute o imediato e natildeo a mediatizada carecircncia-de-determinaccedilatildeo
natildeo a suspensatildeo de toda a determinidade mas a imediatez da carecircncia-de-determinaccedilatildeo a
carecircncia-de-determinaccedilatildeo preacutevia a toda a determinidade o carente-de-determinaccedilatildeo enquanto
o que eacute o primeiro-de-todos Ora [eacute] isso o [que] chamamos o ser O ser natildeo pode ser sentido
nem intuiacutedo e nem representado mas eacute o pensamento puro e como tal constitui o
comeccedilordquo273
Mas como momentos da oposiccedilatildeo a igualdade e a desigualdade satildeo o ser-posto
refletido em si ou a determinaccedilatildeo em geral274 Isto significa que igualdade e desigualdade
como refletidas em si mesmas cada uma eacute a unidade da igualdade e da desigualdade Nessa
unidade cada uma estaacute mediada pela outra no entanto a relaccedilatildeo entre elas ainda se faz de
modo indiferente Frente agrave diversidade pode-se notar um avanccedilo na relaccedilatildeo entre identidade e
diferenccedila cada uma estaacute referida agrave outra Desse modo na oposiccedilatildeo teremos como seus dois
momentos o positivo e o negativo O positivo eacute ldquoessa igualdade consigo mesma refletida em
si que nela mesma conteacutem a relaccedilatildeo com a desigualdaderdquo275 e o negativo eacute ldquoa desigualdade
que conteacutem nela mesma a relaccedilatildeo com seu natildeo-ser a igualdaderdquo276 Eacute devido a essa relaccedilatildeo
que ambos mantecircm com seus respectivos negativos que Hegel denomina cada um de ser-
posto isto eacute aquilo que estaacute em relaccedilatildeo com seu oposto O positivo como ser-posto estaacute
refletido na igualdade consigo mesmo e o refletido eacute a negaccedilatildeo como negaccedilatildeo O negativo
273 Werke 8 E sect 86 Adendo p 183 trad p 176 (ldquoWir haben wenn angefangen wird zu denken nichts als den Gedanken in seiner reinen Bestimmungslosigkeit denn zur Bestimmung gehoumlrt schon Eines und ein Anderes im Anfang aber haben wir noch kein Anderes Das Bestimmungslose wie wir es hier haben ist das Unmittelbare nicht die vermittelte Bestimmungslosigkeit nicht die Aufhebung aller Bestimmtheit sondern die Unmittelbarkeit der Bestimmungslosigkeit die Bestimmungslosigkeit vor aller Bestimmtheit das Bestimmungslose als Allererstes Dies aber nennen wir das Sein Dieses ist nicht zu empfinden nicht anzuschauen und nicht vorzustellen sondern es ist der reine Gedanke und als solcher macht es den Anfangrdquo)
274 Cf GW 11 p 272 trad p 53
275 Ibidem p273 trad p 53 (ldquoDiese in sich reflectirte Gleichheit mit sich die in ihr selbst die Beziehung auf die Ungleichheit enthaumlltrdquo)
276 Ibidem p 273 trad p 54 (ldquodie Ungleichheit die in ihr selbst die Beziehung auf ihr Nichtseyn die Gleichheit enthaumlltrdquo)
116
como ser-posto estaacute refletido na desigualdade e o refletido eacute a desigualdade dele (o
positivo)277
Como consequumlecircncia dessa reflexatildeo do todo neles mesmos o positivo e o negativo se
tornam independentes Mas nessa reflexatildeo na qual estaacute posta uma relaccedilatildeo com seu outro e que
fornece o caraacuteter independente do positivo e do negativo o outro de cada um deles eacute um natildeo-
ser pois o outro apesar de continuar presente na relaccedilatildeo estaacute presente como o que natildeo tem
ldquosubstacircnciardquo como se estivesse suprimido278 Em vista disso ao inveacutes de ser-posto positivo e
negativo voltam a adquirir a feiccedilatildeo do mero ser ou seja de um indeterminado que natildeo tem
relaccedilatildeo com um outro um indiferente subsistir (ein gleichguumlltiges Bestehen)279
Com vistas a uma explicitaccedilatildeo mais detalhada das determinaccedilotildees que constituem o
positivo e o negativo Hegel realiza uma anaacutelise na qual distingue trecircs aspectos que a seguir
retomamos280
Assim cabe notar em primeiro lugar que positivo e negativo subsistem numa uacutenica
reflexatildeo inseparaacutevel na qual cada um eacute mediante o natildeo-ser de seu outro mediante portanto
seu proacuteprio natildeo-ser Mas se existe a oposiccedilatildeo entre eles essa oposiccedilatildeo todavia eacute apenas
exterior Cada um eacute o que eacute na medida em que o outro natildeo eacute Na relaccedilatildeo que haacute entre os
opostos um procura afastar de si o outro como aquele que cada um natildeo eacute dessa maneira ldquoum
natildeo eacute ainda o positivo e o outro natildeo eacute ainda o negativo mas antes satildeo ambos negativos um em
relaccedilatildeo ao outrordquo281
277 Cf Ibidem p 273 trad p 54
278 Hegel utiliza eacute o que nos parece o verbo alematildeo aufheben em um sentido meramente negativo por isso optamos pela traduccedilatildeo do verbo como suprimir Na maioria das vezes no entanto preferimos traduzir aufheben por suspender termo que em portuguecircs cremos estar mais de acordo com a polissemia semacircntica do verbo em alematildeo pois suspender pode significar 1) elevar levantar (-se) erguer (-se) 2) suprimir pocircr fim anular abolir abrogar revogar cancelar 3) guardar conservar
Para essa pequena explicaccedilatildeo dos muacuteltiplos significados do verbo suspender e que estatildeo de acordo com os significados do verbo em alematildeo baseamo-nos aqui na nota 25 da traduccedilatildeo da Introduccedilatildeo agrave Filosofia do Direito elaborada por Marcos Lutz Muumlller e na qual o tradutor discute os motivos de se optar por traduzir aufheben por suspender Ver a esse respeito HEGEL G W Introduccedilatildeo agrave Filosofia do Direito Campinas IFCH UNICAMP Claacutessicos da Filosofia Cadernos de Traduccedilatildeo no 10 pp 87-90
279 Cf GW 11 p 273 trad p 54
280 Ver a propoacutesito GW11 pp 273-274 trad pp 54-56
281 Cf GW 11 p 273 trad p 55 (ldquodas eine ist noch nicht positiv und das andre noch nicht negativ sondern beyde sind negativ gegen einanderrdquo)
117
Em segundo lugar dado que cada um dos opostos natildeo considera como parte de si o
outro que ele natildeo eacute como se de fato o outro ndash o natildeo-ser ndash natildeo fosse necessaacuterio para a
determinaccedilatildeo que estaacute no outro poacutelo da relaccedilatildeo resulta dessa espeacutecie de relaccedilatildeo a completa
indiferenccedila entre ambos Dessa perspectiva cada um estaacute apenas refletido em si mesmo Que
consequumlecircncias adveacutem entatildeo para a oposiccedilatildeo uma vez que essa relaccedilatildeo se faz a partir de uma
indiferenccedila dos opostos
Para Hegel a relaccedilatildeo pautada pela indiferenccedila relaccedilatildeo que cada um estabelece com
seu outro como natildeo-ser faz com que ldquoa cada lado caiba por conseguinte uma das
determinidades do positivo e do negativo mas elas podem ser trocadas e cada lado eacute de tal
espeacutecie que eles podem mesmo ser tomados tanto como o positivo quanto como o
negativordquo282
De fato caberia afirmar que natildeo existe oposiccedilatildeo Soacute haacute como diz Hegel oposiccedilatildeo em
geral283 Tanto do lado do positivo quanto do lado do negativo procura-se manter somente
numa relaccedilatildeo idecircntica consigo Nega-se o outro da relaccedilatildeo como se este natildeo determinasse em
nenhuma hipoacutetese a identidade do positivo ou do negativo Eacute como se o outro fosse apenas
um outro em geral
Na doutrina dos conceitos contraditoacuterios um dos conceitos significa por exemplo
azul ( em tal doutrina algo como representaccedilatildeo sensiacutevel de uma cor se chama tambeacutem
conceito) o outro significa natildeo-azul de modo que este outro natildeo eacute algo afirmativo como
seria digamos o amarelo mas somente como o abstratamente negativo deve afirmar-se284
Natildeo se deve esquecer que nesse relacionamento dos opostos e que natildeo vai aleacutem da
indiferenccedila muacutetua o princiacutepio de contradiccedilatildeo pertencente ao arcabouccedilo da loacutegica claacutessica se
282 Ibidem p 274 trad p 55 (ldquojeder Seite kommt daher zwar eine der Bestimmtheiten von Positivem und Negativem zu aber sie koumlnnen verwechselt werden und jede Seite ist von der Art daszlig sie eben so gut als positiv wie als negativ genommen werden kannrdquo)
283 Ibidem p 273 trad p 55
284 GW 20 E sect 119 p150 trad p 234 (ldquoIn der Lehre von den contradictorischen Begriffen heiszligt der eine Begriff z B Blau (auch so ewas wie die sinnliche Vorstellung einer Farbe wird in solcher Lehre Begriff genannt) der andere Nichtblau so daszlig diszlig Andere nicht ein Affirmatives etwa Gelb waumlre sondern nur [als] das Abstract-Negative festgehalten werden sollrdquo)
118
faz atuante Uma determinaccedilatildeo eacute positiva independente daquilo que ela nega E o que eacute
negado mas que todavia estaacute relacionado ao positivo eacute como se natildeo existisse como se
estivesse completamente ausente285 Se algo eacute ele eacute porque um outro indeterminado natildeo eacute286
Natildeo pode haver algo que seja e natildeo seja ao mesmo tempo a contradiccedilatildeo precisa ser evitada a
todo custo A determinaccedilatildeo do positivo ou do negativo conforme a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo natildeo
estaacute vinculada agrave relaccedilatildeo que de fato eles mantecircm A despeito da relaccedilatildeo que eles estabelecem
entre si o princiacutepio de contradiccedilatildeo eacute respeitado e a contradiccedilatildeo eacute evitada287
Nessa indiferenccedila de cada um perante seu outro tanto faz chamar um de positivo
quanto chamar o outro de negativo Temos aqui apenas nomes diferentes para designar duas
positividades que por consequumlecircncia satildeo intercambiaacuteveis Apenas que um eacute o positivo como o
que eacute e o outro o positivo como o que natildeo eacute Enquanto forem indiferentes um ao outro
enquanto a diferenccedila entre eles natildeo for estabelecida a partir do relacionamento que os une
natildeo deixaratildeo os mesmos de serem duas determinaccedilotildees positivas abstratas288
285 Na precisa formulaccedilatildeo de Geacuterard Lebrun ldquoPode-se constatar um natildeo-ser mas sem lhe dar apoio sem contar de onde ele proveacutem O negativo eacute essa ausecircncia nunca localizaacutevel desprovida de toda espessurardquo in Lebrun G A paciecircncia do conceito Satildeo Paulo Editora da Unesp 2006 p275
286 ldquoEsse vazio da oposiccedilatildeo de conceitos que se dizem contraditoacuterios tinha jaacute sua plena exposiccedilatildeo na por assim dizer grandiosa expressatildeo de uma lei universal pela qual de todos os predicados assim opostos um pertence a cada coisa e o outro natildeo de sorte que o espiacuterito seria branco ou natildeo-branco amarelo ou natildeo-amarelo etc ateacute o infinitordquo (ldquo Die Leerheit des Gegensatzes von sogennanten contradictorischen Begriffen hatte ihre volle Darstellung in dem so zu sagen grandiosen Ausdruck eines allgemeinen Gesetzes daszlig jedem Dinge von Allen so entgegengesetzten Praumldicaten das Eine zukomme und das Andere nicht so daszlig der Geist sey entweder weiszlig oder nicht weiszlig gelb oder nicht gelb usf ins Unendlicherdquo) In GW 20 E sect119 p 150 trad p 234
287 ldquoQuando se esquece que identidade e oposiccedilatildeo satildeo opostas elas mesmas a proposiccedilatildeo da oposiccedilatildeo eacute tambeacutem tomada pela proposiccedilatildeo da identidade na forma da proposiccedilatildeo da contradiccedilatildeo e um conceito ao qual das duas caracteriacutesticas que se contradizem uma agrave outra nenhuma delas conveacutem (ver acima) ou convecircm as duas eacute declarado logicamente falso como por exemplo um ciacuterculo quadradordquo (ldquoIndem vergessen wird daszlig Identitaumlt und Entgegensetzung selbst entgegengesetzt sind wird der Satz der Entgegensetzung auch fuumlr den der Identitaumlt in der Form des Satzes des Widerspruchs genommen und ein Begriff dem von Zwey einander widersprechenden Merkmalen keins (s vorhin) oder alle beyde zukommen fuumlr logisch falsch erklaumlrt wie zB ein viereckiger Cirkelrdquo) In GW 20 E sect119 p 150 trad pp 234-235
288 ldquoO positivo eacute de novo a identidade mas na sua verdade mais alta enquanto relaccedilatildeo idecircntica a si mesma e ao mesmo tempo de modo que natildeo eacute o negativo O negativo para si natildeo eacute outra coisa que a diferenccedila mesma O idecircntico como tal eacute antes de tudo o carente-de-determinaccedilatildeo o positivo ao contraacuterio eacute o idecircntico consigo mesmo mas enquanto determinado frente a um outro e o negativo eacute a diferenccedila como tal na determinaccedilatildeo de natildeo ser identidade Eacute isso a diferenccedila da diferenccedila nela mesma No positivo e negativo acredita-se ter uma diferenccedila absoluta Contudo os dois satildeo em si o mesmo e por isso se poderia chamar tambeacutem o positivo negativo e vice-versa igualmente o negativo positivordquo (ldquo Das Positive ist wieder die Identitaumlt aber in ihrer houmlheren Wahrheit als identische Beziehung auf sich selbst und zugleich so daszlig es nicht das Negative ist Das Negative fuumlr sich ist nichts anderes als der Unterschied selbst Das Identische als solches ist zunaumlchst das
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Podemos ilustrar a afirmaccedilatildeo acima de que positivo e negativo satildeo ambos positivos e
justamente por isso intercambiaacuteveis com um dos exemplos fornecidos por Hegel na anotaccedilatildeo
agrave seccedilatildeo que trata da oposiccedilatildeo na Ciecircncia da Loacutegica
Assim se pensarmos em uma hora de caminhada para o leste veremos que este natildeo eacute
ao mesmo tempo o positivo em si nem o caminho para o oeste seria o caminho negativo O
trecho percorrido natildeo pode ser considerado o positivo ou o negativo em si Em relaccedilatildeo a ele
tais determinaccedilotildees lhe satildeo indiferentes Apenas por meio de uma consideraccedilatildeo exterior se
determina o positivo ou o negativo289
A mesma coisa eacute vaacutelida para um exemplo tirado da aritmeacutetica290 Se A deve ser +A ou
ndashA com isso jaacute estaacute enunciado um terceiro que eacute A ou a base na qual se tem de modo
indiferente o positivo +A e o negativo ndashA291
Bestimmungslose das Positive dagegen ist das mit sich Identische aber als gegen ein Anderes bestimmt und das Negative ist der Unterschied als solcher in der Bestimmung nicht Identitaumlt zu sein Dies ist der Unterschied des Unterschiedes in ihm selbst - Am Positiven und Negativen meint man einen absoluten Unterschied zu haben Beide sind indes an sich dasselbe und man koumlnnte deshalb das Positive auch das Negative nennen und ebenso umgekehrt das Negative das Positiverdquo) In Werke 8 E sect 119 Adendo p 244 trad p 235
289 GW 11 p 276 trad p 58
290 Ver a propoacutesito GW 20 E sect 119 p 150 trad p 234
291 Todo esse trecho da Ciecircncia da Loacutegica no qual Hegel trata da oposiccedilatildeo envolve uma criacutetica da oposiccedilatildeo real kantiana no seu Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia [In Escritos preacute-criacuteticos Satildeo Paulo Unesp 2005 pp 51-99] Com efeito Kant comeccedila a seccedilatildeo Elucidaccedilatildeo do conceito de grandezas negativas em geral distinguindo entre oposiccedilatildeo loacutegica e oposiccedilatildeo real Segundo o filoacutesofo ldquooposto um ao outro eacute quando um suprime aquilo que eacute posto pelo outrordquo (Kant p 57) E esta oposiccedilatildeo pode se dar de duas maneiras se for oposiccedilatildeo loacutegica pela contradiccedilatildeo se for real sem contradiccedilatildeo
Teremos uma oposiccedilatildeo loacutegica quando a seguinte situaccedilatildeo ocorre ldquode uma uacutenica e mesma coisa afirma-se e nega-se algo ao mesmo tempordquo (Kant p 57) A consequumlecircncia advinda de uma tal espeacutecie de afirmaccedilatildeo eacute segundo Kant absolutamente nada (nihil negativum irrepraesentabile) Devido agrave transgressatildeo ao princiacutepio de contradiccedilatildeo aquilo que se tentou exprimir natildeo pode ser representado Como um corpo poderia ao mesmo tempo e sob a mesma relaccedilatildeo estar e natildeo estar em movimento Do ponto de vista das leis da loacutegica claacutessica eacute impossiacutevel(Kant p 58)
Para Kant ao se considerar a oposiccedilatildeo como real teremos dois predicados opostos de uma coisa relacionados no entanto sem que nessa relaccedilatildeo se infrinja o princiacutepio de contradiccedilatildeo Neste caso temos como consequumlecircncia da oposiccedilatildeo algo (cogitabile) Em um dos exemplos dados por Kant algueacutem que tenha por haver uma diacutevida ativa A= 100 taacuteleres ou seja tem a receber A Ao mesmo tempo essa pessoa possui uma diacutevida passiva B=100 taacuteleres logo tem a pagar a quantia expressa por B Se reunimos as duas diacutevidas a ativa e a passiva entatildeo teremos como consequumlecircncia nada As duas diacutevidas se anulam entretanto esse nada eacute algo pois houve um certo movimento de um certo capital Aqui ocorre efetivamente supressatildeo todavia em virtude de dois predicados atuantes e verdadeiros na mesma coisa Kant nomeia esse nada como zero =0 Diferente do nada a que se chega a partir da oposiccedilatildeo loacutegica esse nada chamado de zero natildeo expressa nenhuma contradiccedilatildeo entre os termos Temos uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo da qual se extrai uma consequumlecircncia compreensiacutevel ainda sob o amparo do princiacutepio de contradiccedilatildeo Os opostos se regem pelo princiacutepio de contradiccedilatildeo e quando relacionados continuam a natildeo se
120
Por fim haacute que se considerar que positivo e negativo natildeo estatildeo de fato relacionados
apenas exteriormente Ambos estatildeo relacionados um ao outro numa unidade na qual cada um
se determina como positivo e como negativo mediante essa reflexatildeo dos contrapostos ldquoCada
um eacute em si mesmo positivo e negativordquo292 O positivo se determina como positivo na sua
relaccedilatildeo com seu outro o negativo e o negativo da mesma maneira na sua relaccedilatildeo com o
positivo Nenhum deles pode ser portanto apenas uma reflexatildeo em si ou seja positivo e
negativo natildeo estatildeo desvinculados um do outro Natildeo se constituem como tais por meio de um
puro refletir-se em si mesmos sem que isso envolva a relaccedilatildeo com seu outro e contraposto
Somente na relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo que positivo e negativo se determinam desse modo como
tais e essa reflexatildeo pode ser considerada em si e para si
contradizer Os opostos aqui satildeo dois positivos E eacute por pura conveniecircncia que um eacute chamado de positivo e o outro de negativo
Pensemos por exemplo neste exemplo fornecido por Kant um navio que navega de Portugal para o Brasil(Kant p 60) Indicaremos com o sinal + os trechos que ele perfaz com o vento matutino e com o sinal ndash indicaremos os trechos que ele retrocede mediante o vento vespertino Os nuacutemeros significam as milhas percorridas Poderia ter ocorrido uma viagem rumo a oeste que somando e subtraindo o efeito do vento no navio seria em milhas a seguinte +12 + 7 ndash 3 ndash 5 + 8= 19 milhas Soacute existe uma subtraccedilatildeo aqui porque haacute grandezas precedidas do sinal + e haacute grandezas precedidas do sinal -- Em ndash 4 ndash 5= -- 9 por exemplo temos uma soma de grandezas natildeo obstante estas estarem precedidas do sinal -- Uma soma tambeacutem se verificaria caso no exemplo citado fosse utilizado o sinal + antes das grandezas A questatildeo eacute que natildeo eacute o sinal que por si soacute pode designar uma subtraccedilatildeo Como acabamos de observar pode haver soma para uma operaccedilatildeo envolvendo grandezas precedidas de sinal -- Eacute somente na reuniatildeo de + e ndash que temos uma subtraccedilatildeo E natildeo importa qual das grandezas por exemplo em + 4 ndash 5= -- 1 seja precedida por + ou por -- que enquanto haja uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo o resultado seraacute sempre uma subtraccedilatildeo
Eacute meramente convencional portanto que se utilize o sinal ndash ou o sinal + para denominar as grandezas Natildeo eacute em virtude de uma propriedade intriacutenseca desses sinais que teremos uma soma ou uma subtraccedilatildeo ldquoos matemaacuteticos decidiram denominar negativas as grandezas precedidas de -- com o que igualmente natildeo se deve perder de vista que essa denominaccedilatildeo natildeo remete a uma espeacutecie particular de coisas em sua qualidade interna mas a esta relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo que as une com certas outras coisas indicadas com + reunidas em uma oposiccedilatildeordquo (Kant pp 61-62)
Numa oposiccedilatildeo real satildeo efetivamente dois positivos que se relacionam e eacute indiferente qual deles possa ser o positivo ou o negativo Para Kant diferente do que pensa Hegel esses positivos relacionados podem produzir como efeito algo e continuarem a ser abstratamente idecircnticos a si mesmos nessa relaccedilatildeo Jaacute para Hegel ldquoo que eacute em si (ansichseiende) positivo ou negativo significa essencialmente ser oposto natildeo meramente ser momento nem pertencente agrave comparaccedilatildeo mas sim que eacute a proacutepria determinaccedilatildeo dos lados da oposiccedilatildeordquo (Cf GW 11 p 275 trad p 57) Eacute na relaccedilatildeo que eles se determinam e poderatildeo constituir uma unidade naquilo que Hegel chama de contradiccedilatildeo resolvida
292 GW 11 p 274 trad p 55 (ldquojedes ist an ihm selbst positiv und negativrdquo)
121
A contradiccedilatildeo
Na oposiccedilatildeo temos dois lados o positivo e o negativo indiferentes um perante o outro
Como jaacute foi visto cada lado eacute toda a oposiccedilatildeo pois apesar da indiferenccedila eles se relacionam
cada um ao seu outro Todavia devido agrave indiferenccedila potildeem-se eles como se natildeo houvesse
relaccedilatildeo com seu outro isto eacute excluem de si o seu outro
Mas eacute na relaccedilatildeo com seu outro que cada lado conteacutem em si que eles satildeo ambos a
oposiccedilatildeo completa e assim satildeo auto-subsistentes A auto-subsistecircncia entatildeo consiste nesse
conter o seu oposto em si mesmo e relacionado a si A relaccedilatildeo com o outro desse modo natildeo eacute
exterior Hegel chama o positivo e o negativo de tal modo constituiacutedos de determinaccedilotildees
reflexivas autocircnomas293 Mas ao mesmo tempo e na mesma relaccedilatildeo uma determinaccedilatildeo
reflexiva autocircnoma exclui de si a outra Como consequumlecircncia dessa exclusatildeo ldquoexclui entatildeo ela
de si na sua autonomia (Selbststaumlndigkeit) a sua proacutepria autonomiardquo294 Uma determinaccedilatildeo
conteacutem portanto em si a outra e na mesma relaccedilatildeo exclui de si essa outra que eacute sua negativa e
assim se auto-exclui de si mesma Desse modo nesse vai-e-vem ndash em um mesmo
relacionamento ndash entre a autonomia e a sua exclusatildeo ela a determinaccedilatildeo eacute a contradiccedilatildeo295
Nesse relacionamento das determinaccedilotildees cada uma ao se pocircr remete agrave outra que a ela
se relaciona Cada uma eacute o que eacute na relaccedilatildeo com a outra sua afirmaccedilatildeo vincula-se agrave outra que
eacute negada mas que ao mesmo tempo estaacute contida na primeira como elemento de sua
autonomia Temos aqui o que Hegel chama de contradiccedilatildeo posta (der gesetzte Widerspruch)
realizada por meio de uma reflexatildeo excludente ao me pocircr ponho ao mesmo tempo o outro
que excluo de mim e assim me suspendo296
Se nos voltarmos por exemplo para a contradiccedilatildeo que haacute no positivo veremos que o
positivo potildee sua identidade ao excluir de si o negativo mas nessa exclusatildeo ele se faz
negativo desse outro (o negativo excluiacutedo) e assim potildee seu outro ao mesmo tempo que o
inclui297 Dessa maneira se auto-exclui de si ao se fazer seu outro Tambeacutem com o negativo
293 Ibidem p 279 trad p 62
294 Ibidem p 279 trad p 62
295 Ibidem p 279 trad p 62
296 Ibidem p 279 trad p 62
297 Cf Ibidem p 280 trad p 63
122
se passa o mesmo a saber o negativo que exclui de si o positivo potildee-se e assim potildee seu
outro (o seu negativo que neste caso eacute o positivo) Eacute numa reflexatildeo uacutenica que se daacute o pocircr de
ambos298 Mas a contradiccedilatildeo do negativo eacute por assim dizer mais completa que a do positivo
O negativo eacute o idecircntico consigo justamente na determinaccedilatildeo do ser natildeo-idecircntico do
determinar-se como negativo ou seja no ser exclusatildeo da identidade
O positivo e o negativo satildeo portanto essa unidade dos que se excluem e
simultaneamente se tornam um o outro ldquoesse incansaacutevel desvanecer dos contrapostos neles
mesmos (Diszlig rastlose Verschwinden der Entgegengesetzten in ihnen selbst)rdquo299
Poder-se-ia pensar que o resultado da contradiccedilatildeo desses opostos seria um resultado
meramente negativo precisamente o zero (Null)300 Contudo o que efetivamente eacute aniquilado
(zu Grund geht) na contradiccedilatildeo eacute o ser-posto da auto-subsistecircncia do positivo e do negativo301
Em outras palavras o que natildeo se manteacutem eacute a auto-subsistecircncia em que cada um se potildee como
se estivessem fora da relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo que eles mantecircm com seu outro Como ser-posto
298 Cf Ibidem p 280 trad p 63
299 Ibidem p280 trad p 64 Ou ainda ldquo[] cada um eacute absolutamente o passar ou antes o transpor-setraduzir-se de si mesmo no seu contrapostordquo (ldquojedes ist schlechthin das Uebergehn oder vielmehr das sich Uebersetzen seiner in sein Gegentheilrdquo) Cf GW 11 p 280 trad p 64
300 ldquoQuando em qualquer objeto ou conceito for mostrada a contradiccedilatildeo --- e por toda a parte natildeo haacute absolutamente nada em que natildeo possa e na deva ser mostrada a contradiccedilatildeo isto eacute determinaccedilotildees opostas o abstrair do entendimento eacute o fixar-se agrave forccedila em uma soacute determinidade eacute um esforccedilo de obscurecer e de afastar a consciecircncia da outra determinidade --- quando pois tal contradiccedilatildeo eacute reconhecida costuma-se fazer a conclusatildeo ldquoLogo este objeto eacute nadardquo [Faz-se] como Zenatildeo que primeiro mostrou [a respeito] do movimento que ele se contradizia e que portanto o movimento natildeo era ou como os antigos que reconheceram o nascer e o perecer --- as duas espeacutecies do vir-a-ser --- como determinaccedilotildees natildeo-verdadeiras com a expressatildeo de que o uno isto eacute o absoluto natildeo nascia nem perecia Essa dialeacutetica fica assim simplesmente no lado negativo do resultado e abstrai do que ao mesmo tempo estaacute efetivamente presente um resultado determinado aqui um puro nada mas um nada que em si inclui um ser e igualmente um ser que nele inclui o nadardquo (ldquoWenn in irgend einem Gegestand oder Begriff der Widerspruch aufgezeigt wird (ndash und es ist uumlberall gar nichts worin nicht der Widerspruch di entgegengesetzte Bestimmungen aufgezeigt werden koumlnnen und muumlssen ndash das Abstrahiren des Verstandes ist das gewaltsame Festhalten an Einer Bestimmtheit eine Anstrengung das Bewuszligtsein der andern die darin liegt zu verdunkeln und zu entfernen) ndash wenn nun solcher Widerspruch erkannt wird so pflegt man den Schluszligsatz zu machen Also ist dieser Gegenstand Nichts wie Zeno zuerst von der Bewegung zeigte daszlig sie sich widerspreche daszlig sie also nicht sey oder wie die Alten das Entstehen und Vergehen die zwei Arten des Werdens fuumlr unwahre Bestimmungen mit dem Ausdrucke erkannten daszlig das Eine di das Absolute nicht entstehe noch vergehe Diese Dialektik bleibt so blos bei der negativen Seite des Resultates stehen und abstrahirt vom dem was zugleich wirklich vorhanden ist ein bestimmtes Resultat hier ein reines Nichts aber Nichts welches das Seyn und eben so ein Seyn welches das Nichts in sich schlieszligtrdquo) In GW 20 E sect 89 p 129 trad p 185
301 GW 11 p 281 trad p 64
123
cada lado da oposiccedilatildeo eacute um contraposto (Entgegengesetzt) mas o positivo eacute a suspensatildeo da
oposiccedilatildeo posta como natildeo-contraposto enquanto um lado ao mesmo tempo que o negativo eacute o
contraposto subsistente por si enquanto todo da oposiccedilatildeo que repousa em si Hegel denomina
de reflexatildeo em si essa relaccedilatildeo de auto-subsistecircncia a si na qual cada lado da oposiccedilatildeo se potildee
como momento distinto do outro302
A reflexatildeo se torna para si somente com a relaccedilatildeo negativa de cada um com seu outro
reflexatildeo excludente (ausschliessende Reflexion) por meio da qual o ser-posto de cada um
como relaccedilatildeo autocircnoma a si eacute suspenso (aufgehoben)303 ldquoElas se levam agrave destruiccedilatildeo (richten
sich zu Grunde) ao se determinarem como o idecircntico consigo poreacutem nisto antes como o
negativo como um idecircntico consigo que eacute relaccedilatildeo com outrordquo304
Nessa reflexatildeo excludente um lado se potildee negando o outro e ao negar seu outro ele se
potildee como negaccedilatildeo e como tal ele retorna a si a partir dessa negaccedilatildeo
ldquoEla (a reflexatildeo excludente da autonomia) eacute relaccedilatildeo a si que se suspende ela nisto
primeiro suspende o negativo e em segundo lugar potildee-se a si como negativo e esse eacute somente
aquele negativo que ela suspende no suspender do negativo ela ao mesmo tempo o potildee e
suspende A determinaccedilatildeo excludente eacute desse modo a si o outro do qual ela eacute a negaccedilatildeo o
suspender desse ser-posto natildeo eacute por conseguinte novamente o ser-posto como o negativo de
um outro mas sim o reunir-se consigo mesmo que eacute a unidade positiva consigo A autonomia
eacute assim a unidade que retorna a si por meio de sua proacutepria negaccedilatildeo visto que ela retorna a si
mediante a negaccedilatildeo de seu ser-postordquo305
302 Ibidem p 281 trad p 64
303 Ibidem p 281 trad p 65 Ou ainda ldquoEla eacute auto-subsistecircncia sendo-em-si e eacute o suspender desse ser-posto e que- eacute-para-si somente mediante esse suspender que eacute para si e de fato unidade auto-subsistente (Sie ist ansichseyende Selbststaumlndigkeit und ist das Aufheben dieses Gesetztseyens und durch diss Aufheben erst fuumlrsichseyende und in der That selbstsaumlndige Einheit) In Ibidem p 281 trad p 65
304 Ibidem p 281 trad p 65 (ldquoSie richten sich zu Grunde indem sie sich bestimmen als das mit sich identische aber darin vielmehr als das Negative als ein mit sich identisches das Beziehung auf anderes istrdquo)
305 Ibidem p 281 trad p 65 (ldquoSie ist aufhebende Beziehung auf sich sie hebt darin erstens das Negative auf und zweytens setzt sie sich als negatives und diszlig ist erst dasjenig Negative das sie aufhebt im Aufheben des Negativen setzt und hebt sie zugleich auf Die ausschliessende Bestimmung selbst ist auf diese Weise sich das Andre dessen Negation sie ist das Aufheben dieses Gesetztseyns ist daher nicht wieder Geseztseyn als das Negative eines Andern sondern ist das Zusammengehen mit sich selbst das positive Einheit mit sich ist Die Selbstaumlndigkeit ist so durch ihre eigene Negation in sich zuruumlckkehrende Einheit indem sie durch die Negation ihres Gesetztseyns in sich zuruumlckkehrtrdquo)
124
Por meio portanto dessa reflexatildeo excludente dos opostos eles se potildeem e
simultaneamente se suspendem Numa uacutenica e mesma relaccedilatildeo se afirmam e se negam
mutuamente Qual o resultado desse processo Com a negaccedilatildeo muacutetua eles certamente se
aniquilam (gehen zu Grunde) entretanto esse aspecto negativo da relaccedilatildeo natildeo seraacute o uacuteltimo e
assim predominante nessa destruiccedilatildeo a oposiccedilatildeo retornou ao mesmo tempo ao seu
fundamento (ist in seinen Grund zuruumlckgegangen)306 O retorno ao fundamento mediante a
suspensatildeo da oposiccedilatildeo natildeo ocorre sem essa relaccedilatildeo da oposiccedilatildeo a um negativo algo que
significa rebaixar (herabsetzen) as determinaccedilotildees autocircnomas positivo e negativo a o que de
fato satildeo meras determinaccedilotildees que na sua suspensatildeo (Aufhebung) reuacutenem-se
(zusammengehen) na unidade da essecircncia como fundamento ldquoMediante o suspender das
determinaccedilotildees da essecircncia que se contradizem nelas mesmas esta (a essecircncia) eacute restaurada
contudo com a determinaccedilatildeo de ser unidade reflexiva excludente unidade simples []rdquo307
O fundamento desse modo somente surge da contradiccedilatildeo apresentada na oposiccedilatildeo
autocircnoma (selbstaumlndige Gegensatz) Esta eacute o imediato o primeiro do qual se parte e na sua
suspensatildeo o fundamento vem a ser ldquoA contradiccedilatildeo resolvida308 (der aufgeloumlste Widerspruch)
eacute portanto o fundamento a essecircncia como unidade do positivo e negativordquo309
Se jaacute ressalta Hegel na oposiccedilatildeo se desenvolve a determinaccedilatildeo ateacute que se atinja a
autonomia (Selbstaumlndigkeit) a mesma contudo somente teraacute seu acabamento (Vollendung)
306 Ibidem pp 281-282 trad pp 65-66
307 Ibidem p 282 trad p 66 (ldquoDurch das Aufheben der sich an sich selbst widersprechenden Bestimmungen des Wesens ist dieses wiederhergestellt jedoch mit der Bestimmung ausschliessende Reflexionseinheit zu seyn einfache Einheit [hellip]rdquo)
308 Um dos significados do verbo aufloumlsen na liacutengua alematilde eacute resolver E resolver com o sentido de se encontrar a soluccedilatildeo de um problema por exemplo uma equaccedilatildeo matemaacutetica O mesmo verbo tambeacutem significa a dissoluccedilatildeo de algo sua desagregaccedilatildeo como no caso de uma substacircncia quiacutemica em outra ou sua anulaccedilatildeoextinccedilatildeo caso de um contrato por exemplo Com referecircncia agrave traduccedilatildeo do verbo por resolver no trecho em questatildeo parece-nos que seja a melhor soluccedilatildeo pois assim fica ressaltado esse aspecto positivo de uma unidade superior dos contraditoacuterios no fundamento Ao mesmo tempo o verbo tambeacutem significa dissoluccedilatildeo que no que respeita agrave contradiccedilatildeo eacute um significado que tambeacutem deve ser considerado visto que a contradiccedilatildeo eacute dissolvida para que assim possa entatildeo resultar uma unidade superior todavia a ressonacircncia meramente negativa de dissoluccedilatildeo talvez deixe de lado esse aspecto o mais importante de unidade dos contraditoacuterios no fundamento Aleacutem disso resolver jaacute nos daacute tambeacutem a ideacuteia de que duacutevidas incoerecircncias e contradiccedilotildees presentes num problema sejam dissolvidasdissipadas para que enfim encontremos sua resoluccedilatildeo
309 Ibidem p 282 trad p 66 (ldquoDer aufgeloumlste Widerspruch ist also der Grund das Wesen als Einheit des Positiven und Negativenrdquo)
125
no fundamento Na oposiccedilatildeo jaacute temos a relaccedilatildeo negativa e interna dos opostos relaccedilatildeo que
fornece a autonomia agrave essecircncia poreacutem essa autonomia seraacute apenas completa e acabada no
fundamento porque somente nele o negativo estaraacute efetivamente incorporado a essa reflexatildeo
das determinaccedilotildees contrapostas Eacute o que nos parece que Hegel queira dizer310 Eacute nessa
relaccedilatildeo portanto em que o negativo intrinsicamente faz dela parte que o fundamento pode
ser ldquoa identidade positiva consigo mas ao mesmo tempo como a negatividade que se
relaciona a sirdquo311 E natildeo podemos esquecer que eacute por meio dessa negatividade incorporada
ao processo que a contradiccedilatildeo se torna contradiccedilatildeo posta e eacute resolvida no fundamento312 Uma
resoluccedilatildeo na qual ldquoA oposiccedilatildeo e sua contradiccedilatildeo eacute por conseguinte tanto suprimida no
fundamento quanto conservadardquo313 O fundamento eacute a unidade dos contrapostos nessa relaccedilatildeo
negativa e contraditoacuteria que eles manteacutem entre si
ldquoA oposiccedilatildeo autocircnoma que se contradiz era jaacute portanto ela mesma o fundamento
somente que agora (como fundamento) acrescida da determinaccedilatildeo da unidade consigo
mesma que sobressai pelo fato de que os contrapostos autocircnomos cada um se suspendem e
se convertem no outro de si com isto se destruindo mas nisto ao mesmo tempo reunindo-se
consigo mesmo e desse modo no seu afundar isto eacute no seu ser-posto ou na negaccedilatildeo eacute
antes a essecircncia refletida em si idecircntica consigordquo 314
310 Ibidem p 282 trad p 67
311 Ibidem p 282 trad p 67 (ldquodie positive Identitaumlt mit sich aber die sich zugleich als die Negativitaumlt auf sich beziehtrdquo)
312 No que respeita agrave importacircncia central da dupla negaccedilatildeo ndash ou como o autor a ela se refere negaccedilatildeo autonomizada ndash para Hegel ver o ensaio de Dieter Henrich ldquoHegels Grundoperation (Eine Einleitung in die lsquoWissenschaft der Logikrsquordquo especialmente as pp 214-219 In Guzzoni Ute Der Idealismus und seine Gegenwart (Festschrift fuumlr Werner Marx) Hamburg Meiner 1976 pp 208-230
313 Ibidem p 282 trad p 67 (ldquoDer Gegensatz und sein Widerspruch ist daher im Grunde so sehr aufgehoben als erhaltenrdquo)
314 Ibidem p 282-283 trad p 67 (ldquoDer sich widersprechende selbstaumlndige Gegensatz war also bereits selbst der Grund es kam nur die Bestimmung der Einheit mit sich selbst hinzu welche dadurch hervortritt daszlig die selbstaumlndigen Entgegengesetzten jedes sich selbst aufhebt und sich zu dem andern seiner macht somit zu Grunde geht aber darin zugleich nur mit sich selbst zusammengeht also in seinem Untergange das ist in seinem Gesetztseyn oder in der Negation vielmehr erst das in sich reflectirte mit sich identische Wesen istrdquo)
126
De tudo que foi dito podemos entatildeo concluir que a contradiccedilatildeo eacute justamente o que natildeo
deve ser afastado Ela eacute ldquoa raiz de todo movimento e vitalidade somente na medida em que
algo tem a contradiccedilatildeo em si mesmo ele se movimenta tem impulso (Trieb) e atividaderdquo315
Contra o pensamento representativo o pensar do entendimento a contradiccedilatildeo natildeo
deve ser afastada Eacute por meio dela que um posto se une a seu contraposto numa unidade
negativa que teraacute como consequumlecircncia a geraccedilatildeo de um novo ser-posto Hegel assim inverte o
jogo o que antes era considerado negativo agora merece uma avaliaccedilatildeo positiva
O entendimento procurou sempre afastar a contradiccedilatildeo porque se ordena segundo uma
sintaxe na qual nada pode ser contraditoacuterio A identidade tal como estabelecida pela loacutegica
claacutessica eacute o que deve ser preservado Se haacute contradiccedilatildeo ela se resolve em um nada Em um
nada vazio vale ser lembrado
Se o ceticismo sempre teve ecircxito no seu combate ao dogmatismo eacute porque nunca se
furtou a atacar o ponto fraco do pensar de entendimento a saber que a contradiccedilatildeo sempre
pode ser obtida a partir da produccedilatildeo de antinomias Aleacutem disso o entendimento se apoacuteia em
uma ontologia que inviabiliza a sua proacutepria manutenccedilatildeo Tanto eacute assim que o ceacutetico consegue
reiteradamente estabelecer uma contradiccedilatildeo a partir daquilo que eacute posto unilateralmente pelo
discurso dogmaacutetico
Toda forma de oposiccedilatildeo que se apoacuteia na identidade abstrata de entendimento procura
sempre considerar o negativo como aquilo que natildeo existe ou para usar o vocabulaacuterio de
Hegel como um natildeo-ser Se algo eacute ele eacute idecircntico a si mesmo independente da relaccedilatildeo com
um outro O positivo natildeo se conecta ao negativo para se manter como positivo Ele eacute Esse
algo que eacute entretanto nunca eacute independente de sua relaccedilatildeo com um outro A um posto
determinado sempre se pode contrapor um outro determinado Em outras palavras uma
determinaccedilatildeo de entendimento eacute limitada por uma outra e desse modo mostra-se seu caraacuteter
finito Mas por que as determinaccedilotildees finitas quando no acircmbito do entendimento satildeo
relacionadas acabam finalmente por se contradizer Segundo Hegel a contradiccedilatildeo se efetiva
devido a esse ser finito apresentar-se como um absoluto O finito que como veremos a seguir
eacute aquilo que estaacute fadado a perecer no acircmbito do entendimento eacute encarado como se fosse um
absoluto O resultado disso eacute que a contradiccedilatildeo precisa ser evitada Se o finito fosse
315 Ibidem p 286 trad p 72 (ldquo[] ist die Wurzel aller Bewegung und Lebendigkeit nur insofern etwas in sich selbst einen Widerspruch hat bewegt es sich hat Trieb und Thaumltigkeitrdquo)
127
considerado como o que ele realmente eacute a saber como ldquoa oposiccedilatildeo que se contradiz em si
mesma (an sich selbst widersprechende Gegensatz)rdquo 316 a contradiccedilatildeo natildeo precisaria ser
evitada e o ceticismo natildeo seria mais considerado o fantasma que assombra a filosofia
Vejamos agora a partir de uma anaacutelise das categorias de finito e infinito como se
constitui essa gramaacutetica ontoloacutegica que precisa ser abandonada caso se pretenda que a
contradiccedilatildeo e o ceticismo natildeo sejam mais vistos como inimigos mortais da filosofia que tanto
horror causam no pensamento natildeo-especulativo
316 Ibidem p 290 trad p 77
128
O finito e o infinito
Para que possamos compreender o que eacute o finito tomaremos como ponto de partida a
categoria do ser-aiacute como qualidade tal como exposta na Doutrina do Ser na Enciclopeacutedia317
Assim veremos no sect 90 que o ser-aiacute unido com uma determinidade eacute a qualidade318
Na qualidade jaacute estaacute contida a negaccedilatildeo como um ser-aiacute e algo A negaccedilatildeo eacute o ser-outro
(Anderssein) desse ser-aiacute que eacute a qualidade Eacute ela que fornece a determinaccedilatildeo proacutepria da
qualidade O ser-aiacute eacute algo porque ele eacute determinado ou seja porque ele eacute um algo que natildeo
pode ser confundido com outro algo Ele eacute portanto este algo e natildeo eacute aquele outro O ser-aiacute
estaacute delimitado ele possui um limite A negaccedilatildeo diraacute Hegel eacute esse limite (Grenze) Essa
limitaccedilatildeo que atravessa esse algo faz com que ele seja finito O que natildeo eacute difiacutecil de se
compreender pois o algo por ser limitado necessariamente remete a um outro que o limita ldquoo
limite do algo se lhe torna objetivo no outrordquo319 O ser-aiacute se determina ao avanccedilar ateacute o ponto
em que se defronta com seu outro que eacute o seu limite
O ser-aiacute por ser limitado ao mesmo tempo tambeacutem eacute finito o que traz por
consequumlecircncia que ele estaacute destinado a ter um fim Segundo Hegel eacute proacuteprio das coisas finitas
o perecer (vergehen) ldquoo ser das coisas finitas como tal consiste em ter o germe do perecer
como seu ser-em-si (Insichsein) a hora de seu nascimento eacute a hora de sua morterdquo320 Se algo
perece eacute porque ele se altera o que implica numa negaccedilatildeo constante daquilo que se eacute ateacute o seu
fim O finito desse modo se altera porque ele se nega e esse negar-se significa que ele vai
aleacutem de si mesmo Eacute por esse motivo que Hegel afirma que as coisas finitas se relacionam
317 Cf GW 20 p 129 e ss trad p 186 e ss
318 Ibidem sect 90 p 129 trad p 186
319 Werke 8 E sect 92 Adendo p 197 trad p 189 (ldquo[hellip] dem Etwas wird im Anderen seine Grenze objektivrdquo) Ou ainda ldquoQuando noacutes dizemos das coisas que elas satildeo finitas com isto tambeacutem se entende que elas natildeo somente possuem uma determinidade a qualidade natildeo somente como realidade e determinaccedilatildeo que eacute em si que elas natildeo satildeo apenas limitadas ndash elas ainda tem fora de seu limite um ser-aiacute ndash mas que antes tambeacutem o natildeo-ser constitui sua natureza seu serrdquo (ldquo Wenn wir von den Dingen sagen sie sind endlich so wird darunter verstanden daszlig sie nicht nu eine Bestimmtheit haben die Qualitaumlt nicht nur als Realitaumlt und ansichseyende Bestimmung daszlig sie nicht bloszlig begrenzt sind sie haben so noch Daseyn ausser ihrer Grenze ndash sondern daszlig vielmehr das Nichtseyn ihre Natur ihr Seyn ausmacht rdquo) In GW 21 p 116 trad p 166
320 GW 21 p 116 trad p 166 (ldquodas Seyn der endlichen Dinge als solches ist den Keim des Vergehens als ihr Insichseyn zu haben die Stude ihrer Geburt ist die Stunde ihres Todesrdquo)
129
negativamente a si mesmas e nesse negar se remetem para aleacutem de si mesmas e de seu ser
(sich uumlber sich uumlber ihr Sein hinauszuschicken)321
Esse ir aleacutem de si mesmo do finito esse ir para um outro natildeo acontece como se esse
outro fosse exterior e indiferente ao algo a que estaacute vinculado Caso assim ocorresse a relaccedilatildeo
entre o algo e o outro natildeo teriacuteamos a efetiva negaccedilatildeo do finito E eacute isto que se passa quando o
finito natildeo eacute efetivamente negado e portanto natildeo vai aleacutem de si mesmo no seu outro que natildeo
seja indiferente a ele O que aiacute acontece eacute que o finito eacute negado tem um fim E entatildeo um novo
finito surge no lugar do anterior Esse novo finito tambeacutem eacute negado e assim um outro finito
surge e esse processo se reproduz de modo infinito Hegel denomina de maacute infinitude esse
processo322
ldquoA negaccedilatildeo em geral a qualidade o limite podem se conciliar com seu outro o ser-
aiacute tambeacutem o nada abstrato eacute abandonado para si como abstraccedilatildeo mas a finitude eacute como a
negaccedilatildeo fixada em si e estaacute por conseguinte rudemente defronte de seu afirmativo O finito
pode se deixar levar no fluxo ele eacute isto mesmo ser determinado ao seu fim mas somente ao
seu fim -- eacute antes o recusar se deixar levar afirmativamente ao seu afirmativo ao infinito e se
deixar ligar a ele encontra-se posto como inseparaacutevel de seu nada e com isto toda
conciliaccedilatildeo com seu outro com o afirmativo estaacute cortadardquo323
De um lado portanto temos um finito negado e de outro lado um finito afirmado O
finito assim natildeo tem inscrito nele mesmo o perecer Ele eacute tatildeo positivo quanto o outro finito
que se afirma no lugar daquele que foi negado O finito torna-se assim um absoluto Essa eacute a
321 Ibidem p 116 trad p 166
322 GW 20 E sect 94 p 130 trad p 189
323 GW 21 p 117 trad p 166-167 (ldquodie Negation uumlberhaupt Beschaffenheit Grenze vertragen sich mit ihrem Andern dem Daseyn auch das Abstracte Nichts wird fuumlr sich als Abstraction aufgegeben aber Endlichkeit ist die als an sich fixirte Negation und steht daher seinem Affirmativen schroff gegenuumlber Das Endliche laumlsst sich so in Fluszlig wohl bringen es ist selbst diszlig zu seinem Ende bestimmt zu seyn aber nur zu seinem Ende -- es ist vielmehr das Verweigern sich zu seinem Affirmativen dem Unendlichen hin affirmativ bringen mit ihm sich verbinden zu lassen es ist also untrennbar von seinem Nichts gesetzt und alle Vesoumlhnung mit seinem Andern dem Affirmativen dadurch abgeschnittenrdquo)
130
conclusatildeo a que chega Hegel324 Temos aqui um finito absolutizado E por meio dessa
sucessatildeo de finitos absolutizados como que perfilados numa linha se vai ao infinito
Com efeito a alternacircncia dos finitos soacute eacute possibilitada devido agrave separaccedilatildeo do algo e de
seu outro Esse finito assim tem a contradiccedilatildeo afastada de si Sem que um deles seja negado
natildeo se pode afirmar o outro Nesses termos eacute efetivamente impossiacutevel que a infinitude seja
outra coisa que uma sucessatildeo de finitos que nunca perecem
Para que a verdadeira infinitude venha agrave luz eacute preciso que o finito efetivamente
pereccedila Do ponto de vista da loacutegica que regula o entendimento natildeo pode ser realizado o
efetivo perecer do finito Este finito determinado de acordo com o princiacutepio de natildeo-
contradiccedilatildeo se afirma sem levar em conta seu negativo Seu outro o nega apenas
exteriormente Dentro desse quadro relacionar um finito qualquer ao seu outro isto eacute aquilo
que o nega significa estabelecer uma contradiccedilatildeo mas uma contradiccedilatildeo que natildeo se resolve
positivamente Os contraditoacuterios se anulam sem que se vaacute aleacutem disso um nada vazio e
abstrato
Mas eacute justamente porque o finito eacute unilateral que ele natildeo pode se afastar da
contradiccedilatildeo Ele eacute o que eacute por ser determinado por um outro que o limita E essa relaccedilatildeo dele
com seu outro natildeo eacute exterior O finito eacute aquilo que comporta em si seu outro Nessa relaccedilatildeo a
si ele se nega e torna-se outro a partir dele mesmo O que Hegel chama de negaccedilatildeo da
negaccedilatildeo325 Nessa negaccedilatildeo interna do finito da qual surge outro o finito se torna infinito 326
324 Cf ldquoEacute uma afirmaccedilatildeo expressa que o finito eacute inconciliaacutevel e natildeo unificaacutevel com o infinito que o finito eacute posto pura e simplesmente contra o infinito Ao infinito eacute atribuiacutedo o ser o ser absoluto perante ele se manteacutem afirmado o finito como o negativo do mesmo natildeo podendo ser unificado com o absoluto permanece ele absoluto por seu lado tambeacutemrdquo (ldquoEs ist die ausdruumlckliche Behauptung daszlig das Endliche mit dem Unendlichen unvertraumlglich und unvereinbar sey das Endliche dem Unendlichen schlechthin etgegen gesetzt sey Dem Unendlichen ist Seyn absolutes Seyn zugeschrieben ihm gegenuumlber bleibt so das Endliche festgehalten als das Negative desselben unvereinbar mit dem Unendlichen bleibt es absolut auf seiner eigenen Seiterdquo) In GW 21 p 117-118 trad p 167
325 Cf GW 21 p 135 trad p 188 Aqui diga-se de passagem ocorre a mesma dialeacutetica que acabamos de observar na contradiccedilatildeo especulativa e que a seguir veremos no meacutetodo (cap 5)
326 A respeito do surgimento do infinito a partir do finito e do relacionamento interno de ambos eacute oportuno retomar o seguinte comentaacuterio de Andreas Arndt ldquoComo eacute essa a identidade em si refletida de si mesma e do contraposto (Entgegensetzung) na medida em que ela se estende por sobre si mesma e seu contraacuterio (Gegenteil) entatildeo eacute assim tambeacutem o infinito concebido que ele se estende por sobre si mesmo e seu contraacuterio Esse resultado natildeo deve poreacutem basear-se numa prevalecircncia da identidade ou da infinitude mas sim que o finito deve a partir dele mesmo e sem coaccedilatildeo exterior ser suspenso na infinitude afirmativa e nesta descobrir (herausfinden) a
131
Capiacutetulo 2 - O meacutetodo dialeacutetico-especulativo
O dialeacutetico eacute o pulso da vida em geral
Hegel327
Como tivemos oportunidade de observar nas suas Preleccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia
mais especificamente quando tratou do ceticismo Hegel se referia a termos como conceito
absoluto ideacuteia especulativa ou ideacuteia filosoacutefica mas sem efetuar uma exposiccedilatildeo mais precisa
do significado desses termos em sua filosofia Essa exposiccedilatildeo laacute natildeo se encontra obviamente
por natildeo se tratar ali do local adequado para o desenvolvimento da mesma Todavia no
contexto em que elas aparecem a saber a discussatildeo a respeito da filosofia ceacutetica podemos
mais ou menos vislumbrar qual significado esses termos possuem em sua filosofia A tiacutetulo
meramente rememorativo o contexto no qual apareciam esses termos dizia respeito agrave
investigaccedilatildeo do relacionamento porventura existente entre o ceticismo (o antigo) e a filosofia
especulativa Que o ceticismo eacute uma filosofia ambivalente no sentido de que pode ser
aproximada do pensamento especulativo e ao mesmo tempo tambeacutem ser afastada dessa
forma filosoacutefica
Hegel procurava entatildeo mostrar que o ceticismo consistia numa forma filosoacutefica que
poderia ser incorporada agrave filosofia especulativa Uma hipoacutetese que eacute bem pouco provaacutevel que
o ceacutetico pudesse considerar como vaacutelida Grosso modo a especulaccedilatildeo parecer-lhe-ia apenas
mais uma forma bastante extravagante de dogmatismo
Sem pretender avanccedilar numa discussatildeo acerca da viabilidade ou natildeo da incorporaccedilatildeo do
ceticismo agrave filosofia especulativa nem dos motivos que talvez levassem a convencer o ceacutetico
da aceitaccedilatildeo dessa hipoacutetese ou dos motivos que embasassem sua recusa interessa-nos aqui
resoluccedilatildeo da contradiccedilatildeo no finitordquo in ARNDT A Dialektik und Reflexion zur Rekonstruktion des Vernunftbegriffs Hamburg Meiner 1994 p 190
327 Vorlesungen uumlber Logik und Metaphysik Heidelberg 1817 Mitgeschrieben von FAGood ed Karen Gloy In Vorlesungen Ausgewaumlhlte Nachschriften und Manuskripte Band 11 Hamburg Meiner 1992 p 13
132
retomar a Hegel na sua Ciecircncia da Loacutegica no ponto especiacutefico onde se faz a exposiccedilatildeo do
meacutetodo especulativo a saber o capiacutetulo final do livro a Ideacuteia Absoluta328 E antes de
continuar eacute preciso deixar consignado que eacute nesse capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica que
Hegel expotildee em detalhes o significado e o funcionamento desse meacutetodo especulativo e que
segundo o que laacute ele diz eacute o que podemos apreender torna possiacutevel agrave filosofia permanecer
imune aos ataques do ceticismo Apenas como menccedilatildeo Hegel chega inclusive a mostrar nesse
mesmo capiacutetulo como por meio do meacutetodo a filosofia se potildee a salvo da criacutetica ceacutetica
mediante o tropo da regressatildeo ao infinito329 e tambeacutem no que se refere agrave discussatildeo acerca do
comeccedilo da filosofia do tropo da hipoacutetese330 Na medida em que seja necessaacuterio faremos
remissatildeo a outros momentos da Doutrina do Conceito parte da Loacutegica na qual se insere o
capiacutetulo haacute pouco mencionado A escolha desse modo de proceder se deve ao fato de que
dado seu proacuteprio caraacuteter de fechamento do livro e dessa parte especiacutefica da Loacutegica ndash a Loacutegica
Subjetiva ndash tornasse necessaacuteria e mais clara a compreensatildeo acerca do que seraacute analisado a
partir da referecircncia a outros momentos da mesma Doutrina do Conceito
Vistas as coisas do acircngulo meramente formal a Doutrina do Conceito compotildee a terceira
parte da Ciecircncia da Loacutegica apoacutes a Doutrina do Ser e a Doutrina da Essecircncia
respectivamente Mas o que nos importa reter dessa posiccedilatildeo derradeira da Doutrina do
Conceito na economia do texto da Ciecircncia da Loacutegica eacute o seu significado filosoacutefico preciso o
conceito somente eacute tratado na terceira parte da obra pois sua implementaccedilatildeo estaacute relacionada
e dependente dos desdobramentos dialeacuteticos ocorridos nos dois momentos anteriores da
mesma Loacutegica ndash os jaacute citados Doutrina do Ser e Doutrina da Essecircncia Como Hegel assinala
em vaacuterias passagens da Ciecircncia da Loacutegica e tambeacutem da Loacutegica da Enciclopeacutedia ldquoo conceito
eacute assim a verdade do ser e da essecircncia [] Enquanto o conceito se demonstrou como a
328 Cf GW 12 pp 236-253
329 Cf HP I 170-172
330 Cf HP I 173-174
133
verdade do ser e da essecircncia que a ele retornaram os dois como ao seu fundamento o
conceito inversamente se desenvolveu a partir do ser como seu fundamentordquo331
A citaccedilatildeo de Hegel acima feita confirma o que haviacuteamos haacute pouco dito que esse terceiro
momento da Loacutegica a Doutrina do Conceito surge como resultado dos desdobramentos
dialeacuteticos anteriores ndash ou na liacutengua hegeliana de um processo de determinaccedilatildeo que no caso eacute
um processo de autodeterminaccedilatildeo ndash ocorridos na Doutrina do Ser e na Doutrina da Essecircncia
Mas o que eacute contudo mais interessante e agrave primeira vista perturbador eacute o fato de que o
conceito seja considerado o fundamento do ser e da essecircncia Como pode ser possiacutevel que o
fundamento somente venha a aparecer ao final
Da perspectiva do entendimento o que comumente acontece eacute que o fundamento de uma
ciecircncia ou ainda de modo mais simples de um argumento qualquer seja posto logo no iniacutecio
e entatildeo a partir dele teremos por exemplo o desenvolvimento de uma ciecircncia ou de um
argumento A questatildeo eacute que utilizar esse tipo de procedimento no mais das vezes torna-nos
vulneraacuteveis agraves investidas do ceticismo Como impedir que um fundamento qualquer possa
estar protegido do ataque a ele feito por meio de algum dos tropos ceacuteticos
Cremos que Hegel esteja ciente dessa fraqueza da maneira tradicional de fundamentaccedilatildeo
perante a criacutetica que a mesma possa sofrer por parte do ceticismo Jaacute no primeiro paraacutegrafo da
Enciclopeacutedia ele chama a atenccedilatildeo para esse problema do fundamento ao se referir agrave
dificuldade de se instituir um comeccedilo para a filosofia ldquoporque um comeccedilo como algo
imediato faz sua pressuposiccedilatildeo ou melhor ele mesmo eacute uma pressuposiccedilatildeordquo332 Ora o que
Hegel natildeo diz mas aiacute estaacute impliacutecito eacute apenas que da mesma maneira que posso fazer uma
331 Cf GW 20 E sect159 p 174 trad cit p 288 (ldquoDer Begriff ist hiemit die Wahrheit des Seyns und des Wesens [hellip] Indem der Begriff sich als die Wahrheit des Seyns und Wesens erwiesen hat welche beide in ihm als in ihren Grund zuruumlckgegangen sind so hat er umgekehrt sich aus dem Seyn als aus seinem Grunde entwickeltrdquo) Ou ainda ldquoSob este aspecto o conceito eacute em primeiro lugar considerado em geral como o terceiro com respeito ao ser e agrave essecircncia ao imediato e agrave reflexatildeo Ser e essecircncia satildeo nessa medida os momentos de seu vir-a-ser poreacutem ele eacute o fundamento e a verdade deles como a identidade na qual soccedilobraram (untergegangen sind) e estatildeo contidos Eles estatildeo nele contidos porque ele eacute seu resultado mas natildeo estatildeo mais como ser e essecircncia eles soacute possuem essa determinaccedilatildeo na medida em que natildeo retornaram a essa sua unidaderdquo (ldquoDer Begriff ist von dieser Seite zunaumlchst uumlberhaupt als das Dritte zum Seyn und Wesen zum Unmittelbaren und zur Reflexion anzusehen Seyn und Wesen sind insofern die Momente seines Werdens er aber ist ihre Grundlage und Wahrheit als die Identitaumlt in welcher sie untergegangen und enthalten sind Sie sind in ihm weil er ihr Resultat ist enthalten aber nicht mehr als Seyn und als Wesen diese Bestimmung haben sie nur insofern sie noch nicht in diese ihre Einheit zuruumlckgegangen sindrdquo) Cf GW 12 p 11 trad p 249
332 Cf GW 20 E sect 1 p 39 trad cit p 40 (ldquoda ein Anfang als ein Unmittelbares eine Voraussetzung macht oder vielmehr selbst eine solche istrdquo)
134
pressuposiccedilatildeo um outro pode pressupor algo que se contraponha agrave primeira pressuposiccedilatildeo e
assim natildeo haacute como se decidir por uma ou por outra sem que essa decisatildeo seja considerada
arbitraacuteria
Hegel pretende que o modo de proceder com respeito agrave fundamentaccedilatildeo na Ciecircncia da
Loacutegica natildeo sofra da mesma fraqueza que acabou por levar o entendimento a tornar-se
vulneraacutevel agrave criacutetica ceacutetica Como ele declara no iniacutecio da Doutrina do Conceito o conceito333
apesar de somente vir ao final constitui o fundamento absoluto mas que esse fundamento
necessita ter-se feito como fundamento334
O conceito eacute portanto o fundamento mas ele somente poderaacute vir a lume como
fundamento a partir de um processo dialeacutetico que comeccedila com o ser e passa pela essecircncia Eacute
justamente no uacuteltimo capiacutetulo da Loacutegica a Ideacuteia Absoluta que Hegel nos apresenta esse
meacutetodo dialeacutetico que eacute o motor e o fundamento natildeo soacute de todo o desenvolvimento da Loacutegica
mas tambeacutem da sua filosofia como um todo Ocorre que esse fundamento precisa ser
justificado e ldquouma tal intelecccedilatildeo eacute ela mesma um conhecer filosoacutefico que portanto soacute incide
no interior da filosofia Uma explicaccedilatildeo preacutevia deveria por isso ser uma explicaccedilatildeo natildeo-
filosoacutefica e natildeo poderia ser mais que um tecido de pressuposiccedilotildees asseveraccedilotildees e
raciociacutenios isto eacute de afirmaccedilotildees contingentes contra as quais se poderiam sustentar com o
mesmo direito afirmaccedilotildees opostasrdquo335
Com efeito qualquer forma de explicaccedilatildeo preacutevia a respeito do fundamento implicaria que
jaacute se partisse de algo dado e injustificado sujeito portanto a ser combatido por uma outra
afirmaccedilatildeo que a ela se contraponha com o mesmo direito que a primeira Natildeo haacute como natildeo
notar nessa declaraccedilatildeo de Hegel a preocupaccedilatildeo com um possiacutevel ataque ceacutetico por meio do
333 Quando nos referimos a conceito tambeacutem podemos entender esse termo como significando natildeo apenas o conceito em sentido estrito tal como exposto na mesma Doutrina do Conceito mas tambeacutem que esse termo abranja todas as configuraccedilotildees especiacuteficas do conceito nesta terceira parte da Loacutegica ndash assim como na Doutrina do Ser e na Doutrina da Essecircncia ndash afinal a ideacuteia absoluta tambeacutem eacute conceito e eacute o que Hegel chamaraacute de o conceito adequado
334 Cf GW 12 p 11 trad p 249
335 Cf GW 20 E sect10 p 50trad cit p 49 (ldquoEine solche Einsicht ist aber selbst philosophisches Erkennen das daher nur innerhalb der Philosophie faumlllt Eine vorlaumlufige Explication wuumlrde hiemit eine unphilosophische seyn sollen und koumlnnte nicht mehr seyn als ein Gewebe von Voraussetzungen Versicherungen und Raisonnements di von zufaumllligen Behauptungen denen mit demselben Rechte die entgegengesetzten gegenuumlber versichert werden koumlnnenrdquo)
135
exerciacutecio daquilo que se poderia chamar de ldquoprinciacutepio programaacutetico do pirronismordquo opor a
todo argumento ou proposiccedilatildeo o argumento ou proposiccedilatildeo que se lhe contraponha336
A justificaccedilatildeo do fundamento eacute a maneira que o filoacutesofo encontra para evitar que a
filosofia caia viacutetima das aporias ceacuteticas Nesse contexto o comeccedilo desse processo dialeacutetico
que termina com o estabelecimento do fundamento absoluto pode ser considerado como o faz
Hegel condiccedilatildeo a partir da qual se chega ao fundamento todavia essa condiccedilatildeo que eacute o ser
natildeo eacute o incondicionado em-si e para-si337 A este soacute se alcanccedila ao final Esse comeccedilo
portanto natildeo eacute o incondicionado que condicionaria o saber dele derivado Ele eacute apenas a
condiccedilatildeo da qual se parte para ao final do percurso alcanccedilar o fundamento absoluto
Mas entatildeo algueacutem poderia perguntar De que caraacuteter se reveste esse ser que eacute o comeccedilo e
que natildeo o torna viacutetima do ceticismo A um ser posto diria entatildeo o ceacutetico se pode contrapor
um outro com o mesmo direito A resposta de Hegel eacute a seguinte este ser do qual se parte eacute
completamente indeterminado isto eacute natildeo comporta nenhuma determinaccedilatildeo em si mesmo e
nesse sentido ele eacute tambeacutem completamente abstrato338 Essa falta de determinaccedilatildeo interna e
externa que assim permite consideraacute-lo um puro imediato eacute a ldquocondiccedilatildeordquo de que a nosso ver
Hegel utiliza para afastar a filosofia de um ataque ceacutetico O comeccedilo estaria passiacutevel de ser
criticado pelo ceacutetico caso fosse um mediatizado quer dizer caso contivesse em si uma
determinaccedilatildeo algo que acarretaria a existecircncia de uma relaccedilatildeo de um para com um outro de
um determinado relacionado a outro determinado Dessa maneira natildeo teriacuteamos efetivamente
um comeccedilo pois um comeccedilo que eacute o ser no qual jaacute houvesse um conteuacutedo seria jaacute mediado
e desse modo passiacutevel da criacutetica ceacutetica
Eacute curioso notar que Hegel chame a esse puro ser imediato e indeterminado de absoluto
Mas absoluto aqui natildeo significa que estejamos na posse daquele incondicionado do qual se
derive o sistema assim como poderia ocorrer pelo menos eacute o que nos parece dizer Hegel aos
filoacutesofos dogmaacuteticos O comeccedilo tem de ser absoluto no sentido de que ldquoele natildeo permite nada
pressupor natildeo deve ser mediado por nada nem ter um fundamentordquo339 O absoluto ou o puro
336 Cf HP I 12
337 Cf GW 12 p 22 tr p263
338 Cf GW 21 59 tr p 94
339 Cf GW 21 56 trad p 91 (ldquo[] er darf so nichts voraussetzen muszlig durch nichts vermittelt seyn noch einen Grund habenrdquo) Ou ainda ldquoQue o comeccedilo comeccedilo da filosofia eacute dele natildeo pode ser tirado propriamente nenhuma determinaccedilatildeo mais precisa ou um conteuacutedo positivo para o mesmo Pois aqui no comeccedilo onde a coisa
136
ser portanto eacute o que natildeo estaacute a nada relacionado mas nessa sua indeterminaccedilatildeo ele eacute ao
mesmo tempo unilateral340 Como veremos adiante por meio da exposiccedilatildeo do meacutetodo essa
unilateralidade seraacute na terminologia da especulaccedilatildeo hegeliana suspensa mediante a
autodeterminaccedilatildeo dialeacutetica desse ser Eacute somente com a exposiccedilatildeo do meacutetodo da filosofia
especulativa que teremos talvez condiccedilotildees de melhor compreender o que eacute esse comeccedilo ao
mesmo tempo unilateral e absoluto e que aleacutem disso por estarmos fora do ciacuterculo do
entendimento estamos eacute o que pretende Hegel fora do alcance da criacutetica ceacutetica
Toda essa longa digressatildeo acerca do porquecirc o conceito constitui o terceiro momento da
Ciecircncia da Loacutegica obrigou-nos a que nos remetecircssemos a abordar a temaacutetica da
fundamentaccedilatildeo da filosofia em Hegel Desse modo pudemos comeccedilar a compreender porque
na Loacutegica hegeliana o fundamento somente se estabelece ao final apoacutes um processo dialeacutetico
de justificaccedilatildeo que tem seu iniacutecio no puro ser indeterminado Se o conceito eacute a verdade do ser
e da essecircncia na unidade de ambos no mesmo conceito pareceria estranho que se comeccedilasse
com algo que pressupotildee o conhecimento do que sejam ser e essecircncia ou como assinala Hegel
ldquoentatildeo surgiria a questatildeo do que se entende por ser e essecircncia e como os dois termos vecircm a
condensar-se na unidade do conceitordquo341
O conceito como ideacuteia absoluta fundamenta regressivamente todas as etapas do percurso
da Loacutegica Como meacutetodo estaacute na base do processo dialeacutetico que se desenrola do ser ateacute a
ideacuteia absoluta todavia soacute temos conhecimento do que eacute o meacutetodo a partir desse processo de
justificaccedilatildeo do mesmo por meio do desdobrar-se do seu conteuacutedo que nada menos eacute que o
sistema do loacutegico342
mesma ainda natildeo estaacute aiacute-presente a filosofia eacute uma palavra vazia ou uma qualquer representaccedilatildeo suposta natildeo justificadardquo (ldquoDaszlig der Anfang Anfang der Philosophie ist daraus kann eigentlich auch keine naumlhere Bestimmung oder ein positiver Inhalt fuumlr denselben genommen werden Denn die Philosophie ist hier im Anfange wo die Sache selbst noch nicht vorhanden ist ein leeres Wort oder irgend eine angenommene ungerechtfertigte Vorstellungrdquo) In GW 21 59 trad p 94
340 ldquoMas ele precisa ser do mesmo modo tomado essencialmente na sua unilateralidade de ser o puro-imediato mesmo porque ele aqui estaacute como comeccedilordquo (ldquoAber er muszlig ebenso wesentlich nur in der Einseitigkeit das Rein-Unmittelbare zu seyn genommen werden eben weil es hier als der Anfang istrdquo) In GW 21 59 trad p 94
341 Cf Werke 8 E sect159 Adendo p 305 trad citp 289 (ldquo[]so entstaumlnde die Frage was man sich unter dem Sein und was unter dem Wesen zu denken hat und wie diese beiden dazu kommen in die Einheit des Begriffs zusammengefaszligt zu werdenrdquo)
342 Cf GW 20 E sect237 pp 228-229 trad cit p 367
137
Dentro do contexto das anaacutelises precedentes podemos agora compreender porque a
exposiccedilatildeo do meacutetodo somente seja feita no capiacutetulo final do livro Cabe portanto agora
tratar mediante a anaacutelise do capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica ndash a Ideacuteia Absoluta ndash de
compreender o significado do meacutetodo especulativo meacutetodo pelo qual a filosofia eacute o que
almeja Hegel potildee-se entre outras coisas a salvo da criacutetica do ceticismo ao dogmatismo
De acordo com o exposto ficou consignado que a determinaccedilatildeo da ideacuteia ou mais
precisamente da ideacuteia absoluta envolveu um processo dialeacutetico de determinaccedilatildeo
consubstanciado no todo do percurso da Ciecircncia da Loacutegica343 Essa ideacuteia que eacute como jaacute
vimos o fundamento da Loacutegica carrega em si todas as determinaccedilotildees desdobradas no
decorrer do processo O interesse principal da filosofia eacute a ideacuteia absoluta pois esta eacute seu uacutenico
objeto e conteuacutedo Cabe agrave filosofia reconhececirc-la nas diversas configuraccedilotildees que ela assume
no seu processo de autodeterminaccedilatildeo ou particularizaccedilatildeo Mas a ideacuteia absoluta todavia ainda
que determinada por todas as figuras apresentadas no curso da Loacutegica344 mostra-se
determinada enquanto ideacuteia absoluta como forma
Nessa sua determinaccedilatildeo de forma que faz com que a ideacuteia seja portanto ldquopura e
simplesmente como a ideacuteia universalrdquo345 natildeo tem ela como forma uma oposiccedilatildeo ao conteuacutedo
como se este fosse apenas como um outro e como um dado perante a forma e que a ela se
relacionasse346 Em outras palavras a forma natildeo eacute apenas uma pura forma abstrata que tem
diante de si e em oposiccedilatildeo um conteuacutedo dado qualquer Apesar da ideacuteia absoluta apresentar-se
na sua determinidade peculiar de forma isto natildeo significa eacute o que veremos a seguir que seu
conteuacutedo seja composto de um material tomado dalhures e completamente desvinculado do
processo de autodeterminaccedilatildeo da ideacuteia Ela estaacute na origem desse processo de determinaccedilatildeo do
343 Cf GW 12 p 237 trad p 561
344 ldquoA ideacuteia como unidade da ideacuteia subjetiva e da objetiva eacute o conceito da ideacuteia para o qual a ideacuteia como tal eacute o objeto para o qual o objeto eacute ela um objeto em que vieram reunir-se todas as determinaccedilotildeesrdquo In GW 20 E sect236 p 228 trad cit p 366
345 Cf GW 12 p 237 trad p 561 (ldquoals die schlechthin allgemeine Ideerdquo)
346 Cf Ibidem p 237 trad p 561
138
conteuacutedo mas considerada contudo na sua pura essecircncia como ela se encontra incluiacuteda na
mais simples identidade em seu conceito a mesma ainda natildeo se fez aparecer como
determinaccedilatildeo da forma347 A Loacutegica segundo Hegel representa o automovimento da ideacuteia
absoluta mas que nesse efetivo movimentar-se a ideacuteia estaacute presente apenas como aquilo que
impulsiona348 o processo e na medida em que este se cristaliza em formas determinadas Eacute
como se a ideacuteia jaacute natildeo mais aiacute estivesse assim como a palavra originaacuteria ldquoque eacute uma
exteriorizaccedilatildeo mas uma tal que como exterior imediatamente desaparece na medida
justamente que existerdquo349
Ainda que preliminarmente acabamos de observar a existecircncia de uma imbricaccedilatildeo muacutetua
entre forma e conteuacutedo na ideacuteia absoluta mas o que interessa agora considerar pela anaacutelise do
meacutetodo diz respeito a o que eacute essa forma que constitui a ideacuteia e aleacutem disso uma forma que
natildeo pode ser distinguida de seu conteuacutedo mas que na sua apresentaccedilatildeo como meacutetodo seu
conteuacutedo natildeo estaacute ainda desdobrado Isto somente ocorreraacute como decorrecircncia do processo de
determinaccedilatildeo dessa forma
Segundo Hegel o meacutetodo como forma e ideacuteia universal natildeo pode ser confundido
como um simples modo de conhecer entre outros Ele eacute dotado de uma abrangecircncia bem
maior e para ser mais preciso como ldquoa alma de toda objetividade e todo conteuacutedo
determinado somente tem sua verdade na formardquo350 O meacutetodo como veremos eacute bem mais
que um simples modo de conhecer que um simples modo de conhecer determinados
conteuacutedos Ele ldquoeacute o conceito que se sabe a si mesmo que tem a si mesmo por objeto como o
absoluto tanto subjetivo quanto objetivo por conseguinte como o puro corresponder do
conceito e de sua realidade como uma existecircncia que eacute ele (o conceito) mesmordquo351
347 Cf Ibidem p 237 trad p 560
348 Vale notar que Hegel tambeacutem chama a ideacuteia absoluta de supremo e uacutenico impulso (houmlchster und einziger Trieb) Cf Ibidem p 238 trad cit p 562
349 Cf GW 12 p 237 trad 560 (ldquodas eine Aeusserung ist aber eine solche die als Aeusseres unmittelbar wieder verschwunden ist indem sie istrdquo)
350 Ibidem p 237 trad p 561 (ldquo[hellip] die Seele aller Objectivitaumlt ist und aller sonst bestimmte Inhalt seine Wahrheit allein in der Form hat rdquo)
351 Ibidem p 238 trad p 561 (ldquoist daraus als der sich selbst wissende sich als das Absolute sowohl Subjective als Objective zum Gegenstande habende Begriff somit als das reine Entsprechen des Begriffs und seiner Realitaumlt als eine Existenz die er selbst ist hervorgegangen rdquo)
139
Mas antes de prosseguir na anaacutelise da Ideacuteia Absoluta talvez seja necessaacuterio retroceder
um pouco na Loacutegica e ainda que sumariamente tratar do significado do conceito de conceito
e tambeacutem do significado de ideacuteia na filosofia hegeliana Tal remissatildeo aos momentos da
Loacutegica no qual satildeo expostos e comentados esses termos eacute relevante na medida em que assim
ficaraacute mais claro o motivo pelo qual a Ideacuteia Absoluta ndash ou o meacutetodo ndash seja considerada o
conceito que sabe a si mesmo tanto subjetiva quanto objetivamente ou ainda que o meacutetodo
seja ldquoo movimento do proacuteprio conceito [] que o conceito eacute tudo e seu movimento eacute a
atividade universal absoluta o movimento que se determina e se realiza a si mesmordquo352
Natildeo pretendemos como haacute pouco foi dito efetuar uma anaacutelise pormenorizada do
conceito hegeliano de conceito Queremos antes apenas apresentaacute-lo em suas linhas gerais e
na medida que possamos entatildeo nos municiar dos elementos suficientes para compreender
porque a ideacuteia eacute o conceito adequado353 O conceito tal como veremos aqui eacute apenas o que
poderiacuteamos chamar de conceito em sentido estrito
Assim o conceito considerado de modo geral compotildee-se de trecircs momentos
universalidade particularidade e singularidade No seu processo de determinaccedilatildeo ou
diferenciaccedilatildeo ele se daacute cada um desses momentos que mesmo considerados cada um na sua
determinaccedilatildeo proacutepria cada um deles natildeo deixa de espelhar o conceito como um todo354 Esse
processo de determinaccedilatildeo eacute segundo Hegel um processo dialeacutetico fundado no proacuteprio
conceito e mediante o qual ele se produz a partir de si mesmo e assim passa agrave realidade355
Como o conceito portanto somente se torna aquilo que por ele proacuteprio foi gerado e nesse
sentido ele eacute livre em virtude dessa sua autodeterminaccedilatildeo
352 Ibidem p 238 trad p 562 (ldquodie Bewegung des Begriffs selbst [hellip] daszlig der Begriff Alles und seine Bewegung die allgemeine absolute Thaumltigkeit die sich selbst bestimmende und selbst realisirende Bewegung istrdquo)
353 Ibidem p 44 trad p 294
354 Ibidem p32 trad p 277 e tambeacutem GW 20 E sect 160 p 177 trad p 292
355 GW 12 p 25 trad p 267
140
A determinaccedilatildeo completa do conceito como conceito total se faz por essa
diferenciaccedilatildeo de si a partir de si mesmo que conforme Hegel eacute uma dupla negaccedilatildeo ndash negaccedilatildeo
da negaccedilatildeo ndash por meio da qual o conceito se relaciona a si e assim constitui uma absoluta
identidade consigo mesmo356 Independente do conceito posto no seu momento de
universalidade todo esse processo acima descrito tambeacutem pode ser chamado de universal Eacute o
que Hegel faz ao referi-lo como a universalidade do conceito357 Desse modo o universal
pode ser tanto o processo de determinaccedilatildeo no seu todo e efetuado mediante essa negatividade
absoluta358 quanto o universal que eacute momento do conceito nessa sua mesma determinaccedilatildeo
Para que fique claro o que eacute o conceito como nele ocorrem esses trecircs momentos
constituintes do mesmo eacute preciso compreender como essa dupla negaccedilatildeo nele opera Assim
o universal primeiramente eacute o indeterminado sua determinaccedilatildeo eacute esta mas ele entatildeo torna-se
particular ao se determinar ou seja ao se negar ndash primeira negaccedilatildeo ndash esse particular por sua
vez que adveacutem da negaccedilatildeo do universal eacute entatildeo negado ndash segunda negaccedilatildeo ou negaccedilatildeo da
negaccedilatildeo ndash e dessa maneira se potildee a singularidade359 A segunda negaccedilatildeo mediante a qual
surge a singularidade leva o conceito a tornar-se novamente universal mas um universal
superior um universal que em virtude dessa negatividade absoluta pela qual o conceito eacute
relaccedilatildeo a si saiu de si ao se determinar mas termina por retornar novamente para junto de
si360 Eacute importante deixar registrado que nesse seu sair de si isto eacute nesse determinar-se do
conceito a determinidade que surgiu eacute uma diferenccedila (Unterschied) mas uma diferenccedila que
adveio do proacuteprio determinar-se do conceito361
356 Ibidem p 33 trad p 279
357 Ibidem p 33 trad p 279
358 O universal no sentido indicado tambeacutem eacute chamado de potecircncia criadora (schoumlpferische Macht) como negatividade absoluta Cf GW 12 p 36 trad p 283
359 Ibidem p 35 trad p 281
360 ldquoOra o universal do conceito natildeo eacute simplesmente algo comum ante o qual o particular tem sua consistecircncia para si mas eacute antes o que se particulariza (o que se especifica) a si mesmo e em seu outro permanece em uma imperturbada clareza junto de si mesmordquo (ldquoNun aber ist das Allgemeine des Begriffs nicht bloszlig ein Gemeinschaftliches welchem gegenuumlber das Besondere seinen Bestand fuumlr sich hat sondern vielmehr das sich selbst Besondernde (Spezifizierende) und in seinem Anderen in ungetruumlbter Klarheit bei sich selbst Bleibenderdquo) Cf Werke 8 E sect163 Adendo p 311 trad p 297
361 GW 12 p 38 trad p 285
141
A singularidade nota Hegel ao mesmo tempo que leva o conceito a retornar a si
mesmo com a negaccedilatildeo da particularidade por meio da operaccedilatildeo da negaccedilatildeo da negaccedilatildeo
tambeacutem faz com que o conceito ao se singularizar se perca362 Essa perda do conceito
esclarece Hegel diz respeito ao fato de que ele ao tornar-se singular363 ele se potildee (treten) na
realidade efetiva (Wirklichkeit) Eacute como se o conceito deixasse de ser essa dialeacutetica oriunda de
sua proacutepria atividade e se tornasse algo soacutelido e concreto Pareceria que o conceito desse
modo natildeo mais pudesse levar adiante esse processo de autodeterminaccedilatildeo Cremos que seja
nesse sentido em que haacute uma espeacutecie de cristalizaccedilatildeo do conceito por meio de sua efetiva
penetraccedilatildeo na realidade que Hegel considere haver uma perda do conceito
O conceito poderiacuteamos entatildeo dizer torna-se realidade apenas quando eleva-se agrave ideacuteia
ldquoque eacute somente a unidade do conceito e da realidaderdquo364 Uma realidade que eacute criaccedilatildeo do
proacuteprio conceito365 Mas neste momento ainda temos apenas o conceito em sua abstraccedilatildeo
Conceito abstrato aqui deve ser entendido segundo Hegel portanto no sentido de que ldquoo
elemento do conceito eacute o pensar em geral e natildeo o sensiacutevel empiricamente concreto e de outra
parte enquanto natildeo eacute ainda a ideacuteiardquo366
E uma vez feitas as consideraccedilotildees acima a respeito da estrutura do conceito cabe
agora tratar do conceito que se torna realidade ou mais precisamente da ideacuteia
O conceito stricto sensu foi o que acabamos ver tem apenas em projeto aquilo de que
a ideacuteia seraacute a realizaccedilatildeo a produccedilatildeo da objetividade que adveacutem da proacutepria atividade do
conceito como ideacuteia
362 Ibidem p 51 trad p 303
363 Hegel tambeacutem se refere agrave singularidade como a determinidade determinada
364 GW 12 p 20 trad p 262 (ldquo[hellip] welche erst die Einheit des Begriffs und der Realitaumlt ist rdquo)
365 Ibidem p 36 trad p 283
366 Cf GW 20 E sect164 p 180 trad p 299 (ldquo[]als das Denken uumlberhaupt und nicht das empirisch concrete Sinnliche sein Element theils als er noch nicht die Idee istrdquo)
142
O conceito como ideacuteia eacute tanto subjetivo quanto objetivo ldquoA ideacuteia eacute o verdadeiro em si
e para si a unidade absoluta do conceito e da objetividade Seu conteuacutedo ideal natildeo eacute outro que
o conceito em suas determinaccedilotildees seu conteuacutedo real eacute somente a exposiccedilatildeo do conceito que
ele se daacute na forma de um ser-aiacute exterior e estando essa figura incluiacuteda na idealidade do
conceito na sua potecircncia assim se manteacutem na ideacuteiardquo367
A subjetividade da ideacuteia natildeo pode ser tomada como aquela que se relacionasse a um
objeto que fosse independente da proacutepria atividade subjetiva A determinaccedilatildeo da objetividade
eacute fruto da atividade subjetiva como negatividade absoluta O que eacute posto eacute posto pelo sujeito
torna-se diferente dele mas esse diferente retorna agrave identidade com o sujeito por meio dessa
negaccedilatildeo autoreferencial A objetividade assim natildeo estaacute afastada e separada do sujeito que a
ela se relaciona Natildeo temos aqui um sujeito como uma mera forma abstrata que exteriormente
se relacionasse a um objeto dado O sujeito se determina ndash e nesse sentido ele eacute autofinalidade
e impulso ndash e nessa sua atividade a objetividade toma forma e adquire subsistecircncia ao estar
perpassada pelo sujeito368 A objetividade dessa maneira tem sua consistecircncia e sentido
vinculada agrave atividade subjetiva da qual se originou e agrave qual retorna por meio desse processo
dialeacutetico imanente
O conceito realizado da ideacuteia se apresenta de modo condensado nessa unidade do
conceito e da objetividade na qual estaacute resolvido (aufgeloumlszligst) o processo de determinaccedilatildeo da
ideacuteia processo pelo qual a ideacuteia eacute ldquo [] a relaccedilatildeo da subjetividade sendo para si do simples
conceito e de sua objetividade distinta dela [] Ela eacute como essa relaccedilatildeo o processo de se
separar (dirimieren) na individualidade e na natureza inorgacircnica desta e de trazer novamente
essa por sob o poder (Gewalt) do sujeito e de retornar agrave primeira simples universalidade A
identidade da ideacuteia consigo mesma eacute uma e a mesma coisa com o processordquo369
367 Cf Ibidem E sect213 p 215 trad p 348 (ldquoDie Idee ist das Wahre an und fuumlr sich die absolute Einheit des Begriffs und der Objectivitaumlt Ihr ideeller Inhalt ist kein anderer als der Begriff in seinen Bestimmungen ihr reeller Inhalt ist nur seine Darstellung die er sich in der Form aumluszligerlichen Daseyns gibt und diese Gestalt in seiner Idealitaumlt eingeschlossen in seiner Macht so sich in ihr erhaumlltrdquo)
368 GW 12 p 176 trad p 475-476
369 Ibidem p 177 trad p 476-477 (ldquo[] die Beziehung der fuumlr sich seyenden Subjectivitaumlt des einfachen Befriffs und seiner davon unterschiedenen Objectivitaumlt [] Sie ist als diese Beziehung der Proceszlig sich in die Individualitaumlt und in deren unorganische Natur zu dirimiren und wieder diese unter die Gewalt des Subjects
143
A par das exposiccedilotildees efetuadas a respeito do conceito como conceito e da ideacuteia torna-
se mais faacutecil eacute o que cremos apreender o significado desse meacutetodo que eacute o movimento do
conceito em sua maior amplitude do conceito que se autodetermina e dessa maneira
perpassa e daacute forma agrave objetividade que como jaacute tivemos oportunidade de observar eacute fruto de
sua proacutepria atividade Pela atividade conceitual do meacutetodo atuante em cada coisa a razatildeo
pode por meio de si proacutepria encontrar e reconhecer a si mesma em tudo370
Cabe agora contudo avanccedilar propriamente na analise do meacutetodo isto eacute na anaacutelise
daquilo em que consiste a operaccedilatildeo efetiva desse meacutetodo por meio do qual o conceito se
realiza
Com efeito no iniacutecio de sua exposiccedilatildeo do ldquomecanismordquo de funcionamento do meacutetodo
Hegel nos chama a atenccedilatildeo para o fato de que as determinaccedilotildees que constituem o conceito e
suas relaccedilotildees tem de ser consideradas agora no seu significado de determinaccedilotildees do meacutetodo
As determinaccedilotildees do conceito a saber universalidade particularidade e singularidade eacute o
que adiante veremos reaparecem como as determinaccedilotildees que articulam o meacutetodo
A universalidade
Assim para comeccedilar do comeccedilo como jaacute o proacuteprio Hegel pede371 eacute preciso que
compreendamos o que eacute esse comeccedilo a partir do qual se inicia a determinaccedilatildeo do conceito
como ideacuteia absoluta
No comeccedilo o que pode entatildeo haver No comeccedilo apenas haacute um imediato e um
imediato que como determinaccedilatildeo conceitual ldquotem o sentido e a forma da universalidade
abstratardquo372
zuruumlckzubringen und zu der ersten einfachen Allgemeinheit zuruumlckzukehren Die Identitaumlt der Idee mit sich selbst ist ein mit dem Processerdquo)
370 Ibidem p 238 trad p 562
144
Anteriormente tivemos oportunidade de observar373 na importante questatildeo acerca do
comeccedilo da filosofia que somente torna-se possiacutevel cogitar de um comeccedilo que natildeo seja
arbitraacuterio e nesta medida seria ele totalmente vulneraacutevel agrave criacutetica ceacutetica se esse comeccedilo
implique a total falta de pressuposiccedilotildees ou como prefere Hegel que jaacute natildeo seja um mediado
e por isso entatildeo estaria em relaccedilatildeo com um outro A mediaccedilatildeo envolve a relaccedilatildeo de um para
com um outro Se pensarmos por conseguinte no tropo da relatividade o que faz o ceacutetico
Ele mostra por meio desse tropo que as coisas em geral (natildeo importa se sensiacuteveis ou
inteligiacuteveis) acabam aparecendo sempre numa determinada relaccedilatildeo entre elas que essa
relatividade de todas as coisas afasta a hipoacutetese da constituiccedilatildeo de algo natildeo-relativo logo
absoluto Nesse sentido compreendemos a preocupaccedilatildeo de Hegel com a necessidade de um
comeccedilo que natildeo seja mediado Por isso a declaraccedilatildeo tanto no comeccedilo da Ciecircncia da Loacutegica
quanto no seu uacuteltimo capiacutetulo A Ideacuteia Absoluta a respeito do comeccedilo consistir em um
imediato
O imediato eacute sem pressupostos portanto ele natildeo eacute posto pois caso assim o fosse
seria um mediado Mas se ele eacute imediato diria o ceacutetico ele eacute um posto e como tal eacute possiacutevel
que um outro seja imediatamente contraposto a ele com o mesmo direito Ocorre aqui no
entanto que Hegel natildeo pensa o imediato nesses termos Imediato segundo ele eacute o abstrato e
o completamente indeterminado Se ele eacute imediato eacute o que o proacuteprio significado da palavra
nos diz eacute porque eacute natildeo-mediado A mediaccedilatildeo envolve a determinaccedilatildeo logo se temos o
imediato temos o indeterminado No comeccedilo soacute temos o indeterminado ldquo[] porque o
comeccedilo como comeccedilo do pensar deve ser totalmente abstrato universal totalmente forma
sem nenhum conteuacutedordquo374
Esta universalidade que constitui o comeccedilo por ser imediata e indeterminada
possuiraacute e de acordo com a discussatildeo em torno do comeccedilo da Loacutegica375 tambeacutem no meacutetodo
o significado do ser376
371 Cf Ibidem p 239 trad p 563
372 Ibidem p 239 trad p 563 (ldquo[] den Sinn und die Form abstracter Allgemeinheit hatrdquo)
373 Ver a propoacutesito nossa discussatildeo a respeito do comeccedilo da filosofia agraves paacuteginas 132-137
374 GW 21 p 60 trad p 95 (ldquo[hellip] weil der Anfang als des Denkens ganz abstract ganz allgemein ganz Form ohne allen Inhalt seyn sollrdquo
375 Cf GW 21 ldquoCom que tem de ser feito o comeccedilo da ciecircnciardquo (ldquoWomit muszlig der Anfang der Wissenschaft gemacht werdenrdquo) pp 53-65 trad pp 87-101
145
Nessa aproximaccedilatildeo da universalidade imediata com o ser haacute dois aspectos a serem
considerados em primeiro lugar o fato do meacutetodo ser o ponto de chegada de toda a Loacutegica e
ao mesmo tempo seu fundamento em segundo lugar o caraacuteter abstrato e indeterminado do
puro ser
Com respeito ao primeiro aspecto haacute que se lembrar o que jaacute foi comentado acerca do
fundamento se constituir apenas ao final do processo de determinaccedilatildeo do conceito na
Loacutegica377 O fundamento natildeo pode ser dado no comeccedilo porque o comeccedilo tem de ser o
imediato e por conseguinte indeterminado O comeccedilo que jaacute fosse o fundamento pareceria
segundo Hegel uma espeacutecie de pressuposiccedilatildeo arbitraacuteria De fato o fundamento estaacute presente
e atuante no iniacutecio todavia sua posiccedilatildeo efetiva como fundamento precisa ser justificada e
essa justificaccedilatildeo na sua completude necessita do desdobramento dialeacutetico que constitui todo o
percurso da Loacutegica ateacute que se atinja o fundamento Nesse ponto de chegada que eacute o
fundamento faz-se a conexatildeo com o comeccedilo E no comeccedilo noacutes temos o puro ser imediato
que vai se determinar de acordo com esse meacutetodo (ou fundamento) que eacute imanente ao
mesmo Desse modo eacute o que nos parece fica em parte explicada a aproximaccedilatildeo que Hegel
faz da universalidade imediata que constitui o meacutetodo em seu comeccedilo com o ser
Em relaccedilatildeo ao segundo aspecto o comeccedilo se faz com o ser porque como jaacute vimos ele
eacute a completa falta de determinaccedilatildeo sem nenhuma mediaccedilatildeo e portanto natildeo relacionado a
nenhum outro Esse comeccedilo em virtude de sua indeterminaccedilatildeo e abstraccedilatildeo eacute um comeccedilo
absoluto ldquoo que constitui o comeccedilo o comeccedilo mesmo tem de ser tomado por conseguinte
como um algo que natildeo pode ser analisado tem de ser tomado em sua simples imediatez natildeo
preenchida portanto como ser como o completamente vaziordquo378
O ser diriacuteamos por nossa conta eacute essa determinidade da indeterminaccedilatildeo que preenche
os requisitos para que se constitua em comeccedilo O ser na sua absoluta vacuidade cumpre a
contento a sua obrigaccedilatildeo de constituir o ponto zero do processo de determinaccedilatildeo do conceito
loacutegico
376 Cf GW 12 p 239 trad p 564
377 Ver a respeito pp 132-137
378 GW 21 p 62 trad p 97 (ldquoWas den Anfang macht der Anfang selbst ist daher als ein Nicht-analysirbares in seiner einfachen unerfuumlllten Unmittelbarkeit also als Seyn als das ganz Leere zu nehmenrdquo)
146
E o que temos entatildeo no ser que estaacute no comeccedilo Apenas a relaccedilatildeo abstrata a si
mesmo379 O ser assim como o universal e como universal imediato eacute a negaccedilatildeo completa de
toda determinaccedilatildeo e na medida em que nega todo outro volta-se para si e entatildeo apenas se
relaciona a si mesmo Essa relaccedilatildeo abstrata a si constitui-se em virtude dessa completa falta
de determinaccedilatildeo
Dessa indeterminaccedilatildeo e abstraccedilatildeo do ser o meacutetodo pode cumprir ldquoa exigecircncia de
realizaccedilatildeo do conceito em geral que natildeo reside no proacuteprio comeccedilo mas que eacute antes a meta e
a tarefa de todo ulterior desenvolvimento do conhecerrdquo380
Mas se o ser eacute o imediato que na sua relaccedilatildeo a si eacute vazia e inteiramente
indeterminada como se pode efetivamente dar esse processo de determinaccedilatildeo pelo qual o
conceito se realiza
Segundo Hegel o ser tem a determinidade de ser simples e universal e em virtude
dessa determinidade ele eacute deficiente (mangelhaft) Eacute o meacutetodo como forma objetiva imanente
que faz com que esse comeccedilo imediato deficiente seja dotado do impulso que o faz se
conduzir adiante no processo de determinaccedilatildeo desse ser inicial381
Jaacute vimos quando tratamos do significado do conceito de conceito382 que no iniacutecio do
seu processo ndash em si mesmo dialeacutetico ndash de autodeterminaccedilatildeo o conceito como universal por
sua proacutepria abstraccedilatildeo eacute incompleto383 E este universal abstrato do iniacutecio do meacutetodo que
tambeacutem eacute conceito eacute do mesmo modo incompleto Essa incompletude do universal se
apresenta na forma de uma negaccedilatildeo que o afeta384 Ora essa negaccedilatildeo que o afeta eacute a mesma
que estaacute presente na determinaccedilatildeo do ser no iniacutecio da Loacutegica Natildeo nos esqueccedilamos que o
universal abstrato como Hegel nos indicou tem o mesmo significado que o ser385 Tanto o ser
379 Cf GW 12 p 239 trad p 564
380 Ibidem p 240 trad p 564 (ldquo[] die Foderung der Realisirung des Begriffs uumlberhaupt gemeynt welche nicht im Anfange selbst liegt sondern vielmehr das Ziel und Geschaumlfte der ganzen weitern Entwicklung des Erkennens istrdquo)
381 Cf Ibidem p 240 trad p 565
382 Ver a respeito pp 139-141
383 Cf GW 12 p 24 trad p 267
384 Cf Ibidem p 240 trad p 565
385 Cf Ibidem p 239 trad p 564
147
como o universal satildeo indeterminados e completamente vazios logo eles natildeo satildeo nada Seraacute
somente no processo determinaccedilatildeo desse universal nele mesmo que esse universal inicial se
torna concreto e deixa para traacutes essa unilateralidade que tem como abstrato386 Se no iniacutecio
natildeo podemos ter uma totalidade concreta isto se deve ao caraacuteter deficiente do comeccedilo que
somente teraacute condiccedilotildees de ser sanado na determinaccedilatildeo progressiva do conceito de acordo
com o meacutetodo absoluto que ldquotoma o determinado como seu proacuteprio objeto visto que ele (o
meacutetodo) eacute o princiacutepio e a alma imanente delerdquo387
De acordo com as anaacutelises precedentes natildeo haacute como supor que desde o iniacutecio do
processo o absoluto esteja posto Eacute justamente isso que Hegel faz questatildeo de ressaltar O
iniacutecio eacute apenas um momento abstrato e unilateral Soacute com a autodeterminaccedilatildeo do universal o
conceito deixa de ser em-si e tornar-se para-si de modo que o universal seja igualmente
singular e sujeito388 ldquoSomente em seu acabamento (Vollendung) ele eacute o absolutordquo389
Do universal para o particular
Nesse processo de determinaccedilatildeo do conceito da ideacuteia absoluta (ou meacutetodo) o
universal imediato torna-se um particular ldquo[] o imediato inicial eacute posto como mediado
relacionado a um outro []rdquo390 Temos aqui o primeiro negativo isto eacute o particular que nega
esse universal imediato Esse segundo que surge o particular na sua negaccedilatildeo desse primeiro
no processo de determinaccedilatildeo o imediato conserva-o e o manteacutem em si391 Nessa negaccedilatildeo natildeo
ocorre portanto adverte Hegel aquilo que usualmente eacute resultado da dialeacutetica como meacutetodo
386 ldquoNatildeo haacute tambeacutem por isso seja na realidade efetiva ou em pensamento nada tatildeo simples e tatildeo abstrato como usualmente se imaginardquo Cf GW 12 p 240 trad p 565 (ldquoEs gibt deswegen auch es sey in der Wirklichkeit oder in Gedanken kein so Einfaches und so Abstractes wie man es sich gewoumlhnlich vorstelltrdquo)
387 GW 12 p 241 trad p 567 (ldquo[hellip] nimmt das Bestimmte aus ihrem Gegenstande selbst da sie selbst dessen immanentes Princip und Seele istrdquo)
388 GW 12 p 241 trad p 566
389 GW 12 p 241 trad p 566 (ldquoNur in seiner Vollendung ist es das Absoluterdquo)
390 GW 12 p 244 trad p 571 (ldquo[hellip] das zuerst Unmittelbare hiemit als Vermitteltes bezogen auf ein andres [hellip] ist rdquo)
391 Ibidem p 245 trad p 571
148
subjetivo a saber que a negaccedilatildeo que adveacutem seja meramente vazia o negativo vazio ou o
nada sem nenhum conteuacutedo Abrindo um parecircnteses uma espeacutecie de negaccedilatildeo que ocorre por
exemplo no ceticismo392 No que respeita agrave negaccedilatildeo atuante no meacutetodo o que foi negado
para que surgisse o particular continua a determinaacute-lo Como mediado o particular eacute fruto
dessa determinaccedilatildeo do universal como particular
Mas o particular acrescenta Hegel natildeo eacute apenas a determinaccedilatildeo negativa ou mediada
ela eacute aleacutem disso a mediadora (die Vermittelnde)393 Aqui ainda contudo natildeo nos deteremos
mais pormenorizadamente nesse aspecto de mediador que estaacute embutido no particular
Quando tratarmos mais a frente da negaccedilatildeo da negaccedilatildeo aiacute entatildeo ficaraacute claro porque estamos
aqui diante de uma determinaccedilatildeo mediadora Antes disso interessa inicialmente a Hegel
indicar que essa segunda determinaccedilatildeo o particular eacute o outro de um outro Nesse sentido
Hegel denomina o particular como sendo em sua verdade uma relaccedilatildeo ou relacionamento
(Beziehung oder Verhaumlltniszlig)394 Realmente haacute uma relaccedilatildeo da primeira com a segunda
determinaccedilatildeo e eacute preciso segundo Hegel insistir que essa relaccedilatildeo natildeo eacute meramente exterior
como se esse outro fosse indiferente (gleichguumlltig) com respeito ao primeiro395 A relaccedilatildeo com
seu outro isto eacute da segunda determinaccedilatildeo com a primeira constitui uma relaccedilatildeo que se daacute
num uacutenico ldquoobjetordquo O universal que se determina em um outro o particular e assim sai de si
natildeo deixa por esse mesmo motivo de estar em um outro que eacute parte dele mesmo A relaccedilatildeo
entre o positivo e o negativo natildeo eacute jaacute dissemos de exterioridade ao contraacuterio eles satildeo um soacute
o positivo contido no negativo que veio a ser no processo de determinaccedilatildeo Esse
392 ldquoTrata-se com efeito do ceticismo que vecirc sempre no resultado o puro nada tatildeo-somente e abstrai do fato de que esse nada eacute determinadamente o nada daquilo do qual ele procede Mas o nada considerado apenas como o nada daquilo do qual procede eacute na realidade o resultado verdadeiro Eacute pois um nada determinado e possui um conteuacutedo O ceticismo que termina com a abstraccedilatildeo do nada e da vacuidade natildeo pode avanccedilar aleacutem dessa abstraccedilatildeo mas deve esperar que algo de novo se lhe ofereccedila para lanccedilaacute-lo no mesmo abismo vaziordquo No original ldquoSie ist nemlich der Skepticismus der in dem Resultate nur immer das reine Nichts sieht und davon abstrahirt daszlig diszlig Nichts bestimmt das Nichts dessen ist woraus es resultirt Das Nichts ist aber nur genommen als das Nichts dessen woraus es herkoumlmmt in der That das wahrhafte Resultat es ist hiemit selbst ein bestimmtes und hat einen Inhalt Der Skepticismus der mit der Abstraction des Nichts oder der Leerheit endigt kann von dieser nicht weiter fortgehen sondern muszlig es erwarten ob und was ihm etwa neues sich darbietet um es in denselben leeren Abgrund zu werfenrdquo In GW 9 p 57 trad Vaz p 51
393 Cf GW 12 p 245 trad p 572
394 Cf Ibidem p 245 trad p 572
395 Cf Ibidem p 245 trad p 572
149
relacionamento umbilical dos opostos eacute segundo Hegel ldquoa contradiccedilatildeo a dialeacutetica posta de si
proacutepria (da determinaccedilatildeo)rdquo396
Logo a seguir Hegel trata do significado que essa dialeacutetica assume tanto considerada
pelo lado do universal quanto considerada pelo lado do particular Conveacutem de passagem
notar que o que preside esse processo mas ainda sem ser citada eacute a negatividade absoluta
Assim o que temos no universal imediato ou como tambeacutem a ele se refere Hegel no
conceito em si Temos nesse momento inicial em geacutermen o negativo e o momento dialeacutetico
presente nesse iniacutecio consiste nisto ldquoque a diferenccedila (Unterschied) que ele (o conceito)
conteacutem em si nele estaacute postardquo397
Com respeito ao outro o efetivamente determinado a diferenccedila o momento dialeacutetico
consiste na posiccedilatildeo da unidade que nele estaacute contida mas que ainda natildeo estaacute posta398 Ela a
unidade se potildee com a negaccedilatildeo do primeiro negativo o particular A negaccedilatildeo da negaccedilatildeo eacute a
suspensatildeo da contradiccedilatildeo399 Na terminologia do conceito poderiacuteamos dizer que a suspensatildeo
da contradiccedilatildeo consiste na posiccedilatildeo da singularidade por meio da reflexatildeo do conceito em si
mesmo a partir de sua determinidade400 Essa atividade do conceito eacute conduzida pela
negatividade absoluta401 que faz com que tenhamos na singularidade o retorno ao universal
soacute que agora um universal superior natildeo mais imediato e vazio mas agora efetivamente
concreto
Na consideraccedilatildeo desse silogismo que eacute o movimento do conceito observa Hegel a
primeira premissa corresponde ao momento da universalidade e agrave segunda premissa ao
momento da singularidade Ditas as coisas desse modo torna-se um tanto vaga a compreensatildeo
do que sejam essa universalidade e singularidade da primeira e da segunda premissas de todo
o silogismo Aleacutem disso Hegel se refere agrave primeira premissa como analiacutetica e a segunda
396 Cf Ibidem p 245 trad p 572 (ldquo[hellip] der Widerspruch die gesetzte Dialektik ihrer selbst rdquo) Ver tambeacutem a propoacutesito da contradiccedilatildeo pp 84-88
397 Cf Ibidem pp 245-246 trad p 572 (ldquodaszlig die Unterschied den es an sich enthaumllt in ihm gesetzt wirdrdquo)
398 Cf Ibidem p 246 trad p 572
399 Cf Ibidem p 246 trad p 573
400 Cf Ibidem p 49 trad p 300
401 Ou como ainda a denomina Hegel o ponto de virada (der Wendungspunkt) do movimento do conceito Cf Ibidem p 246 trad p 573
150
como sinteacutetica Mas eacute justamente com base nessa dupla denominaccedilatildeo das premissas
denominaccedilatildeo que tambeacutem eacute utilizada para o meacutetodo em si mesmo que talvez fique mais claro
o significado de universalidade e singularidade quando referidas agraves premissas do silogismo
Com efeito o meacutetodo por um lado eacute analiacutetico pois ldquoa ulterior determinaccedilatildeo de seu
universal inicial se encontra somente nele eacute a absoluta objetividade do conceito da qual ele
(o meacutetodo) eacute a certezardquo402 por outro lado o meacutetodo eacute sinteacutetico ldquona medida em que seu
objeto determinado imediatamente como universal simples mediante a determinidade que ele
proacuteprio tem na sua imediatez e universalidade mostra-se como um outrordquo403
Detenhamo-nos primeiro no aspecto analiacutetico do meacutetodo Por ele nossa atenccedilatildeo natildeo
estaacute voltada como no caso do aspecto sinteacutetico para a determinaccedilatildeo efetiva do universal esse
mostrar-se como um outro do mesmo Importa antes aqui salientar que o meacutetodo eacute
absolutamente objetivo em virtude dessa sua capacidade inerente de a partir de si gerar seu
proacuteprio progredir e desenvolvimento Na sua relaccedilatildeo negativa a si o meacutetodo daacute andamento a
esse processo de determinar-se que ao final faz com que se torne novamente idecircntico e igual
a si Dessa maneira ele eacute universal404 Numa outra passagem Hegel indica com respeito ao
caraacuteter analiacutetico do meacutetodo que ele representa a proacutepria relaccedilatildeo no conceito O que isto pode
significar Significa que o meacutetodo como a proacutepria relaccedilatildeo estaacute pensado na sua unidade ou
melhor dizendo nessa relaccedilatildeo negativa a si que se resolve no universal Ao chamar o meacutetodo
de analiacutetico Hegel eacute o que nos parece pretende pocircr o acento nessa unidade do conceito que
eacute o universal e uma unidade que ao mesmo tempo representa esse autorelacionar-se
(Selbstbezuumlglichkeit) do conceito todavia num acircmbito global
Com respeito agora ao outro aspecto o acento recai natildeo nessa unidade e identidade a
si do conceito que conteacutem em si como virtualidade a determinaccedilatildeo mas sim no proacuteprio
determinar-se do universal e com isso nesse seu fazer-se outro por meio da negaccedilatildeo ateacute
constituir-se numa singularidade Aqui importa fundamentalmente aponta para a efetiva
402 Cf Ibidem p 242 trad p 567 (ldquodie weitere Bestimmung ihres anfaumlnglichen Allgemein ganz allein in ihm findet ist die absolute Objectivitaumlt des Begriffes deren Gewiszligheit sie istrdquo)
403 Cf Ibidem p 242 trad p 567 (ldquoindem ihr Gegenstand unmittelbar als einfaches allgemeines bestimmt durch die Bestimmtheit die er in seiner Unmittelbarkeit und Allgemeinheit selbst hat als ein Anderes sich zeigtrdquo)
404 Cf Ibidem p 16 trad p 255
151
atividade de determinaccedilatildeo a partir da qual um outro concretamente surge e se singulariza no
movimento da dupla negaccedilatildeo
O procedimento dialeacutetico do meacutetodo consiste nisso a saber nessa implicaccedilatildeo muacutetua
das determinaccedilotildees do analiacutetico e do sinteacutetico nele presentes Haacute portanto tanto esse
movimento de sair de si do universal inicial e pelo qual se determina como o outro de si
mesmo (o momento sinteacutetico) quanto o retorno ao universal ou agrave unidade de si a partir do
processo de determinaccedilatildeo (momento analiacutetico)405
Dentro do contexto das anaacutelises precedentes talvez fique mais faacutecil entender porque
1) a primeira premissa do silogismo eacute considerada analiacutetica e corresponde ao momento da
universalidade 2) a segunda premissa eacute considerada sinteacutetica e corresponde ao momento da
singularidade
Com relaccedilatildeo agrave primeira premissa Hegel sublinha a universalidade objetiva da mesma
ao notar que o imediato inicial se relaciona imediatamente ao seu outro no qual passou e com
o qual estaacute assim identificado Na universalidade da primeira premissa sabe-se que haacute uma
relaccedilatildeo de um para com seu outro pois a unidade adveacutem dessa relaccedilatildeo e como diz Hegel
dessa comunicaccedilatildeo (Mittheilung)406 E o momento dialeacutetico desse universal consiste
justamente em pocircr essa diferenccedila que aiacute estaacute contida mas de modo latente407
Eacute na segunda premissa que essa diferenccedila estaacute posta a partir dessa relaccedilatildeo do negativo
consigo mesmo a relaccedilatildeo constitutiva dessa mesma premissa Determinada como
singularidade originada portanto da negaccedilatildeo do particular (a segunda negaccedilatildeo) essa
premissa como singularidade aparece inicialmente como se na relaccedilatildeo com o outro ela fosse
apenas por si e diversa408 excludente da outra determinaccedilatildeo a ela relacionada Como sinteacutetica
405 Eacute uacutetil citar neste momento o comentaacuterio de Rainer Schaumlfer a respeito desse vai-e-veacutem entre o sinteacutetico e o analiacutetico no desenvolvimento dialeacutetico do meacutetodo ldquo Dialeacutetica eacute o duplo conhecimento que algo eacute igual a si (momento analiacutetico) na medida em que se altera (sich veraumlndert) (momento sinteacutetico) e que algo ao se alterar eacute consigo mesmo igual isto eacute consigo mesmo torna-se igual Essa constituiccedilatildeo simultacircnea da mesmidade (Selbigkeit) na outridade (Andersheit) e da outridade na mesmidade mostra que o processo analiacutetico natildeo eacute pensaacutevel sem o sinteacutetico e o sinteacutetico natildeo eacute pensaacutevel sem o analiacuteticordquo In Schaumlfer R Die Dialektik und ihrehellip p 259
406 Cf GW 12 p 246 trad p 574
407 Cf Ibidem p 245-246 trad p 572
408 A singularidade como diversa aqui deve ser entendida de acordo com a determinaccedilatildeo reflexiva da diversidade exposta agraves pp 108-113
152
a segunda premissa traz ao primeiro plano esse passar de um no outro a realizaccedilatildeo da divisatildeo
de si do imediato com a posiccedilatildeo do outro409 Esse outro posto pela atividade do conceito
aparece como por si diverso e excludente pois antes de tornar-se singularidade ele antes eacute
particular O particular surge portanto como um diverso com respeito ao universal imediato
contudo no processo da dupla negaccedilatildeo esse particular se determina como singular e como
suspensatildeo da contradiccedilatildeo entre universal imediato e particular retorna agrave unidade
A volta agrave unidade corresponde a um retorno agrave imediatez a partir da mediaccedilatildeo ldquoo
imediato poreacutem mediante a suspensatildeo da mediaccedilatildeo o simples por meio do suspender da
diferenccedila o positivo mediante o suspender do negativo o conceito que se realiza mediante o
ser-outro e mediante o suspender dessa realidade se reuniu consigo e produziu sua realidade
absoluta sua relaccedilatildeo simplesrdquo410
A divisatildeo formal do meacutetodo desde o primeiro imediato ateacute o novo retorno ao
imediato compotildee-se segundo Hegel de quatro partes o primeiro termo eacute o universal
imediato inicial o segundo corresponde ao primeiro negativo ou o particular que se
determina pela negaccedilatildeo do universal o terceiro termo corresponde ao segundo negativo ou a
negaccedilatildeo da negaccedilatildeo por fim temos o quarto termo que natildeo eacute nada mais do que o terceiro
409 ldquo[hellip] porque ela eacute a relaccedilatildeo do diverso como tal ao seu diversordquo (ldquo[] weil sie die Beziehung des Unterschiedenen als solchen auf sein Unterschiedenes istrdquo) Cf GW 12 p 246 trad p 574
410 Cf Ibidem p 248 trad p 575 (ldquodas Unmittelbare aber durch Aufhebung der Vermittlung das Einfache durch Aufheben des Unterschiedes das Positive durch Aufheben des Negativen der Begriff der sich durch das Andersseyn realisirt und durch Aufheben dieser Realitaumlt mit sich zusammengegangen und seine absolute Realitaumlt seine einfache Beziehung auf sich hergestellt hatrdquo) Ou ainda ldquoComo o inicial eacute o universal o resultado eacute entatildeo o singular concreto sujeito o que aquele eacute em si este eacute agora do mesmo modo o para si o universal estaacute posto no sujeito Os dois primeiros momentos da triplicidade satildeo os momentos abstratos natildeo-verdadeiros que por isso mesmo satildeo dialeacuteticos e por meio dessa sua negatividade se fazem sujeito O conceito eacute para noacutes inicialmente natildeo soacute o universal sendo em si como o negativo sendo para si e como tambeacutem o terceiro sendo em si e para si o universal que atravessa todos os momentos do silogismo mas o terceiro [termo] eacute a conclusatildeo na qual ele se mediatiza consigo mesmo mediante sua negatividadedeste modo eacute posto para si como o universal e idecircntico de seus momentosrdquo (ldquoWie das Anfangende das Allgemeine so ist das Resultat das Einzelne Concrete Subject was jenes an sich ist dieses nun ebensosehr fuumlr sich das Allgemeine ist im Subjecte gesetzt Die beyden ersten Momente der Triplicitaumlt sind die abstracten unwahren Momente die eben darum dialektisch sind und durch diese ihre Negativitaumlt sich zum Subjecte machen Der Begriff selbst ist fuumlr uns zunaumlchst sowohl das An sich seyende Allgemeine als dar Fuumlr sich seyende Negative als auch das Dritte an und fuumlr sich seyende das Allgemeine welches durch alle Momente des Schlusses hindurchgeht aber das Dritte ist der Schluszligsatz in welchen er durch seine Negativitaumlt mit sich selbst vermittelt hiemit fuumlr sich als das Allgemeine und Identische seiner Momente gesetzt ist rdquo) In Ibidem p 248 trad p 575
153
apenas que no seu retorno agrave imediatez portanto como segundo imediato ele pode aparecer de
um ponto de vista meramente didaacutetico como quarto nesse processo de determinaccedilatildeo411
O meacutetodo e sua determinaccedilatildeo como sistema
Uma vez feita a anaacutelise do modus operandi do meacutetodo na Ideacuteia Absoluta Hegel toca
entatildeo num tema de fundamental importacircncia a saber a constituiccedilatildeo do sistema Mais uma vez
ele retoma o diaacutelogo com os ceacuteticos pois uma de suas principais preocupaccedilotildees agora talvez a
principal eacute mostrar como na constituiccedilatildeo do sistema a partir do procedimento dialeacutetico
inscrito no meacutetodo a filosofia especulativa natildeo daacute nenhum passo atraacutes de modo que
permitisse ainda novamente abrir a guarda perante o ceacutetico
Assim do percurso de determinaccedilatildeo do conceito observado no meacutetodo a que
chegamos no final Como pudemos ver a um novo universal e no qual todo o processo se
condensa numa nova identidade que ao mesmo tempo eacute uma nova imediatez412 Seraacute a partir
desse novo imediato que justamente pela suspensatildeo da contradiccedilatildeo daacute origem a essa
determinidade simples que teremos um novo comeccedilo e daiacute entatildeo o meacutetodo se amplia na
forma de um sistema413
Isto posto a questatildeo que a nosso ver Hegel potildee e procura responder diz respeito ao
seguinte esse novo comeccedilo a que se chega adveacutem do processo de autodeterminaccedilatildeo do
meacutetodo e em virtude dessa mesma determinaccedilatildeo eacute um comeccedilo determinado Perante essa
determinidade do resultado o proacuteprio comeccedilo inicial que eacute indeterminado tambeacutem eacute um
determinado logo ldquonatildeo deve ser tomado como um imediato mas antes como mediado e
deduzidordquo414 Ora o comeccedilo como mediado e deduzido natildeo seria um comeccedilo destituiacutedo de
pressupostos e seria assim tatildeo arbitraacuterio quanto qualquer outro comeccedilo que a ele se
411 Ibidem p 247 trad p 574
412 Ibidem p 248 trad p 576
413 Ibidem p 248 trad p 576
414 Ibidem p 249 trad p 577
154
contrapusesse com o mesmo direito Hegel se refere especificamente agrave possiacutevel ocorrecircncia de
uma regressatildeo ao infinito em virtude desse caraacuteter mediado do comeccedilo415
Como combater essa possiacutevel criacutetica Abrindo um parecircnteses uma criacutetica sim
possiacutevel mas que natildeo deixa de ser mesmo assim resultado de uma maacute compreensatildeo da
filosofia especulativa Pelo menos da perspectiva hegeliana O fato eacute que Hegel se adianta em
relaccedilatildeo a seus possiacuteveis criacuteticos a nossos olhos fundamentalmente aqui o ceacutetico na tentativa
de natildeo deixar duacutevidas ou perplexidades quanto aos seus propoacutesitos Mas de volta agrave pergunta
acima feita a resposta de Hegel vai no sentido de mostrar que estamos num outro acircmbito que
aquele da filosofia do entendimento ldquoJaacute foi mostrado repetidas vezes que o progresso
infinito em geral pertence agrave reflexatildeo carente de conceito o meacutetodo absoluto que tem o
conceito como sua alma e conteuacutedo natildeo pode levar ao mesmordquo416
O ponto principal da resposta de Hegel agrave criacutetica referente ao caraacuteter determinado do
comeccedilo seja ele o comeccedilo inicial ou o comeccedilo que resulta da dialeacutetica do conceito baseia-se
na jaacute mencionada417 indeterminaccedilatildeo do conceito e sua consequumlente imediaccedilatildeo A
determinaccedilatildeo do comeccedilo e que impede ao mesmo ser considerado um mediado apresenta-se
por meio de sua indeterminaccedilatildeo Nele natildeo haacute nenhum conteuacutedo E natildeo haver conteuacutedo ou ndash o
que eacute o mesmo ndash ser indeterminado significa que natildeo seja admissiacutevel nenhuma regressatildeo
Aleacutem disso o conteuacutedo somente se origina da proacutepria determinaccedilatildeo da forma absoluta que eacute o
meacutetodo O indeterminado passa para o determinado mas o indeterminado apesar de ser um
determinado perante o outro a saber o determinado que dele resulta natildeo eacute contudo ainda a
mediaccedilatildeo no sentido de que fosse um determinado ao qual um outro pudesse ser contraposto
E no caso do comeccedilo que surge da dialeacutetica do conceito Como veremos a mesma
coisa se passa O comeccedilo imediato se determina como um outro e na negatividade absoluta
da relaccedilatildeo a si a contradiccedilatildeo posta eacute suspensa e assim se restabelece a primeira
indeterminidade418 O novo comeccedilo eacute sim um comeccedilo mediado e determinado mas ele eacute tal
somente no que se refere a ser resultado desse processo que ele traz conservado dentro dele
Esse novo comeccedilo eacute uma nova unidade que por isso mesmo constitui uma nova imediaccedilatildeo e
415 Ver de modo geral ibidem p 249 trad pp 577-578
416 Ibidem p 249 trad pp 577-578
417 Ver a respeito pp 143-147
418 Cf GW 12 p 250 trad p 579
155
dessa maneira estatildeo dadas as condiccedilotildees para que o processo siga adiante ldquoA determinidade
que era resultado eacute como se mostrou por causa da forma da simplicidade na qual ela
convergiu um novo comeccedilo na medida em que ele eacute diferente de seu [comeccedilo] precedente
justamente mediante essa determinidade o conhecer se impele (sich fortwaumllzen) de conteuacutedo
em conteuacutedo adianterdquo419 Desse novo comeccedilo vai portanto repetir-se o mesmo processo
dialeacutetico e que levaraacute ao surgimento de uma outra determinaccedilatildeo mais rica do que a anterior
ldquoO conceito no meacutetodo absoluto manteacutem-se no seu ser-outro o universal na sua
particularizaccedilatildeo no juiacutezo e na realidade ele eleva a massa inteira do seu conteuacutedo precedente
a cada degrau da sua determinaccedilatildeo ulterior e natildeo somente natildeo perde nada atraveacutes do seu
progredir dialeacutetico nem deixa nada para traacutes senatildeo que carrega tudo consigo e se enriquece e
se condensa dentro de sirdquo420
Eacute por meio desse processo que partindo do comeccedilo indeterminado se chega ao
fundamento de todo o processo Ao mesmo tempo que nos afastamos do comeccedilo estamos
novamente retornando a ele Hegel chama esse procedimento de fundamentaccedilatildeo regressiva do
comeccedilo421 Fundamento que somente eacute alcanccedilado no seu processo de justificaccedilatildeo a partir da
determinaccedilatildeo progressiva do comeccedilo indeterminado Nesse processo progressivo e ao mesmo
tempo regressivo de fundamentaccedilatildeo o meacutetodo se entrelaccedila (sich schlingt) num ciacuterculo422 E
419 Cf Ibidem p 250 trad p 579 (ldquoDie Bestimmheit welche Resultat war ist wie gezeigt worden um der Form der Einfachheit willen in welche sie zusammengegangen selbst ein neuer Anfang indem er von seinem vorhergehenden durch eben diese Bestimmtheit unterschieden ist so waumllzt sich das Erkennen von Inhalt zu Inhalt fortrdquo)
420 Cf Ibidem p 250 trad p 579 (ldquoDer Begriff in der absoluten Methode erhaumllt sich in seinem Andersseyn das Allgemeine in seiner Besonderung in dem Urtheile und der Realitaumlt es erhebt auf jede Stuffe weiterer Bestimmung die ganze Masse seines vorhergehenden Inhalts und verliert durch sein dialektisches Fortgehen nicht nur nichts noch laumlszligt etwas dahinten sondern traumlgt alles Erworbene mit sich und bereichert und verdichtet sich in sichrdquo)
421 Cf Ibidem p 251 trad p 580
422 Ibidem p 251 trad p 580 E tambeacutem a ciecircncia (Wissenschaft) desenvolvida a partir desse meacutetodo imanente circular seraacute do mesmo modo circular ldquoEm virtude da natureza do meacutetodo [que foi] indicada a ciecircncia se apresenta como um ciacuterculo entrelaccedilado em si em cujo comeccedilo o fundamento simples a mediaccedilatildeo entrelaccedila o fim do mesmo modo esse ciacuterculo eacute um ciacuterculo dos ciacuterculos pois cada membro singular como [algo] animado pelo meacutetodo eacute a reflexatildeo-em-si que na medida em que ela retorna ao comeccedilo eacute ao mesmo tempo o comeccedilo de um novo membro Fragmentos dessa cadeia satildeo as ciecircncias singulares e cada uma delas tem um antes e um depois ou para falar com mais exatidatildeo somente tem o antes e no seu silogismo mostra seu depoisrdquo No original ldquoVermoumlge der aufgezeigten Natur der Methode stellt sich die Wissenschaft als einen in sich geschlungenen Kreis dar in dessen Anfang den einfachen Grund die Vermittlung das Ende zuruumlckschlingt dabey ist dieser Kreis ein Kreis von Kreisen denn jedes einzelne Glied als Beseeltes der Methode ist die Reflexion-in-sich die indem si in den Anfang zuruumlckkehrt zugleich der Anfang eines neuen Gliedes ist
156
contra aqueles que por impaciecircncia (Ungeduld) pretendem de antematildeo encontrar-se para
aleacutem do determinado portanto desde o iniacutecio se encontrarem imediatamente no absoluto
Hegel mais uma vez nos alerta para o fracasso que estaacute agrave vista dos que querem seguir essa
via423 pois o absoluto ldquosomente se deixa apreender pela mediaccedilatildeo do conhecer do qual o
universal e imediato eacute um momento a verdade poreacutem somente eacute no percurso desenvolvido e
no finalrdquo424 O absoluto que se pusesse independente desse processo de determinaccedilatildeo que
tambeacutem eacute um processo de justificaccedilatildeo do fundamento seria um absoluto suposto (ein
gemeyntes Absolutes) um absoluto que teria tanta validade e creacutedito quanto qualquer outro
que a ele se pusesse em sentido contraacuterio Essa espeacutecie de criacutetica ceacutetica Hegel quer evitar
Uma criacutetica que dificilmente se deixa evitar quando se parte de um absoluto que natildeo foi posto
a partir do processo de fundamentaccedilatildeo que observamos no meacutetodo Mas natildeo apenas isso
Cabe ainda assinalar que quando Hegel fala em absoluto eacute o que nos parece natildeo
esteja ele se referindo a um ponto que se chegasse sem que daiacute natildeo mais se pudesse avanccedilar
adiante O absoluto eacute o proacuteprio meacutetodo ndash a ideacuteia absoluta ndash ao qual se chega por esse
processo de justificaccedilatildeo que constitui a Ciecircncia da Loacutegica Ele eacute essa atividade inerente ao
meacutetodo e pela qual o conceito se autodetermina e forma (ausbildet) o sistema da ciecircncia (Cf
GW 12 pp 252-3 trad p 582) O caraacuteter absoluto do meacutetodo eacute o que faz com que por meio
dele os resultados obtidos pelo menos eacute o que almeja Hegel natildeo sejam passiacuteveis de serem
criticados pelo ceacutetico Esse absoluto eacute fruto de um modo de proceder que considera o posto e
seu contraposto e mediante a negatividade absoluta inscrita no meacutetodo a contradiccedilatildeo posta
pode ser resolvida425 Chega-se ao absoluto no final da Loacutegica mas esse absoluto eacute como jaacute
dissemos o proacuteprio meacutetodo que incorpora a si um procedimento ceacutetico a saber esse
procedimento consistente na oposiccedilatildeo de argumentos Eacute somente pela contradiccedilatildeo dos
Bruchstuumlcke dieser Kette sind die einzelnen Wissenschaften deren jede ein Vor und ein Nach hat - oder genauer gesprochen nur das Vor hat und in ihrem Schlusse selbst ihr Nach zeigt rdquo In Ibidem p 252 trad pp 581-2
423 Ibidem p 252 trad p 581
424 Ibidem p 252 trad p 581 (ldquo[hellip] erfassen laumlszligt es sich nur durch die Vermittlung des Erkennens von der das Allgemeine und Unmittelbare ein Moment die Wahrheit selbst aber nur im ausgebreiteten Verlauf und im Ende istrdquo)
425 Tanto na Ciecircncia da Loacutegica (Cf GW 12 p 46 trad p 296) quanto na Enciclopeacutedia (sect164) Hegel natildeo deixa de apontar para o fato de que o mesmo processo dialeacutetico ocorrido com as determinaccedilotildees de reflexatildeo vai se repetir na Doutrina do Conceito com as determinaccedilotildees da universalidade particularidade e singularidade Quanto a isso citemos o referido sect 164 ldquoUniversalidade particularidade e singularidade tomadas abstratamente satildeo o mesmo que identidade diferenccedila e fundamentordquo (ldquoAllgemeinheit Besonderheit und Einzelheit sind abstract genommen dasselbe was Identitaumlt Unterschied und Grundrdquo In GW 20 p 180 trad p 299
157
opostos resolvida de acordo com o meacutetodo dialeacutetico imanente apresentado na Ideacuteia Absoluta
que eacute possiacutevel agrave ciecircncia avanccedilar e a verdade que ela alcanccedila como resultado ldquotorna-se o
comeccedilo de uma outra esfera e ciecircnciardquo426 Dessa maneira eacute a que somos levados a concluir o
processo natildeo tem de se deter necessariamente num ponto determinado ao contraacuterio o saber
alcanccedilado estaraacute sempre sujeito a ser suspenso (aufgehoben)427
Hans Friedrich Fulda dedica um ensaio a mostrar como Hegel na formulaccedilatildeo do
meacutetodo especulativo diretamente se preocupa em se sobrepor agrave criacutetica ceacutetica por meio da
integraccedilatildeo de sua dialeacutetica antinocircmica ao mesmo meacutetodo428 A possibilidade de uma filosofia
especulativa estaria assim segundo o autor assentada em um meacutetodo que na sua instacircncia
negativa tivesse em si operando a contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos e uma vez cumprido
seu papel criacutetico com relaccedilatildeo ao pensar enquanto entendimento seu trabalho seria rematado
na instacircncia especulativa do meacutetodo com a modificaccedilatildeo dos conceitos que foram ceticamente
examinados anteriormente Fulda natildeo se cansa de afirmar que a possibilidade do pensamento
absoluto pressupotildee o exerciacutecio da agogeacute ceacutetica na instacircncia dialeacutetica do meacutetodo Eacute somente
por meio desse exerciacutecio que a filosofia conseguiraacute eacute o que acredita Hegel se desvencilhar do
ceticismo stricto sensu
No comeccedilo do capiacutetulo que trata do meacutetodo ndash a ideacuteia absoluta ndash Hegel faz uma
afirmaccedilatildeo importante no que se refere agrave proacutepria ideacuteia absoluta que ldquoela eacute o uacutenico objeto e
conteuacutedo da filosofiardquo429 Aleacutem disso que a tarefa da filosofia eacute reconhececirc-la nas diversas
426 GW 12 p 253 trad pp 582-3 (ldquo[hellip] wird als letztes Resultat auch den Anfang einer andern Sphaumlre und Wissenschaftrdquo)
427 Nesse sentido eacute entatildeo pertinente aqui recordar Geacuterard Lebrun ldquoQuando interpretam o saber absoluto como o coroamento da metafiacutesica e lhe reprovam deixar fora de si uma zona de natildeo-sentido um negativo irredutiacutevel que ignoraria soberbamente ainda tecircm certeza de natildeo conceder a certas significaccedilotildees um lsquovalor isoladorsquo Assim compreendem a dialeacutetica como uma outra ontologia outra experiecircncia do ser ndash e a negatividade se torna gradualmente uma reapropriaccedilatildeo laboriosa mas sempre exitosa Mas afinal onde eacute o lugar desse ecircxito Em que lugar do percurso nos datildeo o direito de parar em uma significaccedilatildeo isolada que o totalizariardquo E veja-se ainda tambeacutem o seguinte trecho ldquoO jogo portanto natildeo paacutera nenhuma descriccedilatildeo eacute privilegiada nenhum movimento termina em um nome que resumiria seu percurso Incessante vitoacuteria do sentido tanto quanto se quiser mas tambeacutem advento da mais desconcertante noccedilatildeo de lsquosentidorsquo Estranho lsquocoroamento da metafiacutesicarsquo com efeito um discurso que natildeo paacutera de denunciar como parcial a tese que ao que parece ele vem formular ndash discurso que ao ponto final prefere o corretivo que torna a questionar a frase inteira Estranho lsquodogmatismorsquo esse interditando ao leitor jamais se repousar em um ponto fixo e sempre o deportando mais longerdquo (Lebrun G A paciecircncia do Conceito respectivamente p 307 e p 308)
428 Ver Fulda H F Philosophisches Denken in einer spekulativen Metaphysik in Paumltzold DVandejagt A (eds) Hegels Transformation der Metaphysik Koumlln Dinter 1991 pp 62-82
429 GW 12 p 236 trad p 559 (ldquoSie ist der einzige Gegenstand und Inhalt der Philosophierdquo)
158
configuraccedilotildees (Gestaltungen) que ela assume no seu processo de autodeterminaccedilatildeo430 Esse
reconhecimento se daacute portanto conforme ao meacutetodo ndash que eacute a proacutepria ideacuteia absoluta como
forma ndash e o qual foi objeto de nossa anaacutelise neste capiacutetulo O processo dialeacutetico que ocorre no
meacutetodo compotildee segundo a descriccedilatildeo hegeliana nos sectsect79-82 da Enciclopeacutedia431 de trecircs
aspectos (Seiten) atuantes em ldquotodo loacutegico-realrdquo432 Isto significa que no processo de
autodeterminaccedilatildeo da ideacuteia absoluta esses trecircs aspectos satildeo trecircs momentos que se realizam
naquilo que a cada caso se determina Assim temos em cada loacutegico-real o momento do
entendimento o dialeacutetico ou negativamente-racional e por fim o especulativo ou
positivamente-racional433
O momento do entendimento eacute aquele em que se permanece na determinidade finita e
limitada O combate a essa a essa unilateralidade do que eacute posto pelo entendimento eacute efetuado
pelo ceticismo434 operante no momento negativo-dialeacutetico do meacutetodo Eacute esse ceticismo que
atua no sentido de mostrar como jaacute observara Fulda que as determinidades postas pelo
entendimento natildeo apenas natildeo satildeo fixas como tambeacutem satildeo negadas por suas opostas que as
limitam Cabe por fim ao especulativo apreender ldquoa unidade das determinaccedilotildees em sua
oposiccedilatildeordquo435 na medida em que resolve a contradiccedilatildeo que haacute entre elas com a negaccedilatildeo das
mesmas no passar (Uebergehen) a outra coisa que nada mais eacute que o resultado Resultado que
conserva em si essas determinaccedilotildees que foram negadas no processo de Aufhebung
Fulda crecirc que esse exame efetuado no lado ceacutetico do meacutetodo eacute o que permite a
modificaccedilatildeo de conteuacutedo dos conceitos pela especulaccedilatildeo436 O exame ceacutetico bem realizado
continua ele torna possiacutevel a sistematizaccedilatildeo do que foi obtido no momento positivo-racional
do meacutetodo437
430 Cf Ibidem p 236 trad pp 559-560
431 Cf GW 20 pp 118-120 trad pp 159-169
432 GW 20 E sect79 p 118 trad p 159
433 Ibidem p 118 trad p 159
434 Hegel no sect78 da Enciclopeacutedia chama esse momento dialeacutetico de ceticismo consumado (vollbrachte Skepticismus) Cf Ibidem p 118 trad p 156
435 Ibidem p 120 trad p 166 (ldquofaszligt die Einheit der Bestimmungen in ihrer Entgegensetzung auf []rdquo)
436 Cf Fulda Philosophisches Denkenhellip p 70
437 Cf Ibidem p 70
159
Parece-nos que para Hegel a saiacuteda para natildeo se cair novamente no ceticismo estaacute
justamente em proceder como o ceacutetico Eacute claro que a partir da integraccedilatildeo de seu procedimento
agrave filosofia especulativa e deixando-se para traacutes o ponto de vista do entendimento que tambeacutem
era o do ceacutetico ao se aceitar que a negaccedilatildeo fosse abstrata E antes que o ceacutetico pudesse
novamente acusar a filosofia especulativa de parcialidade esta dado que natildeo pretende que
seus resultados natildeo possam ser superados estaacute pronta para um outro exame ceacutetico de suas
determinaccedilotildees ateacute que um novo resultado seja alcanccedilado A precipitaccedilatildeo (propeacuteteia)
dogmaacutetica tatildeo combatida pelos ceacuteticos pode entatildeo ser evitada com esse paciente exerciacutecio
dialeacutetico que acabamos de expor Se natildeo haacute porque se deter num ponto determinado de uma
vez por todas como vingar a acusaccedilatildeo de precipitaccedilatildeo Hegel deixa sempre aberta a hipoacutetese
de que a investigaccedilatildeo continue assim como o queriam os ceacuteticos Mas a despeito desse fato
cremos que mesmo assim e nosso filoacutesofo tambeacutem estaacute ciente disso seja difiacutecil que os
advogados da duacutevida terminem por concordar com ele
161
CONCLUSAtildeO
Nesta nossa pesquisa acerca da temaacutetica do ceticismo na filosofia de Hegel
procuramos ressaltar a importacircncia que ele concede ao ceticismo como procedimento criacutetico-
investigativo na constituiccedilatildeo de sua proacutepria filosofia
Nesse trajeto buscamos apontar o interesse de Hegel pela filosofia ceacutetica desde o
iniacutecio de sua carreira filosoacutefica verificaacutevel jaacute nas suas primeiras publicaccedilotildees como o escrito
sobre a Diferenccedila e o artigo sobre o ceticismo
Na apresentaccedilatildeo e anaacutelise da interpretaccedilatildeo hegeliana do ceticismo torna-se patente a
preocupaccedilatildeo do filoacutesofo em uma resposta ao desafio que o ceticismo constitui para a
elaboraccedilatildeo e sustentaccedilatildeo de sua filosofia positiva A intenccedilatildeo ceacutetica de tudo que se lhe
apresenta com valor de verdade submeter a exame visto que sem essa atitude natildeo se vecirc o
ceacutetico em condiccedilotildees de talvez poder assentir a qualquer verdade eacute vista com bons olhos por
Hegel Esse natildeo aceitar nada como dado natildeo aceitar pressupostos natildeo examinados eacute uma
exigecircncia que Hegel adota para a filosofia especulativa A questatildeo eacute que no seu exame o
ceacutetico reiteradamente mostra a limitaccedilatildeo e a falta de universalidade das verdades
pretensamente absolutas que foram objeto da sua investigaccedilatildeo Ele mostra assim que a um
discurso se pode opor um outro discurso de igual forccedila
Hegel se daacute conta dessa forccedila da criacutetica ceacutetica Que a filosofia que natildeo a considera estaacute
fadada a perecer Para responder ao ceacutetico contudo Hegel natildeo se empenhou simplesmente
em refutaacute-lo Isso seria inviaacutevel justamente porque a filosofia precisa valer-se da criacutetica ceacutetica
para se constituir Por outro lado natildeo entrava em pauta para ele adotar a posiccedilatildeo ceacutetica E isto
porque nota que o ceacutetico tambeacutem assume certos pressupostos dos quais natildeo tem consciecircncia
O seu ecircxito no combate ao dogmatismo eacute possiacutevel em virtude de exercer sua criacutetica no
domiacutenio do entendimento logo assumindo como pressuposto as regras que regulam esse
domiacutenio Assim o ceacutetico consegue contrapor discursos ou argumentos porque no acircmbito do
entendimento aquilo que eacute afirmado natildeo leva em consideraccedilatildeo o seu oposto A limitaccedilatildeo das
determinaccedilotildees postas no acircmbito do entendimento faz com que as mesmas sejam aniquiladas
com a posiccedilatildeo daquelas que se lhes contrapotildeem Aleacutem disso nesse domiacutenio vige o princiacutepio
de natildeo-contradiccedilatildeo e uma vez estabelecida a contradiccedilatildeo o resultado eacute um nada a que se
162
chega com a aniquilaccedilatildeo dos contrapostos Diante da contradiccedilatildeo o ceacutetico natildeo tem como
avanccedilar Ele natildeo vecirc que haja uma outra maneira de considerar a oposiccedilatildeo e a contradiccedilatildeo
Independente dessas limitaccedilotildees o que Hegel faz eacute incorporar reformulado o
procedimento ceacutetico de contraposiccedilatildeo de argumentos agrave sua filosofia O que ele denominou de
seu lado negativo Mas aleacutem do domiacutenio do entendimento haacute o especulativo no qual as
oposiccedilotildees e a consequumlente contradiccedilatildeo entre elas satildeo vistas de maneira positiva Natildeo se
termina aqui com a contradiccedilatildeo num nada vazio Ela se resolve positivamente pois a
negaccedilatildeo aqui atuante faz com que o movimento avance nesse sentido A possibilidade de
conseguirmos escapar da criacutetica ceacutetica estaacute vinculada portanto agrave integraccedilatildeo de sua dialeacutetica
antinocircmica agrave filosofia o que tambeacutem envolveraacute a criacutetica dos pressupostos assumidos pelo
ceticismo Assim a soluccedilatildeo que Hegel encontra para que natildeo nos tornemos alvo do ceticismo
e ao mesmo tempo natildeo tenhamos que assumir a posiccedilatildeo ceacutetica implica na incorporaccedilatildeo do
procedimento criacutetico-ceacutetico agrave filosofia
163
OBRAS DE HEGEL
HEGEL G W F Differenz des Fichteschen und Schellingschen Systems der Philosophie
In Jenaer Kritische Schriften ediccedilatildeo de Hartmut Buchner e Otto Poumlggeler Hamburg Felix
Meiner 1968 Gesammelte Werke vol 4
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830)
ediccedilatildeo de U Rameil W Bonsiepen e H-C Lucas Hamburg Felix Meiner 1992
Gesammelte Werke vol 20
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830)
ediccedilatildeo de E Moldenhauer e K M Michel Frankfurt a M Suhrkamp 1993 Werke vol 8
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Phaumlnomenologie des Geistes ediccedilatildeo de W Bonsiepen e R Heede
Hamburg Felix Meiner 1980 Gesammelte Werke vol 9
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Verhaumlltniss des Skepticismus zur Philosophie Darstellung seiner
Verschiedenen Modificationen und Vergleichung des Neuesten mit dem Alten In Jenaer
Kritische Schriften Gesammelte Werke vol 4
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie I ediccedilatildeo de E
Moldehhauer e K M Michel Frankfurt a M Suhrkamp 1986 vol 18
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie II ediccedilatildeo de E
Moldehhauer e K M Michel Frankfurt a M Suhrkamp 2003 vol 19
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Vorlesungen uumlber Logik und Metaphysik Heidelberg 1817
Mitgeschrieben von FAGood ed Karen Gloy In Vorlesungen Ausgewaumlhlte Nachschriften
und Manuskripte Band 11 Hamburg Meiner 1992
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Wissenschaft der Logik Erster Band Erstes Buch Die Lehre vom Sein
(1832) Gesammelte Werke vol 21 Hamburg Meiner 1984
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Wissenschaft der Logik Erster Band Zweites Buch Die Lehre vom Wesen
(1813) Gesammelte Werke vol 11 Hamburg Meiner 1978
164
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Wissenschaft der Logik Zweiter Band Die subjektive Logik oder die
Lehre vom Begriff (1816) Gesammelte Werke vol 12 Hamburg Meiner 1981
Traduccedilotildees
HEGEL G W F Ciencia de la Logica (I e II ) trad de Augusta e Rodolfo Mondolfo
Ciencia de la Loacutegica Buenos Aires Ediciones Solar 1993
______________ Diffeacuterence des systegravemes philosophiques de Fichte et de Schelling traduccedilatildeo
de Marcel Meacutery In Premiegraveres Publications 2ordf ed Paris Ophrys-Gap 1964
______________ Enciclopeacutedia das Ciecircncias Filosoacuteficas em compecircndio (1830) I ndash A Ciecircncia
da Loacutegica trad de Paulo Meneses Satildeo Paulo Loyola 1995
______________ Fenomenologia do Espiacuterito trad de Henrique C de Lima Vaz coleccedilatildeo Os
Pensadores Satildeo Paulo Abril 1974
______________ Fenomenologia do Espiacuterito trad de Paulo Meneses Petroacutepolis Vozes 2a
ed 1992
______________ Introduccedilatildeo agrave Filosofia do Direito Traduccedilatildeo notas e apresentaccedilatildeo de
Marcos Lutz Muumlller IFCH-UNICAMP 2005
______________ La relation du scepticism avec la philosophie trad de B Fauquet 2ordf ed
Paris Vrin 1986
______________ Leccedilons sur lrsquohistoire de la philosophie La Philosophie Grecque tome 2
trad de Pierre Garniron Paris Vrin 1971
______________ Leccedilons sur lrsquohistoire de la philosophie La Philosophie Grecque tome 4
trad de Pierre Garniron Paris Vrin 1975
165
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KANT I Escritos preacute-criacuteticos Satildeo Paulo Unesp 2005
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vol 4 nuacutemero 2 2007
MUumlLLER M L ldquoO idealismo especulativo de Hegel e a modernidade filosoacutefica criacutetica ou
radicalizaccedilatildeo dessa modernidaderdquo Revista Eletrocircnica Estudos Hegelianos ano 2ordm Nordm 3
2005
PORCHAT PEREIRA O Rumo ao ceticismo Satildeo Paulo Unesp 2006
____________________ Vida comum e ceticismo Satildeo Paulo Brasiliense 1993
SCHAumlFER R Die Dialektik und ihre besonderen Formen in Hegels Logik In Hegel-
Studien Beiheft 45 Hamburg Felix Meiner 2001
SCHULZE G E Kritik der theoretischen Philosophie Band 1 Hamburg 1801 (reimpressatildeo por Aetas Kantiana Bruxelas Culture et Civilisation 1973)
SEXTO EMPIacuteRICO Outlines of Pyrrhonism vol I trad de RG Bury Cambridge Harvard
University Press 2000 Grundriszlig der pyrrhonischen Skepsis trad de Malte Hossenfelder
Frankfurt a M Suhrkamp 1985
SEXTO EMPIacuteRICO Adversus Mathematicos trad de RG Bury The Loeb Classical
Library in four volumes Cambridge Harvard University Press 1985
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VIEWEG K e BOWMAN B (orgs) Die freie Seite der Philosophie (Skeptizismus in
hegelscher Perspektive) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der
Philosophie Band 10 2006
_________________________________ Wissen und Begruumlndung (Die Skeptizismus-Debatte
um 1800 im Kontext neuzeitlicher Wissenskonzeptionen Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp
Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 8 2003
VIEWEG K (org) Gegen das lsquounphilosophische Unwesenrsquo (Das Kritische Journal der
Philosophie von Schelling und Hegel) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches
Jahrbuch der Philosophie Band 7 2002
___________ Die Philosophie des Remis - Der junge Hegel und das ldquoGespenst des
Skepticismusrdquo Muumlnchen Wilhelm Fink 1999
ZIMMERLI W C DIE FRAGE NACH DER PHILOSOPHIE Interpretation zu Hegels
Differenzschrif In Hegel-Studien Beiheft 12 Bonn Bouvier 1974
9
Para a Luciana
11
Eacute poreacutem muito mais difiacutecil conferir fluidez aos
pensamentos fixos do que ao ser-aiacute sensiacutevel
Hegel
A razatildeo captou sua proacutepria fundaccedilatildeo na ausecircncia
de fundamento das limitaccedilotildees e particularidades
Hegel
13
AGRADECIMENTOS
Ao Prof Marcos Lutz Muumlller pela oportunidade de poder jaacute haacute alguns anos conviver
intelectualmente por sua orientaccedilatildeo rigorosa pelas indicaccedilotildees valiosas pela liberdade de
pesquisa que sempre me proporcionou fundamental para a realizaccedilatildeo desta tese e por sua
amizade
Aos Profs Roberto Bolzani e Joseacute Eduardo M Baioni pelas anaacutelises criteriosas no
meu exame de qualificaccedilatildeo que muito contribuiacuteram para o andamento posterior deste
trabalho
Ao prof Oswaldo Porchat que talvez nem se decirc conta de quanto tambeacutem participou
da orientaccedilatildeo desta tese e pela sua amizade
Agrave Capes pela bolsa de doutorado a mim concedida fundamental para a realizaccedilatildeo
deste trabalho
Ao convecircnio Capes-DAAD pela bolsa de doutorado-sanduiacuteche que me permitiu
pesquisar na Freien Universitaumlt Berlin sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Andreas Arndt e
tambeacutem pela bolsa de estudos de alematildeo em Dresden
Ao DAAD pelo auxiacutelio que me permitiu uma nova temporada de pesquisa na Freien
Universitaumlt Berlin sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Andreas Arndt
Aos meus pais Nelson e Doralice e aos meus irmatildeos Carlos Frederico e Viviane
Agrave minha famiacutelia
Ao apoio e incentivo dos amigos do Brasil e da Alemanha
Especialmente agrave Luciana que talvez natildeo tenha a dimensatildeo de o quanto foi importante
em todos os aspectos sua presenccedila e incentivo
A todos do departamento de Filosofia e da Secretaria de Poacutes-Graduaccedilatildeo do IFCH-
UNICAMP que direta ou indiretamente tornaram viaacutevel esta pesquisa
15
SUMAacuteRIO
LISTA DE ABREVIATURAS p 17
INTRODUCcedilAtildeO p 19
I ndash Ceticismo pirrocircnico e ceticismo na perspectiva hegeliana
Capiacutetulo 1 ndash O ceticismo pirrocircnico p 25
Capiacutetulo 2 ndash O ceticismo na filosofia do jovem Hegel p 49
Capiacutetulo 3 ndash O ceticismo nas Liccedilotildees sobre a histoacuteria da filosofia de Hegel p 65
II ndash A dialeacutetica-especulativa de Hegel
Capiacutetulo 1 ndash As determinaccedilotildees de reflexatildeo da identidade agrave contradiccedilatildeo especulativa p 101
Capiacutetulo 2 ndash O meacutetodo dialeacutetico-especulativo p 131
CONCLUSAtildeO p 161
BIBLIOGRAFIA p 163
17
LISTA DE ABREVIATURAS
Georg Wilhelm Friedrich Hegel
GW Gesammelte Werke Ediccedilatildeo histoacuterico-criacutetica editada pela ldquoRheinisch-Westfaumllische
Akademie der Wissenschaftenrdquo e publicada pela editora Felix Meiner Hamburg de 1968 em
diante A indicaccedilatildeo seraacute seguida do nuacutemero do volume e da paacutegina
Vol 4 Jenaer Kritische Schriften (Eds) H Buchner e O Poumlggeler 1968
Vol 9 Phaumlnomenologie des Geistes (Eds) W Bonsiepen e R Heede 1980
Vol 11 Wissenschaft der Logik Erster Band Die objective Logik Zweites Buch Die Lehre
vom Wesen (1813) (Eds) F Hogemann e W Jaeschke 1978
Vol 12 Wissenschaft der Logik Zweiter Band Die subjective Logik oder die Lehre vom
Begriff (1816) (Eds) F Hogemann e W Jaeschke 1981
Vol 20 Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830) (Eds) W
Bosiepen e H -C Lucas 1992
Vol 21 Wissenschaft der Logik Erster Band Die objective Logik Erstes Buch Die Lehre
vom Sein (1832) (Eds) F Hogemann e W Jaeschke 1984
Werke Ediccedilatildeo de Eva Moldenhauer e Karl Markus Michel Frankfurt a M
Suhrkamp em 20 volumes A indicaccedilatildeo seraacute seguida do nuacutemero do volume e da paacutegina
Vol 8 Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenchaften I Frankfurt a M Suhrkamp 1993
Vol 18 Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie I Frankfurt a M Suhrkamp
1986
Vol 19 Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie II Frankfurt a M Suhrkamp
2003
19
Introduccedilatildeo
Talvez natildeo seja demasiado dizer que no iniacutecio do seacuteculo XIX Hegel tenha sido o
filoacutesofo que mais detidamente dedicou sua atenccedilatildeo ao estudo e anaacutelise do ceticismo antigo1
Uma de suas primeiras publicaccedilotildees o artigo ienense ldquoRelacionamento do ceticismo agrave
filosofiardquo2 como o proacuteprio tiacutetulo nos informa era todo voltado para o tema e vale mencionar
que parte importante do ensaio cuidava de uma anaacutelise minuciosa do ceticismo antigo3
O interesse de Hegel pelo ceticismo antigo vem mesmo antes de sua mudanccedila para
Iena em 18014 Aleacutem disso eacute preciso ser ressaltado a presenccedila do ceticismo na filosofia
hegeliana eacute o que nos parece natildeo se restringe apenas ao primeiro periacuteodo de sua carreira
1 Em alentado estudo recente Dietmar Heidemann chega mesmo a afirmar o seguinte ldquoNa histoacuteria da filosofia ningueacutem se ocupou mais aprofundadamente do ceticismo antigo pirrocircnico do que Hegel Na sua discussatildeo com a skepsis pirrocircnica Hegel no que respeita ao problema do ceticismo chegou a juiacutezos a que mesmo um veemente adversaacuterio de sua filosofia natildeo pode em princiacutepio negar um significado filosoacutefico sistemaacutetico Entre os neo-pirrocircnicos atuais estatildeo contudo completamente esquecidas as fundamentais anaacutelises de Hegel do conceito do ceticismo ou melhor dizendo satildeo elas completamente desconhecidas por eles Isso eacute mais do que lamentaacutevel pois em muitos aspectos neo-pirronistas como Fogelin Stroud ou Nagel poderiam obter em Hegel sugestotildees produtivas para suas proacuteprias avaliaccedilotildees de maneiras ceacuteticas de problematizarrdquo Cf Heidemann D H Der Begriff des Skeptizismus (Seine systematischen Formen die pyrrhonische Skepsis und Hegels Herausforderung) BerlinNew York Walter de Gruyter Band 78 2007 p 117 Concordo com Heidemann que Hegel possui uma leitura bastante atenta e profunda do ceticismo antigo mas sem endossar sua afirmaccedilatildeo referente a ser Hegel o filoacutesofo que mais se ocupou na histoacuteria da filosofia do ceticismo antigo De fato poderiacuteamos acrescentar o desconhecimento da leitura hegeliana do ceticismo antigo por parte dos estudiosos desta filosofia chama atenccedilatildeo Pensemos por exemplo no caso de Jonathan Barnes e de Julia Annas no livro conjunto The modes of scepticism neste livro ao citarem vaacuterios filoacutesofos importantes que se ocuparam do ceticismo ndash como Montaigne Descartes Hume e Kant ndash natildeo haacute nenhuma menccedilatildeo a Hegel (Cf The modes of scepticism Cambridge Cambridge UP 1985 pp 6-7)
2 Cf GW 4 pp 197-238
3 Apesar de nesse artigo tambeacutem ser feita referecircncia ao ceticismo acadecircmico o interesse principal de Hegel eacute pelo ceticismo pirrocircnico e mais precisamente o ceticismo pirrocircnico exposto por Sexto Empiacuterico nas suas Hipotiposes Pirronianas Dessa maneira sempre que daqui em diante se falar em ceticismo antigo estaremos nos referindo ao ceticismo pirrocircnico A respeito da referecircncia ao ceticismo acadecircmico no artigo especificamente na disputa entre pirrocircnicos e acadecircmicos acerca de qual deles poderia ser o legiacutetimo representante do ceticismo ver nosso artigo ldquoAlguns aspectos da compreensatildeo hegeliana do ceticismo antigo a partir da criacutetica ao ceticismo de Gottlob Ernst Schulzerdquo pp 237-240 In Revista Dois Pontos UFSCARUFPR vol 4 nuacutemero 2 2007
4 A propoacutesito do interesse de Hegel pelo ceticismo no periacuteodo anterior agrave sua ida para Iena ver de Klaus Vieweg Philosophie des Remis (Der junge Hegel und das lsquogespenst des Skeptizismusrsquo) Muumlnchen Wilhelm Fink 1999
20
filosoacutefica que vai justamente ateacute 1807 com a publicaccedilatildeo da Fenomenologia do Espiacuterito5 O
diaacutelogo hegeliano com o ceticismo pode ser observado natildeo apenas nesse periacuteodo inicial de
sua atividade intelectual filosoacutefica visto que ele se espraia por toda sua obra
No acircmbito de um estudo a respeito das relaccedilotildees da filosofia de Hegel com o ceticismo
nossas pretensotildees satildeo modestas Isto quer dizer que natildeo eacute nosso intento neste trabalho
explorar em todos os seus aspectos a minuciosa ocupaccedilatildeo de Hegel com o ceticismo Hans
Friedrich Fulda vem no que a isso se refere inclusive a declarar que ldquocomo poucos outros o
tema lsquoceticismo e pensamento especulativorsquo eacute adequado para se discutir o conjunto do
conceito filosoacutefico hegeliano e suas conexotildees exteriores que com isso natildeo se eacute meramente
escravo de curiosidade doxograacutefica mas antes que se pode notar o mais nobre interesse por
uma ocupaccedilatildeo filosoacutefica com a histoacuteria da filosofia descobrir o que era significativo numa
filosofia passada e eacute uma demanda natildeo-satisfeitardquo6
De um ponto de vista mais amplo nos importa com efeito mostrar que o ceticismo
antigo se faz um interlocutor fundamental de Hegel no que toca agrave possibilidade de
constituiccedilatildeo e sustentaccedilatildeo de sua filosofia especulativa Nesse contexto natildeo eacute porque a
filosofia hegeliana natildeo possa obviamente ser considerada ceacutetica que isto signifique como
algueacutem poderia pensar que o filoacutesofo tenha uma visatildeo essencialmente negativa do ceticismo
pirrocircnico Muito ao contraacuterio E se Hegel tece criacuteticas ao ceacutetico elas se devem por exemplo
natildeo ao seu modo de proceder no combate ao dogmatismo mas ao resultado a que ele chega
em virtude da incapacidade de se decidir agrave maneira dogmaacutetica a suspensatildeo do juiacutezo (epokheacute)
A criacutetica ceacutetica ao dogmatismo na sua prolificidade necessita ser tomada tatildeo a seacuterio que
Hegel acaba por propor a incorporaccedilatildeo do ceticismo agrave filosofia Uma estrateacutegia poderiacuteamos
dizer de imunizaccedilatildeo De fato a integraccedilatildeo do ceticismo agrave filosofia constitui-se numa maneira
de se defender da posiccedilatildeo ceacutetica levada agraves suas uacuteltimas consequumlecircncias Hegel natildeo pretende se
tornar ceacutetico pirrocircnico Ocorre que a filosofia que almeje continuar de peacute natildeo importa em que
novos termos natildeo pode fingir que o ceticismo natildeo existe Eacute preciso como veremos estar
atento ao que ele nos pede O que significaraacute afastar duas espeacutecies de atitudes que
5 Obra na qual o ceticismo aparece como o motor do exame a que a consciecircncia submete a si mesma e cujo progredir se daacute por meio de figuras que essa consciecircncia assume Eacute necessaacuterio frisar que natildeo faraacute parte de nossa pesquisa a abordagem do ceticismo na Fenomenologia do Espiacuterito salvo alguns raacutepidos comentaacuterios a respeito do tema em notas de rodapeacute Cremos que o estudo desse texto mereceria um trabalho apenas a ele dedicado
6 Cf Fulda H F e Horstmann R P (eds) Skeptizismus und spekulatives Denken in der Philosophie Hegels Stuttgart Klett-Cotta 1996 p 26 Vale notar que este livro eacute formado por um conjunto de artigos de diversos autores a respeito de distintos aspectos nos quais o tema ceticismo pode ser vinculado agrave filosofia hegeliana
21
comumente os filoacutesofos tomam perante a filosoacutefica ceacutetica ou adoccedilatildeo ou refutaccedilatildeo dessa
postura filosoacutefica Indo aleacutem dessas duas atitudes parece-nos que a questatildeo que Hegel iraacute se
fazer eacute a seguinte Haveria possibilidade de uma filosofia que incorporasse o ceticismo agrave
mesma de modo que ele operasse no seu interior mas sem que ao final se terminasse na
assunccedilatildeo de uma posiccedilatildeo ceacutetico pirrocircnica Seria isso uma mera refutaccedilatildeo do ceticismo
Em linhas gerais Hegel natildeo vecirc desacerto na postura ceacutetica com relaccedilatildeo ao
dogmatismo Pensemos no caso da fundaccedilatildeo de um sistema filosoacutefico seria aos olhos de
Hegel arriscado fazecirc-la deixando de lado a criacutetica que porventura o ceacutetico a ela dirija Uma
vez essa criacutetica desconsiderada as chances de fracasso satildeo iminentes Em outras palavras
seria inoacutecuo tentar se esquivar da posiccedilatildeo ceacutetica Tanto eacute assim que como veremos estaraacute no
cerne da discussatildeo hegeliana acerca da fundamentaccedilatildeo em filosofia a preocupaccedilatildeo em
responder a uma possiacutevel criacutetica ceacutetica por exemplo por meio dos tropos de Agripa
Com efeito a filosofia especulativa seria aquela que a partir do ceticismo terminaria
por encontrar um outro caminho que natildeo fossem aqueles trilhados distintamente por ceacuteticos e
dogmaacuteticos Pelo menos eacute essa cremos a intenccedilatildeo de Hegel Quanto a saber se o objetivo foi
atingido ou natildeo trata-se de uma questatildeo que natildeo assumimos o compromisso de respondecirc-la
A propoacutesito seria possiacutevel ao ceacutetico considerar que a filosofia especulativa natildeo fosse
dogmaacutetica Para tentar responder questotildees desse teor talvez fosse necessaacuterio levar em conta
outros elementos implicados nessa discussatildeo Nesse sentido poderiacuteamos aqui por um lado
nos fazermos de advogado do ceacutetico contra Hegel e sustentar em seu favor como um ceacutetico
poderia acreditar na sinceridade de Hegel quando este avalia positivamente sua filosofia De
fato a linguagem de Hegel seu vocabulaacuterio a complexidade de sua filosofia e a pretensatildeo em
ir aleacutem da diaphoniacutea filosoacutefica datildeo razatildeo para o ceacutetico se afastar dessa filosofia como se esta
representasse mais uma forma de dogmatismo Por outro lado em favor de Hegel e contra o
ceacutetico poder-se-ia entre outras coisas afirmar como ele poderia bom conhecedor que era da
filosofia ceacutetica pretender elaborar um sistema filosoacutefico assentado nas mesmas balizas que o
fizeram as filosofias anteriores Estaria ele na hora de elaborar sua filosofia simplesmente se
esquecendo como que acometido de uma amneacutesia momentacircnea daquilo que positivamente
avaliara no ceticismo 7
7 Parece-nos talvez que Geacuterard Lebrun procurou avanccedilar uma resposta no sentido de mostrar que Hegel continua de onde o ceacutetico paacutera Natildeo haveria assim conflito entre os ceacuteticos e Hegel apenas que ele teria levado mais adiante a investigaccedilatildeo que os ceacuteticos por precipitaccedilatildeo deixaram ainda por fazer Vaacuterias satildeo as passagens em que Lebrun nos daacute a impressatildeo de considerar a filosofia hegeliana como uma espeacutecie de terapecircutica filosoacutefica da
22
Para aleacutem da disputa entre Hegel e o ceticismo talvez a questatildeo a ser feita devesse ser
formulada nos seguintes termos o que distinguiria essa filosofia que ao mesmo tempo
acolhe e afasta de si o ceticismo das outras filosofias O que significa essa filosofia que
almeja nem ser dogmatismo nem ceticismo
Neste estudo nossa proposta eacute a de perscrutar tendo a questatildeo do meacutetodo filosoacutefico
como ponto de fuga a respeito da singularidade dessa filosofia que se quer localizar fora dos
limites dessa arena onde se confrontam dogmaacuteticos e ceacuteticos Assim articulamos este
trabalho em duas partes na primeira trataremos especificamente do ceticismo isto eacute tanto do
ceticismo antigo (cap 1) quanto do ceticismo de acordo com a leitura que dele Hegel faz
(caps 2 e 3) A retomada do ceticismo pirrocircnico serve principalmente para que
comparativamente tenhamos elementos suficientes para avaliar a leitura hegeliana do
pirronismo e tentar melhor compreender o que levou o filoacutesofo a integrar o ceticismo em seu
sistema A seguir com a abordagem de textos de Hegel ndash de vaacuterias fases de sua obra ndash nos
quais o ceticismo ou eacute o tema principal ou esteja fundamentalmente implicado na discussatildeo
desenvolvida poderemos assim tomar aprofundadamente contato com sua interpretaccedilatildeo e
anaacutelise do ceticismo Dessa maneira teremos condiccedilotildees de compreender em que aspectos o
ceticismo positivamente avaliado torna-se importante para a concepccedilatildeo filosoacutefica hegeliana
e faz entatildeo com que ele mereccedila ser integrado agrave filosofia especulativa Aleacutem disso poderemos
observar por que ele ao mesmo tempo eacute limitado Por que por exemplo a espeacutecie de
negaccedilatildeo envolvida na investigaccedilatildeo ceacutetica significa para Hegel a admissatildeo de pressupostos que
mereceriam ser examinados Fundamentalmente a filosofia ceacutetica para Hegel tambeacutem natildeo eacute
isenta de pressupostos que mereceriam ser examinados e satildeo esses pressupostos que
impedem a ela de estender sua criacutetica ao pensamento especulativo
Na segunda parte de nosso trabalho tratamos particularmente da reformulaccedilatildeo
hegeliana do conceito de contradiccedilatildeo (cap 4) a partir da anaacutelise das determinaccedilotildees de
reflexatildeo na Loacutegica da Essecircncia Aleacutem disso no capiacutetulo 5 veremos como os resultados
obtidos no capiacutetulo anterior se refletem na constituiccedilatildeo de seu meacutetodo dialeacutetico-especulativo
tal como desenvolvido no capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica a Ideacuteia Absoluta Seraacute somente
assim a partir dessa ocupaccedilatildeo com a temaacutetica do meacutetodo que poderemos observar como a
linguagem Hegel assim natildeo seria um dogmaacutetico mas em certa medida seria antes o continuador da tarefa investigativa ceacutetica Ver a propoacutesito A paciecircncia do conceito cap 5 ldquoA dialeacutetica nos limites da simples razatildeordquo
23
filosofia especulativa procura ao mesmo tempo vencer as limitaccedilotildees do ceticismo e integraacute-
lo reformulado a si proacutepria
Em todo nosso percurso portanto a preocupaccedilatildeo principal eacute conduzir a pesquisa de
acordo com a tentativa de se compreender na elaboraccedilatildeo da dialeacutetica hegeliana como o
ceticismo pode ser superado e ao mesmo tempo conservado na filosofia hegeliana como o
lado negativo de seu meacutetodo dialeacutetico-especulativo Que natildeo haacute como se esquivar do
ceticismo pelo contraacuterio deve-se dele partir para que a filosofia natildeo seja viacutetima das suas
aporias Essa eacute a via que Hegel encontra para natildeo se tornar um pirrocircnico e simultaneamente
natildeo poder ser alvo da criacutetica ceacutetica
25
I ndash Ceticismo pirrocircnico e ceticismo na perspectiva hegeliana
Capiacutetulo 1 ndash O ceticismo pirrocircnico
Na histoacuteria da filosofia ocupa o ceticismo uma posiccedilatildeo singular Isto se deve ao fato
dele pretender ser uma forma de filosofar que natildeo possui e nem sustenta doutrinas e dogmas
E por doutrina filosoacutefica entendamos o conjunto de teses que uma filosofia procura apresentar
por meio de argumentos concatenados que por fim pretendam nos fazer crer que atingimos
por exemplo algo de verdadeiro a respeito do que eacute investigado Natildeo importa que uma
filosofia seja construiacuteda ou natildeo na forma de um sistema de teses concatenadas e desdobradas
por argumentos ou numa forma natildeo-sistemaacutetica isto eacute por exemplo na forma de aforismos O
que importa eacute que se pretenda afirmar algo de absoluto e verdadeiro a respeito do tema
filosoacutefico exposto8
Como veremos mais adiante o ceacutetico natildeo procura apresentar teses que afirmem com
verdade absoluta e aqui tanto faz se positiva ou negativamente a respeito de um tema
qualquer Ele de fato natildeo sustenta teses pelo contraacuterio procura se manter afastado de
qualquer espeacutecie de enunciaccedilatildeo que remotamente lembre o discurso teacutetico Mas se sua
filosofia natildeo pode ser considerada doutrinal da maneira acima exposta se ela natildeo pretende
dizer o verdadeiro ou como algo seria em sua verdadeira realidade entatildeo o que poderia ser
essa filosofia que vai na contramatildeo do que comumente nos acostumamos a entender por
filosofia Se o ceticismo natildeo possui uma doutrina entatildeo o que sobraria dessa filosofia
Poderia parecer agrave primeira vista que francamente pouca coisa Se uma filosofia natildeo possui
doutrina entatildeo o que seria e teria a oferecer Qual deveria ser para finalmente entrarmos no
nosso assunto o interesse que Hegel teria tido nessa filosofia sui generis
Antes de prosseguir conveacutem notar que quando nos referimos a ceticismo estamos nos
referindo ao ceticismo antigo Mais especificamente ao ceticismo tal como apresentado por
8 Cf Sexto Empiacuterico Outlines of Pyrrhonism (Hipotiposes Pirronianas) vol 1 Ed Por RG Bury Cambridge Harvard University Press 2000 livro I paraacutegrafos 13-15 [doravante citado como HP seguido da indicaccedilatildeo do livro e do paraacutegrafo]
26
Sexto Empiacuterico nas suas Hipotiposes Pirronianas e que tambeacutem poderiacuteamos denominar de
ceticismo pirrocircnico em virtude da filiaccedilatildeo que Sexto estabelece entre esse ceticismo e Pirro9
Voltando a Hegel a forma de ceticismo que lhe interessa eacute a antiga Aleacutem disso o
ponto interessante dessa filosofia seria para ele justamente essa sua falta de conteuacutedo
doutrinal Seratildeo justamente algumas caracteriacutesticas definidoras do ceticismo pirrocircnico e que o
tornam diferente das demais filosofias que faratildeo Hegel se aproximar dessa filosofia Mas o
que poder-se-ia perguntar numa filosofia natildeo-doutrinal pode haver de atrativo
filosoficamente falando Ainda mais quando se sabe que na longa histoacuteria da filosofia o
ceticismo foi em larga medida mal visto foi considerado de modo predominante uma forma
menor de pensamento Eacute certo que houve muitas vozes discordantes e algumas de peso
Hegel eacute uma delas o que todavia natildeo impede que o juiacutezo negativo tenha sido preponderante
Mas graccedilas a que a quais motivos o ceticismo foi sempre atacado O que para a
filosofia que natildeo se quer ceacutetica haveria de tatildeo perigoso nele
Podemos desde jaacute adiantar que na apreciaccedilatildeo positiva do ceticismo antigo por parte de
Hegel haacute espaccedilo para criacuteticas a essa filosofia A posiccedilatildeo de Hegel em relaccedilatildeo ao ceticismo
natildeo consiste eacute o que nos parece nem em uma mera adesatildeo integral e nem em uma simples
tentativa de refutaccedilatildeo do mesmo Cremos que a questatildeo vaacute aleacutem disso Mas que espeacutecie de
relacionamento portanto se estabelece entre a filosofia de Hegel e o ceticismo Se natildeo haacute
nem adesatildeo e nem recusa a essa filosofia o que haveria entatildeo
Mas antes de tentar responder agraves questotildees haacute pouco esboccediladas comecemos por uma
breve exposiccedilatildeo do ceticismo pirrocircnico a partir das Hipotiposes Pirronianas de Sexto
Empiacuterico Uma exposiccedilatildeo que vai se ater ao delineamento dos traccedilos principais dessa
filosofia Talvez assim fique mais faacutecil e claro compreender natildeo soacute a leitura a nosso ver
9 Acerca da filiaccedilatildeo do ceticismo a Pirro eacute uacutetil citar a seguinte observaccedilatildeo de Oswaldo Porchat ldquoTambeacutem o termo lsquoceticismorsquo se usa no vocabulaacuterio filosoacutefico em diferentes sentidos Vou considerar o termo aqui somente com referecircncia ao pirronismo grego doutrina que se desenvolveu no seacuteculo I antes de Cristo e nos primeiros seacuteculos de nossa era Nossa principal fonte para o estudo do pirronismo eacute a obra de Sexto Empiacuterico que provavelmente viveu na uacuteltima metade do seacuteculo II Os pirrocircnicos se chamaram a si mesmos de lsquoceacuteticosrsquo (skeptikoiacute em grego) e esse termo aparentado ao verbo skeacuteptomai tatildeo-somente significava lsquoaqueles que observamrsquo isto eacute lsquoaqueles que examinam consideram com atenccedilatildeorsquo O nome lsquopirrocircnicosrsquo lhes foi dado porque invocavam o nome do lendaacuterio filoacutesofo Pirro contemporacircneo e companheiro das expediccedilotildees de Alexandre como inspirador de sua doutrinardquo (Cf Porchat O ldquoEmpirismo e ceticismordquo In Rumo ao ceticismo Satildeo Paulo Ed Unesp 2006 p 296) E para uma discussatildeo em torno da filiaccedilatildeo do ceticismo a Pirro ou de sua natildeo-filiaccedilatildeo como no caso do ceticismo chamado de acadecircmico cf Bolzani F R Acadecircmicos versus Pirrocircnicos Tese de Doutorado FFLCH-USP 2003 p2 e ss
27
rigorosa e atenta que Hegel faz do ceticismo como tambeacutem em que medida essa filosofia se
incorpora agrave filosofia hegeliana
Que a filosofia ceacutetica possui um caraacuteter singular que ela como veremos pela
descriccedilatildeo de Sexto Empiacuterico natildeo corresponde agrave maneira ldquotradicionalrdquo de filosofar eacute
declarado de modo bastante niacutetido desde as primeiras linhas das Hipotiposes Pirronianas
Sexto inicia o livro distinguindo as trecircs espeacutecies de filoacutesofos que pode haver de acordo
com o resultado que cada um alcanccedila na sua investigaccedilatildeo10 Assim existem aqueles que em
virtude do resultado de suas investigaccedilotildees declaram ter descoberto a verdade outros
declaram natildeo poder ser apreendida a verdade e por fim haacute aqueles que continuam a
investigar E por que continuam a investigar Porque provavelmente natildeo chegaram a nenhum
resultado conclusivo como no caso das duas outras espeacutecies de filosofia natildeo se consideram
capazes de emitir nenhuma declaraccedilatildeo positiva ou negativa a respeito da existecircncia de uma
suposta verdade filosoacutefica
Sexto denomina entatildeo aqueles filoacutesofos que declaram ter obtido a verdade como
resultado de suas investigaccedilotildees de ldquodogmaacuteticosrdquo aqueles que afirmam ser a verdade
inapreensiacutevel de acadecircmicos e aqueles que continuam a investigar de ceacuteticos As filosofias se
dividem portanto em dogmaacutetica acadecircmica e ceacutetica
Desse iniacutecio das Hipotiposes jaacute se pode depreender que o que vai distanciando o
ceticismo das outras duas espeacutecies de filosofia eacute o fato dele natildeo chegar a uma verdade que
ponha termo agrave investigaccedilatildeo Mas devido a que motivo ou motivos o ceacutetico continua a
investigar E se ele continua a investigar eacute porque talvez ainda pretende chegar a algum
resultado parecido com aqueles que as filosofias dogmaacutetica e acadecircmica chegaram Mas o
uacutenico resultado a que chegou apoacutes ter investigado foi diferente do que ocorreu aos outros
filoacutesofos natildeo chegar a nenhuma verdade Mas natildeo chegar a nenhum verdade numa
10 A esse respeito veja-se HP I 1-4
28
investigaccedilatildeo filosoacutefica natildeo eacute algo pelo menos agrave eacutepoca de Sexto que ocorresse com
frequumlecircncia Ainda mais caracterizar uma filosofia apenas como investigaccedilatildeo permanente
Tambeacutem soa estranho dizer que a descriccedilatildeo a ser feita da filosofia ceacutetica natildeo significa
que o que foi afirmado pretenda ser a expressatildeo de como as coisas satildeo mas antes como diz
Sexto Empiacuterico ldquocomo um cronista noacutes simplesmente relatamos cada fato como ele aparece
a noacutes no momentordquo11
Agrave primeira vista parece contraditoacuterio dizer que algo seraacute afirmado mas que o
afirmado natildeo seja exatamente ldquocomo noacutes o declaramosrdquo Parece assim que se afirma algo
mas que o peso dessa afirmaccedilatildeo ndash e aqui precisamente a respeito da proacutepria descriccedilatildeo da
filosofia ceacutetica ndash natildeo eacute relevante Ora a tomar as coisas dessa maneira ficamos com a
impressatildeo de que natildeo deveriacuteamos entatildeo considerar digno de creacutedito o que se declara da
filosofia ceacutetica A continuaccedilatildeo da frase causa ainda mais estranheza ao se dizer que o relato
concernente agrave filosofia ceacutetica se faz de acordo com o que aparece ao ceacutetico no momento da
descriccedilatildeo ou seja podemos talvez concluir que aquilo que eacute dito do ceticismo poderia variar
de acordo com o momento Hoje seria de um modo e amanhatilde seria de outro
Como veremos no curso desta exposiccedilatildeo a respeito do ceticismo pirrocircnico se
inicialmente a partir do que o proacuteprio Sexto afirma podemos ser levados a enxergar com
receio e a vislumbrar contradiccedilotildees nessa filosofia veremos entatildeo depois que haacute coerecircncia e
sentido nas formulaccedilotildees de Sexto por mais diferentes e estranhas que num primeiro
momento pareccedilam Afinal uma filosofia que se caracteriza pela persistecircncia na investigaccedilatildeo
e que parte da ideacuteia de que o dito a seu respeito natildeo deve ser considerado como as coisas satildeo
mas antes de acordo com o que nos aparece no momento natildeo representa a forma canocircnica de
se fazer filosofia no decorrer de sua histoacuteria
Assim como no caso das outras formas de filosofar a origem do ceticismo foi a
esperanccedila de obter tranquumlilidade (ataraxiacutea)12 Como o ceacutetico atinge a ataraxia isto eacute uma
questatildeo que vai depender para ser respondida de como ele se posiciona perante a
possibilidade de encontrar verdade ou falsidade naquilo que investiga pois inicialmente se
trata tambeacutem para ele de tentar encontrar algo de certo definitivo verdadeiro ndash positiva ou
negativamente ndash naquilo que investiga
11 Cf HP I 4
12 Cf HP I 12
29
Segundo o relato de Sexto tambeacutem o ceacutetico perturbado com as anomalias que
encontrava nas coisas desejava chegar a algo de certo por meio da investigaccedilatildeo a respeito do
que poderia ser verdadeiro ou falso no objeto da pesquisa13 Nesse aspecto o ceacutetico natildeo se
distingue dos chamados dogmaacuteticos e acadecircmicos Tambeacutem ele almejou obter a tranquumlilidade
a partir de uma investigaccedilatildeo filosoacutefica que tivesse seu teacutermino com a descoberta da verdade
ou falsidade nas coisas Em princiacutepio portanto estatildeo os filoacutesofos unidos pela busca do
mesmo fim a saber a ataraxiacutea
Mas se contudo os outros filoacutesofos ou descobriram a verdade ou descobriram que ela eacute
inapreensiacutevel dando por conseguinte um teacutermino agraves suas investigaccedilotildees o ceacutetico natildeo teve ndash se
eacute que podemos dizer isso a seu respeito ndash a mesma sorte
Da sua pesquisa natildeo chegou ao encontro da verdade ou falsidade nas coisas de modo
que ao final se tornasse livre de perturbaccedilotildees Ao contraacuterio o que conseguiu mesmo foi se
tornar mais perturbado Nas coisas investigadas encontrou apenas discordacircncia (diaphoniacutea)
anomalias contradiccedilotildees Natildeo se sentia capaz de assentir que isto era verdadeiro em
detrimento de outra ou outra hipoacutetese que seriam falsas Nenhuma alternativa mostrava-se
mais digna de creacutedito que a outra Dessa maneira a almejada tranquumlilidade fazia-se um
objetivo difiacutecil de ser realizado Pela via da busca do verdadeiro ou do falso do que as coisas
satildeo ou natildeo satildeo real e absolutamente um objetivo cada vez mais distante
E por que com relaccedilatildeo a essa busca as coisas se passariam desse modo A resposta se
encontra no acontecimento de um fato que acabaraacute por se tornar a caracteriacutestica definidora do
que eacute o ceticismo Mais precisamente no curso de sua investigaccedilatildeo filosoacutefica o ceacutetico
terminava sempre encontrando para cada possiacutevel argumento em favor da verdade ou
falsidade de qualquer tema um argumento contraacuterio de igual forccedila (isostheacuteneia) tornando-se
portanto difiacutecil decidir-se por um ou por outro lado14
A repeticcedilatildeo dessa experiecircncia leva o ceacutetico a descrer da possibilidade de que enfim
chegue aos mesmos resultados que as outras filosofias Ele natildeo se sente capaz de decidir entre
as alternativas opostas e igualmente persuasivas A saiacuteda desse impasse natildeo consistiraacute na
opccedilatildeo por um lado ou por outro mas antes natildeo haveraacute decisatildeo nenhuma nesse sentido o que
13 Cf HP I 12
14 Cf HP I 10 tambeacutem 202-5
30
acontece sim eacute ele ser levado agrave suspensatildeo de juiacutezo (epokheacute)15 isto eacute a um estado do intelecto
(staacutesis dianoiacuteas) devido ao qual natildeo se sente capaz de nem afirmar nem negar algo16
Na suspensatildeo do juiacutezo se cristaliza essa incapacidade do ceacutetico se decidir agrave maneira
dogmaacutetica Eacute importante frisar que para a efetivaccedilatildeo da suspensatildeo de juiacutezo natildeo haacute uma atitude
deliberada e positiva do ceacutetico para que tenha o juiacutezo suspenso Ele natildeo decide que iraacute
suspender seu juiacutezo Como Sexto assinala ldquonoacutes somos levados em primeiro lugar a um estado
de intelecto suspensivordquo17
Como vemos a epokheacute eacute um estado do intelecto a que o ceacutetico eacute levado por fruto do
conflito indecidiacutevel que encontra nas coisas que investiga Reiteradamente encontra-se
diante de alternativas opostas uma tatildeo persuasiva quanto a outra Como decidir A partir de
qual criteacuterio tomar essa decisatildeo A precipitaccedilatildeo a imoderaccedilatildeo e porque natildeo dizer o capricho
e vaidade do ldquodogmaacuteticordquo contribuem para sua decisatildeo excludente de uma das alternativas
Caso fosse mais ponderado menos afoito talvez natildeo decidisse tatildeo raacutepido Do ponto de vista
do ceacutetico o problema do dogmatismo reside nisso sua precipitaccedilatildeo (propeacuteteia)
Mas voltando agrave questatildeo da incapacidade de decisatildeo devido agrave equumlipolecircncia
(isostheacuteneia) dos opostos isto eacute por forccedila da igualdade quanto agrave credibilidade e natildeo-
credibilidade dos contrapostos natildeo haacute meio de se fazer uma opccedilatildeo Soacute resta enfim suspender
o juiacutezo E como consequumlecircncia da suspensatildeo adveacutem casualmente a tranquumlilidade (ataraxiacutea)
Natildeo pretendemos adentrar neste momento no tema referente ao significado da
tranquumlilidade no ceticismo pirrocircnico conveacutem antes explicitar porque a oposiccedilatildeo de
argumentos se torna a caracteriacutestica definidora da atitude (agogeacute) filosoacutefica ceacutetica
A agogeacute ceacutetica
A certa altura do iniacutecio das Hipotiposes Sexto apresenta uma definiccedilatildeo do que eacute o
ceticismo ldquoeacute uma habilidade ou atitude intelectual que opotildee fenocircmenos a nuacutemenos de todas
15 Cf HP I 7 10 26 165
16 Cf HP I 10
17 Cf HP I 8
31
as maneiras tendo como resultado que devido agrave equipotecircncia dos objetos e discursos (loacutegois)
assim opostos somos noacutes levados primeiro a um estado suspensivo do intelecto e em seguida
a um estado de tranquumlilidade (ataraxiacutea)rdquo18
Da descriccedilatildeo acima podemos perceber que eacute fundamental para a caracterizaccedilatildeo da
filosofia ceacutetica a oposiccedilatildeo de um discurso a outro Natildeo eacute por outro motivo que Sexto
apresenta como princiacutepio baacutesico do ceticismo a oposiccedilatildeo de todo discurso a um discurso de
igual forccedila (pantiacute loacutegoi loacutegon ison antikeiacutesthai)19
Devido a que poderiacuteamos agora perguntar o ceticismo se caracteriza como uma tal
atitude (agogeacute) um tal modo de proceder
Eacute a renovada experiecircncia do conflito (diaphoniacutea) das posiccedilotildees contraacuterias que o leva a
adotar essa postura como caracterizadora da filosofia ceacutetica Diferente dos ldquodogmaacuteticosrdquo o
ceacutetico natildeo vecirc como adotar outra postura Natildeo eacute nem uma nem satildeo duas vezes que ele se vecirc
diante de discursos opostos de igual persuasividade A cada nova investigaccedilatildeo depara-se ele
com a isostheacuteneia e por consequumlecircncia eacute levado agrave suspensatildeo de juiacutezo Dessa maneira
podemos supor diante dessa frequumlente experiecircncia resolve mudar de atitude a ponto de
caracterizar sua postura filosoacutefica desse modo ineacutedito
A preocupaccedilatildeo central agora eacute tentar opor a cada discurso aquele outro que se lhe
contrapotildee tornando-se assim difiacutecil dar assentimento a um dos lados opostos em virtude da
igualdade de ambos os lados quanto agrave credibilidade ou natildeo-credibilidade do que por ele eacute
declarado Se o ldquodogmaacuteticordquo tem como meta primeira tentar apreender aquilo que eacute real
verdadeiro e nessa busca podendo chegar agrave conclusatildeo de que a apreensatildeo do real do
verdadeiro comporta duas hipoacuteteses a saber ser possiacutevel ou natildeo ser possiacutevel a apreensatildeo jaacute
o ceacutetico teraacute essa meta apenas em um horizonte distante isto eacute caberaacute primeiro exercitar a
atitude opositiva Essa espeacutecie de decepccedilatildeo a que eacute acometido toda vez que encontra conflito
nas posiccedilotildees dogmaacuteticas leva-o a adotar essa atitude com relaccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo filosoacutefica
Eacute preciso sublinhar que a atitude opositiva ceacutetica natildeo se realiza apenas com relaccedilatildeo a
temas filosoacuteficos Como estaacute descrito naquela definiccedilatildeo haacute pouco citada20 a oposiccedilatildeo se faz
18 Cf HP I 8
19 Cf HP I 12 tambeacutem HP I 8
20 Cf HP I 8
32
entre fenocircmenos e nuacutemenos de todas as maneiras Isto quer dizer que a oposiccedilatildeo natildeo segue
um certo protocolo que regule sua realizaccedilatildeo Ela se faz de variadas maneiras21 fenocircmenos a
fenocircmenos nuacutemenos a nuacutemenos fenocircmenos a nuacutemenos e por aiacute adiante Com efeito o que
Sexto pretende mostrar eacute que o conflito se pode estabelecer de muitos modos possiacuteveis Um
argumento pode se opor a uma suposta evidecircncia fenomenal Exemplo disso temos na
contestaccedilatildeo feita por Anaxaacutegoras contra o fato da neve ser branca com base no argumento de
que se a neve eacute aacutegua congelada e a aacutegua eacute preta por conseguinte a neve tambeacutem eacute preta22 O
que importa aqui portanto eacute mostrar que a oposiccedilatildeo natildeo estaacute sujeita a regras estritas ao
contraacuterio ela se efetua das mais variadas maneiras e com vistas a produzir discursos
conflitantes equumlipotentes ou seja discursos que natildeo podem ter precedecircncia um em relaccedilatildeo ao
outro quanto a ser mais digno de creacutedito23
Se o ceacutetico natildeo consegue tomar uma decisatildeo entre duas alternativas equumlipotentes
entatildeo ele eacute levado a suspender seu juiacutezo Isto significa que ele se vecirc incapacitado de decidir agrave
maneira dogmaacutetica ou seja ele natildeo correraacute o risco de dogmatizar Eacute nesse espiacuterito que eacute dito
nas Hipotiposes que em virtude da oposiccedilatildeo de argumentos ter-se-aacute como consequumlecircncia o
ceacutetico cessar de dogmatizar24 E o que quereria dizer de um modo um pouco mais preciso
cessar de dogmatizar Sexto de antematildeo esclarece que dogma natildeo deve ser aqui entendido
como o simples fato de aceitar algo determinado isto eacute o ceacutetico daria seu assentimento agraves
afecccedilotildees que a ele se impotildeem atraveacutes de uma impressatildeo Ele assim natildeo diria que natildeo lhe
parece que tenha calor ou frio ao ter a sensaccedilatildeo de calor ou frio25 Noutras palavras se ele
sente frio ele natildeo diraacute que natildeo sente frio Se dogma for entatildeo pensado no sentido do exemplo
exposto agora natildeo teria o ceacutetico nada que a ele se opor visto natildeo estar assim dogmatizando
21 Cf HP I 9
22 Cf HP I 33
23 Cf HP I 10
24 Cf HP I 12
25 Cf HP I 13
33
De fato dogma no sentido acima estaacute muito mais proacuteximo daquilo que o ceacutetico entende por
fenocircmeno Posto isso voltemos agrave questatildeo referente ao significado do ceacutetico ldquocessar de
dogmatizarrdquo
Se nos ativermos apenas agrave passagem do texto na qual Sexto expotildee a questatildeo de modo
expliacutecito poderiacuteamos ficar com a impressatildeo de que o ceacutetico esboccedila uma restriccedilatildeo ao alcance
de sua investigaccedilatildeo Tal impressatildeo poder-se-ia assim confirmar porque laacute se declara que o
ceacutetico natildeo dogmatiza caso tomemos o termo doacutegma como ldquoassentimento a qualquer das
coisas natildeo-evidentes investigadas nas ciecircnciasrdquo26 Desse modo parece que a investigaccedilatildeo
restringe-se apenas aos produtos de elaboraccedilotildees conceituais mais sofisticadas o que seria o
caso correspondente agraves ciecircncias Todavia natildeo eacute essa a intenccedilatildeo uacutenica do ceacutetico Seu escopo eacute
mais geral pois ele natildeo pretende dogmatizar natildeo apenas em relaccedilatildeo agraves ciecircncias mas tambeacutem
em relaccedilatildeo a qualquer coisa que seja natildeo-evidente
ldquoCom efeito o pirrocircnico natildeo daacute seu assentimento a nenhum dos natildeo-evidentesrdquo27
Em outra passagem das Hipotiposes veremos que a intenccedilatildeo do ceacutetico ao natildeo
dogmatizar eacute de caraacuteter mais geral pois a natildeo-evidecircncia abrange qualquer coisa objeto de
controveacutersia ldquoAliaacutes as coisas controvertidas na medida mesma em que satildeo controvertidas
exibem sua natildeo-evidecircnciardquo28 Aqui natildeo haacute mais referecircncia a objetos de uma determinada
espeacutecie visto que satildeo consideradas natildeo-evidentes simplesmente as coisas controvertidas
Devemos lembrar tambeacutem a discussatildeo haacute pouco feita a respeito da definiccedilatildeo do
ceticismo29 especificamente no que se refere agrave oposiccedilatildeo ceacutetica se realizar das mais variadas
maneiras possiacuteveis ou seja que natildeo haacute restriccedilatildeo quanto ao que vai se contrapor nuacutemenos a
fenocircmenos fenocircmenos a fenocircmenos nuacutemenos a nuacutemenos e assim por diante
26 Cf HP I 13
27 Cf HP I 13
28 Cf HP I 182
29 Ver a respeito pp 30-32 deste estudo
34
Se eacute assim entatildeo que as coisas procedem eacute porque a controveacutersia se estabelece
indiscriminadamente onde houver conflito e discrepacircncia de opiniotildees natildeo importa quanto a
quecirc existiraacute controveacutersia a respeito do que eacute natildeo-evidente30 Por aiacute jaacute podemos ter uma
amostra da radicalidade da criacutetica ceacutetica Natildeo haacute nada que fique a salvo de suas investidas31
Tal radicalidade do ceticismo trouxe por outro lado problemas ao ceacutetico pois a sua criacutetica
foi alvo de muita incompreensatildeo
A partir de agora e ainda no acircmbito dessa discussatildeo acerca do ceacutetico evitar
dogmatizar conveacutem analisar a questatildeo concernente ao estatuto natildeo-dogmaacutetico da linguagem
ceacutetica
Quando no iniacutecio das Hipotiposes Sexto nos alerta para o fato de que suas afirmaccedilotildees
natildeo podem ser tomadas exatamente tal como proferidas e que o alegado a respeito do
ceticismo tem de ser encarado como o relato de um cronista32 Sexto estaacute apenas se
expressando eacute o que nos parece de acordo com uma concepccedilatildeo natildeo-dogmaacutetica da linguagem
ou tambeacutem poderiacuteamos dizer uma concepccedilatildeo ldquomais frouxardquo da mesma
A ideacuteia central para que possamos compreender o caraacuteter das foacutermulas ceacuteticas eacute a de
instrumentalidade O ceacutetico natildeo busca como o dogmaacutetico dizer o real o verdadeiro como as
30 No mesmo sentido Roberto Bolzani sustenta que a contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos natildeo se restringe a determinada classe de objetos isto eacute natildeo se restringe apenas a discursos filosoacuteficos ou cientiacuteficos mas que abrange tambeacutem opiniotildees de caraacuteter mais ruacutestico como por exemplo a suposta lsquoevidecircncia sensiacutevelrsquo de que lsquoagora eacute diarsquo ldquo[] a contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos diz respeito a lsquofenocircmenosrsquo e lsquonuacutemenosrsquo o que significa que a mais simples ndash e na verdade problemaacutetica ndash lsquoevidecircncia sensiacutevelrsquo natildeo escapa de seu caminho A isostheacuteneia natildeo ocorre apenas entre discursos filosoacuteficos que respectivamente afirmem ou neguem por exemplo a existecircncia de uma providecircncia no mundo encontra-se tambeacutem entre duas diferentes visotildees de uma torre ndash uma proacutexima mostrando-a redonda outra distante revelando-a quadrada (cf HP I 32) E natildeo haacute diferenccedila de intensidade persuasiva entre pretensas evidecircncias oriundas de diferentes fontes argumentos e dados sensoriais imediatos todos se misturam em isostheacuteneia como se vecirc por exemplo na anaacutelise do tempo lsquoa julgar pelos fenocircmenos o tempo parece ser algo mas a julgar pelos fenocircmenos o movimento eacute algo mas a julgar pelo discurso filosoacutefico natildeo existersquo(AM X 49)rdquo Cf Bolzani R O ceticismo pirrocircnico na obra de Sexto Empiacuterico Dissertaccedilatildeo de Mestrado FFLCH-USP 1992 pp 36-37
31 Essa criacutetica radical que chamaraacute a atenccedilatildeo de Hegel para a filosofia ceacutetica
32 Cf HP I 4
35
coisas (praacutegmata)33 satildeo em si mesmas Natildeo tenciona que suas asserccedilotildees suas foacutermulas sejam
a expressatildeo de qualquer sentido absoluto O ldquodogmaacuteticordquo sim ele tenciona fornecer um
caraacuteter absoluto verdadeiro ao que afirma Tambeacutem o homem comum muitas vezes intenta se
expressar a respeito de qualquer aspecto de sua vida num sentido amplo de uma maneira
dogmaacutetica isto eacute que possa dizer algo absoluta e verdadeiramente Apenas conveacutem notar
que ele o faz sem a sofisticaccedilatildeo e a elaboraccedilatildeo do discurso filosoacutefico
Diferente dos filoacutesofos e do homem comum ldquoo ceacutetico natildeo potildee suas foacutermulas em
nenhum sentido absolutordquo34 Fundamentalmente o que ele diz natildeo possui a intenccedilatildeo de
expressar o real o verdadeiro o absoluto Em outras palavras natildeo pretende por meio de seu
discurso dogmatizar Tanto na sua vida quanto no combate ao dogmatismo procura ele
sempre evitar dogmatizar
Tomemos entatildeo como objeto de anaacutelise o combate ao dogmatismo e tentemos ver
nesse caso em que sentido ele se expressa mas sem dogmatizar
Quando o ceacutetico natildeo se sente capaz de declarar algo dogmaticamente a respeito das
coisas natildeo-evidentes que investiga simplesmente enuncia ele uma certa afecccedilatildeo Isto quer
dizer que ele apenas estaacute enunciando algo que a ele se impotildee e natildeo pode evitar a saber que
natildeo se vecirc em condiccedilotildees de dizer que isto eacute mais verdadeiro do que aquilo que esta tese
filosoacutefica seja mais plausiacutevel do que aquela outra em suma natildeo eacute capaz de asserir algo
dogmaticamente Neste sentido parece-nos que tecircm de ser compreendidas as ldquofoacutermulasrdquo dos
ceacuteticos anuacutencio de suas humanas afecccedilotildees35 daquilo que lhe aparece
Por natildeo conseguirem nem afirmar nem negar nada a respeito de qualquer tema natildeo-
evidente investigado acabam eles referindo-se a essa situaccedilatildeo pela qual passam por meio de
foacutermulas que expressam essa incapacidade
33 Coisas aqui devendo ser entendidas num sentido amplo ou seja com referecircncia tanto ao que chamamos de fenocircmeno quanto ao que chamamos de nuacutemenos A distinccedilatildeo entre fenocircmenos ou coisas sensiacuteveis e entre nuacutemenos ou coisas inteligiacuteveis eacute elaborada pelo assim chamado pensamento dogmaacutetico Vale antecipar que se o ceacutetico fala por exemplo em fenocircmenos natildeo estaacute ele se expressando dentro do quadro dessa distinccedilatildeo Na continuaccedilatildeo do nosso tratamento do tema da linguagem no ceticismo tentaremos esclarecer o motivo pelo qual o ceacutetico pode ainda se utilizar de termos carregados de significado dogmaacutetico sem no entanto incorrer em dogmatismo
34 Cf HP I 14
35 Cf HP I 203
36
Se essas foacutermulas podem transmitir a impressatildeo de que expressam como as coisas satildeo
absolutamente que o ceacutetico esteja afirmando ou negando algo eacute preciso atentar para o fato de
que essas foacutermulas satildeo expressotildees de algo que ao ceacutetico se impotildee que lhe aparece Tratam-se
de meras afecccedilotildees Ao dedicar algumas seccedilotildees das Hipotiposes36 ao comentaacuterio das foacutermulas
ceacuteticas natildeo eacute outra sua intenccedilatildeo que natildeo a de esclarecer de que maneira natildeo-dogmaacutetica elas
satildeo enunciadas e o que se pretende expressar por meio delas
Quando o ceacutetico diz por exemplo ldquoque todas as coisas satildeo indeterminadasrdquo natildeo
existe a tentativa de afirmar definitivamente que das coisas nada em nenhuma hipoacutetese possa
ser determinado Mas antes que a indeterminaccedilatildeo significa um estado de intelecto (paacutethos
dianoiacuteas) no qual o ceacutetico natildeo se sente capaz de negar ou afirmar algo e mais precisamente a
respeito de temas propostos pela investigaccedilatildeo dogmaacutetica isto eacute daquilo que eacute natildeo-evidente37
Assim38 quando diz que ldquotodas as coisas satildeo indeterminadasrdquo a palavra lsquosatildeorsquo apenas
quer significar lsquoaparece a elersquo e por lsquotodas as coisasrsquo ele somente se refere agraves coisas natildeo-
evidentes investigadas pelos dogmaacuteticos e que foram apenas essas objetos do seu exame
finalmente por lsquoindeterminadasrsquo quer ele dizer que agraves coisas opostas ou em relaccedilatildeo agraves quais
conflitam natildeo sejam [essas coisas natildeo-evidentes] superiores no que respeita agrave credibilidade
ou incredibilidade Sexto repete o mesmo procedimento de anaacutelise em relaccedilatildeo agraves outras
foacutermulas ceacuteticas apresentadas nas Hipotiposes e sempre com o intuito de apontar o caraacuteter
natildeo-dogmaacutetico das mesmas
Nesse contexto se pode compreender segundo o relato de Sexto porque essas
foacutermulas se cancelam juntamente com aquilo a que se aplica a duacutevida ceacutetica39 Cancelam-se
no sentido de que natildeo podem ser tomadas como testemunho de um dogma Nem poderia ser
de outra maneira pois se o ceacutetico natildeo pretende dogmatizar nem suas proacuteprias declaraccedilotildees a
respeito do seu estado de incapacidade em tomar uma decisatildeo podem contrariar a sua atitude
filosoacutefica
A propoacutesito de suas foacutermulas eacute bem conveniente a imagem que ele se utiliza para
esclarecer em que sentido suas foacutermulas satildeo anuladas por elas mesmas
36 Ver a respeito HP I 187-209
37 Cf HP I 198
38 Sobre o que se diraacute a seguir veja-se HP I 198
37
ldquoAliaacutes no que respeita agraves expressotildees ceacuteticas eacute preciso primeiro compreender que noacutes
natildeo fazemos nenhuma asserccedilatildeo positiva no que se refere a elas serem absolutamente
verdadeiras visto que noacutes dizemos que elas podem ser anuladas por si proacuteprias suprimindo-se
ao mesmo tempo que as coisas a propoacutesito das quais elas satildeo ditas assim como aquelas drogas
purificadoras que natildeo somente eliminam os humores do corpo mas tambeacutem a si mesmas com
os humores se expelemrdquo40
Uma vez cumprida sua funccedilatildeo essas foacutermulas podem ser descartadas O ceacutetico apenas
expressou por meio delas aquilo que lhe apareceu a saber que ele se encontra num estado no
qual natildeo se sente capaz de afirmar nem de negar algo e por isso eacute levado a suspender seu
juiacutezo
Sua relaccedilatildeo com a linguagem eacute de outra ordem que aquela que o dogmaacutetico
estabeleceu Este tem a preocupaccedilatildeo com a verdade das coisas com o possiacutevel caraacuteter
absoluto do que assere O ceacutetico natildeo sua preocupaccedilatildeo eacute por meio da linguagem exercer uma
atitude filosoacutefica singular que ao fim ao cabo e por um caminho diferente do trilhado pelo
dogmaacutetico trar-lhe-aacute a ataraxiacutea
O mesmo caraacuteter instrumental que apresentam as foacutermulas ceacuteticas tambeacutem
apresentam os argumentos de que utiliza tanto os criados por ele proacuteprio quanto os que toma
de empreacutestimo para produzir antinomias e assim combater o dogmatismo
A finalidade desses argumentos consiste em como acabou de ser assinalado produzir
antinomias isto eacute contrapor a um argumento posto pelos dogmaacuteticos um outro argumento
que devido agrave equipotecircncia (isostheacuteneia) impeccedila ao ceacutetico de se decidir por um ou por outro
visto que ambos os argumentos parecem ser igualmente persuasivos E uma vez dada a
isostheacuteneia essa posiccedilatildeo de equiliacutebrio das forccedilas em disputa o ceacutetico eacute conduzido agrave
suspensatildeo do juiacutezo
Os ldquoargumentos ceacuteticosrdquo natildeo tecircm portanto outra funccedilatildeo que haacute de levar o ceacutetico a
concretizar seu propoacutesito filosoacutefico natildeo-dogmaacutetico Eles servem como instrumentos que o
39 Cf HP I 14-15 206
40 Cf HP I 206
38
conduzem a isso Quando argumenta contra o dogmaacutetico natildeo procura ldquopocircrrdquo outras tantas
teses no lugar das que foram avanccediladas pelo dogmaacutetico41 A metaacutefora da escada presente no
uacuteltimo capiacutetulo do segundo livro de Contra os Loacutegicos refere-se explicitamente a essa
instrumentalidade dos argumentos utilizados
ldquoAssim como um homem pode apoacutes ter subido a um lugar alto por meio de uma
escada desfazer-se dela assim tambeacutem o ceacutetico ao atingir por via da argumentaccedilatildeo sua
lsquotesersquo que contradiz e portanto suprime uma formulaccedilatildeo lsquodogmaacuteticarsquo tambeacutem suprime no
mesmo movimento sua proacutepria argumentaccedilatildeordquo42
Uma vez chegado ao seu objetivo qual seja estabelecer uma posiccedilatildeo de equiliacutebrio
entre os argumentos opostos (isostheacuteneia) fazendo assim com que se torne um ato precipitado
decidir-se por um dos lados o ceacutetico pode abandonar seu argumento Como instrumento a
serviccedilo de sua atitude anti-dogmaacutetica cumpriu ele sua funccedilatildeo Esses argumentos natildeo
poderiam permanecer como se fossem a demonstraccedilatildeo de teses ceacuteticas opostas agraves teses
adversas levantadas pelos dogmaacuteticos Se pela sua forccedila eles podem fornecer a impressatildeo de
que expressam teses dogmaacuteticas afinal por meio deles o ceacutetico chega agrave epokheacute a
persuasividade desses argumentos eacute aparente43
41 Com respeito ao caraacuteter instrumental dos argumentos de que se utiliza o ceacutetico para construir antinomias cabe recorrer ao comentaacuterio de Oswaldo Porchat ldquoOs argumentos lsquodestrutivosrsquo satildeo construiacutedos no melhor estilo dogmaacutetico seguem os padrotildees da loacutegica e da demonstraccedilatildeo dogmaacutetica satildeo argumentos dogmaacuteticos sob esse prisma em nada se distinguem em natureza dos argumentos dogmaacuteticos lsquoconstrutivosrsquo com os quais se fazem conflitar Porque o que importa aos pirrocircnicos mostrar eacute precisamente esta ambivalecircncia fundamental e constitutiva da argumentaccedilatildeo dogmaacutetica que implica sua autodestruiccedilatildeo graccedilas agrave manifestaccedilatildeo da isostheacuteneia e agrave subsequumlente inevitabilidade da epokheacute O pirronismo faz o dogmatismo assim servir agrave denuacutencia do dogmatismo ele usa o dogmatismo instrumentalmenterdquo Cf Porchat O Rumo ao ceticismo pp 158-159
42 Cf AM VIII 481 In Contra os loacutegicos segundo livro ediccedilatildeo da Loeb Classical Library Willian Heinemann Londres trad de R G Bury 1983 vol 2
43 A propoacutesito da instrumentalidade dos argumentos proferidos pelos ceacuteticos veja-se tambeacutem a seguinte passagem das Hipotiposes ldquoMas eacute preciso saber que natildeo eacute nosso desiacutegnio asserir que eacute irreal o criteacuterio da verdade (isso seria dogmaacutetico) poreacutem jaacute que os dogmaacuteticos parecem ter estabelecido de modo persuasivo que haacute um criteacuterio da verdade noacutes lhe opusemos argumentos que parecem ser persuasivos nem sustentando que satildeo verdadeiros nem que satildeo mais persuasivos que seus contraacuterios mas inferindo a suspensatildeo de juiacutezo em virtude da aparente igual persuasividade desses argumentos e dos que foram expostos pelos dogmaacuteticosrdquo (Cf HP II 79 tambeacutem AM VII 443-4)
39
Tambeacutem aqui em relaccedilatildeo aos argumentos que os ceacuteticos apresentam contra os
argumentos dogmaacuteticos vale ser feita a comparaccedilatildeo dos mesmos com os remeacutedios purgativos
ndash e o ceacutetico a faz ndash pois esses argumentos de algum modo se suprimem a si proacuteprios
juntamente com aqueles outros que se pretendem probativos44
Em suma a linguagem para o ceacutetico eacute considerada de um ponto de vista bem diferente
do que ela o eacute para o dogmaacutetico Para este a linguagem deve ser veiacuteculo de transmissatildeo do
verdadeiro do que eacute absoluto daquilo que eacute natildeo-evidente Dessa perspectiva cada palavra
tem um peso precisa ser empregada de uma maneira muito especiacutefica a fim de que
determinada tese dogmaacutetica seja posta
Outra eacute todavia a perspectiva do ceacutetico as palavras expressotildees argumentos natildeo
possuem para ele essa capacidade de dizer o conhecimento a verdade o absoluto Elas apenas
satildeo o meio pelo qual declara aquilo que lhe aparece em determinado momento Como ele
mesmo diz seu uso da linguagem eacute frouxo natildeo pretende se expressar de modo preciso Assim
como agora se valeu deste termo pode substituiacute-lo por um outro com vistas a evitar que o
compreendam dogmaticamente45 Eacute-lhe indiferente que termos utilize na sua vida cotidiana
ou no seu ataque ao dogmatismo ldquonatildeo conveacutem ao ceacutetico disputar a respeito de palavras
(expressotildees)rdquo46
E aqui entra em cena um outro aspecto do ceticismo e que se vincula a essa forma natildeo-
dogmaacutetica de encarar a linguagem o ldquofenomenismordquo ceacutetico
A linguagem eacute apenas o meio pelo qual o ceacutetico expressa como foi dito em algumas
ocasiotildees neste estudo aquilo que lhe aparece E o que lhe aparece eacute tatildeo sujeito a variaccedilotildees
quanto a linguagem de que ele se utiliza Como veremos a noccedilatildeo de fenocircmeno vai
desempenhar um papel central na economia da filosofia ceacutetica Eacute por meio dela que o ceacutetico
passa a se orientar na sua vida comum e tambeacutem no exerciacutecio de sua atitude filosoacutefica natildeo-
44 Cf HP I 188 Ou ainda ldquoPois haacute muitas coisas que produzem em si proacuteprias o mesmo efeito que produzem em outras coisas Por exemplo assim como o fogo apoacutes consumir a madeira se destroacutei tambeacutem a si proacuteprio e da mesma maneira como os purgativos apoacutes expulsarem dos corpos os fluidos tambeacutem a si mesmos se expelem assim tambeacutem pode o argumento contra a prova ao ter destruiacutedo toda prova tambeacutem a si mesmo suprimir-serdquo (Cf AM VIII 480)
45 Cf HP I 207
46 Ibidem I 207
40
dogmaacutetica Mas o que propriamente significa o fenocircmeno para ele Por que ele seraacute o criteacuterio
segundo o qual ele se conduz
Uma vez que seja estabelecida a equumlipolecircncia isto eacute essa posiccedilatildeo de equiliacutebrio das
forccedilas em disputa o ceacutetico natildeo tendo como decidir por uma ou por outra alternativa dado
que ambas satildeo aparentemente uma tatildeo persuasiva quanto a outra eacute levado agrave epokheacute A
respeito de todas as formas de dogmatismo que investiga tanto os filosoacuteficos quanto os natildeo-
filosoacuteficos acaba sendo ele levado casualmente agrave suspensatildeo de seu juiacutezo
Se for incapaz de decidir fica a impressatildeo de que uma vez adotado o seu ponto de
vista estariacuteamos condenados agrave paralisia Fazer opccedilotildees tomar decisotildees tanto no plano praacutetico
quanto no plano discursivo de alguma forma envolve que se considere que isto eacute preferiacutevel a
aquilo outro que um seja melhor que o outro em determinada situaccedilatildeo Se um ceacutetico se vecirc na
incapacidade de preferir isto a aquilo outro se natildeo consegue decidir visto que encontra
reiteradamente um conflito indecidiacutevel nas coisas que na sua investigaccedilatildeo dos natildeo-evidentes
um equiliacutebrio das posiccedilotildees opostas se estabelece como algueacutem poderia continuar a viver caso
pautasse sua vida pelo ceticismo O resultado da empresa ceacutetica soacute poderia ser mesmo a
paralisia a impossibilidade do agir no seu sentido mais geral
Um dogmaacutetico entatildeo poderia dizer que o ceacutetico assim como ele para agir precisa
decidir E se decidiu teve de considerar que esta decisatildeo eacute melhor que a outra segundo algum
criteacuterio que ele todavia outrora criticou como dogmaacutetico E natildeo haveria como acontecer de
outra forma afinal como poderiacuteamos prosseguir com nossa vida sem que tomaacutessemos
qualquer forma de decisatildeo
De fato o ceacutetico natildeo permaneceraacute inativo em virtude da sua incapacidade de decidir e
que o leva agrave suspensatildeo de juiacutezo Ele como qualquer outro homem continuaraacute tomando
decisotildees e levando adiante sua vida Mas como eacute possiacutevel que apoacutes a epokheacute deixe de ser
inativo sem que ao mesmo tempo acabe por contradizer a sua proacutepria postura filosoacutefica
A resposta estaacute no criteacuterio que vai guiar sua conduta o fenocircmeno Como sabemos o
ceacutetico natildeo tem instrumentos suficientes que lhe permitam decidir a respeito da verdade ou da
41
falsidade de uma teoria que porventura pretenda apresentar a verdade Ele natildeo tem mesmo
como decidir se no acircmbito da experiecircncia sensiacutevel mais comezinha se o mel eacute realmente
doce ou natildeo Enfim tanto no acircmbito dos discursos mais sofisticados da filosofia ou da ciecircncia
quanto no acircmbito de tudo que diga respeito agrave sua vida de homem comum natildeo tem como
proferir um juiacutezo de caraacuteter dogmaacutetico Com o apoio de qual criteacuterio poderaacute decidir que isto eacute
verdadeiro e aquilo falso Naquilo que investiga em relaccedilatildeo ao que se diz dogmaticamente
natildeo consegue encontrar um criteacuterio que lhe permita ter ecircxito na busca pela verdade realidade
das coisas assim como o faz o dogmaacutetico Por toda a parte encontra conflito e desacordo
Para alguns o criteacuterio da verdade possui tais e tais caracteriacutesticas para outros ele possui
caracteriacutesticas diferentes Para outros ainda nem haveria um criteacuterio de verdade47 A noccedilatildeo de
criteacuterio proposta pelos dogmaacuteticos qualquer que ela seja ndash filosoacutefica ou natildeo mais ou menos
elaborada ndash acaba sempre natildeo passando ilesa pelo exame ceacutetico Nos termos pretendidos
pelos dogmaacuteticos natildeo haacute como o ceacutetico natildeo ser levado a suspender seu juiacutezo em relaccedilatildeo a
essa noccedilatildeo Guiar-se por um criteacuterio de maneira anaacuteloga a que os dogmaacuteticos o fazem
significa para o ceacutetico ir portanto contra a orientaccedilatildeo central de sua atitude filosoacutefica Como
obter um criteacuterio que permita concluir pela verdade de que as coisas sejam realmente desta ou
daquela maneira Toda vez que investigou se este ou aquele criteacuterio eacute o verdadeiro o ceacutetico
em acordo com sua atitude investigativa apenas foi trazido agravequele estado de incapacidade de
se decidir agrave maneira dogmaacutetica que assim fez com que suspendesse seu juiacutezo
Eacute em virtude do que acima dissemos que criteacuterio para ele natildeo pode ser entendido
como ldquoaquele a que recorremos para nos convencer da realidade ou da natildeo-realidade de
qualquer coisardquo48
Em que sentido poderiacuteamos entatildeo falar ainda em criteacuterio Para o ceacutetico o criteacuterio seraacute
como jaacute foi mencionado o ldquofenocircmenordquo o que aparece (tograve phainoacutemenon) aquilo que lhe
permite natildeo permanecer inativo em virtude da epokheacute e ldquoconforme ao qual na conduta da
vida praticamos certas accedilotildees e nos abstemos de outrasrdquo49
Se o ceacutetico assim como qualquer outro natildeo estaacute impossibilitado de agir visto que age
de acordo com o que lhe aparece isto que lhe aparece e o faz agir natildeo envolve alguma espeacutecie
47 Para uma discussatildeo geral da problemaacutetica do criteacuterio cf HP II 14-79
48 Cf HP I 21
49 Cf HP I 21
42
de decisatildeo baseada em algum criteacuterio dogmaacutetico a respeito do que quer que seja O que lhe
aparece eacute fruto de um assentimento e de uma afecccedilatildeo involuntaacuteria (Cf HP I 22) Ele eacute
constrangido por uma afecccedilatildeo que a ele se impotildee a agir dessa ou daquela maneira Assim se
ele sente calor ou frio ele natildeo iraacute dizer que acredita natildeo sentir nem calor nem frio (Cf HP I
13) Ele daraacute seu assentimento a esse fenocircmeno que a ele se impotildee ou o calor ou o frio As
decisotildees a serem tomadas seratildeo todas feitas a partir do que aparece Natildeo estaacute no poder dele
por conseguinte decidir-se a respeito do que lhe aparece mas sim decidir-se a partir do que
lhe apareceu Nem poderia ser de outro modo afinal como poderia questionar o proacuteprio
aparecer Quais criteacuterios poderiam guiaacute-lo A mera tentativa que se encaminhasse nessa
direccedilatildeo envolveria um retorno agrave perspectiva dos dogmaacuteticos O fenocircmeno eacute inquestionaacutevel
(azeacutetetoacutes)50 Natildeo haacute o que teorizar a respeito dele Se o ceacutetico tem algo a questionar do
fenocircmeno ele o faz com relaccedilatildeo agraves discussotildees que os dogmaacuteticos dele fazem Qualquer
asserccedilatildeo proferida com a intenccedilatildeo de demonstrar como o fenocircmeno seja realmente e por meio
da qual pretenda-se afirmar uma verdade a seu respeito eacute posta sob investigaccedilatildeo
A partir do que acaba de ser dito talvez fique mais faacutecil entender porque Sexto se
refira no capiacutetulo 10 das Hipotiposes agravequeles que dizem que os ceacuteticos suprimem as
aparecircncias51 Com efeito se for levado em conta os discursos que dogmaticamente pretendem
estabelecer algo em relaccedilatildeo agraves aparecircncias poderiacuteamos entatildeo dizer que os ceacuteticos ldquosuprimemrdquo
as aparecircncias Natildeo eacute o que de fato acontece Os ceacuteticos ndash diante da existecircncia de diversos
discursos conflitantes que tentam cada um de maneira diferente com um grau maior ou
menor de sofisticaccedilatildeo dogmatizar a respeito do que aparece discursos que podem ter contra
eles outros discursos opostos e aparentemente tatildeo dignos de aceitaccedilatildeo ndash satildeo levados agrave
suspensatildeo de juiacutezo Do que se diz a respeito dos fenocircmenos nada pode ele afirmar ou negar
Qualquer juiacutezo que emitisse acerca dos fenocircmenos envolveria a assunccedilatildeo de dogmas E se haacute
supressatildeo das aparecircncias essa supressatildeo se faz a respeito das aparecircncias vistas sob a oacutetica do
discurso dogmaacutetico Natildeo haacute supressatildeo portanto daquilo que lhe aparece e natildeo pode evitar
ldquoPois como noacutes dissemos acima noacutes natildeo derrubamos a representaccedilatildeo passiva (φαντασίαν
παθητικήν) que induz nosso assentimento involuntariamente e essas impressotildees satildeo os
fenocircmenosrdquo52
50 Cf HP I 22
51 Cf HP I 19
52 Cf HP I 19-20
43
Mas tatildeo longe da perspectiva ceacutetica seria tambeacutem todavia afirmar que o dogmatismo
se pode encontrar no coraccedilatildeo do ceticismo em virtude de se considerar o fenocircmeno
inquestionaacutevel
Quando se afirma que o fenocircmeno eacute inquestionaacutevel natildeo se procura dessa maneira
afirmar que ele seja representaccedilatildeo fiel da realidade A aceitaccedilatildeo do fenocircmeno por parte do
ceacutetico se faz isenta de opiniatildeo (adoxaacutestos) Constato diria ele que algo me aparece e guia
minha accedilatildeo natildeo sou capaz contudo de afirmar nada dogmaticamente a respeito desse
aparecer O que natildeo posso eacute questionar que ele a mim se impotildee Dizer o que ele eacute realmente
natildeo eacute algo que esteja em meu poder afirmar Para aleacutem dessa constataccedilatildeo isenta de opiniatildeo
isto eacute natildeo acompanhada de nenhum discurso que procure por exemplo fundamentar esse
caraacuteter inquestionaacutevel daquilo que me aparece natildeo tenho nada a dizer meu juiacutezo estaacute quanto
a este ponto suspenso O que a mim me aparece aparece de modo irrecusaacutevel independente
de minha vontade
Natildeo eacute agrave toa que comumente qualifica de involuntaacuteria a afecccedilatildeo que determinaraacute o seu
agir O fenocircmeno eacute uma afecccedilatildeo isto eacute um paacutethos algo que afeta o ceacutetico e natildeo depende
dele Ele sofre a accedilatildeo de algo que o leva ao assentimento53
O proacuteprio assentimento ao fenocircmeno eacute fruto de um reconhecimento O assentimento
que ele daacute agravequilo que lhe aparece seria apenas a concessatildeo agravequilo que ele natildeo pode evitar e
determina seu agir54
Nessa nossa tentativa de explicitar o ldquofenomenismordquo ceacutetico talvez seja vaacutelido ainda
acrescentar que quando se trata de fenocircmeno no ceticismo eacute necessaacuterio que deixemos de
pensar em termos de uma distinccedilatildeo que poderia existir entre ser e aparecer Natildeo estamos mais
aqui nos movendo no quadro da distinccedilatildeo que muitos filoacutesofos ldquodogmaacuteticosrdquo fizeram entre o
domiacutenio do sensiacutevel das coisas que nos aparecem e o domiacutenio do inteligiacutevel no qual
poderiacuteamos ter acesso ao que as coisas sejam realmente para aleacutem das variaccedilotildees que podem
ser observadas no domiacutenio sensiacutevel
53 ldquo() mas nos dizemos que o ceacutetico eacute perturbado pelas coisas que natildeo consegue evitar Assim noacutes concedemos que ele agraves vezes sente frio e tem sede e sofre vaacuterias afecccedilotildees semelhantesrdquo (Cf HP I 29)
54 A mesma passividade jaacute se observava com relaccedilatildeo agrave suspensatildeo de juiacutezo O que temos agora no que concerne agrave atitude ceacutetica para com o ldquofenocircmenordquo eacute apenas um desdobramento de como um ceacutetico pode exercer sua conduta filosoacutefica uma vez afastado do dogmatismo
44
O fenocircmeno ou aquilo que aparece natildeo abrange para o ceacutetico um domiacutenio separado e
que remeta a um outro domiacutenio que lhe daria seu fundamento No ceticismo fenocircmeno tem
de ser compreendido no sentido mais amplo possiacutevel Nenhum estatuto ontoloacutegico ou
epistemoloacutegico deve lhe ser acrescentado Tudo que aparece ao ceacutetico e lhe determina o agir
apoacutes a epokheacute eacute fenocircmeno Aderindo entatildeo aos ldquofenocircmenosrdquo na observacircncia da vida vive ele
sem opinar (adoxaacutestos)55
Aparece entatildeo a ele que ele tem de se guiar por suas faculdades naturais pelas
afecccedilotildees compulsoacuterias pela tradiccedilatildeo das leis e costumes e pelos ensinamentos das artes56
Com essa divisatildeo do que pode aparecer ao ceacutetico e o permite se conduzir em sua vida mostra-
se assim que do mesmo modo que com os outros homens filoacutesofos ou natildeo seu agir em
princiacutepio natildeo diferiraacute em nada do deles Apoacutes a epokheacute continuaraacute a realizar as mesmas
accedilotildees a viver a mesma vida que todos os outros vivem mas apenas com uma diferenccedila ele
viveraacute mas sem opinar O ceacutetico estaacute consciente de que ele sente fome sede que pensa que
ouve que haacute uma mesa agrave sua frente que algueacutem passa andando agrave sua frente que esta pessoa
se movimenta Ele natildeo nega esses fatos Apenas que natildeo profere nenhuma asserccedilatildeo natildeo
elabora nenhuma teoria que pretendesse dizer o que significariam em si mesmos em sua
realidade esses fenocircmenos Isso quer dizer que ele na sua vida age mas sem pretender fazer
algo fundado nalguma teoria segundo algum criteacuterio que o indique ser melhor isto do que
aquilo este preferiacutevel agravequele dado que soubesse estar agindo de acordo com a verdade
O ceacutetico assente ao que lhe aparece entretanto isto que lhe aparece pode hoje aparecer
de um modo e amanhatilde pode aparecer de outro Aquilo que lhe aparece natildeo eacute aceito porque
estaria de acordo com alguma verdade seria a expressatildeo da realidade mesma em suma essa
afecccedilatildeo (paacutethos) que se lhe impotildee natildeo deve sua aceitaccedilatildeo a um possiacutevel teor dogmaacutetico da
mesma As aparecircncias estatildeo sujeitas a mudanccedilas tanto quanto aquele para quem elas
aparecem Fundado em que posso dizer que aquilo que a mim me aparece tambeacutem iraacute
aparecer da mesma maneira para todos os outros homens Uma vez afastada a perspectiva
dogmaacutetica soacute resta ao ceacutetico comunicar individualmente como fruto de uma experiecircncia
pessoal aquilo que lhe aparece Se a perspectiva dogmaacutetica estaacute afastada eacute perfeitamente
coerente com o ceticismo que o que conduz o ceacutetico na sua vida possa variar Natildeo haacute nada
que o prenda a determinada linha de conduta Se ele age sempre da mesma maneira tal
55 Cf HP I 23
56 Cf HP I 23
45
comportamento natildeo eacute obstaacuteculo a uma mudanccedila de conduta Como jaacute foi salientado o que
hoje lhe aparece de um modo amanhatilde pode aparecer diferente
Na conduccedilatildeo natildeo-dogmaacutetica de sua vida de acordo com o fenocircmeno o ceacutetico procura
agir em conformidade com a finalidade do ceticismo a saber tranquumlilidade (ataraxiacutea) com
respeito a mateacuteria de opiniatildeo e moderaccedilatildeo nos sentimentos (metriopateacuteia) com respeito a
coisas inevitaacuteveis57
Com efeito a busca dogmaacutetica pela tranquumlilidade soacute trouxe dissabores ao ceacutetico Por
essa via natildeo foi capaz de distinguir o verdadeiro do falso nas coisas que investigou natildeo
conseguiu chegar a nenhuma verdade absoluta A uacutenica coisa a que chegou foi encontrar
contradiccedilotildees naquilo que investigava Dessa maneira diante do conflito de igual forccedila entre
argumentos discursos opostos sem poder se decidir por um dos lados em disputa a
tranquumlilidade lhe adveio casualmente com a suspensatildeo do juiacutezo58
Aleacutem disso a moderaccedilatildeo nos sentimentos adveacutem de sua postura natildeo-dogmaacutetica e que
o leva a conduzir-se na vida de acordo com os fenocircmenos Se natildeo haacute dogmas a serem aceitos
entatildeo os ceacuteticos natildeo sofreratildeo como no caso dos dogmaacuteticos por considerarem que possa
haver coisas boas ou maacutes por natureza59 Se o ceacutetico sofre e como assinala Sexto ele de fato
natildeo estaacute assim como natildeo estatildeo os outros homens isento de perturbaccedilotildees em sua vida60 o
sofrimento causado por qualquer forma de perturbaccedilatildeo poderaacute ser minimizado em virtude
dessa atitude consistente no viver conforme o fenocircmeno Natildeo que ele efetivamente natildeo possa
em nenhuma hipoacutetese vir a ter uma qualquer perturbaccedilatildeo Nada mais distante do ceticismo
Apenas que a sua postura filosoacutefica talvez seja mais capaz de realizar a finalidade que ele se
propotildee alcanccedilar De acordo com o que me aparece poderia ele dizer vejo que agindo como
ajo estou menos propenso a ficar perturbado e intranquumlilo do que aqueles que procuram viver
de acordo com dogmas
57 Cf HP I 25
58 Cf Ibidem I 26
59 Cf Ibidem I 27
60 Cf Ibidem I 29
46
Os tropos ceacuteticos
Com o intuito de chegar agrave suspensatildeo de juiacutezo o procedimento de que se serve o ceacutetico
consiste como jaacute mencionado61 em produzir oposiccedilotildees entre as coisas Essas oposiccedilotildees natildeo
seguem regras especiacuteficas Das mais variadas maneiras portanto satildeo elas produzidas Desse
modo opotildeem-se aparecircncias a aparecircncias juiacutezos a juiacutezos aparecircncias a juiacutezos e assim por
diante62
Os tropos satildeo diversos modos pelos quais os ceacuteticos produzem essas antinomias e
assim ele pode ser levado agrave suspensatildeo do juiacutezo Entre os modos mais antigos contam dez63
Satildeo eles o primeiro baseado na variedade dos animais o segundo nas diferenccedilas entre os
homens o terceiro nas diferentes estruturas dos oacutergatildeos dos sentidos o quarto nas
circunstacircncias o quinto nas posiccedilotildees distacircncias e lugares o sexto nas misturas o seacutetimo
nas quantidades e constituiccedilatildeo dos objetos o oitavo na relaccedilatildeo o nono na frequumlecircncia ou
raridade de ocorrecircncia o deacutecimo nos costumes e leis nas crenccedilas miacuteticas e convicccedilotildees
dogmaacuteticas
Podemos dizer de modo sucinto que esses tropos nos mostram o caraacuteter relativo de
todas as coisas A partir de cada um deles considerando-se um aspecto especiacutefico podemos
apontar a relatividade das coisas Tanto eacute assim que o tropo da relaccedilatildeo eacute visto como aquele ao
qual todos os outros nove podem se referir64
Aleacutem desse tropos existem outros cinco posteriores que igualmente satildeo meios de que
se vale o ceacutetico para ser trazido agrave epokheacute o primeiro baseado na diaphoniacutea (discrepacircncia
controveacutersia) o segundo na regressatildeo ao infinito o terceiro na relatividade o quarto na
61 Ver a respeito pp 30-32
62 Cf HP I 31
63 Na sua exposiccedilatildeo do ceticismo de Enesidemo Brochard nos lembra que se os dez tropos foram argumentos que os ceacuteticos mais antigos nos legaram foi justamente Enesidemo que os ordenou e numerou na forma que noacutes os conhecemos O proacuteprio Sexto continua ele assim como Aristocleacutes e Dioacutegenes atribuem os dez tropos a Enesidemo Assim para os estudiosos do ceticismo esses tropos satildeo conhecidos como os tropos de Enesidemo A respeito do que agora foi dito e para uma apresentaccedilatildeo sumaacuteria desses tropos cf Brochard V Les sceptiques grecs Paris Vrin 1969 pp 253-259
64 Cf HP I 39
47
hipoacutetese o quinto no raciociacutenio circular Esses cinco tropos ficaram conhecidos como os
tropos de Agripa65
Com efeito pelo tropo da diaphoniacutea somos postos de frente ao conflito interminaacutevel
de opiniotildees a respeito de todos os assuntos conflito que pode ter surgido tanto entre pessoas
comuns e entre filoacutesofos A dificuldade em decidir do ceacutetico dada essa imensa variedade de
opiniotildees a sua incapacidade em acolher ou rejeitar esta ou aquela opiniatildeo acaba por levaacute-lo agrave
suspensatildeo do juiacutezo66
Pelo tropo da regressatildeo ao infinito o ceacutetico pede ao dogmaacutetico que forneccedila uma nova
prova para o tema pesquisado pois a prova que fora aduzida natildeo lhe pareceu suficiente E
essa nova prova tambeacutem natildeo eacute suficiente e assim pede uma nova prova o que leva a uma
regressatildeo que natildeo tem fim67
O tropo da relatividade nos mostra que o assunto investigado aparece recorrentemente
numa determinada relaccedilatildeo isto eacute estaacute sujeito a uma determinada condiccedilatildeo o que impede que
o que se diga dele seja posto de modo absoluto Assim o assunto estaacute por exemplo
relacionado ao sujeito que julga esse sujeito constitui-se num determinado ponto de vista
natildeo-universalizaacutevel Desse modo diante da relatividade das coisas o ceacutetico eacute induzido agrave
suspensatildeo do juiacutezo68
O tropo da hipoacutetese nos impede de aceitar algo como ponto de partida sem nenhuma
demonstraccedilatildeo Isto acontece porque podemos da mesma maneira que aquele que avanccedilou
essa hipoacutetese tambeacutem levantar uma outra hipoacutetese contraacuteria e sem para tanto aduzir nenhuma
demonstraccedilatildeo para a mesma Tanto uma quanto a outra seratildeo dignas do mesmo creacutedito Natildeo
haacute assim motivo para que uma seja mais aceitaacutevel que sua contraacuteria69
65 De acordo com Brochard a referecircncia desses tropos a Agripa se faz com base na menccedilatildeo de Dioacutegenes a esse filoacutesofo no momento em que cita esses cinco tropos na mesma ordem e termos que o faz Sexto Empiacuterico que no entanto natildeo faz menccedilatildeo a Agripa Acerca da exposiccedilatildeo desses tropos por Brochard cf Les sceptiques grecs pp 300-303
66 Cf HP I 165
67 Cf HP I 166
68 Cf Ibidem I 167
69 Cf Ibidem I 168
48
Por fim pelo tropo do raciociacutenio circular eacute absurdo imaginar que aquilo que seraacute
objeto de prova seja provado a partir daquilo mesmo que aguarda prova e desse modo
acabamos sendo levados novamente agrave epokheacute70
Como poderemos acompanhar neste estudo Hegel estaraacute sempre convencido que a
filosofia precisa tomar a seacuterio essa radicalidade da criacutetica ceacutetica pois de outra maneira a
filosofia corre o risco de perecer diante dessa mesma criacutetica Hegel estaacute atento a esse aspecto
diriacuteamos negativo do ceticismo Tanto eacute assim que ele por exemplo na discussatildeo que
empreende na Ciecircncia da Loacutegica71 acerca do comeccedilo da filosofia tem em vista sempre uma
possiacutevel criacutetica ceacutetica e mais precisamente por meio dos tropos Aleacutem disso esta exposiccedilatildeo
da filosofia ceacutetica permite que se possa eacute o que nos parece avaliar a compreensatildeo hegeliana
do ceticismo e o aproveitamento do mesmo em sua filosofia
70 Cf Ibidem I 169
71 Com relaccedilatildeo ao mesmo tema tambeacutem haacute essa preocupaccedilatildeo na Enciclopeacutedia quando trata da Loacutegica
49
Capiacutetulo 2 ndash O ceticismo na filosofia do jovem Hegel
No seu artigo ldquoRelacionamento do ceticismo agrave filosofiardquo72 Hegel dentre outros
objetivos apresenta sua concepccedilatildeo do papel do ceticismo na filosofia A esse respeito natildeo
nos parece insensato dizer que para o filoacutesofo a possibilidade da filosofia estaacute em larga
medida atrelada agrave consideraccedilatildeo do desafio imposto pela criacutetica ceacutetica do caraacuteter dogmaacutetico
das filosofias73 Natildeo que para que haja filosofia o ceticismo precise ser afastado por meio de
uma refutaccedilatildeo que aponte a falta de propoacutesito de sua atitude filosoacutefica Eacute legiacutetima para Hegel
a criacutetica ceacutetica das filosofias O que natildeo implica para ele que devamos nos tornar ceacuteticos Natildeo
teremos aqui portanto nem adesatildeo ao ceticismo e nem uma mera refutaccedilatildeo do mesmo
Teremos o quecirc entatildeo
No mesmo artigo sobre o Ceticismo veremos que a soluccedilatildeo apresentada por Hegel
para esse impasse envolve a incorporaccedilatildeo do ceticismo agrave sua filosofia Nesta o ceticismo seraacute
um momento fundamental O que ele chama de seu lado negativo e que prepara o surgimento
de seu momento positivo ou o lado positivo da filosofia Por traacutes dessa incorporaccedilatildeo do
ceticismo agrave filosofia opera uma distinccedilatildeo feita por Hegel entre o que seja o entendimento e o
que seja a razatildeo Neste escrito que trata da filosofia ceacutetica natildeo temos todavia uma exposiccedilatildeo
mais minuciosa do significado desses termos
Interessa-nos aqui retomar um outro texto de Hegel a saber Diferenccedila entre o sistema
filosoacutefico de Fichte e de Schelling74o assim chamado Escrito sobre a Diferenccedila pois eacute nele
72 GW 4 pp 197-238
73 No tocante ainda agrave importacircncia decisiva da filosofia ceacutetica para Hegel e levando-se em conta nossa interpretaccedilatildeo que busca entre outras coisas apontar para a relaccedilatildeo natildeo-defensiva do autor para com o ceticismo cremos natildeo estar sozinhos e por isso talvez natildeo seja exagerado mencionar a seguinte declaraccedilatildeo de Michael Forster ldquoEm primeiro lugar a interpretaccedilatildeo hegeliana da tradiccedilatildeo ceacutetica na filosofia e sua reaccedilatildeo a essa tradiccedilatildeo satildeo absolutamente fundamentais para a sua perspectiva filosoacutefica de modo que regiotildees extensas de seu pensamento permanecem obscuras ateacute que essa interpretaccedilatildeo e reaccedilatildeo sejam apropriadamente compreendidas Em segundo lugar as reflexotildees hegelianas a respeito da natureza da tradiccedilatildeo ceacutetica possuem meacuterito intriacutenseco consideraacutevel contendo lsquoinsightsrsquo originais e que podem ser aproveitados por historiadores contemporacircneos da filosofia e filoacutesofos interessados pelo ceticismordquo In Forster M Hegel and Skepticism CambridgeMassachusetts Harvard University Press 1989 p 1 E com respeito precisamente agrave interpretaccedilatildeo hegeliana do ceticismo antigo no livro de Forster ver os capiacutetulos 1 e 2
74 GW 4 pp 5-92
50
que encontraremos uma exposiccedilatildeo detalhada do significado de entendimento e razatildeo e que
nos permitiraacute melhor compreender na visatildeo do jovem Hegel o papel do ceticismo na
filosofia75
Eacute no capiacutetulo inicial do Escrito sobre a Diferenccedila que tem como tiacutetulo ldquo[Das] vaacuterias
formas que se encontram no filosofar atualrdquo que encontramos um tratamento mais detalhado
do significado de entendimento e razatildeo
Tendo como pano de fundo um diagnoacutestico e uma criacutetica da cultura (Bildung) de sua
eacutepoca todavia com o foco aiacute voltado para a filosofia que satildeo efetuadas as consideraccedilotildees
hegelianas a respeito de entendimento e razatildeo Esta criacutetica estaacute alicerccedilada na reflexatildeo criacutetica
da razatildeo sobre si mesma empreendida por Kant mas que Hegel por considerar a mesma
insuficiente procura prolongar e tornaacute-la mais radical76 Nesse sentido a radicalidade da
criacutetica ceacutetica a toda forma de pensamento finito eacute um elemento importante a contribuir nessa
tarefa criacutetica hegeliana
Com efeito Hegel afirma que a razatildeo como manifestaccedilatildeo do absoluto que eacute busca na
sua auto-produccedilatildeo modelar o absoluto numa totalidade objetiva77 O ecircxito da atividade
especulativa da razatildeo depende de se alcanccedilar a identidade a mais completa a identidade
absoluta quando a filosofia do sistema coincide com o proacuteprio sistema Todavia nem sempre
essa identidade eacute alcanccedilada Ainda mais numa eacutepoca em que ldquoa potecircncia de unificaccedilatildeo
desaparece da vida dos homens e as oposiccedilotildees tendo perdido seu relacionamento vivo e sua
75 Vale mencionar ainda apenas a tiacutetulo ilustrativo que o Escrito sobre a Diferenccedila fora publicado em 1801 e o artigo sobre o Ceticismo em 1802 e apenas com poucos meses de diferenccedila
76 ldquoO princiacutepio da independecircncia da razatildeo de sua absoluta autonomia em si mesma deve ser considerado de agora em diante como princiacutepio universal da filosofia e tambeacutem como um dos preconceitos da eacutepocardquo In GW 20 p 99 trad brasileira por Paulo Meneses Enciclopeacutedia das Ciecircncias Filosoacuteficas Satildeo Paulo Loyola 1992 p 136
77 Cf GW 4 p 10 e p 30 trad p 84 e p 104
51
accedilatildeo reciacuteproca ganham subsistecircncia por sirdquo78 Vive-se portanto numa eacutepoca em que a
fragmentaccedilatildeo e o isolamento passaram a ser dominantes em todos os aspectos da vida Uma
cultura fundada no entendimento prosperou e passou a ser dominante79 Mas por mais que seja
um dado da vida esse seu cultivar-se a partir da eterna produccedilatildeo de oposiccedilotildees esta atividade
natildeo pode levar agrave perda de qualquer possibilidade de unificaccedilatildeo Por isso eacute preciso a partir do
combate a essa Bildung limitadora tentar restaurar a harmonia perdida
No aspecto filosoacutefico esse desaparecimento da unificaccedilatildeo que pode ser observado
pelo predomiacutenio dessa cultura regida pela potecircncia da cisatildeo (Entzweiung)80 na qual as
oposiccedilotildees como jaacute foi dito tornaram-se autocircnomas configura-se em uma cultura filosoacutefica
fundada tambeacutem no entendimento uma cultura filosoacutefica na qual a razatildeo renuncia a si mesma
em prol do entendimento (Cf GW 4 p 15)
E o que pode significar para a filosofia estar sob a eacutegide do entendimento Significa
como veremos estar vulneraacutevel aos ataques do ceticismo Cremos que Hegel jaacute neste
momento mesmo sem haver referecircncia direta estaacute preocupado com a defesa da filosofia
perante a criacutetica ceacutetica Em vista da situaccedilatildeo da filosofia naquele momento o diagnoacutestico
hegeliano aponta para o fracasso de qualquer tentativa filosoacutefica de se sustentar perante uma
possiacutevel criacutetica de teor ceacutetico
Com efeito Hegel constatou ser a sua eacutepoca aquela em que a cultura fruto da cisatildeo do
absoluto isolou-se do mesmo e tornou-se autocircnoma81 Mas o fenocircmeno justamente por advir
do absoluto quer se constituir numa totalidade Se o fenocircmeno se constituir num todo a partir
dessa forccedila que limita ndash o entendimento e apoiado em todas as potecircncias da natureza e dos
talentos82 ao final desse processo teraacute apenas uma totalidade composta de limitaccedilotildees um
conjunto de partes justapostas mas natildeo o absoluto E quanto maior o esforccedilo em direccedilatildeo ao
absoluto mais e mais o entendimento produz a si mesmo numa totalidade composta de
finitos que natildeo teraacute fim O entendimento aiacute soacute faz zombar de si mesmo (seiner selbst
78 Ibidem p 14 trad p 88
79 Cf Ibidem pp 12-16 trad pp 86-90
80 Cf Ibidem p 14 trad p 88
81 Ibid p 12 trad p 86
82 Ibid pp 12-13 trad pp 86-87
52
spottet)83 Por outro lado o entendimento ao inveacutes de justapor os limitados por ele mesmo
postos num todo pode suprimindo todo finito fixar ldquoem um produto o negar racionalrdquo (ibid
p 13 trad p 87) Se a reflexatildeo pretendia elevar-se agrave razatildeo com a oposiccedilatildeo do infinito a todo
finito que nega fracassa nesse intento pois ldquoela se rebaixa novamente a entendimento ao
fixar o fazer da razatildeo na oposiccedilatildeordquo84 O infinito enquanto ato racional de negar opotildee-se a
todo finito por ele negado ldquoo entendimento ao fixar o negar do finito opotildee o mesmo
absolutamente ao finitordquo85 Nos dois casos acima descritos por mais que se tente natildeo se
consegue deixar a esfera das oposiccedilotildees Ou porque os opostos permanecem justapostos numa
totalidade finita que sempre pode se ampliar sem nunca tornar-se absoluta ou porque o negar
que se pretende racional natildeo atinge sua meta por manter-se em oposiccedilatildeo a todo finito
A cultura (Bildung) de diferentes eacutepocas observa Hegel mediante o trabalho do
entendimento produziu variadas formas de oposiccedilatildeo e pretendeu que elas valessem como
expressotildees do racional e do absoluto (Cf ibid p 13 trad p 87) Todavia o entendimento
arvorava-se em vatildeo realizar uma tarefa para a qual natildeo fora destinado A razatildeo tem como
uacutenico interesse suspender86 (aufheben) as oposiccedilotildees fixadas pelo entendimento pois essa eacute a
maneira de se tentar restabelecer a harmonia perdida com a dilaceraccedilatildeo do absoluto A tarefa
da razatildeo eacute ainda mais urgente numa eacutepoca que conforme o cenaacuterio descrito por Hegel a
formaccedilatildeo cultural cada vez mais se estende na forma de uma exteriorizaccedilatildeo da vida mediante
a potecircncia da cisatildeo num processo vertiginoso em que tornam-se os esforccedilos da vida mais e
mais alheios ao todo da formaccedilatildeo cultural e insignificantes na sua tentativa de parir
novamente a harmonia (Cf ibid p 14 trad p 88)
Este cenaacuterio eacute a descriccedilatildeo que Hegel faz de uma eacutepoca a sua na qual a filosofia que
natildeo seja mera expressatildeo do pensar limitado de entendimento faz falta Somente com a
realizaccedilatildeo da filosofia pode a cisatildeo absoluta posta pelo entendimento ser posta na sua
condiccedilatildeo verdadeira subalterna de cisatildeo relativa (Cf ibid p 14 trad p 88) Vive-se
83 Cf Ibid p 13 trad p 87
84 Ibid p 13 trad p 87 (ldquohat sich wieder zum Verstand erniedrigt indem sie das Thun der Vernunft in Entgegensetzung fixirterdquo)
85 Ibid p 13 trad p 87 (ldquoindem der Verstand es fixirt setzt er es dem Endlichen absolut entgegen rdquo)
86 Com efeito ao dizer que a razatildeo tem como uacutenico interesse suspender as oposiccedilotildees fixadas pelo entendimento isto se deve ao fato de que a razatildeo natildeo eacute contraacuteria agrave oposiccedilatildeo e agrave limitaccedilatildeo elas precisam existir mas que as oposiccedilotildees absolutamente fixadas impedem a restauraccedilatildeo da totalidade da harmonia absoluta (Cf GW 4 pp 13-14 trad pp 87-88)
53
segundo ele num periacuteodo carente de uma filosofia que cumpra sua tarefa isto eacute que ponha o
ser no natildeo-ser ndash como vir-a-ser a cisatildeo no absoluto ndash como seu fenocircmeno o finito no infinito
ndash como vida (GW 4 16) Sua concepccedilatildeo de razatildeo e de entendimento aleacutem do relacionamento
que entre ambos se estabelece indicam a direccedilatildeo pela qual poderaacute ocorrer o suprimento dessa
carecircncia e ao mesmo tempo tornar a filosofia imune ao ceticismo
Mas de volta agraves paacuteginas iniciais do Escrito sobre a Diferenccedila Hegel laacute notava que o
entendimento constitui-se num domiacutenio onde predomina o limitado Ele eacute ldquoa forccedila da
limitaccedilatildeordquo (GW 4 p 12) Toda determinaccedilatildeo que produz adveacutem de uma atividade reflexiva
apartada da razatildeo Hegel a chama de reflexatildeo isolada (GW 4 p 16) A reflexatildeo soacute pode dar
origem ao o limitado Isto significa que todo ser que ela produz estaraacute sempre numa relaccedilatildeo
com um outro ldquotodo ser porque ele eacute posto eacute um contraposto condicionado e
condicionanterdquo (GW 4 p 17) Sempre haveraacute um outro perante um posto A construccedilatildeo de
uma totalidade no plano do entendimento a formaccedilatildeo de um sistema filosoacutefico segundo suas
regras eacute uma tarefa que nunca se completaraacute uma tarefa fadada ao fracasso o entendimento
completa suas limitaccedilotildees que lhe satildeo proacuteprias mediante o pocircr das limitaccedilotildees contrapostas na
qualidade de condiccedilotildees essas carecem do mesmo completamento (Vervollstaumlndigung) e o
trabalho do entendimento se estende ao infinitordquo (GW 4 p 17) Todo ser posto pela atividade
reflexiva do entendimento natildeo subsiste por si soacute A sua limitaccedilatildeo torna-o dependente de um
outro que a ele se relaciona O entendimento contudo natildeo quer enxergar essa relaccedilatildeo de
dependecircncia existente entre os contrapostos Hegel chama isso de teimosia (Eigensinn) do
entendimento que ldquodeixa subsistir um ao lado do outro numa contraposiccedilatildeo natildeo unificada o
determinado e o indeterminado a finitude e a infinitude dadardquo (GW 4 p 17)
Na criacutetica de Hegel agrave limitaccedilatildeo do entendimento Klaus Vieweg vecirc e julgamos que de
modo acertado a aplicaccedilatildeo do 2ordm e 3ordm tropos de Agripa a essa faculdade do conhecer finito o
entendimento87
87 Vieweg K Philosophie des Remis Der junge Hegel und das ldquoGespenst des Skepticismusrdquo Muumlnchen Wilhelm Fink 1999 p 129 Cabe notar que este livro de Vieweg constitui uma minuciosa investigaccedilatildeo acerca da presenccedila do ceticismo na filosofia do jovem Hegel e em larga medida da discussatildeo em torno do ceticismo no mesmo periacuteodo na Alemanha Ver tambeacutem a respeito ndash e sob um ponto de vista mais amplo ndash da compreensatildeo hegeliana do ceticismo Vieweg K e Bowman B (orgs) Die freie Seite der Philosophie (Skeptizismus in hegelscher Perspektive) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 10 2006 O volume conteacutem uma seacuterie de artigos de diversos autores acerca do tema Tambeacutem no volume que organizou em torno do Jornal criacutetico da filosofia de Schelling e Hegel onde foi publicado o artigo ienense de Hegel sobre o ceticismo haacute alguns artigos tratando do tema ceticismo na filosofia do jovem Hegel Para tanto cf Vieweg K (org) Gegen das lsquounphilosophische Unwesenrsquo (Das Kritische Journal der Philosophie von
54
Se tudo que eacute posto pelo entendimento eacute limitado e finito ou seja em virtude dessas
caracteriacutesticas estaacute sempre na dependecircncia dado seu caraacuteter condicionado de um outro que o
complete na medida que a ele se relacione entatildeo natildeo seria descabido pensar aqui na criacutetica
por meio do 3ordm modo de Agripa ao caraacuteter relativo de todas as coisas (Cf HP I 167 tambeacutem
I 175-7)
Essa relatividade adveacutem para Hegel do fato de que o entendimento eacute regido pelo
princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo algo natildeo pode ser A e natildeo-A ao mesmo tempo Ao se aceitar o
princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo aceita-se concomitantemente o princiacutepio de identidade que A eacute
igual a A Segundo Hegel eacute por estar comandado por esses princiacutepios que o entendimento
estaraacute sempre sujeito a que as determinaccedilotildees por ele postas sejam sempre condicionadas e
possam a elas outras serem contrapostas Ele chama a identidade que rege o entendimento de
relativa e abstrata uma identidade limitada pois as determinaccedilotildees produzidas de acordo com
ela tem como caracteriacutestica proacutepria estarem abstraiacutedas de suas opostas (GW 4 p 25)
As proposiccedilotildees de entendimento satildeo constituiacutedas a partir de uma igualdade que exclui
de si a desigualdade Isto ocorre porque tais proposiccedilotildees satildeo regidas por uma identidade
formal Para o entendimento prossegue Hegel em A=A como princiacutepio de identidade estaacute
contida apenas uma igualdade e na qual se faz abstraccedilatildeo de toda desigualdade (GW 4 pp 24-
25)
Podemos adiantar entretanto que do ponto de vista da razatildeo postula-se tambeacutem ldquoa
posiccedilatildeo daquilo que foi abstraiacutedo na igualdade pura o pocircr do contraposto o pocircr da
desigualdaderdquo (GW 4 p 25) Assim A=A natildeo consiste numa igualdade pura Tal igualdade
se sustenta na medida em que o entendimento abstrai da posiccedilatildeo do contraposto da
desigualdade
Schelling und Hegel) Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 7 2002 Cabe ainda mencionar a respeito do tema ceticismo e dos debates no qual ele aparece na filosofia alematilde em 1800 o volume organizado por Vieweg e Bowman Wissen und Begruumlndung (Die Skeptizismus-Debatte um 1800 im Kontext neuzeitlicher Wissenskonzeptionen Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann Kritisches Jahrbuch der Philosophie Band 8 2003 Para uma anaacutelise do ceticismo na filosofia do jovem Hegel ver tambeacutem Hofweber G Skeptizismus als bdquodie erste Stuffe zur Philosophieldquo beim Jenaer Hegel Heidelberg Winter 2006 Dentro ainda do mesmo tema o artigo de Paulo Eduardo Arantes Nihilismusstreit in Ressentimento da Dialeacutetica Satildeo Paulo Paz e Terra 1996
55
Segundo Hegel em A=A o primeiro A eacute um sujeito e o outro A eacute um objeto O A que
estaacute posto do lado do sujeito natildeo eacute o mesmo A que estaacute posto do lado do objeto Eles satildeo
diferentes E a expressatildeo dessa diferenccedila eacute A natildeo eacute = A ou A eacute = B
Uma proposiccedilatildeo formal natildeo pode ser contraditoacuteria em si mesma No domiacutenio do
entendimento se expressa a igualdade numa proposiccedilatildeo e a cisatildeo ou desigualdade em outra
Mas quando entra em cena a razatildeo a identidade formal eacute deixada de lado Em A=A o A
posto do lado do sujeito soacute afirma sua identidade ao se relacionar com seu oposto o A posto
do lado do objeto negando-o Como jaacute foi dito haacute uma diferenccedila entre o A (sujeito) e o A
(objeto)
ldquoA=A conteacutem a diferenccedila de A como sujeito e de A como objeto ao mesmo tempo
que sua identidaderdquo(GW 4 p 26)
O mesmo se passa em A=B --- e por isso eacute indiferente pocircr A=A ou A=B o A sujeito eacute
diferente do B objeto ao mesmo tempo que haacute uma identidade aiacute contida Como conclusatildeo
podemos dizer que a identidade no acircmbito da razatildeo somente eacute possiacutevel com a diferenccedila
Se o entendimento no entanto manteacutem-se de acordo com o princiacutepio de natildeo-
contradiccedilatildeo estaacute condenado a perecer devido a estar sob a legislaccedilatildeo desse mesmo princiacutepio
Conforme Hegel a lei da contradiccedilatildeo eacute o que possibilita ao entendimento constituir-se como
absoluto e dessa maneira fazer com que seu ser-posto (Gesetzsein) seja e permaneccedila (GW 4
p 18) Mas em virtude de se reger por essa lei os produtos do entendimento natildeo podem se
manter jaacute que a limitaccedilatildeo dos mesmos eacute mostrada pelo seu contraposto
O que isso significa Significa que de acordo com o que foi dito haacute pouco a
contradiccedilatildeo precisa ser afastada As proposiccedilotildees produzidas no acircmbito do entendimento natildeo
admitem a contradiccedilatildeo Natildeo podem admitir que se diga que algo seja e natildeo seja ao mesmo
tempo No que nos interessa mais de perto a filosofia Hegel procura a todo momento neste
no iniacutecio do Escrito sobre a Diferenccedila mostrar que os sistemas filosoacuteficos de sua eacutepoca se
articulam na forma de proposiccedilotildees de acordo com a lei do entendimento (Cf GW 4 p 24) O
que traz por consequumlecircncia a impossibilidade de manutenccedilatildeo desses sistemas ldquopois algo
posto por meio da reflexatildeo uma proposiccedilatildeo eacute por si um limitado e condicionado e carece de
um outro para sua fundamentaccedilatildeo e assim ao infinitordquo (GW 4 p 23) Natildeo haacute como natildeo
pensar aqui assim como jaacute fora notado por Vieweg no 2ordm tropo de Agripa o da regressatildeo ao
infinito Por meio desse tropo o ceacutetico pretende mostrar a inexistecircncia de demonstraccedilotildees pois
56
se pode questionar as premissas de uma argumentaccedilatildeo proposta dogmaticamente e tambeacutem as
premissas dessas premissas de modo que esse processo de justificaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo
possa sempre se renovar numa regressatildeo ao infinito (Cf HP I 166)
Qualquer proposiccedilatildeo posta como fundamento absoluto de um sistema baseado no
entendimento natildeo teraacute como se sustentar ldquopois de um algo pensado que a proposiccedilatildeo
exprime se pode facilmente demonstrar que ele eacute condicionado por um contraposto e
portanto natildeo eacute absoluto e se pode demonstrar por esse contraposto agrave proposiccedilatildeo que ela
precisa ser posta e que portanto aquele algo pensado que a proposiccedilatildeo exprime eacute nadardquo
(GW 4 p 24) Uma tal proposiccedilatildeo natildeo tem condiccedilotildees de cumprir seu propoacutesito de fundaccedilatildeo
do sistema A ela uma outra pode ser posta em sentido contraacuterio de maneira que sua pretensatildeo
ao absoluto fique prejudicada Parece-nos que natildeo seja por outro motivo que Hegel afirme que
uma proposiccedilatildeo dessa natureza seja no fundo uma antinomia e por isso fadada a ser
suprimida (Cf GW 4 p 24)88 Do ponto de vista do que ele chama de mera reflexatildeo (die
blosse Reflexion) natildeo eacute entatildeo possiacutevel que um sistema construiacutedo a partir da ldquoloacutegicardquo do
entendimento possa pretender tornar-se incondicionado Essa conclusatildeo a nosso ver estaacute
dentro do espiacuterito da filosofia ceacutetica Diante do conflito entre proposiccedilotildees ou argumentos
contraditoacuterios o ceacutetico natildeo tendo como se decidir por um dos lados afinal ambos parecem
igualmente persuasivos eacute levado a suspender seu juiacutezo (Cf HP I 8) No caso de Hegel a
antinomia estabelecida tambeacutem impede que se aceite que um sistema qualquer tenha sido bem
sucedido na sua pretensatildeo ao absoluto Do ponto de vista do entendimento a contradiccedilatildeo eacute
um mal a ser evitado Mas como mostrou o ceacutetico ela natildeo pode ser evitada e Hegel leitor
atento de Sexto Empiacuterico concorda com ele
A filosofia numa eacutepoca dominada pela potecircncia da cisatildeo torna-se um alvo faacutecil do
ceticismo Natildeo haacute como evitar que o ceacutetico possa sempre mostrar o oposto daquilo que foi
posto A constataccedilatildeo desse difiacutecil e improvaacutevel ecircxito das filosofias perante o ceticismo faz
com que sua eacutepoca esteja como jaacute foi dito anteriormente carente de uma filosofia que
cumpra sua tarefa Como entatildeo suprir essa carecircncia Como a filosofia pode configurar-se
88 O aspecto negativo que assume a antinomia no domiacutenio do entendimento se deve a que como jaacute dissemos a contradiccedilatildeo aiacute precisa ser evitada Diferente seraacute a situaccedilatildeo como veremos na sequumlecircncia do texto quando entrar em cena o racional A antinomia adquire entatildeo outro aspecto precisamente um aspecto positivo Tanto seraacute assim que Hegel elogia Espinosa por comeccedilar a filosofia com a proacutepria filosofia isto eacute inicia o sistema com uma antinomia (Cf GW4 p 24)
57
sistematicamente ainda mais se se considerar pertinente a atitude investigativa ceacutetica Como
escapar da antinomia estabelecida entre proposiccedilotildees ou argumentos que se contrapotildeem
Aqui entra em cena a razatildeo o momento positivo do saber Como veremos eacute nesse
domiacutenio que seraacute possiacutevel conforme Hegel agrave filosofia se constituir de modo que as aporias
surgidas no domiacutenio do entendimento entregue a si mesmo sejam resolvidas
Seraacute por meio da razatildeo que na sua atividade especulativa a filosofia poderaacute se
realizar Mas como especificamente esse objetivo poderaacute ser alcanccedilado Segundo Hegel natildeo
seraacute possiacutevel atingir a filosofia sem que tenham sido resolvidas as cisotildees produzidas pelo
entendimento Desde este momento jaacute estaacute ele convencido que a filosofia e o que ele
compreende por saber absoluto soacute poderatildeo advir como o resultado de um processo
Esse processo ocorreraacute em momento anterior e exterior ao surgimento da filosofia (vor
und ausser der Philosophie) [GW 4 p 16] Seraacute comandado pela razatildeo e esse momento
anterior consiste na esfera do entendimento aquela que se constitui por meio de uma
atividade reflexiva que potildee seus produtos como independentes absolutamente quer dizer
como se estivessem livres da possibilidade de que a eles pudesse algo ser contraposto o que
resultaria numa antinomia
A filosofia aos olhos de Hegel pressupotildee esse momento em que as determinaccedilotildees
postas pela atividade reflexiva do entendimento se desenvolvem Mas o que significa essa
pressuposiccedilatildeo Significa que natildeo haacute como desconsiderar essa esfera das cisotildees postas pelo
entendimento ldquoeacute um fator da vida que se cultiva mediante um eterno contrapor-serdquo (GW 4
p 13) Deixar entretanto entregue a si mesma essa dimensatildeo onde predomina a finitude eacute
deixar prosseguir a esmo seu processo de determinaccedilatildeo que jamais chegaraacute a um termo E
assim em virtude do caraacuteter limitado das proposiccedilotildees resultantes da atividade do
entendimento natildeo se pode impedir que novas antinomias se constituam Eacute preciso que se decirc
conta dessas oposiccedilotildees que continuamente surgem Sem isso torna-se a filosofia apenas uma
promessa natildeo passiacutevel de se cumprir
58
Hegel de maneira bastante sucinta refere-se agrave necessidade de justificaccedilatildeo dessas
determinaccedilotildees limitadas produzidas pelo entendimento Soacute ao teacutermino desse procedimento de
justificaccedilatildeo que a filosofia poderaacute aparecer89 Esse procedimento seraacute efetuado pelo que ele
chama de ldquoinstrumento do filosofarrdquo ou a reflexatildeo como razatildeo90
Para se ultrapassar esse domiacutenio da finitude a razatildeo precisa aniquilar as oposiccedilotildees
(Gegensaumltze) fixas do entendimento Para que entatildeo alcancemos o plano filosoacutefico eacute preciso
ir aleacutem dessa esfera onde predomina o limitado A razatildeo somente produz o absoluto ao
libertar a consciecircncia das limitaccedilotildees (GW 4 p 15)
A filosofia expressa de acordo com as regras do entendimento soacute pode se dar numa
forma reflexiva Esta por sua vez pode ou natildeo pode apoderar-se (zu fassen) do absoluto A
rigor a reflexatildeo e seus produtos satildeo apenas limitaccedilotildees (Beschraumlnkungen) Assim o absoluto
refletido por ser posto pela reflexatildeo seraacute um limitado Como entatildeo seraacute possiacutevel que a
reflexatildeo seja capaz de apoderar-se do absoluto A este respeito e a partir de uma distinccedilatildeo
entre a reflexatildeo apartada do absoluto e a reflexatildeo vinculada ao absoluto Hegel diraacute A
reflexatildeo isolada como pocircr dos contrapostos seria um suprimir (Aufheben) do absoluto ela eacute a
faculdade do ser e da limitaccedilatildeo mas a reflexatildeo como razatildeo tem relaccedilatildeo com o absoluto e ela
somente eacute razatildeo mediante essa relaccedilatildeo a reflexatildeo nesta medida aniquila a si mesma e a todo
ser e limitado enquanto se refere ao absoluto mas ao mesmo tempo por sua referecircncia ao
absoluto tem o limitado uma consistecircncia (ein Bestehen) (GW 4 pp 16-17)91
89 ldquoQuando poreacutem a razatildeo se reconhece como absoluta entatildeo com isso comeccedila a filosofia ao cessar esse modo de proceder proacuteprio da reflexatildeordquo (GW 4 p 29) Na Fenomenologia do Espiacuterito tambeacutem o saber absoluto soacute poderaacute aparecer ao teacutermino de um processo de exame da consciecircncia no qual esta se liberta de sua forma natildeo-verdadeira ldquoImpelindo-se a si mesma em direccedilatildeo agrave sua verdadeira existecircncia a consciecircncia alcanccedilaraacute aquele ponto no qual depotildee a sua aparecircncia qual seja a de estar presa a algo estranho que eacute somente para ela e como um outro ou no qual o fenocircmeno se torna igual agrave essecircncia A apresentaccedilatildeo da consciecircncia coincide aqui justamente com esse ponto da ciecircncia do espiacuterito propriamente dita e finalmente apreendendo ela mesma a sua essecircncia a consciecircncia designaraacute a natureza do proacuteprio saber absolutordquo (Hegel Fenomenologia do Espiacuterito Col Os Pensadores trad Henrique Vaz Satildeo Paulo Ed Abril 1974 p 56)
90 Parece-nos que o procedimento de justificaccedilatildeo dos produtos do entendimento a ser efetuado por esse instrumento da atividade filosoacutefica que eacute a reflexatildeo como razatildeo seja uma antecipaccedilatildeo do processo de exame pelo qual a consciecircncia na Fenomenologia do Espiacuterito eacute submetida ateacute que por fim possa chegar ao saber absoluto Talvez seja por isso que Klaus Vieweg considere no que concordamos com ele haver nesse capiacutetulo inicial do Escrito da Diferenccedila um procedimento ceacutetico de exame de diversos tipos de pensamento finito Os rudimentos do que seraacute na Fenomenologia o ldquoceticismo que se consumardquo (der sich vollbringende Skeptizismus) (Cf Vieweg Philosophie des p 129)
91 Com respeito agrave distinccedilatildeo hegeliana entre reflexatildeo isolada e reflexatildeo relacionada ao absoluto eacute com proveito que podemos nos remeter ao que diz Rainer Schaumlfer A reflexatildeo finita persiste nas suas determinaccedilotildees
59
A reflexatildeo isolada se constitui de acordo com o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Eacute
segundo este princiacutepio que ela potildee seus produtos e lhes daacute subsistecircncia A reflexatildeo ao mesmo
tempo que suprime o absoluto potildee-se como um absoluto ela fixa seus produtos como
absolutamente opostos ao absoluto daacute para si como lei eterna permanecer entendimento e
natildeo se tornar razatildeo e mantendo-se na sua obra em oposiccedilatildeo ao absoluto nada eacute ndashndash e como
limitada eacute ao absoluto oposta (GW 4 p 18)92 Todavia o subsistir daquilo que por ela eacute
posto eacute um condicionado e estaacute fadado a ser contraditado por seu oposto
Jaacute no caso da reflexatildeo como instrumento do filosofar sua vinculaccedilatildeo agrave razatildeo natildeo
permitiraacute que o limitado permaneccedila e seja esse absoluto capenga tal como acontecia na
reflexatildeo isolada A reflexatildeo aqui tambeacutem chamada por Hegel de reflexatildeo filosoacutefica aniquila
todo ser posto pelo entendimento A emergecircncia do absoluto depende dessa aniquilaccedilatildeo de
todo condicionado Na medida em que a reflexatildeo se potildee sob a lei da razatildeo ela daacute iniacutecio a esse
processo de auto-aniquilaccedilatildeo que permitiraacute que ela se torne razatildeo93 Na medida em que a
reflexatildeo se faz objeto de si mesma sua aniquilaccedilatildeo (Vernichtung) eacute sua lei suprema que a
razatildeo lhe daacute e pela qual ela se torna razatildeo (GW 4 p 18) A reflexatildeo relacionada ao absoluto
eacute a razatildeo como negaccedilatildeo absoluta que aniquila o ser limitado e condicionado posto pelo
entendimento Eacute dessa maneira que seraacute possiacutevel ir aleacutem da esfera limitada do entendimento
unilaterais natildeo chega de nenhum modo ao conhecimento de sua nulidade suas siacutenteses satildeo mesmo as de niacutevel mais complexo sempre unilaterais e abstratas pois aqui tambeacutem ainda vigoram os pontos de vista distintos Nas siacutenteses finitas vale por conseguinte ainda o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Nas siacutenteses reflexivas finitas natildeo estatildeo efetivadas (vollzogen) as destruiccedilotildees dialeacuteticas dos pontos de vista distintos A reflexatildeo em contrapartida que reconhece a nulidade dos pontos de vista distintos vai aleacutem da reflexatildeo finita e torna-se deste modo ldquoinstrumento do filosofarldquo (Schaumlfer R Die Dialektik und ihre besonderen Formen in Hegels Logik Hegel-Studien Beiheft 45 Hamburg Meiner 2001 p 41) Ver tambeacutem a esse respeito o comentaacuterio de Gilbert Geacuterard ldquoDe maneira geral a reflexatildeo designa nos Escritos Criacuteticos a atividade proacutepria do entendimento ou a subjetividade pensante na medida em que separada isto eacute cortada da objetividade real do ser ela soacute tem que ver com suas proacuteprias representaccedilotildees e portanto apenas com ela mesma Se Hegel fala aqui de reflexatildeo isolada isto se deve por um lado para sublinhar de um modo talvez redundante seu caraacuteter abstrato mas eacute contudo tambeacutem para distingui-la daquilo que ele chama de ldquoa reflexatildeo como razatildeordquo ou ldquoreflexatildeo filosoacuteficardquo Natildeo se deve deixar induzir em erro por essas uacuteltimas expressotildees elas natildeo significam de nenhum modo que a reflexatildeo como tal seja racional ou filosoacutefica Pelo contraacuterio noacutes veremos que a reflexatildeo soacute chega agrave filosofia ao se suprimir como reflexatildeo Ela se torna entatildeo na terminologia hegeliana especulaccedilatildeo (Geacuterard G Critique et dialectique Bruxelas Saint-Louis 1982 nota 54 p 37)
92 Eacute por esse processo de absolutizaccedilatildeo do limitado que se forma o entendimento Nesse sentido ver Geacuterard 1982 nota 4 p 66
93 Ver tambeacutem a esse respeito Zimmerli W C Die Frage nach der Philosophie Interpretation zu Hegels Differenzschrift Hegel-Studien Beiheft 12 Bonn Bouvier Verlag Herbert Grundmann 1974 p 99
60
Ao mesmo tempo que todo limitado mostra sua nulidade94 visto que eacute um oposto a um outro
que o nega esse limitado adquiriraacute uma consistecircncia ao ser integrado ao absoluto Mas o
absoluto porque eacute produzido para a consciecircncia mediante o filosofar da reflexatildeo torna-se
deste modo uma totalidade objetiva um todo de saber (Wissen) uma organizaccedilatildeo de
conhecimentos nessa organizaccedilatildeo cada parte eacute o todo pois ela consiste numa relaccedilatildeo com o
absoluto como parte que tem outra fora de si ela eacute um limitado e somente eacute mediante as
outros isolada como limitaccedilatildeo ela eacute deficiente somente tem sentido e significaccedilatildeo mediante
sua conexatildeo com o todo (GW 4 p 19)
Vemos assim que a reflexatildeo filosoacutefica eacute o meio pelo qual eacute possiacutevel o retorno ao
absoluto Relacionada ao absoluto a reflexatildeo eacute esse negar absoluto que suspende ( aufhebt )95
as oposiccedilotildees produzidas pelo entendimento Assim essa reflexatildeo que por ser relacionada ao
absoluto eacute razatildeo tem como tarefa suprimir a oposiccedilatildeo absoluta ela denuncia o caraacuteter
abstrato do entendimento ao mostrar que cada uma de suas posiccedilotildees eacute em verdade uma
antinomia quer dizer desvelando o viacutenculo que une cada uma delas agrave tese imediatamente
adversa (Geacuterard p 83) A pretensatildeo ao absoluto do entendimento natildeo passa de um malogro
afinal todo o posto pelo entendimento com sua suposta absolutez natildeo resiste ao encontro
com seu oposto quando este se apresenta e o contradiz formando uma antinomia A reflexatildeo
eacute o lado negativo do saber ou seja aquele que regido pela razatildeo faraacute com que todo limitado
destrua a si mesmo Mas para que surja a filosofia natildeo podemos permanecer nessa esfera
dominada pela negatividade produtora de antinomias A permanecermos aqui natildeo vamos
aleacutem do aspecto formal da especulaccedilatildeo Se se reflete apenas sobre o aspecto formal da
especulaccedilatildeo e se manteacutem firmemente a siacutentese do saber em forma analiacutetica assim eacute a
antinomia a contradiccedilatildeo que a si mesma se suspende (der sich selbst aufhebende
Widerspruch) a suprema expressatildeo formal do saber e da verdade (GW 4 p 26) O
reconhecimento da antinomia como expressatildeo formal da verdade significa para Hegel dar-se
conta por meio da razatildeo da essecircncia formal da reflexatildeo (GW 4 p 26) Eacute preciso entatildeo ir
aleacutem desse lado negativo
94 Natildeo haacute por isso nenhuma verdade da reflexatildeo isolada do pensar puro a natildeo ser aquela de sua aniquilaccedilatildeo (GW 4 p 19)
95 O termo alematildeo aufheben pode significar suprimir elevar e conservar Para o propoacutesito especulativo de Hegel a polissemia do termo vem bem a calhar pois as determinaccedilotildees de entendimento satildeo suprimidas pela reflexatildeo como razatildeo e ao mesmo tempo conservadas na sua elevaccedilatildeo ao plano especulativo da razatildeo Isto posto traduzimos aufheben por suspender em virtude do termo em portuguecircs tambeacutem poder significar suprimir elevar e conservar Apenas quando o uso do termo eacute exclusivamente negativo traduzimos entatildeo por suprimir
61
O completamento (Vervollstaumlndigung) da unilateralidade da obra da reflexatildeo dar-se-
aacute na intuiccedilatildeo (Anschauung) A intuiccedilatildeo diz Hegel eacute o que postula a razatildeo para que a obra da
reflexatildeo seja completada (GW 4 p 29) Daacute-se com essa siacutentese dos opostos que se
contradizem a possibilidade que possa surgir o lado positivo do saber qual seja a intuiccedilatildeo o
racional precisa ser deduzido de acordo com seu conteuacutedo determinado isto eacute a partir da
contradiccedilatildeo dos opostos determinados cuja siacutentese eacute o racional o postulaacutevel eacute a intuiccedilatildeo que
preenche e manteacutem esse lado antinocircmico (GW 4 p 29)96 Eacute na intuiccedilatildeo que a siacutentese dos
opostos teraacute sua subsistecircncia (ihr Bestehen) Nessa identidade de reflexatildeo e intuiccedilatildeo teremos
portanto o saber especulativo (Cf GW 4 p 29) Em resumo podemos dizer que uma vez
realizada a tarefa (negativa) da reflexatildeo filosoacutefica torna-se possiacutevel a siacutentese da mesma com a
intuiccedilatildeo absoluta de modo que possa ocorrer o desdobramento do lado positivo do saber
Neste momento a filosofia deixaraacute de ser algo a ser buscado deixaraacute de ser uma carecircncia
pois a filosofia comeccedila onde termina essa maneira que procede da reflexatildeo com a
identidade da ideacuteia e do ser (GW 4 p 29-30)97
No artigo sobre o Ceticismo essa atividade de aniquilaccedilatildeo daquilo que eacute posto pelo
entendimento conforme ao princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo eacute exercida pelo ceticismo ou como a
ele se refere Hegel o lado negativo do conhecimento do absoluto (Cf GW 4 p 207)98 Eacute por
meio dele que com a produccedilatildeo de antinomias mostra-se o caraacuteter limitado e condicionado
das determinaccedilotildees produzidas pelo entendimento e se permite a passagem para a razatildeo que eacute
96 Tambeacutem a este respeito mas a razatildeo unifica os contraditoacuterios potildee a ambos ao mesmo tempo e os suspende (GW 4 p 23)
97 Com relaccedilatildeo ao escrito sobre a Diferenccedila jaacute apresentar-se como um primeiro esboccedilo de certos desenvolvimentos posteriores da filosofia de Hegel eacute oportuno lembrar o comentaacuterio de Marcos Lutz Muumlller a respeito dessa articulaccedilatildeo do relacionamento entre entendimento e razatildeo nesse mesmo escrito sobre a Diferenccedila como sendo o motivo inspirador da constituiccedilatildeo da relaccedilatildeo dos trecircs ldquomomentosrdquo da estrutura loacutegico-especulativa do pensamento e da realidade efetiva conforme exposta condensadamente nos sectsect 79-82 da Enciclopeacutedia e no seu desdobramento quaternaacuterio no capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica A ideacuteia absoluta (Cf Muumlller M L ldquoO idealismo especulativo de Hegel e a modernidade filosoacutefica criacutetica ou radicalizaccedilatildeo dessa modernidaderdquo Revista Eletrocircnica Estudos Hegelianos ano 2ordm Nordm 3 2005 p 3)
98 Para Hegel o ceticismo se encontra implicitamente em todo autecircntico sistema filosoacutefico e como seu lado negativo (Cf GW 4 p 208) De modo expliacutecito apenas no Parmecircnides de Platatildeo sendo que deve ser notado haja no mesmo somente o lado negativo da filosofia (Cf GW 4 pp 207-208) Quanto ao ceticismo pirrocircnico Hegel o chama de ceticismo separado da filosofia Um ceticismo que assim como aquele presente no diaacutelogo platocircnico Parmecircnides tambeacutem natildeo possui um lado positivo e com relaccedilatildeo ao saber declara apenas uma pura negatividade O ceacutetico sentido-se incapaz de decidir por entre argumentos ou proposiccedilotildees aparentemente igualmente persuasivos suspende seu juiacutezo e assim nem afirma nem nega a respeito de algo dito com pretensatildeo agrave verdade Para Hegel eacute o que nos parece agir assim eacute afirmar uma pura negatividade (A respeito do ceticismo pirrocircnico ver de modo geral GW 4 pp 213-222)
62
o lado positivo do conhecimento do absoluto99 O grande valor do ceticismo para Hegel reside
nessa sua perseverante luta contra o dogmatismo realizada por meio do que poderiacuteamos
chamar de seu princiacutepio programaacutetico opor a todo argumento ou proposiccedilatildeo uma proposiccedilatildeo
ou o argumento de igual forccedila (Cf HP I 12 tb I 8)
Como o domiacutenio do entendimento eacute aquele no qual apenas lidamos com proposiccedilotildees
passiacuteveis de serem contraditadas por suas opostas isto eacute proposiccedilotildees que em virtude de
serem postas de acordo com a identidade abstrata de entendimento natildeo resistem ao
estabelecimento da antinomia o ceacutetico natildeo tem dificuldade em exercitar sua atitude filosoacutefica
Atitude que para Hegel eacute totalmente pertinente e justificaacutevel quanto agrave sua realizaccedilatildeo
Mas eacute preciso lembrar que o ecircxito do ceticismo no combate ao dogmatismo soacute poderaacute
ocorrer no acircmbito do entendimento No acircmbito da razatildeo como pudemos observar a finitude
do entendimento foi deixada para traacutes Nela a contradiccedilatildeo natildeo leva a filosofia ao seu limite
As proposiccedilotildees que se contradizem satildeo consideradas de uma outra perspectiva Elas
permanecem relacionadas numa siacutentese efetuada pela razatildeo o lado positivo da filosofia A
contradiccedilatildeo natildeo eacute mais aqui um mal a ser evitado pelo contraacuterio ela foi incorporada agrave
filosofia Uma proposiccedilatildeo que exprime um conhecimento racional teraacute como caracteriacutestica
baacutesica ser constituiacuteda por conceitos que do ponto de vista do entendimento se contradizem
(Cf GW 4 p 208) Mas para a razatildeo natildeo haacute nada de aberrante nisso100
Quando a perspectiva racional toma a frente as proposiccedilotildees que se contradizem satildeo
unificadas de modo que se suspende (aufhebt) a antinomia Como diz Hegel ldquoquando em
qualquer proposiccedilatildeo que expressa um conhecimento racional se o aspecto refletido da
mesma ndash os conceitos que nela estatildeo contidos ndash eacute isolado e o modo como eles (os conceitos)
estatildeo ligados eacute considerado entatildeo precisa mostrar-se que esses conceitos estatildeo suspensos
(aufgehoben) ou de tal modo unificados que eles se contradizem caso contraacuterio natildeo teriacuteamos
99 Cf GW 4 p 207 trad cit p 36
100 Tambeacutem no artigo sobre o Ceticismo Hegel se vale de Espinosa como exemplo de filoacutesofo que constroacutei seu sistema a partir de proposiccedilotildees que como diraacute Hegel cometem uma infraccedilatildeo (Verstoszlig) ao princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Proposiccedilotildees de caraacuteter antinocircmico como a que se encontra no iniacutecio da Eacutetica a saber a do conceito de causa sui ou seja aquela causa cuja essecircncia implica sua existecircncia Um tal conceito segundo Hegel foge completamente ao que normalmente se compreende pelo conceito de essecircncia visto que este eacute possiacutevel na medida em que se faz abstraccedilatildeo da existecircncia Da perspectiva racional natildeo haveria contradiccedilatildeo nessa uniatildeo da essecircncia com a existecircncia (Cf GW 4 p 208)
63
uma proposiccedilatildeo racional mas sim uma proposiccedilatildeo de entendimentordquo101 A identidade de
entendimento eacute uma identidade relativa que quando entra em cena a razatildeo daacute lugar a uma
identidade absoluta Essa identidade absoluta eacute uma siacutentese desses contrapostos que formam a
antinomia102 A siacutentese desses postos contrapostos de modo que por ela a antinomia seja
suspensa faz surgir o racional Os contrapostos continuam laacute entretanto eles estatildeo suspensos
(aufgehoben)103 na unidade do racional
Toda proposiccedilatildeo de razatildeo observa Hegel na medida em que ela pode se dissolver em
duas proposiccedilotildees que se contradizem (sich in zwey sich schlechthin widerstreitende aufloumlsen
laumlszligt) ndash por exemplo Deus eacute causa e Deus natildeo eacute causa ele eacute uno e natildeo eacute uno ndash faz entrar em
cena com toda a forccedila o princiacutepio do ceticismo ldquoopor a todo discurso um discurso de forccedila
igualrdquo104
A concepccedilatildeo hegeliana de filosofia reconhece a importacircncia do ceticismo para a
filosofia Entretanto eacute necessaacuterio ir aleacutem desse momento negativo no qual satildeo produzidas
antinomias O ldquoprinciacutepiordquo ceacutetico de ldquoopor a cada discurso um discurso de forccedila igualrdquo (panti
logoi logos isos antikeitai) eacute pertinente apenas no momento negativo da filosofia pois ao
levar agrave produccedilatildeo de antinomias natildeo permite que uma proposiccedilatildeo finita se determine sem
levar em conta a proposiccedilatildeo contraposta e a ela relacionada
A possibilidade de construccedilatildeo do sistema ou a auto-produccedilatildeo da razatildeo estaraacute fundada
na siacutentese de opostos que a cada nova identidade obtida reclama a produccedilatildeo de uma nova
siacutentese de modo que assim o sistema progride e se modela numa totalidade objetiva (Cf GW
4 p 31)105
101 GW 4 p 208 trad p 38 (ldquowenn in irgend einem Satze der eine Vernunfterkenntniszlig ausdruumlckt das Reflectirte desselben die Begriffe die in ihm enthalten sind isolirt und die Art wie sie verbunden sind betrachtet wird so muszlig es sich zeigen daszlig diese Begriffe zugleich aufgehoben oder auf eine solche Art vereinigt sind daszlig sie sich widersprechen sonst waumlre es kein vernuumlnftiger sondern ein verstaumlndiger Satzldquo)
102 Ibidem p 27 trad p 101
103 Suspender com o sentido de suprimir elevar e conservar
104 Hegel cita a famosa foacutermula do ldquoprinciacutepiordquo ceacutetico ndash ldquoopor a cada discurso um discurso de forccedila igualrdquo ndash no original grego Cf GW 4 p 208 e HP I 12
64
105 ldquoA razatildeo a saber a faculdade (neste caso da objetiva) totalidade completa a identidade relativa mediante sua contraposta e produz por meio da siacutentese de ambas uma nova identidade que ela mesma novamente perante a razatildeo eacute uma identidade deficiente e que de novo se completa do mesmo modordquo (GW 4 p 31)
65
Capiacutetulo 3 - O ceticismo nas Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia de Hegel
Segundo nos informa Walter Jaeschke106 com exceccedilatildeo de ldquoLoacutegica e Metafiacutesicardquo
nenhum tema foi tatildeo regular e minuciosamente objeto das preleccedilotildees de Hegel quanto a
ldquoHistoacuteria da filosofiardquo A primeira vez em Iena (18051806) depois Heidelberg (18161817 e
18171818) Nada ainda conforme Jaeschke nos restou como testemunho dessa primeira
ocupaccedilatildeo hegeliana com o tema em suas aulas Como fonte que nos chegou de suas Liccedilotildees
sobre a Histoacuteria da Filosofia temos as que Hegel ministrou em Berlim por seis vezes no
veratildeo de 1819 no inverno de 18201821 e nos invernos de 182324 182526 182728 e
182930 No inverno de 183132 Hegel tambeacutem tinha como tema de suas aulas a histoacuteria da
filosofia mas as mesmas logo foram interrompidas devido agrave morte do filoacutesofo em 14 de
Novembro Hegel havia aqui apenas iniciado a introduccedilatildeo das aulas e sem ao menos poder
concluiacute-la
Com relaccedilatildeo ao nosso interesse a saber as preleccedilotildees que tratavam do tema ceticismo
antigo Jaeschke nota que o estudo intenso do ceticismo jaacute era feito por Hegel desde seus anos
em Frankfurt antes portanto de sua ida em 1801 para Iena Aleacutem disso como jaacute pudemos
observar o ceticismo havia sido objeto de um artigo em Iena e neste artigo consideraccedilotildees de
caraacuteter historiograacutefico a respeito da filosofia ceacutetica se faziam presentes
Nossa intenccedilatildeo agora eacute observar nessas Liccedilotildees a respeito da histoacuteria da filosofia107
que leitura e interpretaccedilatildeo Hegel faz do ceticismo justamente no momento em que jaacute era um
filoacutesofo renomado e com suas principais obras publicadas
106 Cf Jaeschke W Hegel Handbuch Leben- Werk- Schule Stuttgart Metzleer 2003 XIV pp 477 ndash 478
107 Werke 19 pp 358-403 trad pp 759-809
66
No iniacutecio de sua exposiccedilatildeo a respeito do ceticismo pirrocircnico Hegel faz a seguinte
afirmaccedilatildeo ldquoO ceticismo levou a seu acabamento (vollendete) a maneira de ver da
subjetividade de todo saber e potildee de modo geral no lugar do ser a expressatildeo do parecer no
saber O ponto culminante [dessa maneira de ver] eacute o ceticismo a forma do ente e do saber
sobre o ente eacute inteiramente aniquiladardquo 108
E a partir dessa afirmaccedilatildeo fica entatildeo a pergunta o que pode significar o ceticismo ser
o acabamento da maneira de ver subjetivista
Se nos voltarmos para sua Histoacuteria da Filosofia veremos que na filosofia anterior ao
ceticismo os sofistas segundo Hegel podiam ser considerados representantes de uma
filosofia que expressava uma ldquomaneira de ver subjetivardquo109 Foram eles os primeiros a
mostrar assim como depois os ceacuteticos o caraacuteter relativo daquilo que era posto como
verdadeiro ou vaacutelido universalmente Hegel inclusive se refere aos sofistas como ceacuteticos110
Protaacutegoras por exemplo declarava que o homem eacute a medida de todas as coisas daquela que
eacute que ela eacute daquela que natildeo eacute que ela natildeo eacute111 Depende de cada homem em particular o
estabelecimento de qualquer verdade Estaacute relacionado a cada um a verdade a medida a ser
instaurada Assim como o ceacutetico posteriormente jaacute Protaacutegoras procurava nos mostrar que
dada a diversidade dos homens seria muito difiacutecil tentar obter uma verdade que a todos
aparecesse como a uacutenica ldquoa verdade (a medida) eacute fenocircmeno para a consciecircnciardquo112 Aquilo
que a mim me aparece natildeo pode valer para todos os outros dada essa diversidade dos homens
e do caraacuteter relativo daquilo que julgam a respeito das coisas Subjetividade aqui indica aquilo
que natildeo pode obter generalidade que natildeo pode deixar de ser particular e relacionado a
108 Werke 19 p 358 trad cit p 759 (ldquoDer Skeptizismus vollendete die Ansicht der Subjektivitaumlt alles Wissens ud setzte allgemein an die Stelle des Seins im Wissen den Ausdruck des Scheinens Die letzte Spitze ist der Skeptizismus die Form des Seienden und des Wissens des Seienden wird ganz zunichte gemachtrdquo)
109 Cf Werke 18 pp 406-441 trad pp 241-272
110 Hegel denomina de modo claro Protaacutegoras e Goacutergias como representantes do ceticismo isto eacute como aqueles que se expressam em relaccedilatildeo agrave verdade agrave maneira dos ceacuteticos Apoacutes fazer uma exposiccedilatildeo a respeito de Protaacutegoras Hegel comeccedila a tratar de Goacutergias nos seguintes termos ldquoEsse ceticismo chegou a uma profundidade bem maior por meio de Goacutergiasrdquo (ldquoZu einer weit groumlszligeren Tiefe gelangte dieser Skeptizismus durch Gorgiasrdquo) In Werke 18 p 434 trad cit p 266
111 Nessa breve apresentaccedilatildeo de Protaacutegoras guiamo-nos por Hegel na seccedilatildeo que ele dedica ao filoacutesofo Cf Ibidem 18 pp 428-434 trad pp 260-266
112 Citaccedilatildeo de Protaacutegoras que Hegel faz a partir de Sexto Empiacuterico Adversus mathematicos VII 388 In Ibidem 18 p 431 trad p 263 (ldquoDie Wahrheit (das Maszlig) ist die Erscheinung fuumlr das Bewuszligtseinrdquo)
67
determinadas condiccedilotildees Eacute nesse sentido que Hegel chama de maneira de ver da subjetividade
a filosofia ceacutetica
Nessa aproximaccedilatildeo da sofiacutestica ao ceticismo Hegel estaacute em certa medida de acordo
com um comentaacuterio do proacuteprio Sexto Empiacuterico quando este se refere agrave semelhanccedila que possa
haver entre a filosofia ceacutetica e a filosofia de Protaacutegoras113 Mesmo que haja semelhanccedilas entre
os ceacuteticos e Protaacutegoras Sexto adverte que ambos natildeo podem ser confundidos pois o sofista
acaba por fazer afirmaccedilotildees de teor dogmaacutetico algo que para um ceacutetico eacute inadmissiacutevel114
De fato o comentaacuterio de Hegel a respeito da maneira de ver subjetiva ter seu
acabamento no ceticismo quer justamente mostrar essa radicalidade do ceticismo Se antes
houve aqueles que poderiam ser aproximados dos ceacuteticos por forccedila das suas ldquoconclusotildeesrdquo de
teor natildeo-dogmaacutetico natildeo conseguiram eles entretanto se libertar por completo do
dogmatismo
Como jaacute foi dito115 o ceacutetico foi aquele filoacutesofo que natildeo conseguiu afirmar nem
positiva nem negativamente coisa alguma a respeito da verdade Da sua investigaccedilatildeo natildeo
chegou ao mesmo resultado que chegaram os filoacutesofos por ele chamados de dogmaacuteticos O
113 Essa aproximaccedilatildeo entre Protaacutegoras e os ceacuteticos feita por Hegel tambeacutem aparece como pertinente para os estudiosos do ceticismo Oswaldo Porchat refere-se aos sofistas e em especial a Protaacutegoras como algueacutem que antecipava a postura ceacutetica ldquoE eacute verdade entretanto que ao constatar o conflito das opiniotildees e das verdades dos homens umas com as outras ao procurar mostrar que o verdadeiro eacute sempre para cada homem o que tal lhe parece e o que como tal portanto assume e propotildee aos outros Protaacutegoras natildeo visava especificamente as oposiccedilotildees e divergecircncias que dividiam o pensamento filosoacutefico anterior ou contemporacircneo conforme a sua doutrina ao contraacuterio tal diferenccedila de perspectivas sobre a verdade e o saber natildeo configuraria mais do que um caso particular da infinda e irredutiacutevel diversidade das opiniotildees humanas() Ignorando se os deuses satildeo ou natildeo dos homens filoacutesofos ou natildeo Protaacutegoras verificava apenas que as opiniotildees sempre divergem e que eles natildeo se potildeem de acordo Mas tambeacutem descobria mestre de retoacuterica e de eloquumlecircncia que os homens se deixam persuadir com frequumlecircncia pelo discurso e que eacute sempre possiacutevel opor persuasivamente a um argumento um argumento contraacuterio ou tornar mais forte a razatildeo anteriormente mais fraca Uma primeira formulaccedilatildeo assim se propunha do que seria a contribuiccedilatildeo fundamental da sofiacutestica para a filosofia a saber a descoberta de que se pode provar tudo que se quer de que todas as teses se podem demonstrar se se domina de modo adequado e conveniente a teacutecnica de argumentaccedilatildeo Goacutergias natildeo pretenderaacute dizer outra coisa ao proclamar no famoso Elogio de Helena que lsquoo Loacutegos eacute um grande senhorrsquordquo(Porchat O ldquoO conflito das filosofiasrdquo Vida comum e ceticismo Satildeo Paulo Brasiliense 1993 pp 5-7) Ou ainda ldquoEm sua polecircmica antidogmaacutetica os ceacuteticos mostraram retomando o ensinamento de Protaacutegoras que a todo discurso se pode sempre opor um discurso igual isto eacute um discurso de igual forccedila persuasivardquo (Porchat O Rumo ao ceticismo p 297)
114 A respeito de Protaacutegoras diz Sexto Empiacuterico ldquoNoacutes vemos entatildeo que ele dogmatiza natildeo somente a respeito da fluidez da mateacuteria como tambeacutem a respeito disso que os fundamentos de todos os fenocircmenos nela existiam estes assuntos poreacutem satildeo natildeo-evidentes e a respeito dos quais noacutes suspendemos o julgamentordquo (HP I 219)
115 Ver de modo geral o capiacutetulo 1
68
que terminava por acontecer era sempre encontrar uma diversidade de pontos de vista
conflitantes uns aparentemente tatildeo persuasivos quanto os outros Em vista de tal situaccedilatildeo
como interromper a investigaccedilatildeo e poder entatildeo aceitar que um desses pontos de vista seja a
expressatildeo de uma verdade absoluta qualquer Ante a precipitaccedilatildeo no julgar caracteriacutestica por
ele comumente encontrada entre os dogmaacuteticos prefere contudo continuar a investigar E
esta investigaccedilatildeo far-se-aacute por meio da contraposiccedilatildeo de argumentos O ceacutetico entatildeo vai se
esforccedilar em de variadas formas examinar se os argumentos postos pelos dogmaacuteticos resistem
a outros argumentos aparentemente tatildeo persuasivos quanto os primeiros Em resumo o ceacutetico
substitui a busca pela verdade por uma criacutetica do dogmatismo assentada no exerciacutecio dessa
atitude produtora de contraposiccedilotildees ou antinomias Podemos supor que a dificuldade imensa
em encontrar a verdade levou-o a essa mudanccedila de atitude No limite natildeo tem ele mais no
horizonte a esperanccedila de encontrar alguma verdade116 Tanto eacute assim que sua filosofia teraacute
desdobramentos que em nenhum aspecto se assemelham ao que tradicionalmente se podia
encontrar em outras filosofias Referimo-nos aqui agrave suspensatildeo do juiacutezo e a conduta ceacutetica de
se guiar na vida de acordo com os fenocircmenos117
Mas a que nos interessa chamar a atenccedilatildeo neste momento eacute para esse ecircxito dos ceacuteticos
em produzir antinomias em reiteradamente mostrar que eacute possiacutevel a um determinado ponto
de vista um outro ser contraposto ficando difiacutecil portanto decidir em favor de um lado ou de
outro Cremos que natildeo seja por outro motivo que Hegel reconheccedila a forccedila do ceticismo
Como combatecirc-lo Seria mesmo possiacutevel combatecirc-lo Uma filosofia reconhece Hegel que
sempre foi muito temida ldquoNa medida em que eacute a arte de dissolver todo determinado de
mostraacute-lo em sua nulidade o ceticismo passou em todos os tempos e ainda hoje pelo mais
terriacutevel adversaacuterio da filosofia e tambeacutem passou por invenciacutevelrdquo118
Para Hegel qualquer tentativa de refutaccedilatildeo direta do ceticismo estaacute condenada ao
fracasso Natildeo diga-se de passagem que ele pretendesse ser mais um na lista dos que tentaram
116
Com efeito trata-se de uma questatildeo bastante controversa entre os estudiosos do ceticismo ndash uma vexata quaestio ndash se efetivamente o ceacutetico teria desistido da busca da verdade por decorrecircncia dessa dificuldade em encontrar alguma que porventura pudesse passar ilesa perante o exame ceacutetico Daiacute entatildeo com o reiterado fracasso na tentativa de executar a tarefa substituiria a busca pela verdade pelo exerciacutecio da praacutetica dialeacutetica antinocircmica
117 Ver a respeito no cap 1 pp 40-45
118 Werke 19 p 358 (ldquoDer Skeptizismus hat zu Allen Zeiten und noch jetzt fuumlr den furchtbarsten Gegner der Philosophie gegolten und fuumlr unbezwinglich indem er die Kunst sei alles Bestimmte aufzuloumlsen es in seiner Nichtigkeit zu zeigenrdquo)
69
essa faccedilanha Segundo ele natildeo haacute como lutar contra o ceticismo Ele sempre encontraraacute uma
maneira de se sobrepocircr ldquoSe (algueacutem) de fato lhe tivesse escapado natildeo seria ele assim
subjugado mas antes ele por seu lado permaneceria subsistindo e prevaleceriardquo119
No seu juiacutezo a respeito dos ceacuteticos Hegel ao mesmo tempo que louva a atitude ceacutetica
de dissoluccedilatildeo de todo determinado por meio da produccedilatildeo de antinomias recrimina o que
poderiacuteamos chamar de uma certa desmesura presente nessa postura filosoacutefica Uma
desmesura que acaba na incapacidade ceacutetica em chegar a alguma verdade e advinda desse
reiterado ecircxito em conseguir mostrar a todo argumento o argumento que o contrapotildee
Todavia a pertinecircncia da criacutetica ceacutetica eacute tal que ele o ceticismo ldquoparece ser algo a que
devamos nos entregar e que faz imaginar que natildeo se possa vencer aquele que se entregou a
elerdquo120
O ceticismo aos olhos de Hegel apresenta esse caraacuteter ambivalente O que o torna
forte e pertinente leva-o nesse mesmo movimento agrave sua derrocada Derrocada da perspectiva
de Hegel porque da perspectiva dos ceacuteticos a incapacidade de chegar a uma verdade natildeo traz
junto de si nada de problemaacutetico Hegel sabe disso e tambeacutem natildeo se cansa de lembrar que
natildeo haacute como se sobrepor ao ceacutetico que este consegue sempre ao fim ao cabo prevalecer
perante as filosofias ldquodogmaacuteticasrdquo Chega mesmo a dizer que aquele que decidiu tornar-se
ceacutetico natildeo poderaacute com efeito ser dominado e nem ser reconduzido aos braccedilos de uma
filosofia positiva121 Mas que intenccedilatildeo teria ele em insistentemente mostrar a impossibilidade
de se conseguir vencer ao ceacutetico
Parece-nos que a intenccedilatildeo de Hegel eacute de fato mostrar que o ceacutetico eacute um adversaacuterio
extremamente difiacutecil de ser vencido ou que natildeo pode mesmo ser vencido Que contra ele
nada podemos Ele sempre encontraraacute um meio para nos vencer Mas a despeito desse fato
Hegel tem como veremos plena consciecircncia da forccedila do ceticismo A questatildeo eacute que
independente da pertinecircncia da postura filosoacutefica do ceticismo natildeo teria ele ainda a uacuteltima
palavra Sua forccedila eacute a outra face de sua cegueira como tambeacutem veremos Eacute como se ele
realmente estivesse cego perante suas proacuteprias deficiecircncias Natildeo supotildee portanto que possa
119 Ibidem p 359 trad cit p 760 (ldquoWenn in der Tat ihm nur entgangen wuumlrde so waumlre er nicht bezwungen sondern er bliebe seinerseits bestehen und er haumltte die Oberhandrdquo)
120 Ibidem p 358 trad cit p 760 (ldquo[hellip] scheint so etwas zu sein dem man sich ergebe und man hat die Vorstellung daszlig man einem der sich ihm so in die Arme werfe gar nicht beikommen koumlnnerdquo)
121 Cf Ibidem p 359 trad cit p 760
70
ser tatildeo limitado quanto as filosofias que critica Essa eacute ao que parece a posiccedilatildeo de Hegel a
seu respeito Mas dizer que ele eacute limitado natildeo nos pode levar a concluir que Hegel seja
favoraacutevel a que o ceticismo mereccedila ser descartado
Desde o iniacutecio do periacuteodo de Iena quando comeccedila a publicar Hegel afirma que a
filosofia precisa ter um lado ceacutetico que por conseguinte eacute o seu lado negativo122 Mas por
que haveria ela de ter um lado ceacutetico Se partimos do pressuposto como o faz Hegel que a
criacutetica ceacutetica das filosofias dogmaacuteticas eacute dotada de tal forccedila e pertinecircncia que tentar escapar a
ela torna-se uma tarefa dificilmente realizaacutevel vemos que realmente a filosofia precisa
estabelecer uma relaccedilatildeo com o ceticismo que natildeo a de uma mera tentativa de desqualificaccedilatildeo
do mesmo Eacute tatildeo necessaacuterio agrave filosofia tomar a seacuterio o ceticismo que no caso hegeliano
incorpora-se o mesmo a ela
Na anaacutelise do ceticismo antigo nas suas Liccedilotildees o que faz segundo Hegel o ceacutetico na
sua investigaccedilatildeo Ele eacute capaz de mostrar que eacute possiacutevel produzir antinomias a respeito de
qualquer verdade seja de caraacuteter sensiacutevel seja de caraacuteter inteligiacutevel123 Ele aponta uma
contradiccedilatildeo entre aquilo que almejou representar a verdade e aquilo que foi contraposto a essa
suposta verdade ou ainda mostra que cada um dos contrapostos tem tanto valor quanto o
outro ou seja que um natildeo eacute mais capaz que o outro de ser verdadeiro A igual forccedila entre os
contrapostos natildeo nos permite tender para o assentimento a um ou a outro Diante disso soacute
pode o ceacutetico entatildeo suspender seu juiacutezo
Eacute relevante notar que a contradiccedilatildeo que se estabelece entre os contrapostos atesta
apenas que existem argumentos ou discursos de igual forccedila que conflitam o que por si soacute
basta para que natildeo sejamos capazes de nos decidirmos por um dos lados opostos124 Natildeo se
encontra na base da contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos nenhuma teoria que pudesse afirmar
122 Ver cap 2
123 Hegel nesse seu comentaacuterio a respeito da possibilidade do ceacutetico produzir antinomias a respeito de qualquer verdade dogmaacutetica ndash mais ou menos elaborada refere-se explicitamente agraves Hipotiposes I 8-10
124 Cf HP I 10
71
que a contradiccedilatildeo surgiu dadas certas premissas dessa teoria e que apenas de acordo com as
mesmas teriacuteamos entatildeo uma contradiccedilatildeo Temos de consideraacute-la portanto em sentido lato
Hegel tambeacutem estaacute ciente desse sentido amplo ou pouco preciso da contradiccedilatildeo Tanto eacute
assim que reconhece ser a contradiccedilatildeo apenas o resultado de uma oposiccedilatildeo que se faz a partir
do conflito estabelecido entre dois conteuacutedos devendo ser lembrado que essa oposiccedilatildeo natildeo se
restringe a determinados conteuacutedos pelo contraacuterio ela abrange qualquer conteuacutedo125 Essa
possibilidade de que possa ocorrer uma oposiccedilatildeo ou como prefere dizer Hegel uma
contraposiccedilatildeo irrestrita torna o ceticismo antigo mais radical que o puro idealismo formal
moderno a saber Kant ldquoMas os ceacuteticos vatildeo mais aleacutem do que os membros do puro idealismo
formal moderno eles tecircm de se haver com o conteuacutedo e em todo conteuacutedo mostram seja ele
sentido ou pensado que ele tem um contraposto a ele Eles indicam no mesmo portanto a
contradiccedilatildeo que de tudo que eacute posto o contraposto tambeacutem eacute vaacutelidordquo126
Se por um lado para os ceacuteticos antigos a contradiccedilatildeo ou a antinomia natildeo estava
restrita a determinada classe de objetos afinal a mesma podia ser obtida nas mais variadas
formas de oposiccedilatildeo para Kant por outro lado a antinomia se encontrava apenas nos quatro
objetos particulares tomados da Cosmologia127 O que Kant natildeo viu lembra-nos Hegel eacute o
fato de que a antinomia pode ser encontrada ldquoem todos os objetos de todos os gecircneros em
todas as representaccedilotildees conceitos e ideacuteiasrdquo128
Dessa contradiccedilatildeo na qual natildeo tem o ceacutetico como se decidir por um dos contrapostos
adveacutem como jaacute foi dito anteriormente129 a suspensatildeo de juiacutezo Independente do fato de que
Hegel natildeo considere que da incapacidade de decisatildeo entre as opccedilotildees opostas reste como uacutenica
soluccedilatildeo para o impasse a suspensatildeo do juiacutezo natildeo eacute ele avaro em declarar sua admiraccedilatildeo pela
125 Cf Werke 19 p 372 trad cit p 776
126 HEGEL Ibidem p 373 trad p 777 (ldquoAber die Skeptiker gehen weiter als die Anhaumlnger des neueren rein formellen Idealismus sie haben es mit dem Inhalt zu tun und zeigen von allem Inhalt er sei ein empfundener oder gedachter dass er ein ihm Entgegengesetztes habe Sie zeigen also in demselben den Widerspruch auf daszlig von allem was aufgestellt wird auch das Entgegengesetzte giltrdquo)
127 ldquoPode-se notar aleacutem disso que a falta de uma consideraccedilatildeo mais profunda da antinomia ainda levou inicialmente Kant a soacute citar quatro antinomiasrdquo (ldquoEs kann ferner bemerkt werden daszlig die Ermangelung einer tiefern Betrachtung der Antinomie zunaumlchst noch veranlaszligte daszlig Kant nur vier Antinomien auffuumlhrtrdquo) In GW 20 E sect 48 p 85 trad bras p 120
128 HEGEL GW 20 E sect 48 p 85 trad bras p 121 (ldquoin allen Gegenstaumlnden aller Gattungen in allen Vorstellungen Begriffen und Ideenrdquo)
129 Ver o cap 1
72
postura corajosa do ceacutetico que termina na epocheacute seguindo-se agrave mesma casualmente a
ataraxia Natildeo haacute aos olhos de Hegel incerteza para o ceacutetico A incapacidade dele em tomar
uma decisatildeo natildeo lhe traz intranquumlilidade Pelo contraacuterio Para Hegel esse natildeo tomar uma
decisatildeo em favor de um dos lados que se contrapotildeem seria paradoxalmente uma ldquodecisatildeordquo
que se realiza com a suspensatildeo do juiacutezo
Eacute preciso com efeito natildeo deixar de assinalar que Hegel tem consciecircncia de que a
suspensatildeo do juiacutezo e a ataraxia natildeo satildeo frutos de uma atitude deliberada do ceacutetico em favor
delas Ele cita inclusive o exemplo que Sexto nas Hipotiposes nos fornece a respeito do pintor
Apeles que somente consegue seu intento qual seja pintar a espuma na boca do cavalo no
momento que desiste de encontrar a melhor maneira de efetuar tal pintura e entatildeo consegue o
efeito desejado casualmente apenas lanccedilando o pincel em direccedilatildeo agrave tela Hegel tem portanto
plena consciecircncia de que natildeo haacute decisatildeo por parte do ceacutetico com relaccedilatildeo agrave suspensatildeo do juiacutezo
O que contudo quer ele mostrar eacute que o ceacutetico por se sentir incapaz de dar assentimento a
uma suposta verdade que em face dela haja uma outra aparentemente tatildeo persuasiva quanto a
primeira eacute levado a suspender seu juiacutezo Entre natildeo ficar com nada e ficar com uma verdade
qualquer isto eacute ficar com uma verdade a partir de uma decisatildeo puramente arbitraacuteria posto
que infundada o ceacutetico natildeo se ressente de ser levado a ficar de matildeos vazias Pior do que isso
seria ficar oscilando entre verdades contrapostas que natildeo se sustentam agrave luz da investigaccedilatildeo a
que satildeo submetidas Esse oscilar entre poacutelos opostos e que poderia ser interrompido com o
assentimento a um deles natildeo passa para o ceacutetico de uma ilusatildeo a que o dogmaacutetico a si proacuteprio
se condena Fiar-se naquilo que natildeo pode se sustentar somente pode aos olhos do ceacutetico
gerar intranquumlilidade E Hegel na sua concordacircncia com o ceacutetico de que natildeo podemos nos
ater ao que eacute passiacutevel de ter sua verdade contestada procura ainda mostrar a incapacidade do
uso do termo duacutevida para caracterizar o ceticismo
Duvidar segundo Hegel natildeo condiz com a postura ceacutetica ldquoA empresa ceacutetica eacute
caracterizada injustamente como uma doutrina da duacutevidardquo130 Duvidar diz Hegel seria uma
atitude que apenas intranquumlilidade poderia trazer Duvidar significa que fiquemos entre duas
coisas entre duas alternativas e a respeito das quais teriacuteamos que nos decidir por uma ou por
outra Com a tomada dessa decisatildeo obteriacuteamos por conseguinte a tranquumlilidade Mas natildeo eacute
isso que acontece ao ceacutetico ldquoDuacutevida eacute justamente o contraacuterio da tranquumlilidade que eacute o
130 HEGEL Werke 19 p 362 trad cit p 763 (ldquoDas Geschaumlft des Skeptizismus ist unrecht als eine Lehre vom Zweifel ausgedruumlcktrdquo)
73
resultado do ceticismo Duacutevida vem de dois eacute um oscilar entre dois ou mais natildeo sossegamos
nem em um nem no outro e contudo devemos obter sossego em um ou no outrordquo131
O ceacutetico portanto natildeo duvida pois dessa maneira natildeo teria ainda se afastado da
perspectiva dos dogmaacuteticos Quem fica entre dois ou mais e procura por fim obter a
tranquumlilidade se decidindo por entre um dentre esses dois ou mais eacute o dogmaacutetico132 O ceacutetico
ao contraacuterio natildeo adere a nenhuma verdade que possa ter uma outra a ela oposta e
aparentemente de igual forccedila Como obter tranquumlilidade poderia ele pensar sabendo que sua
decisatildeo por uma ou por outra verdade natildeo teria como se sustentar Dada a equumlipolecircncia natildeo
haacute como se decidir por uma ou por outra alternativa sem ao mesmo tempo ter consciecircncia de
que essa decisatildeo natildeo eacute menos arbitraacuteria que a decisatildeo pela outra alternativa e portanto uma
decisatildeo de caraacuteter meramente subjetivo destituiacuteda de qualquer fundamento Quando Hegel se
refere agrave impossibilidade de se obter tranquumlilidade (Ruhe) ao se fazer opccedilatildeo por uma entre duas
ou mais verdades conflitantes assume ele a posiccedilatildeo ceacutetica a respeito da incapacidade de se
131 Ibidem p 371 trad cit p 775 (ldquoZweifel ist gerade das Gegenteil der Ruhe die das Resultat desselben ist Zweifel kommt von Zwei her ist ein Hin- und Herwerfen zwischen zweien und mehreren man beruhigt sich weder bei dem einen noch bei dem anderen - und doch soll man sich bei dem einen oder bei dem anderen beruhigenrdquo)
132 Assim como natildeo considera apropriado caracterizar o ceticismo como uma doutrina da duacutevida dado que aquele que duvida natildeo consegue transpor a perspectiva dogmaacutetica Hegel tambeacutem faz questatildeo de frisar que na Fenomenologia do Espiacuterito o exame efetuado pelo ceticismo que se consuma (der sich vollbringende Skepticismus) em todo acircmbito da consciecircncia fenomenal natildeo pode ser considerado um caminho da duacutevida pois se assim o fosse natildeo seria possiacutevel ir aleacutem da ldquonatildeo-verdade do saber como fenocircmenordquo ldquoTrata-se portanto de um caminho que pode ser considerado caminho da duacutevida ou mais propriamente caminho do desespero Nele com efeito natildeo tem lugar o que geralmente se entende por duacutevida vem a ser o abalo desta ou daquela pretensa verdade ao qual sucede de novo o conveniente desaparecimento da duacutevida e um retorno agrave mesma verdade de sorte que no fim tudo volta a ser como no princiacutepio Ao contraacuterio a duacutevida de que tratamos eacute a vista penetrante e consciente lanccedilada na natildeo-verdade do saber como fenocircmeno []rdquo No original ldquoEr kann deszligwegen als der Weg des Zweifels angesehen werden oder eigentlicher als Weg der Verzweiflung auf ihm geschieht nemlich nicht das was unter zweifeln verstanden zu werden pflegt ein Ruumltteln an dieser oder jener vermeynten Wahrheit auf welches ein gehoumlriges wiederverschwinden des Zweifels und eine Ruumlckkehr zu jener Wahrheit erfolgt so daszlig am Ende die Sache genommen wird wie vorher Sondern er ist die bewusste Einsicht in die Unwahrheit des erscheinenden Wissens [hellip]rdquo In GW 9 p 56 trad Vaz p 50 A respeito de se caracterizar o caminho da duacutevida na Fenomenologia mais propriamente como caminho do desespero eacute bastante esclarecedor citar a seguinte declaraccedilatildeo hegeliana acerca da afinidade do desespero (Verzweiflung) com o ceticismo ldquoO ceticismo poreacutem natildeo eacute um mero duvidar mas antes tambeacutem um desesperar No duvidar ainda existe a esperanccedila ou a expectativa que a duacutevida aiacute-presente possa ser resolvida Uma vez tendo o sujeito perdido essa esperanccedila ou expectativa entatildeo surge um desesperordquo (ldquoDer Skeptizismus ist aber nicht ein bloszliges Zweifeln sondern auch ein Verzweifeln Beim Zweifeln ist noch die Hoffnung oder Erwartung daszlig der Zweifel noch geloumlst werden koumlnne vorhanden ndash Verliert das Subjekt auch diese Hoffnung und Erwartung so entsteht eine Verzweiflungrdquo) Cf Hegel GW Vorlesungen uumlber Logik und Metaphysik Heidelberg 1817 Mitgeschrieben von FAGood ed Karen Gloy In Vorlesungen Ausgewaumlhlte Nachschriften und Manuskripte Band 11 Hamburg Meiner 1992 p 14
74
decidir agrave maneira dogmaacutetica e desse modo chegar agrave ataraxia Como sabemos por Sexto
Empiacuterico o ceacutetico natildeo encontrou tranquumlilidade ao tentar assim como os outros filoacutesofos
descobrir o que eacute verdadeiro e o que eacute falso nas coisas A uacutenica coisa que descobriu foi uma
discordacircncia um conflito ou anomalia nas coisas extremamente difiacutecil de ser solucionado
tanto que termina por adotar como princiacutepio baacutesico de sua filosofia a atitude consistente no
opor a cada argumento o argumento oposto de igual forccedila133
Como vemos o duvidar na visatildeo de Hegel natildeo pode ser um termo apropriado para se
caracterizar a atitude exercida pelo ceacutetico134 Este natildeo duvida pois ele natildeo se resolve por entre
um dos dois ou mais que se opotildeem O ceacutetico ante a falta de meios para fazer uma opccedilatildeo eacute
levado a suspender seu juiacutezo Tentar ao inveacutes disso se decidir por uma das alternativas eacute o
que lhe traraacute intranquumlilidade Duvidar eacute permanecer naquela busca pela verdade assim como o
fizeram os dogmaacuteticos e da mesma maneira fizeram os ceacuteticos inicialmente perturbados
com a anomalia nas coisas passaram entatildeo a investigar o que poderia ser verdadeiro ou falso
nas coisas E o que conseguiram foi ficarem mais perturbados Por isso a mudanccedila de atitude
com relaccedilatildeo agrave busca da verdade e a possibilidade de se encontrar a tranquumlilidade em termos
completamente outros que aqueles dos dogmaacuteticos135 A ataraxia adveacutem dessa indiferenccedila
perante os opostos
133 Cf HP I 12
134 Ainda com referecircncia agrave impropriedade do termo duacutevida para caracterizar o ceticismo diz Hegel a partir de HP I 7 ldquoO ceticismo se chamou tambeacutem de filosofia pirrocircnica e skeacutepsis ldquoefeacuteticardquo de σχέπτειν pesquisar investigar Natildeo devemos traduzir σχέψις por doutrina da duacutevida ou mania da duacutevida O ceticismo natildeo eacute uma duacutevidardquo (ldquoDer Skeptizismus hieszlig auch pyrrhonische Philosophie und ephektische Skepsis von σχέπτειν suchen forschen Man muszlig σχέψις nicht uumlbersetzen Lehre des Zweifels oder Zweifelsucht Skeptizismus ist nicht ein Zweifelrdquo)
135 Cf HP I 12 Com relaccedilatildeo a essa mudanccedila de atitude do ceacutetico para que possa obter a tranquumlilidade declara no mesmo sentido que o fazemos Roberto Bolzani ldquoA constataccedilatildeo dessa incapacidade de resolver o conflito de dar assentimento a uma doutrina em detrimento das outras todas esse estado de equiliacutebrio (άρρεψία HP I 190) e repouso do intelecto (στάσις διανοίας HP I 10) no qual se encontra entatildeo essa impressatildeo ou afecccedilatildeo (πάτος HP I 7187190192 198) nada mais satildeo do que a epokheacute E eacute nessa situaccedilatildeo de suspensatildeo que inesperadamente o filosoacutefo ndash agora ceacutetico ndash se descobre em ataraxiacutea (Cf HP I 29) A meta de todo filosofar agora se obteacutem natildeo mais com a posse da verdade ndash a partir daiacute problemaacutetica ndash mas sim com a produccedilatildeo sempre renovada desse estado intelectual que se impocircs a uma anaacutelise acurada e isenta dos argumentos que os filoacutesofos tecircm proposto para justificar suas doutrinas dogmaacuteticasrdquo (In Bolzani R Acadecircmicos versus Pirrocircnicos Tese de Doutorado em Filosofia Satildeo Paulo FFLCH-USP 2003 p 15)
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Um outro aspecto a ser considerado nessa leitura hegeliana do ceticismo antigo
refere-se ao motivo que permite ao ceacutetico obter ecircxito na sua criacutetica do dogmatismo seja este
filosoacutefico ou natildeo Por que estaacute a seu alcance mostrar a contradiccedilatildeo naquilo que a ele se
apresenta com valor de verdade
Como vimos anteriormente136 Hegel faz uma distinccedilatildeo entre o domiacutenio do
entendimento e o domiacutenio da razatildeo O primeiro constitui-se em um domiacutenio no qual somente
eacute possiacutevel produzir o limitado e finito137 Qualquer determinaccedilatildeo aiacute posta natildeo estaacute livre de ter
uma outra a ela contraposta A ocorrecircncia desse fato se deve como jaacute mencionado ao caraacuteter
limitado das determinaccedilotildees de entendimento138 Tais determinaccedilotildees satildeo limitadas porque
estatildeo reguladas pelo princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo ou seja que algo natildeo pode ser por
exemplo A e natildeo-A ao mesmo tempo Ou eacute uma coisa ou outra Jaacute o domiacutenio da razatildeo eacute
aquele em que essas determinaccedilotildees finitas produzidas pelo entendimento natildeo satildeo
consideradas isoladamente Se para o entendimento natildeo eacute possiacutevel que algo seja e natildeo seja ao
mesmo tempo que uma determinaccedilatildeo de entendimento desse modo somente valha na sua
unilateralidade e com desconsideraccedilatildeo da outra determinaccedilatildeo que a ela se contraponha e a
limite no domiacutenio racional as duas determinaccedilotildees contrapostas satildeo unificadas A contradiccedilatildeo
aqui natildeo eacute um mal a ser evitado
O que nos interessa com essa pequena retomada da distinccedilatildeo hegeliana entre
entendimento e razatildeo eacute fornecer elementos para que possamos elucidar o significado da
afirmaccedilatildeo do filoacutesofo com relaccedilatildeo ao ecircxito do ceacutetico no seu combate ao dogmatismo Com
efeito o ceacutetico consegue mostrar a fraqueza a limitaccedilatildeo das asserccedilotildees dos dogmaacuteticos devido
a estas estarem estruturadas a partir da loacutegica do entendimento Assim natildeo fica difiacutecil para ele
exercer sua atitude (agogeacute) consistente em mostrar que a cada argumento ou proposiccedilatildeo eacute
136 Ver o cap 2
137 ldquoFinito significa ndash expresso formalmente ndash aquilo que tem um fim o que eacute mas que deixa de ser onde estaacute em conexatildeo com seu outro e por conseguinte eacute limitado por ele Assim o finito consiste em uma relaccedilatildeo ao seu outro que eacute sua negaccedilatildeo e se apresenta como seu limiterdquo (ldquoEndlich heiszligt formell ausgedruumlckt dasjenige was ein Ende hat was ist aber da aufhoumlrt wo es mit seinem Anderen zusammenhaumlngt und somit durch dieses beschraumlnkt wird Das Endliche besteht also in Beziehung auf sein Anderes welches seine Negation ist und sich als dessen Grenze darstellt rdquo In Werke 8 E sect28 Adendo p 94 trad bras p 91
138 ldquoO pensar que soacute produz determinaccedilotildees finitas e nelas se move chama-se entendimento no sentido estrito do termordquo (ldquoDas Denken nur endliche Bestimmungen hervorbringend und in solchen sich bewegend heiszligt Verstand (im genauern Sinne des Wortesrdquo) In GW 20 E sect25 p 68 trad bras p 87
76
possiacutevel contrapor um argumento ou proposiccedilatildeo de igual forccedila No acircmbito do entendimento
natildeo eacute portanto possiacutevel se esquivar dos ataques do ceacutetico Ocorre entretanto que num outro
domiacutenio o da razatildeo a situaccedilatildeo natildeo seja tatildeo favoraacutevel ao ceacutetico Se no acircmbito do racional a
contradiccedilatildeo natildeo precisa ser evitada isso significa que teriacuteamos entatildeo um domiacutenio no qual a
agogeacute ceacutetica seria ineficaz Para aleacutem do acircmbito do dogmatismo produzido pelo
entendimento como poderia o ceacutetico ainda ser uma ameaccedila
Eacute apenas tendo em vista as consideraccedilotildees acima feitas que podemos entender Hegel
quando declara que se trata de um equiacutevoco pensar que toda filosofia que natildeo eacute ceticismo seja
dogmatismo139 As filosofias constituiacutedas segundo a loacutegica do entendimento satildeo para Hegel
filosofias dogmaacuteticas E satildeo essas filosofias que natildeo resistem ao combate empreendido pelo
ceticismo contra elas A filosofia especulativa estaria segundo o filoacutesofo a salvo desse
ataque Ela diferente das filosofias de entendimento (ou dogmaacuteticas) natildeo ldquoafirma algo
determinado como o absolutordquo140
Na Enciclopeacutedia141 Hegel nos fornece uma amostra desse dogmatismo expresso
filosoficamente ao se referir ao que chama de antiga metafiacutesica isto eacute a metafiacutesica que havia
se constituiacutedo anteriormente agrave filosofia kantiana142
Segundo Hegel essa metafiacutesica se articulava por meio de determinaccedilotildees de
pensamento finitas ou seja determinaccedilotildees de entendimento Procurava-se por meio delas
determinar o absoluto pela atribuiccedilatildeo de predicados Elas constituiacuteam os predicados mediante
os quais poderiacuteamos conhecer o objeto a que eram atribuiacutedas Assim dizia-se por exemplo
que o mundo eacute finito ou infinito Temos aqui um sujeito mundo ao qual um dos predicados
finito ou infinito a ele deve ser atribuiacutedo de maneira que possamos conhecer o que ele seja
De fato o que conseguimos ao proceder desse modo natildeo eacute o absoluto Finito eacute uma
determinaccedilatildeo de pensamento que tem diante de si uma outra infinito a ela contraposta Se o
mundo portanto eacute considerado finito podemos por outro lado nos contrapor a essa
afirmaccedilatildeo ao declarar com a mesma intenccedilatildeo de verdade que o mundo eacute infinito Como
impedir entatildeo que se instaure a oposiccedilatildeo Eacute com base nesse tipo de dificuldade oriunda desse
139 Cf Werke 19 p 393 trad cit p 798
140 Ibidem p 393 trad cit p 798 (ldquo etwas Bestimmtes als das Absolute behauptetrdquo)
141 Ver GW 20 E sect26 e ss trad bras p 89 e ss
142 Cf Ibidem E sect27 pp 70-71 trad bras p 90
77
modo de proceder da assim chamada antiga metafiacutesica que podemos compreender Hegel
quando se refere agraves determinaccedilotildees de pensamento finitas como as ldquooposiccedilotildees ainda natildeo
resolvidasrdquo143 A resoluccedilatildeo da oposiccedilatildeo como veremos mais tarde somente poderaacute ocorrer na
filosofia que natildeo mais se articula pela atribuiccedilatildeo de predicados a um sujeito fixo Esta
filosofia eacute a filosofia especulativa
Hegel assinala ainda que em virtude dessa possibilidade de que uma determinaccedilatildeo de
pensamento finita possa ter a ela uma outra determinaccedilatildeo de pensamento finita contraposta
esse procedimento da filosofia calcada no entendimento e consistente em se formular
proposiccedilotildees que possam dar-nos a conhecer o que eacute o objeto por meio da atribuiccedilatildeo de
predicados a um sujeito fixo padece de unilateralidade Em outras palavras para Hegel a
forma proposicional eacute incapaz de exprimir o especulativo ldquoo juiacutezo eacute por sua forma
unilateral e nessa medida eacute falsordquo144 Natildeo haacute como escapar do dogmatismo quando se
pretende portanto que o absoluto seja expresso em forma proposicional A parcialidade desse
absoluto eacute mostrada na medida em que eacute possiacutevel a formulaccedilatildeo de duas proposiccedilotildees opostas
que procurem nos dar a conhecer o que ele seja e como nos adverte Hegel uma delas deve
ser verdadeira e a outra deve ser falsa145 Para o pensar de entendimento natildeo cabe a hipoacutetese
de que essas proposiccedilotildees contrapostas possam coexistir Como admitir a coexistecircncia dos
opostos Se o mundo eacute finito eacute porque ele natildeo eacute infinito e vice-versa Do ponto de vista do
entendimento seria absurdo pensar que determinaccedilotildees opostas pudessem ter contato146 que o
mundo fosse por exemplo finito e infinito ao mesmo tempo sem que isso fosse
contraditoacuterio E uma vez instaurada a contradiccedilatildeo potildee-se a claro o limite do pensamento
dogmaacutetico O que o ceticismo faraacute aos olhos de Hegel eacute justamente atacar esse ponto fraco
do pensamento dogmaacutetico por meio da produccedilatildeo de antinomias
143 Cf Ibidem E sect 27 trad bras p 90 (ldquonoch unaufgeloumlsten Gegensatzerdquo)
144 Ibidem E sect31 p 72 trad bras p 94 (ldquodas Urtheil ist durch seine Form einseitig und in sofern falschrdquo)
145 ldquoEssa metafiacutesica tornou-se dogmatismo porque ela conforme a natureza das determinaccedilotildees finitas devia admitir que de duas afirmaccedilotildees contrapostas tais como eram aquelas proposiccedilotildees uma devia ser verdadeira mas a outra falsardquo (ldquoDiese Metaphysik wurde Dogmatismus weil sie nach der Natur der endlichen Bestimmungen annehmen muszligte daszlig von zwei entgegengesetzten Behauptungen dergleichen jene Saumltze waren die eine wahr die andere aber falsch seyn muumlsserdquo) In Ibidem E sect 32 p 72 trad bras p 94
146 O dogmatismo da metafiacutesica de entendimento natildeo pode imaginar que haja qualquer ponto de contato entre determinaccedilotildees opostas ldquoNoacutes as consideramos como separadas uma da outra por um abismo infinito de modo que as determinaccedilotildees que se contrapotildeem natildeo possam nunca tocar-serdquo (ldquoWir betrachten dieselben als durch einen unendlichen Abgrund voneinander getrennt so daszlig die einander gegenuumlberstehenden Bestimmungen sich nie zu erreichen vermoumlgenrdquo) In Werke 8 E sect32 Adendo p 98 trad bras modificada p 95
78
Mas de volta ao nosso ponto de partida referiacuteamo-nos agrave questatildeo do motivo que levaria
o ceacutetico a ter ecircxito na sua criacutetica ao dogmatismo Vimos entatildeo que na perspectiva hegeliana
esse ecircxito estava vinculado a certas caracteriacutesticas definidoras do dogmatismo ou pensar de
entendimento Eacute preciso contudo abrir aqui um parecircntese para lembrar que o ceacutetico natildeo
admite que haja uma terceira hipoacutetese que natildeo ceticismo ou dogmatismo Ou se eacute ceacutetico ou se
eacute dogmaacutetico147 Natildeo haacute para o ceticismo uma filosofia que natildeo fosse ceacutetica e ao mesmo
tempo tambeacutem natildeo fosse dogmaacutetica Qualquer filosofia que de uma maneira ou de outra
procure afirmar algo sobre a realidade o que seriam as coisas em si mesmas a verdade ou o
absoluto eacute aos olhos do ceticismo dogmaacutetica Qualquer filosofia que enfim avance teses
determinadas Hegel estaacute consciente desse aspecto do ceticismo Ele sabe que da perspectiva
ceacutetica tambeacutem o pensamento especulativo seria considerado dogmaacutetico148 Isto posto
podemos afirmar que para ele o dogmatismo eacute um ldquoconceitordquo que natildeo possui a mesma
abrangecircncia que possuiacutea para os ceacuteticos antigos A filosofia especulativa por exemplo natildeo
poderia ser considerada dogmaacutetica Ela natildeo se constitui na forma de proposiccedilotildees que possam
ser contraditadas por outras a elas contrapostas assim como ocorre no caso do pensar limitado
do entendimento Dessa maneira aos olhos de Hegel ela a filosofia especulativa natildeo eacute
dogmaacutetica Somente as filosofias assentadas no pensar de entendimento poderiam receber tal
denominaccedilatildeo Algo impensaacutevel para o ceacutetico fazer uma tal espeacutecie de distinccedilatildeo
A anaacutelise hegeliana dos tropos utilizados pelos ceacuteticos para combater o dogmatismo
tambeacutem estaacute assentada na distinccedilatildeo que ele faz e acima exposta entre dogmatismo ceticismo
e filosofia especulativa Assim veremos a seguir como Hegel caracteriza os tropos e avalia
em que medida podem ser uacuteteis agrave filosofia especulativa
147 Mesmo a divisatildeo tripartite da filosofia no iniacutecio das Hipotiposes natildeo parece a nosso ver desautorizar a hipoacutetese de que para o ceacutetico apenas haja ou dogmatismo ou ceticismo Cremos que a divisatildeo laacute efetuada apenas pretenda tornar mais precisa a distinccedilatildeo entre um dogmatismo positivo e um dogmatismo negativo Por isso quando declaramos acima que para o ceacutetico apenas haja ou filosofia dogmaacutetica ou filosofia ceacutetica utilizamos o termo dogmatismo em sentido lato isto eacute que o dogmatismo possa ser tanto positivo quanto negativo A respeito da divisatildeo tripartite da filosofia pelo ceticismo cf HP I 1-4 Ver ainda no capiacutetulo inicial deste trabalho p 27 e ss
148 ldquoOs ceacuteticos da Antiguumlidade chamavam em geral dogmatismo toda e qualquer filosofia enquanto ela estabelecia teses determinadas Nesse sentido amplo tambeacutem a filosofia propriamente especulativa conta como dogmaacutetica para o ceticismordquo (ldquoDie alten Skeptiker nannten uumlberhaupt eine jede Philosophie dogmatisch insofern dieselbe bestimmte Lehrsaumltze aufstellt In diesem weiteren Sinne gilt auch die eigentlich spekulative Philosophie dem Skeptizismus fuumlr dogmatischrdquo) In Werke 8 E sect 32 Adendo p 97 trad bras p 94
79
Como jaacute foi observado no iniacutecio deste estudo149 e Hegel faz questatildeo de assinalar150 os
tropos satildeo modos maneiras151 que o ceacutetico se utiliza para por meio da produccedilatildeo de antiacuteteses
chegar agrave suspensatildeo do juiacutezo152 Tambeacutem para Hegel assim como jaacute o eram para os ceacuteticos
antigos os tropos satildeo armas valiosas e eficazes para a criacutetica do dogmatismo
Diferentemente dos ceacuteticos que natildeo procuram efetuar nenhuma distinccedilatildeo entre os dez
tropos de Enesidemo e os cinco tropos de Agripa153 Hegel na sua exposiccedilatildeo dos mesmos
empenha-se em delinear as caracteriacutesticas peculiares de ambos os grupos de tropos Assim os
tropos de Enesidemo satildeo eficazes no combate a uma forma de dogmatismo diferente daquele
que eacute alvo dos cinco tropos de Agripa Os dez tropos tecircm segundo o filoacutesofo como alvo uma
forma mais rudimentar de dogmatismo Uma forma de dogmatismo produzida por uma
consciecircncia vulgar (gemeine Bewuszligtsein) e que tem como crenccedila uma verdade imediata154
Mas a que se deve essa ponderaccedilatildeo de Hegel com relaccedilatildeo ao caraacuteter rudimentar do
dogmatismo que estaacute na mira dos dez tropos Ela se deve com efeito a uma falta de
elaboraccedilatildeo conceitual desses tropos Natildeo haacute neles de acordo com a perspectiva hegeliana a
intenccedilatildeo de se procurar fazer frente a teorias sejam elas filosoacuteficas ou natildeo Eles se dirigem
imediatamente contra o empiacuterico155 A oposiccedilatildeo por meio deles advinda se faz da maneira a
mais simples Tomemos a tiacutetulo de exemplo o primeiro tropo156 baseado nas diferenccedilas dos
animais de acordo com ele dados os caracteres proacuteprios de cada animal diferentes
149 Ver Cap 1 pp 46-48
150 Cf Hegel Werke 19 p 37 trad cit p 778
151 Com respeito ao significado do termo grego tropos no ceticismo antigo cf Barnes J e Annas J The modes of scepticism Cambridge Cambridge University Press 1985 p 21 e ss
152 Cf HP I 3135 e 36
153 No que toca agrave atribuiccedilatildeo dos tropos a Enesidemo e a Agripa veja-se respectivamente em Brochard Les Sceptiques Grecs Paris Vrin 1969 p 253 e ss e p301 e ss
154 Cf Werke pp 374-375 trad cit pp 778-779
155 No mesmo sentido a seguinte observaccedilatildeo de Victor Brochard ldquoLimitemo-nos a notar que os dez tropos de Enesidemo exceto o uacuteltimo (trata-se ainda poreacutem de opiniotildees comumente admitidas sem nenhum caraacuteter cientiacutefico) tecircm por objeto mostrar a insuficiecircncia da percepccedilatildeo sensiacutevel (Cf Brochard p 261)
156 Cf HP I 40-78
80
representaccedilotildees seratildeo produzidas a respeito dos mesmos objetos Desse modo em vista das
diferenccedilas especiacuteficas dos olhos de diversos animais produzir-se-atildeo diferentes representaccedilotildees
visuais a respeito de um mesmo objeto Ou ainda conforme o terceiro tropo157 as diferenccedilas
nos oacutergatildeos sensoriais de um homem para outro natildeo permitem que possamos afirmar nada de
certo no que se refere agrave real natureza daquilo que sentimos Assim natildeo podemos nada dizer
por exemplo quanto ao mel ser em si mesmo doce visto que a um pode parecer doce e a
outro natildeo
Por essa maneira ruacutestica de engendrar oposiccedilotildees apenas apontando a relatividade
daquilo que eacute imediatamente posto como um saber verdadeiro Hegel considera haver uma
falta de abstraccedilatildeo (Mangel der Abstraktion) um caraacuteter a-conceitual (Begriffslosigkeit) desses
dez primeiros tropos que eles expressam um pensamento inabilidoso (ein ungeuumlbtes Denken)
Eacute fato que Sexto nos advirta que o tropo da relatividade eacute o mais geral isto eacute que no fundo
todos os dez tropos satildeo variadas formas de expressar a relatividade de todas as coisas158
Mesmo assim nota Hegel o tropo da relatividade aparece exposto ao lado dos outros nove
como apenas mais um deles159 Natildeo importa portanto que natildeo passem de variaccedilotildees do tropo
da relatividade os outros nove tropos160 Parece-nos que o objetivo do ceacutetico ao apresentar por
meio dos dez tropos diversas maneiras de se poder suspender o juiacutezo eacute ilustrar
extensivamente como fica difiacutecil de se escapar da epokheacute Natildeo eacute suficiente apenas assinalar
que pode ser mostrado o caraacuteter relativo de todas as coisas Eacute necessaacuterio exemplificar
abundantemente essa relatividade A produccedilatildeo de antiacuteteses se daacute portanto dos mais variados
modos tornando a tarefa de se encontrar alguma verdade absoluta um objetivo cada vez mais
distante e irrealizaacutevel
Se o ceticismo assinala Hegel eacute uma filosofia que nos mostra natildeo haver constacircncia
nas coisas que elas satildeo variaacuteveis que nada permanece sempre da mesma maneira no caso
dos dez tropos insiste ele essa inconstacircncia pode ser observada no plano do saber imediato
Por meio deste saber apenas se diz que algo eacute imediatamente de determinado modo E por que
157 Cf HP I 79-91
158 Cf HP I 39
159 Cf Werke 19 p 385 trad cit p 790
160 A respeito da sistematizaccedilatildeo precaacuteria desses tropos ou mesmo falta dela diz Brochard ldquoEsses dez tropos noacutes os vemos se suceder com exceccedilatildeo dos quatro primeiros sem grande ordem Natildeo haacute por que se espantar com isso natildeo eacute metodicamente e nem a priori mas empiricamente e acumulando observaccedilotildees que eles foram determinadosrdquo (Cf Brochard p 259)
81
eacute assim Eacute apenas porque eacute Tenho a experiecircncia imediata de que por exemplo o mel eacute doce
Um outro experimenta do mesmo mel e afirma de igual modo que o mel eacute amargo Diante
portanto de duas percepccedilotildees opostas natildeo eacute possiacutevel saber se o mel eacute doce ou amargo e
assim somos levados agrave suspensatildeo de juiacutezo Segundo Hegel a verdade imediata das coisas eacute
refutada apenas com a posiccedilatildeo do contraacuterio ao que eacute afirmado como o verdadeiro por meio
do ldquoser contrapostordquo (das entgegengesetzte Sein)161 Algueacutem afirma que algo eacute assim mas
outro afirma que natildeo eacute assim que eacute de outro modo
Por mais triviais e vulgares que sejam esses tropos Hegel os considera bastante
apropriados (ganz treffend) contra o dogmatismo do senso comum (den Dogmatismus des
gemeinen Menschenverstandes)162 Exemplo desse dogmatismo grosseiro poderia ser o
ceticismo de Schulze163 Para este autor aquilo que se daacute agrave nossa consciecircncia imediata eacute
verdadeiro164 Natildeo haacute porque de acordo com ele negarmos que seja verdadeiro aquilo que
imediatamente experienciamos Se existe algo verdadeiro este consiste apenas naquilo de que
possamos imediatamente ter certeza165 E Schulze ainda pretende que os ceacuteticos antigos
161 Cf Ibidem p 375 trad cit p 779
162 Cf Hegel Ibidem p 385 trad cit p 790
163 Para a criacutetica detalhada de Hegel ao ceticismo de Schulze ver seu artigo ldquoRelacionamento do ceticismo agrave filosofiardquo In GW 4 pp 197-238 Seja-nos permitido citar tambeacutem a respeito nosso artigo ldquoAlguns aspectos da compreensatildeo hegeliana do ceticismo antigo a partir da criacutetica ao ceticismo de Gottlob Ernst Schulzerdquo In Dois Pontos Ceticismo UFPRUFSCAR vol 4 no 2 2007 pp 221-246 Cf tambeacutem Vieweg Philosophie des Remis especialmente pp 207-221 Por fim cf Forster M N Hegel and Skepticism cap 1
164 Cf Werke 19 p 360 trad cit p 375
165 Ver a propoacutesito a exposiccedilatildeo hegeliana desse lado positivo do ceticismo de Schulze no artigo sobre o ceticismo In GW 4 p 202 Hegel notemos laacute se refere quase textualmente ao seguinte trecho da obra de Schulze Criacutetica da Filosofia Teoacuterica a saber ldquoTem entatildeo certeza completamente incontestaacutevel a existecircncia daquilo que eacute dado presente no acircmbito de nossa consciecircncia Pois o que aiacute estaacute presente na consciecircncia natildeo podemos noacutes de sua existecircncia tampouco duvidar assim como duvidar da proacutepria consciecircncia Querer poreacutem duvidar da consciecircncia eacute absolutamente impossiacutevel porque uma tal duacutevida visto que ela natildeo pode realizar-se sem [que haja] consciecircncia a si mesma se aniquila natildeo seria portanto nada Chamamos entatildeo um fato da consciecircncia aquilo que na e com a consciecircncia eacute dadordquo (ldquoNun hat die Existenz desjenigen was im Umfange unsers Bewuszligtseins als vorhanden gegeben ist ganz unlaumlugbare Gewiszligheit Denn da es im Bewuszligtsein gegenwaumlrtig ist so koumlnnen wir dessen Existenz eben so wenig bezweifeln als das Bewuszligtsein selbst das Bewuszligtsein aber bezweifeln zu wollen ist absolut unmoumlglich weil ein solcher Zweifel da er ohne Bewuszligtsein nicht statt finden kann sich selbst vernichten mithin Nichts seyn wuumlrde Nun nennt man dasjenige was in und mit dem Bewuszligtsein gegeben ist eine Tatsache des Bewuszligtseinsrdquo In Schulze G E Kritik der theoretischen Philosophie Band 1 Hamburg 1801 p 51 (reimpressatildeo por Aetas Kantiana Bruxelas Culture et Civilisation 1973)
82
tambeacutem tenham considerado verdadeiro esse saber imediato e natildeo-filosoacutefico166 Ora natildeo haacute
nada mais distante da filosofia ceacutetica do que esse assentimento a verdades imediatas Os dez
tropos de Enesidemo satildeo prova disso natildeo apenas da perspectiva hegeliana como tambeacutem da
perspectiva ceacutetica Hegel sabe que os ceacuteticos estatildeo longe de afirmar que aquilo que lhes
aparece seja expressatildeo de qualquer verdade Como ele bem nota aquilo que lhes aparece
serve apenas de guia para que o ceacutetico se conduza na sua vida praacutetica167 O ldquofenocircmenordquo natildeo
possui nenhum estatuto epistemoloacutegico e nem ontoloacutegico no sentido dogmaacutetico Se os dez
tropos de Enesidemo servem muito bem aos olhos de Hegel para combater qualquer forma
rudimentar de dogmatismo jaacute o ceticismo de Schulze que tambeacutem poderia ser considerado
uma forma de dogmatismo canhestro natildeo pode ficar fora da mira dos ceacuteticos apontada para
ele por meio dos dez tropos
Na primeira seccedilatildeo da Fenomenologia do Espiacuterito ldquoA certeza sensiacutevel ou o isto ou o
visarrdquo Hegel nos apresenta uma criacutetica de toda forma de saber imediato Assim como no caso
dos dez tropos aqui tambeacutem se aponta para a instabilidade desse saber imediato E para
mostrar que a certeza sensiacutevel que esse saber do imediato nos proporciona natildeo eacute nenhuma
verdade sustentaacutevel que quando procuramos ter acesso agrave coisa que eacute imediatamente para noacutes
de fato natildeo temos acesso a ela Hegel eacute o que nos parece apoacuteia-se tambeacutem no ceticismo
antigo Cremos ser possiacutevel fazer semelhante afirmaccedilatildeo porque em certos momentos do
texto seu modo de proceder com vistas a atacar o saber imediato estaacute em consonacircncia com o
procedimento dos ceacuteticos antigos por meio dos dez tropos168 Essa forma de oposiccedilatildeo que
Hegel vecirc como caracteriacutestica do modo de proceder que opera nos dez tropos a saber que a
uma verdade posta imediatamente uma outra verdade eacute imediatamente contraposta agrave
primeira de maneira que uma anule a outra tambeacutem se encontra presente na seccedilatildeo inicial da
166 Cf GW 4 p 204
167 ldquoO que como ente ou inteligiacutevel valia vale por conseguinte a eles somente por algo que aparece ou uma pura representaccedilatildeo poreacutem lhes vale apenas como algo conforme o qual os ceacuteticos se guiam na sua conduta seu agir e deixar-se submeterrdquo (ldquoWas als Seiendes und Gedachtes galt galt ihnen daher nur fuumlr ein Erscheinendes ode reine Vorstellung aber es galt ihnen als eine solche nach der der Skeptiker sich in seinem Betragen Tun und Lassen richteterdquo) In Werke 19 p 371 trad cit p 775
168 Em sucinto poreacutem bastante elucidativo estudo Klaus Duumlsing relaciona a criacutetica hegeliana da certeza sensiacutevel na Fenomenologia do Espiacuterito ao ceticismo antigo Mais especificamente Duumlsing procura mostrar como estaacute nela presente a criacutetica ceacutetica a toda forma de saber imediato por meio da contraposiccedilatildeo de argumentos com ecircnfase na efetivaccedilatildeo dessa tarefa mediante os tropos de Enesidemo (Cf Duumlsing K ldquoDie Bedeutung des antiken Skeptizismus fuumlr Hegels Kritik der Sinnlichen Gewissheitrdquo Hegel-Studien 8 1973 pp 119-130) Tambeacutem Dietmar Heidemann remete a anaacutelise da certeza sensiacutevel ao ceticismo antigo Em particular ele se refere ao que chama de criacutetica ceacutetica ao realismo imediato (Cf Heidemann D Der Begriff des Skeptizismus pp 280-290)
83
Fenomenologia do Espiacuterito quando do exame que se faz do saber imediato que daiacute se parte
Assim eacute faacutecil mostrar que a certeza sensiacutevel imediata de que agora eacute noite natildeo resiste perante
a certeza oposta a ela e pela qual se declara que agora eacute dia Tanto a certeza de que agora eacute
noite quanto aquela outra de que agora eacute dia satildeo certezas portadoras de verdades
insustentaacuteveis em vista da mais simples oposiccedilatildeo a que sejam submetidas169
O mesmo se passa com a verdade ldquoo aqui eacute a aacutervorerdquo 170 quando me viro prossegue
Hegel essa verdade desvaneceu (ist verschwunden) e mudou na oposta o aqui natildeo eacute uma
aacutervore mas antes uma casa
Sem pretender seguir aqui todos os passos dessa dialeacutetica que aniquila a possibilidade
de que haja um saber imediato vale chamar agora a atenccedilatildeo para a conclusatildeo mais geral a que
se pode chegar qual seja de que o ser que a certeza sensiacutevel quer conhecer imediatamente
natildeo pode ser apreendido Mas por que natildeo podemos ter acesso a essa verdade imediata Seu
acesso nos eacute vedado porque quando pretendemos dizer o imediato apenas conseguimos dizer
o universal Na dialeacutetica do agora natildeo conseguimos de fato dizer verdadeiramente que agora
eacute por exemplo dia Agora pode ser dia ou noite Contra o agora que eacute dia pode ser
contraposto o agora que eacute noite A uacutenica coisa que se manteacutem aqui eacute o agora indiferente a ser
dia ou noite ldquoComo o dia e a noite natildeo satildeo o seu ser assim tambeacutem ele natildeo eacute o dia e a noite
natildeo eacute afetado por esse seu ser-outrordquo171 O agora eacute por meio dessa negaccedilatildeo daquilo que ele
natildeo eacute Quando se pretende dizer verdadeiramente que agora eacute dia somente se consegue dizer
o universal isto eacute o agora que se manteacutem a salvo da oposiccedilatildeo que possa surgir entre o ser
que ele pretende enunciar e o ser que se opotildee a ele
A impossibilidade de dizermos o imediato se deve ao fato de sermos traiacutedos pela
linguagem Ela proacutepria nos mostra que ao tentarmos dizer o ser sensiacutevel apenas estaacute ao nosso
alcance dizer o universal172 Se pretendemos dizer este pedaccedilo de papel segundo o que se nos
169 Cf GW 9 pp 64-65 trad Paulo Meneses p 76
170 Cf Ibidem p 65 trad cit p 77
171 (ldquoso wenig die Nacht und der Tag sein Seyn ist ebensowohl ist es auch Tag und Nacht es ist durch diszlig sein andersseyn nicht afficirtrdquo) In GW 9 p 64 trad cit p 76
172 Cf GW 9 pp 64-65 trad Vaz p 63 Hegel natildeo perde aleacutem disso a oportunidade tambeacutem aqui na Fenomenologia do Espiacuterito de criticar e de modo incisivo Schulze Mesmo que natildeo seja citado nominalmente a referecircncia de Hegel soacute pode ser a ele Vale a pena citar todo o trecho ldquoEacute pois de se admirar quando contra essa experiecircncia se sustenta como experiecircncia universal e tambeacutem como afirmaccedilatildeo filosoacutefica e mesmo como resultado do ceticismo que a realidade ou o ser das coisas exteriores como estas ou como sensiacuteveis tem uma
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apresenta pelo exame da certeza sensiacutevel natildeo conseguiriacuteamos dizer este pedaccedilo de papel
singular e individual Pela linguagem o ser-aiacute desse objeto exterior a noacutes eacute inatingiacutevel173 Este
pedaccedilo de papel que digo eacute um pedaccedilo de papel como qualquer outro ldquo() como esse pedaco
de papel todo e cada papel eacute um este pedaccedilo de papel e o que eu disse foi sempre e somente
o universalrdquo174
Trazendo novamente o eixo da discussatildeo para o debate entre Hegel e o ceticismo natildeo
conveacutem aqui discutir a respeito do alcance daquilo que aparece para o ceacutetico apoacutes a suspensatildeo
de juiacutezo mas no que nos interessa a saber a possibilidade ou natildeo de se poder afirmar a
verdade simploacuteria do imediato parece-nos oportuno ainda articular a discussatildeo acerca do
saber imediato agrave temaacutetica ceacutetica referente ao ldquoaparecer apoacutes a epokheacuterdquo
Assim quando nas Hipotiposes se discute a respeito dos ceacuteticos abolirem os
fenocircmenos175 parece-nos que a questatildeo em torno da possibilidade de haver ou natildeo saber
imediato esteja presente O ceacutetico procura aiacute justamente desfazer um mal-entendido
concernente agrave sua ldquoposiccedilatildeo filosoacuteficardquo Se natildeo podemos ter acesso agrave verdade no sentido
dogmaacutetico se as coisas se nos apresentam dotadas de um conflito indecidiacutevel somos levados
agrave epokheacute Diante dessa incapacidade do ceacutetico se decidir (dogmaticamente) em nada poder
afirmar absolutamente o que restaria a ele fazer daiacute por diante Esse eacute a espeacutecie de
verdade absoluta para a consciecircncia Semelhante afirmaccedilatildeo natildeo sabe o que diz ou natildeo sabe que diz o contraacuterio do que pretende dizer A verdade do isto sensiacutevel para a consciecircncia deve ser uma experiecircncia universal Aquela consciecircncia suprime uma verdade desse tipo como por exemplo o aqui eacute uma aacutervore ou o agora eacute meio-dia sempre de novo e enuncia o contraacuterio o aqui natildeo eacute uma aacutervore mas uma casa E do mesmo modo a consciecircncia suprime o que nessa afirmaccedilatildeo que suprime a primeira eacute igualmente afirmaccedilatildeo de um isto sensiacutevel Desta sorte em toda certeza sensiacutevel somente eacute experimentado em verdade o que vimos ou seja o isto como um universal o contraacuterio do que aquela afirmaccedilatildeo assegura ser a experiecircncia universal A propoacutesito dessa menccedilatildeo da experiecircncia seja permitido antecipar uma consideraccedilatildeo que pertence ao domiacutenio da praacutetica Na linha dessa consideraccedilatildeo pode-se dizer agravequeles que afirmam a tal verdade e certeza dos objetos sensiacuteveis que eles devem ser reenviados agrave escola mais baixa da sabedoria ou seja aos velhos misteacuterios eleusiacutenicos de Ceres e Baco e que devem aprender pela primeira vez os misteacuterios de comer o patildeo e beber o vinho Com efeito o iniciado nesses misteacuterios natildeo somente chega a duvidar do ser das coisas sensiacuteveis mas a desesperar dele e ele mesmo de uma parte leva a cabo o seu nada de outra o vecirc levar a cabo Tambeacutem os animais natildeo estatildeo excluiacutedos dessa sabedoria mas ao contraacuterio mostram-se profundamente iniciados nela De fato eles natildeo permanecem diante das coisas sensiacuteveis como se elas possuiacutessem um ser em si mas desesperando da sua realidade e na certeza total de seu nada eles as tomam sem mais e as devoram Como eles toda a natureza celebra assim esses misteacuterios revelados que ensinam qual seja a verdade das coisas sensiacuteveisrdquo In GW 9 p 69 trad Vaz p 66-67
173 Cf Ibid pp 69-70 trad Vaz pp 67-68
174 (ldquoals dieses Stuumlck Papier so ist alles und jedes Papier ein dieses Stuumlck Papier und ich habe nur immer das Allgemeine gesagtrdquo) Cf GW 9 p 70 trad de Paulo Meneses p 82
175 Cf HP I 19-20
85
pensamento que poderia surgir para aqueles que natildeo satildeo suficientemente versados no
ceticismo Mais estranho ainda para o natildeo-ceacutetico eacute essa aceitaccedilatildeo adoxaacutestica daquilo que
aparece sem contudo que este aparecer natildeo seja dotado de verdade A partir deste ponto
estamos a um passo de natildeo compreender que o fenocircmeno da perspectiva do ceticismo possa
ter nossa aceitaccedilatildeo isto eacute que possamos dar nosso assentimento ao que nos aparece e se nos
impotildee independente de nossa vontade mas que isto que nos aparece natildeo tem nenhum valor de
verdade
O pensar natildeo-filosoacutefico podemos conjecturar aceita com dificuldade essa hipoacutetese de
um aparecer do qual natildeo possamos ter certeza verdadeira Afinal como natildeo ter certeza de que
vejo que agora eacute dia A ingenuidade do pensar natildeo-filosoacutefico natildeo se daacute conta de que o ceacutetico
tambeacutem talvez concordasse com essa certeza de que agora eacute dia contudo se ele concorda o
faz de uma outra perspectiva
Talvez seja nesse tipo de confusatildeo com respeito agrave sua posiccedilatildeo que o ceacutetico seja
obrigado a tentar esclarecer porque ele natildeo pretende abolir as aparecircncias Parece-nos
portanto que a explicaccedilatildeo fornecida para esse tema pretenda justamente tornar claro que essa
discussatildeo acerca do caraacuteter do aparecer se faccedila ao niacutevel da linguagem e que nesse niacutevel natildeo
podemos obter certezas vinculadas ao que se noacutes daacute imediatamente Natildeo haacute como decidir
entre afirmaccedilotildees opostas a respeito do ldquorealrdquo O ceacutetico portanto constata que no uacutenico plano
ndash a linguagem ndash em que podemos discutir o fenocircmeno natildeo podemos concluir
dogmaticamente nada a seu propoacutesito Mesma conclusatildeo a que chega Hegel exceto que na
dialeacutetica da certeza sensiacutevel se chega a um resultado positivo176 que acerca daquilo que eacute
visado imediatamente apenas podemos ter acesso ao universal
Dessa discussatildeo importa com efeito reter que tanto para os ceacuteticos quanto para
Hegel natildeo podemos por meio da linguagem exprimir o sensiacutevel Mas nada poder dizer a
respeito do sensiacutevel com valor de verdade natildeo impede o ceacutetico de continuar a falar dele Ele
continua a ver uma aacutervore a perceber que agora eacute dia e que este dia se torna noite O que
acontece agora eacute que em virtude da sua incapacidade em poder dizer algo com valor de
verdade ele apenas pode relatar acerca do que lhe aparece deixando de lado qualquer juiacutezo
teacutetico concernente a esse aparecer
176 O ceacutetico chega apenas agrave suspensatildeo do juiacutezo
86
Os tropos nos mostraram o caminho dessa dificuldade em se afirmar algo
dogmaticamente Apoacutes a suspensatildeo do juiacutezo natildeo estamos de acordo com a visatildeo ceacutetica
impedidos de viver como antes o faziacuteamos mas estamos impedidos todavia de tentar nos
referirmos a essa experiecircncia pela qual todos ndash filoacutesofos ou natildeo ndash passamos de modo
dogmaacutetico
O ceacutetico antigo foi obrigado como haacute pouco vimos a ter de se haver com essa falta de
compreensatildeo relacionada agrave sua filosofia E se essa dificuldade de compreensatildeo do
ldquofenomenismordquo ceacutetico jaacute era notaacutevel agrave eacutepoca de Sexto outro exemplo da mesma
incompreensatildeo novamente se verifica agrave eacutepoca de Hegel o ceticismo de Schulze e este eacute o
exemplo mais gritante da mesma
Se na seccedilatildeo Ceticismo das suas Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia a fraqueza do
ceticismo de Schulze era apontada dentro da criacutetica que por meio dos tropos se fazia agrave falta de
solidez do saber imediato das coisas exteriores sensiacuteveis na Fenomenologia do Espiacuterito a
criacutetica a Schulze se desenvolve no mesmo sentido todavia que agora ela vai como haacute pouco
vimos aleacutem da mera criacutetica negativa e aponta para o resultado positivo dessa dialeacutetica
presente na certeza sensiacutevel
De volta aos tropos conveacutem reparar que nas Hipotiposes Sexto natildeo se refere aos
tropos a partir da dupla denominaccedilatildeo tropos de Enesidemo e tropos de Agripa Ele apenas
nota que os modos de Enesidemo surgem em um periacuteodo mais antigo da histoacuteria do
ceticismo177 Jaacute os tropos de Agripa satildeo de um periacuteodo bem posterior da histoacuteria do
ceticismo178 A diferenccedila entre a eacutepoca de surgimento eacute a uacutenica que Sexto menciona A uacutenica
observaccedilatildeo que Sexto faz nas Hipotiposes quanto agrave relaccedilatildeo entre os dois grupos de tropos
refere-se a notar que os cinco posteriores servem para proporcionar maior variedade e
completude agrave exposiccedilatildeo da precipitaccedilatildeo (propeacuteteia) dos dogmaacuteticos179 Mas apesar contudo
177 Cf HP I 36
178 Cf HP I 164
179 Cf HP I 177
87
de natildeo ser feita nenhuma distinccedilatildeo entre eles com relaccedilatildeo a isso Sexto faz uma declaraccedilatildeo
que merece nossa atenccedilatildeo a saber que os cinco tropos de Agripa natildeo pretendem anular os
dez tropos anteriores Ora por que razatildeo eacute declarado que natildeo se pretende por meio dos tropos
de Agripa repelir os anteriores No contexto dessa discussatildeo poderiacuteamos supor subjaz a
ideacuteia de que os tropos posteriores dariam conta da tarefa a ser executada pelos outros dez
tropos Haveria entatildeo uma superioridade dos tropos de Agripa o que por consequumlecircncia
forccedilaria o afastamento dos dez primeiros tropos em prol dos cinco de Agripa Da perspectiva
ceacutetica tal discussatildeo em torno da superioridade tem de ser evitada afinal por qual criteacuterio
julgar a superioridade de uns em relaccedilatildeo aos outros
Com efeito parece-nos que os cinco tropos de Agripa poderiam tomar o lugar dos dez
tropos de Enesidemo Satildeo de caraacuteter mais geral Dentre eles temos inclusive o tropo da
relatividade aquele ao qual poderiam todos os outros nove tropos de Enesidemo serem
reduzidos
Quando Hegel efetua a distinccedilatildeo entre os dois grupos de tropos eacute cabiacutevel que ele natildeo
esteja cometendo nenhum exagero com respeito ao que de fato nos eacute mostrado pelo ceticismo
antigo
Para Hegel a diferenccedila fundamental entre os tropos de Enesidemo e os tropos de
Agripa reside no grau de elaboraccedilatildeo que eles atingem e atrelado a essa marca distintiva o
alvo a ser atacado por meio deles tambeacutem seraacute diferente180 Assim para ele os tropos de
Agripa ldquopertencem mais agrave reflexatildeo pensante e contecircm a dialeacutetica que o conceito determinado
tem nele Esses parecem melhores satildeo manifestamente de uma origem posterior
imediatamente se vecirc que eles designam um ponto de vista e uma cultura inteiramente
180 Jaacute Brochard na sua apresentaccedilatildeo dos tropos de Enesidemo e Agripa empenhava-se em sublinhar a diferenccedila de grau que havia entre os dois grupos de tropos Dessa maneira procurava mostrar que os tropos de Agripa eram dotados de maior generalidade e abstraccedilatildeo sendo portanto mais eficazes que os tropos de Enesidemo no que toca agrave criacutetica ceacutetica por meio deles efetuada ldquoPor mais gerais que sejam as concepccedilotildees criticadas por Enesidemo elas possuem ainda um conteuacutedo determinado os argumentos de Agripa atingem natildeo somente tal ou tal proposiccedilatildeo mas antes toda proposiccedilatildeo de qualquer espeacutecie que ela seja natildeo apenas determinadas verdades mas toda verdade consideradas segundo as condiccedilotildees as mais imediatas e as mais essenciais do conhecimentordquo (Brochard p 305) Ou ainda ldquoOs cinco tropos podem ser considerados como a foacutermula a mais radical e a mais precisa que jamais fora dada a respeito do ceticismo Numa palavra ainda hoje eles satildeo irresitiacuteveis Quem quer que aceite a discussatildeo acerca dos princiacutepios que natildeo os declare superiores ao raciociacutenio e ao conhecido por uma intuiccedilatildeo imediata do espiacuterito admitido por um ato de feacute primitivo do qual natildeo prestamos contas e nem necessitamos justificar natildeo poderia escapar a essa sutil dialeacuteticardquo (Brochard p 306) Natildeo eacute agrave toa que cabe notar Hegel dedique tanta atenccedilatildeo agrave filosofia ceacutetica
88
diferentes do pensamento filosoacutefico Eles se dirigem com efeito especialmente contra as
formas de pensamento e as determinidades do conceitordquo181
O que chama a atenccedilatildeo de Hegel nos cinco tropos de Agripa eacute o caraacuteter geral dos
mesmos que implica na possibilidade de que eles natildeo fiquem restritos ao ataque a um
dogmatismo de aspecto mais rudimentar182 Os tropos de Agripa por sua proacutepria estrutura
nos permitem eacute o que nota Hegel combater o dogmatismo num outro acircmbito Este acircmbito eacute o
da forma do que eacute dito Natildeo existe aqui a preocupaccedilatildeo em exibir a falta de fundamento de
uma premissa por exemplo com relaccedilatildeo a determinado conteuacutedo Eacute indiferente o assunto de
que se trata
Interessa primordialmente a Hegel que por meio desses tropos possamos combater
natildeo apenas o dogmatismo natildeo-filosoacutefico mas tambeacutem o dogmatismo criado pelos filoacutesofos E
por dogmatismo filosoacutefico deve ser entendido aquele dogmatismo denominado por Hegel de
filosofia do entendimento (Verstandesphilosophie)
Como jaacute foi visto anteriormente183 o ecircxito do ceacutetico no combate ao dogmatismo estaacute
na visatildeo hegeliana relacionado agrave limitaccedilatildeo intriacutenseca da esfera do entendimento Assim a
aplicaccedilatildeo do ldquoprinciacutepio programaacutetico do pirronismordquo qual seja opor a todo argumento ou
proposiccedilatildeo a proposiccedilatildeo ou argumento de igual forccedila184 ao saber de entendimento fazia com
que esse saber sempre desmoronasse em vista das antinomias estabelecidas pelo ceacutetico
Contra o limitado posto pelo entendimento o ceacutetico punha um outro que contrapusesse o
primeiro mostrando assim a falta de consistecircncia desse185
Os tropos de Agripa natildeo satildeo nada mais do que variadas formas de apontar o caraacuteter
determinado do pensar filosoacutefico de entendimento ldquoEsses tropos satildeo armas fundamentais
181 (ldquosie gehoumlren mehr der denkenden Refelxion an und enthalten die Dialektik welche der bestimmte Begriff an ihm hat Diese sehen besser aus sie sind offenbar spaumlteren Ursprungs es erhellt sogleich dass sie einen ganz anderen Standpunkt und Bildung des philosophischen Denkens bezeichnen Sie gehen naumlmlich besonders gegen die Gedankenformen und Bestimmtheiten des Begriffsrdquo) In Werke 19 p 386 trad cit p 790
182 ldquoOs dez tropos de Enesidemo tendem a provar que a certeza de fato natildeo existe os cinco tropos de Agripa querem estabelecer que logicamente natildeo poderia haver certeza Por aiacute podemos medir a superioridade dos uacuteltimos por sobre os primeirosrdquo (Brochard p 304)
183 No que se refere agrave relaccedilatildeo entre dogmatismo e entendimento e agrave criacutetica ao dogmatismo produzido pelo entendimento ver de modo geral cap 2
184 Cf HP I 12
185 A respeito da limitaccedilatildeo do entendimento ver neste estudo o capiacutetulo 2
89
contra a filosofia de entendimentordquo186 Hegel natildeo perde a oportunidade de por diversas vezes
elogiar os tropos de Agripa como armas eficazes contra a limitaccedilatildeo da filosofia de
entendimento187
Tomemos um exemplo de como pode ser combatida a limitaccedilatildeo de uma filosofia do
entendimento segundo Hegel a filosofia dogmaacutetica comumente apresenta um princiacutepio em
uma proposiccedilatildeo determinada Ora eacute faacutecil apontar a condicionalidade desse princiacutepio ao se
simplesmente contrapor a ele de acordo com o tropo da hipoacutetese um outro princiacutepio que o
negue Diante dessa oposiccedilatildeo o ceacutetico suspende seu juiacutezo pois natildeo se vecirc em condiccedilotildees de
acolher um ou outro princiacutepio como vaacutelido A posiccedilatildeo do princiacutepio dessa filosofia eacute tatildeo
arbitraacuteria quanto a posiccedilatildeo do princiacutepio que o contrapotildee e posto pelo ceacutetico Contra um tal
princiacutepio determinado tambeacutem poder-se-ia arguumlir qual eacute seu fundamento e assim um outro
princiacutepio seria posto como fundamento do primeiro mas este novo princiacutepio padeceria da
mesma falta de fundamento e entatildeo seria necessaacuterio um outro princiacutepio a fundaacute-lo e assim por
diante Com esse processo de fundamentaccedilatildeo que nunca se basta teriacuteamos entatildeo uma
regressatildeo ao infinito (2ordm tropo de Agripa)
Como podemos observar natildeo eacute difiacutecil para o ceacutetico apontar mediante os tropos a
falta de solidez do que eacute posto pelas filosofias do entendimento ldquoEsses tropos satildeo as
oposiccedilotildees necessaacuterias nas quais o entendimento cai Nesses tropos estaacute contida a deficiecircncia
(das Mangelhafte) de toda metafiacutesica do entendimentordquo188 A proacutepria estrutura da proposiccedilatildeo
favorece a criacutetica ceacutetica Lembremos189 que uma proposiccedilatildeo de entendimento se constitui de
acordo com o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo190 Desse modo natildeo podemos dizer que algo seja
e natildeo seja ao mesmo tempo O ceacutetico apoiado em sua dialeacutetica potildee ao que se diz numa
proposiccedilatildeo de entendimento o seu contraposto tornando assim patente a limitaccedilatildeo do que era
enunciado por meio dessa proposiccedilatildeo
186 (ldquoDiese Tropen sind gruumlndliche Waffe gegen Verstandesphilosophierdquo) Werke 19 p 395 trad cit p 799
187 ldquoEsses tropos demonstram a alta consciecircncia dos ceacuteticos no progredir da argumentaccedilatildeo superior agravequela da loacutegica comum da loacutegica dos estoacuteicos e da canocircnica de Epicurordquo (ldquoDiese Tropen beweisen das hohe Bewuszligtsein der Skeptiker in dem Fortgehen der Argumentation -- ein houmlheres als in der gewoumlhnliche Logik der Logik der Stoiker und der Kanonik des Epikur vorhanden istrdquo) In Ibidem p394 trad cit p 799
188 (ldquoDiese Tropen sind notwendige Gegensaumltze in welche der Verstand faumlllt In diesen Tropen ist das Mangelhafte aller Verstandesmetaphysik enthaltenrdquo) In Ibidem p 394 trad cit p 799
189 Veja-se a respeito o capiacutetulo 2
190 Hegel a ele se refere como princiacutepio de contradiccedilatildeo
90
Ainda sobre os tropos de Agripa atacarem a forma do que eacute dito dogmaticamente por
essas filosofias limitadas Hegel se refere a essa operaccedilatildeo como ldquodesse determinado
encontrar o que eacute sua determinidaderdquo191 Encontrar nesse determinado produzido pelo
entendimento aquilo que o faz limitado e que dessa maneira torna-o vulneraacutevel agrave criacutetica
ceacutetica
A fim ainda de esclarecer o que eacute o ceticismo Hegel distingue dois momentos formais
do que ele chama de cultura (Bildung) ceacutetica Esses dois momentos constituem uma espeacutecie
de descriccedilatildeo hegeliana da estrutura fundamental do modo de operar dessa filosofia
Assim no primeiro momento Hegel salienta essa forccedila da consciecircncia (ceacutetica) de se
retirar de si mesma e tomar a totalidade do que existe incluiacuteda aiacute ela mesma ndash sua operaccedilatildeo ndash
como seu objeto192 Talvez com essa espeacutecie de caracterizaccedilatildeo Hegel se refira agrave neutralidade
que haacute nessa postura filosoacutefica quando do exame daquilo que a ela se apresenta
dogmaticamente
Natildeo haveria como ser diferente pois se o ceacutetico em virtude de sua proacutepria atitude
filosoacutefica natildeo possui dogmas a defender natildeo parte portanto de nenhuma verdade seja ela
qual for ou diga respeito ao que quer que seja o seu exame do que eacute afirmado
dogmaticamente seraacute isento e neutro O exame dos enunciados dos dogmaacuteticos se efetua
levando apenas em conta aquilo que eles mesmos propuseram e os argumentos utilizados
pelos ceacuteticos para combater tais enunciados expressam somente a forma por eles encontrada
para verificar a sustentabilidade do que foi dogmaticamente posto193
191 (ldquovon diesem Bestimmten zu finden was seine Bestimmtheit istrdquo) In Werke 19 p 395 trad cit pp 799-800
192 Cf Ibidem p 395 trad cit p 800
193 Nada fica por conseguinte excluiacutedo do acircmbito do exame do dogmatismo filosoacutefico Natildeo se parte de premissas que sirvam como criteacuterio a ser seguido com relaccedilatildeo ao que seraacute analisado Eacute de acordo com essa forma de proceder do ceacutetico que na Fenomenologia do Espiacuterito eacute o que nos parece dir-se-aacute que o exame ceacutetico da consciecircncia aconteceraacute a partir daquilo mesmo que se apresenta nesta ou naquela figura da consciecircncia de maneira que ldquonatildeo temos portanto necessidade de trazer outras medidas e aplicar na investigaccedilatildeo nossas descobertas e nossos pensamentos Deixando-os de lado conseguiremos tratar o objeto de nossa inquisiccedilatildeo tal como ele eacute em-si e para-si Torna-se supeacuterflua por conseguinte uma intervenccedilatildeo de nossa parte desde que o
91
O segundo momento da Bildung ceacutetica consiste na operaccedilatildeo efetivamente realizada
quando do exame do que eacute dito dogmaticamente Pensemos por exemplo numa proposiccedilatildeo
qualquer o interesse do ceacutetico natildeo estaacute voltado primordialmente para o conteuacutedo enunciado
por meio dessa proposiccedilatildeo mas antes na forma do que eacute dito194 Desse modo no juiacutezo ldquoa
coisa eacute unardquo sua preocupaccedilatildeo natildeo eacute com a coisa que eacute dita e com o fato dela ser uma
preocupa-se ele antes que nessa proposiccedilatildeo haacute um algo um determinado relacionado ao uno
O essencial consiste nessa relaccedilatildeo entre esse singular que se potildee como um com o universal
que por sua vez eacute diverso (verschieden) dele195 O essencial prossegue Hegel eacute o elemento
loacutegico trazido ao primeiro plano pelo ceticismo196
Os tropos de Agripa exemplificam essa mudanccedila de foco do conteuacutedo para a forma do
que eacute enunciado A criacutetica ao dogmatismo independe do conteuacutedo que estaacute presente num
argumento ou proposiccedilatildeo pois esses tropos satildeo eficazes no combate ao dogmatismo apenas
ao apontar em seu aspecto formal a falta de solidez do que eacute afirmado
Outro aspecto que adveacutem como consequumlecircncia desse desinteresse pelo conteuacutedo do que
eacute dito refere-se ao fato de que a investigaccedilatildeo ceacutetica por natildeo poder ndash em virtude de sua
conceito e o objeto a medida e a coisa a ser examinada estatildeo presentes na consciecircncia mesmardquo (ldquo[]und hiemit wir nicht noumlthig haben Masszligstaumlbe mitzubringen und unsere Einfaumllle und Gedanken bey der Untersuchung zu appliciren dadurch daszlig wir diese weglassen erreichen wir es die Sache wie sie an und fuumlr sich selbst ist zu betrachten Aber nicht nur nach dieser Seite daszlig Begriff und Gegenstand der Maszligstab und das zu Pruumlffende in dem Bewuszligtsein selbst vorhanden sind [hellip] rdquo In GW 9 p 59 trad Vaz p 54
194 Cf Werke 19 p 395 trad cit p 800
195 Cf Ibidem p 395 trad cit p 800
196 Poderiacuteamos aproximar essa discussatildeo a respeito da mudanccedila de foco realizada pelo ceacutetico do conteuacutedo para a forma do que seraacute examinado agrave discussatildeo no iniacutecio da Enciclopeacutedia precisamente no sect3 acerca da necessidade de se passar para o plano dos pensamentos puros quando se pretende pensar filosoficamente Nesse sentido eacute interessante o comentaacuterio hegeliano acerca da dificuldade da consciecircncia ordinaacuteria compreender o ponto de vista da filosofia Dessa ldquofalta de costume de pensar abstratamenterdquo deriva a acusaccedilatildeo de ininteligibilidade (Unverstaumlndlichkeit) da filosofia (cf GW 20 p42 trad cit p 42) O pensar que natildeo consegue se libertar de suas representaccedilotildees sentimentos intuiccedilotildees tem dificuldade em se elevar ao plano de uma discussatildeo na qual lhe sejam retirados os conteuacutedos familiares a que estaacute acostumado a lidar O que o ceacutetico faz eacute passar desse plano mais terra-a-terra da consciecircncia ordinaacuteria e como quer Hegel transpor-se para o plano dos pensamentos puros ldquoEm qualquer proposiccedilatildeo de conteuacutedo inteiramente sensiacutevel como lsquoessa folha eacute verdersquo jaacute estatildeo inseridas categorias ser singularidaderdquo (GW 20 p 42 trad p 42) Quando se faz essa passagem para esse plano mais abstrato o exame se aprofunda As proacuteprias coordenadas que regulam a constituiccedilatildeo de nosso pensamento acerca das coisas satildeo postas em questatildeo Por isso a consciecircncia ordinaacuteria diraacute Hegel se sente aturdida pois perde seu ponto fixo e domiciacutelio ldquoQuando se encontra deslocada para a regiatildeo pura dos conceitos natildeo sabe onde estaacute no mundordquo (Cf GW 20 p 43 trad p 43) A ldquoresoluccedilatildeo de querer pensar puramenterdquo (rein denken zu wollen) cumpre essa exigecircncia ceacutetica de submeter tudo a exame o que envolve a ldquoausecircncia de pressuposiccedilatildeo a respeito de tudordquo (Cf GW 20 E sect 78 p 118 trad p 156)
92
proacutepria atitude filosoacutefica ndash nada pressupor natildeo considera nada como dado isto eacute daquilo que
eacute afirmado dogmaticamente nenhum dos elementos componentes dessa afirmaccedilatildeo ficaria
excluiacutedo da investigaccedilatildeo
Talvez pudeacutessemos compreender a partir do que se disse agora a declaraccedilatildeo de Hegel
referente aos ceacuteticos natildeo estarem preocupados em disputar se a coisa eacute deste ou daquele
modo mas que eles se preocupam antes se a coisa eacute mesmo algo197
O exemplo extraiacutedo das Hipotiposes198 que Hegel nos daacute a esse respeito eacute o seguinte
na discussatildeo acerca das propriedades que porventura Deus possua eacute preciso primeiro que
saibamos se ele tem realidade (Realitaumlt)199 Antes de conceber quais propriedades Deus
possui primeiro se faz necessaacuterio saber se Deus mesmo eacute algo ldquonatildeo fornecer a coisa se a
coisa eacute assim ou assado mas antes se coisa mesma eacute algordquo200 A postura filosoacutefica ceacutetica
implica essa mudanccedila de atitude perante o discurso filosoacutefico ou natildeo Antes de empregar a
linguagem ldquodoacutexicardquo eacute preciso examinar se as ldquoessecircnciasrdquo que essa linguagem nos fornece satildeo
algo de soacutelido e estaacutevel Via de regra o pensamento dogmaacutetico natildeo se questiona a respeito do
que diz Eacute como se desde sempre os conceitos dos quais se vale tivessem os significados que
num determinado contexto prevaleceram O ceacutetico recua ante esse emprego ingecircnuo das
palavras e examina se as ldquoessecircnciasrdquo que nelas habitam satildeo efetivamente ldquoessecircnciasrdquo estaacuteveis
Nesse exame da ldquoessecircncia do expressordquo para falar em linguagem hegeliana se atinge o
caraacuteter limitado e instaacutevel dessas ldquoessecircnciasrdquo E ao se atingir a limitaccedilatildeo das mesmas
descobre-se tambeacutem que como veremos natildeo podem ser visadas apenas na sua
unilateralidade Em suma para que possamos pretender aceitar determinada posiccedilatildeo
dogmaacutetica filosoacutefica ou natildeo eacute necessaacuterio que nada deixe de ser investigado Eacute por essa
amplitude e falta de restriccedilotildees embutidas na investigaccedilatildeo ceacutetica que Hegel se referiu agrave forccedila
da consciecircncia ceacutetica em fazer seu objeto tudo que eacute existente inclusive a si mesma e sua
proacutepria operaccedilatildeo
197 Cf Ibidem p 396 trad cit p 800
198 Cf HP III 4
199 Nas Hipotiposes III 4 no trecho que certamente Hegel tem em mente trata-se de saber o que eacute a essecircncia (οὐσίαν) de Deus antes de se aprender e conceber suas propriedades
200 (ldquonicht die Sache zu geben ob die Sache so oder so ist sondern ob die Sache selbst etwas istrdquo) Ibidem p 396 trad cit p 800
93
No que respeita propriamente ao seu exame Hegel vislumbra jaacute no ceticismo antigo
um procedimento operatoacuterio caracteriacutestico do pensamento especulativo201 Eacute o que ele nos
diraacute logo apoacutes ter feito a exposiccedilatildeo da anaacutelise de Sexto Empiacuterico sobre as noccedilotildees geomeacutetricas
Natildeo apenas com relaccedilatildeo agraves noccedilotildees geomeacutetricas mas tambeacutem em todas as
determinaccedilotildees das ciecircncias o ceacutetico apresenta a determinidade delas ao indicar nas mesmas o
seu outro202 No caso especiacutefico das determinaccedilotildees da geometria Sexto prossegue Hegel
critica a matemaacutetica por nela se dizer que haacute um ponto um espaccedilo uma linha uma superfiacutecie
uma unidade e assim por diante Com efeito o que para Hegel se encontra na criacutetica ceacutetica agraves
determinaccedilotildees matemaacuteticas eacute o fato dessas determinaccedilotildees padecerem de unilateralidade quer
dizer que nelas natildeo se consideram as determinaccedilotildees agraves mesmas opostas e unidas
Hegel cita um exemplo dessa criacutetica agrave matemaacutetica a saber o exemplo do
relacionamento dialeacutetico entre o ponto e o espaccedilo
ldquoO ponto eacute um espaccedilo e eacute um simples no espaccedilo ele natildeo tem nenhuma dimensatildeo
(mas se) ele natildeo tem nenhuma dimensatildeo entatildeo ele natildeo estaacute no espaccedilo Na medida em que o
um eacute espacial noacutes o denominamos um ponto mas se isso deve ter um sentido ele precisa ser
espacial e enquanto espacial ter uma dimensatildeo ndash mas entatildeo natildeo eacute mais um ponto O ponto eacute a
negaccedilatildeo do espaccedilo na medida em que eacute o seu limite e como tal ele toca o espaccedilo essa
negaccedilatildeo participa portanto do espaccedilo ela proacutepria eacute espacial eacute assim um nulo (Nichtiges) em
si mas com isso eacute tambeacutem um dialeacutetico em sirdquo203
Como acabamos de observar nessa dialeacutetica do ponto e do espaccedilo o ponto somente se
determina como ponto na medida em que estaacute intrinsecamente relacionado ao outro elemento
201 ldquoO ceticismo tratou portanto tambeacutem propriamente de ideacuteias especulativas e apontou a importacircncia delasrdquo (ldquoDer Skeptizismus hat also auch eigentlich spekulative Ideen behandelt und ihre Wichtigkeit aufgezeigtrdquo) Cf Ibidem p 396 trad cit p 802
202 Cf Ibidem p 396 trad cit p 802
203 Ibidem p 396 trad cit p 802 (ldquoPunkt ist ein Raum und ein Einfaches im Raum er hat keine Dimension hat er keine Dimension so ist er nicht im Raume Insofern das Eins raumlumlich ist nennen wir es einen Punkt wenn dies aber einen Sinn haben soll so muszlig es raumlumlich sein und als Raumlumliches Dimension haben ndash so ist es aber kein Punkt mehr Er ist die Negation des Raums insofern er die Grenze des Raums ist als solche beruumlhrt er den Raum diese Negation hat also einen Anteil an dem Raum ist selbst raumlumlich ndash ist so ein Nichtiges in sich ist aber damit auch ein Dialektisches in sichrdquo)
94
que nega o espaccedilo mas sem o qual o ponto natildeo se constitui como ponto O limite do ponto eacute
o espaccedilo e o limite do espaccedilo eacute o ponto Um somente eacute o que eacute na medida em que o outro natildeo
eacute todavia esse relacionamento dos opostos eacute o que permite que ambos sejam ponto e espaccedilo
A limitaccedilatildeo de um pelo outro eacute a condiccedilatildeo para que cada um se determine ou como ponto ou
como espaccedilo Para o pensamento finito de entendimento o ponto eacute um simples no espaccedilo que
natildeo possui dimensatildeo Ora o ceacutetico mostra que natildeo eacute possiacutevel pensar o ponto desvinculado da
dimensatildeo Como estar no espaccedilo e natildeo ter dimensatildeo Aqui temos o ldquolimiterdquo do entendimento
natildeo eacute capaz de conceber que o ponto seja no espaccedilo e dependa da dimensatildeo espacial para se
determinar como ponto Para o entendimento essa convivecircncia muacutetua de ponto e espaccedilo eacute
uma contradiccedilatildeo e por ser uma contradiccedilatildeo natildeo eacute nada O que o ceacutetico faz eacute mostrar que
ponto e espaccedilo efetivamente contradizem um ao outro entretanto essa contradiccedilatildeo entre
ambos os elementos eacute o que permite aos olhos do pensamento especulativo que sejam como
jaacute dissemos ponto e espaccedilo Cremos que a partir dessas consideraccedilotildees possamos compreender
porque Hegel se refira ao fato do ceticismo ter tratado de ideacuteias especulativas204 Esse na
liacutengua hegeliana indicar da contradiccedilatildeo no finito aqui especificamente pelo exemplo do
ponto e do espaccedilo eacute segundo o filoacutesofo ldquoum ponto essencial do meacutetodo filosoacutefico
especulativordquo205
Mas o ceacutetico natildeo se restringe como gostaria Hegel a combater apenas o finito Ele
natildeo reconhece que o especulativo seja um domiacutenio a salvo de suas investidas Se o ponto e o
204 Em Ordem do tempo Paulo Eduardo Arantes ao refazer todos os passos da argumentaccedilatildeo hegeliana a respeito da passagem especulativa do espaccedilo ao tempo explicita a articulaccedilatildeo dialeacutetica presente nessa passagem entre ponto e espaccedilo ldquoGraccedilas agrave ideacuteia de limite ndash primeira negaccedilatildeo ou negaccedilatildeo simples ndash eacute a armaccedilatildeo dialeacutetica inteira que estaacute montada na exposiccedilatildeo do conceito de espaccedilo O ponto eacute a negaccedilatildeo do espaccedilo uma vez que este se mostra inicialmente como o ser-fora-de-si indiferenciado ou imediato Certo natildeo haacute como falar de pontos espaciais como constituindo o elemento positivo do espaccedilo (agregado obtido por soma de pontos) A continuidade abstrata do espaccedilo eacute apenas a possibilidade mas natildeo o estar-posto do ser-um-fora-do-outro e do negativo Vale dizer que a desarticulaccedilatildeo do contiacutenuo pela limitaccedilatildeo equivale a uma posiccedilatildeo do negativo por isso lsquoo ponto o ser-para-si eacute antes a negaccedilatildeo do espaccedilo e essa negaccedilatildeo posta nelersquo (ibid sect 254 p 207 trad p 245) Vale dizer tambeacutem que a negatividade de que o ponto eacute portador eacute da ordem da negaccedilatildeo determinada Em suma o ponto eacute a negaccedilatildeo do espaccedilo portanto essa negaccedilatildeo mesma eacute espacial e a linha que natildeo eacute mais que o ponto suprimido eacute assim o ser espacial do ponto (cf ibid sect 256)rdquo In Arantes P E A ordem do tempo Satildeo Paulo Ed Polis 1981 p 37
205 Ibidem p 396 trad 802 (ldquoein wesentlicher Punkt der spekulativ philosophischen Methoderdquo) Nesse sentido podemos compreender que o conceito absoluto seja uma arma da qual se vale o ceacutetico ldquoContra o conceito como conceito conceito absoluto nada pode o ceticismo o conceito absoluto eacute antes sua arma apenas que ele natildeo tem nenhuma consciecircncia a respeito dissordquo (ldquoGegen den Begriff als Begriff absoluten Begriff geht der Skeptizismus nicht der absolute Begriff ist vielmehr seine Waffe nur daszlig er kein Bewuszligtsein daruumlber hatrdquo) In Ibidem p 372 trad cit p 776
95
espaccedilo se contradizem natildeo haacute conciliaccedilatildeo possiacutevel A incapacidade de decidir soacute o leva agrave
suspensatildeo do juiacutezo Da contradiccedilatildeo natildeo se pode esperar nada
Se o ceacutetico segundo Hegel acertadamente eacute capaz de apontar (aufzeigen) a
limitaccedilatildeo do pensar de entendimento que seu saber por natureza unilateral estaacute condenado a
ser sempre contraditado por um outro ele natildeo eacute entretanto capaz de enxergar nessa
contradiccedilatildeo a possibilidade de que haja nela um aspecto afirmativo ldquoos ceacuteticos permanecem
no resultado como perante um negativo tal coisa tem uma contradiccedilatildeo em si portanto se
dissolve (loumlst es sich auf) portanto natildeo eacuterdquo206 O termo da investigaccedilatildeo ceacutetica se consuma
nessa aporia Mas o negativo a que se chega ldquoeacute novamente uma determinidade unilateral em
face do positivo isto significa que o ceticismo se comporta somente como entendimentordquo207
O que Hegel pretende com essa criacutetica eacute mostrar que o ceacutetico por mais que se
empenhe em efetuar sua investigaccedilatildeo da maneira a mais abrangente mesmo ele natildeo se daacute
conta de que assume certos pressupostos tambeacutem passiacuteveis de exame Aqui especificamente
falta a ele atentar para o fato de que o negativo a que chega eacute tatildeo limitado quanto o positivo
que aboliu que a negaccedilatildeo comporta um lado afirmativo208 que o nada que adveacutem da
contradiccedilatildeo natildeo eacute um puro nada
ldquoEssa dialeacutetica permanece assim simplesmente no lado negativo do resultado e abstrai
daquilo que ao mesmo tempo estaacute aiacute-presente um resultado determinado aqui um puro nada
mas um nada que em si inclui o ser e igualmente um ser que nele inclui o nadardquo209
206 (ldquo[] die Skeptiker bei dem Resultat als einem Negativen stehenbleiben dies und dies hat einen Widerspruch in sich also loumlst es sich auf also ist es nichtrdquo) Werke 19 p 360 trad cit p 761
207 (ldquo [hellip]ist wieder eine einseitige Bestimmtheit gegen das Positive dh der Skeptizismus verhaumllt sich nur als
Verstand rdquo) Ibidem p 360 trad cit p 761
208 Ibidem p 360 trad cit p 761
209 GW 20 E sect89 p 129 trad cit p 185 No original ldquoDiese Dialektik bleib so blos bei der Negativen Seite des Resultates stehen und abstrahirt von dem was zugleich wirklich vorhanden ist ein bestimmtes Resultat hier ein reines Nichts aber Nichts welches das Seyn und eben so ein Seyn welches das Nichts in sich schlieszligtrdquo
96
O pressuposto natildeo assumido pelo ceacutetico eacute portanto que o nada eacute uma determinaccedilatildeo
unilateral que se relaciona apenas exteriormente ao ser Com efeito vemos nos paraacutegrafos
iniciais da Doutrina do Ser na Enciclopeacutedia que o ser e o nada estatildeo unidos que eles se
determinam mutuamente210 Sem pretender adentrar na anaacutelise desses paraacutegrafos da
Enciclopeacutedia importa agora reparar que o ponto de vista do ceacutetico tambeacutem eacute passiacutevel de
criacutetica que por mais que ele deseje o contraacuterio aos olhos de Hegel natildeo conseguiu ele se
desvencilhar do horizonte do dogmatismo211 Seu exame natildeo fora tatildeo radical quanto ele o
quereria212 O ceacutetico natildeo deixa por conseguinte de ser tributaacuterio da ontologia que critica
Mas mesmo que natildeo vaacute aleacutem da contradiccedilatildeo soacute por chegar ateacute ela o ceticismo aos olhos de
Hegel honra a filosofia especulativa Natildeo eacute por outro motivo que Hegel considera o ceticismo
como parte da filosofia positiva que esta tem incorporado a ela o negativo do ceticismo como
seu momento Eacute claro deve ser ressalvado que o negativo devidamente tingido pela filosofia
especulativa ldquoA filosofia positiva [] ela tem o negativo do ceticismo nela mesma ele natildeo eacute
contraposto a ela natildeo eacute fora dela mas antes eacute um momento da mesma poreacutem o negativo em
sua verdade tal como o ceticismo natildeo o temrdquo213
Fica bastante expliacutecito por meio dessas Liccedilotildees de Hegel eacute o que natildeo podemos deixar
de notar a enorme influecircncia exercida pela filosofia ceacutetica na especulaccedilatildeo hegeliana
Na filosofia isto eacute na filosofia especulativa que por sua vez estaacute para aleacutem da
alternativa ou dogmatismo ou ceticismo ndash afinal a especulaccedilatildeo para Hegel conteacutem em si
210 Cf E sect86 e ss
211 Uma espeacutecie de criacutetica que diga-se de passagem mesmo que recebesse aceitaccedilatildeo unacircnime ainda assim natildeo faria com que ele se desse por vencido Provavelmente seria a seguinte sua resposta ldquo[] quando algueacutem nos propotildee um argumento que natildeo podemos refutar dizemos-lhe que assim como antes de surgir o introdutor da doutrina de que ele participa o argumento dela natildeo aparecia ainda como vaacutelido embora jaacute existisse por natureza assim tambeacutem eacute possiacutevel que o argumento oposto agravequele agora proposto exista por natureza mas ainda natildeo nos apareccedila de modo que natildeo devemos ainda dar assentimento ao argumento que agora parece ser mais forterdquo In HP I 33-34
212 Nesse sentido diz Geacuterard Lebrun ldquoBasta mostrar que seu uacutenico erro foi natildeo o de ir tatildeo longe que fosse impossiacutevel acreditar em sua sinceridade mas de natildeo ter ido longe o bastanterdquo In A paciecircncia do conceito Satildeo Paulo Unesp 2000 p 243
213 (ldquoDie positive Philosophie [] sie hat das Negative des Skeptizismus in ihr selbst er ist nicht ihr entgegengesetzt nicht auszliger ihr sondern ein Moment derselben aber das Negative in seiner Wahrheit wie es der Skeptizismus nicht hatrdquo) Werke 19 p 359 trad cit p 760 Tambeacutem a esse respeito ldquoContudo essa (a ideacuteia especulativa) tem o ceticismo nela como seu momento e vai ainda para aleacutem delerdquo No original ldquoAllein diese hat den Skeptizismus selbst als Moment in ihr und ist wieder uumlber ihn hinausrdquo Ibidem p 372 trad cit p 776
97
mesma a oposiccedilatildeo do determinado e de seu contraposto214 ndash encontra-se poderiacuteamos dizer
um lado ceacutetico presente Esse ceticismo presente na filosofia especulativa Hegel o chama de
dialeacutetica de todo determinado215 Por meio dessa dialeacutetica podemos indicar que o finito dada
sua limitaccedilatildeo comporta uma negaccedilatildeo ou seja eacute determinado por um outro que o nega o que
por consequumlecircncia envolve uma contradiccedilatildeo Quando Hegel declara ldquoO conceito loacutegico eacute
igualmente essa dialeacutetica pois o conhecimento verdadeiro da ideacuteia eacute essa negatividade que
no ceticismo do mesmo modo estaacute na sua terra natalrdquo 216 torna-se patente a importacircncia
dessa incorporaccedilatildeo de um procedimento ceacutetico agrave filosofia especulativa Mesmo que seja
necessaacuterio obviamente natildeo deixar de lado o que haacute de especiacutefico nessa incorporaccedilatildeo do
ceticismo agrave filosofia especulativa se faz necessaacuterio sublinhar que eacute ele o ceticismo que
transfigurado constitui esse lado negativo da especulaccedilatildeo hegeliana217 Natildeo haveria portanto
diferenccedila de intenccedilatildeo entre o ceticismo pensante e o ceticismo antigo na medida em que
ambos se empenham como quer Hegel no combate ao pensamento finito do entendimento
Todavia o ceticismo puro218 natildeo distingue entre um domiacutenio no qual se daria a finitude e um
outro que estivesse para aleacutem dela Para esse ceticismo fazer uma tal espeacutecie de demarcaccedilatildeo
jaacute pressuporia algum criteacuterio Em outras palavras estariacuteamos partindo de alguma verdade que
nos permitisse investigar dentro de certos paracircmetros Estariacuteamos portanto em territoacuterio
dogmaacutetico O ceacutetico ao natildeo demarcar o terreno da finitude estaacute apenas sendo coerente com
as coordenadas que balizam sua proacutepria postura E Hegel sabe disso Mas em virtude dessa
sua natildeo-distinccedilatildeo entre o domiacutenio do entendimento e o domiacutenio do racional o ceticismo
214 Cf Werke 19 p 397 trad pp 802-803
215 Cf Ibidem p 359 trad cit p 760
216 (ldquoDer logische Begriff ist ebenso selbst diese Dialektik denn die wahrhafte Kenntnis der Idee ist diese Negativitaumlt die im Skeptizismus ebenso einheimisch istrdquo) Ibidem p 360 trad cit pp 760-761
217 No iniacutecio de suas Liccedilotildees sobre o ceticismo Hegel se refere ao ceticismo que faz parte da filosofia especulativa como ceticismo pensante (denkende Skeptizismus) Um ceticismo que natildeo terminaraacute numa negaccedilatildeo unilateral isto eacute um negativo que natildeo desaacutegua nos termos da Fenomenologia do Espiacuterito num puro nada Na Fenomenologia Hegel se refere a esse ceticismo que impulsiona o percurso fenomenoloacutegico como ceticismo que se consuma (sich vollbringenden Skeptizismus) Com efeito dentro do contexto das anaacutelises precedentes tambeacutem poderiacuteamos considerar esse ceticismo pensante agrave luz dessa denominaccedilatildeo feita na Fenomenologia do Espiacuterito O ceticismo que faz parte da filosofia especulativa natildeo peca por insuficiecircncia pois seu exame traz um resultado que a partir do mesmo a investigaccedilatildeo continua Seu caraacuteter consumado eacute o que permite dar impulso ao processo
218 Denominaccedilatildeo que Hegel fornece na Fenomenologia ao ceticismo natildeo incorporado ao pensamento especulativo E cremos certamente que ele esteja aiacute se referindo ao ceticismo antigo
98
como jaacute observamos anteriormente tambeacutem critica a especulaccedilatildeo filosoacutefica todavia nessa
sua criacutetica contra o especulativo ele eacute impotente (unkraumlftig)219
Segundo Hegel os ataques do ceacutetico ao especulativo satildeo ineficazes porque neste
domiacutenio natildeo lidamos com determinaccedilotildees finitas como ocorre no caso do entendimento O
que isso significa Significa que o ceacutetico natildeo poderaacute mostrar que a um posto um outro se
contrapotildee ldquono que concerne agrave ideacuteia especulativa natildeo eacute esta precisamente um determinado
natildeo tem a unilateralidade que existe na proposiccedilatildeo natildeo eacute finita ela tem antes o absolutamente
negativo (das absolut Negativ) nela mesma tem a oposiccedilatildeo dentro dela mesma ela eacute em si
mesma circular conteacutem nela esse determinado e seu contraposto essa idealidade dentro dela
mesmardquo220
Como acabamos de ver a proacutepria ideacuteia especulativa daacute conta daquilo que seria tarefa
do ceacutetico mostrar o argumento contraposto agravequele que se punha isoladamente na sua
unilateralidade Ela abarca nela mesma o determinado e aquele outro determinado que o nega
Eacute por esse motivo que a ideacuteia especulativa natildeo pode ser atacada pelo ceticismo Aquilo que
por ela eacute afirmado natildeo se faz do mesmo modo que numa proposiccedilatildeo221 Jaacute foi notado neste
estudo222 que a proposiccedilatildeo por sua proacutepria estrutura natildeo admite a contradiccedilatildeo ou se diz que
algo eacute ou que ele natildeo eacute nunca as duas coisas A ideacuteia especulativa natildeo tem a unilateralidade
que existe na proposiccedilatildeo porque nela satildeo admitidas ambas as determinaccedilotildees que se
contradizem O princiacutepio de contradiccedilatildeo natildeo possui aqui validade
A contradiccedilatildeo existente na ideacuteia especulativa resolve-se numa nova unidade que da
mesma maneira ldquoestaacute aberta agrave potecircncia do negativordquo223 Isto quer dizer que estaacute sujeita a ser
219 Cf Werke 19 p 397 trad cit p 802
220 Cf Ibidem p 397 trad cit pp 802-803 (ldquoDenn was die spekulative Idee selbst anbetrifft so ist diese eben nicht ein Bestimmtes hat nicht die Einseitigkeit welche im Satze liegt ist nicht endlich sondern sie hat das absolut Negative an ihr selbst den Gegensatz in ihr selbst sie ist in sich rund enthaumllt dies Bestimmte und sein Entgegengesetztes an ihr diese Idealitaumlt in ihr selbst rdquo
221 ldquoMas a filosofia a filosofia especulativa afirma sem duacutevida mas natildeo um determinado ela natildeo expressa sua verdade na forma de uma proposiccedilatildeo ela natildeo tem proposiccedilatildeo fundamentalrdquo (ldquoAber die Philosophie spekulative Philosophie behauptet wohl aber nicht so ein Bestimmtes oder sie spricht ihr Wahres nicht in der Form eines Satzes aus sie hat keinen Grundsatzrdquo) Cf Ibidem p 393 trad cit p 798
222 Veja-se o cap 2 e tambeacutem o que se diraacute no cap 4
223 Werke 19 p 397 trad cit p 803 (ldquo [hellip] steht sie der Macht des Negativen offenrdquo)
99
contraposta por uma nova determinaccedilatildeo agrave qual se uniraacute e assim indefinidamente224 A
natureza dialeacutetica da ideacuteia implica essa continuaccedilatildeo do movimento225
A partir do que foi exposto vemos por que Hegel julga que o ceticismo seja impotente
(unkraumlftig) quando pretende atacar a filosofia especulativa Esta procura se defender do
ceticismo adotando seu modo de proceder Aleacutem disso mesmo que considere correta a atitude
filosoacutefica ceacutetica natildeo deixa entretanto de assinalar a limitaccedilatildeo de seu alcance o que faz
assim que o ceticismo stricto sensu fique restrito a atuar apenas no acircmbito do entendimento
224 ldquoNo especulativo o outro jaacute estaacute contido Eacute uma outra identidade que aquela do entendimento O objeto eacute em si concreto contraposto a si mesmo Estaacute poreacutem do mesmo modo aiacute-presente a resoluccedilatildeo dessa oposiccedilatildeo O especulativo natildeo pode ser expresso como proposiccedilatildeordquo No original ldquoIm Spekulativen ist das Andere schon selbst enthalten Das ist andere Identitaumlt als die des Verstandes Der Gegenstand ist konkret in sich sich selbst entgegengestzt Ebenso ist aber Aufloumlsung dieses Gegensatzes selbst vorhanden Das Spekulative kann so nicht als Satz ausgedruumlckt werdenrdquo Ibidem p 397 trad cit p 803 Ver ainda a propoacutesito o capiacutetulo 5
225 Cf Ibidem p 397 trad cit p 803 Ver tambeacutem Ibidem p 360 trad cit p 761
101
II ndash A dialeacutetica especulativa de Hegel
Capiacutetulo 1 ndash As determinaccedilotildees de reflexatildeo da identidade agrave contradiccedilatildeo especulativa
Natildeo eacute muito bom para a filosofia
ter uma proposiccedilatildeo e entatildeo
apenas poder dizer isto eacute ou isto
natildeo eacute
Hegel226
Eacute na Loacutegica da Essecircncia227 especificamente no capiacutetulo que trata das determinaccedilotildees
de reflexatildeo que podemos comeccedilar a compreender como a criacutetica hegeliana ao aspecto
limitado do ceticismo pode ser efetuada a partir da Loacutegica o motivo da suposta falta de
eficaacutecia do ceticismo quando pretende atacar a filosofia especulativa Neste capiacutetulo que
comeccedila com a anaacutelise da determinaccedilatildeo da identidade e termina na exposiccedilatildeo da sua
concepccedilatildeo de contradiccedilatildeo que se resolve no fundamento nos satildeo fornecidos elementos
importantes e necessaacuterios tanto para a jaacute mencionada criacutetica do ceticismo quanto para o
entendimento de seu meacutetodo dialeacutetico-especulativo228 que permite segundo ele agrave filosofia
natildeo ficar refeacutem da criacutetica ceacutetica229
226
Aforisma no 68 da eacutepoca de docecircncia em Iena In Hoffmeister J Dokumente zu Hegels Entwicklung Stuttgart Frommann-Holzboog 1974
227 GW 11 pp258-290
228 A ser tratado no capiacutetulo 5
229 Para uma anaacutelise precisa das determinaccedilotildees de reflexatildeo veja-se tambeacutem o estudo de Andreas Arndt Dialektik und Reflexion zur Rekonstruktion des Vernunftbegriffs Hamburg Meiner 1994 pp 203-216
102
A identidade
Hegel comeccedila a tratar da unilateralidade da identidade que eacute caracteriacutestica do
entendimento ao considerar as determinaccedilotildees reflexivas num percurso que teraacute o seu teacutermino
quando expotildee o significado da contradiccedilatildeo especulativa
Segundo Hegel as determinaccedilotildees de reflexatildeo eram antigamente acolhidas na forma de
proposiccedilotildees (Saumltzen) e declarava-se que as mesmas valiam como leis universais do
pensamento isto eacute leis que estariam na base de todo pensamento nelas mesmas absolutas e
indemonstraacuteveis aceitas por todo pensamento como imediatas e natildeo-contraditoacuterias (GW 11
p 258 trad pp 33-34) O princiacutepio de identidade eacute uma das dessas proposiccedilotildees que valem
como leis universais do pensamento Tudo eacute igual a si mesmo A=A E dito de forma
negativa A natildeo pode ao mesmo tempo ser A e natildeo-A230
Com efeito natildeo se deve desconsiderar prossegue Hegel qual seria o motivo pelo qual
apenas tais simples determinaccedilotildees de reflexatildeo sejam apreendidas nessa forma particular isto
eacute como proposiccedilotildees imediatas indemonstraacuteveis e natildeo-contraditoacuterias e natildeo tambeacutem outras
categorias e todas as determinidades da esfera do ser231 Uma proposiccedilatildeo eacute o meio pelo qual
se pode dizer por exemplo que tudo eacute ou tudo tem um ser-aiacute tem uma qualidade tem uma
quantidade etc232 Ocorre que eacute disso que Hegel parece querer nos advertir categorias e
determinidades satildeo componentes de proposiccedilotildees e nas quais figuram como predicados
(Praumldicate) E para ressaltar essa vinculaccedilatildeo estreita entre proposiccedilotildees e categorias Hegel
chega inclusive a nos lembrar que ldquosegundo a etimologia e segundo Aristoacuteteles categoria eacute
aquilo que eacute dito do que eacute (von dem Seyenden)233
E agora antes de prosseguirmos cabe a pergunta As determinidades de ser que
fazem parte das proposiccedilotildees como predicados isto eacute como aquilo que eacute dito de algo seriam
tambeacutem assim como as proposiccedilotildees imediatas indemonstraacuteveis e natildeo-contraditoacuterias
230 GW 11 p 258 trad p 34
231 Cf Ibidem p 259 trad p 34
232 Cf Ibidem p 259 trad p 34
233 Ibidem p 259 trad p 34
103
A resposta de Hegel eacute a seguinte
Uma determinidade de ser eacute essencialmente um passar no seu oposto a
negativa de qualquer determinidade eacute tatildeo necessaacuteria como ela proacutepria como
determinidades imediatas frente a cada uma delas se encontra imediatamente a outra
Quando por conseguinte essas categorias satildeo formuladas em tais proposiccedilotildees entatildeo
aparecem do mesmo modo as proposiccedilotildees contrapostas ambas se apresentam com a
mesma necessidade e possuem como afirmaccedilotildees imediatas iguais direitos234
Como teremos oportunidade de mais detidamente a seguir observar mas que desde jaacute
Hegel faz questatildeo de frisar eacute que as determinidades de ser ou as categorias por sua proacutepria
estrutura interna natildeo podem ser afastadas da contradiccedilatildeo isto eacute mediante o pocircr das
determinidades a elas contrapostas Aleacutem disso na medida em que satildeo partes constituintes de
proposiccedilotildees tambeacutem estas natildeo podem escapar agrave posiccedilatildeo de proposiccedilotildees a elas contrapostas
Um pequeno parecircnteses aqui merece ser aberto para que natildeo se deixe de sublinhar a
influecircncia do ceticismo antigo nessa discussatildeo acerca da inevitabilidade235 da contradiccedilatildeo em
decorrecircncia de proposiccedilotildees estarem submetidas ao princiacutepio de identidade Assim Hegel
apenas nos faz ver que natildeo haacute como escapar da criacutetica ceacutetica quando lidamos com tais
proposiccedilotildees Dessa maneira natildeo haacute como escapar do ataque ceacutetico mediante o uso que este
pode fazer de seu ldquoprinciacutepio baacutesicordquo a saber opor a cada proposiccedilatildeo uma proposiccedilatildeo de igual
valor236 Eacute por essa limitaccedilatildeo constitutiva dessas proposiccedilotildees regidas pelo princiacutepio de
identidade que o ceacutetico conclui Hegel eacute capaz de produzir antinomias
234 Ibidem p259 trad p 34 (ldquoAllein eine Bestimmtheit des Seyns ist wesentlich ein Uebergehen ins Entgegengesetzte die negative einer jeden Bestimmtheit ist so nothwendig als sie selbst als unmittelbaren Bestimmtheiten steht jeder die andere unmittelbar gegenuumlber Wenn diese Kategorien daher in solche Saumltze gefaszligt werden so kommen eben so sehr die entgegengesetzten Saumltze zum Vorschein beyde bieten sich mit gleicher Nothwendigkeit dar und haben als unmittelbare Behauptungen wenigstens gleiches Rechtrdquo)
235 A propoacutesito o ceacutetico natildeo diria que a contradiccedilatildeo eacute inevitaacutevel Isto seria ir contra sua proacutepria postura filosoacutefica A esse respeito veja-se de modo geral o capiacutetulo 1
236 Cf HP I 12
104
Tomadas apenas como relacionadas a si as determinaccedilotildees reflexivas uma vez de
acordo com o princiacutepio de identidade natildeo tecircm postas perante as mesmas as suas contrapostas
que por direito a elas se relacionam
Se fossem consideradas em si e para si ver-se-ia entatildeo que as determinaccedilotildees
reflexivas ldquosatildeo determinadas umas contra as outras natildeo estatildeo portanto mediante sua forma de
reflexatildeo retiradas do passar e da contradiccedilatildeordquo237 Toda proposiccedilatildeo estaacute sujeita a ser
contraditada por uma outra de modo que ambas se suprimam mutuamente (heben sich
gegenseitig auf)238
Mas por que eacute possiacutevel que toda proposiccedilatildeo estabelecida de acordo com o princiacutepio de
identidade possa ser contraditada por uma outra Qual o mecanismo impliacutecito a reger tais
proposiccedilotildees e que leva as mesmas inelutavelmente agrave contradiccedilatildeo
A resposta de Hegel a essas questotildees pode comeccedilar a ser entrevista a partir de um
exame da proacutepria articulaccedilatildeo do princiacutepio de identidade isto eacute daquilo que constitui esse
princiacutepio enquanto tal
Fundamentalmente Hegel quer mostrar que a admissatildeo do princiacutepio de identidade
implica afirmar que aquilo que eacute diferente estaacute fora e ao lado da identidade (GW 11 p 261
trad p 37) Aquilo que eacute igual a si mesmo de acordo com esse princiacutepio tem necessariamente
a diferenccedila fora dele afinal A natildeo pode ser ao mesmo tempo A e natildeo-A Numa proposiccedilatildeo eacute
expressa a identidade e na outra a diferenccedila Hegel chama de negar relativo essa negaccedilatildeo que
agravequilo posto pela identidade abstrata potildee-se ao seu lado e fora dela como aquilo que ela natildeo
eacute239 De um lado temos portanto a identidade e de outro lado temos a diferenccedila Algo eacute
aquilo que eacute sem que para isso seja necessaacuterio que ele esteja em relaccedilatildeo com aquilo que ele
nega a sua diferenccedila Considerar as coisas desse modo eacute proacuteprio assinala Hegel de uma
reflexatildeo extriacutenseca A diferenccedila que aiacute existe entre algo e aquilo que natildeo eacute esse algo eacute apenas
uma diversidade indiferente (gleichguumlltige Verschiedenheit)240
237 Ibidem p260 trad p 35 (ldquosind sie bestimmt gegen einander sie sind also durch ihre Form der Reflexion dem Uebergehen und dem Widerspruche nicht entnommenrdquo)
238 Ibidem p 260 trad p 36
239 Cf Ibidem p 260 trad p 36
240 Cf Ibidem p 261 trad pp 37-38
105
Segundo Hegel aqueles que se submetem ao princiacutepio de identidade natildeo se datildeo conta
que de acordo com o mesmo a identidade e a diferenccedila satildeo diversos ldquoque a identidade eacute um
diversordquo (GW 11 p 262 trad p 39) A identidade eacute assim distinta com relaccedilatildeo ao diverso
dela mesma e que todavia natildeo eacute exterior a ela ldquoque a identidade nela mesma em sua
natureza eacute isso ser distinta e natildeo de modo exteriorrdquo241
A identidade somente vai se constituir efetivamente como identidade caso se abandone
o ponto de vista unilateral e incompleto que parte do pressuposto de que a identidade exclui
de si o natildeo-idecircntico Eacute esse o ponto de vista que uma vez aceito viabiliza a criacutetica ceacutetica
Poderiacuteamos dizer que o ceacutetico aproveitando-se dessa limitaccedilatildeo do pensar de entendimento
que aceita o princiacutepio de identidade como lei de pensamento acaba por conseguir sempre
mostrar o natildeo-idecircntico a diferenccedila que se contrapotildee ao idecircntico E dentro desse quadro vale
insistir a contradiccedilatildeo eacute sempre um mal a ser evitado Todavia a identidade que natildeo eacute abstrata
estaacute unida com a diferenccedila Ela se sustenta como identidade ao ter nela mesma aquilo que a
contradiz
Mas antes de tentar responder agraves questotildees que acima foram postas talvez seja
interessante continuar a examinar o princiacutepio de identidade e tentar compreender porque ele
natildeo passa aos olhos de Hegel de uma tautologia vazia sem conteuacutedo e que natildeo leva a lugar
nenhum (GW 11 p 262 trad p 39)
Se pensarmos242 diz Hegel na pergunta O que eacute uma planta E se responde uma
planta eacute -- uma planta todos admitem a verdade de tal proposiccedilatildeo e ao mesmo tempo de
maneira tambeacutem unacircnime eacute dito que com isso nada eacute dito A mesma situaccedilatildeo poderia ocorrer
com algueacutem que pretende declarar o que eacute Deus e apenas diz que Deus eacute ndash Deus Com essa
declaraccedilatildeo temos nossa expectativa frustrada pois esperaacutevamos uma determinaccedilatildeo diferente
ou em outras palavras uma declaraccedilatildeo que pudesse efetivamente nos informar a respeito do
que seja Deus E se essa proposiccedilatildeo eacute verdade absoluta continua Hegel eacute pouco apreciado
essa espeacutecie de palavroacuterio (Rednerei) afinal nada mais aborrecido e maccedilante do que uma
conversa que segue ruminando sempre a mesma coisa Espera-se que se diga algo a respeito
da planta e quando se tem como resposta somente a repeticcedilatildeo do mesmo tem-se o contraacuterio
do que era esperado a saber nada
241 Ibidem p 262 trad p 39 (ldquodaszlig die Identitaumlt nicht aumlusserlich sondern an ihr selbst in ihrer Natur diszlig sey verschieden zu seynrdquo)
106
Se tomarmos agora a forma da proposiccedilatildeo que expressa a identidade qual seja A eacute ndash
A ao se dizer que A eacute espera-se chegar a algo diferente mas esse outro entra em cena
apenas como um imediato desvanecer (als unmittelbares Verschwinden) A diferenccedila eacute apenas
um desvanecer De A se vai a A novamente ldquoo movimento retorna a si mesmordquo (GW 11 p
264 trad p 42) todavia mesmo que o diferente seja apenas vislumbrado para entatildeo em
seguida imediatamente desaparecer ele eacute algo ou nas palavras de Hegel o excedente daquele
movimento (das Mehr jener Bewegung) Esse excedente eacute o nada a que se chega quando se
sai de A e se chega novamente a A eacute o diferente que se apresenta quando se quer apenas
afirmar a identidade ldquoque na expressatildeo da identidade tambeacutem aparece imediatamente a
diferenccedilardquo243
Com a outra expressatildeo do princiacutepio de identidade o chamado princiacutepio de
contradiccedilatildeo a saber ldquoA natildeo pode ser ao mesmo tempo A e natildeo-A ocorre o mesmo que
havia ocorrido com a primeira isto eacute tambeacutem se apresenta uma negaccedilatildeo que imediatamente
se desvanece Mais precisamente A eacute A porque ele natildeo eacute natildeo-A Este eacute o puro outro de A que
aparece para em seguida desaparecer ldquoa identidade eacute portanto nessa proposiccedilatildeo expressa
como negaccedilatildeo da negaccedilatildeordquo244
Dessa discussatildeo em torno ao que se pode pretender afirmar por meio do princiacutepio de
identidade e do princiacutepio de contradiccedilatildeo o mais importante para Hegel eacute mostrar que tais
princiacutepios pecam por incompletude A verdade que eles pretendem exprimir eacute abstrata e
como jaacute foi dito incompleta Como bem adverte Hegel ldquoo que resulta dessa consideraccedilatildeo eacute
que em primeiro lugar o princiacutepio de identidade ou de contradiccedilatildeo como ele apenas deve
expressar como o verdadeiro a identidade abstrata em oposiccedilatildeo agrave diferenccedila natildeo eacute nenhuma lei
do pensamento mas antes o contraacuterio disso em segundo lugar que esses princiacutepios contecircm
242 Do que seraacute dito a seguir veja-se Ibidem pp 264-265 trad pp 41-43
243 Ibidem p 264-5 trad p 42 (ldquo[] daszlig in dem Ausdrucke der Identitaumlt auch unmittelbar die Verschiedenheit vorkommtrdquo) Ou ainda ldquoEssa proposiccedilatildeo em lugar de ser uma verdadeira lei-do-pensamento natildeo eacute outra coisa que a lei do entendimento abstrato A forma da proposiccedilatildeo jaacute a contradiz ela mesma porque uma proposiccedilatildeo tambeacutem promete uma diferenccedila entre sujeito e predicado enquanto esta natildeo fornece o que sua forma exigerdquo (ldquoDieser Satz statt ein wahres Denkgesetz zu seyn ist nichts als das Gesetz des abstracten Verstandes Die Form des Satzes widerspricht ihm schon selbst da ein Satz auch einen Unterschied zwischen Subject und Praumldicat verspricht dieser aber das nicht leistet was seine Form fodert rdquo) In GW 20 E sect115 p 147 trad p 228
244 GW 11 p 265 trad p 43 (ldquoDie Identitaumlt ist also in diesem Satze ausgedruumlckt ndash als Negation der Negationrdquo)
107
mais do que se visa com eles precisamente esse contraacuterio a proacutepria diferenccedila absolutardquo245
Esses princiacutepios por apresentarem mais do que efetivamente pretendem apresentar natildeo satildeo de
natureza meramente analiacutetica mas sim tambeacutem de natureza sinteacutetica Ao se pretender
apresentar a identidade apenas abstrata aponta-se para algo que contradiz essa suposta
identidade afastada de seu negativo e mesmo que o diferente surja como um imediato
desvanecer esse diferente natildeo pode ser afastado Como veremos a seguir a diferenccedila eacute
ldquomomento essencial da identidade mesmardquo246
A diferenccedila
Quando Hegel expotildee o que eacute a diferenccedila eacute preciso que esta seja considerada sob um
duplo ponto-de-vista como diferenccedila em si e por si e como diferenccedila em si
Hegel chama tambeacutem essa diferenccedila que eacute em si e por si de diferenccedila absoluta ou de
diferenccedila simples247 Mas o que entatildeo pretende ele quando considera a diferenccedila em si e por
si Basicamente a diferenccedila em si e por si eacute aquela que natildeo eacute por meio de algo exterior248
Esta diferenccedila natildeo se constitui como antes se fazia na esfera do ser Laacute um ser-aiacute e um outro
ser-aiacute eram postos separados um do outro Um ser-aiacute se encontrava perante o outro ser-aiacute mas
apenas exteriormente O que Hegel pretende frisar eacute que na diferenccedila em si e por si uma
diferenccedila que se daacute no acircmbito loacutegico da essecircncia portanto uma diferenccedila reflexiva os
diferentes satildeo diferentes sob um uacutenico e mesmo aspecto uma diferenccedila numa uacutenica relaccedilatildeo
O caraacuteter simples dessa diferenccedila adveacutem dessa relaccedilatildeo (Beziehung) dos diferentes ocorrer no
acircmbito de um movimento uacutenico ldquona diferenccedila absoluta de A e natildeo-A de um a outro eacute o
245 Ibidem p 265 trad p 43 (ldquoWas sich also aus dieser Betrachtung ergibt ist daszlig erstens der Satz der Identitaumlt oder des Widerspruchs wie er nur die abstracte Identitaumlt im Gegensatz gegen den Unterschied als Wahres ausdruumlcken soll kein Denkgesetz sondern vielmehr das Gegentheil davon ist zweytens daszlig diese Saumltze mehr als mit ihnen gemeynt wird nemlich dieses Gegentheil den absoluten Unterschied selbst enthaltenrdquo)
246 Ibidem p 265 trad p 43 (ldquowesentlich Moment der Identitaumlt selbstrdquo)
247 Cf GW 11 p 266-267 trad p 44-45
248 Ibidem p 266 trad p 44
108
simples natildeo que constitui a mesmardquo249 Se a diferenccedila se desse entre diferentes exteriores um
ao outro natildeo seria possiacutevel que ela fosse completa em si mesma em outras palavras absoluta
Considerar a diferenccedila apenas como em si significa tomaacute-la no seu relacionamento a
si uma diferenccedila de si por si mesma (seiner von sich selbst)250 Perante a mesma temos a
identidade Somente com a consideraccedilatildeo de ambos isto eacute na relaccedilatildeo que natildeo eacute exterior da
diferenccedila com a identidade que se constitui a diferenccedila (natildeo-unilateral) A diferenccedila apenas
relacionada a si mesma eacute um momento que exige o outro a saber a identidade para que se
possa ter o todo da diferenccedila
Nessa relaccedilatildeo da diferenccedila com a identidade tem-se portanto uma unidade de dois
momentos que natildeo obstante o fato mesmo da relaccedilatildeo de ambos cada um natildeo deixa de ser
uma relaccedilatildeo (Beziehung) a si proacuteprio ou seja continuam a ser refletidos em si mesmos Hegel
chama cada um desses momentos que constituem a diferenccedila de ser-posto (Gesetzsein) Cada
um deles em virtude do seu caraacuteter auto-reflexivo que faz com que se coloquem
distintamente como diferenccedila e identidade seraacute poder-se-ia dizer impermeaacutevel um ao outro
A diversidade
Quais as consequumlecircncias que advecircm para a constituiccedilatildeo da diferenccedila terem os dois
momentos constituintes da diferenccedila precisamente identidade e diferenccedila a caracteriacutestica de
serem refletidos em si mesmos Por que ao inveacutes de uma diferenccedila temos apenas uma
diversidade (Verschiedenheit)
Em primeiro lugar identidade e diferenccedila natildeo satildeo tatildeo distintas assim Tanto uma
quanta a outra por meio da auto-reflexatildeo de cada uma satildeo idecircnticas a si mesmas A
identidade se afirma como identidade ao suprimir imediatamente o seu negar Como jaacute foi
dito a identidade somente se manteacutem como identidade porque eacute uma tautologia A confirma
sua identidade ao se refletir em si mesmo Esse refletir-se em si mesmo e que fornece a A a
249 Ibidem p 266 trad p 44 (ldquoIm absoluten Unterschiede des A und Nicht-A von einander ist es das einfache
Nicht was als solches denselben ausmachtrdquo)
250 Ibidem p 266 trad p 44
109
identidade eacute o que Hegel chama de a sua determinaccedilatildeo (Bestimmung)251 Tambeacutem no caso do
diferente ele eacute o que eacute na identidade que estabelece consigo mesmo Eacute como se um e outro o
idecircntico e o diferente natildeo fossem nada de diferentes afinal ambos satildeo o que satildeo por meio da
identidade que cada um tem consigo mesmo e que lhes daacute independecircncia reciacuteproca
Eles satildeo diversos como refletidos em si mesmos como relacionando-se a si eles satildeo
assim na determinaccedilatildeo da identidade apenas relacionamentos a si a identidade natildeo estaacute
relacionada com a diferenccedila nem a diferenccedila estaacute relacionada com a identidade posto entatildeo
que cada um desses momentos estaacute relacionado somente a si natildeo satildeo eles determinados um
em face do outro252
Nesses termos como se pode estabelecer a diferenccedila entre eles De acordo com Hegel
apenas uma diversidade indiferente (gleichguumlltig verschiedenes) reciacuteproca Natildeo haacute ponto
algum de contato que permita-nos entrever aquilo que torna um diferente do outro ldquoa
diferenccedila lhes eacute exteriorrdquo253
Para que surja essa indiferenccedila dos diferentes o que Hegel chama de diversidade
(Verschiedenheit) a diferenccedila que de fato somente se constitui com a unidade de identidade e
diferenccedila precisa ser enxergada como apenas um dos lados da ldquooposiccedilatildeordquo A diferenccedila seraacute
apenas uma determinaccedilatildeo que teraacute perante si uma outra determinaccedilatildeo a saber a identidade
Essa determinaccedilatildeo ou ser-posto que eacute a diferenccedila constitui o lado negativo da relaccedilatildeo o que
Hegel chama de negaccedilatildeo como negaccedilatildeo254 A diferenccedila seraacute portanto exterior agrave identidade
oposta de modo indiferente a ela Da mesma maneira teremos a identidade tambeacutem oposta
de modo indiferente agrave negaccedilatildeo Se a diferenccedila eacute o ser-posto como negaccedilatildeo a identidade seraacute o
251 Ibidem p 267 trad p 45
252 Ibidem p 267 trad p 46 (ldquoVerschiedene sind sie als in sich selbst reflectirte sich auf sich beziehende so sind sie in der Bestimmung der Identitaumlt Beziehungen nur auf sich die Identitaumlt ist nicht bezogen auf den Unterschied noch ist der Unterschied bezogen auf die Identitaumlt indem so jedes dieser Momente nur auf sich bezogen ist sind sie nicht bestimmt gegen einanderrdquo)
253 Ibidem p 267 trad p 46(ldquo ist der Unterschied ihnen aumlusserlicherdquo)
254 Ibidem p 268 trad p46 Eacute uacutetil aqui alertar para que natildeo se confunda negaccedilatildeo como negaccedilatildeo com negaccedilatildeo da negaccedilatildeo A primeira se refere apenas a essa negaccedilatildeo somente relacionada a si e assim diversa da identidade Jaacute a segunda a negaccedilatildeo da negaccedilatildeo constitui-se como adiante veremos na negaccedilatildeo especulativa negaccedilatildeo que envolve em si a identidade e a diferenccedila
110
ser-posto como reflexatildeo em si isto eacute como reflexatildeo que se relaciona a si e forma a
identidade
De fato identidade e diferenccedila natildeo poderiam ser consideradas como completamente
exteriores uma agrave outra pois justamente ldquocada uma eacute unidade de si mesma e de seu outro cada
uma eacute o todordquo255 Ambas se refletem internamente uma na outra Se elas se tornam exteriores
isso se daacute devido a uma reflexatildeo que se tornou exterior a si mesma Identidade e diferenccedila natildeo
satildeo qualidades Qualidade aqui deve ser entendida conforme o que diz Hegel na Doutrina do
Ser na Enciclopeacutedia a saber que a qualidade eacute o ser com uma determinidade que como tal
constitui a categoria do ser-aiacute A qualidade eacute o ser-aiacute unido imediatamente a essa
determinidade O ser-aiacute refletido sobre si nessa sua determinidade eacute algo256 A qualidade
assim constituiacuteda faz com que o ser-aiacute seja um algo que tenha afastado de si a negaccedilatildeo Esse
ser-aiacute poderiacuteamos dizer eacute uma pura identidade Vale seguir um pouco mais com a descriccedilatildeo
da qualidade na Doutrina do Ser257 e observar que a qualidade tem a negaccedilatildeo contida nela
mesmo que essa seja diferente dela e enquanto um ser-outro Aleacutem disso esse ser-outro eacute sua
determinaccedilatildeo proacutepria todavia neste momento diferente dela (a qualidade) Quando Hegel
afirma que a identidade e diferenccedila natildeo satildeo qualidades podemos agora avanccedilar a hipoacutetese de
que se elas fossem qualidades identidade e diferenccedila seriam apenas cada uma a determinaccedilatildeo
unilateral refletida sobre si e afastada do negativo O que de fato natildeo se verifica pois a
determinidade tanto da identidade quanto da diferenccedila por meio da reflexatildeo em si eacute ao
mesmo tempo somente como negaccedilatildeo258 Em outras palavras elas satildeo o que satildeo porque
negam a sua oposta e natildeo de modo exterior
Na diversidade poreacutem eacute como se diferenccedila e identidade fossem efetivamente duas
qualidades O que resultaria em considerar a ambas como duas determinaccedilotildees inteiramente
positivas Pelo contraacuterio uma determinaccedilatildeo aos olhos de Hegel natildeo pode ser somente
positiva Nesse sentido o filoacutesofo retoma Espinosa quando este diz que toda determinaccedilatildeo eacute
uma negaccedilatildeo (omnis determinatio est negatio) Para Hegel a base de toda determinaccedilatildeo eacute a
negaccedilatildeo ldquoO opinar carente-de-pensamento considera as coisas determinadas como somente
positivas e as sustenta sob a forma do ser Com o simples ser contudo o opinar natildeo eacute
255 Ibidem p 267 trad p 46 (ldquojedes Einheit seiner selbst und seines Andern jedes ist das Ganzerdquo)
256 Cf GW 20 E sect 90 pp 129-130 trad p 186
257 Ibidem sect 91 p 130 trad p 187
258 GW 11 p 268 trad p 46
111
abolido pois esse como vimos antes eacute o absolutamente vazio e ao mesmo tempo o carente-
de-consistecircnciardquo259
Esses dois positivos ndash a identidade e a diferenccedila ndash que se colocam um frente ao outro
de modo indiferente mediante uma reflexatildeo que se tornou exterior a si mesma seratildeo
denominados por Hegel de reflexatildeo em si e de reflexatildeo exterior respectivamente Reflexatildeo em
si porque nessa determinaccedilatildeo temos o momento da identidade que por sua vez eacute
ldquodeterminada para ser indiferente (gleichguumlltig) com respeito agrave diferenccedilardquo260 Reflexatildeo
exterior porque nessa determinaccedilatildeo temos o momento da diferenccedila ldquoperante agrave qual a reflexatildeo
sendo em si (die an sich seiend Reflexion) eacute indiferenterdquo261
E uma vez entatildeo visto que identidade e diferenccedila natildeo se datildeo numa mesma reflexatildeo
como se produziraacute essa diferenccedila de duas determinaccedilotildees exteriores uma agrave outra O
estabelecimento da diferenccedila segundo Hegel dependeraacute da consideraccedilatildeo de um terceiro que
se coloca fora de ambos identidade e diferenccedila Seraacute esse terceiro que declararaacute o que eacute a
identidade e a diferenccedila e que agora seratildeo denominadas por Hegel respectivamente como
igualdade (a identidade exterior) e desigualdade (a diferenccedila exterior)
Nem a igualdade e nem a desigualdade seratildeo em si e por si E o que isso significa
Significa que se algo eacute igual a um outro algo isso natildeo depende nem de um e nem de outro262
Depende antes da referecircncia a esse terceiro Da comparaccedilatildeo que ele estabelece Essa reflexatildeo
que tornou-se estranha a si mesma ora declara que temos uma igualdade e ora declara que
temos uma desigualdade A igualdade e a desigualdade nunca segundo o ponto-de-vista da
diversidade dependem uma da outra para se efetivarem Natildeo haveria diferenccedila intriacutenseca
entre uma e outra Para Hegel esse natildeo relacionar-se entre o igual e o desigual longe de
afastar delas a contradiccedilatildeo (Widerspruch) e a dissoluccedilatildeo (Aufloumlsung) eacute o que de fato leva agrave
destruiccedilatildeo (Zerstoumlrung) das mesmas Se o igual eacute colocado junto do desigual mas sem que
259 Werke 8 E sect 91 Adendo p 195 trad p 187 (ldquoDas gedankenlose Meinen betrachtet die bestimmten Dinge als nur positiv und haumllt dieselben unter der Form des Seins fest Mit dem bloszligen Sein ist es indes nicht abgetan
denn dieses ist wie wir fruumlher gesehen haben das schlechthin Leere und zugleich Haltloserdquo)
260 GW 11 p 268 trad p 47
261 Ibidem p 268 trad p 47
262 Ibidem p 268 trad p 47
112
haja entre eles o menor contato entatildeo eles se contradizem263 Do ponto-de-vista da loacutegica que
rege o entendimento eacute isto o que ocorre264
Admitir que natildeo haja uma diferenccedila que vincule o igual ao desigual que essa
diferenccedila seja exterior e indiferente eacute proacuteprio segundo Hegel de uma consideraccedilatildeo que natildeo
consegue se dar conta de que ldquoo que compara (das Vergleichende) vai da igualdade agrave
desigualdade e desta para aquela novamente faz portanto uma desvanecer na outra e de fato
eacute a unidade negativa de ambas Ela estaacute em primeiro lugar para aleacutem do comparado assim
como aleacutem dos momentos da comparaccedilatildeo como um subjetivo um operar exterior que incide
fora deles Mas essa unidade negativa em verdade eacute a natureza da igualdade e da
desigualdade mesma tal como resultourdquo265
263 ldquoPara Hegel isso significa que tem de se destruir a si mesma a reflexatildeo que se perdeu na exterioridade As determinaccedilotildees da igualdade e da desigualdade se excluem reciprocamente elas satildeo nas palavras de Hegel lsquodeterminaccedilotildees da diferenccedilarsquo lsquorelaccedilatildeo de uma a outra que uma para ser eacute aquilo que a outra natildeo eacutersquo (GW 11 p 269)rdquo Ou ainda ldquoA reflexatildeo exterior na medida em que poe as determinaccedilotildees da igualdade e da desigualdade relaciona ambas uma a outra Hegel assim expressa isso que a contradiccedilatildeo mantida afastada dos objetos se reitera nessa reflexatildeordquo In Arndt A Dialektik und p 206 e 207 respectivamente
264 Eacute essa contradiccedilatildeo que o ceacutetico natildeo se cansa de apontar segundo Hegel no acircmbito do entendimento
265 Ibidem p 269 trad pp 48-49 (ldquoDas Vergleichende geht von der Gleichheit zur Ungleichheit und von dieser zu jener zuruumlck laumlszligt also das eine im andern verschwinden und ist in der That die negative Einheit beyder Sie ist zunaumlchst jenseits des Verglichenen so wie jenseits der Momente der Vergleichung als ein subjectives ausserhalb ihnen fallendes Thun Aber diese negative Einheit ist in der That die Natur der Gleichheit und Ungleichheit selbst wie sich ergeben hatrdquo) Ou ainda ldquoEnquanto os [termos] simplesmente diversos se mostram como indiferentes entre si ao contraacuterio a igualdade e a desigualdade satildeo um par de determinaccedilotildees que se referem pura e simplesmente uma agrave outra e natildeo se pode pensar uma delas sem a outra Essa progressatildeo da mera diversidade agrave oposiccedilatildeo se encontra jaacute tambeacutem na consciecircncia ordinaacuteria na medida em que admitimos que a comparaccedilatildeo soacute tem um sentido na pressuposiccedilatildeo de uma diferenccedila dada e inversamente tambeacutem a diferenciaccedilatildeo soacute [tem sentido] na pressuposiccedilatildeo de uma igualdade dada Por conseguinte quando se potildee como tarefa indicar uma diferenccedila natildeo se atribui grande perspicaacutecia a quem soacute diferencia um do outro objetos cuja diferenccedila eacute imediatamente visiacutevel (como por exemplo uma caneta e um camelo) De outro lado dir-se-aacute igualmente que natildeo foi longe na comparaccedilatildeo quem soacute sabe comparar coisas que estatildeo proacuteximas umas das outras uma faia com um carvalho um templo com uma igreja Exigimos portanto na diferenccedila a identidade e na identidade a diferenccedilardquo (ldquoWaumlhrend die bloszlig Verschiedenen sich als gleichguumlltig gegeneinander erweisen so sind dagegen die Gleichheit und die Ungleichheit ein Paar Bestimmungen die sich schlechthin aufeinander beziehen und von denen die eine nicht ohne die andere gedacht werden kann Dieser Fortgang von der bloszligen Verschiedenheit zur Entgegensetzung findet sich dann auch insofern schon im gewoumlhnlichen Bewuszligtsein als wir einraumlumen daszlig das Vergleichen nur einen Sinn hat unter der Voraussetzung eines vorhandenen Unterschiedes und ebenso umgekehrt das Unterscheiden nur unter der Voraussetzung vorhandener Gleichheit Man schreibt demgemaumlszlig auch wenn die Aufgabe gestellt wird einen Unterschied anzugeben demjenigen keinen groszligen Scharfsinn zu der nur solche Gegenstaumlnde voneinander unterscheidet deren Unterschied unmittelbar zutage liegt (wie z B eine Schreibfeder und ein Kamel) wie man andererseits sagen wird daszlig es derjenige nicht weit im Vergleichen gebracht hat welcher nur einander Naheliegendes - eine Buche mit einer Eiche einen Tempel mit einer Kirche - zu vergleichen weiszlig Wir verlangen somit beim Unterschied die Identitaumlt und bei der Identitaumlt
den Unterschiedrdquo) In Werke 8 E sect 118 Adendo p 241 trad pp 232-233]
113
Tanto o igual quanto o desigual por terem o caraacuteter de ser-posto natildeo satildeo apenas essa
identidade abstrata consigo mesmos essa relaccedilatildeo a si sem negaccedilatildeo Cada um como um
diverso passa por meio do ser-posto agrave reflexatildeo negativa O que Hegel pretende nos apontar
refere-se ao caraacuteter determinado de cada um dos diversos isto eacute que cada um somente se
determina como o que eacute por meio da relaccedilatildeo com o outro ldquoO igual natildeo eacute portanto o igual de
si mesmo e o desigual como o desigual natildeo de si mesmo mas sim de um desigual a ele eacute ele
mesmo o igualrdquo266
Identidade e diferenccedila natildeo satildeo por meio dessa unidade negativa momentos separados
mas antes uma uacutenica unidade e esta eacute a oposiccedilatildeo267
A oposiccedilatildeo
Hegel inicia sua anaacutelise do que estaacute em jogo na oposiccedilatildeo da seguinte maneira ldquoNa
oposiccedilatildeo a reflexatildeo determinada a diferenccedila estaacute acabada (Im Gegensatze ist die bestimmte
Reflexion der Unterschied vollendet)rdquo268
Como jaacute observamos anteriormente269 a diferenccedila se constitui de dois momentos
precisamente a identidade e a diferenccedila Ela eacute o todo que abrange esses dois momentos no
relacionamento que haacute entre eles Tambeacutem na diversidade havia um relacionamento entre
identidade e diferenccedila ou entre igualdade e desigualdade todavia do ponto-de-vista da
diversidade a diferenccedila que havia entre eles era indiferente (gleichguumlltig) Quer dizer era
como se cada um dos momentos natildeo tivesse a sua determinaccedilatildeo a igualdade e a desigualdade
em virtude de um relacionamento negativo entre ambos Em suma a diferenccedila natildeo estava
acabada (vollendet) A igualdade e a desigualdade eram declaradas a partir de uma reflexatildeo
exterior a si na qual os termos da relaccedilatildeo natildeo se vinculavam internamente um ao outro O
266 GW 11 p 269 trad p 49 (ldquoSo ist das Gleiche nicht das Gleiche seiner selbst und das Ungleiche als das Ungleiche nicht seiner selbst sondern eines ihm ungleichen ist selbst das Gleicherdquo)
267 Ibidem p 270 trad p 50
268 Ibidem p 272 trad p 53
269 Ver a esse respeito as paacuteginas 107 e 108
114
tertius comparationis postulava a igualdade ou a desigualdade dos termos diferentes ou
poderiacuteamos tambeacutem dizer efetuava a ldquomediaccedilatildeordquo entre ambos
Posto tudo isso podemos agora comeccedilar a entrever porque a diferenccedila na oposiccedilatildeo
estaacute acabada Mas do que realmente se trata nesse passo aleacutem
A tiacutetulo meramente introdutoacuterio podemos assinalar que a diferenccedila na oposiccedilatildeo teraacute
seus momentos unidos numa uacutenica identidade E seraacute essa unidade interior que permitiraacute a
Hegel afirmar que na oposiccedilatildeo a diferenccedila estaacute acabada no sentido de que aqui ela teraacute sua
completude
Mesmo assim ainda aqui na oposiccedilatildeo esse relacionamento entre identidade e
diferenccedila estaacute de alguma maneira afetado pela diversidade da qual parte Vejamos entatildeo agora
como se estabelece esse relacionamento de identidade e diferenccedila na oposiccedilatildeo
Originariamente igualdade e desigualdade satildeo a indiferenccedila reciacuteproca Cada uma eacute
apenas idecircntica consigo mesma sem que haja referecircncia ao seu negativo Eacute o que Hegel
chama de imediatez natildeo refletida em si (die nicht in sich reflectirte Unmittelbarkeit)270 Como
ser-posto cada momento deveria ser oposto ao outro entretanto por consequumlecircncia da reflexatildeo
exterior cada um deles eacute um ser e aquele que deveria ser seu contraposto isto eacute seu natildeo-ser-
posto (Nichtgesetztsein) eacute apenas um natildeo-ser (Nichtsein) Quando Hegel declara que cada
momento eacute apenas um ser que tem diante de si um natildeo-ser estamos ainda eacute o que nos parece
no terreno da diversidade no qual ser eacute uma determinaccedilatildeo visada de acordo com esse ponto-
de-vista e que de fato estaacute aqueacutem do que efetivamente se passa nos momentos dessa
diferenccedila A tiacutetulo de esclarecimento Hegel caracterizava o ser na Enciclopeacutedia271 como
apenas o imediato indeterminado Parece-nos que denominar os momentos da igualdade e da
desigualdade como ser se faccedila de acordo com tal caracterizaccedilatildeo do ser na obra acima citada
O ser eacute indeterminado porque ele natildeo possui nenhuma relaccedilatildeo com um outro e a
determinaccedilatildeo natildeo se faz sem uma negaccedilatildeo272 o que implica uma relaccedilatildeo a um outro
270 GW 11 p 272 trad p 53
271 Cf GW 20 E sect 86 p 122 trad p175
272 Leia-se a propoacutesito o que foi dito na paacutegina 97 a respeito da determinaccedilatildeo implicar uma negaccedilatildeo
115
ldquoQuando se comeccedila a pensar natildeo temos outra coisa que o pensamento em sua
carecircncia-de- determinaccedilatildeo pois para a determinaccedilatildeo jaacute se requer um e um outro O carente-de-
determinaccedilatildeo como temos aqui eacute o imediato e natildeo a mediatizada carecircncia-de-determinaccedilatildeo
natildeo a suspensatildeo de toda a determinidade mas a imediatez da carecircncia-de-determinaccedilatildeo a
carecircncia-de-determinaccedilatildeo preacutevia a toda a determinidade o carente-de-determinaccedilatildeo enquanto
o que eacute o primeiro-de-todos Ora [eacute] isso o [que] chamamos o ser O ser natildeo pode ser sentido
nem intuiacutedo e nem representado mas eacute o pensamento puro e como tal constitui o
comeccedilordquo273
Mas como momentos da oposiccedilatildeo a igualdade e a desigualdade satildeo o ser-posto
refletido em si ou a determinaccedilatildeo em geral274 Isto significa que igualdade e desigualdade
como refletidas em si mesmas cada uma eacute a unidade da igualdade e da desigualdade Nessa
unidade cada uma estaacute mediada pela outra no entanto a relaccedilatildeo entre elas ainda se faz de
modo indiferente Frente agrave diversidade pode-se notar um avanccedilo na relaccedilatildeo entre identidade e
diferenccedila cada uma estaacute referida agrave outra Desse modo na oposiccedilatildeo teremos como seus dois
momentos o positivo e o negativo O positivo eacute ldquoessa igualdade consigo mesma refletida em
si que nela mesma conteacutem a relaccedilatildeo com a desigualdaderdquo275 e o negativo eacute ldquoa desigualdade
que conteacutem nela mesma a relaccedilatildeo com seu natildeo-ser a igualdaderdquo276 Eacute devido a essa relaccedilatildeo
que ambos mantecircm com seus respectivos negativos que Hegel denomina cada um de ser-
posto isto eacute aquilo que estaacute em relaccedilatildeo com seu oposto O positivo como ser-posto estaacute
refletido na igualdade consigo mesmo e o refletido eacute a negaccedilatildeo como negaccedilatildeo O negativo
273 Werke 8 E sect 86 Adendo p 183 trad p 176 (ldquoWir haben wenn angefangen wird zu denken nichts als den Gedanken in seiner reinen Bestimmungslosigkeit denn zur Bestimmung gehoumlrt schon Eines und ein Anderes im Anfang aber haben wir noch kein Anderes Das Bestimmungslose wie wir es hier haben ist das Unmittelbare nicht die vermittelte Bestimmungslosigkeit nicht die Aufhebung aller Bestimmtheit sondern die Unmittelbarkeit der Bestimmungslosigkeit die Bestimmungslosigkeit vor aller Bestimmtheit das Bestimmungslose als Allererstes Dies aber nennen wir das Sein Dieses ist nicht zu empfinden nicht anzuschauen und nicht vorzustellen sondern es ist der reine Gedanke und als solcher macht es den Anfangrdquo)
274 Cf GW 11 p 272 trad p 53
275 Ibidem p273 trad p 53 (ldquoDiese in sich reflectirte Gleichheit mit sich die in ihr selbst die Beziehung auf die Ungleichheit enthaumlltrdquo)
276 Ibidem p 273 trad p 54 (ldquodie Ungleichheit die in ihr selbst die Beziehung auf ihr Nichtseyn die Gleichheit enthaumlltrdquo)
116
como ser-posto estaacute refletido na desigualdade e o refletido eacute a desigualdade dele (o
positivo)277
Como consequumlecircncia dessa reflexatildeo do todo neles mesmos o positivo e o negativo se
tornam independentes Mas nessa reflexatildeo na qual estaacute posta uma relaccedilatildeo com seu outro e que
fornece o caraacuteter independente do positivo e do negativo o outro de cada um deles eacute um natildeo-
ser pois o outro apesar de continuar presente na relaccedilatildeo estaacute presente como o que natildeo tem
ldquosubstacircnciardquo como se estivesse suprimido278 Em vista disso ao inveacutes de ser-posto positivo e
negativo voltam a adquirir a feiccedilatildeo do mero ser ou seja de um indeterminado que natildeo tem
relaccedilatildeo com um outro um indiferente subsistir (ein gleichguumlltiges Bestehen)279
Com vistas a uma explicitaccedilatildeo mais detalhada das determinaccedilotildees que constituem o
positivo e o negativo Hegel realiza uma anaacutelise na qual distingue trecircs aspectos que a seguir
retomamos280
Assim cabe notar em primeiro lugar que positivo e negativo subsistem numa uacutenica
reflexatildeo inseparaacutevel na qual cada um eacute mediante o natildeo-ser de seu outro mediante portanto
seu proacuteprio natildeo-ser Mas se existe a oposiccedilatildeo entre eles essa oposiccedilatildeo todavia eacute apenas
exterior Cada um eacute o que eacute na medida em que o outro natildeo eacute Na relaccedilatildeo que haacute entre os
opostos um procura afastar de si o outro como aquele que cada um natildeo eacute dessa maneira ldquoum
natildeo eacute ainda o positivo e o outro natildeo eacute ainda o negativo mas antes satildeo ambos negativos um em
relaccedilatildeo ao outrordquo281
277 Cf Ibidem p 273 trad p 54
278 Hegel utiliza eacute o que nos parece o verbo alematildeo aufheben em um sentido meramente negativo por isso optamos pela traduccedilatildeo do verbo como suprimir Na maioria das vezes no entanto preferimos traduzir aufheben por suspender termo que em portuguecircs cremos estar mais de acordo com a polissemia semacircntica do verbo em alematildeo pois suspender pode significar 1) elevar levantar (-se) erguer (-se) 2) suprimir pocircr fim anular abolir abrogar revogar cancelar 3) guardar conservar
Para essa pequena explicaccedilatildeo dos muacuteltiplos significados do verbo suspender e que estatildeo de acordo com os significados do verbo em alematildeo baseamo-nos aqui na nota 25 da traduccedilatildeo da Introduccedilatildeo agrave Filosofia do Direito elaborada por Marcos Lutz Muumlller e na qual o tradutor discute os motivos de se optar por traduzir aufheben por suspender Ver a esse respeito HEGEL G W Introduccedilatildeo agrave Filosofia do Direito Campinas IFCH UNICAMP Claacutessicos da Filosofia Cadernos de Traduccedilatildeo no 10 pp 87-90
279 Cf GW 11 p 273 trad p 54
280 Ver a propoacutesito GW11 pp 273-274 trad pp 54-56
281 Cf GW 11 p 273 trad p 55 (ldquodas eine ist noch nicht positiv und das andre noch nicht negativ sondern beyde sind negativ gegen einanderrdquo)
117
Em segundo lugar dado que cada um dos opostos natildeo considera como parte de si o
outro que ele natildeo eacute como se de fato o outro ndash o natildeo-ser ndash natildeo fosse necessaacuterio para a
determinaccedilatildeo que estaacute no outro poacutelo da relaccedilatildeo resulta dessa espeacutecie de relaccedilatildeo a completa
indiferenccedila entre ambos Dessa perspectiva cada um estaacute apenas refletido em si mesmo Que
consequumlecircncias adveacutem entatildeo para a oposiccedilatildeo uma vez que essa relaccedilatildeo se faz a partir de uma
indiferenccedila dos opostos
Para Hegel a relaccedilatildeo pautada pela indiferenccedila relaccedilatildeo que cada um estabelece com
seu outro como natildeo-ser faz com que ldquoa cada lado caiba por conseguinte uma das
determinidades do positivo e do negativo mas elas podem ser trocadas e cada lado eacute de tal
espeacutecie que eles podem mesmo ser tomados tanto como o positivo quanto como o
negativordquo282
De fato caberia afirmar que natildeo existe oposiccedilatildeo Soacute haacute como diz Hegel oposiccedilatildeo em
geral283 Tanto do lado do positivo quanto do lado do negativo procura-se manter somente
numa relaccedilatildeo idecircntica consigo Nega-se o outro da relaccedilatildeo como se este natildeo determinasse em
nenhuma hipoacutetese a identidade do positivo ou do negativo Eacute como se o outro fosse apenas
um outro em geral
Na doutrina dos conceitos contraditoacuterios um dos conceitos significa por exemplo
azul ( em tal doutrina algo como representaccedilatildeo sensiacutevel de uma cor se chama tambeacutem
conceito) o outro significa natildeo-azul de modo que este outro natildeo eacute algo afirmativo como
seria digamos o amarelo mas somente como o abstratamente negativo deve afirmar-se284
Natildeo se deve esquecer que nesse relacionamento dos opostos e que natildeo vai aleacutem da
indiferenccedila muacutetua o princiacutepio de contradiccedilatildeo pertencente ao arcabouccedilo da loacutegica claacutessica se
282 Ibidem p 274 trad p 55 (ldquojeder Seite kommt daher zwar eine der Bestimmtheiten von Positivem und Negativem zu aber sie koumlnnen verwechselt werden und jede Seite ist von der Art daszlig sie eben so gut als positiv wie als negativ genommen werden kannrdquo)
283 Ibidem p 273 trad p 55
284 GW 20 E sect 119 p150 trad p 234 (ldquoIn der Lehre von den contradictorischen Begriffen heiszligt der eine Begriff z B Blau (auch so ewas wie die sinnliche Vorstellung einer Farbe wird in solcher Lehre Begriff genannt) der andere Nichtblau so daszlig diszlig Andere nicht ein Affirmatives etwa Gelb waumlre sondern nur [als] das Abstract-Negative festgehalten werden sollrdquo)
118
faz atuante Uma determinaccedilatildeo eacute positiva independente daquilo que ela nega E o que eacute
negado mas que todavia estaacute relacionado ao positivo eacute como se natildeo existisse como se
estivesse completamente ausente285 Se algo eacute ele eacute porque um outro indeterminado natildeo eacute286
Natildeo pode haver algo que seja e natildeo seja ao mesmo tempo a contradiccedilatildeo precisa ser evitada a
todo custo A determinaccedilatildeo do positivo ou do negativo conforme a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo natildeo
estaacute vinculada agrave relaccedilatildeo que de fato eles mantecircm A despeito da relaccedilatildeo que eles estabelecem
entre si o princiacutepio de contradiccedilatildeo eacute respeitado e a contradiccedilatildeo eacute evitada287
Nessa indiferenccedila de cada um perante seu outro tanto faz chamar um de positivo
quanto chamar o outro de negativo Temos aqui apenas nomes diferentes para designar duas
positividades que por consequumlecircncia satildeo intercambiaacuteveis Apenas que um eacute o positivo como o
que eacute e o outro o positivo como o que natildeo eacute Enquanto forem indiferentes um ao outro
enquanto a diferenccedila entre eles natildeo for estabelecida a partir do relacionamento que os une
natildeo deixaratildeo os mesmos de serem duas determinaccedilotildees positivas abstratas288
285 Na precisa formulaccedilatildeo de Geacuterard Lebrun ldquoPode-se constatar um natildeo-ser mas sem lhe dar apoio sem contar de onde ele proveacutem O negativo eacute essa ausecircncia nunca localizaacutevel desprovida de toda espessurardquo in Lebrun G A paciecircncia do conceito Satildeo Paulo Editora da Unesp 2006 p275
286 ldquoEsse vazio da oposiccedilatildeo de conceitos que se dizem contraditoacuterios tinha jaacute sua plena exposiccedilatildeo na por assim dizer grandiosa expressatildeo de uma lei universal pela qual de todos os predicados assim opostos um pertence a cada coisa e o outro natildeo de sorte que o espiacuterito seria branco ou natildeo-branco amarelo ou natildeo-amarelo etc ateacute o infinitordquo (ldquo Die Leerheit des Gegensatzes von sogennanten contradictorischen Begriffen hatte ihre volle Darstellung in dem so zu sagen grandiosen Ausdruck eines allgemeinen Gesetzes daszlig jedem Dinge von Allen so entgegengesetzten Praumldicaten das Eine zukomme und das Andere nicht so daszlig der Geist sey entweder weiszlig oder nicht weiszlig gelb oder nicht gelb usf ins Unendlicherdquo) In GW 20 E sect119 p 150 trad p 234
287 ldquoQuando se esquece que identidade e oposiccedilatildeo satildeo opostas elas mesmas a proposiccedilatildeo da oposiccedilatildeo eacute tambeacutem tomada pela proposiccedilatildeo da identidade na forma da proposiccedilatildeo da contradiccedilatildeo e um conceito ao qual das duas caracteriacutesticas que se contradizem uma agrave outra nenhuma delas conveacutem (ver acima) ou convecircm as duas eacute declarado logicamente falso como por exemplo um ciacuterculo quadradordquo (ldquoIndem vergessen wird daszlig Identitaumlt und Entgegensetzung selbst entgegengesetzt sind wird der Satz der Entgegensetzung auch fuumlr den der Identitaumlt in der Form des Satzes des Widerspruchs genommen und ein Begriff dem von Zwey einander widersprechenden Merkmalen keins (s vorhin) oder alle beyde zukommen fuumlr logisch falsch erklaumlrt wie zB ein viereckiger Cirkelrdquo) In GW 20 E sect119 p 150 trad pp 234-235
288 ldquoO positivo eacute de novo a identidade mas na sua verdade mais alta enquanto relaccedilatildeo idecircntica a si mesma e ao mesmo tempo de modo que natildeo eacute o negativo O negativo para si natildeo eacute outra coisa que a diferenccedila mesma O idecircntico como tal eacute antes de tudo o carente-de-determinaccedilatildeo o positivo ao contraacuterio eacute o idecircntico consigo mesmo mas enquanto determinado frente a um outro e o negativo eacute a diferenccedila como tal na determinaccedilatildeo de natildeo ser identidade Eacute isso a diferenccedila da diferenccedila nela mesma No positivo e negativo acredita-se ter uma diferenccedila absoluta Contudo os dois satildeo em si o mesmo e por isso se poderia chamar tambeacutem o positivo negativo e vice-versa igualmente o negativo positivordquo (ldquo Das Positive ist wieder die Identitaumlt aber in ihrer houmlheren Wahrheit als identische Beziehung auf sich selbst und zugleich so daszlig es nicht das Negative ist Das Negative fuumlr sich ist nichts anderes als der Unterschied selbst Das Identische als solches ist zunaumlchst das
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Podemos ilustrar a afirmaccedilatildeo acima de que positivo e negativo satildeo ambos positivos e
justamente por isso intercambiaacuteveis com um dos exemplos fornecidos por Hegel na anotaccedilatildeo
agrave seccedilatildeo que trata da oposiccedilatildeo na Ciecircncia da Loacutegica
Assim se pensarmos em uma hora de caminhada para o leste veremos que este natildeo eacute
ao mesmo tempo o positivo em si nem o caminho para o oeste seria o caminho negativo O
trecho percorrido natildeo pode ser considerado o positivo ou o negativo em si Em relaccedilatildeo a ele
tais determinaccedilotildees lhe satildeo indiferentes Apenas por meio de uma consideraccedilatildeo exterior se
determina o positivo ou o negativo289
A mesma coisa eacute vaacutelida para um exemplo tirado da aritmeacutetica290 Se A deve ser +A ou
ndashA com isso jaacute estaacute enunciado um terceiro que eacute A ou a base na qual se tem de modo
indiferente o positivo +A e o negativo ndashA291
Bestimmungslose das Positive dagegen ist das mit sich Identische aber als gegen ein Anderes bestimmt und das Negative ist der Unterschied als solcher in der Bestimmung nicht Identitaumlt zu sein Dies ist der Unterschied des Unterschiedes in ihm selbst - Am Positiven und Negativen meint man einen absoluten Unterschied zu haben Beide sind indes an sich dasselbe und man koumlnnte deshalb das Positive auch das Negative nennen und ebenso umgekehrt das Negative das Positiverdquo) In Werke 8 E sect 119 Adendo p 244 trad p 235
289 GW 11 p 276 trad p 58
290 Ver a propoacutesito GW 20 E sect 119 p 150 trad p 234
291 Todo esse trecho da Ciecircncia da Loacutegica no qual Hegel trata da oposiccedilatildeo envolve uma criacutetica da oposiccedilatildeo real kantiana no seu Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia [In Escritos preacute-criacuteticos Satildeo Paulo Unesp 2005 pp 51-99] Com efeito Kant comeccedila a seccedilatildeo Elucidaccedilatildeo do conceito de grandezas negativas em geral distinguindo entre oposiccedilatildeo loacutegica e oposiccedilatildeo real Segundo o filoacutesofo ldquooposto um ao outro eacute quando um suprime aquilo que eacute posto pelo outrordquo (Kant p 57) E esta oposiccedilatildeo pode se dar de duas maneiras se for oposiccedilatildeo loacutegica pela contradiccedilatildeo se for real sem contradiccedilatildeo
Teremos uma oposiccedilatildeo loacutegica quando a seguinte situaccedilatildeo ocorre ldquode uma uacutenica e mesma coisa afirma-se e nega-se algo ao mesmo tempordquo (Kant p 57) A consequumlecircncia advinda de uma tal espeacutecie de afirmaccedilatildeo eacute segundo Kant absolutamente nada (nihil negativum irrepraesentabile) Devido agrave transgressatildeo ao princiacutepio de contradiccedilatildeo aquilo que se tentou exprimir natildeo pode ser representado Como um corpo poderia ao mesmo tempo e sob a mesma relaccedilatildeo estar e natildeo estar em movimento Do ponto de vista das leis da loacutegica claacutessica eacute impossiacutevel(Kant p 58)
Para Kant ao se considerar a oposiccedilatildeo como real teremos dois predicados opostos de uma coisa relacionados no entanto sem que nessa relaccedilatildeo se infrinja o princiacutepio de contradiccedilatildeo Neste caso temos como consequumlecircncia da oposiccedilatildeo algo (cogitabile) Em um dos exemplos dados por Kant algueacutem que tenha por haver uma diacutevida ativa A= 100 taacuteleres ou seja tem a receber A Ao mesmo tempo essa pessoa possui uma diacutevida passiva B=100 taacuteleres logo tem a pagar a quantia expressa por B Se reunimos as duas diacutevidas a ativa e a passiva entatildeo teremos como consequumlecircncia nada As duas diacutevidas se anulam entretanto esse nada eacute algo pois houve um certo movimento de um certo capital Aqui ocorre efetivamente supressatildeo todavia em virtude de dois predicados atuantes e verdadeiros na mesma coisa Kant nomeia esse nada como zero =0 Diferente do nada a que se chega a partir da oposiccedilatildeo loacutegica esse nada chamado de zero natildeo expressa nenhuma contradiccedilatildeo entre os termos Temos uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo da qual se extrai uma consequumlecircncia compreensiacutevel ainda sob o amparo do princiacutepio de contradiccedilatildeo Os opostos se regem pelo princiacutepio de contradiccedilatildeo e quando relacionados continuam a natildeo se
120
Por fim haacute que se considerar que positivo e negativo natildeo estatildeo de fato relacionados
apenas exteriormente Ambos estatildeo relacionados um ao outro numa unidade na qual cada um
se determina como positivo e como negativo mediante essa reflexatildeo dos contrapostos ldquoCada
um eacute em si mesmo positivo e negativordquo292 O positivo se determina como positivo na sua
relaccedilatildeo com seu outro o negativo e o negativo da mesma maneira na sua relaccedilatildeo com o
positivo Nenhum deles pode ser portanto apenas uma reflexatildeo em si ou seja positivo e
negativo natildeo estatildeo desvinculados um do outro Natildeo se constituem como tais por meio de um
puro refletir-se em si mesmos sem que isso envolva a relaccedilatildeo com seu outro e contraposto
Somente na relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo que positivo e negativo se determinam desse modo como
tais e essa reflexatildeo pode ser considerada em si e para si
contradizer Os opostos aqui satildeo dois positivos E eacute por pura conveniecircncia que um eacute chamado de positivo e o outro de negativo
Pensemos por exemplo neste exemplo fornecido por Kant um navio que navega de Portugal para o Brasil(Kant p 60) Indicaremos com o sinal + os trechos que ele perfaz com o vento matutino e com o sinal ndash indicaremos os trechos que ele retrocede mediante o vento vespertino Os nuacutemeros significam as milhas percorridas Poderia ter ocorrido uma viagem rumo a oeste que somando e subtraindo o efeito do vento no navio seria em milhas a seguinte +12 + 7 ndash 3 ndash 5 + 8= 19 milhas Soacute existe uma subtraccedilatildeo aqui porque haacute grandezas precedidas do sinal + e haacute grandezas precedidas do sinal -- Em ndash 4 ndash 5= -- 9 por exemplo temos uma soma de grandezas natildeo obstante estas estarem precedidas do sinal -- Uma soma tambeacutem se verificaria caso no exemplo citado fosse utilizado o sinal + antes das grandezas A questatildeo eacute que natildeo eacute o sinal que por si soacute pode designar uma subtraccedilatildeo Como acabamos de observar pode haver soma para uma operaccedilatildeo envolvendo grandezas precedidas de sinal -- Eacute somente na reuniatildeo de + e ndash que temos uma subtraccedilatildeo E natildeo importa qual das grandezas por exemplo em + 4 ndash 5= -- 1 seja precedida por + ou por -- que enquanto haja uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo o resultado seraacute sempre uma subtraccedilatildeo
Eacute meramente convencional portanto que se utilize o sinal ndash ou o sinal + para denominar as grandezas Natildeo eacute em virtude de uma propriedade intriacutenseca desses sinais que teremos uma soma ou uma subtraccedilatildeo ldquoos matemaacuteticos decidiram denominar negativas as grandezas precedidas de -- com o que igualmente natildeo se deve perder de vista que essa denominaccedilatildeo natildeo remete a uma espeacutecie particular de coisas em sua qualidade interna mas a esta relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo que as une com certas outras coisas indicadas com + reunidas em uma oposiccedilatildeordquo (Kant pp 61-62)
Numa oposiccedilatildeo real satildeo efetivamente dois positivos que se relacionam e eacute indiferente qual deles possa ser o positivo ou o negativo Para Kant diferente do que pensa Hegel esses positivos relacionados podem produzir como efeito algo e continuarem a ser abstratamente idecircnticos a si mesmos nessa relaccedilatildeo Jaacute para Hegel ldquoo que eacute em si (ansichseiende) positivo ou negativo significa essencialmente ser oposto natildeo meramente ser momento nem pertencente agrave comparaccedilatildeo mas sim que eacute a proacutepria determinaccedilatildeo dos lados da oposiccedilatildeordquo (Cf GW 11 p 275 trad p 57) Eacute na relaccedilatildeo que eles se determinam e poderatildeo constituir uma unidade naquilo que Hegel chama de contradiccedilatildeo resolvida
292 GW 11 p 274 trad p 55 (ldquojedes ist an ihm selbst positiv und negativrdquo)
121
A contradiccedilatildeo
Na oposiccedilatildeo temos dois lados o positivo e o negativo indiferentes um perante o outro
Como jaacute foi visto cada lado eacute toda a oposiccedilatildeo pois apesar da indiferenccedila eles se relacionam
cada um ao seu outro Todavia devido agrave indiferenccedila potildeem-se eles como se natildeo houvesse
relaccedilatildeo com seu outro isto eacute excluem de si o seu outro
Mas eacute na relaccedilatildeo com seu outro que cada lado conteacutem em si que eles satildeo ambos a
oposiccedilatildeo completa e assim satildeo auto-subsistentes A auto-subsistecircncia entatildeo consiste nesse
conter o seu oposto em si mesmo e relacionado a si A relaccedilatildeo com o outro desse modo natildeo eacute
exterior Hegel chama o positivo e o negativo de tal modo constituiacutedos de determinaccedilotildees
reflexivas autocircnomas293 Mas ao mesmo tempo e na mesma relaccedilatildeo uma determinaccedilatildeo
reflexiva autocircnoma exclui de si a outra Como consequumlecircncia dessa exclusatildeo ldquoexclui entatildeo ela
de si na sua autonomia (Selbststaumlndigkeit) a sua proacutepria autonomiardquo294 Uma determinaccedilatildeo
conteacutem portanto em si a outra e na mesma relaccedilatildeo exclui de si essa outra que eacute sua negativa e
assim se auto-exclui de si mesma Desse modo nesse vai-e-vem ndash em um mesmo
relacionamento ndash entre a autonomia e a sua exclusatildeo ela a determinaccedilatildeo eacute a contradiccedilatildeo295
Nesse relacionamento das determinaccedilotildees cada uma ao se pocircr remete agrave outra que a ela
se relaciona Cada uma eacute o que eacute na relaccedilatildeo com a outra sua afirmaccedilatildeo vincula-se agrave outra que
eacute negada mas que ao mesmo tempo estaacute contida na primeira como elemento de sua
autonomia Temos aqui o que Hegel chama de contradiccedilatildeo posta (der gesetzte Widerspruch)
realizada por meio de uma reflexatildeo excludente ao me pocircr ponho ao mesmo tempo o outro
que excluo de mim e assim me suspendo296
Se nos voltarmos por exemplo para a contradiccedilatildeo que haacute no positivo veremos que o
positivo potildee sua identidade ao excluir de si o negativo mas nessa exclusatildeo ele se faz
negativo desse outro (o negativo excluiacutedo) e assim potildee seu outro ao mesmo tempo que o
inclui297 Dessa maneira se auto-exclui de si ao se fazer seu outro Tambeacutem com o negativo
293 Ibidem p 279 trad p 62
294 Ibidem p 279 trad p 62
295 Ibidem p 279 trad p 62
296 Ibidem p 279 trad p 62
297 Cf Ibidem p 280 trad p 63
122
se passa o mesmo a saber o negativo que exclui de si o positivo potildee-se e assim potildee seu
outro (o seu negativo que neste caso eacute o positivo) Eacute numa reflexatildeo uacutenica que se daacute o pocircr de
ambos298 Mas a contradiccedilatildeo do negativo eacute por assim dizer mais completa que a do positivo
O negativo eacute o idecircntico consigo justamente na determinaccedilatildeo do ser natildeo-idecircntico do
determinar-se como negativo ou seja no ser exclusatildeo da identidade
O positivo e o negativo satildeo portanto essa unidade dos que se excluem e
simultaneamente se tornam um o outro ldquoesse incansaacutevel desvanecer dos contrapostos neles
mesmos (Diszlig rastlose Verschwinden der Entgegengesetzten in ihnen selbst)rdquo299
Poder-se-ia pensar que o resultado da contradiccedilatildeo desses opostos seria um resultado
meramente negativo precisamente o zero (Null)300 Contudo o que efetivamente eacute aniquilado
(zu Grund geht) na contradiccedilatildeo eacute o ser-posto da auto-subsistecircncia do positivo e do negativo301
Em outras palavras o que natildeo se manteacutem eacute a auto-subsistecircncia em que cada um se potildee como
se estivessem fora da relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo que eles mantecircm com seu outro Como ser-posto
298 Cf Ibidem p 280 trad p 63
299 Ibidem p280 trad p 64 Ou ainda ldquo[] cada um eacute absolutamente o passar ou antes o transpor-setraduzir-se de si mesmo no seu contrapostordquo (ldquojedes ist schlechthin das Uebergehn oder vielmehr das sich Uebersetzen seiner in sein Gegentheilrdquo) Cf GW 11 p 280 trad p 64
300 ldquoQuando em qualquer objeto ou conceito for mostrada a contradiccedilatildeo --- e por toda a parte natildeo haacute absolutamente nada em que natildeo possa e na deva ser mostrada a contradiccedilatildeo isto eacute determinaccedilotildees opostas o abstrair do entendimento eacute o fixar-se agrave forccedila em uma soacute determinidade eacute um esforccedilo de obscurecer e de afastar a consciecircncia da outra determinidade --- quando pois tal contradiccedilatildeo eacute reconhecida costuma-se fazer a conclusatildeo ldquoLogo este objeto eacute nadardquo [Faz-se] como Zenatildeo que primeiro mostrou [a respeito] do movimento que ele se contradizia e que portanto o movimento natildeo era ou como os antigos que reconheceram o nascer e o perecer --- as duas espeacutecies do vir-a-ser --- como determinaccedilotildees natildeo-verdadeiras com a expressatildeo de que o uno isto eacute o absoluto natildeo nascia nem perecia Essa dialeacutetica fica assim simplesmente no lado negativo do resultado e abstrai do que ao mesmo tempo estaacute efetivamente presente um resultado determinado aqui um puro nada mas um nada que em si inclui um ser e igualmente um ser que nele inclui o nadardquo (ldquoWenn in irgend einem Gegestand oder Begriff der Widerspruch aufgezeigt wird (ndash und es ist uumlberall gar nichts worin nicht der Widerspruch di entgegengesetzte Bestimmungen aufgezeigt werden koumlnnen und muumlssen ndash das Abstrahiren des Verstandes ist das gewaltsame Festhalten an Einer Bestimmtheit eine Anstrengung das Bewuszligtsein der andern die darin liegt zu verdunkeln und zu entfernen) ndash wenn nun solcher Widerspruch erkannt wird so pflegt man den Schluszligsatz zu machen Also ist dieser Gegenstand Nichts wie Zeno zuerst von der Bewegung zeigte daszlig sie sich widerspreche daszlig sie also nicht sey oder wie die Alten das Entstehen und Vergehen die zwei Arten des Werdens fuumlr unwahre Bestimmungen mit dem Ausdrucke erkannten daszlig das Eine di das Absolute nicht entstehe noch vergehe Diese Dialektik bleibt so blos bei der negativen Seite des Resultates stehen und abstrahirt vom dem was zugleich wirklich vorhanden ist ein bestimmtes Resultat hier ein reines Nichts aber Nichts welches das Seyn und eben so ein Seyn welches das Nichts in sich schlieszligtrdquo) In GW 20 E sect 89 p 129 trad p 185
301 GW 11 p 281 trad p 64
123
cada lado da oposiccedilatildeo eacute um contraposto (Entgegengesetzt) mas o positivo eacute a suspensatildeo da
oposiccedilatildeo posta como natildeo-contraposto enquanto um lado ao mesmo tempo que o negativo eacute o
contraposto subsistente por si enquanto todo da oposiccedilatildeo que repousa em si Hegel denomina
de reflexatildeo em si essa relaccedilatildeo de auto-subsistecircncia a si na qual cada lado da oposiccedilatildeo se potildee
como momento distinto do outro302
A reflexatildeo se torna para si somente com a relaccedilatildeo negativa de cada um com seu outro
reflexatildeo excludente (ausschliessende Reflexion) por meio da qual o ser-posto de cada um
como relaccedilatildeo autocircnoma a si eacute suspenso (aufgehoben)303 ldquoElas se levam agrave destruiccedilatildeo (richten
sich zu Grunde) ao se determinarem como o idecircntico consigo poreacutem nisto antes como o
negativo como um idecircntico consigo que eacute relaccedilatildeo com outrordquo304
Nessa reflexatildeo excludente um lado se potildee negando o outro e ao negar seu outro ele se
potildee como negaccedilatildeo e como tal ele retorna a si a partir dessa negaccedilatildeo
ldquoEla (a reflexatildeo excludente da autonomia) eacute relaccedilatildeo a si que se suspende ela nisto
primeiro suspende o negativo e em segundo lugar potildee-se a si como negativo e esse eacute somente
aquele negativo que ela suspende no suspender do negativo ela ao mesmo tempo o potildee e
suspende A determinaccedilatildeo excludente eacute desse modo a si o outro do qual ela eacute a negaccedilatildeo o
suspender desse ser-posto natildeo eacute por conseguinte novamente o ser-posto como o negativo de
um outro mas sim o reunir-se consigo mesmo que eacute a unidade positiva consigo A autonomia
eacute assim a unidade que retorna a si por meio de sua proacutepria negaccedilatildeo visto que ela retorna a si
mediante a negaccedilatildeo de seu ser-postordquo305
302 Ibidem p 281 trad p 64
303 Ibidem p 281 trad p 65 Ou ainda ldquoEla eacute auto-subsistecircncia sendo-em-si e eacute o suspender desse ser-posto e que- eacute-para-si somente mediante esse suspender que eacute para si e de fato unidade auto-subsistente (Sie ist ansichseyende Selbststaumlndigkeit und ist das Aufheben dieses Gesetztseyens und durch diss Aufheben erst fuumlrsichseyende und in der That selbstsaumlndige Einheit) In Ibidem p 281 trad p 65
304 Ibidem p 281 trad p 65 (ldquoSie richten sich zu Grunde indem sie sich bestimmen als das mit sich identische aber darin vielmehr als das Negative als ein mit sich identisches das Beziehung auf anderes istrdquo)
305 Ibidem p 281 trad p 65 (ldquoSie ist aufhebende Beziehung auf sich sie hebt darin erstens das Negative auf und zweytens setzt sie sich als negatives und diszlig ist erst dasjenig Negative das sie aufhebt im Aufheben des Negativen setzt und hebt sie zugleich auf Die ausschliessende Bestimmung selbst ist auf diese Weise sich das Andre dessen Negation sie ist das Aufheben dieses Gesetztseyns ist daher nicht wieder Geseztseyn als das Negative eines Andern sondern ist das Zusammengehen mit sich selbst das positive Einheit mit sich ist Die Selbstaumlndigkeit ist so durch ihre eigene Negation in sich zuruumlckkehrende Einheit indem sie durch die Negation ihres Gesetztseyns in sich zuruumlckkehrtrdquo)
124
Por meio portanto dessa reflexatildeo excludente dos opostos eles se potildeem e
simultaneamente se suspendem Numa uacutenica e mesma relaccedilatildeo se afirmam e se negam
mutuamente Qual o resultado desse processo Com a negaccedilatildeo muacutetua eles certamente se
aniquilam (gehen zu Grunde) entretanto esse aspecto negativo da relaccedilatildeo natildeo seraacute o uacuteltimo e
assim predominante nessa destruiccedilatildeo a oposiccedilatildeo retornou ao mesmo tempo ao seu
fundamento (ist in seinen Grund zuruumlckgegangen)306 O retorno ao fundamento mediante a
suspensatildeo da oposiccedilatildeo natildeo ocorre sem essa relaccedilatildeo da oposiccedilatildeo a um negativo algo que
significa rebaixar (herabsetzen) as determinaccedilotildees autocircnomas positivo e negativo a o que de
fato satildeo meras determinaccedilotildees que na sua suspensatildeo (Aufhebung) reuacutenem-se
(zusammengehen) na unidade da essecircncia como fundamento ldquoMediante o suspender das
determinaccedilotildees da essecircncia que se contradizem nelas mesmas esta (a essecircncia) eacute restaurada
contudo com a determinaccedilatildeo de ser unidade reflexiva excludente unidade simples []rdquo307
O fundamento desse modo somente surge da contradiccedilatildeo apresentada na oposiccedilatildeo
autocircnoma (selbstaumlndige Gegensatz) Esta eacute o imediato o primeiro do qual se parte e na sua
suspensatildeo o fundamento vem a ser ldquoA contradiccedilatildeo resolvida308 (der aufgeloumlste Widerspruch)
eacute portanto o fundamento a essecircncia como unidade do positivo e negativordquo309
Se jaacute ressalta Hegel na oposiccedilatildeo se desenvolve a determinaccedilatildeo ateacute que se atinja a
autonomia (Selbstaumlndigkeit) a mesma contudo somente teraacute seu acabamento (Vollendung)
306 Ibidem pp 281-282 trad pp 65-66
307 Ibidem p 282 trad p 66 (ldquoDurch das Aufheben der sich an sich selbst widersprechenden Bestimmungen des Wesens ist dieses wiederhergestellt jedoch mit der Bestimmung ausschliessende Reflexionseinheit zu seyn einfache Einheit [hellip]rdquo)
308 Um dos significados do verbo aufloumlsen na liacutengua alematilde eacute resolver E resolver com o sentido de se encontrar a soluccedilatildeo de um problema por exemplo uma equaccedilatildeo matemaacutetica O mesmo verbo tambeacutem significa a dissoluccedilatildeo de algo sua desagregaccedilatildeo como no caso de uma substacircncia quiacutemica em outra ou sua anulaccedilatildeoextinccedilatildeo caso de um contrato por exemplo Com referecircncia agrave traduccedilatildeo do verbo por resolver no trecho em questatildeo parece-nos que seja a melhor soluccedilatildeo pois assim fica ressaltado esse aspecto positivo de uma unidade superior dos contraditoacuterios no fundamento Ao mesmo tempo o verbo tambeacutem significa dissoluccedilatildeo que no que respeita agrave contradiccedilatildeo eacute um significado que tambeacutem deve ser considerado visto que a contradiccedilatildeo eacute dissolvida para que assim possa entatildeo resultar uma unidade superior todavia a ressonacircncia meramente negativa de dissoluccedilatildeo talvez deixe de lado esse aspecto o mais importante de unidade dos contraditoacuterios no fundamento Aleacutem disso resolver jaacute nos daacute tambeacutem a ideacuteia de que duacutevidas incoerecircncias e contradiccedilotildees presentes num problema sejam dissolvidasdissipadas para que enfim encontremos sua resoluccedilatildeo
309 Ibidem p 282 trad p 66 (ldquoDer aufgeloumlste Widerspruch ist also der Grund das Wesen als Einheit des Positiven und Negativenrdquo)
125
no fundamento Na oposiccedilatildeo jaacute temos a relaccedilatildeo negativa e interna dos opostos relaccedilatildeo que
fornece a autonomia agrave essecircncia poreacutem essa autonomia seraacute apenas completa e acabada no
fundamento porque somente nele o negativo estaraacute efetivamente incorporado a essa reflexatildeo
das determinaccedilotildees contrapostas Eacute o que nos parece que Hegel queira dizer310 Eacute nessa
relaccedilatildeo portanto em que o negativo intrinsicamente faz dela parte que o fundamento pode
ser ldquoa identidade positiva consigo mas ao mesmo tempo como a negatividade que se
relaciona a sirdquo311 E natildeo podemos esquecer que eacute por meio dessa negatividade incorporada
ao processo que a contradiccedilatildeo se torna contradiccedilatildeo posta e eacute resolvida no fundamento312 Uma
resoluccedilatildeo na qual ldquoA oposiccedilatildeo e sua contradiccedilatildeo eacute por conseguinte tanto suprimida no
fundamento quanto conservadardquo313 O fundamento eacute a unidade dos contrapostos nessa relaccedilatildeo
negativa e contraditoacuteria que eles manteacutem entre si
ldquoA oposiccedilatildeo autocircnoma que se contradiz era jaacute portanto ela mesma o fundamento
somente que agora (como fundamento) acrescida da determinaccedilatildeo da unidade consigo
mesma que sobressai pelo fato de que os contrapostos autocircnomos cada um se suspendem e
se convertem no outro de si com isto se destruindo mas nisto ao mesmo tempo reunindo-se
consigo mesmo e desse modo no seu afundar isto eacute no seu ser-posto ou na negaccedilatildeo eacute
antes a essecircncia refletida em si idecircntica consigordquo 314
310 Ibidem p 282 trad p 67
311 Ibidem p 282 trad p 67 (ldquodie positive Identitaumlt mit sich aber die sich zugleich als die Negativitaumlt auf sich beziehtrdquo)
312 No que respeita agrave importacircncia central da dupla negaccedilatildeo ndash ou como o autor a ela se refere negaccedilatildeo autonomizada ndash para Hegel ver o ensaio de Dieter Henrich ldquoHegels Grundoperation (Eine Einleitung in die lsquoWissenschaft der Logikrsquordquo especialmente as pp 214-219 In Guzzoni Ute Der Idealismus und seine Gegenwart (Festschrift fuumlr Werner Marx) Hamburg Meiner 1976 pp 208-230
313 Ibidem p 282 trad p 67 (ldquoDer Gegensatz und sein Widerspruch ist daher im Grunde so sehr aufgehoben als erhaltenrdquo)
314 Ibidem p 282-283 trad p 67 (ldquoDer sich widersprechende selbstaumlndige Gegensatz war also bereits selbst der Grund es kam nur die Bestimmung der Einheit mit sich selbst hinzu welche dadurch hervortritt daszlig die selbstaumlndigen Entgegengesetzten jedes sich selbst aufhebt und sich zu dem andern seiner macht somit zu Grunde geht aber darin zugleich nur mit sich selbst zusammengeht also in seinem Untergange das ist in seinem Gesetztseyn oder in der Negation vielmehr erst das in sich reflectirte mit sich identische Wesen istrdquo)
126
De tudo que foi dito podemos entatildeo concluir que a contradiccedilatildeo eacute justamente o que natildeo
deve ser afastado Ela eacute ldquoa raiz de todo movimento e vitalidade somente na medida em que
algo tem a contradiccedilatildeo em si mesmo ele se movimenta tem impulso (Trieb) e atividaderdquo315
Contra o pensamento representativo o pensar do entendimento a contradiccedilatildeo natildeo
deve ser afastada Eacute por meio dela que um posto se une a seu contraposto numa unidade
negativa que teraacute como consequumlecircncia a geraccedilatildeo de um novo ser-posto Hegel assim inverte o
jogo o que antes era considerado negativo agora merece uma avaliaccedilatildeo positiva
O entendimento procurou sempre afastar a contradiccedilatildeo porque se ordena segundo uma
sintaxe na qual nada pode ser contraditoacuterio A identidade tal como estabelecida pela loacutegica
claacutessica eacute o que deve ser preservado Se haacute contradiccedilatildeo ela se resolve em um nada Em um
nada vazio vale ser lembrado
Se o ceticismo sempre teve ecircxito no seu combate ao dogmatismo eacute porque nunca se
furtou a atacar o ponto fraco do pensar de entendimento a saber que a contradiccedilatildeo sempre
pode ser obtida a partir da produccedilatildeo de antinomias Aleacutem disso o entendimento se apoacuteia em
uma ontologia que inviabiliza a sua proacutepria manutenccedilatildeo Tanto eacute assim que o ceacutetico consegue
reiteradamente estabelecer uma contradiccedilatildeo a partir daquilo que eacute posto unilateralmente pelo
discurso dogmaacutetico
Toda forma de oposiccedilatildeo que se apoacuteia na identidade abstrata de entendimento procura
sempre considerar o negativo como aquilo que natildeo existe ou para usar o vocabulaacuterio de
Hegel como um natildeo-ser Se algo eacute ele eacute idecircntico a si mesmo independente da relaccedilatildeo com
um outro O positivo natildeo se conecta ao negativo para se manter como positivo Ele eacute Esse
algo que eacute entretanto nunca eacute independente de sua relaccedilatildeo com um outro A um posto
determinado sempre se pode contrapor um outro determinado Em outras palavras uma
determinaccedilatildeo de entendimento eacute limitada por uma outra e desse modo mostra-se seu caraacuteter
finito Mas por que as determinaccedilotildees finitas quando no acircmbito do entendimento satildeo
relacionadas acabam finalmente por se contradizer Segundo Hegel a contradiccedilatildeo se efetiva
devido a esse ser finito apresentar-se como um absoluto O finito que como veremos a seguir
eacute aquilo que estaacute fadado a perecer no acircmbito do entendimento eacute encarado como se fosse um
absoluto O resultado disso eacute que a contradiccedilatildeo precisa ser evitada Se o finito fosse
315 Ibidem p 286 trad p 72 (ldquo[] ist die Wurzel aller Bewegung und Lebendigkeit nur insofern etwas in sich selbst einen Widerspruch hat bewegt es sich hat Trieb und Thaumltigkeitrdquo)
127
considerado como o que ele realmente eacute a saber como ldquoa oposiccedilatildeo que se contradiz em si
mesma (an sich selbst widersprechende Gegensatz)rdquo 316 a contradiccedilatildeo natildeo precisaria ser
evitada e o ceticismo natildeo seria mais considerado o fantasma que assombra a filosofia
Vejamos agora a partir de uma anaacutelise das categorias de finito e infinito como se
constitui essa gramaacutetica ontoloacutegica que precisa ser abandonada caso se pretenda que a
contradiccedilatildeo e o ceticismo natildeo sejam mais vistos como inimigos mortais da filosofia que tanto
horror causam no pensamento natildeo-especulativo
316 Ibidem p 290 trad p 77
128
O finito e o infinito
Para que possamos compreender o que eacute o finito tomaremos como ponto de partida a
categoria do ser-aiacute como qualidade tal como exposta na Doutrina do Ser na Enciclopeacutedia317
Assim veremos no sect 90 que o ser-aiacute unido com uma determinidade eacute a qualidade318
Na qualidade jaacute estaacute contida a negaccedilatildeo como um ser-aiacute e algo A negaccedilatildeo eacute o ser-outro
(Anderssein) desse ser-aiacute que eacute a qualidade Eacute ela que fornece a determinaccedilatildeo proacutepria da
qualidade O ser-aiacute eacute algo porque ele eacute determinado ou seja porque ele eacute um algo que natildeo
pode ser confundido com outro algo Ele eacute portanto este algo e natildeo eacute aquele outro O ser-aiacute
estaacute delimitado ele possui um limite A negaccedilatildeo diraacute Hegel eacute esse limite (Grenze) Essa
limitaccedilatildeo que atravessa esse algo faz com que ele seja finito O que natildeo eacute difiacutecil de se
compreender pois o algo por ser limitado necessariamente remete a um outro que o limita ldquoo
limite do algo se lhe torna objetivo no outrordquo319 O ser-aiacute se determina ao avanccedilar ateacute o ponto
em que se defronta com seu outro que eacute o seu limite
O ser-aiacute por ser limitado ao mesmo tempo tambeacutem eacute finito o que traz por
consequumlecircncia que ele estaacute destinado a ter um fim Segundo Hegel eacute proacuteprio das coisas finitas
o perecer (vergehen) ldquoo ser das coisas finitas como tal consiste em ter o germe do perecer
como seu ser-em-si (Insichsein) a hora de seu nascimento eacute a hora de sua morterdquo320 Se algo
perece eacute porque ele se altera o que implica numa negaccedilatildeo constante daquilo que se eacute ateacute o seu
fim O finito desse modo se altera porque ele se nega e esse negar-se significa que ele vai
aleacutem de si mesmo Eacute por esse motivo que Hegel afirma que as coisas finitas se relacionam
317 Cf GW 20 p 129 e ss trad p 186 e ss
318 Ibidem sect 90 p 129 trad p 186
319 Werke 8 E sect 92 Adendo p 197 trad p 189 (ldquo[hellip] dem Etwas wird im Anderen seine Grenze objektivrdquo) Ou ainda ldquoQuando noacutes dizemos das coisas que elas satildeo finitas com isto tambeacutem se entende que elas natildeo somente possuem uma determinidade a qualidade natildeo somente como realidade e determinaccedilatildeo que eacute em si que elas natildeo satildeo apenas limitadas ndash elas ainda tem fora de seu limite um ser-aiacute ndash mas que antes tambeacutem o natildeo-ser constitui sua natureza seu serrdquo (ldquo Wenn wir von den Dingen sagen sie sind endlich so wird darunter verstanden daszlig sie nicht nu eine Bestimmtheit haben die Qualitaumlt nicht nur als Realitaumlt und ansichseyende Bestimmung daszlig sie nicht bloszlig begrenzt sind sie haben so noch Daseyn ausser ihrer Grenze ndash sondern daszlig vielmehr das Nichtseyn ihre Natur ihr Seyn ausmacht rdquo) In GW 21 p 116 trad p 166
320 GW 21 p 116 trad p 166 (ldquodas Seyn der endlichen Dinge als solches ist den Keim des Vergehens als ihr Insichseyn zu haben die Stude ihrer Geburt ist die Stunde ihres Todesrdquo)
129
negativamente a si mesmas e nesse negar se remetem para aleacutem de si mesmas e de seu ser
(sich uumlber sich uumlber ihr Sein hinauszuschicken)321
Esse ir aleacutem de si mesmo do finito esse ir para um outro natildeo acontece como se esse
outro fosse exterior e indiferente ao algo a que estaacute vinculado Caso assim ocorresse a relaccedilatildeo
entre o algo e o outro natildeo teriacuteamos a efetiva negaccedilatildeo do finito E eacute isto que se passa quando o
finito natildeo eacute efetivamente negado e portanto natildeo vai aleacutem de si mesmo no seu outro que natildeo
seja indiferente a ele O que aiacute acontece eacute que o finito eacute negado tem um fim E entatildeo um novo
finito surge no lugar do anterior Esse novo finito tambeacutem eacute negado e assim um outro finito
surge e esse processo se reproduz de modo infinito Hegel denomina de maacute infinitude esse
processo322
ldquoA negaccedilatildeo em geral a qualidade o limite podem se conciliar com seu outro o ser-
aiacute tambeacutem o nada abstrato eacute abandonado para si como abstraccedilatildeo mas a finitude eacute como a
negaccedilatildeo fixada em si e estaacute por conseguinte rudemente defronte de seu afirmativo O finito
pode se deixar levar no fluxo ele eacute isto mesmo ser determinado ao seu fim mas somente ao
seu fim -- eacute antes o recusar se deixar levar afirmativamente ao seu afirmativo ao infinito e se
deixar ligar a ele encontra-se posto como inseparaacutevel de seu nada e com isto toda
conciliaccedilatildeo com seu outro com o afirmativo estaacute cortadardquo323
De um lado portanto temos um finito negado e de outro lado um finito afirmado O
finito assim natildeo tem inscrito nele mesmo o perecer Ele eacute tatildeo positivo quanto o outro finito
que se afirma no lugar daquele que foi negado O finito torna-se assim um absoluto Essa eacute a
321 Ibidem p 116 trad p 166
322 GW 20 E sect 94 p 130 trad p 189
323 GW 21 p 117 trad p 166-167 (ldquodie Negation uumlberhaupt Beschaffenheit Grenze vertragen sich mit ihrem Andern dem Daseyn auch das Abstracte Nichts wird fuumlr sich als Abstraction aufgegeben aber Endlichkeit ist die als an sich fixirte Negation und steht daher seinem Affirmativen schroff gegenuumlber Das Endliche laumlsst sich so in Fluszlig wohl bringen es ist selbst diszlig zu seinem Ende bestimmt zu seyn aber nur zu seinem Ende -- es ist vielmehr das Verweigern sich zu seinem Affirmativen dem Unendlichen hin affirmativ bringen mit ihm sich verbinden zu lassen es ist also untrennbar von seinem Nichts gesetzt und alle Vesoumlhnung mit seinem Andern dem Affirmativen dadurch abgeschnittenrdquo)
130
conclusatildeo a que chega Hegel324 Temos aqui um finito absolutizado E por meio dessa
sucessatildeo de finitos absolutizados como que perfilados numa linha se vai ao infinito
Com efeito a alternacircncia dos finitos soacute eacute possibilitada devido agrave separaccedilatildeo do algo e de
seu outro Esse finito assim tem a contradiccedilatildeo afastada de si Sem que um deles seja negado
natildeo se pode afirmar o outro Nesses termos eacute efetivamente impossiacutevel que a infinitude seja
outra coisa que uma sucessatildeo de finitos que nunca perecem
Para que a verdadeira infinitude venha agrave luz eacute preciso que o finito efetivamente
pereccedila Do ponto de vista da loacutegica que regula o entendimento natildeo pode ser realizado o
efetivo perecer do finito Este finito determinado de acordo com o princiacutepio de natildeo-
contradiccedilatildeo se afirma sem levar em conta seu negativo Seu outro o nega apenas
exteriormente Dentro desse quadro relacionar um finito qualquer ao seu outro isto eacute aquilo
que o nega significa estabelecer uma contradiccedilatildeo mas uma contradiccedilatildeo que natildeo se resolve
positivamente Os contraditoacuterios se anulam sem que se vaacute aleacutem disso um nada vazio e
abstrato
Mas eacute justamente porque o finito eacute unilateral que ele natildeo pode se afastar da
contradiccedilatildeo Ele eacute o que eacute por ser determinado por um outro que o limita E essa relaccedilatildeo dele
com seu outro natildeo eacute exterior O finito eacute aquilo que comporta em si seu outro Nessa relaccedilatildeo a
si ele se nega e torna-se outro a partir dele mesmo O que Hegel chama de negaccedilatildeo da
negaccedilatildeo325 Nessa negaccedilatildeo interna do finito da qual surge outro o finito se torna infinito 326
324 Cf ldquoEacute uma afirmaccedilatildeo expressa que o finito eacute inconciliaacutevel e natildeo unificaacutevel com o infinito que o finito eacute posto pura e simplesmente contra o infinito Ao infinito eacute atribuiacutedo o ser o ser absoluto perante ele se manteacutem afirmado o finito como o negativo do mesmo natildeo podendo ser unificado com o absoluto permanece ele absoluto por seu lado tambeacutemrdquo (ldquoEs ist die ausdruumlckliche Behauptung daszlig das Endliche mit dem Unendlichen unvertraumlglich und unvereinbar sey das Endliche dem Unendlichen schlechthin etgegen gesetzt sey Dem Unendlichen ist Seyn absolutes Seyn zugeschrieben ihm gegenuumlber bleibt so das Endliche festgehalten als das Negative desselben unvereinbar mit dem Unendlichen bleibt es absolut auf seiner eigenen Seiterdquo) In GW 21 p 117-118 trad p 167
325 Cf GW 21 p 135 trad p 188 Aqui diga-se de passagem ocorre a mesma dialeacutetica que acabamos de observar na contradiccedilatildeo especulativa e que a seguir veremos no meacutetodo (cap 5)
326 A respeito do surgimento do infinito a partir do finito e do relacionamento interno de ambos eacute oportuno retomar o seguinte comentaacuterio de Andreas Arndt ldquoComo eacute essa a identidade em si refletida de si mesma e do contraposto (Entgegensetzung) na medida em que ela se estende por sobre si mesma e seu contraacuterio (Gegenteil) entatildeo eacute assim tambeacutem o infinito concebido que ele se estende por sobre si mesmo e seu contraacuterio Esse resultado natildeo deve poreacutem basear-se numa prevalecircncia da identidade ou da infinitude mas sim que o finito deve a partir dele mesmo e sem coaccedilatildeo exterior ser suspenso na infinitude afirmativa e nesta descobrir (herausfinden) a
131
Capiacutetulo 2 - O meacutetodo dialeacutetico-especulativo
O dialeacutetico eacute o pulso da vida em geral
Hegel327
Como tivemos oportunidade de observar nas suas Preleccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia
mais especificamente quando tratou do ceticismo Hegel se referia a termos como conceito
absoluto ideacuteia especulativa ou ideacuteia filosoacutefica mas sem efetuar uma exposiccedilatildeo mais precisa
do significado desses termos em sua filosofia Essa exposiccedilatildeo laacute natildeo se encontra obviamente
por natildeo se tratar ali do local adequado para o desenvolvimento da mesma Todavia no
contexto em que elas aparecem a saber a discussatildeo a respeito da filosofia ceacutetica podemos
mais ou menos vislumbrar qual significado esses termos possuem em sua filosofia A tiacutetulo
meramente rememorativo o contexto no qual apareciam esses termos dizia respeito agrave
investigaccedilatildeo do relacionamento porventura existente entre o ceticismo (o antigo) e a filosofia
especulativa Que o ceticismo eacute uma filosofia ambivalente no sentido de que pode ser
aproximada do pensamento especulativo e ao mesmo tempo tambeacutem ser afastada dessa
forma filosoacutefica
Hegel procurava entatildeo mostrar que o ceticismo consistia numa forma filosoacutefica que
poderia ser incorporada agrave filosofia especulativa Uma hipoacutetese que eacute bem pouco provaacutevel que
o ceacutetico pudesse considerar como vaacutelida Grosso modo a especulaccedilatildeo parecer-lhe-ia apenas
mais uma forma bastante extravagante de dogmatismo
Sem pretender avanccedilar numa discussatildeo acerca da viabilidade ou natildeo da incorporaccedilatildeo do
ceticismo agrave filosofia especulativa nem dos motivos que talvez levassem a convencer o ceacutetico
da aceitaccedilatildeo dessa hipoacutetese ou dos motivos que embasassem sua recusa interessa-nos aqui
resoluccedilatildeo da contradiccedilatildeo no finitordquo in ARNDT A Dialektik und Reflexion zur Rekonstruktion des Vernunftbegriffs Hamburg Meiner 1994 p 190
327 Vorlesungen uumlber Logik und Metaphysik Heidelberg 1817 Mitgeschrieben von FAGood ed Karen Gloy In Vorlesungen Ausgewaumlhlte Nachschriften und Manuskripte Band 11 Hamburg Meiner 1992 p 13
132
retomar a Hegel na sua Ciecircncia da Loacutegica no ponto especiacutefico onde se faz a exposiccedilatildeo do
meacutetodo especulativo a saber o capiacutetulo final do livro a Ideacuteia Absoluta328 E antes de
continuar eacute preciso deixar consignado que eacute nesse capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica que
Hegel expotildee em detalhes o significado e o funcionamento desse meacutetodo especulativo e que
segundo o que laacute ele diz eacute o que podemos apreender torna possiacutevel agrave filosofia permanecer
imune aos ataques do ceticismo Apenas como menccedilatildeo Hegel chega inclusive a mostrar nesse
mesmo capiacutetulo como por meio do meacutetodo a filosofia se potildee a salvo da criacutetica ceacutetica
mediante o tropo da regressatildeo ao infinito329 e tambeacutem no que se refere agrave discussatildeo acerca do
comeccedilo da filosofia do tropo da hipoacutetese330 Na medida em que seja necessaacuterio faremos
remissatildeo a outros momentos da Doutrina do Conceito parte da Loacutegica na qual se insere o
capiacutetulo haacute pouco mencionado A escolha desse modo de proceder se deve ao fato de que
dado seu proacuteprio caraacuteter de fechamento do livro e dessa parte especiacutefica da Loacutegica ndash a Loacutegica
Subjetiva ndash tornasse necessaacuteria e mais clara a compreensatildeo acerca do que seraacute analisado a
partir da referecircncia a outros momentos da mesma Doutrina do Conceito
Vistas as coisas do acircngulo meramente formal a Doutrina do Conceito compotildee a terceira
parte da Ciecircncia da Loacutegica apoacutes a Doutrina do Ser e a Doutrina da Essecircncia
respectivamente Mas o que nos importa reter dessa posiccedilatildeo derradeira da Doutrina do
Conceito na economia do texto da Ciecircncia da Loacutegica eacute o seu significado filosoacutefico preciso o
conceito somente eacute tratado na terceira parte da obra pois sua implementaccedilatildeo estaacute relacionada
e dependente dos desdobramentos dialeacuteticos ocorridos nos dois momentos anteriores da
mesma Loacutegica ndash os jaacute citados Doutrina do Ser e Doutrina da Essecircncia Como Hegel assinala
em vaacuterias passagens da Ciecircncia da Loacutegica e tambeacutem da Loacutegica da Enciclopeacutedia ldquoo conceito
eacute assim a verdade do ser e da essecircncia [] Enquanto o conceito se demonstrou como a
328 Cf GW 12 pp 236-253
329 Cf HP I 170-172
330 Cf HP I 173-174
133
verdade do ser e da essecircncia que a ele retornaram os dois como ao seu fundamento o
conceito inversamente se desenvolveu a partir do ser como seu fundamentordquo331
A citaccedilatildeo de Hegel acima feita confirma o que haviacuteamos haacute pouco dito que esse terceiro
momento da Loacutegica a Doutrina do Conceito surge como resultado dos desdobramentos
dialeacuteticos anteriores ndash ou na liacutengua hegeliana de um processo de determinaccedilatildeo que no caso eacute
um processo de autodeterminaccedilatildeo ndash ocorridos na Doutrina do Ser e na Doutrina da Essecircncia
Mas o que eacute contudo mais interessante e agrave primeira vista perturbador eacute o fato de que o
conceito seja considerado o fundamento do ser e da essecircncia Como pode ser possiacutevel que o
fundamento somente venha a aparecer ao final
Da perspectiva do entendimento o que comumente acontece eacute que o fundamento de uma
ciecircncia ou ainda de modo mais simples de um argumento qualquer seja posto logo no iniacutecio
e entatildeo a partir dele teremos por exemplo o desenvolvimento de uma ciecircncia ou de um
argumento A questatildeo eacute que utilizar esse tipo de procedimento no mais das vezes torna-nos
vulneraacuteveis agraves investidas do ceticismo Como impedir que um fundamento qualquer possa
estar protegido do ataque a ele feito por meio de algum dos tropos ceacuteticos
Cremos que Hegel esteja ciente dessa fraqueza da maneira tradicional de fundamentaccedilatildeo
perante a criacutetica que a mesma possa sofrer por parte do ceticismo Jaacute no primeiro paraacutegrafo da
Enciclopeacutedia ele chama a atenccedilatildeo para esse problema do fundamento ao se referir agrave
dificuldade de se instituir um comeccedilo para a filosofia ldquoporque um comeccedilo como algo
imediato faz sua pressuposiccedilatildeo ou melhor ele mesmo eacute uma pressuposiccedilatildeordquo332 Ora o que
Hegel natildeo diz mas aiacute estaacute impliacutecito eacute apenas que da mesma maneira que posso fazer uma
331 Cf GW 20 E sect159 p 174 trad cit p 288 (ldquoDer Begriff ist hiemit die Wahrheit des Seyns und des Wesens [hellip] Indem der Begriff sich als die Wahrheit des Seyns und Wesens erwiesen hat welche beide in ihm als in ihren Grund zuruumlckgegangen sind so hat er umgekehrt sich aus dem Seyn als aus seinem Grunde entwickeltrdquo) Ou ainda ldquoSob este aspecto o conceito eacute em primeiro lugar considerado em geral como o terceiro com respeito ao ser e agrave essecircncia ao imediato e agrave reflexatildeo Ser e essecircncia satildeo nessa medida os momentos de seu vir-a-ser poreacutem ele eacute o fundamento e a verdade deles como a identidade na qual soccedilobraram (untergegangen sind) e estatildeo contidos Eles estatildeo nele contidos porque ele eacute seu resultado mas natildeo estatildeo mais como ser e essecircncia eles soacute possuem essa determinaccedilatildeo na medida em que natildeo retornaram a essa sua unidaderdquo (ldquoDer Begriff ist von dieser Seite zunaumlchst uumlberhaupt als das Dritte zum Seyn und Wesen zum Unmittelbaren und zur Reflexion anzusehen Seyn und Wesen sind insofern die Momente seines Werdens er aber ist ihre Grundlage und Wahrheit als die Identitaumlt in welcher sie untergegangen und enthalten sind Sie sind in ihm weil er ihr Resultat ist enthalten aber nicht mehr als Seyn und als Wesen diese Bestimmung haben sie nur insofern sie noch nicht in diese ihre Einheit zuruumlckgegangen sindrdquo) Cf GW 12 p 11 trad p 249
332 Cf GW 20 E sect 1 p 39 trad cit p 40 (ldquoda ein Anfang als ein Unmittelbares eine Voraussetzung macht oder vielmehr selbst eine solche istrdquo)
134
pressuposiccedilatildeo um outro pode pressupor algo que se contraponha agrave primeira pressuposiccedilatildeo e
assim natildeo haacute como se decidir por uma ou por outra sem que essa decisatildeo seja considerada
arbitraacuteria
Hegel pretende que o modo de proceder com respeito agrave fundamentaccedilatildeo na Ciecircncia da
Loacutegica natildeo sofra da mesma fraqueza que acabou por levar o entendimento a tornar-se
vulneraacutevel agrave criacutetica ceacutetica Como ele declara no iniacutecio da Doutrina do Conceito o conceito333
apesar de somente vir ao final constitui o fundamento absoluto mas que esse fundamento
necessita ter-se feito como fundamento334
O conceito eacute portanto o fundamento mas ele somente poderaacute vir a lume como
fundamento a partir de um processo dialeacutetico que comeccedila com o ser e passa pela essecircncia Eacute
justamente no uacuteltimo capiacutetulo da Loacutegica a Ideacuteia Absoluta que Hegel nos apresenta esse
meacutetodo dialeacutetico que eacute o motor e o fundamento natildeo soacute de todo o desenvolvimento da Loacutegica
mas tambeacutem da sua filosofia como um todo Ocorre que esse fundamento precisa ser
justificado e ldquouma tal intelecccedilatildeo eacute ela mesma um conhecer filosoacutefico que portanto soacute incide
no interior da filosofia Uma explicaccedilatildeo preacutevia deveria por isso ser uma explicaccedilatildeo natildeo-
filosoacutefica e natildeo poderia ser mais que um tecido de pressuposiccedilotildees asseveraccedilotildees e
raciociacutenios isto eacute de afirmaccedilotildees contingentes contra as quais se poderiam sustentar com o
mesmo direito afirmaccedilotildees opostasrdquo335
Com efeito qualquer forma de explicaccedilatildeo preacutevia a respeito do fundamento implicaria que
jaacute se partisse de algo dado e injustificado sujeito portanto a ser combatido por uma outra
afirmaccedilatildeo que a ela se contraponha com o mesmo direito que a primeira Natildeo haacute como natildeo
notar nessa declaraccedilatildeo de Hegel a preocupaccedilatildeo com um possiacutevel ataque ceacutetico por meio do
333 Quando nos referimos a conceito tambeacutem podemos entender esse termo como significando natildeo apenas o conceito em sentido estrito tal como exposto na mesma Doutrina do Conceito mas tambeacutem que esse termo abranja todas as configuraccedilotildees especiacuteficas do conceito nesta terceira parte da Loacutegica ndash assim como na Doutrina do Ser e na Doutrina da Essecircncia ndash afinal a ideacuteia absoluta tambeacutem eacute conceito e eacute o que Hegel chamaraacute de o conceito adequado
334 Cf GW 12 p 11 trad p 249
335 Cf GW 20 E sect10 p 50trad cit p 49 (ldquoEine solche Einsicht ist aber selbst philosophisches Erkennen das daher nur innerhalb der Philosophie faumlllt Eine vorlaumlufige Explication wuumlrde hiemit eine unphilosophische seyn sollen und koumlnnte nicht mehr seyn als ein Gewebe von Voraussetzungen Versicherungen und Raisonnements di von zufaumllligen Behauptungen denen mit demselben Rechte die entgegengesetzten gegenuumlber versichert werden koumlnnenrdquo)
135
exerciacutecio daquilo que se poderia chamar de ldquoprinciacutepio programaacutetico do pirronismordquo opor a
todo argumento ou proposiccedilatildeo o argumento ou proposiccedilatildeo que se lhe contraponha336
A justificaccedilatildeo do fundamento eacute a maneira que o filoacutesofo encontra para evitar que a
filosofia caia viacutetima das aporias ceacuteticas Nesse contexto o comeccedilo desse processo dialeacutetico
que termina com o estabelecimento do fundamento absoluto pode ser considerado como o faz
Hegel condiccedilatildeo a partir da qual se chega ao fundamento todavia essa condiccedilatildeo que eacute o ser
natildeo eacute o incondicionado em-si e para-si337 A este soacute se alcanccedila ao final Esse comeccedilo
portanto natildeo eacute o incondicionado que condicionaria o saber dele derivado Ele eacute apenas a
condiccedilatildeo da qual se parte para ao final do percurso alcanccedilar o fundamento absoluto
Mas entatildeo algueacutem poderia perguntar De que caraacuteter se reveste esse ser que eacute o comeccedilo e
que natildeo o torna viacutetima do ceticismo A um ser posto diria entatildeo o ceacutetico se pode contrapor
um outro com o mesmo direito A resposta de Hegel eacute a seguinte este ser do qual se parte eacute
completamente indeterminado isto eacute natildeo comporta nenhuma determinaccedilatildeo em si mesmo e
nesse sentido ele eacute tambeacutem completamente abstrato338 Essa falta de determinaccedilatildeo interna e
externa que assim permite consideraacute-lo um puro imediato eacute a ldquocondiccedilatildeordquo de que a nosso ver
Hegel utiliza para afastar a filosofia de um ataque ceacutetico O comeccedilo estaria passiacutevel de ser
criticado pelo ceacutetico caso fosse um mediatizado quer dizer caso contivesse em si uma
determinaccedilatildeo algo que acarretaria a existecircncia de uma relaccedilatildeo de um para com um outro de
um determinado relacionado a outro determinado Dessa maneira natildeo teriacuteamos efetivamente
um comeccedilo pois um comeccedilo que eacute o ser no qual jaacute houvesse um conteuacutedo seria jaacute mediado
e desse modo passiacutevel da criacutetica ceacutetica
Eacute curioso notar que Hegel chame a esse puro ser imediato e indeterminado de absoluto
Mas absoluto aqui natildeo significa que estejamos na posse daquele incondicionado do qual se
derive o sistema assim como poderia ocorrer pelo menos eacute o que nos parece dizer Hegel aos
filoacutesofos dogmaacuteticos O comeccedilo tem de ser absoluto no sentido de que ldquoele natildeo permite nada
pressupor natildeo deve ser mediado por nada nem ter um fundamentordquo339 O absoluto ou o puro
336 Cf HP I 12
337 Cf GW 12 p 22 tr p263
338 Cf GW 21 59 tr p 94
339 Cf GW 21 56 trad p 91 (ldquo[] er darf so nichts voraussetzen muszlig durch nichts vermittelt seyn noch einen Grund habenrdquo) Ou ainda ldquoQue o comeccedilo comeccedilo da filosofia eacute dele natildeo pode ser tirado propriamente nenhuma determinaccedilatildeo mais precisa ou um conteuacutedo positivo para o mesmo Pois aqui no comeccedilo onde a coisa
136
ser portanto eacute o que natildeo estaacute a nada relacionado mas nessa sua indeterminaccedilatildeo ele eacute ao
mesmo tempo unilateral340 Como veremos adiante por meio da exposiccedilatildeo do meacutetodo essa
unilateralidade seraacute na terminologia da especulaccedilatildeo hegeliana suspensa mediante a
autodeterminaccedilatildeo dialeacutetica desse ser Eacute somente com a exposiccedilatildeo do meacutetodo da filosofia
especulativa que teremos talvez condiccedilotildees de melhor compreender o que eacute esse comeccedilo ao
mesmo tempo unilateral e absoluto e que aleacutem disso por estarmos fora do ciacuterculo do
entendimento estamos eacute o que pretende Hegel fora do alcance da criacutetica ceacutetica
Toda essa longa digressatildeo acerca do porquecirc o conceito constitui o terceiro momento da
Ciecircncia da Loacutegica obrigou-nos a que nos remetecircssemos a abordar a temaacutetica da
fundamentaccedilatildeo da filosofia em Hegel Desse modo pudemos comeccedilar a compreender porque
na Loacutegica hegeliana o fundamento somente se estabelece ao final apoacutes um processo dialeacutetico
de justificaccedilatildeo que tem seu iniacutecio no puro ser indeterminado Se o conceito eacute a verdade do ser
e da essecircncia na unidade de ambos no mesmo conceito pareceria estranho que se comeccedilasse
com algo que pressupotildee o conhecimento do que sejam ser e essecircncia ou como assinala Hegel
ldquoentatildeo surgiria a questatildeo do que se entende por ser e essecircncia e como os dois termos vecircm a
condensar-se na unidade do conceitordquo341
O conceito como ideacuteia absoluta fundamenta regressivamente todas as etapas do percurso
da Loacutegica Como meacutetodo estaacute na base do processo dialeacutetico que se desenrola do ser ateacute a
ideacuteia absoluta todavia soacute temos conhecimento do que eacute o meacutetodo a partir desse processo de
justificaccedilatildeo do mesmo por meio do desdobrar-se do seu conteuacutedo que nada menos eacute que o
sistema do loacutegico342
mesma ainda natildeo estaacute aiacute-presente a filosofia eacute uma palavra vazia ou uma qualquer representaccedilatildeo suposta natildeo justificadardquo (ldquoDaszlig der Anfang Anfang der Philosophie ist daraus kann eigentlich auch keine naumlhere Bestimmung oder ein positiver Inhalt fuumlr denselben genommen werden Denn die Philosophie ist hier im Anfange wo die Sache selbst noch nicht vorhanden ist ein leeres Wort oder irgend eine angenommene ungerechtfertigte Vorstellungrdquo) In GW 21 59 trad p 94
340 ldquoMas ele precisa ser do mesmo modo tomado essencialmente na sua unilateralidade de ser o puro-imediato mesmo porque ele aqui estaacute como comeccedilordquo (ldquoAber er muszlig ebenso wesentlich nur in der Einseitigkeit das Rein-Unmittelbare zu seyn genommen werden eben weil es hier als der Anfang istrdquo) In GW 21 59 trad p 94
341 Cf Werke 8 E sect159 Adendo p 305 trad citp 289 (ldquo[]so entstaumlnde die Frage was man sich unter dem Sein und was unter dem Wesen zu denken hat und wie diese beiden dazu kommen in die Einheit des Begriffs zusammengefaszligt zu werdenrdquo)
342 Cf GW 20 E sect237 pp 228-229 trad cit p 367
137
Dentro do contexto das anaacutelises precedentes podemos agora compreender porque a
exposiccedilatildeo do meacutetodo somente seja feita no capiacutetulo final do livro Cabe portanto agora
tratar mediante a anaacutelise do capiacutetulo final da Ciecircncia da Loacutegica ndash a Ideacuteia Absoluta ndash de
compreender o significado do meacutetodo especulativo meacutetodo pelo qual a filosofia eacute o que
almeja Hegel potildee-se entre outras coisas a salvo da criacutetica do ceticismo ao dogmatismo
De acordo com o exposto ficou consignado que a determinaccedilatildeo da ideacuteia ou mais
precisamente da ideacuteia absoluta envolveu um processo dialeacutetico de determinaccedilatildeo
consubstanciado no todo do percurso da Ciecircncia da Loacutegica343 Essa ideacuteia que eacute como jaacute
vimos o fundamento da Loacutegica carrega em si todas as determinaccedilotildees desdobradas no
decorrer do processo O interesse principal da filosofia eacute a ideacuteia absoluta pois esta eacute seu uacutenico
objeto e conteuacutedo Cabe agrave filosofia reconhececirc-la nas diversas configuraccedilotildees que ela assume
no seu processo de autodeterminaccedilatildeo ou particularizaccedilatildeo Mas a ideacuteia absoluta todavia ainda
que determinada por todas as figuras apresentadas no curso da Loacutegica344 mostra-se
determinada enquanto ideacuteia absoluta como forma
Nessa sua determinaccedilatildeo de forma que faz com que a ideacuteia seja portanto ldquopura e
simplesmente como a ideacuteia universalrdquo345 natildeo tem ela como forma uma oposiccedilatildeo ao conteuacutedo
como se este fosse apenas como um outro e como um dado perante a forma e que a ela se
relacionasse346 Em outras palavras a forma natildeo eacute apenas uma pura forma abstrata que tem
diante de si e em oposiccedilatildeo um conteuacutedo dado qualquer Apesar da ideacuteia absoluta apresentar-se
na sua determinidade peculiar de forma isto natildeo significa eacute o que veremos a seguir que seu
conteuacutedo seja composto de um material tomado dalhures e completamente desvinculado do
processo de autodeterminaccedilatildeo da ideacuteia Ela estaacute na origem desse processo de determinaccedilatildeo do
343 Cf GW 12 p 237 trad p 561
344 ldquoA ideacuteia como unidade da ideacuteia subjetiva e da objetiva eacute o conceito da ideacuteia para o qual a ideacuteia como tal eacute o objeto para o qual o objeto eacute ela um objeto em que vieram reunir-se todas as determinaccedilotildeesrdquo In GW 20 E sect236 p 228 trad cit p 366
345 Cf GW 12 p 237 trad p 561 (ldquoals die schlechthin allgemeine Ideerdquo)
346 Cf Ibidem p 237 trad p 561
138
conteuacutedo mas considerada contudo na sua pura essecircncia como ela se encontra incluiacuteda na
mais simples identidade em seu conceito a mesma ainda natildeo se fez aparecer como
determinaccedilatildeo da forma347 A Loacutegica segundo Hegel representa o automovimento da ideacuteia
absoluta mas que nesse efetivo movimentar-se a ideacuteia estaacute presente apenas como aquilo que
impulsiona348 o processo e na medida em que este se cristaliza em formas determinadas Eacute
como se a ideacuteia jaacute natildeo mais aiacute estivesse assim como a palavra originaacuteria ldquoque eacute uma
exteriorizaccedilatildeo mas uma tal que como exterior imediatamente desaparece na medida
justamente que existerdquo349
Ainda que preliminarmente acabamos de observar a existecircncia de uma imbricaccedilatildeo muacutetua
entre forma e conteuacutedo na ideacuteia absoluta mas o que interessa agora considerar pela anaacutelise do
meacutetodo diz respeito a o que eacute essa forma que constitui a ideacuteia e aleacutem disso uma forma que
natildeo pode ser distinguida de seu conteuacutedo mas que na sua apresentaccedilatildeo como meacutetodo seu
conteuacutedo natildeo estaacute ainda desdobrado Isto somente ocorreraacute como decorrecircncia do processo de
determinaccedilatildeo dessa forma
Segundo Hegel o meacutetodo como forma e ideacuteia universal natildeo pode ser confundido
como um simples modo de conhecer entre outros Ele eacute dotado de uma abrangecircncia bem
maior e para ser mais preciso como ldquoa alma de toda objetividade e todo conteuacutedo
determinado somente tem sua verdade na formardquo350 O meacutetodo como veremos eacute bem mais
que um simples modo de conhecer que um simples modo de conhecer determinados
conteuacutedos Ele ldquoeacute o conceito que se sabe a si mesmo que tem a si mesmo por objeto como o
absoluto tanto subjetivo quanto objetivo por conseguinte como o puro corresponder do
conceito e de sua realidade como uma existecircncia que eacute ele (o conceito) mesmordquo351
347 Cf Ibidem p 237 trad p 560
348 Vale notar que Hegel tambeacutem chama a ideacuteia absoluta de supremo e uacutenico impulso (houmlchster und einziger Trieb) Cf Ibidem p 238 trad cit p 562
349 Cf GW 12 p 237 trad 560 (ldquodas eine Aeusserung ist aber eine solche die als Aeusseres unmittelbar wieder verschwunden ist indem sie istrdquo)
350 Ibidem p 237 trad p 561 (ldquo[hellip] die Seele aller Objectivitaumlt ist und aller sonst bestimmte Inhalt seine Wahrheit allein in der Form hat rdquo)
351 Ibidem p 238 trad p 561 (ldquoist daraus als der sich selbst wissende sich als das Absolute sowohl Subjective als Objective zum Gegenstande habende Begriff somit als das reine Entsprechen des Begriffs und seiner Realitaumlt als eine Existenz die er selbst ist hervorgegangen rdquo)
139
Mas antes de prosseguir na anaacutelise da Ideacuteia Absoluta talvez seja necessaacuterio retroceder
um pouco na Loacutegica e ainda que sumariamente tratar do significado do conceito de conceito
e tambeacutem do significado de ideacuteia na filosofia hegeliana Tal remissatildeo aos momentos da
Loacutegica no qual satildeo expostos e comentados esses termos eacute relevante na medida em que assim
ficaraacute mais claro o motivo pelo qual a Ideacuteia Absoluta ndash ou o meacutetodo ndash seja considerada o
conceito que sabe a si mesmo tanto subjetiva quanto objetivamente ou ainda que o meacutetodo
seja ldquoo movimento do proacuteprio conceito [] que o conceito eacute tudo e seu movimento eacute a
atividade universal absoluta o movimento que se determina e se realiza a si mesmordquo352
Natildeo pretendemos como haacute pouco foi dito efetuar uma anaacutelise pormenorizada do
conceito hegeliano de conceito Queremos antes apenas apresentaacute-lo em suas linhas gerais e
na medida que possamos entatildeo nos municiar dos elementos suficientes para compreender
porque a ideacuteia eacute o conceito adequado353 O conceito tal como veremos aqui eacute apenas o que
poderiacuteamos chamar de conceito em sentido estrito
Assim o conceito considerado de modo geral compotildee-se de trecircs momentos
universalidade particularidade e singularidade No seu processo de determinaccedilatildeo ou
diferenciaccedilatildeo ele se daacute cada um desses momentos que mesmo considerados cada um na sua
determinaccedilatildeo proacutepria cada um deles natildeo deixa de espelhar o conceito como um todo354 Esse
processo de determinaccedilatildeo eacute segundo Hegel um processo dialeacutetico fundado no proacuteprio
conceito e mediante o qual ele se produz a partir de si mesmo e assim passa agrave realidade355
Como o conceito portanto somente se torna aquilo que por ele proacuteprio foi gerado e nesse
sentido ele eacute livre em virtude dessa sua autodeterminaccedilatildeo
352 Ibidem p 238 trad p 562 (ldquodie Bewegung des Begriffs selbst [hellip] daszlig der Begriff Alles und seine Bewegung die allgemeine absolute Thaumltigkeit die sich selbst bestimmende und selbst realisirende Bewegung istrdquo)
353 Ibidem p 44 trad p 294
354 Ibidem p32 trad p 277 e tambeacutem GW 20 E sect 160 p 177 trad p 292
355 GW 12 p 25 trad p 267
140
A determinaccedilatildeo completa do conceito como conceito total se faz por essa
diferenciaccedilatildeo de si a partir de si mesmo que conforme Hegel eacute uma dupla negaccedilatildeo ndash negaccedilatildeo
da negaccedilatildeo ndash por meio da qual o conceito se relaciona a si e assim constitui uma absoluta
identidade consigo mesmo356 Independente do conceito posto no seu momento de
universalidade todo esse processo acima descrito tambeacutem pode ser chamado de universal Eacute o
que Hegel faz ao referi-lo como a universalidade do conceito357 Desse modo o universal
pode ser tanto o processo de determinaccedilatildeo no seu todo e efetuado mediante essa negatividade
absoluta358 quanto o universal que eacute momento do conceito nessa sua mesma determinaccedilatildeo
Para que fique claro o que eacute o conceito como nele ocorrem esses trecircs momentos
constituintes do mesmo eacute preciso compreender como essa dupla negaccedilatildeo nele opera Assim
o universal primeiramente eacute o indeterminado sua determinaccedilatildeo eacute esta mas ele entatildeo torna-se
particular ao se determinar ou seja ao se negar ndash primeira negaccedilatildeo ndash esse particular por sua
vez que adveacutem da negaccedilatildeo do universal eacute entatildeo negado ndash segunda negaccedilatildeo ou negaccedilatildeo da
negaccedilatildeo ndash e dessa maneira se potildee a singularidade359 A segunda negaccedilatildeo mediante a qual
surge a singularidade leva o conceito a tornar-se novamente universal mas um universal
superior um universal que em virtude dessa negatividade absoluta pela qual o conceito eacute
relaccedilatildeo a si saiu de si ao se determinar mas termina por retornar novamente para junto de
si360 Eacute importante deixar registrado que nesse seu sair de si isto eacute nesse determinar-se do
conceito a determinidade que surgiu eacute uma diferenccedila (Unterschied) mas uma diferenccedila que
adveio do proacuteprio determinar-se do conceito361
356 Ibidem p 33 trad p 279
357 Ibidem p 33 trad p 279
358 O universal no sentido indicado tambeacutem eacute chamado de potecircncia criadora (schoumlpferische Macht) como negatividade absoluta Cf GW 12 p 36 trad p 283
359 Ibidem p 35 trad p 281
360 ldquoOra o universal do conceito natildeo eacute simplesmente algo comum ante o qual o particular tem sua consistecircncia para si mas eacute antes o que se particulariza (o que se especifica) a si mesmo e em seu outro permanece em uma imperturbada clareza junto de si mesmordquo (ldquoNun aber ist das Allgemeine des Begriffs nicht bloszlig ein Gemeinschaftliches welchem gegenuumlber das Besondere seinen Bestand fuumlr sich hat sondern vielmehr das sich selbst Besondernde (Spezifizierende) und in seinem Anderen in ungetruumlbter Klarheit bei sich selbst Bleibenderdquo) Cf Werke 8 E sect163 Adendo p 311 trad p 297
361 GW 12 p 38 trad p 285
141
A singularidade nota Hegel ao mesmo tempo que leva o conceito a retornar a si
mesmo com a negaccedilatildeo da particularidade por meio da operaccedilatildeo da negaccedilatildeo da negaccedilatildeo
tambeacutem faz com que o conceito ao se singularizar se perca362 Essa perda do conceito
esclarece Hegel diz respeito ao fato de que ele ao tornar-se singular363 ele se potildee (treten) na
realidade efetiva (Wirklichkeit) Eacute como se o conceito deixasse de ser essa dialeacutetica oriunda de
sua proacutepria atividade e se tornasse algo soacutelido e concreto Pareceria que o conceito desse
modo natildeo mais pudesse levar adiante esse processo de autodeterminaccedilatildeo Cremos que seja
nesse sentido em que haacute uma espeacutecie de cristalizaccedilatildeo do conceito por meio de sua efetiva
penetraccedilatildeo na realidade que Hegel considere haver uma perda do conceito
O conceito poderiacuteamos entatildeo dizer torna-se realidade apenas quando eleva-se agrave ideacuteia
ldquoque eacute somente a unidade do conceito e da realidaderdquo364 Uma realidade que eacute criaccedilatildeo do
proacuteprio conceito365 Mas neste momento ainda temos apenas o conceito em sua abstraccedilatildeo
Conceito abstrato aqui deve ser entendido segundo Hegel portanto no sentido de que ldquoo
elemento do conceito eacute o pensar em geral e natildeo o sensiacutevel empiricamente concreto e de outra
parte enquanto natildeo eacute ainda a ideacuteiardquo366
E uma vez feitas as consideraccedilotildees acima a respeito da estrutura do conceito cabe
agora tratar do conceito que se torna realidade ou mais precisamente da ideacuteia
O conceito stricto sensu foi o que acabamos ver tem apenas em projeto aquilo de que
a ideacuteia seraacute a realizaccedilatildeo a produccedilatildeo da objetividade que adveacutem da proacutepria atividade do
conceito como ideacuteia
362 Ibidem p 51 trad p 303
363 Hegel tambeacutem se refere agrave singularidade como a determinidade determinada
364 GW 12 p 20 trad p 262 (ldquo[hellip] welche erst die Einheit des Begriffs und der Realitaumlt ist rdquo)
365 Ibidem p 36 trad p 283
366 Cf GW 20 E sect164 p 180 trad p 299 (ldquo[]als das Denken uumlberhaupt und nicht das empirisch concrete Sinnliche sein Element theils als er noch nicht die Idee istrdquo)
142
O conceito como ideacuteia eacute tanto subjetivo quanto objetivo ldquoA ideacuteia eacute o verdadeiro em si
e para si a unidade absoluta do conceito e da objetividade Seu conteuacutedo ideal natildeo eacute outro que
o conceito em suas determinaccedilotildees seu conteuacutedo real eacute somente a exposiccedilatildeo do conceito que
ele se daacute na forma de um ser-aiacute exterior e estando essa figura incluiacuteda na idealidade do
conceito na sua potecircncia assim se manteacutem na ideacuteiardquo367
A subjetividade da ideacuteia natildeo pode ser tomada como aquela que se relacionasse a um
objeto que fosse independente da proacutepria atividade subjetiva A determinaccedilatildeo da objetividade
eacute fruto da atividade subjetiva como negatividade absoluta O que eacute posto eacute posto pelo sujeito
torna-se diferente dele mas esse diferente retorna agrave identidade com o sujeito por meio dessa
negaccedilatildeo autoreferencial A objetividade assim natildeo estaacute afastada e separada do sujeito que a
ela se relaciona Natildeo temos aqui um sujeito como uma mera forma abstrata que exteriormente
se relacionasse a um objeto dado O sujeito se determina ndash e nesse sentido ele eacute autofinalidade
e impulso ndash e nessa sua atividade a objetividade toma forma e adquire subsistecircncia ao estar
perpassada pelo sujeito368 A objetividade dessa maneira tem sua consistecircncia e sentido
vinculada agrave atividade subjetiva da qual se originou e agrave qual retorna por meio desse processo
dialeacutetico imanente
O conceito realizado da ideacuteia se apresenta de modo condensado nessa unidade do
conceito e da objetividade na qual estaacute resolvido (aufgeloumlszligst) o processo de determinaccedilatildeo da
ideacuteia processo pelo qual a ideacuteia eacute ldquo [] a relaccedilatildeo da subjetividade sendo para si do simples
conceito e de sua objetividade distinta dela [] Ela eacute como essa relaccedilatildeo o processo de se
separar (dirimieren) na individualidade e na natureza inorgacircnica desta e de trazer novamente
essa por sob o poder (Gewalt) do sujeito e de retornar agrave primeira simples universalidade A
identidade da ideacuteia consigo mesma eacute uma e a mesma coisa com o processordquo369
367 Cf Ibidem E sect213 p 215 trad p 348 (ldquoDie Idee ist das Wahre an und fuumlr sich die absolute Einheit des Begriffs und der Objectivitaumlt Ihr ideeller Inhalt ist kein anderer als der Begriff in seinen Bestimmungen ihr reeller Inhalt ist nur seine Darstellung die er sich in der Form aumluszligerlichen Daseyns gibt und diese Gestalt in seiner Idealitaumlt eingeschlossen in seiner Macht so sich in ihr erhaumlltrdquo)
368 GW 12 p 176 trad p 475-476
369 Ibidem p 177 trad p 476-477 (ldquo[] die Beziehung der fuumlr sich seyenden Subjectivitaumlt des einfachen Befriffs und seiner davon unterschiedenen Objectivitaumlt [] Sie ist als diese Beziehung der Proceszlig sich in die Individualitaumlt und in deren unorganische Natur zu dirimiren und wieder diese unter die Gewalt des Subjects
143
A par das exposiccedilotildees efetuadas a respeito do conceito como conceito e da ideacuteia torna-
se mais faacutecil eacute o que cremos apreender o significado desse meacutetodo que eacute o movimento do
conceito em sua maior amplitude do conceito que se autodetermina e dessa maneira
perpassa e daacute forma agrave objetividade que como jaacute tivemos oportunidade de observar eacute fruto de
sua proacutepria atividade Pela atividade conceitual do meacutetodo atuante em cada coisa a razatildeo
pode por meio de si proacutepria encontrar e reconhecer a si mesma em tudo370
Cabe agora contudo avanccedilar propriamente na analise do meacutetodo isto eacute na anaacutelise
daquilo em que consiste a operaccedilatildeo efetiva desse meacutetodo por meio do qual o conceito se
realiza
Com efeito no iniacutecio de sua exposiccedilatildeo do ldquomecanismordquo de funcionamento do meacutetodo
Hegel nos chama a atenccedilatildeo para o fato de que as determinaccedilotildees que constituem o conceito e
suas relaccedilotildees tem de ser consideradas agora no seu significado de determinaccedilotildees do meacutetodo
As determinaccedilotildees do conceito a saber universalidade particularidade e singularidade eacute o
que adiante veremos reaparecem como as determinaccedilotildees que articulam o meacutetodo
A universalidade
Assim para comeccedilar do comeccedilo como jaacute o proacuteprio Hegel pede371 eacute preciso que
compreendamos o que eacute esse comeccedilo a partir do qual se inicia a determinaccedilatildeo do conceito
como ideacuteia absoluta
No comeccedilo o que pode entatildeo haver No comeccedilo apenas haacute um imediato e um
imediato que como determinaccedilatildeo conceitual ldquotem o sentido e a forma da universalidade
abstratardquo372
zuruumlckzubringen und zu der ersten einfachen Allgemeinheit zuruumlckzukehren Die Identitaumlt der Idee mit sich selbst ist ein mit dem Processerdquo)
370 Ibidem p 238 trad p 562
144
Anteriormente tivemos oportunidade de observar373 na importante questatildeo acerca do
comeccedilo da filosofia que somente torna-se possiacutevel cogitar de um comeccedilo que natildeo seja
arbitraacuterio e nesta medida seria ele totalmente vulneraacutevel agrave criacutetica ceacutetica se esse comeccedilo
implique a total falta de pressuposiccedilotildees ou como prefere Hegel que jaacute natildeo seja um mediado
e por isso entatildeo estaria em relaccedilatildeo com um outro A mediaccedilatildeo envolve a relaccedilatildeo de um para
com um outro Se pensarmos por conseguinte no tropo da relatividade o que faz o ceacutetico
Ele mostra por meio desse tropo que as coisas em geral (natildeo importa se sensiacuteveis ou
inteligiacuteveis) acabam aparecendo sempre numa determinada relaccedilatildeo entre elas que essa
relatividade de todas as coisas afasta a hipoacutetese da constituiccedilatildeo de algo natildeo-relativo logo
absoluto Nesse sentido compreendemos a preocupaccedilatildeo de Hegel com a necessidade de um
comeccedilo que natildeo seja mediado Por isso a declaraccedilatildeo tanto no comeccedilo da Ciecircncia da Loacutegica
quanto no seu uacuteltimo capiacutetulo A Ideacuteia Absoluta a respeito do comeccedilo consistir em um
imediato
O imediato eacute sem pressupostos portanto ele natildeo eacute posto pois caso assim o fosse
seria um mediado Mas se ele eacute imediato diria o ceacutetico ele eacute um posto e como tal eacute possiacutevel
que um outro seja imediatamente contraposto a ele com o mesmo direito Ocorre aqui no
entanto que Hegel natildeo pensa o imediato nesses termos Imediato segundo ele eacute o abstrato e
o completamente indeterminado Se ele eacute imediato eacute o que o proacuteprio significado da palavra
nos diz eacute porque eacute natildeo-mediado A mediaccedilatildeo envolve a determinaccedilatildeo logo se temos o
imediato temos o indeterminado No comeccedilo soacute temos o indeterminado ldquo[] porque o
comeccedilo como comeccedilo do pensar deve ser totalmente abstrato universal totalmente forma
sem nenhum conteuacutedordquo374
Esta universalidade que constitui o comeccedilo por ser imediata e indeterminada
possuiraacute e de acordo com a discussatildeo em torno do comeccedilo da Loacutegica375 tambeacutem no meacutetodo
o significado do ser376
371 Cf Ibidem p 239 trad p 563
372 Ibidem p 239 trad p 563 (ldquo[] den Sinn und die Form abstracter Allgemeinheit hatrdquo)
373 Ver a propoacutesito nossa discussatildeo a respeito do comeccedilo da filosofia agraves paacuteginas 132-137
374 GW 21 p 60 trad p 95 (ldquo[hellip] weil der Anfang als des Denkens ganz abstract ganz allgemein ganz Form ohne allen Inhalt seyn sollrdquo
375 Cf GW 21 ldquoCom que tem de ser feito o comeccedilo da ciecircnciardquo (ldquoWomit muszlig der Anfang der Wissenschaft gemacht werdenrdquo) pp 53-65 trad pp 87-101
145
Nessa aproximaccedilatildeo da universalidade imediata com o ser haacute dois aspectos a serem
considerados em primeiro lugar o fato do meacutetodo ser o ponto de chegada de toda a Loacutegica e
ao mesmo tempo seu fundamento em segundo lugar o caraacuteter abstrato e indeterminado do
puro ser
Com respeito ao primeiro aspecto haacute que se lembrar o que jaacute foi comentado acerca do
fundamento se constituir apenas ao final do processo de determinaccedilatildeo do conceito na
Loacutegica377 O fundamento natildeo pode ser dado no comeccedilo porque o comeccedilo tem de ser o
imediato e por conseguinte indeterminado O comeccedilo que jaacute fosse o fundamento pareceria
segundo Hegel uma espeacutecie de pressuposiccedilatildeo arbitraacuteria De fato o fundamento estaacute presente
e atuante no iniacutecio todavia sua posiccedilatildeo efetiva como fundamento precisa ser justificada e
essa justificaccedilatildeo na sua completude necessita do desdobramento dialeacutetico que constitui todo o
percurso da Loacutegica ateacute que se atinja o fundamento Nesse ponto de chegada que eacute o
fundamento faz-se a conexatildeo com o comeccedilo E no comeccedilo noacutes temos o puro ser imediato
que vai se determinar de acordo com esse meacutetodo (ou fundamento) que eacute imanente ao
mesmo Desse modo eacute o que nos parece fica em parte explicada a aproximaccedilatildeo que Hegel
faz da universalidade imediata que constitui o meacutetodo em seu comeccedilo com o ser
Em relaccedilatildeo ao segundo aspecto o comeccedilo se faz com o ser porque como jaacute vimos ele
eacute a completa falta de determinaccedilatildeo sem nenhuma mediaccedilatildeo e portanto natildeo relacionado a
nenhum outro Esse comeccedilo em virtude de sua indeterminaccedilatildeo e abstraccedilatildeo eacute um comeccedilo
absoluto ldquoo que constitui o comeccedilo o comeccedilo mesmo tem de ser tomado por conseguinte
como um algo que natildeo pode ser analisado tem de ser tomado em sua simples imediatez natildeo
preenchida portanto como ser como o completamente vaziordquo378
O ser diriacuteamos por nossa conta eacute essa determinidade da indeterminaccedilatildeo que preenche
os requisitos para que se constitua em comeccedilo O ser na sua absoluta vacuidade cumpre a
contento a sua obrigaccedilatildeo de constituir o ponto zero do processo de determinaccedilatildeo do conceito
loacutegico
376 Cf GW 12 p 239 trad p 564
377 Ver a respeito pp 132-137
378 GW 21 p 62 trad p 97 (ldquoWas den Anfang macht der Anfang selbst ist daher als ein Nicht-analysirbares in seiner einfachen unerfuumlllten Unmittelbarkeit also als Seyn als das ganz Leere zu nehmenrdquo)
146
E o que temos entatildeo no ser que estaacute no comeccedilo Apenas a relaccedilatildeo abstrata a si
mesmo379 O ser assim como o universal e como universal imediato eacute a negaccedilatildeo completa de
toda determinaccedilatildeo e na medida em que nega todo outro volta-se para si e entatildeo apenas se
relaciona a si mesmo Essa relaccedilatildeo abstrata a si constitui-se em virtude dessa completa falta
de determinaccedilatildeo
Dessa indeterminaccedilatildeo e abstraccedilatildeo do ser o meacutetodo pode cumprir ldquoa exigecircncia de
realizaccedilatildeo do conceito em geral que natildeo reside no proacuteprio comeccedilo mas que eacute antes a meta e
a tarefa de todo ulterior desenvolvimento do conhecerrdquo380
Mas se o ser eacute o imediato que na sua relaccedilatildeo a si eacute vazia e inteiramente
indeterminada como se pode efetivamente dar esse processo de determinaccedilatildeo pelo qual o
conceito se realiza
Segundo Hegel o ser tem a determinidade de ser simples e universal e em virtude
dessa determinidade ele eacute deficiente (mangelhaft) Eacute o meacutetodo como forma objetiva imanente
que faz com que esse comeccedilo imediato deficiente seja dotado do impulso que o faz se
conduzir adiante no processo de determinaccedilatildeo desse ser inicial381
Jaacute vimos quando tratamos do significado do conceito de conceito382 que no iniacutecio do
seu processo ndash em si mesmo dialeacutetico ndash de autodeterminaccedilatildeo o conceito como universal por
sua proacutepria abstraccedilatildeo eacute incompleto383 E este universal abstrato do iniacutecio do meacutetodo que
tambeacutem eacute conceito eacute do mesmo modo incompleto Essa incompletude do universal se
apresenta na forma de uma negaccedilatildeo que o afeta384 Ora essa negaccedilatildeo que o afeta eacute a mesma
que estaacute presente na determinaccedilatildeo do ser no iniacutecio da Loacutegica Natildeo nos esqueccedilamos que o
universal abstrato como Hegel nos indicou tem o mesmo significado que o ser385 Tanto o ser
379 Cf GW 12 p 239 trad p 564
380 Ibidem p 240 trad p 564 (ldquo[] die Foderung der Realisirung des Begriffs uumlberhaupt gemeynt welche nicht im Anfange selbst liegt sondern vielmehr das Ziel und Geschaumlfte der ganzen weitern Entwicklung des Erkennens istrdquo)
381 Cf Ibidem p 240 trad p 565
382 Ver a respeito pp 139-141
383 Cf GW 12 p 24 trad p 267
384 Cf Ibidem p 240 trad p 565
385 Cf Ibidem p 239 trad p 564
147
como o universal satildeo indeterminados e completamente vazios logo eles natildeo satildeo nada Seraacute
somente no processo determinaccedilatildeo desse universal nele mesmo que esse universal inicial se
torna concreto e deixa para traacutes essa unilateralidade que tem como abstrato386 Se no iniacutecio
natildeo podemos ter uma totalidade concreta isto se deve ao caraacuteter deficiente do comeccedilo que
somente teraacute condiccedilotildees de ser sanado na determinaccedilatildeo progressiva do conceito de acordo
com o meacutetodo absoluto que ldquotoma o determinado como seu proacuteprio objeto visto que ele (o
meacutetodo) eacute o princiacutepio e a alma imanente delerdquo387
De acordo com as anaacutelises precedentes natildeo haacute como supor que desde o iniacutecio do
processo o absoluto esteja posto Eacute justamente isso que Hegel faz questatildeo de ressaltar O
iniacutecio eacute apenas um momento abstrato e unilateral Soacute com a autodeterminaccedilatildeo do universal o
conceito deixa de ser em-si e tornar-se para-si de modo que o universal seja igualmente
singular e sujeito388 ldquoSomente em seu acabamento (Vollendung) ele eacute o absolutordquo389
Do universal para o particular
Nesse processo de determinaccedilatildeo do conceito da ideacuteia absoluta (ou meacutetodo) o
universal imediato torna-se um particular ldquo[] o imediato inicial eacute posto como mediado
relacionado a um outro []rdquo390 Temos aqui o primeiro negativo isto eacute o particular que nega
esse universal imediato Esse segundo que surge o particular na sua negaccedilatildeo desse primeiro
no processo de determinaccedilatildeo o imediato conserva-o e o manteacutem em si391 Nessa negaccedilatildeo natildeo
ocorre portanto adverte Hegel aquilo que usualmente eacute resultado da dialeacutetica como meacutetodo
386 ldquoNatildeo haacute tambeacutem por isso seja na realidade efetiva ou em pensamento nada tatildeo simples e tatildeo abstrato como usualmente se imaginardquo Cf GW 12 p 240 trad p 565 (ldquoEs gibt deswegen auch es sey in der Wirklichkeit oder in Gedanken kein so Einfaches und so Abstractes wie man es sich gewoumlhnlich vorstelltrdquo)
387 GW 12 p 241 trad p 567 (ldquo[hellip] nimmt das Bestimmte aus ihrem Gegenstande selbst da sie selbst dessen immanentes Princip und Seele istrdquo)
388 GW 12 p 241 trad p 566
389 GW 12 p 241 trad p 566 (ldquoNur in seiner Vollendung ist es das Absoluterdquo)
390 GW 12 p 244 trad p 571 (ldquo[hellip] das zuerst Unmittelbare hiemit als Vermitteltes bezogen auf ein andres [hellip] ist rdquo)
391 Ibidem p 245 trad p 571
148
subjetivo a saber que a negaccedilatildeo que adveacutem seja meramente vazia o negativo vazio ou o
nada sem nenhum conteuacutedo Abrindo um parecircnteses uma espeacutecie de negaccedilatildeo que ocorre por
exemplo no ceticismo392 No que respeita agrave negaccedilatildeo atuante no meacutetodo o que foi negado
para que surgisse o particular continua a determinaacute-lo Como mediado o particular eacute fruto
dessa determinaccedilatildeo do universal como particular
Mas o particular acrescenta Hegel natildeo eacute apenas a determinaccedilatildeo negativa ou mediada
ela eacute aleacutem disso a mediadora (die Vermittelnde)393 Aqui ainda contudo natildeo nos deteremos
mais pormenorizadamente nesse aspecto de mediador que estaacute embutido no particular
Quando tratarmos mais a frente da negaccedilatildeo da negaccedilatildeo aiacute entatildeo ficaraacute claro porque estamos
aqui diante de uma determinaccedilatildeo mediadora Antes disso interessa inicialmente a Hegel
indicar que essa segunda determinaccedilatildeo o particular eacute o outro de um outro Nesse sentido
Hegel denomina o particular como sendo em sua verdade uma relaccedilatildeo ou relacionamento
(Beziehung oder Verhaumlltniszlig)394 Realmente haacute uma relaccedilatildeo da primeira com a segunda
determinaccedilatildeo e eacute preciso segundo Hegel insistir que essa relaccedilatildeo natildeo eacute meramente exterior
como se esse outro fosse indiferente (gleichguumlltig) com respeito ao primeiro395 A relaccedilatildeo com
seu outro isto eacute da segunda determinaccedilatildeo com a primeira constitui uma relaccedilatildeo que se daacute
num uacutenico ldquoobjetordquo O universal que se determina em um outro o particular e assim sai de si
natildeo deixa por esse mesmo motivo de estar em um outro que eacute parte dele mesmo A relaccedilatildeo
entre o positivo e o negativo natildeo eacute jaacute dissemos de exterioridade ao contraacuterio eles satildeo um soacute
o positivo contido no negativo que veio a ser no processo de determinaccedilatildeo Esse
392 ldquoTrata-se com efeito do ceticismo que vecirc sempre no resultado o puro nada tatildeo-somente e abstrai do fato de que esse nada eacute determinadamente o nada daquilo do qual ele procede Mas o nada considerado apenas como o nada daquilo do qual procede eacute na realidade o resultado verdadeiro Eacute pois um nada determinado e possui um conteuacutedo O ceticismo que termina com a abstraccedilatildeo do nada e da vacuidade natildeo pode avanccedilar aleacutem dessa abstraccedilatildeo mas deve esperar que algo de novo se lhe ofereccedila para lanccedilaacute-lo no mesmo abismo vaziordquo No original ldquoSie ist nemlich der Skepticismus der in dem Resultate nur immer das reine Nichts sieht und davon abstrahirt daszlig diszlig Nichts bestimmt das Nichts dessen ist woraus es resultirt Das Nichts ist aber nur genommen als das Nichts dessen woraus es herkoumlmmt in der That das wahrhafte Resultat es ist hiemit selbst ein bestimmtes und hat einen Inhalt Der Skepticismus der mit der Abstraction des Nichts oder der Leerheit endigt kann von dieser nicht weiter fortgehen sondern muszlig es erwarten ob und was ihm etwa neues sich darbietet um es in denselben leeren Abgrund zu werfenrdquo In GW 9 p 57 trad Vaz p 51
393 Cf GW 12 p 245 trad p 572
394 Cf Ibidem p 245 trad p 572
395 Cf Ibidem p 245 trad p 572
149
relacionamento umbilical dos opostos eacute segundo Hegel ldquoa contradiccedilatildeo a dialeacutetica posta de si
proacutepria (da determinaccedilatildeo)rdquo396
Logo a seguir Hegel trata do significado que essa dialeacutetica assume tanto considerada
pelo lado do universal quanto considerada pelo lado do particular Conveacutem de passagem
notar que o que preside esse processo mas ainda sem ser citada eacute a negatividade absoluta
Assim o que temos no universal imediato ou como tambeacutem a ele se refere Hegel no
conceito em si Temos nesse momento inicial em geacutermen o negativo e o momento dialeacutetico
presente nesse iniacutecio consiste nisto ldquoque a diferenccedila (Unterschied) que ele (o conceito)
conteacutem em si nele estaacute postardquo397
Com respeito ao outro o efetivamente determinado a diferenccedila o momento dialeacutetico
consiste na posiccedilatildeo da unidade que nele estaacute contida mas que ainda natildeo estaacute posta398 Ela a
unidade se potildee com a negaccedilatildeo do primeiro negativo o particular A negaccedilatildeo da negaccedilatildeo eacute a
suspensatildeo da contradiccedilatildeo399 Na terminologia do conceito poderiacuteamos dizer que a suspensatildeo
da contradiccedilatildeo consiste na posiccedilatildeo da singularidade por meio da reflexatildeo do conceito em si
mesmo a partir de sua determinidade400 Essa atividade do conceito eacute conduzida pela
negatividade absoluta401 que faz com que tenhamos na singularidade o retorno ao universal
soacute que agora um universal superior natildeo mais imediato e vazio mas agora efetivamente
concreto
Na consideraccedilatildeo desse silogismo que eacute o movimento do conceito observa Hegel a
primeira premissa corresponde ao momento da universalidade e agrave segunda premissa ao
momento da singularidade Ditas as coisas desse modo torna-se um tanto vaga a compreensatildeo
do que sejam essa universalidade e singularidade da primeira e da segunda premissas de todo
o silogismo Aleacutem disso Hegel se refere agrave primeira premissa como analiacutetica e a segunda
396 Cf Ibidem p 245 trad p 572 (ldquo[hellip] der Widerspruch die gesetzte Dialektik ihrer selbst rdquo) Ver tambeacutem a propoacutesito da contradiccedilatildeo pp 84-88
397 Cf Ibidem pp 245-246 trad p 572 (ldquodaszlig die Unterschied den es an sich enthaumllt in ihm gesetzt wirdrdquo)
398 Cf Ibidem p 246 trad p 572
399 Cf Ibidem p 246 trad p 573
400 Cf Ibidem p 49 trad p 300
401 Ou como ainda a denomina Hegel o ponto de virada (der Wendungspunkt) do movimento do conceito Cf Ibidem p 246 trad p 573
150
como sinteacutetica Mas eacute justamente com base nessa dupla denominaccedilatildeo das premissas
denominaccedilatildeo que tambeacutem eacute utilizada para o meacutetodo em si mesmo que talvez fique mais claro
o significado de universalidade e singularidade quando referidas agraves premissas do silogismo
Com efeito o meacutetodo por um lado eacute analiacutetico pois ldquoa ulterior determinaccedilatildeo de seu
universal inicial se encontra somente nele eacute a absoluta objetividade do conceito da qual ele
(o meacutetodo) eacute a certezardquo402 por outro lado o meacutetodo eacute sinteacutetico ldquona medida em que seu
objeto determinado imediatamente como universal simples mediante a determinidade que ele
proacuteprio tem na sua imediatez e universalidade mostra-se como um outrordquo403
Detenhamo-nos primeiro no aspecto analiacutetico do meacutetodo Por ele nossa atenccedilatildeo natildeo
estaacute voltada como no caso do aspecto sinteacutetico para a determinaccedilatildeo efetiva do universal esse
mostrar-se como um outro do mesmo Importa antes aqui salientar que o meacutetodo eacute
absolutamente objetivo em virtude dessa sua capacidade inerente de a partir de si gerar seu
proacuteprio progredir e desenvolvimento Na sua relaccedilatildeo negativa a si o meacutetodo daacute andamento a
esse processo de determinar-se que ao final faz com que se torne novamente idecircntico e igual
a si Dessa maneira ele eacute universal404 Numa outra passagem Hegel indica com respeito ao
caraacuteter analiacutetico do meacutetodo que ele representa a proacutepria relaccedilatildeo no conceito O que isto pode
significar Significa que o meacutetodo como a proacutepria relaccedilatildeo estaacute pensado na sua unidade ou
melhor dizendo nessa relaccedilatildeo negativa a si que se resolve no universal Ao chamar o meacutetodo
de analiacutetico Hegel eacute o que nos parece pretende pocircr o acento nessa unidade do conceito que
eacute o universal e uma unidade que ao mesmo tempo representa esse autorelacionar-se
(Selbstbezuumlglichkeit) do conceito todavia num acircmbito global
Com respeito agora ao outro aspecto o acento recai natildeo nessa unidade e identidade a
si do conceito que conteacutem em si como virtualidade a determinaccedilatildeo mas sim no proacuteprio
determinar-se do universal e com isso nesse seu fazer-se outro por meio da negaccedilatildeo ateacute
constituir-se numa singularidade Aqui importa fundamentalmente aponta para a efetiva
402 Cf Ibidem p 242 trad p 567 (ldquodie weitere Bestimmung ihres anfaumlnglichen Allgemein ganz allein in ihm findet ist die absolute Objectivitaumlt des Begriffes deren Gewiszligheit sie istrdquo)
403 Cf Ibidem p 242 trad p 567 (ldquoindem ihr Gegenstand unmittelbar als einfaches allgemeines bestimmt durch die Bestimmtheit die er in seiner Unmittelbarkeit und Allgemeinheit selbst hat als ein Anderes sich zeigtrdquo)
404 Cf Ibidem p 16 trad p 255
151
atividade de determinaccedilatildeo a partir da qual um outro concretamente surge e se singulariza no
movimento da dupla negaccedilatildeo
O procedimento dialeacutetico do meacutetodo consiste nisso a saber nessa implicaccedilatildeo muacutetua
das determinaccedilotildees do analiacutetico e do sinteacutetico nele presentes Haacute portanto tanto esse
movimento de sair de si do universal inicial e pelo qual se determina como o outro de si
mesmo (o momento sinteacutetico) quanto o retorno ao universal ou agrave unidade de si a partir do
processo de determinaccedilatildeo (momento analiacutetico)405
Dentro do contexto das anaacutelises precedentes talvez fique mais faacutecil entender porque
1) a primeira premissa do silogismo eacute considerada analiacutetica e corresponde ao momento da
universalidade 2) a segunda premissa eacute considerada sinteacutetica e corresponde ao momento da
singularidade
Com relaccedilatildeo agrave primeira premissa Hegel sublinha a universalidade objetiva da mesma
ao notar que o imediato inicial se relaciona imediatamente ao seu outro no qual passou e com
o qual estaacute assim identificado Na universalidade da primeira premissa sabe-se que haacute uma
relaccedilatildeo de um para com seu outro pois a unidade adveacutem dessa relaccedilatildeo e como diz Hegel
dessa comunicaccedilatildeo (Mittheilung)406 E o momento dialeacutetico desse universal consiste
justamente em pocircr essa diferenccedila que aiacute estaacute contida mas de modo latente407
Eacute na segunda premissa que essa diferenccedila estaacute posta a partir dessa relaccedilatildeo do negativo
consigo mesmo a relaccedilatildeo constitutiva dessa mesma premissa Determinada como
singularidade originada portanto da negaccedilatildeo do particular (a segunda negaccedilatildeo) essa
premissa como singularidade aparece inicialmente como se na relaccedilatildeo com o outro ela fosse
apenas por si e diversa408 excludente da outra determinaccedilatildeo a ela relacionada Como sinteacutetica
405 Eacute uacutetil citar neste momento o comentaacuterio de Rainer Schaumlfer a respeito desse vai-e-veacutem entre o sinteacutetico e o analiacutetico no desenvolvimento dialeacutetico do meacutetodo ldquo Dialeacutetica eacute o duplo conhecimento que algo eacute igual a si (momento analiacutetico) na medida em que se altera (sich veraumlndert) (momento sinteacutetico) e que algo ao se alterar eacute consigo mesmo igual isto eacute consigo mesmo torna-se igual Essa constituiccedilatildeo simultacircnea da mesmidade (Selbigkeit) na outridade (Andersheit) e da outridade na mesmidade mostra que o processo analiacutetico natildeo eacute pensaacutevel sem o sinteacutetico e o sinteacutetico natildeo eacute pensaacutevel sem o analiacuteticordquo In Schaumlfer R Die Dialektik und ihrehellip p 259
406 Cf GW 12 p 246 trad p 574
407 Cf Ibidem p 245-246 trad p 572
408 A singularidade como diversa aqui deve ser entendida de acordo com a determinaccedilatildeo reflexiva da diversidade exposta agraves pp 108-113
152
a segunda premissa traz ao primeiro plano esse passar de um no outro a realizaccedilatildeo da divisatildeo
de si do imediato com a posiccedilatildeo do outro409 Esse outro posto pela atividade do conceito
aparece como por si diverso e excludente pois antes de tornar-se singularidade ele antes eacute
particular O particular surge portanto como um diverso com respeito ao universal imediato
contudo no processo da dupla negaccedilatildeo esse particular se determina como singular e como
suspensatildeo da contradiccedilatildeo entre universal imediato e particular retorna agrave unidade
A volta agrave unidade corresponde a um retorno agrave imediatez a partir da mediaccedilatildeo ldquoo
imediato poreacutem mediante a suspensatildeo da mediaccedilatildeo o simples por meio do suspender da
diferenccedila o positivo mediante o suspender do negativo o conceito que se realiza mediante o
ser-outro e mediante o suspender dessa realidade se reuniu consigo e produziu sua realidade
absoluta sua relaccedilatildeo simplesrdquo410
A divisatildeo formal do meacutetodo desde o primeiro imediato ateacute o novo retorno ao
imediato compotildee-se segundo Hegel de quatro partes o primeiro termo eacute o universal
imediato inicial o segundo corresponde ao primeiro negativo ou o particular que se
determina pela negaccedilatildeo do universal o terceiro termo corresponde ao segundo negativo ou a
negaccedilatildeo da negaccedilatildeo por fim temos o quarto termo que natildeo eacute nada mais do que o terceiro
409 ldquo[hellip] porque ela eacute a relaccedilatildeo do diverso como tal ao seu diversordquo (ldquo[] weil sie die Beziehung des Unterschiedenen als solchen auf sein Unterschiedenes istrdquo) Cf GW 12 p 246 trad p 574
410 Cf Ibidem p 248 trad p 575 (ldquodas Unmittelbare aber durch Aufhebung der Vermittlung das Einfache durch Aufheben des Unterschiedes das Positive durch Aufheben des Negativen der Begriff der sich durch das Andersseyn realisirt und durch Aufheben dieser Realitaumlt mit sich zusammengegangen und seine absolute Realitaumlt seine einfache Beziehung auf sich hergestellt hatrdquo) Ou ainda ldquoComo o inicial eacute o universal o resultado eacute entatildeo o singular concreto sujeito o que aquele eacute em si este eacute agora do mesmo modo o para si o universal estaacute posto no sujeito Os dois primeiros momentos da triplicidade satildeo os momentos abstratos natildeo-verdadeiros que por isso mesmo satildeo dialeacuteticos e por meio dessa sua negatividade se fazem sujeito O conceito eacute para noacutes inicialmente natildeo soacute o universal sendo em si como o negativo sendo para si e como tambeacutem o terceiro sendo em si e para si o universal que atravessa todos os momentos do silogismo mas o terceiro [termo] eacute a conclusatildeo na qual ele se mediatiza consigo mesmo mediante sua negatividadedeste modo eacute posto para si como o universal e idecircntico de seus momentosrdquo (ldquoWie das Anfangende das Allgemeine so ist das Resultat das Einzelne Concrete Subject was jenes an sich ist dieses nun ebensosehr fuumlr sich das Allgemeine ist im Subjecte gesetzt Die beyden ersten Momente der Triplicitaumlt sind die abstracten unwahren Momente die eben darum dialektisch sind und durch diese ihre Negativitaumlt sich zum Subjecte machen Der Begriff selbst ist fuumlr uns zunaumlchst sowohl das An sich seyende Allgemeine als dar Fuumlr sich seyende Negative als auch das Dritte an und fuumlr sich seyende das Allgemeine welches durch alle Momente des Schlusses hindurchgeht aber das Dritte ist der Schluszligsatz in welchen er durch seine Negativitaumlt mit sich selbst vermittelt hiemit fuumlr sich als das Allgemeine und Identische seiner Momente gesetzt ist rdquo) In Ibidem p 248 trad p 575
153
apenas que no seu retorno agrave imediatez portanto como segundo imediato ele pode aparecer de
um ponto de vista meramente didaacutetico como quarto nesse processo de determinaccedilatildeo411
O meacutetodo e sua determinaccedilatildeo como sistema
Uma vez feita a anaacutelise do modus operandi do meacutetodo na Ideacuteia Absoluta Hegel toca
entatildeo num tema de fundamental importacircncia a saber a constituiccedilatildeo do sistema Mais uma vez
ele retoma o diaacutelogo com os ceacuteticos pois uma de suas principais preocupaccedilotildees agora talvez a
principal eacute mostrar como na constituiccedilatildeo do sistema a partir do procedimento dialeacutetico
inscrito no meacutetodo a filosofia especulativa natildeo daacute nenhum passo atraacutes de modo que
permitisse ainda novamente abrir a guarda perante o ceacutetico
Assim do percurso de determinaccedilatildeo do conceito observado no meacutetodo a que
chegamos no final Como pudemos ver a um novo universal e no qual todo o processo se
condensa numa nova identidade que ao mesmo tempo eacute uma nova imediatez412 Seraacute a partir
desse novo imediato que justamente pela suspensatildeo da contradiccedilatildeo daacute origem a essa
determinidade simples que teremos um novo comeccedilo e daiacute entatildeo o meacutetodo se amplia na
forma de um sistema413
Isto posto a questatildeo que a nosso ver Hegel potildee e procura responder diz respeito ao
seguinte esse novo comeccedilo a que se chega adveacutem do processo de autodeterminaccedilatildeo do
meacutetodo e em virtude dessa mesma determinaccedilatildeo eacute um comeccedilo determinado Perante essa
determinidade do resultado o proacuteprio comeccedilo inicial que eacute indeterminado tambeacutem eacute um
determinado logo ldquonatildeo deve ser tomado como um imediato mas antes como mediado e
deduzidordquo414 Ora o comeccedilo como mediado e deduzido natildeo seria um comeccedilo destituiacutedo de
pressupostos e seria assim tatildeo arbitraacuterio quanto qualquer outro comeccedilo que a ele se
411 Ibidem p 247 trad p 574
412 Ibidem p 248 trad p 576
413 Ibidem p 248 trad p 576
414 Ibidem p 249 trad p 577
154
contrapusesse com o mesmo direito Hegel se refere especificamente agrave possiacutevel ocorrecircncia de
uma regressatildeo ao infinito em virtude desse caraacuteter mediado do comeccedilo415
Como combater essa possiacutevel criacutetica Abrindo um parecircnteses uma criacutetica sim
possiacutevel mas que natildeo deixa de ser mesmo assim resultado de uma maacute compreensatildeo da
filosofia especulativa Pelo menos da perspectiva hegeliana O fato eacute que Hegel se adianta em
relaccedilatildeo a seus possiacuteveis criacuteticos a nossos olhos fundamentalmente aqui o ceacutetico na tentativa
de natildeo deixar duacutevidas ou perplexidades quanto aos seus propoacutesitos Mas de volta agrave pergunta
acima feita a resposta de Hegel vai no sentido de mostrar que estamos num outro acircmbito que
aquele da filosofia do entendimento ldquoJaacute foi mostrado repetidas vezes que o progresso
infinito em geral pertence agrave reflexatildeo carente de conceito o meacutetodo absoluto que tem o
conceito como sua alma e conteuacutedo natildeo pode levar ao mesmordquo416
O ponto principal da resposta de Hegel agrave criacutetica referente ao caraacuteter determinado do
comeccedilo seja ele o comeccedilo inicial ou o comeccedilo que resulta da dialeacutetica do conceito baseia-se
na jaacute mencionada417 indeterminaccedilatildeo do conceito e sua consequumlente imediaccedilatildeo A
determinaccedilatildeo do comeccedilo e que impede ao mesmo ser considerado um mediado apresenta-se
por meio de sua indeterminaccedilatildeo Nele natildeo haacute nenhum conteuacutedo E natildeo haver conteuacutedo ou ndash o
que eacute o mesmo ndash ser indeterminado significa que natildeo seja admissiacutevel nenhuma regressatildeo
Aleacutem disso o conteuacutedo somente se origina da proacutepria determinaccedilatildeo da forma absoluta que eacute o
meacutetodo O indeterminado passa para o determinado mas o indeterminado apesar de ser um
determinado perante o outro a saber o determinado que dele resulta natildeo eacute contudo ainda a
mediaccedilatildeo no sentido de que fosse um determinado ao qual um outro pudesse ser contraposto
E no caso do comeccedilo que surge da dialeacutetica do conceito Como veremos a mesma
coisa se passa O comeccedilo imediato se determina como um outro e na negatividade absoluta
da relaccedilatildeo a si a contradiccedilatildeo posta eacute suspensa e assim se restabelece a primeira
indeterminidade418 O novo comeccedilo eacute sim um comeccedilo mediado e determinado mas ele eacute tal
somente no que se refere a ser resultado desse processo que ele traz conservado dentro dele
Esse novo comeccedilo eacute uma nova unidade que por isso mesmo constitui uma nova imediaccedilatildeo e
415 Ver de modo geral ibidem p 249 trad pp 577-578
416 Ibidem p 249 trad pp 577-578
417 Ver a respeito pp 143-147
418 Cf GW 12 p 250 trad p 579
155
dessa maneira estatildeo dadas as condiccedilotildees para que o processo siga adiante ldquoA determinidade
que era resultado eacute como se mostrou por causa da forma da simplicidade na qual ela
convergiu um novo comeccedilo na medida em que ele eacute diferente de seu [comeccedilo] precedente
justamente mediante essa determinidade o conhecer se impele (sich fortwaumllzen) de conteuacutedo
em conteuacutedo adianterdquo419 Desse novo comeccedilo vai portanto repetir-se o mesmo processo
dialeacutetico e que levaraacute ao surgimento de uma outra determinaccedilatildeo mais rica do que a anterior
ldquoO conceito no meacutetodo absoluto manteacutem-se no seu ser-outro o universal na sua
particularizaccedilatildeo no juiacutezo e na realidade ele eleva a massa inteira do seu conteuacutedo precedente
a cada degrau da sua determinaccedilatildeo ulterior e natildeo somente natildeo perde nada atraveacutes do seu
progredir dialeacutetico nem deixa nada para traacutes senatildeo que carrega tudo consigo e se enriquece e
se condensa dentro de sirdquo420
Eacute por meio desse processo que partindo do comeccedilo indeterminado se chega ao
fundamento de todo o processo Ao mesmo tempo que nos afastamos do comeccedilo estamos
novamente retornando a ele Hegel chama esse procedimento de fundamentaccedilatildeo regressiva do
comeccedilo421 Fundamento que somente eacute alcanccedilado no seu processo de justificaccedilatildeo a partir da
determinaccedilatildeo progressiva do comeccedilo indeterminado Nesse processo progressivo e ao mesmo
tempo regressivo de fundamentaccedilatildeo o meacutetodo se entrelaccedila (sich schlingt) num ciacuterculo422 E
419 Cf Ibidem p 250 trad p 579 (ldquoDie Bestimmheit welche Resultat war ist wie gezeigt worden um der Form der Einfachheit willen in welche sie zusammengegangen selbst ein neuer Anfang indem er von seinem vorhergehenden durch eben diese Bestimmtheit unterschieden ist so waumllzt sich das Erkennen von Inhalt zu Inhalt fortrdquo)
420 Cf Ibidem p 250 trad p 579 (ldquoDer Begriff in der absoluten Methode erhaumllt sich in seinem Andersseyn das Allgemeine in seiner Besonderung in dem Urtheile und der Realitaumlt es erhebt auf jede Stuffe weiterer Bestimmung die ganze Masse seines vorhergehenden Inhalts und verliert durch sein dialektisches Fortgehen nicht nur nichts noch laumlszligt etwas dahinten sondern traumlgt alles Erworbene mit sich und bereichert und verdichtet sich in sichrdquo)
421 Cf Ibidem p 251 trad p 580
422 Ibidem p 251 trad p 580 E tambeacutem a ciecircncia (Wissenschaft) desenvolvida a partir desse meacutetodo imanente circular seraacute do mesmo modo circular ldquoEm virtude da natureza do meacutetodo [que foi] indicada a ciecircncia se apresenta como um ciacuterculo entrelaccedilado em si em cujo comeccedilo o fundamento simples a mediaccedilatildeo entrelaccedila o fim do mesmo modo esse ciacuterculo eacute um ciacuterculo dos ciacuterculos pois cada membro singular como [algo] animado pelo meacutetodo eacute a reflexatildeo-em-si que na medida em que ela retorna ao comeccedilo eacute ao mesmo tempo o comeccedilo de um novo membro Fragmentos dessa cadeia satildeo as ciecircncias singulares e cada uma delas tem um antes e um depois ou para falar com mais exatidatildeo somente tem o antes e no seu silogismo mostra seu depoisrdquo No original ldquoVermoumlge der aufgezeigten Natur der Methode stellt sich die Wissenschaft als einen in sich geschlungenen Kreis dar in dessen Anfang den einfachen Grund die Vermittlung das Ende zuruumlckschlingt dabey ist dieser Kreis ein Kreis von Kreisen denn jedes einzelne Glied als Beseeltes der Methode ist die Reflexion-in-sich die indem si in den Anfang zuruumlckkehrt zugleich der Anfang eines neuen Gliedes ist
156
contra aqueles que por impaciecircncia (Ungeduld) pretendem de antematildeo encontrar-se para
aleacutem do determinado portanto desde o iniacutecio se encontrarem imediatamente no absoluto
Hegel mais uma vez nos alerta para o fracasso que estaacute agrave vista dos que querem seguir essa
via423 pois o absoluto ldquosomente se deixa apreender pela mediaccedilatildeo do conhecer do qual o
universal e imediato eacute um momento a verdade poreacutem somente eacute no percurso desenvolvido e
no finalrdquo424 O absoluto que se pusesse independente desse processo de determinaccedilatildeo que
tambeacutem eacute um processo de justificaccedilatildeo do fundamento seria um absoluto suposto (ein
gemeyntes Absolutes) um absoluto que teria tanta validade e creacutedito quanto qualquer outro
que a ele se pusesse em sentido contraacuterio Essa espeacutecie de criacutetica ceacutetica Hegel quer evitar
Uma criacutetica que dificilmente se deixa evitar quando se parte de um absoluto que natildeo foi posto
a partir do processo de fundamentaccedilatildeo que observamos no meacutetodo Mas natildeo apenas isso
Cabe ainda assinalar que quando Hegel fala em absoluto eacute o que nos parece natildeo
esteja ele se referindo a um ponto que se chegasse sem que daiacute natildeo mais se pudesse avanccedilar
adiante O absoluto eacute o proacuteprio meacutetodo ndash a ideacuteia absoluta ndash ao qual se chega por esse
processo de justificaccedilatildeo que constitui a Ciecircncia da Loacutegica Ele eacute essa atividade inerente ao
meacutetodo e pela qual o conceito se autodetermina e forma (ausbildet) o sistema da ciecircncia (Cf
GW 12 pp 252-3 trad p 582) O caraacuteter absoluto do meacutetodo eacute o que faz com que por meio
dele os resultados obtidos pelo menos eacute o que almeja Hegel natildeo sejam passiacuteveis de serem
criticados pelo ceacutetico Esse absoluto eacute fruto de um modo de proceder que considera o posto e
seu contraposto e mediante a negatividade absoluta inscrita no meacutetodo a contradiccedilatildeo posta
pode ser resolvida425 Chega-se ao absoluto no final da Loacutegica mas esse absoluto eacute como jaacute
dissemos o proacuteprio meacutetodo que incorpora a si um procedimento ceacutetico a saber esse
procedimento consistente na oposiccedilatildeo de argumentos Eacute somente pela contradiccedilatildeo dos
Bruchstuumlcke dieser Kette sind die einzelnen Wissenschaften deren jede ein Vor und ein Nach hat - oder genauer gesprochen nur das Vor hat und in ihrem Schlusse selbst ihr Nach zeigt rdquo In Ibidem p 252 trad pp 581-2
423 Ibidem p 252 trad p 581
424 Ibidem p 252 trad p 581 (ldquo[hellip] erfassen laumlszligt es sich nur durch die Vermittlung des Erkennens von der das Allgemeine und Unmittelbare ein Moment die Wahrheit selbst aber nur im ausgebreiteten Verlauf und im Ende istrdquo)
425 Tanto na Ciecircncia da Loacutegica (Cf GW 12 p 46 trad p 296) quanto na Enciclopeacutedia (sect164) Hegel natildeo deixa de apontar para o fato de que o mesmo processo dialeacutetico ocorrido com as determinaccedilotildees de reflexatildeo vai se repetir na Doutrina do Conceito com as determinaccedilotildees da universalidade particularidade e singularidade Quanto a isso citemos o referido sect 164 ldquoUniversalidade particularidade e singularidade tomadas abstratamente satildeo o mesmo que identidade diferenccedila e fundamentordquo (ldquoAllgemeinheit Besonderheit und Einzelheit sind abstract genommen dasselbe was Identitaumlt Unterschied und Grundrdquo In GW 20 p 180 trad p 299
157
opostos resolvida de acordo com o meacutetodo dialeacutetico imanente apresentado na Ideacuteia Absoluta
que eacute possiacutevel agrave ciecircncia avanccedilar e a verdade que ela alcanccedila como resultado ldquotorna-se o
comeccedilo de uma outra esfera e ciecircnciardquo426 Dessa maneira eacute a que somos levados a concluir o
processo natildeo tem de se deter necessariamente num ponto determinado ao contraacuterio o saber
alcanccedilado estaraacute sempre sujeito a ser suspenso (aufgehoben)427
Hans Friedrich Fulda dedica um ensaio a mostrar como Hegel na formulaccedilatildeo do
meacutetodo especulativo diretamente se preocupa em se sobrepor agrave criacutetica ceacutetica por meio da
integraccedilatildeo de sua dialeacutetica antinocircmica ao mesmo meacutetodo428 A possibilidade de uma filosofia
especulativa estaria assim segundo o autor assentada em um meacutetodo que na sua instacircncia
negativa tivesse em si operando a contraposiccedilatildeo ceacutetica de argumentos e uma vez cumprido
seu papel criacutetico com relaccedilatildeo ao pensar enquanto entendimento seu trabalho seria rematado
na instacircncia especulativa do meacutetodo com a modificaccedilatildeo dos conceitos que foram ceticamente
examinados anteriormente Fulda natildeo se cansa de afirmar que a possibilidade do pensamento
absoluto pressupotildee o exerciacutecio da agogeacute ceacutetica na instacircncia dialeacutetica do meacutetodo Eacute somente
por meio desse exerciacutecio que a filosofia conseguiraacute eacute o que acredita Hegel se desvencilhar do
ceticismo stricto sensu
No comeccedilo do capiacutetulo que trata do meacutetodo ndash a ideacuteia absoluta ndash Hegel faz uma
afirmaccedilatildeo importante no que se refere agrave proacutepria ideacuteia absoluta que ldquoela eacute o uacutenico objeto e
conteuacutedo da filosofiardquo429 Aleacutem disso que a tarefa da filosofia eacute reconhececirc-la nas diversas
426 GW 12 p 253 trad pp 582-3 (ldquo[hellip] wird als letztes Resultat auch den Anfang einer andern Sphaumlre und Wissenschaftrdquo)
427 Nesse sentido eacute entatildeo pertinente aqui recordar Geacuterard Lebrun ldquoQuando interpretam o saber absoluto como o coroamento da metafiacutesica e lhe reprovam deixar fora de si uma zona de natildeo-sentido um negativo irredutiacutevel que ignoraria soberbamente ainda tecircm certeza de natildeo conceder a certas significaccedilotildees um lsquovalor isoladorsquo Assim compreendem a dialeacutetica como uma outra ontologia outra experiecircncia do ser ndash e a negatividade se torna gradualmente uma reapropriaccedilatildeo laboriosa mas sempre exitosa Mas afinal onde eacute o lugar desse ecircxito Em que lugar do percurso nos datildeo o direito de parar em uma significaccedilatildeo isolada que o totalizariardquo E veja-se ainda tambeacutem o seguinte trecho ldquoO jogo portanto natildeo paacutera nenhuma descriccedilatildeo eacute privilegiada nenhum movimento termina em um nome que resumiria seu percurso Incessante vitoacuteria do sentido tanto quanto se quiser mas tambeacutem advento da mais desconcertante noccedilatildeo de lsquosentidorsquo Estranho lsquocoroamento da metafiacutesicarsquo com efeito um discurso que natildeo paacutera de denunciar como parcial a tese que ao que parece ele vem formular ndash discurso que ao ponto final prefere o corretivo que torna a questionar a frase inteira Estranho lsquodogmatismorsquo esse interditando ao leitor jamais se repousar em um ponto fixo e sempre o deportando mais longerdquo (Lebrun G A paciecircncia do Conceito respectivamente p 307 e p 308)
428 Ver Fulda H F Philosophisches Denken in einer spekulativen Metaphysik in Paumltzold DVandejagt A (eds) Hegels Transformation der Metaphysik Koumlln Dinter 1991 pp 62-82
429 GW 12 p 236 trad p 559 (ldquoSie ist der einzige Gegenstand und Inhalt der Philosophierdquo)
158
configuraccedilotildees (Gestaltungen) que ela assume no seu processo de autodeterminaccedilatildeo430 Esse
reconhecimento se daacute portanto conforme ao meacutetodo ndash que eacute a proacutepria ideacuteia absoluta como
forma ndash e o qual foi objeto de nossa anaacutelise neste capiacutetulo O processo dialeacutetico que ocorre no
meacutetodo compotildee segundo a descriccedilatildeo hegeliana nos sectsect79-82 da Enciclopeacutedia431 de trecircs
aspectos (Seiten) atuantes em ldquotodo loacutegico-realrdquo432 Isto significa que no processo de
autodeterminaccedilatildeo da ideacuteia absoluta esses trecircs aspectos satildeo trecircs momentos que se realizam
naquilo que a cada caso se determina Assim temos em cada loacutegico-real o momento do
entendimento o dialeacutetico ou negativamente-racional e por fim o especulativo ou
positivamente-racional433
O momento do entendimento eacute aquele em que se permanece na determinidade finita e
limitada O combate a essa a essa unilateralidade do que eacute posto pelo entendimento eacute efetuado
pelo ceticismo434 operante no momento negativo-dialeacutetico do meacutetodo Eacute esse ceticismo que
atua no sentido de mostrar como jaacute observara Fulda que as determinidades postas pelo
entendimento natildeo apenas natildeo satildeo fixas como tambeacutem satildeo negadas por suas opostas que as
limitam Cabe por fim ao especulativo apreender ldquoa unidade das determinaccedilotildees em sua
oposiccedilatildeordquo435 na medida em que resolve a contradiccedilatildeo que haacute entre elas com a negaccedilatildeo das
mesmas no passar (Uebergehen) a outra coisa que nada mais eacute que o resultado Resultado que
conserva em si essas determinaccedilotildees que foram negadas no processo de Aufhebung
Fulda crecirc que esse exame efetuado no lado ceacutetico do meacutetodo eacute o que permite a
modificaccedilatildeo de conteuacutedo dos conceitos pela especulaccedilatildeo436 O exame ceacutetico bem realizado
continua ele torna possiacutevel a sistematizaccedilatildeo do que foi obtido no momento positivo-racional
do meacutetodo437
430 Cf Ibidem p 236 trad pp 559-560
431 Cf GW 20 pp 118-120 trad pp 159-169
432 GW 20 E sect79 p 118 trad p 159
433 Ibidem p 118 trad p 159
434 Hegel no sect78 da Enciclopeacutedia chama esse momento dialeacutetico de ceticismo consumado (vollbrachte Skepticismus) Cf Ibidem p 118 trad p 156
435 Ibidem p 120 trad p 166 (ldquofaszligt die Einheit der Bestimmungen in ihrer Entgegensetzung auf []rdquo)
436 Cf Fulda Philosophisches Denkenhellip p 70
437 Cf Ibidem p 70
159
Parece-nos que para Hegel a saiacuteda para natildeo se cair novamente no ceticismo estaacute
justamente em proceder como o ceacutetico Eacute claro que a partir da integraccedilatildeo de seu procedimento
agrave filosofia especulativa e deixando-se para traacutes o ponto de vista do entendimento que tambeacutem
era o do ceacutetico ao se aceitar que a negaccedilatildeo fosse abstrata E antes que o ceacutetico pudesse
novamente acusar a filosofia especulativa de parcialidade esta dado que natildeo pretende que
seus resultados natildeo possam ser superados estaacute pronta para um outro exame ceacutetico de suas
determinaccedilotildees ateacute que um novo resultado seja alcanccedilado A precipitaccedilatildeo (propeacuteteia)
dogmaacutetica tatildeo combatida pelos ceacuteticos pode entatildeo ser evitada com esse paciente exerciacutecio
dialeacutetico que acabamos de expor Se natildeo haacute porque se deter num ponto determinado de uma
vez por todas como vingar a acusaccedilatildeo de precipitaccedilatildeo Hegel deixa sempre aberta a hipoacutetese
de que a investigaccedilatildeo continue assim como o queriam os ceacuteticos Mas a despeito desse fato
cremos que mesmo assim e nosso filoacutesofo tambeacutem estaacute ciente disso seja difiacutecil que os
advogados da duacutevida terminem por concordar com ele
161
CONCLUSAtildeO
Nesta nossa pesquisa acerca da temaacutetica do ceticismo na filosofia de Hegel
procuramos ressaltar a importacircncia que ele concede ao ceticismo como procedimento criacutetico-
investigativo na constituiccedilatildeo de sua proacutepria filosofia
Nesse trajeto buscamos apontar o interesse de Hegel pela filosofia ceacutetica desde o
iniacutecio de sua carreira filosoacutefica verificaacutevel jaacute nas suas primeiras publicaccedilotildees como o escrito
sobre a Diferenccedila e o artigo sobre o ceticismo
Na apresentaccedilatildeo e anaacutelise da interpretaccedilatildeo hegeliana do ceticismo torna-se patente a
preocupaccedilatildeo do filoacutesofo em uma resposta ao desafio que o ceticismo constitui para a
elaboraccedilatildeo e sustentaccedilatildeo de sua filosofia positiva A intenccedilatildeo ceacutetica de tudo que se lhe
apresenta com valor de verdade submeter a exame visto que sem essa atitude natildeo se vecirc o
ceacutetico em condiccedilotildees de talvez poder assentir a qualquer verdade eacute vista com bons olhos por
Hegel Esse natildeo aceitar nada como dado natildeo aceitar pressupostos natildeo examinados eacute uma
exigecircncia que Hegel adota para a filosofia especulativa A questatildeo eacute que no seu exame o
ceacutetico reiteradamente mostra a limitaccedilatildeo e a falta de universalidade das verdades
pretensamente absolutas que foram objeto da sua investigaccedilatildeo Ele mostra assim que a um
discurso se pode opor um outro discurso de igual forccedila
Hegel se daacute conta dessa forccedila da criacutetica ceacutetica Que a filosofia que natildeo a considera estaacute
fadada a perecer Para responder ao ceacutetico contudo Hegel natildeo se empenhou simplesmente
em refutaacute-lo Isso seria inviaacutevel justamente porque a filosofia precisa valer-se da criacutetica ceacutetica
para se constituir Por outro lado natildeo entrava em pauta para ele adotar a posiccedilatildeo ceacutetica E isto
porque nota que o ceacutetico tambeacutem assume certos pressupostos dos quais natildeo tem consciecircncia
O seu ecircxito no combate ao dogmatismo eacute possiacutevel em virtude de exercer sua criacutetica no
domiacutenio do entendimento logo assumindo como pressuposto as regras que regulam esse
domiacutenio Assim o ceacutetico consegue contrapor discursos ou argumentos porque no acircmbito do
entendimento aquilo que eacute afirmado natildeo leva em consideraccedilatildeo o seu oposto A limitaccedilatildeo das
determinaccedilotildees postas no acircmbito do entendimento faz com que as mesmas sejam aniquiladas
com a posiccedilatildeo daquelas que se lhes contrapotildeem Aleacutem disso nesse domiacutenio vige o princiacutepio
de natildeo-contradiccedilatildeo e uma vez estabelecida a contradiccedilatildeo o resultado eacute um nada a que se
162
chega com a aniquilaccedilatildeo dos contrapostos Diante da contradiccedilatildeo o ceacutetico natildeo tem como
avanccedilar Ele natildeo vecirc que haja uma outra maneira de considerar a oposiccedilatildeo e a contradiccedilatildeo
Independente dessas limitaccedilotildees o que Hegel faz eacute incorporar reformulado o
procedimento ceacutetico de contraposiccedilatildeo de argumentos agrave sua filosofia O que ele denominou de
seu lado negativo Mas aleacutem do domiacutenio do entendimento haacute o especulativo no qual as
oposiccedilotildees e a consequumlente contradiccedilatildeo entre elas satildeo vistas de maneira positiva Natildeo se
termina aqui com a contradiccedilatildeo num nada vazio Ela se resolve positivamente pois a
negaccedilatildeo aqui atuante faz com que o movimento avance nesse sentido A possibilidade de
conseguirmos escapar da criacutetica ceacutetica estaacute vinculada portanto agrave integraccedilatildeo de sua dialeacutetica
antinocircmica agrave filosofia o que tambeacutem envolveraacute a criacutetica dos pressupostos assumidos pelo
ceticismo Assim a soluccedilatildeo que Hegel encontra para que natildeo nos tornemos alvo do ceticismo
e ao mesmo tempo natildeo tenhamos que assumir a posiccedilatildeo ceacutetica implica na incorporaccedilatildeo do
procedimento criacutetico-ceacutetico agrave filosofia
163
OBRAS DE HEGEL
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In Jenaer Kritische Schriften ediccedilatildeo de Hartmut Buchner e Otto Poumlggeler Hamburg Felix
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ediccedilatildeo de U Rameil W Bonsiepen e H-C Lucas Hamburg Felix Meiner 1992
Gesammelte Werke vol 20
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Enzyklopaumldie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830)
ediccedilatildeo de E Moldenhauer e K M Michel Frankfurt a M Suhrkamp 1993 Werke vol 8
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Phaumlnomenologie des Geistes ediccedilatildeo de W Bonsiepen e R Heede
Hamburg Felix Meiner 1980 Gesammelte Werke vol 9
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Verhaumlltniss des Skepticismus zur Philosophie Darstellung seiner
Verschiedenen Modificationen und Vergleichung des Neuesten mit dem Alten In Jenaer
Kritische Schriften Gesammelte Werke vol 4
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie I ediccedilatildeo de E
Moldehhauer e K M Michel Frankfurt a M Suhrkamp 1986 vol 18
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie II ediccedilatildeo de E
Moldehhauer e K M Michel Frankfurt a M Suhrkamp 2003 vol 19
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Vorlesungen uumlber Logik und Metaphysik Heidelberg 1817
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und Manuskripte Band 11 Hamburg Meiner 1992
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Wissenschaft der Logik Erster Band Erstes Buch Die Lehre vom Sein
(1832) Gesammelte Werke vol 21 Hamburg Meiner 1984
ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Wissenschaft der Logik Erster Band Zweites Buch Die Lehre vom Wesen
(1813) Gesammelte Werke vol 11 Hamburg Meiner 1978
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ndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndashndash Wissenschaft der Logik Zweiter Band Die subjektive Logik oder die
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